As anotacoes sobre a pintura do MONGE ABOBORA-AMARGA

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As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga


Universidade Estadual de Campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori de Decca

Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno José A. R. Gontijo – José Roberto Zan Marcelo Knobel – Marco Antonio Zago Sedi Hirano – Yaro Burian Junior


Pierre Ryckmans

as anotações sobre pintura do monge abóbora-amarga Tradução e comentário da obra de Shitao

Tradução para o português Carlos Matuck e Giliane Ingratta Traduções adicionais do chinês Tai Hsuan An


ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação R969a

Ryckmans, Pierre. As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga: tradução e comentário da obra de Shitao / Pierre Ryckmans; tradução para o português: Carlos Matuck e Giliane Ingratta. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2010.

1. Shitao. 2. Pintura chinesa. 3. Pintura paisagística. 4. Pintura chinesa – História. 5. Filosofia chinesa. I. Título. cdd 759.951 758.1 181.11 isbn 978-85-268-0882-9 Índices para catálogo sistemático: 1. 2. 3. 4. 5.

Shitao Pintura chinesa Pintura paisagística Pintura chinesa – História Filosofia chinesa

Título original: Les propos sur la peinture du Moine Citrouille-Amère Copyright © by Plon, 2007 Copyright © 2010 by Editora da Unicamp

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

Editora da Unicamp Rua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br

759.951 759.951 758.1 759.951 181.11


sumário

apresentação ..................................................................................................................

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advertência ....................................................................................................................

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introdução ......................................................................................................................

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as anotações sobre pintura do monge abóbora-amarga capítulo i – o único traço de pincel...........................................................

25

capítulo ii – a realização da regra .............................................................

47

capítulo iii – a transformação.......................................................................

53

capítulo iv – venerar a receptividade ......................................................

65

capítulo v – pincel e tinta ..................................................................................

69

capítulo vi – os movimentos do punho .....................................................

77

capítulo vii – yin yun .........................................................................................

83

capítulo viii – a paisagem .....................................................................................

89

capítulo ix – o método das “texturas” .....................................................

99

capítulo x – delimitações .................................................................................... 109


capítulo xi – procedimentos .............................................................................

113

capítulo xii – florestas e árvores ................................................................

119

capítulo xiii – oceano e ondas ........................................................................

123

capítulo xiv – as quatro estações ................................................................ 127 capítulo xv – longe da poeira .......................................................................... 137 capítulo xvi – despojar-se da vulgaridade ............................................ 145 capítulo xvii – em união com a caligrafia .............................................

155

capítulo xviii – assumir suas qualidades ................................................ 161 anexo i – nota biográfica sobre shitao .................................................... 169 anexo ii – síntese crítica das teorias relativas à data de nascimento de shitao acrescida de nota sobre a carta de shitao para bada shanren ............................................................................. 179 anexo iii – bibliografia geral .......................................................................... 193 anexo iv – bibliografia comentada das fontes utilizadas nas notas e nos comentários das anotações sobre pintura ......... 199 índice de temas e noções que foram objeto de uma análise ou de uma menção específica .............................................................................

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índice de termos chineses em pinyin que foram objeto de uma análise, de uma definição ou de uma menção específica ............. 235

apêndice à edição brasileira cronologia – história da china ..................................................................... 243 relação das pinturas que compõem o caderno de imagens e tradução de suas inscrições ............................................................................. 245 Relação das pinturas chinesas ...................................................................................... 245 Tradução das inscrições das pinturas chinesas ........................................................ 246 caderno de imagens................................................................................................... 257


