besteira qualquer

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besteira qualquer. eduardo leite





um ardor no peito pode ser azia pode ser amor


a pessoa inventa de parar de tomar refrigerante e comeรงa a sonhar regularmente com coca-cola inclusive acordado inclusive dormindo aliรกs, uma coquinha agora...


ia escrever um poema sobre o teu sorriso abri uma foto tua pra me inspirar e acabei me esquecendo do que era que eu ia fazer mesmo?


amarelo. chocolate refrigerante pizza feijoada fritura fritura fritura fritura fritura camisa amarela me deixa obeso


eu me sinto muito ridíuclo quando estou apaixonado não tem nada melhor que se sentir ridículo


a vontade que tenho de você é tipo a de urinar quando se está extremamente apertado a ponto de doer e cada vez que vai-se chegando mais perto do banheiro a vontade fica ainda mais aguda e mais forte e mais insuportável exatamente assim é a vontade de você quanto mais perto mais bate mais dói


abri meu caderno e vi tua letra me dizendo


a voz da minha avó. A voz da minha avó era amarela. Solar. Daquelas vozes que iluminam a escuridão quando entoadas. Na época dos apagões, não precisava nem de vela. Era só ela sorrir aquela gargalhada, contagiosa feito conjuntivite, que ninguém nem lembrava mais que tava faltando energia no país inteiro. Mas não só por fora. A voz dela era tão forte que também iluminava por dentro. Era ela falar com a gente, contar alguma história da sua vida cheia de passagens hilárias, que toda e qualquer escuridão que existisse dentro de nós se esvaía, desaparecia, a gente se iluminava todo, de dentro pra fora. Li por esses dias num dos textos acadêmicos mais complicados que já tive que ler na vida (ou pelo menos interpretei isso porque, nesse tipo de texto, nunca se sabe realmente se o que a gente entende é o que tem lá mesmo) que as coisas passavam cada vez mais rapidamente e a gente estava perdendo a capacidade de memória. Portanto, cada vez mais a gente continua inventando coisas que nos façam lembrar. Pensei logo em números de telefone. Ninguém mais sabe o número de ninguém. Minha avó sabia. Minha avó, que um dia chegou em casa revoltada porque não existiam mais celulares com botões, anotava todos os números numa caderneta. E se lembrava de vários deles. Mas, fora ela, ninguém lembra. Tão fácil salvar na agenda do celular, pra quê memorizar isso quando a gente pode memorizar coisas tão mais importantes? Tipo a voz da minha avó. Muito mais importante que números de telefone. Acaba que hoje a gente não se lembra de nada. Não consigo visualizar


mentalmente o rosto de um amigo distante. Não consigo lembrar do que fiz pro almoço hoje mais cedo. Não faço ideia do que o professor tinha escrito no quadro semana passada. Não consigo ligar um autor a um conceito sem fazer uma pesquisa exaustiva na internet. Amnésia crônica. Mas da voz da minha avó eu me lembro. Não tem como esquecer. Não me lembro de muitas das histórias que ela já me contou e me odeio um bocado por não ter gravado tudo. Lembro de algumas passagens, como ela dizendo a uma mulher aleatória no supermercado que um determinado ventilador era muito ruim, quebrava num instante, não valia a pena, porque só tinha um daquele e quem ia levar era ela e não a mulher aleatória. Lembro da alegria dela ao me ouvir dizer que sairia de casa pra estudar em outra cidade. Lembro dela no hospital dizendo pra que eu não tirasse nunca o sorriso do rosto. Mas não lembro de tudo. Queria lembrar de tudo. Não dá pra lembrar de tudo. O maior medo da minha vida, hoje, é me esquecer da voz da minha avó. Aquela voz que vivia no volume máximo como a televisão dela ao assistir programa policial sensacionalista na hora do almoço. Aquela voz que soava aos meus ouvidos como a torta de camarão que ela fazia agradava ao meu paladar. Aquela voz que nem o melhor imitador de silvio santos conseguiria imitar. Aquela voz dela, só dela, amarela, solar. Morro de medo de me esquecer da voz da minha avó. Odeio escrever sobre a minha avó no passado.


não sei escrever sobre amor não sei passar pro papel aquela sensação de mundo que invade o íntimo e atravessa todos os átomos do corpo o amor é intransponível em linguagem por isso escrevo sobre banalidades sobre meios de transporte e minha caligrafia não é por não sentir pelo contrário não escrevo sobre o amor porque meu português é limitado demais pra dar conta de algo tão tão tão tão tão tão tão tão tão tão tão tão tão tão tão tão tão tão tão tão maior


temporal. cai uma gota você tem dois segundos para decidir se ignora pois não é nada ou se sai correndo para um abrigo enquanto há tempo na cidade onde moro nunca chove caiu uma gota decidi ignorar seguiu-se um temporal encharquei meu livro novo


só frito carne vestido de burca apareço regularmente em selfies de pessoas que não conheço um carro de som tocando chiclete com banana estacionou em frente à minha varanda faço faxina dublando marina lima tem três dias que não saio de casa o celular diz que tenho que dar dez mil passos para ser uma pessoa saudável a certidão diz que tem vinte e cinco anos que desisti de ser uma pessoa saudável o céu todo dia faz que chove, mas nunca chove esqueci de comprar um guarda-chuva me lasquei


