Explicação e reconstrução do capital

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Explicação e reconstrução do Capital


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JACQUES BIDET

EXPLICAÇÃO E RECONSTRUÇÃO DO CAPITAL

TRADUÇÃO

Lara Christina de Malimpensa


ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação

B474e

Bidet, Jacques. Explicação e reconstrução do Capital / Jacques Bidet; tradução: Lara Christina de Malimpensa. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010. 1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Capitalismo. 3. Organização. 4. Mercado. I. Título. cdd 330.122 658 330.12

isbn 978-85-268-0901-7 Índices para catálogo sistemático: 1. 2. 3. 4.

Marx, Karl, 1818-1883 Capitalismo Organização Mercado

Título original: Explication et reconstruction du Capital Copyright © 2004 by Presses Universitaires de France Copyright da tradução © 2010 by Editora da Unicamp

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330.122 330.122 658 330.12


Para Annie, por sua constante e impiedosa crĂ­tica.



SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................

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PRIMEIRA PARTE

EXPLICAÇÃO

— OS CONCEITOS PRÉVIOS ................................................

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— A MERCADORIA E A MOEDA ............................................................................................... CAPÍTULO 1 — A MERCADORIA ............................................................................................................ CAPÍTULO 2 — DAS TROCAS ...................................................................................................................

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PREÂMBULO AO TEXTO DE MARX SEÇÃO I

CAPÍTULO SEÇÃO II

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3 — A MOEDA OU A CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS ..................................... 101

— A TRANSFORMAÇÃO DO DINHEIRO EM CAPITAL .................................................... 111

SEÇÃO III EPÍLOGO

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— A PRODUÇÃO DA MAIS-VALIA ABSOLUTA ............................................................... 125

— SEÇÕES DE IV A VIII: REPRODUÇÃO E REVOLUÇÃO............................................ 137 SEGUNDA PARTE

RECONSTRUÇÃO ETAPA PRELIMINAR

— RECONSTITUIÇÃO DOS CONCEITOS PRÉVIOS DO CAPITAL ........ 169

SEÇÃO I

— A METAESTRUTURA: O MERCADO E A ORGANIZAÇÃO ....................................... 177

SEÇÃO II

— A METAESTRUTURA E O SALARIADO ........................................................................... 217


SEÇÃO III

— A ESTRUTURA: TEORIA AMPLIADA DA EXPLORAÇÃO ...................................... 247

EPÍLOGO

— RUMO A UMA TEORIA GERAL DA SOCIEDADE MODERNA ................................ 285

CORRESPONDÊNCIAS POR PARÁGRAFOS DAS REFERÊNCIAS CITADAS ..................................

325

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................................

331

ÍNDICE DAS NOÇÕES ...........................................................................................................................................

341

ÍNDICE DOS NOMES .............................................................................................................................................

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INTRODUÇÃO

Tudo retomar do início Não devemos nos surpreender com o fato de que a teoria de Marx suscite, nos dias de hoje, o interesse de uma nova geração. Sua atualidade está relacionada — paradoxalmente — à fulgurante reestruturação do capitalismo, que, em sua fase presente de mundialização, recupera o caráter selvagem de seus primórdios ao mesmo tempo em que renova, desta vez numa escala derradeira, os sinais de seu anunciado fim. A opinião dos estudiosos admite de bom grado que devemos reter algumas lições do Capital. O capitalismo seria com certeza o sistema menos ruim. Mas o marxismo — considerado como sua crítica utópica, inspiradora da “grande ilusão” do século XX e de seu cortejo de horrores — teria, contudo, o mérito de ressaltar algumas patologias inerentes à economia moderna, produtora de desigualdades e exclusões. Arranjamos-lhe, assim, um lugar respeitável no edifício da cultura, tendo em vista a instrução da juventude. Acreditamos, no entanto, que ele já tenha dito o que tinha a dizer. Defenderei aqui, ao contrário, que a teoria de Marx não somente é indispensável para a análise do mundo contemporâneo como tem um grande futuro. Sem dúvida ela comporta insuficiências e erros insignes, que não deixaram de ter repercussões históricas deploráveis. No entanto, se conseguirmos identificálos rigorosamente, seremos capazes de reabilitar seu potencial cognitivo e político, e de levá-lo a seu pleno desenvolvimento; seremos capazes de distin9


