Livreto 2
Copyright © 2013 Oriana Duarte Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/1988. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da autora. Organização: Oriana Duarte Capa: Oriana Duarte Projeto Gráfico: Oriana Duarte Revisão: Mariano Morgado Editoração: Danielle Barros Impressão e acabamento: Editora Universitária/ UFPE Este projeto foi contemplado pelo Ministério da Cultura e pela Fundação Nacional de Arte - FUNARTE no Edital Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais www.noserrantes.com
Catalogação na fonte: Bibliotecária Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408 D812t
Duarte, Oriana, 1966-. As travessias plus ultra de uma artista atleta, parte II : o acontecimento / Oriana Duarte. 1. ed. – Recife : Ed. Universitária da UFPE, 2013. 56 59 p. : il. (algumas color.). – (Coleção Nós, errantes - livretos de artista, 2). Projeto Nós, errantes. Escritos de existências + Falas de uma artista. ISBN 978-85-415-0349-5 (broch.) (broch) 1. Arte brasileira – Séc. XXI. 2. Artistas – Brasil – Descrições e viagens. 3. Arte conceitual – Pesquisa – Obras ilustradas. 4. Remo (Esporte). 5. Esportes na arte. 6. Comunicação e as artes. 7. Subjetividade. 8. Corpomídia. I. Título. 709.810904
CDD (23.ed.)
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS EDITORAS UNIVERSITÁRIAS
UFPE (BC2013-215)
projeto Nós, errantes: escritos de existência + falas de uma artista
∼∼∼∼∼ As Travessias plus ultra de uma Artista Atleta ∼∼∼∼∼ parte II: O ACONTECIMENTO
Oriana Duarte
1ª. edição Recife, 2013
PLUS ULTRA [expressão do latim para “mais além”] inicialmente se pretende como uma performance em remo pelo rio Capibaribe, à ser desdobrada em registros processuais (vídeos, fotos, desenhos, textos, etc.). Essa performance acontece em fevereiro de 2007, após o ano de 2006 dedicado tanto a
aprendizagem
do esporte, quanto a pesquisa e adequação da tecnologia utilizada nas filmagens. Na ocasião, a expectativa da proposta gira em torno da emergência de metáforas inspiradoras da relação corpo-ambiente. Mas a intensidade da experiência me faz engendrar outra operação plus ultra, dada pelo remar ad infinitum por cursos d’água que atravessam cidades e povoados do Brasil e do mundo. Tal idéia surge ao observar Recife de um ângulo diferenciado ao remar, pois atravesso variações seqüenciadas de paisagens que mais
parecem
outras cidades, ainda que seja a mesma. O potencial dessas paisagens variantes instiga minha vontade de emendar paisagens de um país que pouco se vê e, facilmente, alarga suas diferenças. Nesse sentido, pelo remar se torna possível experiênciar a incomensurabilidade adormecida no corpo brasileiro, e disto acordar as distancias, promover um quiprocó de sotaques, vagar por um tempo no amanhecer das feiras: inevitável traçado de uma errancia.
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As setas indicam o trajeto percorrido na realização das cinco remadas pelo projeto plus ultra em 2009 (Programa Bolsa de Incentivo a Produção Artística, Funarte-MinC/Artes Visuais,2008) ~6~
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Para atravessar um território de 8.547.403,50 quilômetros, expressando os mais diversos sotaques, intuí precisar de resistência, superação e vontade de vagância: Corpos tanto para remar, quanto para digerir múltiplas receitas e seguir em acordo com as exigências do barco, ou seja, manter a postura e a agilidade de movimentos. Entre os meses de dezembro de 2008 e janeiro de 2009, me dedico à rotina de preparação física e aquisição de informações sobre cada região, sobretudo referentes ao clima, condições das águas onde remar e localizações dos clubes, bem como suas regras de funcionamento. Escolho a cidade de Manaus como ponto de partida das remadas, pois soube que as enchentes na região norte, comumente ocorridas em março, foram previstas para o mês de fevereiro, e com maior intensidade do que anos anteriores. Assim, retorno ao meu ir e voltar na mais caudalosa paisagem, que sem soubesse, viria a ser retalhada pelas pás de remo do meu barco.