amores vêm e vão mas louça suja é pra sempre


varrer a casa é tipo ler texto acadêmico não importa o quanto se varra sempre fica uma poeirinha que se recusa a ir pra lixeira não importa o quanto se leia sempre fica um conceitinho que se recisa a entrar na cabeça


dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo

mas podem palavras duas (mas duas palavras podem)


apartamento. oito horas da manhã

em ponto vabei vabei vabei vabei vabei - já acordei, cacete! nunca vi gostar tanto de obra

dez horas da manhã

nunca imaginei que um sofá sendo arrastado fizesse tanto barulho

meio dia

paz, finalmente silêncio descanso um cochilinho

duas da tarde

agora é a furadeira cogito me jogar da varanda essa reforma já tem oito meses aparentemente decidiram derrubar o apartamento e começar um novo do zero


quatro da tarde

calor desgraçado barulho dos infernos

seis da tarde (ou da noite, nunca sei)

aparentemente não existe horário limite para obra a síndica não aguenta mais ouvir reclamação não julgo

oito da noite

nunca assisti um capítulo dessa novela, mas sei tudo o que acontece aparentemente tenho um vizinho surdo a televisão grita wiliam bonner grita que lula está sendo investigado (novidade nenhuma ele gritar isso, tsc) patrícia poeta grita o preço do dólar caguei pro dólar

dez da noite

um grito pede “fode essa boceta” um urro responde “toma, cachorra” preciso de um tapa-ouvidos

meia noite

tomo um rivotril


eu sรณ durmo e durmo sรณ


acordei com tanto sono que tudo o que eu queria pra hoje era mergulhar numa piscina cheia de café mas não posso querer mergulhar numa piscina cheia de café já que café quente demais me mataria e café frio não presta melhor me contentar com uma garrafa térmica ou duas ou três do tipo de quantidade de café que abre uma úlcera instantânea no estômago mais uma além das três que já levo comigo por conta do vício em cafeína em suas duas mais lindas formas: café, claro, e coca-cola, talvez até mais claro ainda, inclusive uma coca gelada uma hora dessas...


sono. queria ser daquelas pessoas que acordam dispostas daquelas pessoas que levantam cantando músicas animadas daquelas pessoas que abrem os olhos já com a vassoura na mão, prontas pra faxina daquelas pessoas que não sentem fadiga daquelas pessoas que não morrem de sono queria ser daquelas pessoas que têm energia daquelas pessoas que acordam calçando o tênis para ir malhar daquelas pessoas que levantam já ralando na boquinha da garrafa daquelas pessoas que não enrolam na cama daquelas pessoas que não usam a função soneca do despertador queria ser daquelas pessoas que acordam dando bom dia ao dia daquelas pessoas que pensam como é bom estar acordado, sinal de que se está vivo daquelas pessoas que levantam e arrumam a cama sem chorar pensando em como queriam dormir mais daquelas pessoas que não gostam de dormir muito daquelas pessoas que não sentem o corpo mole e pesado durante as manhãs queria ser daquelas pessoas que acordam 6h30 pensando que já dormiram demais daquelas pessoas que acordam naturalmente cedo e dispostas por conta de um suposto relógio biológico daquelas pessoas que mandam bom-dias felizes em grupos de whatsapp daquelas pessoas que não perdem a hora daquelas pessoas que não desistem de sair para ficar em casa dormindo queria ser daquelas pessoas que não sou


entrevista. – Como é não se sentir exausto? R:


parem as m


mรกquinas


peguei três ônibus hoje os três vazios os três passaram assim que cheguei ao ponto vitória do proletariado



volta pra casa. aceno a porta abre o motorista dá boa-noite há uma mini-micro-fila o cobrador dá boa-noite ainda tem vinte e sete reais no cartão a catraca gira avisto um lugar livre o acento livre ainda está quente vende-se uma casa na ribeira quarto, sala, cozinha, térreo, terreno, garagem o trânsito está infernal o ônibus está ungido o motorista é crente toca aline barros campeão, vencedor a mulher ao meu lado canta junto com a música aleluia um rapaz coça o saco alguém gargalha um rapaz lindo que dói passa pela catraca um rapaz feio que dói desce no mesmo ponto uma mulher come milho uma criança vomita um milho é atirado pela janela do ônibus há uma frase motivacional no acento à minha frente ame-se primeiro frase motivacional em ônibus pede instagram tenho medo de assalto imagino assaltantes em potencial peço mentalmente ao ladrão imaginário que leve tudo, menos os livros que acabei de pegar na biblioteca pois não tenho dinheiro para a multa


a porta do meio range pra caralho mais pessoas sobem mais pessoas descem saco um livro da mochila leio dois parágrafos o hino evangélico não me deixa continuar culto móvel me levanto puxo a corda piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii vou para a porta o motorista freia bruscamente e todas as pessoas são jogadas pra frente enquanto o freio gasto do ônibus apita mais alto que quando puxei a corda a porta abre tropeço no degrau quase dou de cara no chão sentei no bar da esquina escrevi um “poema” jantei acarajé