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guir entre o que se pode e o que não se pode esperar dela. Este é, pelo menos, o desafio que será aqui enfrentado. Diversas críticas, correções e extensões, que encontraremos no caminho, foram propostas por economistas. Mas trata-se, aqui, de algo completamente distinto: trata-se de retomar o trabalho conceitual produtivo no nível que é o de Marx, no próprio início de sua explanação. Os filósofos contentaram-se em interpretar de diversas maneiras O capital — agora, trata-se de transformá-lo. Aparentemente, manter-me-ei distante, ao longo deste livro, de toda a atualidade. No entanto, este “trabalho com a teoria” pretende ser — e o leitor poderá julgar sobre isso ao final — uma forma de participar da transformação real do mundo, do “movimento por um outro mundo”, no interior do qual ele se situa de acordo com uma divisão de tarefas e, portanto, na dependência de muitas outras pesquisas e práticas. Trata-se aqui de ler O capital no período, longo, da altermundialização. De fato, existe atualmente um modo de salvar o marxismo como sublime “utopia” que por vezes se assemelha muito a uma sublimação da ilusão. Em oposição a esse modo de renunciar, proponho neste livro — e isso em contraposição às “interpretações”, que a neutralizam — uma “refundação” da teoria de Marx. Pretendo, é claro, aproveitar as lições de diversos marxistas contemporâneos. Mas isso pressupõe, antes de mais nada, que o torpor dogmático — a nota dominante — seja abalado. Proponho-me, portanto, retomar do começo o empreendimento teórico iniciado por Marx, na esperança de conduzilo a sua conclusão. Pode-se ler este livro como uma introdução ao Capital. Mas ele constitui, inseparavelmente disso, no jogo entre suas duas partes, uma tentativa de explicação e de reconstrução dessa obra. Um tal trabalho encontra evidentemente suas fontes de inspiração na história e na cultura do século XX, no choque das experiências e das vicissitudes históricas, na emergência de novos paradigmas filosóficos e científicos, em todo o leque da pesquisa empírica. No entanto, sua principal ambição é uma reconstrução teórica coerente. A explicação, proposta na primeira parte, refere-se aos principais conceitos e ao encadeamento da explanação, sendo complementada pelo exame crítico de diversas interpretações. Diferentemente de outros comentadores, não busco a “verdade” do Capital em versões anteriores. Considero que Marx trabalhou como um pesquisador comum, produzindo uma nova versão apenas quando a anterior se mostrava insuficiente em vista do projeto que ele perseguia, e que ele não tinha motivo algum para se explicar sobre as alterações efetuadas. Eis por 10


