O filósofo e o autor

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UNIVERSIDADE ESTADUAL

DE

CAMPINAS

Reitor JOSÉ TADEU JORGE Coordenador Geral da Universidade FERNANDO FERREIRA COSTA

Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno Eduardo Delgado Assad – José A. R. Gontijo José Roberto Zan – Marcelo Knobel Sedi Hirano – Yaro Burian Junior

COMISSÃO EDITORIAL

DA COLEÇÃO E STUDOS DE F ILOSOFIA M ODERNA E C ONTEMPORÂNEA FAUSTO CASTILHO – OSWALDO GIACOIA JUNIOR FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA – PAULO FRANCHETTI BENTO PRADO(†)

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A LEXANDRE G UIMARÃES T ADEU

DE

S OARES

O FILÓSOFO E O AUTOR ENSAIO SOBRE A CARTA-PREFÁCIO AOS PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA DE DESCARTES

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ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação So11e

Soares, Alexandre Guimarães Tadeu de. O filósofo e o autor: ensaio sobre a carta-prefácio aos Princípios da Filosofia de Descartes / Alexandre Guimarães Tadeu de Soares. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2008.

1. Descartes, René, 1596-1650. 2. Filosofia moderna – História. 3. Filosofia moderna – Séc. XVII. 4. Metafísica. 5. Teoria do conhecimento. I. Título. cdd 190 194 110 121 e-isbn 978-85-268-1098-3 Índices para catálogo sistemático:

1. Filosofia moderna – História 190 2. Filosofia moderna – Séc. XVII 194 3. Metafísica 110 4. Teoria do conhecimento 121

Copyright © by Alexandre Guimarães Tadeu de Soares Copyright © 2008 by Editora da Unicamp

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp Caixa Postal 6074 – Barão Geraldo cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br


COLEÇÃO ESTUDOS DE FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

A COLEÇÃO ESTUDOS DE FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂcompreende duas séries: a Série A, ESTUDOS, e a Série B, TRADUÇÕES. Na série dos ESTUDOS, publicam-se textos que, parcial ou inteiramente, tenham sido elaborados no quadro dos programas de pós-graduação, tanto da UNICAMP — onde a série conta com a valiosa colaboração dos membros do Centro de Estudo da História da Filosofia Moderna e Contemporânea (CEMODECON) — como de instituições congêneres, do país e do exterior; as últimas, desde que de algum modo ligadas por laços de intercâmbio à nossa universidade. Os volumes da primeira série, numerados e datados, são ou de autoria individual ou coletivos, e estes, reunindo em torno de um mesmo objeto de estudo trabalhos de diferentes autores, estão sob a responsabilidade de um organizador de edição, especialista na matéria, designado especificamente para a tarefa pelo diretor da coleção. Na Série B, publicam-se traduções — acompanhadas ou não da reprodução do original, no idioma em que foi escrito — de textos de filósofos modernos ou contemporâneos, mesmo que se refiram a tema pertencente à filosofia anterior à moderna, mas cujo tratamento seja de importância para o entendimento do pensamento ulterior. NEA

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[...] acontece ainda hoje perguntar-me, quando estou de mau humor, se não consumi tantos dias e tantas noites, se não cobri tantas folhas com minha tinta e lancei no mercado tantos livros que não eram almejados por ninguém, na única e louca esperança de agradar a meu avô. JEAN-PAUL SARTRE, As palavras

Em um texto autobiográfico, Sartre se refere ao desejo de agradar ao avô como o sentimento que dá sentido a sua vida de escritor. No meu caso, o desejo de agradar ao meu avô e à minha avó foi o sentimento que mais profundamente me animou a realizar este trabalho. Para os meus queridos avós, Herbert e Neusa