cápsula. Chego ao ponto. Avisto-a vindo, aproximando-se. Dou a mão. Ela para. A porta abre. Subo as escadas. Dou bom dia ao motorista. Ele não me responde. Sigo. Dou bom dia ao cobrador. Ele me responde. Dou o dinheiro. Atravesso a catraca. Procuro um lugar disponível para sentar. Não há. Sigo em pé. Sou jogado para frente quando o motorista aciona o freio. Pessoas sobem. Sou empurrado para trás quando ele, subitamente, pressiona o acelerador. Pessoas descem. Tenho um déja vu. A catraca roda. Puxo a corda. Sigo para o fundo. O motorista aciona o freio. Tenho que me segurar para não cair. A porta do fundo abre. Desço as escadas. Saio. Chegarei ao ponto. Avistá-la-ei vindo, aproximando-se. Darei a mão. Ela parará. A porta abrirá. Subirei as escadas. Darei bom dia ao motorista. Ele não me responderá. Seguirei. Darei bom dia ao cobrador. Ele me responderá. Darei o dinheiro. Atravessarei a catraca. Procurarei um lugar disponível para sentar. Não haverá. Seguirei em pé. Serei jogado para frente quando o motorista acionar o freio. Pessoas subirão. Serei empurrado para trás quando ele, subitamente, pressionar o acelerador. Pessoas descerão. Terei um déja vu. A catraca rodará. Puxarei a corda. Seguirei para o fundo. O motorista acionará o freio. Terei que me segurar para não cair. A porta do fundo abrirá. Descerei as escadas. Sairei. Chegaria ao ponto. Avistá-la-ia vindo, aproximando-se. Daria a mão. Ela pararia. A porta abriria. Subiria as escadas. Daria bom dia ao motorista. Ele não me responderia. Seguiria. Daria bom dia


ao cobrador. Ele me responderia. Daria o dinheiro. Atravessaria a catraca. Procuraria um lugar disponível para sentar. Não haveria. Seguiria em pé. Seria jogado para frente quando o motorista acionasse o freio. Pessoas subiriam. Seria empurrado para trás quando ele, subitamente, pressionasse o acelerador. Pessoas desceriam. Teria um déja vu. A catraca rodaria. Puxaria a corda. Seguiria para o fundo. O motorista acionaria o freio. Teria que me segurar para não cair. A porta do fundo abriria. Desceria as escadas. Sairia.


mal acordei. Nem acordo. Não dá tempo nem de abrir os olhos. Só sinto um baque forte na minha cabeça. O quadro de tamanho 60 x 90, com uma das melhores fotos que já fiz, que fica na cabeceira da minha cama, caiu em minha cabeça. Caiu de quina na minha cabeça. Estou morto. Acordo. Abro os olhos. Estou morrendo de sono. A primeira coisa que visualizo no meu quarto escuro por conta da cortina preta é o quadro de tamanho 60 x 90, com uma das melhores fotos que já fiz, que fica na cabeceira da minha cama. Amo aquela foto. Sento na cama. Me dou conta de que é terça-feira. Tenho que ir trabalhar. Me dirijo ao banheiro e mijo de olhos fechados porque simplesmente estou com muito sono pra conseguir manter as pálpebras levantadas. Aperto o interruptor para ligar o chuveiro elétrico. Não tem condições de tomar banho frio. Rodo a torneira do chuveiro. A água quente fervendo cai em meus cabelos. Só sinto dor e uma força se abatendo sobre meu corpo quando caio no chão molhado. Curto circuito. Fui eletrocutado pelo meu chuveiro. Estou morto. Acordo. Abro os olhos. Estou morrendo de sono. A primeira coisa que visualizo no meu quarto escuro por conta da cortina preta é o quadro de tamanho 60 x 90, com uma das melhores fotos que já fiz, que fica na cabeceira da minha cama. Amo aquela foto. Sento na cama. Me dou conta de que é terça-feira. Tenho que ir trabalhar. Me dirijo ao banheiro e mijo de olhos fechados porque simplesmente estou com muito sono pra conseguir manter as pálpebras levantadas. Decido tomar banho frio pra ver se desperto. A água gelada faz todos


os cabelos do meu corpo se arrepiarem. Respiro fundo. O frio não me deixa passar nem cinco minutos no banho. Saio, ainda enrolado na toalha, pra colocar a água no fogo e tomar meu café. Enquanto a água esquenta, troco de roupa. A água ferve. Preparo o filtro com o pó preto milagroso. Pego a panela pesada cheia de água fervente. Botei água demais. No caminho entre a panela e a garrafa térmica, um passo em falso me faz tropeçar. A panela voa. Só sinto dor e desespero quando a panela cheia de água fervendo cai sobre minha cabeça. Tudo derrete. Estou morto. Acordo. Abro os olhos. Estou morrendo de sono. A primeira coisa que visualizo no meu quarto escuro por conta da cortina preta é o quadro de tamanho 60 x 90, com uma das melhores fotos que já fiz, que fica na cabeceira da minha cama. Amo aquela foto. Sento na cama. Me dou conta de que é terça-feira. Tenho que ir trabalhar. Me dirijo ao banheiro e mijo de olhos fechados porque simplesmente estou com muito sono pra conseguir manter as pálpebras levantadas. Decido tomar banho frio pra ver se desperto. A água gelada faz todos os cabelos do meu corpo se arrepiarem. Respiro fundo. O frio não me deixa passar nem cinco minutos no banho. Saio, ainda enrolado na toalha, pra colocar a água no fogo e tomar meu café. Enquanto a água esquenta, troco de roupa. A água ferve. Faço meu café sem problemas. Aliás, está maravilhoso. Fazia tempo que eu não fazia um cafezinho tão gostoso. Termino de me arrumar. Trabalho bem perto de casa, mas a preguiça me faz pegar o carro para ir à firma. No cruzamento da avenida mais movimentada da cidade, enquanto atravesso escutando o disco novo de minha cantora favorita, um carro passa como louco pelo semáforo. Só sinto a batida antes de perder a consciência. Estou morto.