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∼∼∼ 1. 1. Manaus. RIO NEGRO. Chego no dia três de fevereiro, uma terça-feira. Já passam das dezesseis horas quando sigo para o hotel pensando logo dormir, pois no dia seguinte, às seis horas da manhã, me apresento no clube escolhido para remar. Sinto meu corpo retalhado, depois de encaixado por horas numa estreita poltrona de avião. Preciso descansar, sobretudo, por não saber como o clube acolherá minha proposta, e caso escute um “não”, seguirei sem rumo em busca de outro desconhecido clube. Na verdade, tal imprevisibilidade de recepção, faz parte da minha rotina desde que descartei contatar previamente os destinos de plus ultra. Por isso, não é a angustia da incerteza que me causa insônia na primeira noite em Manaus, mas sim o nervosismo diante do imenso exemplar da fauna local surgido no banheiro do quarto de hotel, um lacrau, vulgarmente conhecido como “piolho-de-cobra”, com cerca de trinta centímetros e cor avermelhada. Recebo o susto como
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saudações de boas vindas ao meu espanto, já experienciado pouco antes, quando da janela do quarto no hotel vejo a paisagem do incomensurável: a bacia amazônica.
∼∼∼ 2. Abominável é sentir medo. Neste estado, horror e tristeza se misturam induzindo o sujeito à sentir frio no calor, se vitimar, se confundir: Por que dispensei o assistente de trabalho que viajaria comigo ao longo do projeto? Como desmemoriada, demoro a retomar o motivo dessa decisão, que fora a relocação de recursos para aquisição de equipamentos. A vontade volta ao lembrar que havia potencializado a captação de imagens, e penso alto: estou aqui para isso. Ora, tudo pela arte! Trabalho no qual prevalece obsessões, até ver, ouvir, tocar, cheirar... Após o lacrau ser retirado por um funcionário indiferente a minha indignação, vivi uma longa noite entre cochilos risonhos e antecipações do novo dia, quando, ao primeiro raiar de sol, sigo não de pronto para o
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clube, mas antes, para outro hotel. E assim faço antes de chegar no clube as margens do Rio Negro, no bairro de Ponta Negra – região distante do centro da cidade, onde agora estou confortavelmente hospedada.
∼∼∼ 3. Ao entrar na hiperdimensão amazônica, a princípio sou tomada por um mal estar, como um mau agouro, ou pressentimento de um abrupto fim ao meu plus ultra. Somente após algumas horas percebo o motivo dessas sensações, sendo esse, tão somente, o contato com o inabarcável. Por mais que eu siga remando e remando, mantenho a sensação de não sair do lugar. E fico assim, até me render ao tempo do rio e seus instantes de distancias. Nos vídeos, esses momentos são sutilmente vistos pelas repetidas volutas a delinear o espelho negro sobre o qual remo.
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4. Quinto dia na cidade. A ampla paisagem de Manaus torna difícil a captação de imagens. Para extrair o que quero, preciso ficar por mais tempo, ou melhor, ficar sem tempo. Espero o clima melhorar.