INTRODUÇÃO

que, sem negligenciar os esboços preparatórios nem as edições originais alemãs, privilegiei com frequência a versão francesa, traduzida por J. Roy, mas inteiramente revista por Marx, que realizou, nessa ocasião, as últimas modificações. Gostaria de pôr em evidência o conteúdo político-filosófico dessa teoria, algo que os diversos exegetas, a meu ver, não souberam reconhecer em toda a sua amplitude. A introdução que proponho difere, portanto, daquela que um economista poderia oferecer. É preciso, sem dúvida, ler O capital como um texto de economia; num sentido novo, que o designa, de acordo com seu subtítulo, como uma “crítica da economia política”. Essa crítica consiste em inscrever a economia nas ciências sociais e históricas. Contrariamente ao que proporia uma economia pura, abstrata e anistórica, Marx — precursor, nesse aspecto, das “heterodoxias” contemporâneas — concebe a estrutura econômica como uma parte envolvida numa forma sempre particular de sociedade, no caso, o capitalismo. Ao construir sua teoria “econômica”, que é o tema do conjunto da obra, ele pressupõe e esboça assim, necessariamente, os traços de uma “teoria geral” dessa forma de sociedade, com suas características jurídicopolíticas, sociológicas e ideológicas próprias. E é principalmente no Livro I que se concentra essa matriz teórica, que o trabalho de “explicação” se empenhará em explicitar. A questão da ordem da explanação é, aqui, primordial. Ela não apenas governa o sentido e a pertinência (o emprego possível) das categorias sucessivamente introduzidas, e, portanto, a própria substância da teoria; a posição dos conceitos na sequência da explanação representa, além disso, as relações reais entre os diversos níveis de relações sociais que eles definem. Representa, na sucessão discursiva, a arquitetura social compreendida de acordo com seu conteúdo estrutural e, portanto, de acordo igualmente com sua dinâmica real. Nesse sentido, a ordem da explanação remete sempre a seu início, o ponto ao qual é preciso sempre poder retornar para considerar, teórica e praticamente (politicamente), todo o resto. Sob esse aspecto, um dos principais problemas de interpretação do Capital decorre precisamente do fato de que existe uma discrepância entre, de um lado, a Seção I do Livro I, que apresenta um caráter mais geral (mais “abstrato”, diz Marx) — tratando da lógica da produção mercantil como tal, ou do capitalismo, na medida em que este está implicado numa lógica de mercado —, e, de outro, a Seção III (e o restante da obra), que versa sobre o que é próprio do capitalismo, caracterizado pelo salariado privado e pela orientação para o acúmulo da mais-valia. Para designar essa discrepância, emprego o termo “meta/estrutura”. A “metaestrutura” designa o objeto dessa Seção I, “meta” significando esse 11


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nível superior de abstração, em oposição ao da “estrutura” (de classe capitalista), apresentada a partir da Seção III. A questão toda consistirá em saber como compreender a relação entre esses dois níveis: o mercado e o capitalismo. Pode-se imaginar o que está em jogo nesse desafio. Introduzi o termo, mas não inventei a ideia, em absoluto: essa articulação meta/estrutural — isto é, entre a metaestrutura e a estrutura — é uma descoberta essencial de Marx, um dispositivo teórico inédito, problemático, mas, a partir daí, incontornável. O marxismo ulterior certamente o apreendeu e levou em consideração, de modo diverso e desigual, mas sem lhe dar uma formulação adequada. A meu ver, isso se deve, por um lado, às incertezas que, na tradição marxista, pesam sobre a relação entre mercado e capitalismo, e, por outro — e ambos os fatores estão estreitamente ligados —, à própria insuficiência da teorização aqui proposta por Marx, que deve, de fato, ser reconstruída sobre uma base mais ampla, cuja ambição é assumir a dupla exigência expressa pela tradição estruturalista e pela tradição dialética. A reconstrução proposta na segunda parte fundamenta-se numa ampliação do conceito de “metaestrutura”, que repercute sobre o conjunto da teoria, ou seja, sobre a “estrutura” e também sobre a relação, prática, entre esses dois termos. Ela comporta dois segmentos. Inspira-se nas economias “heterodoxas” que se recusam a enxergar no “mercado” o paradigma exclusivo da economia. Formula, nesse sentido, um conceito de “organização”, que designa a outra forma racional da coordenação social da produção. Essas duas categorias são tratadas como representação dos dois polos da instituição econômica, de mesmo nível epistemológico, antitéticos e coimbricados, sem serem, contudo, estritamente homólogos. Esse par mercado/organização já constitui, conforme veremos, o pivô da problemática de Marx, que, no entanto, não soube fazer dele um uso adequado. O conceito será definido progressivamente, ao longo da explanação, à medida que a teoria se desenvolver em todas as suas dimensões. Acrescento, e este é o outro segmento da inovação que proponho, que essas categorias “econômicas” têm, no plano da relação jurídico-política, sua contrapartida (sua outra “face”) classicamente refletida no par constituído pela “liberdade dos modernos” de estabelecer contratos com qualquer um e pela “liberdade (também moderna, como sabemos) dos antigos” de se organizarem de acordo com as vias definidas em comum.