Acordo. Abro os olhos. Estou morrendo de sono. A primeira coisa que visualizo no meu quarto escuro por conta da cortina preta é o quadro de tamanho 60 x 90, com uma das melhores fotos que já fiz, que fica na cabeceira da minha cama. Amo aquela foto. Sento na cama. Me dou conta de que é terça-feira. Tenho que ir trabalhar. Me dirijo ao banheiro e mijo de olhos fechados porque simplesmente estou com muito sono pra conseguir manter as pálpebras levantadas. Decido tomar banho frio pra ver se desperto. A água gelada faz todos os cabelos do meu corpo se arrepiarem. Respiro fundo. O frio não me deixa passar nem cinco minutos no banho. Saio, ainda enrolado na toalha, pra colocar a água no fogo e tomar meu café. Enquanto a água esquenta, troco de roupa. A água ferve. Faço meu café sem problemas. Aliás, está maravilhoso. Fazia tempo que eu não fazia um cafezinho tão gostoso. Termino de me arrumar. Trabalho bem perto de casa, então decido ir a pé. É mais rápido se eu conseguir passar por entre os carros em vez de andar dois quarteirões até a faixa de pedestres. Não consigo. Sou atingido por um carro que passa correndo pela avenida como se quisesse levantar voo, mas quem acaba voando sou eu. Quando me estatelo no chão, já não sei mais de nada, já não sinto mais nada. Estou morto. Acordo. Abro os olhos. Estou morrendo de sono. A primeira coisa que visualizo no meu quarto escuro por conta da cortina preta é o quadro de tamanho 60 x 90, com uma das melhores fotos que já fiz, que fica na cabeceira da minha cama. Amo aquela foto. Sento na cama. Me dou conta de que é terça-feira. Tenho que ir trabalhar. Me dirijo ao banheiro e mijo de olhos fechados porque simplesmente estou com muito sono pra conseguir manter as pálpebras levantadas. Decido tomar banho frio pra ver se desperto. A água gelada faz todos


os cabelos do meu corpo se arrepiarem. Respiro fundo. O frio não me deixa passar nem cinco minutos no banho. Saio, ainda enrolado na toalha, pra colocar a água no fogo e tomar meu café. Enquanto a água esquenta, troco de roupa. A água ferve. Faço meu café sem problemas. Aliás, está maravilhoso. Fazia tempo que eu não fazia um cafezinho tão gostoso. Termino de me arrumar. Trabalho bem perto de casa, então decido ir a pé. A faixa de pedestres fica a dois quarteirões da minha casa. Os carros passam desembestados pela avenida que separa minha casa da firma. Ando até a faixa. Os carros vão parando para eu atravessar. Menos um, que passou como louco, correndo pela avenida como se quisesse levantar voo, mas quem acaba voando sou eu. Quando me estatelo no chão, já não sei mais de nada, já não sinto mais nada. Estou morto. Acordo. Abro os olhos. Estou morrendo de sono. A primeira coisa que visualizo no meu quarto escuro por conta da cortina preta é o quadro de tamanho 60 x 90, com uma das melhores fotos que já fiz, que fica na cabeceira da minha cama. Amo aquela foto. Sento na cama. Me dou conta de que é terça-feira. Tenho que ir trabalhar. Me dirijo ao banheiro e mijo de olhos fechados porque simplesmente estou com muito sono pra conseguir manter as pálpebras levantadas. Decido tomar banho frio pra ver se desperto. A água gelada faz todos os cabelos do meu corpo se arrepiarem. Respiro fundo. O frio não me deixa passar nem cinco minutos no banho. Saio, ainda enrolado na toalha, pra colocar a água no fogo e tomar meu café. Enquanto a água esquenta, troco de roupa. A água ferve. Faço meu café sem problemas. Aliás, está maravilhoso. Fazia tempo que eu não fazia um cafezinho tão gostoso. Termino de me arrumar. Trabalho bem perto de casa, então decido ir a pé. A faixa de pedestres fica a dois


quarteirões da minha casa. Os carros passam desembestados pela avenida que separa minha casa da firma. Ando até a faixa. Os carros param para eu atravessar. Quando chego ao outro lado, um rapaz armado pede todo o meu equipamento. Quando hesito, sou baleado. Dor. Muita dor. Falta de ar. Estou morto. Acordo. Abro os olhos. Estou morrendo de sono. A primeira coisa que visualizo no meu quarto escuro por conta da cortina preta é o quadro de tamanho 60 x 90, com uma das melhores fotos que já fiz, que fica na cabeceira da minha cama. Amo aquela foto. Sento na cama. Me dou conta de que é terça-feira. Tenho que ir trabalhar. Me dirijo ao banheiro e mijo de olhos fechados porque simplesmente estou com muito sono pra conseguir manter as pálpebras levantadas. Decido tomar banho frio pra ver se desperto. A água gelada faz todos os cabelos do meu corpo se arrepiarem. Respiro fundo. O frio não me deixa passar nem cinco minutos no banho. Saio, ainda enrolado na toalha, pra colocar a água no fogo e tomar meu café. Enquanto a água esquenta, troco de roupa. A água ferve. Faço meu café sem problemas. Aliás, está maravilhoso. Fazia tempo que eu não fazia um cafezinho tão gostoso. Termino de me arrumar. Trabalho bem perto de casa, então decido ir a pé. A faixa de pedestres fica a dois quarteirões da minha casa. Os carros passam desembestados pela avenida que separa minha casa da firma. Ando até a faixa. Os carros param para eu atravessar. Chego ao trabalho e tem uma pilha de coisas a fazer. Estou bem. Estou vivo. Não tem nem meia hora que acordei e já poderia ter morrido pelo menos sete vezes.