∼∼∼ 5. Aqui, o tempo também é percebido como cicatriz na paisagem urbana, paisagem ora erma, ora excessiva. A presença da úmida e desleixada fartura do presente, por vezes, engana os olhos diante dos áridos resíduos de um passado não tão distante. Logo vejo esses tempos justapostos na cortina do meu primeiro quarto de hotel, de um amarelo desbotado, puído e de certo modo, encobre outra paisagem mais além da janela por ela descoberta. Isto porque, o quarto de odores duvidosos e quase em ruínas, situa-se no vigésimo andar de um edifício de linhas modernistas, bem ao gosto da arquitetura funcionalista como amplamente empregada nos
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anos setenta. Este hotel, agora abrigo de insetos medonhos, turistas desavisados e andarilhos errantes, já fora um bem freqüentado hotel da zona franca de Manaus – região de livre comércio de produtos importados e que serviu de emblema do milagre econômico brasileiro no período da ditadura militar. Período de alarde de projetos soberbos na região, sendo um dos maiores, a via transamazônica. Na minha infância costumava ganhar muitos presentes importados dessa zona franca, e somente agora vejo a paisagem que já imaginei como uma fábrica de brinquedos. De certo modo, da janela no vigésimo andar, pela miudeza das edificações em distancia, a fábrica imaginária surge por instantes. Mas não demoro a descer para ver a Manaus de um agora feito de rastros gloriosos, precisamente dois passados justapostos na conformação da paisagem, sendo esses a década de setenta do século XX e os anos da Belle Époque, do apogeu do ciclo da borracha, em fins do século XIX. Afora a espantosa suntuosidade do Teatro Amazonas,
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cuidadosamente conservado e tornado símbolo da cidade, o requinte da Belle Époque pouco é visto. Contudo, tal período se atualiza em histórias contadas sobre uma elite fumante de cigarros enrolados em notas de mil réis, elite que diante de tanta água, preferiu lavar as roupas sujas no além-mar da cidade de Lisboa. Os trinta fartos anos do ciclo da borracha, ainda hoje, alimentam o imaginário local acerca do que um sujeito rico pode fazer – fala das barcas, das bancas da feira e das recepções de hotéis. Histórias que provocam risos, ainda que encabule quando escutadas frente aos casarões ocos surgidos nas esquinas em silencioso desafio a gravidade. Fiozinhos de passado, aparentemente frágeis, tal como os gravetos espetados, que não raro, afundam barqueiros em distraídas travessias por igarapés.
∼∼∼ 6. Oitavo dia na cidade. Hoje não vou remar, e nem sair desse quarto de hotel. Intuo já não haver motivo para ficar, pois a forte e constante chuva, tudo impede. ~14~
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∼∼∼ 7. Logo reconheço minha boa sorte por conseguir remar no rio Negro. As fortes chuvas que vi escurecer o horizonte do mês de fevereiro, estavam apenas anunciando a maior enchente em Manaus nos últimos cinqüenta anos, com os rios da região subindo cerca trinta metros do seu nível. Até imagino a força das águas tomando os cenários manauaras, cenários de abruptos contrastes que mais parecem montagens de photoshop. Parte delas, suponho, submergiu mesmo por um breve tempo, e ao baixar das águas, novamente será visto o grande muro branco que tanto revela mansões à beira do Rio Negro, quanto esconde fortunas dos populares banhistas da praia local. E quanto ao clube, ou melhor, a garagem de remo? Como ela enfrentou o subir das águas? Uma garagem grande, porém suscetível a força das águas, tanto quanto a marina particular de um luxuoso hotel tropical, posto muro a muro com a garagem.
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∼∼∼ 8. As múltiplas paisagens do rio Negro não calam o quanto dele não vejo. Nessa travessia, caio em armadilhas do olhar e sou seduzida por estereótipos e exotismos. Contudo, me surge uma dúvida quanto ao que há de exótico no que se apresenta tanto como meio de vida, quanto “identidade”, cuja maioria do povo que habita essas águas considera de “boa sorte”. Serei eu a exótica aqui? Ou apenas mais uma moeda de troca na incomensurável hidrovia-Brasil?
∼∼∼ 9. Por querer ver o quanto a água escurece os corpos submersos, mergulho sem óculos apropiados. Tal desmesura me provoca um ardor nos olhos sentido por arrastados cinco dias. E assim, com tímido estranhamento, vi o mundo através da vermelhidão surgida nas águas do Rio Negro.
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∼∼∼ 10. Brasília. LAGO PARANOÁ. Para minha surpresa, no planalto central, se repete a paisagem do desolamento, dos vazios, e dos contrastes sociais vistos em Manaus. Também me senti longe de tudo, pois esse é um estado de ser em Brasília. A diferença que marca este mesmo lugar-Brasil é aqui, tudo ser projetado como coisa ideal, coisa feita para se tornar imagem que, vista por todos os ângulos, expõe a supremacia pela bela forma (como deve ser uma obra-prima).