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INTRODUÇÃO

Os dois “polos” apresentam, portanto, duas “faces”. Dessa dupla ampliação do ponto de partida resulta todo um corpo de consequências, de um lado quanto à análise da “estrutura” da sociedade moderna, na condição de sociedade de classe, em seu teor econômico, sociológico e jurídico-político, e, de outro, quanto à interpretação do “sistema do mundo” próprio ao capitalismo, cuja figura (em certo sentido) derradeira é desenhada atualmente pelo processo chamado “mundialização”. Eu havia esboçado esse programa em meu livro Théorie générale. Retomoo aqui, do início. A confrontação direta com a explanação de Marx em seu desenrolar, o projeto sistemático almejado de remodelação das grandes articulações de sua construção a partir de uma base assim ampliada (e, dessa maneira, aberta a diversas contribuições das ciências sociais e filosofias contemporâneas), constitui um novo desafio, um teste decisivo para a perspectiva teórica que proponho. E, espero, uma via mais segura para a compreensão de minhas palavras. Ela ilumina diretamente numerosas perguntas oriundas das tradições marxistas e pós-marxistas, que conduzem, todas elas, à questão de saber em que espécie de “mundo” e em que espécie de “tempo” vivemos, e que espécie de alternativa podemos considerar pôr em prática1.

Como ler este livro É escusado dizer que a leitura deste livro caminha de mãos dadas com uma leitura ou releitura do Capital, particularmente do Livro I, cujo plano é aqui rigorosamente seguido*. Pode-se acompanhar a sequência: 1. Explicação, 2. Reconstrução, ou considerar sucessivamente cada ponto tal como é tratado no Capital, seguindo meu Comentário on-line, e em cada uma das duas partes.

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Uma Terceira parte, Comentário meta/estrutural do Capital, que completa este livro, propõe uma leitura acompanhada das Seções I e II do Livro I. Destina-se a apoiar tanto a “explicação” quanto a “reconstrução”, ilustrando em especial as críticas por mim dirigidas às diversas interpretações. Pode ser encontrada na Internet: <http://netx.u-paris10.fr/actuelmarx/>, na rubrica Actuel Marx en ligne. Em razão da grande diversidade de edições, as referências ao Capital remeterão aqui a uma numeração por parágrafo, cuja chave se encontra na página 325 deste livro.

* A maior parte das referências feitas nesta obra a parágrafos, itens, capítulos e seções do Capital baseia-se nas subdivisões adotadas na tradução francesa de Joseph Roy. Nos raros casos em que o autor se serve de outras versões, o leitor é advertido. (N. da T.)

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A obra se dirige tanto aos que se propõem a ter um primeiro contato com a obra de Marx quanto àqueles que desejam se confrontar com as dificuldades que ela suscita, com os debates que provoca atualmente. Pode ser lida, portanto, em vários níveis diferentes. A primeira parte, estritamente analítica, visa, é claro, a explicar em termos elementares a teoria de Marx. Mas procura, ao mesmo tempo, extrair algumas teses essenciais, que motivam a “reconstrução”. As afirmações que ela contém, por vezes surpreendentes, só são plenamente inteligíveis — e, portanto, eventualmente convincentes — à luz dos fatores teóricos e políticos explicitados na segunda parte. Em suma, este livro, em razão de seu caráter sistemático, só pode ser lido “a crédito”. Ou melhor, ele exige uma leitura que circula de uma parte a outra, em variados sentidos. Daí as múltiplas remissões a parágrafos por vir ou já vistos. Pode-se eventualmente, numa primeira leitura, negligenciar o “preâmbulo” e as “controvérsias” da “Explicação”. Mas a necessidade de voltar a eles será sentida. Conhecemos os conselhos que Marx dava a seu leitor, na célebre carta por ele dirigida a seu editor Maurice La Châtre: O método de análise que empreguei, nunca antes aplicado aos assuntos econômicos, torna bastante árdua a leitura dos primeiros capítulos, e é de recear que o público francês, sempre impaciente de concluir, ávido por conhecer a relação entre os princípios gerais e as questões imediatas que os apaixonam, desanime, antes de mais nada, por não ser possível avançar. Seria essa uma desvantagem contra a qual nada posso fazer, exceto prevenir e precaver os leitores ciosos de verdade. Não existe caminho fácil para a ciência e somente terão chances de alcançar os seus píncaros luminosos os que não recearem se cansar com a subida de suas trilhas íngremes.