obituário. Seu Valdávio era um velho de seus mais de sessenta anos, mas que já aparentava ter quase noventa. Todos os dias da sua vida eram os mesmos, fosse segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo ou feriado. Tanto que ele nunca sabia qual o dia da semana ou do mês. Morava só desde que sua mulher falecera há uns dez anos. Ou seriam onze? Ele não saberia dizer. Era difícil contar os dias quando nada acontecia. Todo dia Seu Valdávio levantava da cama por volta das nove da manhã e ia para a cozinha. No caminho, pegava o jornal que alguém já havia passado por baixo de sua porta. Preparava um café e comia suas torradas velhas enquanto folheava a publicação inteira, só parando para realmente ler uma parte específica. Para Seu Valdávio, não importava muito o que acontecia com o mundo. Ele não fazia questão de saber dos assassinatos ou das crises econômicas ou das CPIs ou da votação sobre a cassação do mandato do governador. Não, a única parte do jornal que ele lia todo dia era o obituário. E se lembrava de todos os nomes dos mortos e o que havia causado aquelas mortes como se fosse a sua própria. Quer dizer, não como se fosse sua própria morte, já que, depois de morto, ninguém lembra mais de nada, mas não existe outra maneira de escrever isso. Adamastor Costa da Silva Martins Adamastor se olhou no espelho e percebeu que não era mais o mesmo de outrora. Tinha os olhos fundos e cansados como os de alguém


que usa óculos há muito tempo ou os de alguém que passou as últimas dez horas fumando maconha ou os de alguém que passou as últimas dez horas fazendo exames de glaucoma. Sua única reação àquela imagem medonha que o espelho insistia em dizer que era ele foi falar a seguinte palavra: “É”. Antes de sair do banheiro, Adamastor teve um infarto e morreu. Catarina Maria Rocha Teixeira “Catarina Maria Rocha Teixeira”. Feliz da vida por ter acabado de passar no vestibular, a ex-futura médica começou a pular como se estivesse num show de Sandy e Júnior em plena música “Vamo pulá!” ou num show da Simple Plan em plena música “Jump” ou em uma apresentação de algo muito chato como, por exemplo, um show da Maria Gadu e você está muito bêbado para notar que ela não está tocando “Vamo Pulá!” ou “Jump”. E lá estava ela pulando quando tropeçou, caiu de sua própria altura, bateu a cabeça no asfalto e ali mesmo ficou. Pra sempre. Kallynny Silva dos Santos Kallynnyy era uma menina super extrovertida, cujo maior orgulho era ter seu nome escrito, junto com os de seus irmãos – Klaudoaldo e Kammylly, na mala do táxi de seu pai, Seu Antônio. Numa bela quinta-feira, faltavam cinco minutos para o despertador de Kallynny tocar quando o ventilador de teto despencou em sua cabeça. João Otávio Oliveira das Dores Como seu próprio nome diz, Seu das Dores vivia sempre com dor


em todas as partes do corpo. Uns diziam que era frescura, outros diziam que era hipocondria e alguns outros diziam que ele tinha que ir ao hospital sempre. Às vezes sentia dor nas costas. Outras vezes tinha dor de cabeça. Já teve até dor nas orelhas, órgãos que ninguém nunca havia imaginado que eram possíveis de se sentir. Morreu de dor, claro. Janaína Mota Vasconcelos Janaína – ou Janaína Jotalhão, que depois virou Jotalhão e hoje em dia é só Jota para os amigos da escola – era uma garotinha cujo peso ninguém sabia, já que ela nunca contava a ninguém, mas que todo mundo imaginava. E os palpites variavam muito, mas nunca eram abaixo de 80 quilos. Sua maior alegria foi ter perdido 200g em um verão. Sua maior tristeza foi ter engordado 3kg no inverno que se seguiu. A maior diversão de Jota era sentar-se durante a tarde em frente à televisão com toda a sorte de comida engordurada que encontrava em casa para assistir a reprises de novelas antigas. Um dia, sem ter nada com mais de 500 calorias em casa, Jota entrou em desespero e teve uma leve elevação na pressão arterial, que já era mais alta que o de muita gente, e aí já dá para imaginar o que aconteceu. Fim. Ana Mariana Viana Santana de Holanda Ana Mariana Viana Santana de Holanda já era frustrada com seu nome-poesia normalmente, mas, quando as pessoas notaram que todos os seus nomes rimavam e começaram a falar com ela apenas por meio de rimas foi demais. “Ana Mariana Viana Santana de Holanda gosta de banana?”