∼∼∼ 11. A entrega do meu olhar ao remador, não raramente, surpreende pelos resultados dos registros. E sem dúvida, a maior das surpresas me ocorre em Brasília, quando assisto ao vídeo da passagem do barco sob a ponte JK. Incorporo de imediato as sensações do remador, ao fazer da câmera o instrumento do seu deslumbramento. Assim, seu olhar gira e faz explodir gigantescas e estáticas estruturas. Desse olhar ~20~
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solto, a ponte se torna um objeto referencial no remar do Paranoá, aparentando Plus Ultra ali se fazer somente para atravessá-la. Ao ver tais imagens, sou tomada pelo prazer de observar um trabalho cujo autor eu não conheço. E assim, reencontro autores de tempos que busquei sentido, autores que me disseram do equivoco de certas procuras. Ora, que importa quem olha o atravessar da ponte!
∼∼∼ 12. O cansaço me faz esquecer, a exaustão provoca vertigens. Meu corpo implora descanso e me lembra como fácil perco as coordenadas espaciais, desde a crise de labirintite sofrida em Belém, ao remar na Baía do Guajará. Essa aflição, ocorrida a cerca de seis meses, sinto como sendo agora, pois na fadiga, também, a marcação do tempo se esgota.
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13. Reconheço outra cidade nesta mesma cidade da minha infância. Infância esculpida em mim e não em formas que não mudam.
∼∼∼ 14. Enquanto guio rumo às minhas coordenadas de criança – SQS 202, bloco C –, olho para o meu braço esquerdo que, sob a luz de Brasília, mostra uma forte textura. Percebo que não retornarei onde há muito brinquei e apenas me pergunto: Qual a cor das cortinas nas imensas janelas do meu quarto? Estão iluminadas ao ponto de ressaltar suas dobras? Pego um atalho em sentido contrário a SQS 202...
∼∼∼ 15. Atravessando a ponte revejo o céu da minha infância. Aqui está ele, na sua impressão de proximidade e ainda povoado de monstros brincalhões.
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∼∼∼ 16. O céu azul sem nuvens e muito próximo. Após cada remada seguir para outras metáforas: Explosões a impregnar espaços e horas. Agora, enquanto o avião parte, lembro que a forma da cidade é feita para ser vista em sobrevôo e ouço, como mágica, a voz doce da professora ao incentivar delicadas mãos à desenhar traços, não raro tremidos, chamados de catedrais, palácios, plano piloto. E no ar, pouco antes de novo aterrissar, me pergunto: Ainda se ensina Brasília assim?
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∼∼∼ 17. Porto Alegre. LAGO GUAÍBA . Há muito me pergunto como é possível existir criações mais largas do que seus criadores. Tal como agora, enquanto sinto o que faço apertado em mim. Por vezes até lhe vejo por aí, livre das minhas amarras físicas e a gargalhar dos limites de meu mundo. Chego a me irritar, quando percebo sua velocidade ao saltar da cama em uma madrugada fria, enquanto eu não consigo despertar de nostálgicos planos de jovem mochileira. Mas, de súbito, me percebo acordada no extremo da minha limitada geografia: Em meio ao nada, na beira de um cais, nas bordas de mais uma cidade a escutar um murmúrio do mundo, na espera de uma barca, na espera de uma travessia (aqui, murmurarmundo é água batendo contra o cais, distantes buzinas de automóveis, conversas entre comedidas vozes, um vazio entre um instante e outro, a minha respiração).