Parece-me que essas palavras continuam atuais, particularmente no que diz respeito ao “público francês”. No entanto, os leitores que penarem no caminho íngreme encontrarão — assim espero — algum consolo reportando-se de tempos em tempos ao quadro sintético da página 267: a ser decifrado como a “chave de interpretação dos sonhos”. A não ser que seja melhor começar o livro pelo fim... Para “explicar” o que Marx faz, não podemos nos basear no que ele acredita fazer, nem no que diz fazer. É preciso justificar a maneira como seu texto funciona efetivamente, o que se esclarece em particular pelo exame das modi-

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INTRODUÇÃO

ficações que ele realiza de uma versão a outra. Marx descarta os conceitos que o auxiliaram no processo de elaboração, mas que lhe parecem, ao final, inadequados. Esse foi um dos princípios diretores da “explicação” fornecida em Que faire du Capital? (1985). Quanto à ideia de “reconstrução”, ela se desenvolve em Théorie générale (1999) e em diversos trabalhos posteriores. Que faire du Capital?, Théorie générale e Explication et reconstruction du Capital formam, assim, uma trilogia cujos elementos se completam. Por essa razão, as notas de rodapé são exclusivamente dedicadas a tais autorreferências. As remissões aos escritos de Marx, aos comentadores e intérpretes são, por sua vez, inseridas no interior do texto. Minha perspectiva provocou várias confusões, desde o capítulo que D. Bensaïd (1995) lhe consagra, e que concentra todos os mal-entendidos possíveis, até a análise que dela faz L. Sève (2004). Estranhamente, um desses autores me atribui uma posição “contratualista” e o outro, a tese de um “socialismo de mercado”. Assim nascem e correm as lendas. Empreguei no passado a expressão paradoxal “contratualismo revolucionário” para transmitir a ideia de que nenhum “contrato social” é legitimável exceto aquele que se realiza no âmbito de um processo revolucionário. Nunca assumi a responsabilidade pelo conceito de “socialismo de mercado”: argumentei que o socialismo não se define pela substituição das relações mercantis por relações organizacionais, mas pela luta de classe contra esses dois fatores de classe que são o mercado e a organização. De modo mais geral, a explanação sobre a “metaestrutura” foi frequentemente tomada por uma análise do Estado moderno, e assimilada a uma “superestrutura”. A tendência de uma primeira leitura é naturalmente a de reduzir o novo ao já conhecido. Eis por que, na esperança de evitar o ressurgimento de tais contrassensos, assinalo de saída o que se deve esperar aqui. Um antiliberalismo (econômico) radical. Um anticontratualismo consequente: uma crítica da contratualidade que não foi realizada nem por Hegel, nem por Marx, e que vincula a estrutura moderna de classe às próprias formas da contratualidade, interindividual-mercantil e central-organizacional. Uma refundação da teoria das classes sociais e do Estado de classe, isto é, uma teoria da estrutura (de classe). A esta se articula uma teoria do sistema (do mundo), que conduz ao conceito de mundo hoje, como “ultimodernidade”*, Estado-mundo em gestação sob o imperialismo, em relação a essa novidade correlativa que é preciso * De “ultimodernité”, neologismo que designa a última, derradeira expressão da modernidade. (N. da T.)

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designar, num sentido que não é o de T. Negri (2000), como “império”. Uma rejeição de todo tratamento formal da teoria social. Uma integração definida da dialética num contexto estruturalista materialista. Mas nem referência a um “socialismo de mercado”, nem recurso a um Estado-mundo, nem posição moral, nem projeção de um sentido ou de um fim da história.

