Universidade do Minho Escola de Direito
ANUÁRIO PUBLICISTA DA ESCOLA DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO MINHO Tomo II, Ano de 2013 – ÉTICA E DIREITO
ESCOLA DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO MINHO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS PÚBLICAS BRAGA 2014
ANUÁRIO PUBLICISTA DA ESCOLA DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO MINHO Tomo II, Ano de 2013 – ÉTICA E DIREITO
Título: Anuário Publicista da Escola de Direito da Universidade do Minho – Tomo II, Ano de 2013 – Ética e Direito Coordenação: Joaquim Freitas da Rocha Edição: Departamento de Ciências Jurídicas Públicas Escola de Direito da Universidade do Minho Campus de Gualtar 4710-057 Braga Telefone: 253 601 800 / 253 601 801 Fax: 253 601 809 e-mail: sec@direito.uminho.pt URL: http://www.direito.uminho.pt ISBN: 978-989-97970-3-1 Data: Março de 2014
(*) Esta publicação segue as regras do novo acordo ortográfico, salvo indicação contrária em alguns textos.
Índice ANA TERESA CARNEIRO – Entre as duas faces de Janus: o recurso extraordinário de revisão, em particular, as alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 449.º do Código de Processo Penal ……………………………………………
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ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA – Competências próprias e delegadas das freguesias: uma desigualdade inaceitável …………………………
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CLÁUDIA FIGUEIRAS – A prevenção do conflito tributário: a importância de uma ética tributária (?)…………………………………………….
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FERNANDO CONDE MONTEIRO – Ética e direito penal (Reflexões epistemológicas sobre as relações entre ética e direito penal em face do direito positivo português) ………………………………..
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ISABEL CELESTE M. FONSECA – A revisão do Código do Procedimento Administrativo: pontos (mais) fortes e pontos (mais) fracos ……………………….
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JOANA COVELO DE ABREU – O procedimento europeu de injunção de pagamento: solução simplificada de cobrança de créditos transfronteiriços? ……………………………………………………………...
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JOÃO SÉRGIO RIBEIRO – A diretiva relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade ……………………………………………………………...
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JOAQUIM FREITAS DA ROCHA – Contributo para um conceito de democracia plena ………………………………………………………………………..
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PEDRO CRUZ E SILVA – Uma análise (também crítica) do “novo” princípio da boa administração no projecto de revisão do Código do Procedimento Administrativo ……………………………………………
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SOPHIE PEREZ FERNANDES – O Tribunal de Justiça e o respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros ……………………….
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TIAGO LOPES DE AZEVEDO – O direito das contraordenações e o princípio da proibição da reformatio in pejus: em especial, a Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, o Código dos Valores Mobiliários e o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeira …………….
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Colaboram nesta publicação
Ana Teresa Carneiro
António Cândido de Oliveira
Cláudia Figueiras
Fernando Conde Monteiro
Isabel Celeste M. Fonseca
Joana Covelo de Abreu
João Sérgio Ribeiro
Joaquim Freitas da Rocha
Pedro Cruz e Silva
Sophie Perez Fernandes
Tiago Lopes de Azevedo
Entre as duas faces de Janus: o recurso extraordinário de revisão, em particular, as alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 449.º do Código de Processo Penal
Ana Teresa Carneiro
Sumário: I. Considerações introdutórias; II. O recurso extraordinário de revisão entre o erro e a justiça; III. A fraude à justiça enquanto fundamento do recurso extraordinário de revisão; IV. Considerações finais.
I. Considerações introdutórias Tendo por cenário o tema “Ética e Direito” e partindo, ab initio, da estreita ligação entre os conceitos de ética, direito e justiça, a presente publicação recupera um tema que nos é caro – o recurso extraordinário de revisão (1). O recurso extraordinário de revisão evidencia-se não apenas por se tratar de um mecanismo de correcção da injustiça da decisão judicial, mas sobretudo por se tratar de um mecanismo de correcção de matriz extraordinária, dirigido, portanto, a decisões já transitadas em julgado. A este carácter excepcional acresce ainda o facto de a revisão se traduzir no último reduto de eliminação ou, pelo menos, de superação, do erro judiciário, nomeadamente em todas as situações em que esse erro advém de falha grosseira no sistema de justiça ou, em particular, dos seus intervenientes. Serão estes, aliás, os casos que merecerão enfoque neste trabalho, em sede de análise das alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 449.º do Código de Processo Penal (2), onde é admitida a revisão de uma decisão judicial já transitada em julgado com base na falsidade de meios de prova que lhe foram determinantes ou com base em crime cometido por juiz ou jurado no exercício das suas funções no processo. Centrando o nosso artigo nas ideias supra referidas, e atendendo às limitações de dimensão que lhe são naturalmente impostas, procuramos, num primeiro plano, tecer algumas breves considerações sobre o recurso extraordinário de revisão e a sua posição no sistema de justiça penal, considerações que ultra(1) Veja-se CARNEIRO, Ana Teresa, Dos Fundamentos do Recurso Extraordinário de Revisão, Rei dos Livros, Lisboa, 2012. (2) De ora em diante, designado “CPP”.
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passam a mera conceptualização deste recurso e que se focam essencialmente no regime legal e constitucional que lhe é inerente. Contudo, como é nossa pretensão neste estudo enfatizar o recurso extraordinário de revisão, enquanto mecanismo de superação do erro judiciário resultante de fraude à justiça, o destaque é dado ao regime legal previsto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, não esquecendo ainda os possíveis constrangimentos constitucionais que destes preceitos podem resultar.
