Capítulo Imaginação - Rubstein

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S. L. Rubinstein

PRINCíPIOS DE

PSICOLOGIA GERAL Volume 2,'

. ".

IV

Edição

R/CARDO ftEUTtRIO DOS ANJOS PSICÓlOGO· CRP 06197905

Editorial Estampa


íNDICE Titulo

original

OSNOVY OBSCHEI PSIJOLOGUII

CAPITULO

Tradução

de Manuel Gomes

Capa de Soares

Rocha

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VIII -

9

Memória

Memória e percepção . .. ... Fundamentos psicológicos da memória As representações .. . ... .. . Associações de representações . . ..

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A teoria da memória ... ... ... ... ... A função das relações assocíatívas, significativas e estruturais na retenção ... ... ... ... A função da própria atitude na retenção Processos da memória A retenção O reconhecimento A reprodução ... . .. A reconstrução na reprodução A recordação ... ... ... .. . .. . Conservar e esquecer ... .. . Reminiscências na retenção Classes de memória ... 1/ Graus de memória '" Os tipos de memória Fenómenos patológicos da memória ~::~. O desenvolvimento da memória na criança

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CAPITULO IX -

Todos os direitos por Editorial

A

para esta edição estão reservados Estampa, lda., Lisboa, 1973

A Imaginação

A natureza da imaginação ... Tipos de imaginação Imaginação e criação ... 7

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CAPíTULO IX

A IMAGINAÇÃO

A NATUREZA

li' I I

DA

As imagens com os quais o ser humano opera não se limitam à reprodução do directamente percepcionado. O ser humano pode também ver ante si, em imagens, aquilo que não percepcionou directamente. Pode ver também algo que não existe em absoluto, assim como também algo que não existe na realidade sob essa forma concreta. Não pode assim entender-se como processo de reprodução qualquer processo só por decorrer em imagens. Na realidade, qualquer imagem é de algum modo tanto reprodução - embora distante, medíata e modificada - quanto também transformação do real. Estas duas tendências, que coexistem sempre numa certa unidade, divergem simultaneamente. lilnquanto a reprodução é o traço fundamental da memória, a transformação do reproduzido é característico da imaginação. Imaginar algo significa transrormã-lo. O homem como ser actuante não somente observa e reconhece o mundo, como também o modifica e o transforma. Para se poder transformar a realidade na prática deve saber-se também transformá-Ia mentalmente. Esta exigência é cumprida pela imaginação. Está inseparavelmente vinculada com a nossa capacidade de modificar o mundo, de transformar activamente a realidade e de criar algo novo. Por isso, tem razão Gorki quando afirma «que precisamente o

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invento e a intenção elevam o homem sobre o animal»; o invento ainda mais que a intenção. Entende-se frequentemente por imaginação, no sentido mais amplo da palavra, qualquer processo que se realize através de imagens. Sendo assim, a memória, que reproduz as imagens do anteriormente percepcionado, representa apenas «um dos tipos da imaginação» (Gueyrat, Sully, Blonski e outros). Distingue-se assim a imaginação reprodutora e a criadora, integrando-se a memória na primeira. Dado que a imaginação se baseia sempre em certa medida na experiência, por um lado e, por outro, a reprodução imaginativa - como o demonstrou a investigação - transforma geralmente de certo modo o reproduzido, é índubítável que existe uma relação entre a imaginação e a memória imaginativa. Não se podem no entanto negar as diferenças entre si existentes. Se se parte de um conceito tão amplo de imaginação, designando com ela um processo psíquico qualquer que se realiza em imagens, o qual implica imediatamente a memória, deverá entender-se também, ao empregar duas vezes o termo sobre o mesmo conceito, a imaginação no sentido mais estrito e especifico da palavra, caracterizando a sua diferença em relação à memória. Por isso é mais conveniente reservar o termo «imaginação» para designar este último processo específico. A imaginação significa uma separação da experiência passada, uma transformação do dado e, nesta base, a reprodução de novas imagens, que são símultaneamente produto da activídade criadora do homem e exemplo dessa actividade. A diferença fundamental entre a imaginação propriamente dita e a memória imaginativa deve-se a outro modo de encarar a realidade. As imagens mnésícas representam uma reprodução da experiência. A função da memória consiste em conservar o mais fielmente possível os resultados da experiência; e a da imaginação, elll transformá-Ia. Mas esta contradiçãõexiste e realiza-se também na actividade concreta do homem apenas como unidade do oposto. A reprodução, assim como a sua mútua relação, modifica-se também durante a evolução com a mudança da imaginação e dos processos retentivos. Nos primitivos níveis evolutivos,

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nos quais a relação da imagem reproduzi da com o passado não se torna claramente consciente, falta ainda a atitude consciente para uma exacta reprodução, para a sua correspondência com a realidade objectiva. Por isso a reprodução não é exactamente uma cópia do percepcionado. Contém um certo número de inexactidões, deformações, modificações e transformações. A reprodução não se separou ainda claramente da imaginação. A imaginação, que pressupõe sempre uma certa independência do imediatamente dado, não se separa totalmente da reprodução enquanto esta independência não se tornar consciente. A,__ímagínação, no sentido restrito da palavra, encontra-se apenas onde o desenvolvimento das imagens deixar de ser uma modificação ínvoluntáría, de certo modo uma desfiguração, uma deformação das ideias imaginativas, convertendo-se num .lívre operar com «imagens» que não se encontram vinculadas a uma localização de reprodução. A medida que a imaginação se vai elevando a níveis ou formas cada vez mais superiores vai-se diferenciando progressivamente da memória. Nas suas formas superiores, mais especificas, a imaginação pressupõe uma determinada relação com a realidade objectíva, diametralmente oposta, que caracteriza a memória nas suas superiores formas conscientes. Para esta forma de memória nas suas superiores manifestações conscientes é essencial que a imagem que reproduz objectivamente O· passado se torne consciente como reprodução objectiva. Relaciona-se assim uma focalização consciente sobre uma reprodução exacta, que vai conduzir a uma consciente delimitação entre a reprodução e qualquer fantasia arbitrária. Para a imaginação nas suas formas superiores, em que se exprimem plenamente as suas peculiaridades, existe geralmente uma outra relação com a experiência, característica do imediatamente dado, isto é, a consciência de uma certa liberdade em relação com aquilo que se irá transformar. Esta liberdade significa sobretudo uma determinada independência psicológica em relação com o passado. A diferença entre a imaginação e a memória consiste no facto de a relação das imagens reproduzidas da memória ser diferente