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∼∼∼ 18. Enquanto espero a barca, inicio jogos mentais. Brinco com palavras e lembro de Blanchot falando de Heráclito –ou lembro de Heráclito e sou levada a Blanchot? Um e outro, agora, me lançam nos malabarismos verbais que agradam os Deuses. Estão eles despertos? Estão por aqui, neste lugar de dúvida e verdade? Lugarbeira, beira de um riolago: Rio que não é um rio e sim um lago, depois de sempre haver sido rio. Será que, por haver sempre sido rio, essas águas não deixarão de ser ditas rio, ainda que sejam lago? O tempo amplifica tal desconcerto, pois essas águas agorasempre nunca são as mesmas, sejam rio ou lago. O Guaíba, daqui de onde estou, a espera de uma barca que me levará a outra margem que também é outra ilha, daqui desta espera, o Guaíba sorri como um Deus. Decerto Blanchot e Heráclito estão ao mesmo tempo ocupando este mesmo espaço, pois não vejo Heráclito sem ver Blanchot, que fala da escrita de
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Heráclito como um jogo, onde cada frase é um cosmo. Aqui lembro meu sonho de uma escrita entre o grito e o silêncio, escrita de uma fala, como disse Blanchot, que agrada os Deuses. Heráclito e Blanchot: sonharei suas vozes algum dia?
∼∼∼ 19. Apontamentos de uma espera (I). A barca está próxima – é uma grande barca, parecida com os rebocadores do cais do Recife. E não estou enganada, ou estou? A barca é mesmo a barca? Enquanto espero converso com o vigilante da estação, pergunto se esta calmaria de hoje é comum, ao que ele responde sim. Vejo outras pessoas chegando e percebo haver esquecido os óculos escuros no hotel. Com os olhos ardidos na luz intensa deste fim de tarde, reconheço estar um tanto atrapalhada.
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20. Apontamentos de uma espera (II). Esse rio é enorme e não é um rio, é um lago. O rio Negro é enorme e não é um mar, é um rio. O Tiete é um rio que não é mais rio, pois está morto. Vou parar de escrever, chegaram remadoras. Mulheres! Vou tentar conversar com elas, enquanto a barca não chega.
∼∼∼ 21. Embarco na espera de conseguir conversar e convencer o professor de remo sobre o trabalho. Acaso tudo corra bem, amanhã, por essas horas, vou fazer a primeira captação em meio a esse irradiante e avermelhado crepúsculo.
∼∼∼ 22. Talvez tudo mude com essa viagem e no momento, só me resta relaxar antes do próximo embarque. Hoje vim almoçar em um típico restaurante gaúcho, onde agora escrevo essas
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impressões de partida. Remei até ainda há pouco, e ao final percebi que venho agravando os excessos com meu corpo.Já o desconheço, e bem sei o quanto posso ser penalizada por esta alimentação desorganizada. Ando me aventurando, e se continuar assim, arrisca desse projeto não ir mais além. Exemplo disso é me encontrar nesse galpão à espera de um suculento corte de carne – muita carne, afinal continuo no combate! E apesar da notória exaustão, me sinto mais instigada do que quando cheguei. Isto porque, aqui em Porto Alegre, tive experiências bastante diferenciadas sobre esporte. Vivenciei questões teóricas que me interessavam, mas que pareciam distantes do meu campo de ação. Parto motivada para estudar sobre como o corpo se organiza em estados de hibernação, concentração, e treinamento intensivo, sobretudo quando realizados em contato com a natureza. Esta idéia me surge no centro de treinamento intensivo da Ilha do Pavão, ao ficar atônita com o prazer de todos que por lá estavam. O ambiente é indescritível (me
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imaginei no Olimpo). Já entrei em garagens de remo que presenciei um estado de guerra, com sangue em suspensão. Aqui, ao contrário, deparei com um ambiente tranqüilo, onde havia algo que entendi como concentração objetivada, ou seja, um estado diferenciado de relacionamento entre as pessoas, e pessoas obcecadas pelo que fazem. Há corpo atlético entregue – finalmente encontrei isso. Voltarei um dia, quero voltar, preciso voltar. Estou confusa, sei do que se trata: disciplina (me arrepio ao admitir). Mas preciso voltar onde a disciplina me desalinhou. Contudo, bem sei ter sido seduzida pela obsessão que circulava risonha entre aqueles corpos – sempre busco esse sorriso e aqui, o encontro em meio a disciplina! Talvez tudo mude depois disso. Intuo que o processo seja engrenado pela obsessão, e depois vem o resto. Que jogo! Estruturas de obsessão que disciplinam o corpo-atleta, ou melhor, o sujeito atlético. Agora me pergunto: Como é possível seguir sem obsessão e se manter tomado de uma alegre vontade própria?