Breve descrição do Capital destinada aos iniciantes Estudaremos aqui o Livro I do Capital, e principalmente suas quatro primeiras seções. Mas é evidente que só podemos apreciar seu conteúdo se o relacionarmos ao conjunto da obra. Sabemos que O capital, cujo subtítulo é Crítica da economia política, é a obra principal de Marx, na qual ele trabalhou durante 15 anos, a partir de 1857, e que esse texto contrasta com seus outros escritos, quer de caráter filosófico, quer de caráter político. Sua redação se realiza após um grande número de trabalhos preparatórios, entre os quais os mais importantes são os Grundrisse (Manuscritos de 1857-1858), a Contribuição à crítica da economia política (publicado em 1859, que é uma primeira versão da Seção I do futuro Capital), as Teorias sobre a mais-valia (Manuscritos de 1861-1863), os Manuscritos de 1863-1865, que comportam uma nova redação do conjunto. A primeira edição do Livro I aparece em 1867. A segunda, em 1873, e comporta principalmente uma recriação do primeiro capítulo. A edição francesa, cuidadosamente revisada pelo próprio Marx, aparece em fascículos de 1872 a 1875. Os Livros II e III serão publicados por Engels, a partir de manuscritos — atualmente disponíveis na MEGA* — deixados por Marx. De acordo com o projeto inicial de Marx, O capital deveria ocupar um lugar num conjunto mais amplo, que incluiria em especial a explanação dos conceitos socioeconômicos universais, das formas próprias à sociedade burguesa, da relação entre capital, trabalho assalariado e propriedade fundiária, das classes sociais, do crédito, do imposto e do Estado, da população, das colônias, das relações internacionais de produção e de troca, do mercado mundial e das crises (Grundrisse, tomo I, p. 43, ver também pp. 204 e 216).

*

MEGA — Edição completa das obras de Marx. (N. da T.)

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INTRODUÇÃO

Esse esquema se modifica ao longo da redação. O mesmo ocorre com o plano do Capital, uma vez que Marx abandona em parte o apoio, por vezes artificial, que havia buscado numa lógica dialética de caráter geral. Ater-me-ei aqui ao texto final, recebido como um clássico, que as recentes edições da MEGA esclarecem, mas sem suscitar questões novas e substanciais. Nele, Marx apresenta uma “crítica da economia política”, que é a um só tempo uma crítica dessa disciplina e uma teoria crítica da sociedade capitalista, apreendida em sua dimensão econômica. Ele compreende três livros, dedicados respectivamente à “produção”, à “circulação” e ao “processo de conjunto”. A Seção I do Livro I, que versa sobre a forma mercantil de produção e de troca como base do capitalismo, mas não sobre as estruturas e os fenômenos especificamente capitalistas, apresenta uma forte autonomia em relação ao restante da obra. O Livro I, dedicado à produção, compõe-se de oito seções. A Seção I trata da mercadoria e da moeda. O primeiro capítulo diz respeito à produção mercantil em geral, fundada na propriedade privada e na troca. A mercadoria é analisada no âmbito da relação constitutiva entre um valor de uso (ou utilidade) e um valor de troca. O objeto da análise é mostrar que o primeiro é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à produção da mercadoria (item I). À produção de diversos valores de uso corresponde uma forma sempre particular de “trabalho concreto”. Não é a natureza particular deste último que determina o valor, mas algo que é comum a todos os trabalhos: o dispêndio de força de trabalho exigido por eles, e que Marx designa como trabalho abstrato (item II). A forma mercantil de produção pressupõe a moeda, que Marx caracteriza como uma mercadoria (no sentido em que ele definiu esta última) posta de lado para desempenhar o papel de equivalente universal (item III). Um tal universo é dominado pelo “fetichismo da mercadoria”: os produtores trocam seus trabalhos, mas aparentemente o que se permutam são coisas, de acordo com uma ordem que parece provir da natureza (item IV). Os capítulos 2 e 3 tratam das trocas e das funções da moeda nesse contexto geral de uma sociedade ainda exclusivamente definida como mercantil. A Seção II tem por objeto relacionar o conceito geral de sociedade mercantil ao de sociedade propriamente capitalista. Na primeira, o dinheiro funciona apenas como dinheiro (D), isto é, permite a troca de mercadorias (M) e, portanto, segue o esquema M-D-M. Na segunda, ele opera como capital: ele deve, assim, de acordo com a sequência D-M-D’, obter a mercadoria M especificamente capaz de produzir mais valor do que o que ela possui. Essa mercadoria não pode ser senão a “força de trabalho”, colocada no mercado por seu pro17