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da relação da imaginação com a realidade objectiva. Existe, no entanto, nestes dois processos um factor comum, que é a criação e formação de uma ideia imaginativa unitária, isJo é, um processo cujo produto ou contexto é a ~esentação. As regras gerais deste processo encerram um especial significado para a psicologia da arte. A imaginação no próprio sentido da palavra existe apenas no ser humano. Apenas no homem, que como sujeito da prática social modifica realmente o mundo, se desenvolve uma imaginação autêntica. No processo evolutivo aparece primeiramente como sucessão e em seguida como premissa daquela actividade humana, mediante a qual o homem modifica a realidade. Qualquer act., em que o homem realize essa modificação está implicado numa boa porção de fantasia. O desenvolvimento da imaginação da consciência, partindo da forma da realidade, está intimamente relacionado com a transformação real integrada na prática, mesmo quando a imaginação ultrapassa incomensuravelmente este limite. A imaginação cria algo de novo. Transforma e modifica aquilo que nos é dado pela percepção. Esta modificação, transformação e não identificação com o dado pode exprimir-se, em primeiro lugar, pelo facto do indivíduo, que parte dos seus conhecimentos e experiências, formar uma ideia, isto é, imaginar algo que jamais viu na realidade. Assim, por exemplo, uma notícia sobre Papanine e seus colaboradores levou a nossa imaginação a representar uma inusitada vida fantástíca sobre um icebergue à deriva no Pólo Norte. Ora, esta não é ainda uma forma específica da imaginação. Elm segundo lugar, a imaginação pode prever o futuro, criando uma ideia que jamais teve. Assim, Wodopianov ou Papanine puderam imaginar um voo ao Pólo Norte com a aterragem correspondente, quando tal facto era apenas um mero sonho, que se ignorava ·poder alguma vez realizar-se. Em terceiro lugar, a imaginação pode também produzir uma ideia fantástica que se afasta marcadamente da realidade. Reflecte-se no entanto também neste caso em certo grau a realidade. A imaginação é tanto mais produtiva e valiosa quanto mais transforma a realidade ou diverge 100

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dela se, no entanto, tem em conta os aspectos essenciais e os seus traços mais característicos. Desta maneira e sob este aspecto, não existe nenhum abismo entre a imaginação, que abarca tanto a realidade como a fantasia, e a própria realidade. Nas suas superiores formas criadoras a imaginação efectua esta separação sobre a realidade para mais profundamente penetrar nele. O poder da imaginação criadora e do seu nível é caracterizado por dois critérios: 1) o grau em que a imaginação tem em conta ou observa as condições limitadas das quais dependem o sentido e o significado objectivo das suas criações e 2) o grau em que os seus produtos são novos e originais e se distinguem do imediatamente dado. Uma imaginação que não cumpra estas duas condições não deixa de ser fantástica, mas é infecunda do ponto de vista criador. A imaginação nasce, por norma e natureza, da influência modificadora da orientação da personalidade sobre as íma- \ gens da consciência que reflectem a realidade. i Estas imagens não são coisas estáticas, invariáveis e mortas. São configurações dinâmicas. Basta fazer um exercicio de fixar qualquer ídeía para nos convencermos de como varia de cada vez aos nossos olhos por assim dizer transformando-se; uma vez evidencia um dos aspectos, outra vez, evidencia outro. Aquilo que se destaca em determinado momento passa depois para segundo plano para finalmente desaparecer no nada. A identídade de uma imagem consiste mais na sua referência objectíva que na invariabilidade do seu contexto intuitivo. A imagem representativa é, pelo seu carácter ou natureza, uma configuração instável, que se vai modificando permanentemente. Por isso está facilmente submetido à transformação. Mas se, por assim dizer, aparece apenas uma vacilação da imagem sem uma determinada tendência, que é a causa da sua transformação numa determinada direcção, não se pode falar ainda de imaginação. Então existem apenas algumas condições para a sua actívídade modificadora. Tais tendências, que provocam uma transformação daquelas imagens que reflectem a realidade numa completa

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siado ruivo; uma mulher ossuda, sinuosa, exigente e amaneirada, que a cada palavra descobria a provinciana que era e, sobretudo, ia mal vestida» (').

direcção, aparecem necessariamente pelo facto de que nas referidas imagens, que estão implícitas na vida psíquica da personalidade, influi uma tendência geral, que é a da orientação da personalidade correspondente, isto é, das suas necessidades, interesses, sentimentos e desejos. Nasce daqui a função modificadora da imaginação. Assim como na actividade prática, que modifica de facto a realidade, aparecem os motivos e os objectivos da personalidade, as suas necessidades e interesses, os seus sentimentos e desejos, assim também influem na actividade modificadora da imaginação. As múltiplas relações da personalidade com os fenómenos reais da realidade provocam também, mais ou menos conscientemente, aquelas modificações das imagens que reflectem a realidade. Portanto, a imaginação não é nenhuma função abstracta.; mas uma faceta da actividade consciente que aparece regi da por determinadas normas. Assente neste facto desenvolve-se esta especial aptidão, na mesma medida em que a imaginação se origina numa qualquer actividade criadora concreta. Inclusivamente a percepção da realidade vê-se frequentemente transformada pela imaginação sob o influxo dos sentimentos, desejos, simpatias e antipatias. Esta reforma ou transformação pode conduzir à deformação, mas também a um mais profundo conhecimento da realidade.

A imaginação, sob o influxo dos sentimentos e do humor, cria por vezes um ideal espontâneo, podendo fazer sobressair com maior acuidade a autêntica aparência do ser humano. Se amamos uma pessoa vemo-Ia quase sempre sob o prisma criador do nosso sentimento, tendo como consequência a divergência considerável entre a nossa imagem da fantasia e a real aparência dessa pessoa. A imaginação submetida ao nosso sentimento pode em tal caso proporcionar-nos amargas decepções. A história de alguns amores é uma luta entre a imagem do ser determinada pelo sentimento e a sua aparência real. Mas também sucede o contrário: a imagem que se forma numa relação diferente, e talvez sem alma, em relação a um indivíduo e à base de impressões correntes de pequenas conexões quotidianas, pode encobrir com aspectos insignificantes e sem importância a real aparência do indivíduo, e um autêntico e grande sentimento pode fazer nascer, como por encanto, não apenas os traços mais formosos e humanos, mas sobretudo aqueles que formam o seu autêntico ser.

TIPOS DE IMAGINAÇÃO Encontra-se frequentemente na vida esse jogo da imaginação. Também os artistas o relatam com frequência. Balzac descreve, por exemplo, na sua obra As Ilusões Perdidas, a impressão que a sua heroína Louise causou em Lucien, o herói da história: «Assomavam por debaixo da touca madeixas de longos cabelos, que a luz dourava, transformando em chamas os seus caracóis. A nobre dama tinha a pele branca... os seus olhos cinzentos cintilavam... o nariz, de burbónica curvatura, emprestava à face o régio perfil dos Condé e a sua fogosidade... O vestido, negligentemente cruzado, deixava entrever e suspeitar um peito saliente e uns ainda impecáveis e bem formados seios.» Passados dois ou três meses, Lucien viu, por fim, Louise em Paris, num encontro no teatro, tal «como ela era realmente e tal como os parisienses a viam; como uma mulher alta, seca e magra, cara demasiado vermelha e cabelo dema102 ~t\tt

Manifestam-se na imaginação todos os tipos e níveis de orientação da personalidade; estes condicionam também os distintos níveis da imaginação. A diferença destes níveis depende sobretudo de quanto é consciente e actíva a relação do homem com este processo. Nos níveis inferiores, a transformação das imagens processa-se espontaneamente e por si própria; nos superiores desempenha um papel cada vez mais importante a consciente e activa atitude do homem na formação das suas imagens. ;1

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(') Balzac, As Ilusões Perdidas,

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Nas suas inferiores e primitivas formas, a imaginação manifesta-se por uma transformação involuntária das suas imagens que se processam sob o efeito das necessidades, instintos e tendências tornadas pouco conscientes, independentemente da consciente intervenção do sujeito. As imagens da imaginação transformam-se como que por impulso próprio. Surgem, mas não são formados pela imaginação. ,_N~o se chega ainda à utilização propriamente dita das imagens. Esta forma da imaginação encontra-se na sua pura aparência apenas em casos limites nos níveis inferiores da consciência, nos estados de torpor e nos sonhos. Nestes casos escondem-se geralmente por detrás destas imagens aspectos afectivos (necessidades e impulsos). Freud tentou - muito tendenciosamente determinar as transformações fundamentais a que estão submetidas as imagens deste primitivo tipo de imaginação (concentração, deslocamento e substi-

Com razão se distingue a imaginação que reproduz as imagens dadas previamente (por exemplo, um texto literário) da que por si só cria imagens novas, como é o caso, por exemplo, da actividade criadora do artista.