II. O recurso extraordinário de revisão entre o erro e a justiça O recurso extraordinário de revisão, previsto no n.º 6 do art. 29.º da Constituição da República Portuguesa (3) e nos arts. 449.º e segs. do CPP, uma vez autorizado, possibilita, não um reexame do anterior julgado, mas sim um novo julgamento da causa e a obtenção de uma nova decisão judicial (4) que se substitua a uma outra já transitada em julgado, afastando portanto o caso julgado e excepcionando o princípio do ne bis in idem (previsto no n.º 5 daquele art. 29.º). Com o valor do caso julgado – protegido pelo princípio do ne bis in idem e desafiado pelo recurso extraordinário de revisão –, procura-se a estabilidade e a definitividade das decisões judiciais, prevalecendo na base deste instituto a importante finalidade de segurança jurídica. Quer isto dizer que, uma vez transitada em julgado a decisão judicial, não poderá esta ser alterada, independentemente da sua justiça ou injustiça, pois que essa decisão “deve ser respeitada como depositária da verdade (“res judicata pro veritate habetur”)” (5), verdade que sabemos tratar-se de uma verdade formal, nem sempre coincidente com a verdade material (6). Daí que situações existem em que a segurança jurídica se con(3) De ora em diante designada “CRP”. (4) E não obrigatoriamente uma decisão em sentido inverso à decisão revidenda. (5) MIRABETE, J. Fabbrini, Processo Penal, Editora Atlas, São Paulo, 2002, p. 672. (6) Se não há dúvidas que o processo penal intenta recuperar a verdade material, muitas dificuldades se suscitam a este nível. Para um maior desenvolvimento sobre a verdade em processo penal v. CALHEIROS, Maria Clara, “Prova e Verdade no Processo Judicial”, in Revista do Ministério Público, 114, Ano 29, Abr.-Jun. 2008, CONDE MONTEIRO, Fernando, “O problema da verdade em direito processual penal (considerações epistemológicas) ”, in Que Futuro para o Direito Processual Penal? – Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra Editora, 2009, pp. 321 e ss. e CUNHA, José Damião da, “Ne bis in idem e exercício da acção penal”, in Que Futuro para o Direito Processual Penal? – Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra Editora, 2009, pp. 564 e ss. 8
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segue “com possível sacrifício da justiça material” ou “eventual detrimento da verdade” (7), o que, em certos casos, poderá colocar-nos perante uma “segurança do injusto” (8). Mas veja-se que se a segurança jurídica é um dos fins do processo penal, não é o único, e terá que ceder perante exigências de justiça. Recuperando as sempre actuais palavras de CAVALEIRO DE FERREIRA (9) “o direito não pode querer e não quer a manutenção duma condenação, em homenagem à estabilidade de decisões judiciais, a garantia dum mal invocado prestígio ou infalibilidade do juízo humano, à custa de postergação de direitos fundamentais dos cidadãos (10)”, pois que será a própria realização da justiça a perigar com a irrazoável estabilidade de certas decisões judiciais, principalmente quando feridas de erro judiciário. É verdade que o CPP português prevê um conjunto de mecanismos capazes de impedir ou, pelo menos, diminuir a ocorrência do erro judiciário (11). Mas é também verdade que estes mecanismos preventivos são falíveis, pelo que a devida atenção deverá ser igualmente dada aos mecanismos correctivos do erro judiciário, aqueles que visam reparar as consequências do erro já consumado (12) (13). E, dentre os mecanismos correctivos do erro judiciário, especial relevo assume o recurso extraordinário de revisão, enquanto mecanismo correctivo último, isto é, a operar quando o erro superou todos os outros mecanismos, preventivos e correctivos.
(7) CORREIA, Eduardo, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Coimbra, Atlântida, 1948, p. 7. (8) FIGUEIREDO DIAS, J., Direito Processual Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1974, p. 44. (9) CAVALEIRO DE FERREIRA, “Revisão Penal”, in Scientia Iuridica, Tomo XIV, 1965, p. 520. (10) Acerca do paradigma processual penal respeitante aos direitos fundamentais e a sua (i)mutabilidade, v. LOUREIRO, Flávia Noversa, “A (i)mutabilidade do paradigma processual penal respeitante aos direitos fundamentais em pleno séc. XXI”, MONTE, Mário Ferreira, “Um olhar sobre o futuro do direito processual penal – razões para uma reflexão” e FIGUEIREDO DIAS, Jorge, “O Processo Penal Português: problemas e prospectivas”, in Que Futuro para o Direito Processual Penal? – Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra Editora, 2009, pp. 269 e ss., 399 e ss. e 805 e ss., respectivamente. (11) Como o são, p. ex., as exigências da denúncia, as garantias de isenção e imparcialidade dos tribunais e as regras sobre admissão e produção de prova. (12) Designadamente o habeas corpus, os recursos ordinários, o recurso extraordinário de revisão e o tratamento indemnizatório por erro judiciário. (13) As consequências da ocorrência de erro judiciário são particularmente nefastas no processo penal, especialmente quando referidas a uma privação injusta da liberdade.
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Assim, admite o n.º 1 do art. 449.º do CPP a revisão de sentença (14) já transitada em julgado quando: a) a sentença a rever se tenha fundado em meios de prova comprovadamente falsos; b) tiver sido judicialmente comprovado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo em que foi proferida a decisão revidenda; c) houver inconciliabilidade dos factos provados na sentença a rever e nos provados noutra sentença; d) se descobrirem novos factos ou novos meios de prova; e) provas proibidas serviram de fundamento à condenação a rever; f) tiver sido declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha fundamentado a condenação revidenda; g) tiver sido proferida por uma instância internacional sentença vinculativa do Estado Português, inconciliável com a decisão a rever ou que sobre a sua justiça suscite graves dúvidas (15). Embora o regime legal da revisão não se encontre isento de dúvidas e dificuldades, designadamente ao nível da sua conformação constitucional, restringimos a nossa análise, de ora em diante, ao regime do recurso de revisão fundamentado nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 449.º do CPP.