“Ana Mariana Viana Santana de Holanda quer caldo de cana?” “Ana Mariana Viana Santana de Holanda é da umbanda?” “Ana Mariana Viana Santana de Holanda é africana, alagoana, baiana, angolana, boliviana, goiana, indiana, muçulmana, peruana, vegetariana, americana, balzaquiana, cubana, mexicana, paulistana, puritana, australiana, coreana, paraibana, moçambicana, nigeriana, pernambucana, romana, germana, italiana ou veterana?” Essa última foi demais para Ana Mariana Viana Santana de Holanda, que acabou se matando, ironicamente, com uma faca de porcelana. Valdávio Marinho Queiroz Mal sabia Seu Valdávio que, depois de lido o obituário daquele dia, que era uma segunda-feira mesmo que ele não soubesse, e depois de tomar suas pílulas coloridas para todos os males da vida e depois de voltar para a cama para passar o dia inteiro assistindo canais de notícias 24 horas que reprisavam as mesmas matérias o tempo inteiro, sofreria um ataque fulminante do coração. Na terça-feira, ele não acordou por volta das nove horas nem pegou o jornal que alguém já havia passado por baixo de sua porta nem preparou café ou comeu torradas velhas e, pela primeira vez desde que havia aprendido a ler, Seu Valdávio não conferiu o obituário do dia. Na página A23 daquela edição do jornal, encontrava-se a seguinte nota: Obituário Valdávio Marinho Queiroz – Ataque fulminante do coração. Velório às 14 horas no Cemitério Viva Bem.



surto em


m aviĂľes


asas. Descobri que tenho medo de avião da pior forma: a dois mil pés de altura quando o avião inventou de fazer um barulho que, no meu carro, indicaria que o mecânico ganharia um bom dinheiro às custas do meu analfabetismo mecânico. Aparentemente, tá tudo azul já que os aeromoços estão simpáticos e felizes distribuindo balas fini em formato de aviãozinho para todo mundo. Descobri que tenho medo de avião da pior forma: viajando ao lado de um cara um pouco acima do peso que insiste em ignorar os avisos dos aeromoços para que todos desliguem os aparelhos eletrônicos. Aparentemente, celular não derruba avião já que consegui chegar em terra novamente, e inteiro. Descobri que tenho medo de avião da pior forma possível: viajando sozinho. Ninguém pra me distrair do fato que, neste momento, estou voando mais alto que arranha-céus. Ninguém pra me fazer desencanar do medo do tombo. Não entendo os avisos de segurança dos aeromoços se se avião cai é só ploft e já era tudo. Descobri que tenho medo de avião da pior forma: escrevendo uma lista de motivos para ter medo de estar voando a mais de 600 km/h no guardanapo que o aeromoço me deu para comer balas fini em formato de avião que a gente pega com a mão mesmo. Bala fini só fede a chulé. Minha mão agora também. Descobri que tenho medo de avião da pior forma: olhando pela janela


e percebendo como a gente é pequeno comparado a quase qualquer coisa. A gente é tão pequeno que somos menores que lâmpadas, já que consigo vê-las daqui dos não sei quantos mil pés de altura, mas não vejo uma pessoazinha. Descobri que tenho medo de avião da pior forma: escrevendo num guardanapo da empresa de aviação justo na hora em que desligaram as luzes para o pouso no destino. Enxergo nada. Perdoem a bagunça. Descobri que tenho medo de avião da pior forma: com os ouvidos pipocando e me deixando um pouquinho surdo momentaneamente. Quase não tem mais música nos meus fones. Tá descendo. Frio na barriga. Agonia de quando a rodinha bate no chão. Roda de avião parece de carro de mercado. Descobri que tenho medo de avião da MELHOR forma: chegando inteiro de volta no chão.


método de estudo. O que surge num processo de indicação pode ser esboçado da maneira seguinte (ver 66, 72 e 127). Caralho, como é que eu já to perdido na primeira linha do parágrafo? Partimos de um conjunto de discriHe’s leaving on that midnight train to Georgiaminações Música do caralho feitas Melhor música da história da humanidade tem nem como a propósito do campo relevante de investigação. Como é? (Naturalmente Ah claro, naturalmente, é a reconstrução que nestMidnight train to Georgiaaae ponto se inicia e não Tá bom dessa música na minha cabeça necessariamente a lógica-preciso me concentrarem-uso). Esse conjunto estabelece uma articulação do campo que se apresenta dois componentes. Um é a reconstrução que neste ponto Oxe já li isso se inicia e não necessariamente a lógica-em-uso)De onde surgiu esse parêntese? a estrutura conceitual (ou “sistema de referência”), fundamI’ll be with him on that midnight train to Georgiaental para a indicação Que fome horizontal. Sai, menino, tu acabasse de comer Compreende por isso que tá gordo desse jeito ele todo o conjunto ele todo o conjunto de termos indSaid he’s leaviiiinnngependentes, outhat midnight train to Georgiaaaseja, de era bom um cafezinho agora termos não estritamente definidos por meio dos outros, termos o que bobônica eu to lendo? usados na teoria que é pressuposta pela investigação e dela emerge diverge submerge. O outro componente foi meu celular que vibrou? é o espaço atributo, claro que foi, tu tá sozinho, tabacudo fundamental para oxe tem nada eu hein, devo ter imaginado o celular vibrando a indicação vertical vai pra cimaaaa dos outrooooosss e de miiiiimm. Compreende ele o conI’m gonna be with him on that midnight train to Georgiaajunto de categorias com Caralho de música que não sai da minha cabeça referência às preciso prestar atenção no que to lendo quais os elementos do campo sei nem qual o campo, quanto mais os elementos são mais ou menos observacionalmente caracterizadosobservacionalmente caracterizadosobservacionalmente caracterizados. Cada categoria abrange será que