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bolos. Tende a formar-se todo um sistema hierárquico de imagens intuitivas, diferentes em qualquer ser humano, que se distinguem pelas suas relações e nexos do individual e do geral. Por conseguinte, há muitos tipos de imaginação, uns mais concretos, outros mais abstractos. Esta diferença refere-se a imagens com as quais a imaginação opera. A imaginação abstracta emprega imagens num alto grau de generalização, ideias generalizadas, esquemas e símbolos (como, por exemplo, na matemática). Apesar disso, a imaginação abstracta e concreta não formam nenhuma polarídade externa. Existem muitas transições intermediárias. Finalmente devem distinguir-se também os tipos de imaginação segundo a sua relação com a realidade e com a actividade, que deve transformar os sonhos em realidade. Existe aqui a diferença entre «os sonhos ou fantasias» ínactívas e vazias, que servem apenas para iludir, mediante fantasias imprecisas, a obra real, e a imaginação actíva, cujos sonhos ',~stimulam.a acção e que se realizam pela actívídade criadora.

tuição). Nas formas superiores da imaginação, na actividade criadora, as imagens formam-se e transformam-se conscientemente de acordo com os objectivos da consciente actividade criadora do homem. No primeiro caso fala-se de imaginação passiva; no segundo, de activa. A diferença entre a «passividade» e a «actividade» não é outra coisa senão a diferença de grau do premeditado e do consciente. Do mesmo modo distingue-se a imaginação reprodutora da criadora. Toda a autêntica imaginação é actividade modifica dor a, podendo ser uma transformação trivial e rotineira ou uma transformação criadora e original.

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A imaginação e a actuação estão intimamente vinculadas entre si. Mas o vínculo entre elas nunca é tal que seja possível partir da imaginação como função independente e dela derivar a actívidade como um produto da sua função. A dependência inversa é a determinante: a imaginação processa-se na actividade criadora. A especialização dos diferentes tipos de imaginação é menos uma condição do que um resultado do desenvolvimento dos diferentes tipos da actívídade : criadora. Existem por isso tantos tipos especificos da ímaginação como tipos específicos da actívídade humana:construtiva, técnica, artística, pictórica, musical, ek Todos estes tipos de imaginação que se formam e exteriorizam nos diferentes campos da actividade criadora, representam a variedade do nível superior, exactamente a imaginação criadora.

Consoante o carácter das imagens com que opera a imaginação, assim distinguimos uma imaginação concreta e uma abstraota. Pode tratar-se de imagens objectivas isoladas, dotadas de múltiplos pormenores, mas podem também ser imagens generalizadas, estereotipadas, esquemas e sim-

O significado da imaginação pode ser muito diferente na vida conforme a sua implicação na actividade criadora real.

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A imaginação como transformação ideológica da realidade sob forma gráfica ou plástica pode estar, como já se disse, intimamente vinculada à modificação da realidade, à


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sua prática e activa transformação. A fantasia estimula a trabalhar na sua real e positiva realização e a lutar por ela, antecipando assim os resultados da nossa actívídade. Lenine gostava de citar Písarev: «Se o homem se visse privadopor completo da capacidade de sonhar, se de vez em quando não pudesse adiantar-se a ver, através da sua imaginação, em toda a sua perfeita beleza, a obra que justamente se está formando sob as suas mãos, decididamente eu não poderia imaginar que razão pudesse induzir o homem a empreender e levar a cabo grandiosos e esgotantes trabalhos no campo da arte, da ciência e da prática.» (2). ,Mas entre um incentivo e a acção, a visão da imaginação pode por vezes converter-se no substituto da acção. Degenera então em meros sonhos, com os quaís muita gente se escusa pondo assim uma cortina entre o mundo real e a necessidade de o modificar. A natureza da imaginação determina-se essencialmente pelos seus resultados. Uns encontram uma fácil e pouco fecunda satisfação nos sonhos efémeros e vãos, escondendo-se do mundo real sob o véu da sua fantasia. Outros, providos de correspondentes forças criadoras, convertem em realidade as ideias criadoras da sua imaginação. A sua obra introduz no mundo real uma visão mais ampla. Encontramos nas obras de arte uma imagem do mundo transformado e aprofundado, transcendendo por vezes os limites frequentemente estreitos da sua existência pessoal. Na vida prática rompem as antiquadas normas e estruturam a realidade de um modo real. Em qualquer acto da criação artística e em qualquer sentimento autêntico, em qualquer pensamento abstracto que se eleva sobre o imediatamente dado, em qualquer acção que de algum modo modifique o mundo, em qualquer ser humano que pensando, sentindo e actuando traga à vida nem que seja apenas um pequeno grão de algo novo, de original, encontra-se algo

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E ORIAÇÃO

Em todo o processo criador, a imaginação desempenha uma função especial. O seu significado é especialmente importante na obra artística. Qualquer obra de arte autêntica encerra um contexto ideal; mas, diferenciando-se aí de uma dissertação científica, expressa-o de uma forma concreta e plástica. Quando um artista se vê na necessidade de expor sob fórmulas abstractas a ideia da sua obra, de modo a que o conteúdo de ideias da sua obra de arte esteja em relação com as imagens, e não alcança com elas uma adequada e correspondente expressão, a obra perde o seu valor artístico e o seu contexto intuitivo-plástico, pois só este pode ser portador de um conteúdo de ideias. A natureza da imaginação artística consiste, sobretudo, em criar novas imagens, apropriadas para manífestar plasticamente o conteúdo de ideias (3). O especial poder da imaginação artística reside no facto de não criar uma nova situação imaginada, contrapondo-se às exigências fundamentais da realidade da vida, mas materializá-Ias. E completamente errada a opinião de que uma obra de arte manifesta tanto mais imaginação quanto mais estranha e extravagante seja. -A imaginação de Leon Tolstoi não é inferior à de Edgar Allan Poe; é apenas de outro tipo. Para criar novas ideias e produzir, como que por encanto, um quadro de vivo colorido que tenha em conta em alto grau as condições da realidade objectiva, requere-se uma particular originalidade, plasticidade e uma independência criadora da imaginação. Qu~~to~ mais realista for uma obra de arte, quanto mai-s estritamente levar em conta a realidade da vida, tanto mais

de fantasia.

(2) V. I. Lenine, Aus dem Philosophischen

Nachlass,

Dietz VerIag, 1949,

(') Kramskoi postulou: «, .. a arte russa mesmo tempo penso na seguinte relação do tista pertence, como cidadão e homem, a algo, e odeia algo... Amor e ódio não são mentos. Onde não há nenhuma tendência, morre.»

p. 352.