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AGRADECIMENTOS

Como este livro decorre da minha tese de doutorado, agradeço, em primeiro lugar, aos professores que compuseram a minha banca: Fausto Castilho, meu orientador; Franklin Leopoldo e Silva, que generosamente fez o prefácio desta obra; Bento Prado Júnior (in memoriam), Luiz Roberto Monzani e Oswaldo Giacoia Junior, pela consideração e pelo respeito que tiveram para com o meu trabalho. Agradeço também ao Departamento de Filosofia da UNICAMP, pela minha formação; aos professores José Cavalcante de Souza, Luiz Orlandi, Marcos César Seneda, Luciene Maria Torino e Moacir Bortolozzo (in memoriam), pelas frutíferas discussões acadêmicas e por todo auxílio que me prestaram; à Editora da UNICAMP, ao seu conselho editorial e ao seu presidente, professor Paulo Franchetti, pela publicação deste livro; a Lúcia Helena Lahoz Morelli, pelo seu cuidado na revisão e na sua produção editorial; à Universidade Federal de Uberlândia (UFU), instituição onde trabalho, à sua Faculdade de Artes, Filosofia e Ciências Sociais, a seus diretores, professores Yacy-Ara Fröner, Carlos Alberto Storti (in memoriam), Humberto Aparecido de Oliveira Guido e Margarete Arroyo, e a todos os colegas do Departamento de Filosofia, pelo incentivo constante; aos professores que me apoiaram de diferentes maneiras na consecução deste trabalho: Alcino Eduardo Bonella, Ana Maria Said, Arnaldo Fortes Drummond, Bento Itamar Borges, José Benedito de Almeida Júnior, Marcio Chaves-Tannús, Simeão Donizeti Sass,

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Telma de Souza Birchal e Wagner de Mello Elias; aos meus alunos, por terem assistido pacientemente às minhas aulas e por terem sempre me instigado com as suas perguntas; a meu irmão Rafael e a Ciro Amaro Fernandes, pela reiterada ajuda na utilização da informática. Gostaria de agradecer ainda à minha mãe Lygia, ao meu pai José Paulo e à minha querida Michelle, por todo amor e compreensão; aos meus amigos Andréa Antônia de Castro Rodrigues, Anselmo Tadeu Ferreira, Dirceu Fernando Ferreira, Djalma Medeiros, Geralda Gislene Torres Gonçalves, Gutemberg de Oliveira, João José O’Connell, Keila Cristianne França Alves, Marco André Hipólito, Maria Madalena Bernadeli, Maria Stela Marques Ochiucci, Neusa Maria de Oliveira, Regina O’Connell, Renato Torino, Sandra Bertolucci, Tiago Bessa e Vladimir Luiz de Oliveira; e aos meus familiares Alda Maria Almeida Cabral de Soares, André Bastos Tadeu de Soares, Adautina da Silva Porto, Amanda Moutinho (in memoriam), América da Silva Coutinho, Amicy Santos, Ana Dulce Moutinho (in memoriam), Danielle Almeida Cabral Tadeu de Soares Briggs Peçanha, Maria Lygia da Silva Costa (in memoriam), Marcelle Anne Almeida Cabral Tadeu de Soares, Ricardo Pinheiro (in memoriam), Ricardo Tadeu Almeida Cabral de Soares, Roberto Gomes, Vanda da Silva Vaz e Wanderley da Silva Coutinho que, de algum modo, contribuíram para a realização deste livro.

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Sócrates: Perigosa é, pois, Fedro, a escrita, e nisso deveras semelhante à pintura. Os produtos desta apresentam-se como vivos. No entanto, se alguém os interroga, calam-se dignamente. O mesmo ocorre com os discursos escritos. Pode parecer-te que o pensamento anima o que dizem; mas se, desejoso de aprender, interroga-os sobre o que dizem, revelam-te uma única e sempre a mesma coisa. Uma vez escrito, todo discurso chega aos mais diversos lugares, mostrando-se do mesmo modo tanto a quem lhe dá atenção quanto a quem por ele não tem o menor interesse. Desconhece, pois, a quem deva falar e a quem não deva. Maltratado e injuriado, precisa sempre da ajuda do seu pai, não é capaz de se defender e de prestar socorro a si mesmo. [...] Sócrates: Se alguém compôs seus escritos com o conhecimento da verdade, se consegue defendêlos quando refutados, se por meio de argumentos for capaz de mostrar que são insignificantes, esse homem não deve receber um nome das obras que escreveu, mas do estudo a que se consagrou. Fedro: Quais são então os nomes que lhe atribuis? Sócrates: Sábio, Fedro, parece-me exagerado e convir só a um deus. Mas, filósofo ou outro nome da mesma sorte lhe seria mais consoante e adequado. PLATÃO, Œuvres complètes, tomo IV, 3a parte: Fedro. Texte établi et traduit par Léon Robin. Paris: Société d’Édition “Les Belles Lettres”, 1970; 275d-276a; 278c-278d.