ainda tem o resto do almoço?um conjunto de qualidades discrimináveis como é que faz pra se concentrar hein?, que algumas vezes se apresentam eita agora foi o whatsapp certeza ordenadas e, por puta merda paupitty KKKKKKKKKKvezes, LEAVIN’ ON THAT MIDNIGHT TRAINchegam a estar quantitatitatitatitativamente I’VE GOT TO GO I’VE GOT TO GOespecificadas (caso em que cada uma dessas categorias é comumente conhecida como “índice”ícone símbolo eita semiótica amo). A eita faltou uma coisinha doce cada indivíduo o que é que eu tenho pra fazer amanhã mesmo?pode, vixe vou ter que acordar cedo ninguém mereceentão ser atribuído porra que sono um perfil, traduzindo a não, a partir de agora eu vou prestar atenção quaOOOOOOOOOOHHHH HE’S LEAVINlidade pela qual é caracON THAT MIDNIGHT TRAIN TO GEORGIAterizado em função de cada uma das categorias do espaço atributo. Exemplificativamente que raio de palavra é essa?, estudos relativos ao orçamento familiar e já virou economia mesmo foi?podem incluir, que disciplina é essa mesmo?na estrutura conceitualfaltam dez páginas ainda aff, conceitos como “elastiI’VE GOT TO BE WITH HIMcidade de ONDE?gastosON THAT MIDNIGHT TRAIN TO GEORGIA”, SAI DA MINHA CABEÇA INFERNO“preferência de liquidez já virou bauman agora” e “economias não era melhor eu estar vendo modern family uma hora dessas?externas não, tenho que estudar de consumo”; e incMIDNIGHTluiriam, nMIDNIGHT TRAIN TO GEORGIAo espaço atributo, categorias não aguento mais tais quero mais não como tamanho calor da porra da cadê o ventilador? família, bem que podia estar chovendo né? poupanças já são 20h58??? e padrão FORA TEMER de vida. A caALL ABOARDda faALL ABOARDmíliALL ABOARDa se atrON THAT MIDNIGHT TRAIN TO GEORGIAibuiria, então, um perfil bzzzzzzzzzzzzzzz compreendendo que zumbido é esse? específico, economias e padrão de vida e atributos semelhantes ah que legal né migo. Com base nessa articulação é o que o signMIDNIGHT TRAAAAAAAAAAAAIN TO GEORGIAificado dos termos usado se especifica. Oxe o que foi que eu loi mesmo nesse parágrafo? Lembro é de nada. Vou ter que ler de novo, é foda.


mão dupla. Ele entrou naquele bar vestido naquela camisa xadrez que eu achei de péssimo gosto e apagando um cigarro que fumava lá fora, mas cuja lei municipal que proíbe que pessoas fumem em lugares fechados impedia de o continuar fumando depois de entrar no recinto. Uma barba por fazer, nada demais, nada no estilo Marcelo Camelo, mas com uns dois ou três dias de atraso com a lâmina. Uma barba por fazer cheia de buracos. E um olhar de quem está cansado demais para estar ali e preferia estar em casa deitado vendo filme até dormir. Ele tinha cara de quem adorava assistir filmes franceses. Entrou e foi direto pro bar sem olhar para nada e para ninguém além do garçom que serviria sua cerveja – sua recompensa por um dia tão cansativo e estressante. Agradeceu ao garçom com um aceno de cabeça, tomou um gole e virou-se para encarar as outras pessoas do bar. Eu estava feliz da vida em casa sem fazer nada até que dois amigos me ligaram chamando para ir àquele bar novo que aparentemente era o que estava na moda nessa minha capital com cara de interior. Fui sem a menor vontade. Tudo o que eu queria era ficar em casa vendo filmes. Assistindo àquelas comédias escrachadas que eu adoro. Mas não. Não podia passar outro fim de semana trancado em casa. Tinha decidido que deveria sair para ver gente pelo menos uma vez por mês e maio já estava quase acabando. Então fui. Fiquei mais de vinte minutos na porta esperando meus amigos que aparentemente não sabiam conferir seus respectivos relógios. Fumei uns quatro cigarros enquanto esperava. Até decidir entrar para tomar uma cerveja. Abri a porta e fui direto para o bar. Notei que havia alguém me olhando, mas decidi fingir que não apenas por impaciência. Pedi uma cerveja e me virei para olhar o que me cercava. Até que tive que olhar para aquela mulher nem tão bonita nem tão feia que me encarava com aquela cara de “vou me apaixonar por você daqui a dois dias”. Pensei “bem, poderia