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representa uma tendência. Ao artista com a realidade: o aruma determinada época; ama conclusões lógicas, mas sentionde não há ideias, a arte


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poderosa deve ser a imaginação, para que o contexto intuitivo-imaginativo 'com que opera o artista se manifeste plasticamente na sua intenção artístíca, A fidelidade à realidade, no entanto, não significa, naturalmente, uma reprodução fotogrâfica ou uma cópia do percepcionado. O dado directamente é, tal como se percepcionou geralmente na experiência quotidiana, fundamentalmente casual. Não é preciso muito para que se destaque nele o que é característico, aquilo que determina o aspecto individual de um homem, de um acontecimento ou de um fenómeno. Um verdadeiro artista não dispõe da técnica para exprimir o que vê, mas vê também a realidade diferentemente de' um indivíduo artisticamente insensível. A finalidade da obra de arte é mostrar aos indivíduos o que ~ã:rtísta~ê realidade, e com tal plasticidade que também eles a possam compreender. Assim, Wronski viu no retrato de Ana Karenina, que foi desenhado por um autêntico artista, a sua expressão mais encantadora, sentindo-se, depois de a ter visto na realidade, como se sempre a tivesse visto e amado, apesar de realmente a ter visto pela primeira vez no retrato. Não se pode manifestar de melhor forma em que consiste a essência ou o carácter da produção artística. Inclusivamente no retrato, o artista não somente retrata e reproduz, mas transforma também o percepcionado. A natureza desta transformação consiste em não se apartar da realidade, mas sim aproximar-se, no sentido de eliminar de certa maneira os aspectos casuais e as características externas. Deste modo, o seu verdadeiro contorno aparece mais profundo e real. O produto de tal imaginação ocasiona frequentemente uma imagem da realidade essencialmente mais exacta, autêntica e adequada que a reprodução fotogrâfica do directamente dado. Uma imagem que tenha sido internamente modificada ou transformada pela ideia da obra de arte, no sentido de toda a sua realidade viva se mostrar como expressão plástica de um determinado conteúdo de ideias, é o produto máximo da imaginação criadora e artística. Uma imaginação poderosamente criadora não se reconhece tanto pelo conteúdo que um ser humano possa imaginar sem levar em conta as exi-

gências reais da realidade e as exigências ideais da intenção artística, como pelo modo como o artista transforma a realidade da percepção quotidiana, plena de casualidades sem força expressiva, de acordo com as exigências da realidade e das intenções artisticas. A imaginação cria em imagens intuitivas, tão semelhantes e simultaneamente tão pouco semelhantes com as da nossa percepção, tão deslustradas pelos hábitos quotidianos, um mundo maravilhosamente vivo, transformado e, contudo, seguramente mais autêntico que o que nos é dado pela nossa percepção diária. Sucede-nos precisamente o mesmo que a Wronski ao ver o retrato de Ana Karenina. Cremos então que sempre vimos e conhecemos assim a realidade, apesar de ser apenas a imaginação do artista que deste modo no-Ia mostrou. A imaginação da obra de arte permite também, naturalmente, «ultrapassar a realidade», com um desvio mais ou menos acentuado da mesma. A obra artistica não se manifesta apenas no retrato: leva também implícitos a fábula e os contos fantásticos. Nestas criações o desvio da realidade pode ser muito acentuado. Mas também na fábula, tal como nos contos fantásticos, deve estar objectivamente motivada por uma intenção, por uma ídeía, materializada nas imagens. E quanto mais acentuadas forem estas divergências da realidade, tanto mais objectivas deverão ser. A imaginação criadora recorre, na obra de arte, ao fantástico, para divergir de alguns aspectos ou facetas da realidade, para ilustrar plasticamente uma ídeía básica que reflecte uma faceta essencial da realidade de forma mediata. Muitas das subtis e delicadas vívêncías - factos significativos da vida interna - são sobrepostas e ocultadas pelas circunstâncias da vida quotidiana. A imaginação do artista diverge da realidade nos seus contos fantásticos, modificando as suas diferentes facetas, ao submetê-Ias à lógica interna desta vívêncía. 1i: aqui que se apoia o sentido dos actos típicos da imaginação artística. A imaginação do artista esboça um quadro da realidade, que se afasta do quotidiano para ilusões e sonhos externos. Esta imaginação explica melhor qualquer aspecto da realidade para ele mais significativo, fazendo-a aparecer mais plasticamente. Sair da rea-

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lidade para nela penetrar é a lógica da imaginação criadora. Isto caracteriza um dos aspectos mais essenciais da criação ou da obra artística. Não menos necessária, se bem que noutra forma, é a imaginação ou obra científica. Já o famoso químico inglês Priestley, que no século XVIII descobriu o oxigénio, afirmou que, na realidade, as grandes descobertas «Jamais ocorreriam a- um espírito prudente, lento e excessivamente cauteloso». Ribot afirma inclusivamente que se «fizéssemos um balanço do que o ser humano gasta em fantasia, por um lado, na vida estética e, por outro, nos inventos técnicos e mecânicos, a balança incÍinar-se-ia para o lado desta última» (4). A função da imaginação na produção científica foi também muito considerada por Lenine. Este escreve: «l'llabsurdo querer negar a função da fantasia numa ciência por mais rigorosa que seja.» ('). «É errado crer - observa noutro lado que (a fantasia) seja apenas necessária ao poeta. Isso seria um preconceito absurdo. Inclusivamente nas matemáticas ela é necessária; sem a fantasia não se teria descoberto o cálculo diferencial e integral. A fantasia é uma qualidade de máximo valor.» (') A imaginação, que com o pensamento toma parte no processo da obra científica, cumpre assim uma função específica que difere da função nela desempenhada pelo pensamento. A função específica da imaginação consiste em transformar o conteúdo tntuítívo-Ilustratívo de um problema, cooperando assim para a solução. Quando a criação, a descoberta de algo novo, se consegue graças à transformação do conteúdo intuitivo-gráfico, isso processa-se assim mediante a imaginação. A imagem intuitiva participa também sob determinada forma e medida no processo mental e real. Mas a imagem gráfica da percepção e representação da memória,

(4) Ribot, A Força Criadora da Fantasia. (') V. L Lenine, AliS dem Philosophischen lim,

1949, p. 299. (6) V. Lenine,

r.

Obras,

tomo

XXXIII,

p. 284.

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Nachlass,

Dietz Verlag, Ber-

Moscovo-Leninegrado,

1930,

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que reproduz esse conteúdo, frequentemente não proporciona pontos suficientes de apoio para a solução de um problema proposto ao pensamento. Por vezes o conteúdo intuitivo ou concreto deve ser transformado para facilitar a solução de um problema. Tal é o trabalho da imaginação. Esta função da imaginação surge plasticamente na investigação experimental. O experímentador que reflecte sobre a disposição ou preparação de um ensaio deve imaginar ou representar, partindo das suas hipóteses teóricas e tendo em conta as já conhecidas leis do campo científico correspondente, uma situação não directamente dada, a qual, se cumpre todas estas condições, poderia possibilitar a comprovação da hipótese inicial. Esta representação da situação concreta de uma experiência, o que precede esta, é um acto da imaginação. «Uma experiência sem fantasia ou uma fantasia que não parta da experiência não irá longe, escreve um dos mestres da ínvestígação, Rutherford, que descobriu a base para a desintegração do núcleo atómico. «Um autêntico progresso tem como premissa o amálgama de ambas as forças.» A imaginação necessária para a transformação e para a actividade criadora teve origem também nesta criação. O desenvolvimento da imaginação produziu-se à medida que se foram criando produtos da fantasia cada vez mais perfeitos. Em poesia, nas artes plásticas, na música, foram-se desenvolvendo novas formas de reprodução cada vez mais superiores e perfeitas: Nas grandes criações da literatura popular, nos poemas épicos, nas lendas, nos cantares populares, nas obras de poetas e artistas, na Ilíada e na Otiisseia, na Oanção de Rolando, na Oanção de Içor, não somente a imaginação se exprimiu, como também aí se formou. As grandes obras de arte, que ensinaram a humanidade a ver o mundo sob outro prisma, abriram um novo campo à actívídade da imaginação. A imaginação foi-se formando no processo da investigação científica, sob formas diferentes, é certo, mas também em grau elevado. A imensidade no grande e no pequeno, nos mundos e no átomo, na inesgotável variedade das formas concretas e na sua unidade, no ininterrupto movimento e variações, descoberta pela ciência, abre ao desenvolvímento 111