III. A fraude à justiça enquanto fundamento do recurso extraordinário de revisão Como aqui se anteviu, é fundamental à concretização do direito à justiça o acto de julgar. Na verdade, a justiça ou injustiça de determinado caso concreto é, desde logo, aferida a partir da solução que lhe foi oferecida no final do respectivo julgamento, pelo que o acto de julgar, enquanto “acto nobre que deve frutificar em justiça” (16), só pode estar orientado para a obtenção de decisão justa, decisão que se materializa na sentença ou acórdão, em relação aos quais
(14) Muito embora o n.º 1 do art. 449.º do CPP apenas se refira a sentença, por maioria de razão e por se tratarem de sentenças em sentido próprio, são igualmente passíveis de revisão os acórdãos (quer proferidos por tribunais de primeira instância, quer por tribunais superiores, neste último caso desde que conheçam de matéria de facto). São também passíveis de revisão, por força da equiparação consagrada no n.º 2 do art. 449.º do CPP, os despachos (judiciais) que tenham posto termo ao processo. (15) Os fundamentos previstos nas alíneas a) a d) do n.º 1 do art. 449 do CPP são os já previstos na versão originária do CPP, enquanto que as restantes alíneas e) a g) foram introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que veio alargar o âmbito da revisão. (16) FERREIRA, J. O. Cardona, “O Direito Fundamental à justiça. Um novo paradigma de justiça?”, in Revista Julgar, n.º 7, 2009, p. 52. 10
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impôs o legislador inúmeras cautelas (17), não apenas no que concerne aos seus aspectos formais, mas sobretudo materiais (18). O que facilmente se compreenderá se atendermos ao facto de ser na sentença ou acórdão que se espelha a realização do direito penal e da necessidade de a tornar merecedora da aceitação e confiança por parte da comunidade. Efectivamente, é condição de êxito do sistema de justiça a confiança nele depositada pela generalidade dos cidadãos que esse mesmo sistema serve. E se a comunidade deverá confiar no sistema de justiça, terá que confiar na verdade e justiça das decisões judiciais, que, além do mais, resumem todo o processo de formação da convicção do juiz (ou juízes). É neste plano que assumem relevância as alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, que admitem a revisão de decisão judicial, com base na comprovação judicial da falsidade de meios de prova que foram determinantes à decisão a rever e na comprovação judicial de crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo. Em ambos os casos, e em termos materiais, do que se trata é de garantir o interesse da sociedade na boa administração da justiça e, secundariamente (ou, pelo menos, paralelamente) de assegurar o interesse das pessoas directamente implicadas na eventual injustiça da decisão (19). Pois que tendo sido a decisão revidenda formada numa base probatória falsa ou resultante da actuação dolosa do julgador, essa decisão encontra-se inevitavelmente afectada desde o seu nascimento, fruto dos vícios ocorridos durante o processo de formação da convicção do tribunal. Ora, daqui só pode resultar o desprestígio do próprio sistema judicial e a consequente frustração das expectativas da comunidade na boa administração da justiça, o que só se solucionará através do questionamento da decisão irremediavelmente desacreditada (20). Vejamos, mais de perto, cada um daqueles fundamentos de revisão. A alínea a) do n.º 1 do art. 449.º consagra a admissibilidade do recurso de revisão quando “uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado (17) V.g. arts. 374.º a 376.º do CPP. (18) A inobservância dos requisitos prescritos para as sentenças penais poderá, como se sabe, determinar uma mera irregularidade ou a sua nulidade. Para maiores desenvolvimentos, v. SIMAS SANTOS, M., LEAL-HENRIQUES, M. e SIMAS SANTOS, J., Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, Lisboa, 2010, pp. 430 ss. (19) Vd. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 9 de Dezembro de 2010, proc. n.º 92/08.4GAEPS-A.S1 (ac. disponível no site www.dgsi.pt). (20) Vejam-se, a este propósito, os Acórdãos do STJ de 10 de Janeiro de 2003, proc. n.º 02P4093 e de 13 de Setembro de 2007, proc. n.º 07P2281 (acs. disponíveis no site www.dgsi.pt).
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falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão” a rever, portanto, quando a base probatória em que assentou a decisão for comprovadamente falsa. Refere-se aqui o legislador a qualquer meio de prova (21), cuja falsidade (22) tenha sido judicialmente declarada através de sentença – penal ou não penal, condenatória ou absolutória –, já transitada em julgado. Quanto a esta última imposição – trânsito em julgado da sentença –, lembremo-nos estar perante um recurso extraordinário, pelo que só uma decisão judicial transitada em julgado terá força suficiente para abalar a convicção do tribunal relativa à base probatória da decisão revidenda, uma vez que só aí a falsidade dos meios de prova se encontra efectiva e definitivamente comprovada (23). Mas acrescenta o legislador que os meios de prova declarados falsos “tenham sido determinantes para a decisão a rever”, referindo-se, seguindo o entendimento já acordado na vigência do CPP de 1929 (24), a todos aqueles meios de prova que concorreram na decisão, por forma decisiva, fundamental e necessária, ainda que não exclusivamente, isto é, mesmo que em resultado da “conjugação ponderada de vários meios de prova” (25). Bastará, então, que o meio de prova declarado falso tenha, por qualquer forma, influenciado a decisão (26), de tal maneira que, se aquela prova não tivesse sido invocada, a decisão (21) Cabem aqui todos os meios de prova contemplados no CPP (v. arts. 128.º a 170.º – testemunho, declarações do arguido, do assistente e das partes civis, acareação, reconhecimento, reconstituição do facto, perícia e documentos), contrariamente ao que sucedia no art. 673.º do CPP de 1929, onde taxativamente se elencavam “quaisquer depoimentos, declarações de peritos ou documentos”. (22) Falsidade que pode traduzir-se na mentira ou manipulação dos testemunhos, declarações e depoimentos e a adulteração ou produção de documentos, entre outros. A título de exemplo, vejam-se os Acórdãos do STJ de 23 de Março de 2006, de 13 de Setembro de 2007 e de 9 de Dezembro de 2010, proc. n.º 06P114, n.º 07P2281 e n.º 92/08.4GAEPS-A.S1, respectivamente (acs. disponíveis no site www.dgsi.pt). (23) O Acórdão do STJ de 7 de Julho de 2009, proc. n.º 60/02.0TAMBR-A.S1 sumaria, a este propósito, que “o fundamento da revisão da alínea a) do n.º 1 do art. 449.º do CPP exige que uma outra sentença transitada em julgado tenha considerado falsos os meios de prova de que o colectivo lançou mão, tornando-se necessário que a falsidade tenha sido constatada, declarada, atestada, certificada ou reconhecida, por forma consolidada, segura e definitiva, por uma outra sentença passada em julgado”. No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do STJ de 4 de Dezembro de 2008, proc. n.º 08P3067 (acs. disponíveis no site www.dgsi.pt). (24) Cfr. BATISTA, Luís Osório, Comentário ao Código do Processo Penal, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1934, p. 413, e MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado e Comentado, Almedina, Coimbra,1979, p. 716. ( 25 ) Acórdão do STJ de 30 de Junho de 2010, proc. n.º 169/07.3GAOLH-A.S1 (ac. disponível no site www.dgsi.pt). (26) Veja-se o exemplo de um “testemunho que, ainda que não exclusivamente, mas em conjugação com a restante prova produzida, contribuiu decisivamente para a convicção do 12
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não teria sido tomada naquele sentido (27), o que só se verificará se aquela prova tiver sido convocada à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto (28). Dispõe, por sua vez, a alínea b) do n.º 1 do art. 449.º do CPP que é admissível a revisão de uma sentença transitada em julgado quando “uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo”. Também aqui, por identidade de razões, se exige que o crime cometido pelo juiz ou jurado se encontre provado por sentença (penal ou não penal, condenatória ou absolutória (29)) já transitada em julgado, desde que nela se prove o cometimento do crime no exercício das funções no processo. Contrariamente ao CPP de 1929 (30), nesta alínea b) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, não especificou o legislador quais os crimes que, cometidos por juiz ou jurado, são relevantes para efeitos de revisão, abrindo portas a todas as hipóteses passíveis de justificarem este recurso (31). Contudo, exigiu o legislador que o crime cometido por juiz ou jurado esteja relacionado com o exercício da sua função no processo. Mas não especificou se terá que existir algum nexo causal entre a prática do crime e a decisão revidenda, isto é, se terá que provar-se que o crime influenciou de facto a decisão a rever ou se bastará o crime ter ocorrido durante o exercício das funções do juiz ou jurado no processo, dispensando-se a prova daquele nexo causal.