apresentação

Dizer que este é um livro maravilhoso é dizer pouco. Como veremos, é considerado o ápice de uma tradição de pensamento teórico sobre a pintura que remonta a mais de 1.500 anos. E ultrapassa o âmbito da pintura, inserindo-se também no campo da filosofia. Shitao (1642-1707), ou “O Monge Abóbora-Amarga”, um dos nomes que usava como artista, talvez tenha sido o maior pintor da história da China, se é que podemos escrever tal coisa sobre uma tradição que reúne nomes como os de Wang Wei, Fan Kuan, Guo Xi, Liang Kai, Ma Yuan, Ni Zan, Zhao Mengfu, Tang Yin, Wen Zhengming e Zhu Da (Bada Shanren), para citar apenas alguns dos pintores mais conhecidos. E, além de uma grande produção de pinturas maravilhosas*, legou-nos também estas Anotações, texto baseado nas três correntes principais do pensamento chinês (taoismo, confucionismo e budismo), consciente das obras anteriores escritas sobre a pintura, e, para completar, carregado de alto teor poético. A primeira edição conhecida do livro é de 1728. O autor da tradução para o francês e das notas que acompanham o texto de Shitao é Pierre Ryckmans, tradutor e autor de variada obra, inclusive ficcional. Ryckmans optou por contextualizar, além de esclarecer, o tratado de Shitao atra*

Um bom panorama de sua obra pode ser visto em François Cheng, Shitao, la saveur du monde. Paris: Éditions Phébus, 1998. (N. do T.)

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vés de notas de rodapé, tornando compreensível ao leitor ocidental um texto que, de outra forma, seria inatingível aos não iniciados. A sua tradução, acompanhada de seus comentários, tornou-se referência para todos os que se debruçam sobre a história da pintura chinesa. A leitura exige paciência, já que as notas são numerosas, mas é extremamente gratificante: a experiência do leitor ao depararse com uma pintura chinesa nunca mais será a mesma. Nos volumes de “história da pintura universal”, sob o domínio do pensamento europeu, a pintura chinesa, quando é citada, figura como uma excentricidade, à margem das grandes correntes principais, em um misto de ignorância e exercício de dominação cultural. Este livro pode nos ajudar a ver através da bruma, e reconhecer a beleza, a profundidade e a grandeza da pintura chinesa tradicional. Agradeço a Giliane Ingratta e Tai Hsuan An, meus parceiros de tradução, sem os quais o texto não poderia ser publicado. Agradeço também ao amigo Simon Mao Hun Tseng, por sua ajuda na tradução das inscrições das pinturas; e ao professor James Cahill, que mesmo sem nos conhecer, tentou esclarecer nossas dúvidas a respeito delas. Por fim, agradeço às professoras Laís Guaraldo, Luise Weiss e Lygia Eluf, que se empenharam para a publicação do livro. Carlos Matuck

Obs.: O sinal

acompanha o nome dos pintores que estão representados no Cader-

no de Imagens, em sua primeira menção no texto.

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advertência

O presente trabalho tem como eixo um tratado chinês sobre a pintura, As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga, de Shitao, do qual proponho aqui a primeira tradução integral francesa1. A importância e a densidade do tratado de Shitao exigiram o acompanhamento de um grande número de notas e comentários, abrangendo um leque bastante amplo de noções pictóricas chinesas, que versam alternadamente sobre a terminologia, a técnica, a crítica e a filosofia. Em vez de recompor essas diferentes noções na forma de um ensaio introdutório sobre a estética da pintura chinesa, preferi manter o tratado de Shitao como fio condutor e abordá-las apenas na medida, e em função, das exigências do texto a ser comentado. O essencial de meu trabalho, portanto, está relacionado às notas que seguem cada um dos 18 capítulos da tradução. Como essas notas apresentam frequentemente um caráter bastante geral, dizendo respeito ao conjunto das teorias pictóricas chinesas, podem ser abordadas fora do contexto particular de Shitao, como curtas monografias independentes. Dois índices (índice dos temas tratados e índice dos termos analisados) eventualmente permitirão ao leitor consultá-las isoladamente, na medida de seus interesses e de suas necessidades. Essas notas baseiam-se em um grande número de citações que se encontram em tratados chineses de estética, de diversos autores e de várias épocas. Como não seria possível analisar cada autor e sua obra, conforme surgissem as citações,

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As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga

sem o risco de tornar pesada demais a estrutura da exposição, juntei em um anexo separado (Anexo IV) uma série de apontamentos apresentando brevemente os diversos autores, e indicando, em cada caso, o lugar ocupado por sua obra na evolução geral das teorias chinesas sobre a pintura.

A transcrição fonética dos nomes chineses citados é a transcrição chamada pinyin* tal como foi ratificada pela Assembleia Popular de Beijing, em 11 de fevereiro de 1958.