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da imaginação não menos possibilidades que a maior imaginação que o artista seja capaz de atingir. Finalmente, a imaginação forma-se também na actividade prática, especialmente nas épocas revolucionárias, em que a actividade prática do homem rompe as normas rígidas e as ideias antiquadas para modificar o mundo.

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nardo que explica: «O prazer e a dor representam-se sempre como gémeos porque jamais se encontra um sem o outro, como se estivessem acoplados e de costas voltadas, Qorque são opostos.» ('). Destas palavras do artista ressalta claramente que a combinação ou a aglutinação é regulada por

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A «T:8CNIOA» DA IMAGINAÇÃO

A transformação da realidade na imaginação não é uma modificação arbitrária. Tem as suas leis, que se manifestam nos métodos específicos da transformação. Um desses procedimentos é a combinação, a vinculação dos elementos dados na experiência a.l1.ovas combinações, mais ou menos inabituais. A combinação é um procedimento muito difundido para a transformação da realidade. Emprega-se na ciência e nas invenções técnicas. Recorre-se a ela na arte e na criação literária. Foi inclusivamente o que fez Tolstoi, quando, ao criar o retrato de Natacha, utilizou para isso uns traços da sua esposa Sónia e outros da irmã desta, Tania, «sobrepondo-os» uns aos outros e obtendo assim o retrato de Natacha. Está fora de toda a dúvida que o trabalho principal não consistiu na «combinação» das características de Sónia com as da sua irmã Tania, mas num complicado processo criador, em que recompôs no fundamental, modificando-as essencialmente, as características de ambas as mulheres. Só mediante uma completa síntese e transformação pôde surgir este retrato de Natacha tão singularmente unitário. A chamada aglutinação, que sempre se empregou na arte, é uma forma especial de transformação através da combinação ou de uma nova vinculação dos elementos obtidos pela experiência. :m o que sucede, por exemplo, nos monumentos da primitiva arte egípcia e na arte dos índios norte-americanos. Como exemplo de uma aglutinação pode citar-se também a Hgura alegórica de Leonardo da Vinci. :m o próprio Leo112

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Fig. 28- Figura alegórica, segundo Leornardo da Vinci. 1\

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uma determinada tendência que lhe dá sentido e lhe fornece uma orientação. A aglutinação, regra geral, não é uma acumulação casual, mas uma selecção de determinadas características. O artista realiza-as conscientemente, deixando-se guiar por uma determinada ideia, por uma intenção, por uma composição geral. Por vezes, a tendência que deve regular

(') Leonardo da Vinci, Desenhos

e Notas.

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PRINCíPIOS

DE PSICOLOGIA

GERAL

e fixar as novas vinculações dos elementos da imaginação trabalha inconscientemente. Está, no entanto, completamente envolta de motivações que determinam a actividade .da imaginação. Os partidários da concepção associativista ou atomista inclinam-se a considerar a combinação como sendo o único processo da actividade transformadora da imaginação. A própria combinação fica reduzida à formação de novas combinações e ao reagrupamento de elementos invariáveis fornecidos pela experiência. IIl<1tl))itavelmente a experiência é o ponto de partida das modificações ou reorganizações. Por isso, quanto mais ampla, abundante e diversifica da seja a experiência do homem, tanto mais abundante será também, em igualdade de condições, a sua imaginação. Mas o reconhecimento desta dependência da imaginação não deve conduzir, de maneira nenhuma, à aceitação da teoria muito difundida e profundamente arreigada, embora falsa, segundo a qual a modificação produzida pela imaginação fica reduzida à combinação, a uma transformação e reagrupamento de elementos. Esta concepção totalmente mecanicista, segundo a qual os elementos devem permanecer invariáveis, está inseparav1lmente ligada à psicologia associativa e com ela desaparecerá. A percepção da realidade não é constituída por feixes ou agregados mecânicos de elementos constantes. Todas as suas configurações podem estar submetidas a uma configuração efectuada pela imaginação. Estas modificações apresentam-se sob variadíssimos aspectos. Se bem que impliquem a combinação como um dos seus métodos ou processos, não são de modo nenhum a eles redutíveis .. Acombinação é apenas um dos métodos que concorre para a actividade modificadora da ima'ginação. O seu resultado, sempre e quando se trata da Imagín."ãÇâocriadora, não é simplesmente uma nova combinação de elementos ou características invariavelmente dados, mas uma nova imagem unitária, na qual as diferentes características não se somam simplesmente, mas se transformam e generalizam. A combinação é apenas um «mecanismo», cuja eficácia, regra geral, está submetida a uma determinada tendência, que determina a selecção dos factores combinados, imprimíndo-lhes um sentido. 114

PRINCíPIOS

DE PSICOLOGIA

GERAL

Outro método da actividade modificadora da imaginação é a 'acentuação'de determinados aspectos dos fenómenos reflec,tidos,-mediante os quais se transforma a seu aspecto geral. Acentuar significa destacar certas características. Consegue-se isso frequentemente mediante uma descentração ou deslocamento e uma mudança de proporções. Este processo é utilizado,' mais ou menos, na caricatura; esta reproduz as características do original, pois de contrário jamais alcançaria os seus propósitos. Mas também exagera determinadas outras, pois se o não tivesse não haveria caricatura. Para isso, a acentuação deve, para ter um significado, destacar o característico e o essencial. Por conseguinte, na imagem, deve salientar-se o pormenor e, no concreto, o geralmente sintomático. A partir daqui derivam duas outras linhas. Por um lado, o aspecto qualitativo das proporções alteradas encontram a sua expressão específica numa alteração das relações de fft"andJez;a,quer seja numa redução quer num aumento· (em hipérboles), procedimentos qUe abundantemente se empregam na representação fantástica da realidade. Ê assim que nos contos e fábulas, nos cantares épicos e nos poemas populares, aparecem os heróis de gigantesca estatura, anormais proporções e forçaexorbitante. (Swjatogor mete no seu bolso Illia Muromez. Ao som do seu assobio caem no solo todas as folhas das árvores e a terra estremece. Em Rabelais o diminuto Gargântua tira um sino da catedral de Notre-Dame e pendura-o ao pescoço do seu cavalo, etc. Deparamos na fábula com um Polegarzito.) Estes exageros e reduções, estas desfigurações das medidas e das proporções nos relatos fantásticos da realidade, são sempre motivadas por uma tendência intuitiva. O exterior -do gigante, gigantescas proporções,' força física, estatura gigantesca, podem servir para tornar também visível exteriormente a evidente força interna e o significado do herói. Por outro lado, em comparação com a realidade, as proporções externas muito exageradas e fantasticamente pequenas podem fazer destacar de uma maneira especial, mediante o contraste, o grande valor interno da pessoa representada. Assim como a apresentação em cena de uma criança apenas visível causa uma maior impressão 115