tribunal no sentido da inocência do arguido” – CARNEIRO, Ana Teresa, Dos Fundamentos do Recurso Extraordinário de Revisão, cit., pp. 86-87. (27) A este propósito releva dizer que aqui nos referimos não apenas aos meios de prova determinantes à fixação da matéria de facto relativa aos elementos constitutivos do crime, mas ainda aos que tenham apenas sido determinantes à determinação da medida da pena aplicada (Cfr. MARQUES DA SILVA, Germano, Curso de Processo Penal III, Editorial Verbo, Lisboa, 2008, p. 362). ( 28 ) PINTO DE ALBUQUERQUE, Paulo, Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª Edição, Universidade Católica Editora, Lisboa, p. 1206, an. 5. No mesmo sentido, o Acórdão do STJ de 9 de Dezembro de 2010, proc. n.º 92/08.4GAEPS-A.S1. (ac. disponível no site www.dgsi.pt). (29) Será, p. ex., o caso de um “juiz absolvido de um crime de corrupção, apenas por se ter provado existir uma causa de exclusão da culpa” – CARNEIRO, Ana Teresa, Dos Fundamentos do Recurso Extraordinário de Revisão, cit., p. 90, nota 170. (30) Onde se apresentava um elenco taxativo de crimes, a saber, peita, suborno, corrupção ou prevaricação. ( 31 ) Preenchem a previsão legal, entre outros, os crimes de usurpação de funções, favorecimento pessoal, denegação de justiça e prevaricação, corrupção passiva, concussão ou abuso de poder.
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Uma das posições defendidas a este respeito (32) tem sustentado que a lei estabelece uma presunção juris et de jure de que o cometimento de um crime por um juiz ou jurado, relacionado com o exercício das suas funções no processo, influenciou a decisão proferida, pelo que será suficiente a prova do cometimento do crime por sentença judicial transitada em julgado para que seja permitida a revisão. Uma posição mais exigente (33) vai no sentido de obrigar à prova do nexo causal entre a prática do crime e a decisão revidenda, o que equivale a dizer ser necessário provar por decisão judicial transitada em julgado não apenas o cometimento do crime mas ainda que o cometimento do crime exerceu influência no teor da decisão revidenda. Inclinámo-nos para esta segunda orientação, fazendo aqui referência, uma outra vez, ao carácter extraordinário de revisão, o que, a nosso ver, exige, em termos que se encontre justificada a quebra do valor do caso julgado, a comprovação judicial de que o dolo do julgador influenciou, por qualquer forma, a decisão a rever. Aqui chegados, importa considerar que dentre o elenco taxativo de fundamentos da revisão, contemplado no n.º 1 do art. 449.º do CPP, apenas os fundamentos aqui tratados constituem fundamentos da revisão pro reo e pro societate, casos em que o valor do caso julgado cederá não só perante condenações injustas mas ainda perante absolvições injustas, respectivamente. Ora, nestes casos, a justificação para a quebra do valor do caso julgado não reside apenas na injustiça da decisão a rever (e nos pesados custos que dessa injustiça possam ter resultado para o interessado na revisão, maxime no caso de uma condenação injusta) mas também, ou melhor, sobretudo, na necessidade de assegurar “a própria genuinidade do sistema de justiça [que] pode perigar com a manutenção de decisões em que seriamente se possa pôr em causa a base probatória em que assentaram ou a idoneidade dos sujeitos (juízes) que as proferiram, em conexão com o exercício das funções no caso sujeito a julgamento”. Estará em crise a “genuinidade da própria decisão”, com toda a “quebra de confiança geral no sistema” que tal implica (34). Na verdade, para que a decisão mereça a confiança da comunidade, é imprescindível que o “juiz mostre que actuou com
(32) MARQUES DA SILVA, Germano (Curso de Processo Penal III, cit., p. 362) e PINTO DE ALBUQUERQUE, PAULO (Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cit., p. 1206, an. 6). (33) SIMAS SANTOS, M. e LEAL-HENRIQUES, M., Código de Processo Penal Anotado, vol. II, Rei do Livros, Lisboa, 2000, p. 1045, e Recursos Penais, Rei dos Livros, Lisboa, 2011, p. 225. (34) Acórdão do STJ de 13 de Setembro de 2007, proc. n.º 07P2281 (ac. disponível no site www.dgsi.pt). 14
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aprumo, seriedade e honestidade” (35), o que obviamente não sucederá quando a falsidade teve comprovadamente lugar no tribunal ou quando um juiz ou jurado violou dolosamente os mais fundamentais deveres que lhe incumbem no exercício das suas funções. Mas se se torna simples a compreensão legal, mais complexa se coloca a questão da conformidade deste regime com a norma constitucional. Como vimos já, o recurso extraordinário de revisão tem assento constitucional no n.º 6 do art. 29.º da CRP, onde se dispõe que “os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos” (realçado nosso). No entanto, o regime legal das alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 449.º faz acrescer àquela previsão a possibilidade de revisão de decisões absolutórias. Ora, sabendo-se que a legislação ordinária deverá ser conforme aos preceitos inconstitucionais, sob pena de inconstitucionalidade, a questão aqui a resolver passa por definir se o alargamento constante daquelas alíneas não deixa ainda de respeitar o comando constitucional do n.º 6 do art. 29.º da CRP (36). Esta questão só poderá ser resolvida, tendo ainda em vista o n.º 5 do art. 29.º da CRP, onde se acolhe o princípio do ne bis in idem, proibindo-se que alguém possa vir a ser “julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, salvaguardando-se, portanto, o valor do caso julgado, de que o recurso de revisão é exactamente uma excepção. Mas se é certo que o legislador constituinte, na dicotomia segurança jurídica e justiça, optou por esta última (37), quando considerados os circunstancialismos previstos pelo n.º 6 do art. 29.º da CRP, dúvidas se poderão colocar acerca da restrição ao princípio do ne bis in idem quando a decisão que se pretende rever é uma decisão injusta absolutória. O problema concreto aqui em análise será então o de saber se o n.º 6 do art. 29.º da CRP, ao referir-se apenas a cidadãos injustamente condenados, abrange, ainda que não literalmente, a revisão das decisões injustas absolutórias. (35) SILVEIRA, J. Santos, Impugnação das Decisões em Processo Civil (Reclamações e Recursos), Coimbra Editora, Coimbra, 1970, p. 460. (36) Este problema coloca-se, com os mesmos contornos, em sede de legitimidade do Ministério Público e do assistente para requererem a revisão do absolvido. (37) Veja-se a este propósito o referido no Acórdão do STJ de 6 de Julho de 2006, proc. n.º 2424/06: “A segurança é seguramente um dos fins do processo penal, não é seguramente o único e nem sequer o prevalente, que se encontra antes na justiça, inscrevendo-se o recurso de revisão nas garantias constitucionais de defesa (n.º 6 do art. 29.º da Constituição). 2 – Foi, assim, escolhida uma solução de compromisso entre o interesse de dotar o acto jurisdicional de firmeza e segurança e o interesse de que não prevaleçam as sentenças que contradigam ostensivamente a verdade.” (Ac. disponível no site www.dgsi.pt).