Empreguei diversas abreviações para as obras citadas com mais frequência, conforme segue (para a referência bibliográfica de cada obra, ver Anexo III, Bibliografia geral): Congkan: Yu Anlan: Hualun congkan (Coleção de livros sobre a teoria da pintura). Leibian: Yu Jianhua: Zhongguo hualun leibian (Textos organizados sobre teoria da pintura chinesa). Lidai: Zhang Yanyuan: Lidai ming hua ji (Registros das pinturas famosas de todas as épocas). Meishu: Deng Shi e Huang Binhong: Meishu congshu (Coleção de livros de belas-artes).

*

O pinyin é um sistema de romanização, isto é, um sistema de transcrição fonética para a escrita latina, do dialeto mandarim-padrão da língua chinesa. Ratificado em 1958 e adotado oficialmente em 1979 pelo governo da República Popular da China, hoje é o principal sistema em uso. Por exemplo, é o sistema utilizado para encontrar o ideograma correto em todos os computadores chineses. Algumas palavras consagradas pelo uso, quando transcritas por esse sistema, sofreram modificações: Pequim tornou-se Beijing, o ex-líder Mao Tsé-tung tornou-se Mao Zedong, o Tao, o “caminho” ou “via” dos taoistas, tornou-se o Dao. Há muita controvérsia sobre se devemos ou não modificar a ortografia das palavras consagradas pelo uso. Esta edição optou por utilizar o sistema em todas as palavras, seguindo uma tendência universal e também em sinal de respeito aos possíveis leitores chineses e sino-brasileiros. A exceção foi “Confúcio”: seria pedir demais ao leitor brasileiro que decifrasse Kong Fuzi. (N. do T.)

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Advertência

Yu: Yu Jianhua: Shitao hua yulu (Notas sobre as inscrições de pintura de Shitao). Zhu: Huapu (Manual de pintura) (edição fac-similar da versão xilográfica, redescoberta recentemente, do manuscrito de Shitao, anotado por Zhu Jihai). As citações do Lidai ming hua ji, do Tuhua jianwen zhi (Notas sobre os meus conhecimentos em desenho e pintura) e do Hua Ji, za shuo (Teoria da pintura — A continuação) são da edição da Editora de Belas-Artes do Povo (Beijing, 1963).

Notas 1 Já temos uma tradução inglesa parcial (O. Siren, The Chinese on the art of painting, pp. 184-92: tradução dos caps. I a V, VII e XV) e uma tradução alemã integral (V. Contag, Die Beiden Steine), ver infra, Anexo III, Bibliografia geral*.

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Por alguma razão, Ryckmans não atualiza esta bibliografia sobre o tratado de Shitao. Desde que seu trabalho foi publicado, várias outras traduções integrais foram realizadas (a de Lin Yutang é anterior). Citamos as mais conhecidas (em línguas ocidentais): Lin Yutang: Shih-t’ao — An expressionist credo em The Chinese Theory of Art. Putnam’s Sons, 1967, pp. 137-58. Richard E. Strassberg: Enlightening Remarks on Painting by Shih-Tao. Pacific Asia Museum Monographs, 1989. Feng Xiao-Min: L’Union de l’Encre et du Pinceau. Flammarion, 2003 (além de caligrafias e poemas do autor, traz uma tradução integral do tratado sob o título Réflexions sur la peinture du Moine Concombre Sauvage). Marc Nürnberger: Aufgezeichnete Worte des Mönchs Bittermelone zur Malerei. Dieterich’sche Verlagsbuchhandlung, 2009. Além destas, temos ainda: Earle Coleman: Philosophy of Painting by Shih-t’ao. The Hague: Mouton Publishers, 1978 (tradução do Manual de Pintura não das Anotações). Marcello Ghilardi: Sulla Pittura — Discorsi sulla pittura del monaco Zucca Amara, prefácio de Giangiorgio Pasqualotto. Mimesis Edizioni, 2008 (tradução não integral mas dos trechos principais de cada capítulo, acompanhados de comentários). (N. do T.)