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∼∼∼ 23. Conheci um futuro grande remador que, segundo opinião de um reconhecido treinador, possui um grave problema – “Qual problema?”, perguntei. A resposta: “Ele tem medo da dor”. Um dia antes dessa conversa, eu havia remado por uma hora em um barco mal regulado para mim, e isto me causou dores terríveis, mas que adormeceram ao longo da remada. Quando cheguei ao hotel e tirei a grossa meia para fazer um escalda-pés, lembrei da dor ao ver minha perna com uma ferida feita no trilho do carrinho do skiff. Agora, já alimentada, volto ao hotel para fechar a conta e partir para a próxima remada. Tenho a sensação que meu trabalho começou agora. Serei mais artista-atleta por ter suportado dores intensas? Continuo com fome de carne.
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24. Deixei o por do sol no Guaíba prevalecer em grande parte do vídeo. Um rastro vermelho no céu, em contraponto com o skyline da cidade: Espelhos que não se refletem – imagem
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∼∼∼ 25. Rio de Janeiro. LAGOA RODRIGO DE FREITAS. A curiosa sensação de remar num cartão postal é o grande diferencial do processo nessa bela lagoa. Colocar em jogo esse tipo de imagem é bastante difícil, pois se trata de extrair da imagem-clichê outra imagem, e isso com potencia de por em movimento o que o cartão postal cristaliza. Enquanto trabalho imersa em um cristal do Brasil, reflito sobre essas palavras: “Os
criadores
obsedantes,
espaços
inventam vazios
enquadramentos
ou
desconectados,
até mesmo naturezas mortas: de certo modo, eles param o movimento, redescobrem a força do plano fixo, mas não seria, isso, ressuscitar o clichê que
queriam
vencer,
combater?
parodiar
o
Não
basta,
clichê,
nem
decerto, mesmo
para fazer
buracos nele ou esvazia-lo. Não basta perturbar as ligações sensório-motoras. É preciso juntar, à
imagem
são
as
ótico-sonora, de
intelectual,
uma nem
forças
imensas
consciência
mesmo
social,
não
simplesmente mas
profunda intuição.” (Deleuze, 1985, p.32). ~38~
que de
uma
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∼∼∼ 26. Por dias, em voz alta, me pergunto: Como remar quebrando cristais?
∼∼∼ 27. Aqui é sempre assim: relembro de gostos, retomo desejo de continuar e vontade de fazer. Lembro haver escrito atrás de mim: Querer Viver.
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28. Curiosa coerência é o fato de estrelas ser tomadas como metáfora de pessoas famosas. Afinal, ambos corpos ficam ali, resguardados em aparente suspensão e latejando a fantasmagoria de um tempo assombroso, no qual se acredita viver eternamente.
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29. O estar à vontade diante de uma câmera é próprio da experiência do carioca. Essa caracterista facilita muito quando me apresento ao Clube Botafogo de Futebol e Regatas. Por todo meu ritual de chegada, este foi o que mais indiferença obteve por parte dos dirigentes e mais entusiasmo por parte dos remadores, que viram a oportunidade de serem filmados em suas performances atléticas. Mas a indiferença dos dirigentes não implica em algum tipo de dificuldade, ao contrário, minha proposta é vista com extrema receptividade, porém sem estranhamento, sem questionamento algum. Assim sou recebida no Rio: Fique a vontade. Ao final, ao me despedir compartilhando dos resultados com todos, para minha surpresa, sem indiferença recebo convite para filmar os atletas em competição na maior regata do país. Respondo sim e fico de continuar a conversa outro dia. É isso – vamos combinar um retorno.