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Parece-nos que a questão da (in)constitucionalidade das alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 449.º, no que respeita à permissão de revisão de sentença absolutória, deve ser decidida e alicerçada com recurso à interpretação da expressão “julgado mais do que uma vez” do n.º 5 do art. 29.º da CRP (38). De facto, não nos parece que o n.º 5 do art. 29.º da Constituição proíba a repetição de julgamentos tout court. O que este preceito constitucional proíbe são “arbitrárias repetições de julgamentos e punições” (realçado nosso) (39), pelo que a proibição não é afinal absoluta e admite a excepcionalidade de todas as situações em que a preponderância da segurança sobre a justiça seria intolerável (40). E essas excepções (em qualquer dos casos, limitadas ao expressamente previsto na lei, in casu no art. 449.º, n.º 1, do CPP) ocorrem, obviamente com maior amplitude, no caso de decisões condenatórias injustas, mas também em sede de decisões absolutórias injustas. Não se esqueça, aliás, que as alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 449.º do CPP admitem a revisão de sentença absolutória tão-somente quando a decisão a rever tenha resultado de um “simulacro de justiça” (41), ou porque, na situação da alínea a), assente numa decisão construída em alicerces factuais falsos, o que a invalida ab initio, ou, no caso da alínea b), porque nem sequer se verificou um verdadeiro julgamento, no sentido que lhe é dado pelo n.º 5 do art. 29.º da Constituição (42), não se podendo sequer afirmar que a decisão resultou de um juízo independente e vinculado à lei, conforme se dispõe nos arts. 202.º e 203.º da CRP. Assim, não operando aqui o ne bis in idem, pois que não seria sequer razoável manter uma falsa justiça quando o que na verdade falhou foi o próprio sistema de justiça, tem-se por conforme à Constituição a previsão legal das alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 449.º (43).
( 38 ) Para um maior desenvolvimento v. CARNEIRO, Ana Teresa, Dos Fundamentos do Recurso Extraordinário de Revisão, cit., pp. 52-57 e pp. 62-64. ( 39 ) MIRANDA, J. e MEDEIROS, R., Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 331. (40) Cfr. CORREIA, J. Conde, O «Mito do Caso Julgado» e a Revisão Propter Nova, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 192, n. 312. (41) PALMA, M. Fernanda, Direito Constitucional Penal, Almedina, Coimbra, 2006, p. 133. (42) Cfr. SIMAS SANTOS, M. e LEAL-HENRIQUES, M., Recursos Penais, 8.ª Edição, Rei dos Livros, Lisboa, 2011, pp. 222 e 223. (43) E consequentemente também a legitimidade conferida pelas alíneas a) e b) do art. 450.º ao Ministério Público e ao assistente para requerer a revisão em desfavor do condenado, legitimidade que existe apenas naquelas duas situações. 16
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IV. Considerações finais O recurso extraordinário de revisão constitui, como vimos, o último reduto de superação do erro judiciário. Se uma decisão judicial sobrevive ao erro e se consolida na ordem jurídica, só através deste recurso extraordinário se poderá repor a justiça da decisão ou, pelo menos, atenuar as consequências da sobrevivência de uma decisão judicial injusta. A ocorrência do erro judiciário coloca em crise o próprio sistema de justiça. Uma vez comprovado o erro, para além do efectivo dano que se possa ter verificado na esfera da sua vítima directa, gera-se em toda a comunidade um sentimento geral de desconfiança na actuação do tribunal, uma vez que não logrou este em realizar justiça. Esta descrença no sistema de justiça será tanto mais forte quanto mais estreita for a ligação entre o erro e a actuação do tribunal. Assim, se a circunstância de um processo se construir e terminar assente em provas falsas é circunstância bastante para que essa descrença se verifique, esta assumirá já contornos insuportáveis quando o erro judiciário estiver directa e causalmente ligado à actuação dolosa do próprio julgador (como o será no caso da alínea b) do n.º 1 do art. 449.º). Relembremos que, como nos dão nota os arts. 202.º e 203.º da CRP, cabe aos tribunais, através dos juízes, administrar a justiça em nome do povo, mediante um processo penal independente, imparcial e vinculado à lei. Daqui resulta que os juízes desempenham uma função complexa, que lhes exige muito mais que meros conhecimentos ou capacidades técnicas. Na verdade, a função do juiz é uma função “que exige dimensão cultural, perspectiva crítica, compromisso ético, conhecimento interdisciplinar, segurança psicológica, pessoal e técnica, profundo sentido de responsabilidade” (44) e que se sujeita a um princípio de imparcialidade que se traduz, antes de mais, no primeiro requisito da confiança dos cidadãos nos tribunais (45) e que passa, desde logo, pela exigência de uma actuação pautada pela ética. (44) LABORINHO, Lúcio, O Julgamento – uma narrativa crítica da justiça, Publicações D. Quixote, Alfragide, 2012, p. 495. No mesmo sentido refere-se M. AGUIAR PEREIRA a “uma cultura judiciária de cariz democrático, de cidadania e de proximidade com os cidadãos, de responsabilidade, de isenção e de ética e, em particular, de salvaguarda intransigente dos direitos humanos”. (“A formação de magistrados em mudança. Nótula a propósito da nova Lei do Centro de Estudos Judiciários”, in Revista Julgar, n.º 4, 2008, p. 12). (45) Cfr. LOPES, José Mouraz, “Formação de Juízes para o séc. XXI – Formar para decidir. Formar para garantir”, in Revista Julgar, n.º 4, 2008, p. 153.
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Aqui chegados, facilmente se compreende que a comunidade espera que o tribunal seja um palco de justiça. Pelo que, quando nesse palco há lugar à comprovada falsidade ou à violação dos mais básicos deveres que incumbem aos actores judiciais, e daí resulta uma decisão injusta, outro não pode ser o remédio que não a reposição da confiança da comunidade nos tribunais, através da reposição da justiça ao caso concreto, o que, nas situações em que se formou já caso julgado, só poderá conseguir-se através do recurso extraordinário de revisão.
(*) Este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico.