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introdução

O tratado de Shitao é o resultado relativamente tardio1 de uma literatura estética que, ao longo de mais de um milênio, já havia acumulado uma produção singularmente rica e abundante2. Não é minha intenção fazer aqui um resumo da história da evolução das teorias pictóricas na China; sobre o assunto, já existem diversas sínteses importantes que também podem ser consultadas3. No entanto, a maior parte de meu trabalho consistiu evidentemente num exame extenso dessa literatura estética, mas apenas com o objetivo prático de fornecer um conjunto de referências que permita comentar detalhadamente os diversos termos e noções utilizados por Shitao. Assim, encontraremos os resultados desse estudo nas notas que acompanham a tradução. O trabalho de comparação entre o texto de Shitao e as grandes constantes das teorias clássicas tem vários objetivos: — primeiro, explicitar o pensamento de Shitao; expresso de uma forma extremamente densa e concisa, esse pensamento, de fato, incorpora todo um conjunto de noções já desenvolvidas ao longo dos textos anteriores, e que aqui era preciso retomar; — segundo, fornecer, desde já, certos elementos para uma futura terminologia da estética chinesa4;

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— terceiro, situar o pensamento de Shitao em seu contexto tradicional, e portanto, por contraste, ressaltar a importância e a originalidade da contribuição de nosso autor a essa tradição, na qual veio inscrever-se em seu término e no mais alto posto.

Simplificando muito, poderíamos dividir esquematicamente a literatura pictórica chinesa em duas vertentes: de um lado, os escritos de estetas e letrados destinados ao homem de bem, apreciador de arte ou colecionador e, de outro, os escritos de pintores destinados principalmente aos seus colegas. Os primeiros ocupam-se de História da Arte, compilam uma informação histórica ou anedótica, estabelecem julgamentos e classificações críticas, fazem inventários de obras e de coleções, instituem e discutem diversas noções teóricas. Nessa área, às obras especializadas é preciso ainda acrescentar trechos de obras literárias diversas, cuja intenção inicial não é especificamente pictural, mas que, referindo-se ocasionalmente à pintura, às vezes exerceram uma influência importante sobre as teorias pictóricas, por sua profundidade e pela originalidade de seus pontos de vista. Os segundos dirigem-se preferencialmente aos pintores e registram os segredos de uma experiência tanto espiritual como prática da pintura, frequentemente acompanhados também de reflexões críticas sobre a obra de seus colegas e de seus predecessores. Essas obras tomam diversas formas: ora a de uma meditação descritiva e poética, ora a de um manual prático que se refere sistematicamente, capítulo por capítulo, aos diversos aspectos teóricos e técnicos do trabalho pictórico; ora, ainda, apresentam-se como coletâneas bastante livres de reflexões e aforismos descontínuos (forma muito em voga nas épocas Ming e Qing). A essa literatura ainda é preciso acrescentar o gênero bastante profuso das coletâneas de inscrições caligrafadas nas pinturas pelos pintores e críticos. O tratado de Shitao, por sua forma e composição, apresenta-se aparentemente como um desses manuais de pintura, divididos em capítulos analíticos. Mas de sua leitura emerge imediatamente uma dupla originalidade essencial que não encontra correspondência em nenhuma vertente da literatura estética: de fato, trata-se de uma obra exclusivamente filosófica, cujo pensamento se organiza em um sistema sintético.