PRINC1PIOS

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PRINClPIOS

GERAL

que a mesma representação objectiva de um adulto, assim transparece mais acentuadamente a expressão ou manifestação do intelecto, da proporção ou facilidade de compreensão ou a intrepidez, quando apresentadas na figura de um Polegarzito. A desfigllrll:çãO da realidade e as pr0I>OJ:ções fantasticamente aumentadas ou reduzidas servem para des~tacar mais plasticamente uma faceta, qualidade ou aspecto da realidade e explicá-Ia claramente, Finalmente encontramos na transformação da realidade através da imaginação criadora a estereotipização, isto ê, uma generalização específica. Já a acentuação salienta uma característica como essencial destacando-a. Isto é apenas uma possibilidade da transformação de uma imagem individual, que lhe dá um significado na generalização. A acentuação de traços ou aspectos individuais de uma imagem está vinculada a uma série de outras transformações: eliminam-se de todo alguns traços isolados, simplificam-se outros ou então libertam-se de infindos pormenores e aspectos complicados, modificando-se assim o quadro do conjunto. A imagem da imaginação é geralmente a expressão intuitiva de uma intenção mais ou menos consciente. A função desta intenção ou tendência, que. ocasiona uma transformação, manifesta-se pela acentuação precisamente destes aspectos e não de outros. No citado comentário de Leonardo da Vinci torna-se claro que todas as transformações estão submetidas a uma determinada intenção. Esta transforma o produto da aglutinação numa evidente alegoria. Dado que a imaginação, ao acentuar e estereotipar, generaliza e destaca o significado generalizado não sob um conceito abstracto, mas numa imagem concreta, apresenta, naturalmente, a tendência para a alegoria, para a metáfora, a metonimia, sinédoque e símbolo, ou 'seja, para a co.nv'ergência da imagem e do. significado, para a aplicação da imagem ao significado transmitido (8). Todos os meios de capacidade de expressão (tropos, figuras, etc.) usados na literatura são uma manifestação da actividade transformaP. Blonski, 79-84.

(8) pp.

Memória

e Pensamento,

Moscovo-Leninegrado,

1935,

DE PSICOLOGIA GERAL

dora da imaginação. As metáforas, personificações e hípérboles, que se misturam às grandezas e proporções dos objectos, são antíteses que exageram as diferenças até ao contraditório. Tudo isto são processos com os quais se pode acentuar um aspecto num quadro ou numa imagem, de tal forma que esta parece completamente transformada. Todas as formas fundamentais da transformação criadora da realidade usadas na literatura reflectem na sua maneira estilizada e adaptada aquelas modificações de qUe a imaginação faz uso. As formas da imaginação modificam-se no processo da criação literária. Em parte forma-se a imaginação; em parte desenvolve-se e objectiva-se no ser objectivo das suas criações. A imaginação humana compreendida em toda a sua concreção é um produto da história.

IMAGINAÇÃO

E PERSONALIDADE

A imaginação é, no aspecto fisiológico e individual-diferencial, uma expressão essencial da personalidade. Para o característico da personalidade e sua relação com o mundo, torna-se especialmente instrutiva a facilidade ou dificuldade com que consegue em geral a transformação ou modificação do dado. Muitos indivíduos estão tão fortemente vinculados à situação, tão submetidos ao dado concreto, que qualquer modificação ideológica representa para eles um obstáculo considerável. lil-lhes muito difícil, ainda que façam um grande esforço, mudar algo do seu lugar, imaginar inclusivamente que uma coisa possa não ser tal qual estão habituados a vê-Ia. Estão dominados pela lei da inércia. As suas permutas com o mundo que os rodeia levam o selo do hábito e da rotina. Para outros, qualquer situação dada é menos um factor invariável, que deve ser conservado em toda a sua integridade, um ponto de partida e a matéria para a actívídade transformadora; isto, por sua vez, é sumamente ilustrativo para a natureza da personalidade e para a sua relação com o mundo. 117

116


PRINCíPIOS

DE

PSICOLOGIA

GERAL

PRINCíPIOS

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GERAL

Para o desenvolvimento da imaginação é importante a assimilação activa das obras historicamente formadas pela imaginação criadora da humanidade e pelo desenvolvimento

da actívidade criadora da criança nos seus jogos, na actívídade construtiva, etc. A tão divulga da ideia de que a imaginação está mais desenvolvida nas crianças que nos adulto" pode apenas justificar-se pelo facto da imaginação se desenvolver antes do pensamento abstracto e o peso relativo da mesma na vida do indivíduo ser maior na infância que posteriormente. Apesar de tudo, a imaginação na criança é mais débil que no adulto. A «fuga da realidade» nas fantasias infantis , consiste principalmente no facto da criança não poder ter em conta as leis da realidade objectiva, que desconhece, pelo que facilmente violenta a realidade. A aparente abundância das fantasias infantis é na realidade na sua maioria mats a expressão da debilidade do seu pensamento crítico que a da força da sua imaginação. Os factores propriamente criadores ou inclusivamente apenas combinativos são de início insignificantes para a criança. Estes só se vão desenvolvendo no processo do desenvolvimento intelectual geral da criança. Também esta teoria se vê confirmada experimentalmente. Assim, nas experiências efectuadas por Lobsíen, que estudou a imaginação infantil aplicando para tanto o método do desenvolvimento temãtíco e o método complementar de Ebbinghaus, demonstram, tal como as experiências efectuadas pelo próprio Ebbinghaus, que a imaginação aumenta com a idade. Kirkpatrik, que empregou o método das manchas de tinta, chegou, no entanto, à conclusão de que a força da imaginação diminui com a idade, porque com a idade diminui também o número das interpretações. Esta divergência é compreensível se tivermos em conta que no primeiro caso manifestar-se-iam capacidades combinatórias, que nas crianças estão menos desenvolvidas que nos adultos. Mas no segundo caso diminuíram evidentemente os índices, porque nas crianças a capacidade crítica para a interpretação das suas impressões aumenta com a idade. A imaginação infantil manifesta-se e forma-se, de início, no -jõgo e também na actividade representativa, na modelação, no desenho e noutras manifestações da actividade criadora infantil (musical, etc.). Na situação de jogo, a imaginação da criança utiliza as coisas concretas de um