EXPLICAÇÃO E RECONSTRUÇÃO DO CAPITAL

prietário, o trabalhador desprovido dos meios de produção. É ao assumir essa função que “o dinheiro se transforma em capital”. A Seção III analisa o processo de produção propriamente capitalista, como aquele que, precisamente, tende a produzir não riquezas (ou “valores de uso”), mas um “sobrevalor”, ou mais-valia. A força de trabalho assalariada é comprada por seu valor, que corresponde ao dos produtos de subsistência que seu salário lhe permite comprar. Suponhamos, por exemplo, que os bens consumidos cotidianamente pelo assalariado sejam produzidos em seis horas. Se ele trabalha 12 horas, trabalha seis em troca de seu salário, e as outras seis constituem um “sobretrabalho”, não pago, que proporciona ao capitalista a maisvalia por ele procurada. Ao trabalhar, o assalariado transfere igualmente para o produto o valor incluído nos meios de produção. O valor da mercadoria produzida se decompõe, assim, em “capital constante” (c) incluído nos meios de produção, “capital variável” (v), correspondente ao salário, e “mais-valia” (mv), produzida pelo sobretrabalho: c + v + mv. A relação mv/c+v constitui a “taxa de lucro”, e mv/v, a “taxa de mais-valia”, ou taxa de exploração. Esta cresce se a jornada de trabalho se prolonga. Esse é o conceito de mais-valia absoluta. A Seção IV apresenta a “mais-valia relativa”. Ela corresponde particularmente à tendência do capitalismo de produzir os bens-salário em um tempo cada vez menor. Essa tendência se explica estruturalmente pelo fato de que, em cada segmento, cada capitalista está em concorrência com todos os outros, e busca, por isso, aumentar sua produtividade e, portanto, reduzir o valor de sua mercadoria, a fim de realizar uma “mais-valia diferencial” em relação a eles. Trata-se aí de um fenômeno geral por meio do qual se manifesta o caráter historicamente “progressista” do capitalismo. Desse contexto de revolução técnica permanente resulta, tendencialmente, uma redução no valor dos benssalário e um aumento proporcional da mais-valia. Passamos, assim, do estudo da estrutura do capital ao das tendências históricas dessa estrutura, da manufatura ao maquinismo e à grande indústria. As Seções V e VI trazem diversos aprofundamentos sobre a mais-valia e o salário. A Seção VII analisa o processo de reprodução e acumulação do capital. É o próprio processo de produção capitalista que reproduz a estrutura, já que ao final de cada fase, pela venda da mercadoria, veem-se ao menos reproduzidos o capital, em seu valor inicial, propriedade do capitalista, que assim subsiste graças à mais-valia, e o trabalhador assalariado desprovido de tudo e disposto a vender novamente sua força de trabalho. O conceito de “reprodução simples” é definido por essas condições estruturais mínimas (capítulo 23). Certos capi18