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Introdução

O pensamento filosófico certamente está presente em todas as formas da literatura pictórica tradicional, e não há uma só colocação dessa literatura, mesmo em seu nível mais concreto e mais técnico, em que os seus postulados implícitos não possam ser lidos nas entrelinhas. Mas, quando se trata de sua expressão explícita, esse pensamento surge apenas de maneira ocasional e fragmentária, ora na introdução de uma obra, ora em um capítulo específico, com mais frequência no brilho de alguns aforismos esparsos. Em Shitao, ao contrário, a reflexão filosófica constitui o objeto exclusivo e sistemático de seu tratado; neste texto curto, que deliberadamente se situa, do início ao fim, em um plano de abstração universal, não há um único enunciado que não seja essencial. De fato, nele não se encontram receitas práticas, nem referências históricas, nem citações (salvo as dos clássicos da filosofia), nem anedotas, nem julgamentos críticos sobre determinadas obras ou determinados artistas (notemos, por exemplo — coisa excepcional, sobretudo em sua época —, que, em todo o tratado, não é mencionado um único nome de pintor), e se ele aborda certos aspectos das técnicas e das formas é unicamente para neles redescobrir e verificar a aplicação dos princípios filosóficos universais que pôs em suas premissas, e para mostrar como esses princípios dão conta da profunda unidade do fenômeno pictórico, inclusive em seus elementos os mais humildes e os mais variados. Shitao constrói o seu pensamento fora do tempo, além das obras e das escolas; não se ocupa nem dos pintores nem das pinturas, mas do Pintor e da Pintura ou, mais exatamente, do Ato do Pintor. Além disso, essa reflexão está estruturada na forma de um sistema coerente, tendo como pedra angular um conceito original — o “Único Traço de Pincel” — em torno do qual todo o tratado se organiza: os primeiros capítulos apresentam e definem a noção de “Único Traço de Pincel” — produto sincrético de diversas noções tomadas das correntes fundamentais da filosofia chinesa e aplicadas à pintura. O conceito desenvolve-se simultaneamente em diversas direções, representando de uma só vez a medida suprema de toda criação do espírito e, ao mesmo tempo, a noção mais concreta e mais elementar da técnica pictórica. Ele constitui o princípio unitário que permitirá dar conta de todos os aspectos da atividade do pintor, em todos os níveis: filosófico, ético, plástico e técnico.

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Após ter definido essa noção (caps. I e II), Shitao estuda seu papel liberador como fundamento da criatividade (cap. III) e a condição de seu exercício na “receptividade” (cap. IV). Os dez capítulos seguintes mostram o conceito de Único Traço de Pincel tal como é colocado concretamente em ação pelos diversos aspectos da pintura: de um lado, nos instrumentos do pintor — o pincel e a tinta, primeiro considerados por si próprios (cap. V), depois em seu manejo (cap. VI) e, enfim, em sua ação conjunta (cap. VII) —; de outro lado, em diversos elementos exemplares da pintura — a paisagem, sua expressão plástica por excelência (caps. VIII e IX), a composição e os procedimentos (caps. X e XI) e a expressão de diversos outros componentes da paisagem (caps. XII, XIII e XIV). Em seguida, dois capítulos visam à atitude do pintor: ética (cap. XV) e estética (cap. XVI). Outro capítulo se refere à questão particular das relações que unem tradicionalmente pintura e caligrafia, cujo princípio do Único Traço de Pincel vem atestar a identidade original (cap. XVII). Enfim, uma longa conclusão reúne os principais elementos do tratado, à luz dos quais se encontram definidas a natureza e a condição da criação pictórica.

Para nós, o estudo deste tratado, que na opinião geral dos críticos chineses representa uma das mais altas e mais completas expressões do pensamento estético chinês5, tem um interesse muito particular: surgindo quase no fim de uma longa tradição que nele cristaliza suas riquezas essenciais, por um lado o texto nos dá ocasião de passar em revista as noções fundamentais dessa literatura estética e, por outro, personifica de maneira exemplar a atitude do pintor chinês, depurada até naquilo que ela representa de mais universal, isto é, a visão do homem agindo em comunhão com o Universo. Ao abordar este texto curto, não poderíamos nos contentar em trazê-lo até nós como uma amostra de uma literatura especializada passível de ser isolada pela análise. Ao contrário, ele é que nos leva para um mundo cujas coordenadas fundamentais de fato se encontram situadas além da pintura: essa é a riqueza deste tratado, mas também sua extrema dificuldade6. Assim, estou bem consciente das fraquezas e do caráter incompleto deste trabalho de aproximação: em muitas passagens, em relação à riqueza sugestiva e polivalente do texto original, minha tradução teve que se contentar com o empobrecimen-

