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Adriano Correia

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Sobre os autores

Sobre os autores

Prefácio

Adriano Correia5

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Os primeiros filósofos estabeleceram um profundo diálogo entre si, e logo que se consolidaram as primeiras escolas de filosofia propriamente ditas, esse diálogo também se instalou nas relações entre mestres e discípulos. Sócrates foi decisivo na articulação temática e metodológico do pensamento platônico e inspirou vivamente a obra de Platão, mesmo quando ele afinal demarcou sua distância em relação a seu mestre. Aristóteles, por sua vez, quando julgou ter de divergir de seu mestre Platão, teria dito que, embora amigo do mestre, era mais amigo da verdade. Mas ele dialogava intensamente com os filósofos que o antecederam, de cujas posições se aproximava ou divergia com notável interesse. Além disto, julgava que a própria amizade é decisiva para a vida boa humana, o que certamente incluía a atividade filosófica. Encontramos relacionamentos desta natureza – na proximidade do acordo e da dissensão – ao longo de toda a história da filosofia.

Frequentemente os leitores das obras filosóficas estabelecem com seus autores uma relação de reverente admiração e os tomam como mestres de seus próprios percursos de formação – não inteiramente à revelia das pretensões dos que se põem a registrar por escrito suas reflexões e conclusões, mesmo que provisórias, sobre seus próprios percursos na filosofia. Não é menos frequente, todavia, que os filósofos se meçam com as obras de seus antepassados em uma relação intensa de apropriação, rechaço, aproximação e distanciamento. Mas é certo que dessas interações estabelecem-se parcerias e antagonismos que são definidores para o modo como

5 Professor de filosofia da UFG. Presidente da ANPOF (2017-2020).

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A filosofia orientada

cada filósofo compreende seu próprio lugar na história da filosofia e em sua própria época.

A despeito da tão propalada e legítima necessidade de a filósofa ou o filósofo estarem sós quando filosofam, desde o início a filosofia é sempre em alguma medida uma atividade comunitária, seja no desenvolvimento e aprimoramento de conceitos e argumentos no debate público, seja nos pequenos círculos aos quais pensadoras e pensadores submetem suas reflexões, seja na escrita de textos aos quais reagem uma comunidade de interessados, seja no diálogo com a história da filosofia, seja no relacionamento entre professores e estudantes, do qual a relação de orientação é um tipo muito especial. Nietzsche escolheu como epígrafe de A gaia ciência uma quadrinha que ele dizia ser a inscrição que constava sobre sua porta:

Moro em minha própria casa, Nada imitei de ninguém, E ainda ri de todo mestre, Que não riu de si também6 .

Este bem poderia ser o emblema da “filosofia orientada”. A relação de orientação é uma experiência marcante tanto para quem orienta quanto para quem é orientado e certamente é mais bem sucedida quando a desigualdade nas trajetórias é inspirada pelo desejo de transfiguração da desigualdade em horizontes de criação sempre novos, guiados pela igualdade desejada e pela emancipação da própria relação mestre/discípulo. O que Nietzsche demarca com seus versos é justamente o rechaço ao cultivo da assimetria mestre/ discípulo que ele tanto tensionou em sua obra, como em vários momentos de Assim falou Zaratustra – a filosofia não parece ser o lar no qual mestres que não riem de si mesmos possam se sentir

6 F. Nietzsche, “A gaia ciência”, in: Obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 171. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho.

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inteiramente à vontade, o que pode explicar parte do ressentimento dos gurus com ela. Resta saudar os colegas organizadores e autores desta bela iniciativa, pela celebração, em uma obra coletiva, de uma das experiências acadêmicas mais e inspiradoras: a de orientação.

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