118

1J9

Para se saber até que ponto um determinado sujeito é capaz e está disposto para a transformação daquilo que lhe é dado na sua imaginação, o carácter ou natureza desta transformação assume especial importância. E decisivo para isso a função, que, por um lado, desempenha na imaginação de um determinado indivíduo a emotívídade ou arectrvidade e, por outro, o contrôle crítico da inteligência. Podem assim distinguir-se diferentes tipos de imaginação; por um lado, a imaginação subjectíva, que está pouco submetida ao contrôle crítico do pensamento, que capta mal a realidade, revestindo-a de um véu fantástico; por outro lado, a •imaginação crítica e realista que não se submete incontroladamente à subjectividade do sentimento e que na transformação da realidade tem em conta as normas e tendências na evolução da realidade objectiva. Em indivíduos diferentes, a imaginação manifesta-se preferentemente nos diversos campos ou domínios. Predomina nuns o primeiro tipo, noutros o segundo. Para a determinação da direcção em que decorre o desenvolvimento da imaginação é essencial a orientação da personalidade e são pois essenciais os interesses que criam Os 'centros especiais das exigências emocionais. Em relação à orientação geral da actividade de um indivíduo, também a sua imaginação pode ser muito activa; nalguns na actividade prática da invenção técnica, construtiva, noutros no campo artístico e ainda noutros no trabalho científico. 'rodo o ser humano tem o seu «pedacinho de fantasia», mas em cada um a fantasia ou a imaginação manifestam-se de diferente maneira.

o

DESENVOLVIMENTO

DA

IMAGINAÇÃO

NA

CRIANÇA

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PRINCíPIOS

DE

PSICOLOGIA

GERAL

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ambiente mais próximo e imediato, às quais atribui funções determinadas. A criança voa com um avião imaginário, que substitui a cadeira da rainha. Mais tarde a imaginação separa-se de tal modo da percepção que pode actuar no âmbito interno da consciência sem pontos de apoio no ambiente imediatamente dado. Quando a imaginação evolui suficientemente para efectuar esse desprendimento, os jogos são substituídos pelas fantasias. O desenvolvimento da imaginação infantil, tal como da percepção, do pensamento, etc., não deve ser interpretado como uma sobreposição de formas desligadas entre si, estanto cada uma delas vinculada apenas a uma determinada idade c coordenando-se precisamente essas formas somente com uma determinada idade. A imaginação manifesta-se na criança numa variedade de formas, das quais uma é especialmente característica. São essenciais para isso não somente as diferenças de idade, como também as diferenças índivídlfais. Também na mais tenra idade da criança pode existir uma certa separação da imaginação da situação próxima habitual. O entusiasmo com que as crianças admit\m o fantástico de um conto pode constituir a melhor prova. Para isso a análise dos processos, com que o conto ou a fábula transforma a realidade, assim como a comprovação de saber até que ponto as crianças compreenderam a referida transformação, desvenda os traços característicos da imaginação infantil. Pertencem às formas de transformação da realidade, que a criança capta com mais facilidade, a mudança de proporção que conduz a extremos opostos (o anão, os gigantes), e em geral os exageros (hipérboles), por meio dos quais se criam acentuados contrastes, que mais facilmente são acessíveis à compreensão primitiva. (Os seres humanos são uma maravilha de virtudes e beleza ou então monstros, malvados, etc.) A combinação não é nem o único nem o processo predominante da transformação da realidade no conto e, na criança, só estão debilmente desenvolvidas as capacidades combinatórias. Mais importante que esta liberdade crescente em relação à percepção é uma segunda linha evolutiva da imaginação, 120

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que se vai formando nos anos posteriores. A imaginação passa das formas subjectivas da fantasia às formas objectívas da imaginação criadora, a qual se materializa nos produtos objectivos criadores. Se a fantasia do adolescente dos doze aos catorze anos difere do jogo infantil, de forma a poder prescindir dos objectos imediatamente concretos e palpáveis, a imaginação amadureci da - difere da fantasia juvenil por se moldar nos produtos objectivos palpáveis. Produz-se nesta transição uma modificação interna fundamental, devida a uma nova base racional do pensamento que se vai processando. Se se unem estas duas linhas, pode-se dizer que a imaginação se deve em princípio ao imediatamente dado e conduz a produtos transitórios, não objectivados nem implicados na realidade objectiva. Este processo tem como consequência a imaginação criar no âmbito interno, e sem que se apoie em algo imediatamente dado, produtos objectívos que estão implicados no mundo objectivo que transforma. Ribot tentou formular da seguinte maneira uma lei do desenvolvimento da imaginação: a imaginação criadora atravessa no seu desenvolvimento total três fases. O primeiro período começa, regra geral, aos três anos, abarca todo o período da infância até à adolescência indo às vezes mais longe. Jogos, contos e f'ábulas, fantasias e mais tarde os românticos amores juvenis são as suas primeiras manifestações. Durante este primeiro período, a imaginação é independente dos elementos racionais. Com o crescente desenvolvimento e estabilização do pensamento nos adolescentes dos doze aos catorze anos, surge um antagonismo entre a subjectividade desta imaginação primitiva e a objectividade do pensamento. Este antagonismo caracteriza também o segundo período que é a fase de transição. No terceiro período, a imaginação submete-se ao pensamento e está cheia de elementos racionais. Este processo desenvolve-se por diferentes vias e conduz a distintas consequências. Nuns perde-se a imaginação em consequêncía do desenvolvimento do pensamento. «A maioria entra então na prosa da vida, enterra os seus sonhos juvenis, considera o amor uma quimera, etc.» Só os indivíduos cuja imaginação é de facto 121


PRINCíPIOS

DE

PSICOLOGIA

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PRINCíPIOS

muito rica não a perdem em consequência da intromissão dos aspectos racionais, transformando-a numa força realmente criadora.

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Ribot representa esta via evolutiva da imaginação esquematicamente pela curva JM, que começa por subir com lentidão, depois rapidamente até ultrapassar bastante a linha evolutíva do pensamento. Na fase crítica ambas as curvas atingem aproximadamente o mesmo nível, encontrando-se pela primeira vez uma frente à outra, como duas forças antagónicas. A partir desse momento, a ulterior curva evolutiva da imaginação desenha-se consoante a relação existente entre a imaginação e o pensamento. Se as forças permanecerem antagõntcas.c a curva da imaginação baixa com a subida da do pensamento. Se a imaginação se adapta às condições racionais e se modifica de acordo com estas condições, então a linha da imaginação estabiliza-se ao mesmo nível da evolução do pensamento. Aparece claramente neste período uma nova lei complementar: a imaginação começa a acompanhar o conhecimento. O esquema de Ribot requer, no entanto, uma crítica séria e radical. Segundo este esquema, a imaginação perde-se na maioria dos indivíduos em idade adulta e com o desenvolvimento do pensamento. li: por isso que Ribot se atém à tradicional interpretação de que a imaginação é menor nos adultos que nos jovens, não propriamente na idade infantil, mas sim nos dos doze aos catorze anos.