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SUMÁRIO

PREFÁCIO

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APRESENTAÇÃO

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O ESTADO DA QUESTÃO

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PARTE I

METHODUS A RESOLUÇÃO EMANCIPATÓRIA

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69

A ASPIRAÇÃO DOUTRINÁRIA .................................................................................................................................................. 97

PARTE II

NATURA ET TRADITIO O NATIVISMO

............................................................................................................................................................................................

143

OS OUTROS AUTORES: UM ESBOÇO DE HISTÓRIA DA FILOSOFIA ................................. 207

PARTE III

PHILOSOPHIA A SABEDORIA

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A REALIZAÇÃO DA FILOSOFIA

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CONCLUSÃO: O AUTOR E O FILÓSOFO

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CARTA-PREFÁCIO AOS PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA DE DESCARTES

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CARTA DO AUTOR AO TRADUTOR BIBLIOGRAFIA

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PREFÁCIO

O que há de mais difícil na filosofia da subjetividade é compreender o sujeito, isto é, o estatuto complexo dessa primeira pessoa, que existe de fato e de direito, e que é também, e inseparavelmente, a primeira entidade, a substância, o princípio, o fundamento e a primordial identidade entre ser e pensamento. Desde o exercício negativo em que a subjetividade capta as ilusões do sensível, até as representações das realidades objetivas fundadas em razão, o percurso pelo qual o sujeito se vai reconhecendo por via da análise crítica de sua própria natureza define-se pelo alcance de uma verdade instaurada na fundação subjetiva da objetividade. A identidade do eu que existe enquanto pensa é afirmada tanto na experiência do erro e na heteronomia das opiniões recebidas quanto na rigorosa inspeção do espírito pelo qual alcanço metodicamente a realidade de Deus através da análise da minha idéia de infinito. Esses dois pólos de reconhecimento subjetivo mantêm entre si uma enorme distância que, entretanto, não reafirma menos a mesma existência ao reconfigurar os critérios de certeza da consciência de si. Dessa maneira, é o processo de auto-afirmação do sujeito que acaba por tornálo artífice de suas próprias certezas. Assim, não seria talvez exagerado dizer que o homem existe, como criatura, por Deus, mas torna-se sujeito por si, isto é, pela liberdade que torna possível ao homem fazer-se autor de sua própria dúvida bem como da reconstrução de suas certezas. 15

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Quando Descartes nos diz que é preciso, pelo menos uma vez na vida, colocar tudo em dúvida, ele está propondo que é necessário, para assumir a própria liberdade no plano da sua efetuação racional, que se recuse a condição heterônoma e que o homem busque tornar-se autor de si mesmo, retomando por si os fundamentos da teoria e da prática. O filósofo, enquanto autor de uma filosofia, é aquele que reconhece em si a autoridade a quem compete enunciar a verdade. Mas é importante acentuar que a revisão das certezas é sempre a revisão de si mesmo, no sentido de uma outra visão de si, que se constrói pelo despojamento e pela emancipação. É nesse sentido que Descartes nos mostra, no Discurso e nas Meditações, como chegou às certezas, mais do que como chegar a elas. Método e metafísica possuem antes de tudo o sentido de uma exposição de um percurso metódico e meditativo, no qual se passa de uma pertinência anódina à cultura e à natureza a uma autoria real de si e do conhecimento. Sendo assim, a filosofia não pode ser outra coisa senão percurso, processo, trajetória; mas como tudo isso é feito de modo demonstrativo, a enunciação em primeira pessoa supera o trajeto do sujeito empírico e revela-se como o itinerário da mente em direção à verdade. E o que se revela na meditação filosófica de um Eu traduz a unidade da razão e expressa a própria sabedoria. Os Princípios da Filosofia assinalam o momento em que o itinerário da mente se configura em exposição ordenada segundo as regras da dedução. O que ocorre na passagem entre os dois momentos — o do processo de aquisição e o da exposição — é o assunto deste livro. Percebe-se, portanto, que o objetivo de Alexandre Guimarães extrapola largamente algo a que se poderia designar como comentário de conteúdos filosóficos do pensamento de Descartes, ou mesmo uma articulação objetiva que recuperasse a relação metódica entre o itinerário