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Competências próprias e delegadas das freguesias: uma desigualdade inaceitável
António Cândido de Oliveira
Não é fácil a vida de um professor universitário, como não é fácil seguramente a vida de outros profissionais. No que toca aos professores universitários, as 40 horas de trabalho semanal, com todo o respeito pelos que lutam pelas 35 horas, é algo que é constantemente ultrapassado por muito mais horas e, quanto a férias, elas não existem por inteiro, mas apenas de vez em quando, e nunca atingindo o tempo que a lei confere. É assim a vida dos professores com quem lido mais de perto. Verdade seja dita também que esta profissão tem compensações (deixo de lado as amarguras) e dá gosto pertencer a um Departamento como este, de onde surgiram os três centros de investigação que a Escola de Direito da Universidade do Minho possui e que edita um anuário, traduzindo bem o espírito de iniciativa que existe nesta subunidade orgânica da Escola. Depois de chegar a esboçar um artigo sobre matéria de concursos para a carreira de professor universitário, defendendo que, de entre os elementos de avaliação, deveria constar, o trabalho de equipa, pois este não só ajuda a trabalhar melhor e com melhores resultados como molda para a cooperação o espírito dos professores, sem prejuízo do seu esforço pessoal, acabei, por razões de tempo, por escrever sobre matéria que ainda ontem ocupou a minha manhã de sábado: as recentes alterações na repartição de competências entre os municípios e as freguesias introduzidas por uma estranha lei. Essa estranha lei tem o número 75/2013, foi publicada no Diário da República, em 12 de setembro de 2013, e estabelece ao mesmo tempo: 1) o regime jurídico das autarquias locais; 2) o estatuto das entidades intermunicipais; 3) o regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais; e 4) o regime jurídico do associativismo autárquico. Lei “sem nome” como bem referiu o colega da Faculdade de Direito de Lisboa, Doutor JOSÉ MELO ALEXANDRINO, em recente intervenção no âmbito de um seminário sobre as autarquias locais organizado na Universidade do Minho (5 de dezembro de 2013) e que a “batizou”, com bondade, diga-se, de “lei da reforma da administração local”, chamando ainda a atenção para o facto
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de todas estas matérias não serem reguladas no texto da lei mas num extenso anexo da mesma. Na parte que aqui nos interessa, a Lei n.º 75/2013, no seu Título IV, sob a falsa epígrafe “Descentralização administrativa”, regula a delegação de competências dos municípios nas freguesias nos arts. 131.º a 136.º. Dizemos falsa epígrafe pois, ao longo dos seus quase 30 artigos (111.º a 136.º), do que trata fundamentalmente a lei é daquilo a que chama “delegação de competências” (arts. 116.º a 136.º), realidade jurídica que não é seguramente a descentralização administrativa que os professores de direito ensinam e os alunos aprendem. No art. 131.º começa por delimitar o âmbito da delegação, dizendo que “os municípios concretizam a delegação de competências nas freguesias em todos os domínios dos interesses próprios das populações destas, em especial, no âmbito dos serviços e das atividades de proximidade e do apoio direto às comunidades locais”. Já o art. 132.º, com a epígrafe “delegação legal”, determina, no seu n.º 1, que se consideram “delegadas nas juntas de freguesia as seguintes competências das câmaras municipais: a) gerir e assegurar a manutenção de espaços verdes; b) assegurar a limpeza das vias e espaços públicos, sarjetas e sumidouros; c) manter, reparar e substituir o mobiliário urbano instalado no espaço público, com exceção daquele que seja objeto de concessão; d) gerir e assegurar a manutenção corrente de feiras e mercados; e) assegurar a realização de pequenas reparações nos estabelecimentos de educação pré-escolar e do primeiro ciclo do ensino básico; f) promover a manutenção dos espaços envolventes dos estabelecimentos referidos na alínea anterior”. E, no seu n.º 2, diz o mesmo artigo que se consideram ainda “delegadas nas juntas de freguesia, quando previstas em lei, as competências de controlo prévio, realização de vistorias e fiscalização das câmaras municipais nos seguintes domínios: a) utilização e ocupação da via pública; b) afixação de publicidade de natureza comercial; c) atividade de exploração de máquinas de diversão; d) recintos improvisados; e) realização de espetáculos desportivos e divertimentos na via pública, jardins e outros lugares públicos ao ar livre, sem prejuízo do disposto na alínea c) do n.º 3 do art. 16.º; f) atividade de guarda-noturno; g) realização de acampamentos ocasionais; h) realização de fogueiras e queimadas”. Se a lei dissesse só isto, teríamos de concluir que, a partir da entrada em vigor desta lei, o que ocorreu nos termos do art. 4.º do seu texto (e não do anexo) no dia seguinte ao da realização das eleições gerais para os órgãos das
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autarquias locais imediatamente subsequentes à sua publicação, ou seja, no dia 30 de setembro de 2013, todas estas competências passavam a ser exercidas pelas juntas de freguesia. Mas não é assim, pois o artigo seguinte (133.º) da mesma lei, no seu n.º 1, diz que as câmaras municipais e as juntas de freguesia, no prazo de 180 dias após a respetiva instalação (que ocorreu para a grande maioria delas no mês de outubro), devem celebrar “um acordo de execução que prevê expressamente os recursos humanos, patrimoniais e financeiros necessários e suficientes ao exercício de todas ou algumas das competências previstas no artigo anterior”, acrescentando o n.º 2 do art. 134.º que, até à entrada em vigor desse acordo de execução, as competências que acabámos de referir serão exercidas pela câmara municipal. Este prazo, dado o disposto no art. 137.º, é contínuo e, assim, será em abril que se cumprirá, na grande maioria dos casos, o prazo máximo de 180 dias previsto na lei. Não é de estranhar, pois, que as câmaras municipais não só continuem a exercer estas competências objeto de “delegação legal” como andem quase todas a trabalhar estas matérias com as freguesias para chegarem a um acordo. Quase todas menos uma: Lisboa. A Câmara Municipal de Lisboa não tem este problema, pois estas competências no território do Município de Lisboa são próprias das 24 freguesias que o integram. São próprias, isto é, são exercidas por direito próprio por cada uma de tais freguesias. É o que resulta da leitura da Lei n.º 56/2012, de 8 de novembro, nomeadamente do art. 12.º que menciona, quase com as mesmas palavras da Lei n.º 75/2013, praticamente todas estas competências. Na verdade, a competência de “gerir e assegurar a manutenção de espaços verdes”, referida na alínea a) do n.º 1 do art. 132.º da Lei n.º 75/2013, consta, com as mesmas palavras, do art. 12.º, alínea a), da Lei n.º 56/2012, de 8 de novembro, relativa a Lisboa. A competência de “assegurar a limpeza das vias e espaços públicos, sarjetas e sumidouros”, referida na alínea b) do n.º 1 do art. 132.º da Lei n.º 75/2013, consta, com as mesmas palavras, do art. 12.º, alínea d), da Lei n.º 56/2012. A competência de “manter, reparar e substituir o mobiliário urbano instalado no espaço público, com exceção daquele que seja objeto de concessão”, mencionada na alínea c) do n.º 1 do art. 132.º da Lei n.º 75/2013, consta, com as mesmas palavras, do art. 12.º, alínea e), da Lei n.º 56/2012, de 8 de novembro,