A lei evolutiva de Ribot Ilustra muito claramente o carácter histórico das leis psicológicas e descobre a condicionalidade histórico-social dos fenómenos psíquicos. A desilusão, a integração da prosa na vida, a renúncia àquilo qué-iIajuventUde se havia sonhado, que Ribot apreSê'iíEâ como lei geral da evolução da imaginação, não passa, realidade, da «lei» do seu desenvolvimento, melhor, da sua perda sob o condicionalismo da sociedade burguesa. A passag-:em-I -actividade prática no quadro da sociedade capitalisia exige da juventude que entre na vida real, quando e sempre <;!~e_.permaneça enquadrada nessa sociedade, que renuncie a tudo o que de melhor exista nos seus sonhos <k-J!l~~Ilt!l(je, . que se sllbllleta, ils tradições, à .rotina, às normas estabelecídas e aos modelos e se ocupe de coisas ~9saicas, onde não há lugar para a imaginação criadora. ~~stas condições é natural que a imaginação vá diminuindo. Na realidade soviética, que abre a cada um perspectivas ilimitadas de uma actividade criadora e modifica todo o tradicionalmente estabelecido, a entrada na vida prática abre novas possibilidades de modificar a realidade e continuar a desenvolver a imaginação criadora. A posição de Ribot parte de uma falsa interpretação da imaginação. Só se pode falar do mais alto nível da imaginação no adolescente dos doze aos catorze anos e da sua decadência nos adultos, quando se não tem em conta o seu aspecto criador. Com efeito, é indubitável que estas formas criadoras da imaginação estão mais desenvolvidas num adulto que em qualquer dos precedentes períodos de idade. A fim de elucidar definitivamente este problema, deve ainda fazer-se referência à diferença existente entre a obra criadora no autêntico sentido objectívo da palavra e no seu sentido subjectivo. No decurso da evolução histórica da humanidade e do desenvolvimento de cada indivíduo transformam-se continuamente as condições que devem possibilitar a imaginação, o exercício de uma função criadora. Estas condições são cada vez mais complexas. Dentro dos seus limitados conhecimentos e experiências, a criança dispõe de um amplo campo para a sua criação subjecttva, descobrindo e explorando para si algo subjectivamente novo. Ê assim, em parte, que surge a impressão de

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29:

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Curva

do

desenvolvimento

da

imaginação,

segundo

Ribot


PRINClPIOS

DE PSICOLOGIA

GERAL

que a fantasia nas crianças está mais desenvolvida que nos adultos. Mas a imaginação criadora, que se manifesta na criação de algo objectivamente novo nos níveis superiores da civilização, exige condições muito complexas e alcança-se apenas na idade adulta. Isto é demonstrado pelo facto das obras de arte que têm um valor artístico objectivo não terem sido criadas geralmente na infância. Posteriormente continuam a surgir capacidades científicas criadoras. A imaginação tem um grande significado para o processo do desenvolvimento e do estudo. Tal facto manifesta-se já nos jogos infantis que é onde primeiramente se forma. A imaginação manifesta-se e forma-se também noutros modos de actividade infantil, como, por exemplo, na actívídade construtiva, no desenho, na música, etc. No processo do estudo, a imaginação cumpre uma dupla função. Em primeiro lugar, é uma condição essencial para a aquisição das matérias nas quais a criança deve possuir a capacidade de imaginar uma situação concreta que por si só não pode perceber (por exemplo, passado histórico no ensino da história, localidades longínquas e espacialmente distantes no ensino da geografia). A imaginação é, em segundo lugar, uma condição indispensável para a educação artística. Uma criança que careça de imaginação será pouco capaz' de receber influências artísticas. A arte é capaz de exercer uma influência educadora extraordinariamente profunda na vida interior do indivíduo quando este é capaz de reproduzir perceptivamente na sua própria imaginação aquilo que a imaginação do artista incorporou na sua obra de arte. A imaginação tem uma importância fundamental para a vida. Os sonhos estimulam a actividade e levam o homem a imaginar a materialização dos sonhos e a colaborar e a lutar pela sua realização com maior energia. Daí que seja um erro acentuar os perigos de uma fantasia infecunda e afirmar, por isso, que deve reprimir-se a imaginação. Pelo contrário, esta deveria ser desenvolvida e ao desenvolvê-Ia formá-Ia adequadamente. ];) condição indispensável para o desenvolvimento de uma sã e eficaz imaginação que se ampliem e enriqueçam as 124

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GERAL

experiências do estudante. Só assim a sua imaginação será f;:~tuosa. E importante dar-lhe a conhecer novas fontes da realidade objectiva à qual não está habituado, dada a sua limitada experiência quotidiana. A criança deve sentir que também o inabitual pode ser real. De contrário, a sua imaginação tornar-se-à tímida e estereotipada. A nossa realidade actual oferece extraordinárias possibilidades à imaginação, na medida em que abre importantes perspectivas a essa, mesma realidade. Basta para isso mencionar, por exemplo, a quase lendária mas verídica história dos feitos heróicos dos exploradores soviéticos sobre as placas de gelo no Pólo Norte, que, no aspecto do fantástico, superam qualquer conto ou fábula. Não são também fantásticos muitos dos feitos do homem soviético levados a cabo nas frentes da segunda grande guerra contra os invasores fascistas? Estes feitos abalam muito mais os sentimentos e, neste sentido, são mais eficazes que qualquer lenda produzida pela mais fogosa imaginação. Que imaginação poderá conceber algo de mais fantástico e surpreendente que os últimos minutos da vida do heróico Panikak que se transformou em tocha ardente ao deitar-se para cima de um líquido inflamado e em lugar de apagar as chamas avançou em direcção a um tanque inimigo, destruindo-o? Quantos destes feitos lendários existem! E esta é a realidade, a nossa realidade, aquela que vivemos. E fundamental desenvolver a aptidão da criança para a crítica e sobretudo desenvolver nela a atitude critica em relação a si mesma e aos seus próprios pensamentos. De contrário a sua imaginação será pura fantaamag'orta. Deve educar-se o estudante a aplicar a sua imaginação no estudo e na vida real, impedindo assim que a sua actividade se transforme numa fantasia improdutiva, alheia à vida, o que impediria a compreensão da própria vida. E fundamental que a imaginação seja incorporada à actividade objectiva e não degenere numa fantasia infecunda, afastando-se assim da actividade, ocultando de certo modo a realidade com um véu. Deve-se cultivar a aptidão para «ultrapassar a realidade», recriando-a, obrigando-a 125


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PSICOLOGIA

GERAL

deste modo a entrar mais profundamente na realidade ..'Nesta perspectiva deve-se educar uma forte imaginação qUe tenha em conta as exigências da realidade, que seja capaz de transformar o dado imediato e de não permanecer, portanto, em escrava dependência perante ele. A aptidão para elevar-se acima do dado imediato e para transformar as formas intuitivas concretas, naquelas que a realidade nos dá através da percepção, de forma a não violentar essa realidade, mas tendo em conta as suas leis, é uma capacidade imaginativa própria apenas do homem que se manifesta e forma nas variadas actividades criadoras do ser humano.

CAPíTULO

o

X

PENSAMENTO

A NATUREZA

DO PENSAMENTO

O nosso conhecimento da realidade objectiva começa com as sensações e as percepções. Começa com elas mas não termina, no entanto, aí. Passa da sensação e da percepção ao pensamento. Partindo dos dados colhidos nas sensações e percepções, o pensamento ultrapassa os limites do sensório-intuitivo e amplia o campo do nosso conhecimento. O pensamento consegue esta ampliação do conhecimento graças ao seu carácter mediato que lhe permite descobrir imediatamente, isto é, por meio de conclusões, aquilo que não se lhe apresenta imediatamente na percepção. Ao mesmo tempo que amplia o conhecimento, o pensamento também o aprofunda. Sensações e percepções reflectem alguns aspectos da realidade e isto numa conexão mais ou menos casual. O pensamento põe em relação mútua os dados sensíveis e perceptívos, confronta-os, compara-os e diferencia-os, descobrindo conexões e mediações ou intervenções. Mediante as relações que existem entre as qualidades sensíveis imediatas que se apresentam nas coisas e nos fenómenos, descobre nestas novas qualidades abstractas não manifestadas pela sensibilidade imediata. Encontra conexões e relações recíprocas, capta a realidade nestas conexões e chega desta maneira a um conhecimento mais profundo da sua natureza. O pensamento 126

127


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