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PREFÁCIO

meditativo e a exposição dogmática. O que se possa encontrar aí em termos de comparação de procedimentos é tão-somente conseqüência de uma visão mais ampla e mais profunda, que vai ao cerne das diferenças que definem a identidade do projeto cartesiano. Esse núcleo está expresso, na sua significação e no seu alcance, na Carta-Prefácio que é o objeto deste estudo, na medida em que Descartes, nesse texto, ao preparar a leitura da exposição de seu sistema, toma como tarefa nada menos do que definir o que é a filosofia. Um dos grandes méritos do livro de Alexandre Guimarães consiste exatamente em nos conduzir, por via de uma leitura rigorosa que amplifica as significações do texto, a encontrar nesse prefácio a reverberação da totalidade do pensamento de Descartes, não apenas por se tratar de uma exposição sistemática, mas principalmente por descobrir na própria definição de filosofia a confluência dos aspectos relativos à autoria da própria emancipação e a proposta teórica de uma ordem de verdades. Observe-se que Descartes não se preocupa em definir a filosofia como sabedoria ou estudo da sabedoria apenas para cumprir a praxe de introduzir o leitor às questões que serão tratadas a seguir. O mais importante, na verdade, é justificar a exposição sistemática de um itinerário, ou a ordem objetivamente sintética como traduzindo o percurso meditativo, porque entre essas duas formas constitui-se a questão do sentido da filosofia. E nesse ponto o livro de Alexandre Guimarães leva-nos ao que mencionamos há pouco como as diferenças constitutivas da identidade do pensamento cartesiano. Por que estão inscritos na radicalidade do projeto filosófico o abandono da tradição como acervo dogmático e a adoção de um diálogo cauteloso com os livros dos autores que nos precederam? Porque a filosofia é antes de tudo o exercício de filosofar, sem

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qualquer pretensão doutrinária, mantendo-se assim fidelidade ao paradigma socrático que privilegia a pergunta como o exercitar-se na questão. É o amor ao logos, o apego à verdade, que cultiva a pergunta e adia a resposta. Ou seja, o autor de suas próprias revisões, aquele que transforma as opiniões em questões, que desconfia dos hábitos, que recusa as respostas prontas, é filósofo: exercita o amor à sabedoria. Aquele que é autor de uma filosofia deu por encerrado o exercício, o fazer, o processo, o itinerário: entende que já pode expor um sistema acabado de verdades definitivas. Ora, a philia mantém com a sophia uma relação que não comporta a autoria como autoridade estabelecida a partir de um saber que anteceda ao seu próprio exercício; também não comporta um sentido de exercício filosófico como etapa provisória de constituição de um saber autoritariamente estabelecido. A sabedoria já é em si mesma a recusa da compatibilidade entre o exercício e a imposição dogmática. Testemunha-o até mesmo a acepção de estudo como permanente relação de amizade com o saber, e não o seu domínio e sua transformação numa totalidade acabada. Percebe-se como Descartes recupera a concepção socrática de filosofia ao mesmo tempo em que introduz os requisitos da atualidade: a liberdade da razão e a autonomia do sujeito. O sentido da filosofia como livre exercício da razão vincula-se assim à dignidade dos homens puramente homens, porque é a mais elevada expressão da liberdade ou da condição emancipada. A relação entre liberdade, philia e sophia significa: o amor como expressão da liberdade; e o amor à verdade como a mais pura expressão do próprio amor. Diante disso, cabe perguntar: como pode essa atividade amorosa expressar-se na lógica de uma exposição sistemática? Tal exposição não contradiz a philia como princípio da filosofia?