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Introdução

to de certas opções com sentido único. O que ofereço aqui não é a tradução das Anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga, de Shitao, mas uma das traduções possíveis7. E se tenho, desde já, a audácia de publicar um trabalho em vários aspectos tão aproximativo, é porque sei que, essencialmente, a experiência e a meditação de uma vida inteira não seriam suficientes para completá-lo. Mas, por insuficiente que ele seja, espero que o trabalho possa trazer uma contribuição ao conhecimento da estética chinesa e, até, que essa contribuição possa não se limitar a uma esfera de estudos especializados. De fato, o que o convívio com esse pensamento pode trazer, parece-me, é de uma ordem ainda mais ampla que apenas a do conhecimento científico. Tendo visto, nos últimos tempos, em certas reflexões e pesquisas de estetas e artistas contemporâneos, como que a intuição de verdades semelhantes, pareceu-me ainda mais adequado tentar oferecer agora um acesso — o mais rigoroso e direto possível — a um pensamento que, por mais afastado que possa estar no espaço, nos revela entretanto, com uma singular eloquência, o segredo de uma reconciliação com o Universo que alguns pensadores do Ocidente começam precisamente hoje a redescobrir. Hong Kong, junho de 1968. A presente reedição reproduz fielmente a edição original de meu livro (Bruxelas, 1970). Contentei-me em fazer algumas correções (erros de impressão) e uma ou outra atualização em questões de menor importância. Camberra, janeiro de 2006.

Notas

1 Quanto à data das Anotações sobre pintura: há alguns anos, descobriu-se na China a versão xilografada de um manuscrito de Shitao intitulado Huapu (Manual de pintura), que traz um prefácio datado de 1710 (essa obra foi reproduzida

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As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga

em edição fac-similada, Shanghai, 1962). O texto do Manual é quase idêntico ao das Anotações; entretanto, é um pouco mais curto e apresenta cerca de 60 variantes de pormenor (sobretudo variantes de estilo, mas também omissões de palavras, de pedaços de frases, algumas vezes de frases inteiras, que em certa medida alteram o conteúdo do pensamento). A questão de saber se o Manual é uma forma depurada das Anotações ou as “Anotações” uma versão desenvolvida do Manual está sendo atualmente discutida pelos críticos chineses. No conjunto, constata-se com suficiente clareza que as Anotações indicam um desenvolvimento e aprofundamento do pensamento com relação ao Manual, e portanto poderiam ser consideradas como posteriores a ele. Admitindo-se esse ponto de vista, então seria preciso deduzir que as Anotações teriam sido escritas entre 1710 (data do Manual) e 1720 (data presumida da morte de Shitao). A mais antiga edição conhecida das “Anotações” é aquela do Zhibuzuzhai congshu (Coleção de livros O Saber Insuficiente), e traz um posfácio de Zhang Yuan datado de 1728. 2 Os fragmentos mais antigos de teorias pictóricas que foram conservados datam do século IV. O mais antigo tratado que chegou até nós na íntegra é do fim do século V; desde então, essa literatura jamais foi interrompida, e isso até a época contemporânea, formando um conjunto recenseado de mais de 800 obras, cuja maior parte pertence evidentemente às épocas tardias (Ming e Qing). (Para uma visão bibliográfica de conjunto, ver a nomenclatura de Yu Fu (Yu Fu: Lidai zhongguo huaxue zhushu lumu [Sumário dos registros das obras de teoria da pintura chinesa de todas as épocas], Beijing, 1958).) 3 Ver infra, anexo III, “Bibliografia geral”. 4 Esse problema de terminologia ocorre em todas as disciplinas dos estudos chineses. Por seu caráter ideográfico, a língua chinesa dispõe de uma bagagem comum de conceitos suscetíveis de utilizações extremamente variadas, segundo a disciplina que os adota. O caráter vago e polivalente que esses conceitos apresentam quando são estudados em abstrato não deve nos iludir: apreendidos no contexto de uma determinada disciplina, podem constituir, ao contrário, uma linguagem sistemática e precisa em que, por convenção, cada termo assume um significado específico que é preciso primeiro reconhecer antes de poder levar