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relativa a Lisboa, acrescentando apenas esta alínea e): “assegurando a uniformidade estética e funcional dos mesmos”. A competência de “gerir e assegurar a manutenção corrente de feiras e mercados”, referida na alínea d) do n.º 1 do art. 132.º da Lei n.º 75/2013, consta, praticamente com as mesmas palavras e conteúdo, do art. 12.º, alínea q), da Lei n.º 56/2012. A competência de “assegurar a realização de pequenas reparações nos estabelecimentos de educação pré-escolar e do primeiro ciclo do ensino básico”, referida na alínea e) do n.º 1 do art. 132.º da Lei n.º 75/2013, consta, até com muito maior amplitude, do art. 12.º, alínea j), da Lei n.º 56/2012. Por sua vez, a competência de “promover a manutenção dos espaços envolventes dos estabelecimentos referidos na alínea anterior”, referida na alínea f) do n.º 1 do art. 132.º da Lei n.º 75/2013, não encontrando tradução concreta no art. 12.º da Lei n.º 56/2012, pode sem grande esforço incluir-se na sua alínea j). Repare-se que se trata apenas de cuidar da manutenção dos espaços envolventes dos estabelecimentos de edução pré-escolar e do primeiro ciclo do ensino básico e tais espaços serão naturalmente espaços públicos que já estariam, de algum modo, a cuidado das freguesias de Lisboa e do resto do país. As outras competências, competências de controlo prévio, vistorias e fiscalização que o n.º 2 do art. 132.º delega nas freguesias e que nele são mencionadas – “a) utilização e ocupação da via pública; b) afixação de publicidade de natureza comercial; c) atividade de exploração de máquinas de diversão; d) recintos improvisados; e) realização de espetáculos desportivos e divertimentos na via pública, jardins e outros lugares públicos ao ar livre, sem prejuízo do disposto na alínea c) do n.º 3 do art. 16.º; f) atividade de guarda-noturno; g) realização de acampamentos ocasionais; h) realização de fogueiras e queimadas” – encontram quase todas, exceto algumas, que bem se compreende, como a “realização de fogueiras e queimadas” bem próprias das zonas agrícolas e florestais, largo eco na extensa lista das alíneas g) e i) do já mencionado art. 12.º da Lei n.º 56/2012. E chegados aqui a pergunta impõe-se: por que não é assim no resto do país? Porque hão de as mesmas competências ser próprias das freguesias em Lisboa e delegadas nas do resto do país? Não se entrevê razão de fundo para esta discriminação, pois não estão em causa, em princípio, tarefas revestidas de grande complexidade, mas, pelo contrário, ao alcance de uma freguesia média. Estas competências bem poderiam ser próprias das freguesias em todo o país, desde que houvesse, por um lado, o devido acompanhamento financeiro,
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cumprindo a boa regra de que sempre que o legislador retira a uma entidade uma competência – e assim do seu custo – para a entregar a outra deve assegurar a esta os meios financeiros para que bem a possa exercer e, por outro lado, uma ressalva que existe também em Lisboa, no art. 13.º, n.º 1, da Lei n.º 56/2012, e que se exprime resumidamente desta forma: mantêm-se no âmbito da Câmara Municipal de Lisboa aquelas competências “que se revelem indispensáveis para a gestão direta pela câmara de espaços, vias ou equipamentos ou equipamentos de natureza estruturante para a cidade ou para a execução de missões de interesse geral e comum a toda ou uma parte significativa da cidade”. O n.º 2 deste mesmo artigo, para evitar arbitrariedades, determina que a “câmara municipal deve identificar mediante proposta fundamentada a submeter à aprovação da assembleia municipal o elenco das missões, bem como dos espaços, das vias e dos equipamentos a que se refere o número anterior”. Adaptando esta formulação ao resto do país, dir-se-ia então que seriam próprias das freguesias todas aquelas mencionadas no início deste texto (constantes do art. 132.º da Lei n.º 75/2013), salvo aquelas que as câmaras municipais, em decisão fundamentada e aprovada pelas assembleias municipais respetivas, considerassem que deveriam permanecer na sua esfera, por estarem em causa “espaços, vias ou equipamentos estruturantes para o município” ou por este estar em melhores condições de as exercer do que determinada ou determinadas freguesias. Também poderia haver ainda outras salvaguardas devidamente ponderadas e justificadas que tivessem em conta as especificidades de algumas freguesias. Desta forma, haveria um tratamento mais igual para todas as freguesias do país, haveria uma verdadeira descentralização e não se deixaria de defender o interesse público através das cautelas referidas. Ainda a este propósito, o legislador dá a entender que sabe o que é descentralização administrativa, ao dizer no art. 111.º, que esta se concretiza através da transferência por via legislativa de competências de órgãos do Estado para órgãos das autarquias locais e das entidades intermunicipais e, ao acrescentar no art. 114.º, que a “transferência de competências tem caráter definitivo e universal”. No entanto, ainda debaixo do chapéu da descentralização administrativa (Título IV), trata da delegação de competências no Capítulo II e menciona, no n.º 1 do art. 120.º, que esta se concretiza “através de contratos interadministrativos, sob pena de nulidade” e estabelece, no n.º 2, que à “negociação, celebração e execução” destes contratos é aplicável subsidiariamente o Código dos Contratos Públicos e o Código de Procedimento Administrativo.
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Também não admira que o legislador se veja obrigado a regular a cessação dos contratos por “caducidade, revogação ou resolução” e estabeleça prazos para o período de vigência. No que se refere à delegação legal de competências dos municípios nas freguesias, o período de vigência dos acordos de execução coincidem, em regra, com a “duração do mandato do órgão deliberativo do município”, considerando-se renovado no mandato seguinte. No entanto, pode o órgão deliberativo do município, no prazo de seis meses após a sua instalação para exercício de novo mandato, autorizar a denúncia do acordo de execução. Estes contratos, pois de contratos se trata, estão sujeitos a caducidade e a resolução mas já não a revogação por mútuo acordo, conforme resulta das remissões a que se refere o n.º 5 do art. 134.º. Como se imagina, estes acordos de execução dão origem a muito trabalho, a problemas de negociação e de interpretação jurídica que bem poderiam ser poupados às freguesias do resto do país. Mas, para isso, era preciso legislar com mais cuidado, ouvindo atentamente, quer a Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE), quer a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP). Estamos a falar de matérias que antes de serem reguladas deveriam ser objeto de estudo muito atento e, desde logo, de um levantamento da situação existente a nível do país. Mas não é assim que se legisla no nosso país e os resultados estão à vista. Uma nota ainda deve ter-se presente: o legislador, ao importar para a “delegação legal”, no art. 132.º, competências próprias das freguesias de Lisboa, não teve na devida conta que o Município de Lisboa é profundamente urbano, o que não sucede com a quase totalidade dos restantes municípios. Assim, bem se compreende que circule a ideia que as competências de delegação legal estão destinadas principalmente às freguesias urbanas, o que tem efeitos naturais na elaboração dos acordos de execução. Mais um deslize de quem legislou…
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A prevenção do conflito tributário: a importância de uma ética tributária (?)