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Para elucidar essa questão, é preciso considerar uma espécie de ambigüidade na concepção filosófica de Descartes, por mais difícil que seja pensar em ambigüidade já na instância da fundação do racionalismo moderno. Em verdade, Alexandre Guimarães convida-nos simplesmente a seguir o fio condutor da definição tradicional retomada por Descartes — filosofia como busca amorosa da sabedoria — e tirar daí todas as conseqüências. A primeira condição da filosofia é a não-filosofia: a procura do saber se dá por parte daquele que não o possui. A dúvida tem como finalidade radicalizar o estado de não-filosofia, e assim predispor para a busca. O exercício do pensar acontece não apenas a partir dessa condição, mas também, de certo modo, nela se mantém, pois o exame de cada questão supõe como ponto de chegada a intuição clara e distinta da verdade, e não apenas uma dedução pura e simples de verdades já conquistadas. Nesse sentido a ordem das razões é a marca privilegiada do método, e continuará sendo, mesmo depois de se chegar à ordem das matérias. Ora, se esse exercício radical é a marca da autonomia, é por ele que se realiza a filosofia como liberdade do pensar. Assim, a conquista de uma verdade, por mais firme e definitiva que se mostre, dependerá sempre desse itinerário: a filosofia constituída depende da não-filosofia. E assim, a philo-sophia sempre será, primordialmente, exercício de busca, por mais sistemáticos que venham a ser os seus resultados. Daí, como salienta o autor deste livro, a insistência de Descartes na recusa do lugar de mestre: a filosofia como ensino de verdades constituídas simplesmente não faz sentido. A comunicação da filosofia não ocorre como uma relação entre mestre e discípulo; por isso o Discurso mostra-nos o exemplo de alguém que inventa e segue um método, e as Meditações relatam-nos como alguém passa da dúvida à verdade. E mesmo as Regras não prescre-

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viam procedimentos, mas consistiam em conduzir o outro à compreensão do trabalho da razão. Isso significa que, do ponto de vista histórico, Descartes coloca-se contra o ensino da filosofia por meio de manuais que se propusessem a fazer o inventário das verdades, como acontecia nas escolas de seu tempo. O valor da verdade está todo em que ela é uma descoberta do espírito e não uma transmissão da autoridade constituída pela tradição. Entretanto, os Princípios da Filosofia foram escritos também para cumprir a função de ensinar, isto é, de facilitar a apreensão sintética de um sistema. Reconhecemos a contradição de que suspeitávamos há pouco? Descartes, depois de ter criticado a filosofia como exposição sistemática de caráter dogmático, teria ao fim e ao cabo adotado essa mesma concepção? A resposta é negativa, e muito simplesmente porque os Princípios não anulam as obras anteriores em que a filosofia se deu como exercício. A exposição que aí faz Descartes mostra sinteticamente os resultados de sua filosofia, mas não nos desobriga de retomar o exercício da filosofia. Aí está toda a diferença em relação aos manuais da Escola: assim como o Discurso e as Meditações mostravam-nos como se dá o exercício filosófico, assim também os Princípios mostram-nos os resultados a que o autor chegou por via de tal exercício. Nessa diferença, a comunicação sistemática das verdades alcançadas não substitui o itinerário que se deve fazer para alcançá-las. E esse itinerário é a tarefa que cada um deve assumir autonomamente. Assim como de nada adianta revelar a alguém a solução de um problema matemático sem mostrar como se chega a essa solução, assim também seria de muito pouca valia a comunicação de um inventário de verdades filosóficas sem a apresentação analítica do caminho que leva até elas. Daí a constante advertência de Descartes quanto ao estudo

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