ser pior” e abri um sorrisinho para ela, que tratou de retribuir quase que no mesmo segundo. Era isso. Eu voltaria acompanhado para casa. A noite tinha começado a ficar interessante. Pareceram horas até que seus olhos encontrassem os meus enquanto ele conferia cada pessoa naquele bar. Eu estava me sentindo particularmente bonita naquele dia. Tinha escolhido meu vestido mais bonito, feito uma maquiagem simples, mas bem elegante e meu cabelo parecia finalmente estar do meu lado. Quando ele me olhou, senti uma vergonha imensa e quis muito desviar o olhar. Mas não consegui. Os olhos dele pareciam enxergar minha alma por dentro e me hipnotizaram. Depois de um longo contato visual, ele abriu um sorriso de canto de boca sem dentes para mim. Eu, hipnotizada, retribuí com meus olhos brilhando e um sorriso de orelha a orelha que mostrava todos os meus dentes. Que homem! Quando ele se levantou do bar, fiquei imaginando que ele viria até mim, me roubaria um beijo e me levaria para ficar com ele conversando sobre filmes, flores e músicas a noite inteira, até ficar bem cansado e notar que tinha que ir para casa porque tinha que trabalhar cedo no outro dia, mas que fazia questão de me ver de novo e pediria meu telefone. Depois que ela sorriu de volta para mim, me dirigi a ela e falei “oi”. Bastou um oi para que ela começasse a me narrar toda a sua vida desde a maternidade em que a mãe quase morreu no dia de seu parto até a salada que tinha almoçado mais cedo naquele mesmo dia. Ela falava muito. Adorava falar. E enquanto ela falava, eu só imaginava como minha cama estaria aconchegante naquele momento. Seus olhos me faziam viajar e pensar em coisas as mais banais. E ela continuava falando e falando e falando e falando. Até que eu cansei daquele lenga-lenga todo e perguntei se ela não queria ir para outro lugar. Ele me escutava. Me escutava com uma atenção que eu nunca havia


visto em homem nenhum. Depois de pouco tempo de conversa, parecia que a gente já se conhecia há anos. Nos demos bem logo de primeira. Foi lindo! Ele me perguntou sobre tudo: desde como havia sido minha infância até meu restaurante favorito. Fazia muito tempo que eu não me dava tão bem com alguém assim de primeira. Quando ele me perguntou se eu queria sair dali, eu nem sequer hesitei. Eu o queria e ele me queria de volta. E seu sexo deveria ser maravilhoso também. Ele tinha aquela cara de cansado que se inspira quando deita com uma mulher, sabe? Decidi levá-lo ao meu apartamento, que ficava ali perto e poderíamos ir andando juntos e abraçados. Ela disse que seu apartamento ficava ali perto. Pensei “ótimo, quero minha cama limpa quando eu for dormir”, mas falei “ah, pensei em te levar para o meu, mas fica bem distante daqui”. Ela insistiu que eu fosse até seu ap abraçado a ela enquanto ela me contava mais bobagens do tipo “como a noite está estrelada hoje”. Entramos no quarto-e-sala que mais parecia apenas quarto ou apenas sala e ela me ofereceu um copo d’água que eu aceitei porque realmente estava morrendo de sede. Ela contou mais besteiras. Até que eu terminei a água, deixei o copo na pia e a beijei ali mesmo na sua cozinha/sala/quarto. Transamos em todos os cômodos do seu apartamento, o que foi bem fácil porque era apenas um. Foi um sexo morno. Do tipo que eu já tinha tido pelo menos outras vinte e seis vezes na minha vida. Ela gemia muito alto, o que me constrangia um pouco, já que eu não via motivos para sair gritando com aquele sexozinho meia-boca. Terminei meu serviço e fiquei doido pra ir pra casa. Ainda bem que ela não custou a pegar no sono. Depois que entramos em meu apartamento e eu o ofereci água, ele me olhou e seus olhos me diziam que agora ele estava com sede de mim. Achei ótimo porque eu também o queria. Queria ele ali e agora no meu apartamento, que era pequeno, mas bem dividido. Ele veio para mim, feroz, me beijando em todos os locais. Arrepiei-me assim que


sua boca tocou a minha. Foi maravilhoso. Fizemos amor em todos os locais daquele apartamento, desde a mesinha em frente à geladeira até o sofá e a cama. Eu gritava de prazer e tinha noção de que estava gritando. Mas não conseguia me controlar para gemer com classe. Ele estava praticamente me matando. Foi um dos melhores sexos da minha vida. A transa me deixou exausta e eu acabei dormindo nos braços dele. Depois que ela dormiu, demorei mais meia-hora pra conseguir me desvencilhar de seus braços que insistiam em me apertar. Quando consegui, me vesti e tratei de sair antes que ela acordasse e me chamasse para tomar café que resultaria num almoço que resultaria num casamento. Antes de ir embora, deixei um recado num post it colado em sua geladeira mais por educação do que por me importar de fato. Escrevi “foi ótimo, bjs” e deixei um número falso para que ela não pensasse que eu era tão filho da puta assim de primeira.Desci de cigarro na mão, pronto para acendê-lo assim que saísse do elevador. Consegui pegar um táxi na porta daquele bar insuportável que havia me proporcionado uma transa que tinha sido pior que uma masturbação. Cheguei em casa e minha cama me olhou, linda, maravilhosa, esperando por mim. Deitei-me e adormeci. Sorridente. Não por ter transado, mas por ter conseguido, finalmente, chegar em casa. A vida era boa outra vez. Quando acordei, ele havia ido embora. Nem acreditei que tinha tido uma noite dessas. Aquela não era eu. Eu não fazia esse tipo de coisa. Mas, mesmo assim, fiz. E foi ótimo. E foi lindo. Achei uma pena ele ter ido embora assim, sem nem dizer tchau. Quando me levantei e vi que ele havia deixado um recadinho com palavras as mais doces colado na minha geladeira, imaginei que ele teve que ir embora, mas não queria me acordar. Sorridente, salvei seu número em meu telefone. Não ligaria agora para não parecer desesperada. Não. Mas sabia que aquilo ali aconteceria de novo e não via a hora. A vida era boa outra vez.


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