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Introdução

adiante nosso estudo. Portanto, a estética chinesa se utiliza de uma rica terminologia, muito mais rigorosa do que poderia parecer à primeira vista (muitos de seus termos são emprestados de outras disciplinas — filosofia, cosmologia, crítica literária, caligrafia — mas revestem-se de uma nova acepção), e os melhores dicionários gerais da língua até agora não deram conta dessa terminologia particular, ou apenas deram conta de maneira incompleta e às vezes errônea. Quando se comparam os variados empregos de conceitos iguais nos contextos de diferentes tratados de várias épocas, torna-se possível estabelecer uma definição precisa desses conceitos e, eventualmente, descrever sua formação e evolução. Esse trabalho terminológico deveria normalmente ter precedido toda discussão mais genericamente relacionada ao conteúdo dos textos. A terminologia que comecei a elaborar em um outro trabalho baseia-se apenas numa seleção ainda parcial dessa literatura estética. Em meus comentários do texto de Shitao utilizei, na medida das necessidades, alguns elementos desse estudo terminológico cujo conjunto será objeto de um trabalho ulterior. 5 Entre os chineses, um especialista como Yu Jianhua não hesita em escrever a seu respeito: Desde a Antiguidade até nossos dias, certamente foram escritos inumeráveis tratados sobre pintura, mas se se procura uma visão superior, teorias às quais nada escapa, um pensamento livre e impetuoso, então é o tratado de Shitao que deve ser colocado em primeiro lugar. Gênio imenso, rico tanto em cultura clássica como em talento criador, Shitao eclipsa com sua pintura todos os Wen Zhengmin, Shen Zhou e outros Wang; quanto a seus escritos, que dominam soberbamente todas as eras e se impõem com independência no centro do universo artístico, merecem figurar no mesmo nível que o daqueles dos mestres da filosofia clássica. (Yu Jianhua: Zhongguo huihua shi [História da pintura chinesa], vol. 2, p. 136)

Entre os ocidentais: “O Hua Yu Lu é uma das mais extraordinárias contribuições às discussões sobre a teoria e a prática da pintura [...]” (Siren, The Chinese on the Art of Painting, p. 182). 6 Zhang Yuan, o primeiro editor do texto de Shitao (1728), já ressaltava o caráter abstruso do tratado. Alguns críticos chegam a desaprová-lo, por exemplo,

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As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga

por sua excessiva obscuridade: assim, Yu Shaosong julga-o nebuloso e entulhado de elucubrações chan! (Yu Shaosong: Shu hua shulu jieti [Explicações das questões sobre os principais livros de caligrafia e pintura]). O prefácio da edição crítica do manuscrito Huapu (Shanghai, 1962) constata: Este tratado, que sem nenhuma dúvida constitui uma das obras mais eminentes da literatura estética de nosso país, é realmente digno de nosso estudo atento. Mas seu texto é obscuro e o leitor dificilmente pode chegar a uma compreensão profunda dele. E no que se refere a alguns termos, sua interpretação varia de um comentador para outro. Os comentários que fazemos aqui poderão, sem dúvida, ajudar consideravelmente o leitor a penetrar o sentido do original, mas não são poucas as passagens que permanecem irredutíveis à análise. Por isso, o leitor deverá armar-se de paciência. Só após um estudo atento e minucioso ele será capaz de apreender intuitivamente o seu espírito essencial.

A mesma advertência certamente é necessária, a fortiori, para o leitor desta tradução. E se, ao final de seu estudo, muitas passagens ainda permanecerem obscuras, não se surpreenda muito pois Yu Jianhua, um dos maiores especialistas no assunto, confessa: “Na literatura estética da época Qing, é opinião geral considerar o tratado de Shitao como o texto mais difícil [...]; muitas passagens me parecem ainda ininteligíveis e sinto-me muito pouco à vontade em escrever um comentário sobre elas [...]” (Yu Jianhua: Shitao tihua ji [Notas sobre as inscrições de pintura de Shitao], Beijing, 1959, p. 1). 7 Este título aparece em várias edições na forma abreviada de Anotações sobre pintura (Hua yulu). O “Monge Abóbora-Amarga” (Kugua Heshang) é um dos numerosos cognomes que Shitao havia escolhido para si próprio. O termo “anotações” (yulu) significava originalmente uma forma específica da literatura budista chan*: tratava-se de notas tomadas pelos discípulos a partir do ensinamento oral de um mestre. Esse termo, cujo uso data das escolas budistas chan da época Tang, depois foi retomado pelos ensaístas neoconfucionistas da época Song.

*

Chan é a denominação chinesa da tradição budista conhecida no Ocidente por seu nome japonês zen. Assim, aqui nos acostumamos a dizer zen-budismo. Nesta edição, de acordo com o original, mantivemos a denominação chinesa chan e a expressão “budismo chan”. (N. do T.)

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