INTRODUÇÃO

talistas são eliminados, mas a estrutura permanece na qualidade de estrutura de classe ou macroestrutura. A tendência do capitalismo, porém, é de acumulação, por meio do processo de concentração do capital (nas condições microestruturais da concorrência apresentadas na Seção IV), que implica a elevação da produtividade e o aumento do número de assalariados. Esse processo determina uma “lei de população” própria do modo de produção capitalista, que gera uma superpopulação fadada ao desemprego e à miséria (capítulo 25). A Seção VIII é dedicada à “acumulação primitiva”, isto é, ao estudo das condições nas quais o modo de produção capitalista, assim estruturalmente definido, pôde emergir historicamente. No entanto, a partir daí, ela orienta também para o fim derradeiro. O capitalismo tende, inexoravelmente, a engendrar seu coveiro: em razão da concentração monopolista crescente, o conjunto dos assalariados, cada dia mais forte em número e em competência, unificado pelo próprio processo de produção, acabará por expropriar os capitalistas e instaurar uma nova forma de sociedade fundada na propriedade comum dos meios de produção (capítulo 32). O Livro II estuda a circulação, isto é, a reprodução do capital por meio de um processo cíclico representado pela sequência: D – M (meios de produção + forças de trabalho)... P... M’ – D’. O ciclo é o itinerário que vai de uma forma ao retorno para essa mesma forma. A sigla P designa o capital em processo de produção. O capital se subdivide, assim, em três frações: o capital industrial percorre toda a sequência, o capital comercial se limita a D-M-D’ e o capital financeiro (no sentido de “portador de juros”), a D-D’. Estes dois últimos, funcionalmente necessários, pelo fato de não produzirem mercadorias, também não produzem valor, nem, portanto, mais-valia: recolhem sua parte do capital industrial. Os esquemas de reprodução enunciam as condições de equilíbrio entre o setor A de bens de produção e o setor B de bens de consumo necessárias à reprodução do sistema e a sua ampliação. O Livro III examina vários aspectos do processo de conjunto da produção capitalista. A Seção I nos convida a passar do ponto de vista abstrato e geral das relações de classe ao do indivíduo capitalista como tal. O que interessa a este último, no fim das contas, não é especificamente a elevação da taxa de mais-valia, mv/v, mas a da taxa de lucro, mv/c + v. Trata-se, então, de um nível mais concreto de análise, voltado para a taxa de lucro. A Seção II, por sua vez, mostra como se estabelece entre os diversos segmentos uma taxa média de lucro. Com efeito, se os capitalistas de diversos segmentos usufruíssem da mais-valia neles produzida, dirigir-se-iam para as atividades em que a mão de 19


EXPLICAÇÃO E RECONSTRUÇÃO DO CAPITAL

obra, única a gerá-la, é maior. Esse movimento de transferência provocaria a superprodução desse tipo de mercadoria “à base de mão de obra” e a queda de seu preço — e inversamente. Em última análise, portanto, as mercadorias não são trocadas com base em seu valor, tal como ele é definido no Livro I, mas sempre, de modo tendencial, com base num preço diferente dele, o “preço de produção”: c + v + lucro médio. A Seção III orienta então a análise para a “queda tendencial da taxa de lucro”, decorrente da elevação da relação c/v, inerente ao desenvolvimento do maquinismo e, portanto, ao próprio progresso do capitalismo. Examina igualmente os fatores mobilizáveis em sentido inverso, tais como, em particular, o prolongamento e a intensificação do trabalho, a pilhagem de matérias-primas e a colonização. O capítulo 15 versa sobre as crises, fenômenos cíclicos, que manifestam tensões internas à estrutura, e também sobre a capacidade desta última de resistir a elas, reproduzindo suas contradições, porém, em escala mais ampla. As Seções IV, V e VI estudam as condições complexas da repartição da mais-valia entre o capital industrial (chamado produtivo), o capital comercial, o capital portador de juros e a renda fundiária, assim como as diferentes representações ideológicas ligadas a eles. A obra termina nesse ponto, visivelmente incompleta.

Breve nota a respeito dos usos e das leituras do Capital Tanto quanto qualquer outro clássico, O capital não nos é imediatamente acessível. Já não podemos alcançá-lo senão através da espessura da história e da cultura. As perguntas formuladas a seu respeito, as conclusões práticas que acreditamos poder tirar dele, as objeções que lhe foram feitas, as implicações atribuídas às proposições que o constituem, tudo isso — que chega a nós por meio da vulgarização e do rumor público — condiciona nossa leitura. A diversidade possível de acolhimento do Capital provém ao mesmo tempo das dissensões entre marxistas, da divisão do trabalho entre diversos corpos de especialistas e, mais amplamente, de diversos tipos de interesse dirigidos a essa teoria, a partir de lugares distintos do espaço mundial — social e cultural — ao longo do século XX. E é todo esse conjunto que será preciso tirar a limpo se quisermos, hoje, “explicar” O capital, e, sobretudo, se nos propusermos a “reconstruí-lo”. Ora, nada é menos simples. É bem difícil dissociar, entre os usos que se fizeram dessa obra, os que visam à “prática”, ou à política, e os

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