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30. Há algo, no modo de ser carioca, que deixa transparecer uma certa disponibilidade ao instante e ao acaso. Alguns dizem que isto decorre da presença impregnante da mídia na cidade, de modo que a qualquer momento, qualquer um, está fadado tornar-se visto por milhões de pessoas. É o império da fama e dos quinze minutos de Warhol. E isto, parece explicar a pronta beleza que se expira no Rio de Janeiro e nas suas calçadas, ou melhor, locações de folhetins televisivos. Mas será apenas isso? Ou aqui, nesta disponibilidade de ser imagem, não há uma outra forma de conduzir a vida?
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31 A garagem no Botafogo não deixa dúvidas sobre o local do remo na história da cidade – ele faz parte da memória, é agente e agenciador de relações sociais. Impossível não parar diante de duas enormes paredes com fotos e recortes de
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jornais emoldurados e colocados lado a lado, tal como se expõe um memorial. A experiência estética engrenada por essas imagens, me leva apreender Plus Ultra, também enquanto um projeto de memória, pois arrasta paisagens e histórias tal como essa dormente parede de contemplação. E meu grande desafio é fazer uma parede fluída como água, pela qual seja possível uma contemplação não passiva, e sim instigadora de imaginação sobre formas de se apresentar ao mundo e contar mais uma outra história.
∼∼∼ 32. Mesmo chovendo, a paisagem carioca não adere ao frio. Contudo o frio me faz remar branca, com roupa de cobertura térmica. Somente depois de alguns dias uso meu uniforme que expõe pele e osso, na surpreendente manhã de sol do meu último dia na cidade. Nos primeiros dias no Clube, contei com um atleta juvenil para ser meu remador câmera. Ainda ansioso no barco, isto resultou em algumas
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horas de imagens balançadas, cheia de voluptuosidades que mais pareciam contrariar o bem delineado horizonte em curvas da cidade. Mas a performance mesmo, a grande remada, ocorreu com um atleta de elite, rapaz que só quer remar. O vídeo registra tudo, tudo o que um jovem atleta remador quer da vida – viver sobre a incandescência das águas, até quando for possível, e como por ele me foi dito: Até quando aquele de braços abertos, na frente da câmera, na nossa ré, até quando ele quiser.
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∼∼∼ 33. Salvador. BAIA DE TODOS OS SANTOS . Em Salvador tenho um encontro diferente com a proposta de perversão na imagem-clichê, pois reencontro a face desconfortável das paisagens urbanas. Remo na periferia, numa região que parte dos habitantes da cidade desconhece, ou não tem interesse em ver. Vejo muito mais do que as câmeras registram, pois remar nas margens de algumas áreas desta imensa região é inviável, em decorrência de excessos de detrito e da presença excessiva de banhistas e embarcações. Atravesso dias estranhos, com muita chuva e umidade. Mantenho o esforço em ficar, somente na busca de registrar o que não se vê. Supero o cansaço ao me abraçar a oportunidade de remar fora dos cartões postais que espalham a imagem da capital baiana pelo mundo afora.
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34. Remo no mar, e logo no primeiro dia, remo durante uma tempestade. Momentos que coloco a prova meus receios e comprovo a inexistência de razões para preconceitos, pois remo com uma atleta, uma mulher nordestina como eu, ainda que diferente de mim, ela seja uma remadora experiente. Precisamos usar muito das nossas forças para segurar o barco no meio do vendaval, que repentinamente, toma a Baia de Todos os Santos. Confesso o prazer imenso que sinto quando volto à garagem e encontro os rapazes boquiabertos com nossa coragem. Percebo haver sido aceita neste Clube. Infelizmente, o registro em vídeo desta remada fica péssimo, quase sem imagem, somente pelo áudio captado, ainda que com muita interferência do vento, é possível ter idéia do que acontece. Este problema ocorre logo no inicio da remada, pois o capacete, com a oscilação do skiff, acaba por se deslocar na cabeça de Bethânia, e a câmera fica voltada para cima. Tenho agora cerca de quarenta
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minutos de imagem de um céu atípico à cidade de Salvador. Intuo haver lavado meu corpo, logo de chegada, por todos os santos que dão nome as águas dessa cidade.
∼∼∼ 35. Ao final do dia, ouço minhas vísceras através de um alto suspiro, cujo atleta que me acompanha, compara com o que ele costuma dar ao atravessar uma linha de chegada nas regatas de competições. Largo um sorriso com sua tradução, mas lhe digo ser meu suspiro, tão somente, sopro da vontade de outro lugar, vontade de outro remar.
∼∼∼ 36. Ao desarmar o skiff, olho para os horizontes da Baia de Todos os Santos, que cinzentos, já prometem nova tempestade.
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UMA FALA SOBRE O PROJETO
Nós, errantes. Escritos de Existência + Falas de uma artista abarca três ações: implementação do website www.noserrantes.com; apresentações de performances-palestras e a publicação de uma coleção de cinco livretos de artista. A articulação entre essas ações se faz através do processo artístico plus ultra, pelo qual venho atravessando paisagens de cidades do Brasil em um barco a remo (doublé-skiff). Isso porque, o exposto no projeto são fragmentos escolhidos em meio à produção surgida no correr dos sete anos da execução de plus ultra (2006-13). Nesse sentido, o projeto se realiza nas cinco regiões do país, tal como antes, entre 2008 -09, quando plus ultra foi agraciado na primeira seleção deste Edital.
Já o material presente nos livretos (escritos e imagens), quase na sua totalidade, surge da tese de doutorado Plus Ultra: o corpo no limite da comunicação, desenvolvida entre os anos de 2008 e 2012 no Programa de Pós-graduado em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Por essa tese tenho a oportunidade, com a preciosa orientação da Profa. Christine Greiner, de investigar o processso plus ultra através do campo transdisciplinar dos estudos do corpo. Não a toa, ao longo dos cinco livretos,
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deslizam variadas narrativas e contextos dos quais emergem expressões e referencias de diversos áreas de conhecimento, ou melhor, de tantas formas de pensar e agir. Mas aqui, o proliferar de idéias é tão somente um meio de afirmar a arte como potencia de reinvenção de mundos e modos de viver, no caso, viver a vida de artista. Ao explorar através do projeto Nós, Errantes as resultantes da experiência alargada e contínua do processo plus ultra, busco também, o desdobrar de outras possibilidades artísticas, agora pela justaposição de ações voltadas à por em relação a metáfora do [meu] remar. Assim, por essa escrita, proponho que o deslizar fluído do barco seja uma outra via de pensar a nossa atual condição de vida de artista. E que por essa via, os bons ventos da errancia faça da arte também exercício do que poderíamos chamar de força alocutária: força capaz de estreitar, ou mesmo anular as distancias entre o dito e o vivido. Oriana Duarte Recife, setembro de 2013
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Realização: Ministério da Cultura Fundação Nacional de Arte – Funarte Presidente: Gotschalk da Silva Fraga – Guti Fraga Apoio Institucional: Universidade Federal de Pernambuco Reitor: Prof. Anísio Brasileiro de Freitas Dourado Pró-reitoria para Assuntos de Pesquisa e Pós Graduação Pró-reitor: Prof.Francisco de Sousa Ramos Editora Universitária – UFPE Diretora: Profa. Maria José de Matos Luna Agradecimentos: Atletas com os quais remei, treinadores dos clubes que me receberam e amigos que acolheram, sob diversas formas, as minhas remadas ao longo desse processo. Dedico os risos que atravessam essa errancia, as belas memórias que impulsionam meu barco: minha mãe Evanilde Duarte e o mestre Prof. Ivan Assumpção de Macedo. Informações Gráficas: Formato: 10,5cm x 14,8cm Tipologia: Trebuchet MS Courier New Goudy Old Style Papel: Miolo: Off-set Azul 75gr Capa: Off-set 240gr Tiragem: 1000 Exemplares Montado e Impresso na oficina gráfica da
Av. Acadêmico Hélio Ramos, 20 Cidade Universitária, Recife – PE. CEP.: 50740-530 Fax: (0xx81) 2126.8395 Fones: (0xx81) 2126.8397 | 2126.8930 www.ufpe.br/edufpe - livraria@edufpe.com.br
Distribuição Gratuita, Proibida a Venda.