Cláudia Figueiras
“O direito nada pode sem a ética, e não pode haver paz sem Justiça. Toda a regra de Justiça envolve amor, que resume, em seu mais amplo sentido, a verdadeira ideia da convivência entre os homens”. (Autor Desconhecido)
0. Nota Introdutória O tema que nos foi proposto pensar, “Ética e Direito”, é, desde os primórdios da história do direito, um dos mais pensados pelos juristas. É um tema fascinante que nos conduz por caminhos deslumbrantes onde se entrecruzam vários vetores do conhecimento. Assumindo a veste do jurista que é chamado por amor e vocação, propomo-nos, neste breve trecho, refletir sobre a importância do valor ética no direito, em especial enquanto meio de resolução alternativa de litígios, lato sensu (na perspetiva preventiva) no direito tributário. Restringimos a nossa investigação ao direito tributário, porquanto é uma das áreas do direito na qual o número de pendências processuais nos Tribunais dispararam nos últimos anos e, não deixando de colocar o direito administrativo ao lado no mesmo trono, é, neste momento, rei da nossa investigação. Nesta fase prévia, torna-se necessário tecer uma breve consideração de cariz linguístico e que respeita à utilização dos termos direito fiscal e direito tributário. Reveste grande importância, embora alguma doutrina sufrague de opinião diversa, delimitar o que se entende por direito tributário e por matéria tributária e o que se entende por direito fiscal e matéria fiscal. Com efeito, somos partidários de que não deve reconduzir-se o conceito de direito tributário ao de direito dos impostos ou de direito fiscal (1). Não pode falar-se indistintamente em direito Fiscal e em direito tributário e correlativamente em matéria fiscal e (1) A este respeito, veja-se ROCHA, Joaquim Freitas da, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pp. 13 a 15; e do mesmo Autor, “Competência dos tribunais tributários, pós-modernidade jurídica e des-jurisdicionalização”, in Scientia Iuridica, n.º 310, abril/junho, 2007, pp. 287 a 308, em especial, pp. 288 a 292.
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matéria tributária. Embora, muitas vezes, nem o próprio legislador seja coerente na escolha dos conceitos (2). O direito tributário abarca todo um conjunto de tributos desde as taxas, os impostos e as contribuições especiais. Efetivamente, como refere JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, o tributo é “toda a prestação coactiva com finalidades financeiras” (3). Nesta definição cabem todas as figuras que acima referimos, ao contrário do que acontece quando usamos o termo direito fiscal ou matéria fiscal que, de entre as prestações coativas citadas, engloba apenas os impostos. Deste modo, quando dizemos que o texto que ora nos ocupa tem como objeto a ética como meio alternativo de resolução do conflito, lato sensu, no âmbito especial da relação ius tributária, estamos a referir-nos a todas as controvérsias que oponham a administração tributária e o sujeito passivo que tenham por base impostos, taxas ou contribuições especiais (4). Este pequeno artigo estrutura-se do seguinte modo: 1. A base do discurso: a ética tributária como meio de resolução alternativa de litígios, lato sensu (?); 2. Ética e direito: o casamento perfeito; 3. A fundamentação ética: a busca por um princípio de ética na tributação. Este último ponto divide-se, por sua vez, em dois subpontos: 3.1. O passado do presente: o berço da tributação; 3.2. A ética tributária: a busca por um princípio de solidariedade social. Finalmente este subponto divide-se, também ele, em outro subponto: 3.2.1. Instrumentos de ética tributária.
(2) O legislador de Lei Geral Tributária (LGT) andou bem ao fazer tal delimitação de conceitos. Com efeito, no art. 3.º daquele diploma legal o legislador sob a epígrafe “Classificação de tributos” refere expressamente no n.º 2 que “Os tributos compreendem os impostos, incluindo os aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de outras entidades públicas”. Deste modo, se o legislador da LGT entendeu ser importante referir expressamente que os tributos abarcam mito mais do que a figura do imposto, não se pode reduzir o conceito de direito tributário e matéria tributária ao conceito de imposto, ou então, falar em direito fiscal e matéria fiscal de um modo de tal forma alargado que abarque, para além da figura do imposto, as taxas e demais contribuições especiais (mesmo que sejam, por lei, equiparadas a impostos). Assim, é deveras pertinente que no âmbito do direito adjetivo se faça essa delineação conceitual de forma a obtermos coerência, rigor e certeza jurídica quando queremos aplicar as leis do processo. (3) ROCHA, Joaquim Freitas da, Lições…, cit., p. 12. (4) Não obstante, as contribuições fiscais são equiparadas a impostos nos termos do art. 4.º, n.º 3, da LGT.
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1. A base do discurso: a ética tributária como meio de resolução alternativa de litígios, lato sensu (?) Todos nós temos verificado um aumento exponencial do número de ações pendentes nos tribunais, nos últimos anos. Esta constatação verifica-se em diversos ramos do direito. No entanto, a subida do número de conflitos pendentes de resolução nos Tribunais Administrativos e Fiscais é ainda mais preocupante, pois disparou de forma alarmante. Perante a insuficiência dos meios tradicionais de resolução de litígios, a doutrina sopra e a máquina legislativa produz mecanismos de resolução alternativa de conflitos, stricto sensu, tais como a arbitragem (5), a mediação, a conciliação e a revitalização das impugnações administrativas quando facultativas. Habemus Solutio? Non. A criação de mecanismos de resolução alternativa de litígios, stricto sensu, ainda que absolutamente necessária e por nós aplaudida não é suficiente. Não nos podemos iludir. É necessário encontrar a raiz do problema, a qual, em nosso entendimento, poderá residir na falta de princípios éticos na tributação e na consequente insuficiência material do direito tributário. Estas insuficiências levam-nos ao despoletar dos níveis de conflitualidade. Assim, a solução poderá passará pela prevenção do conflito sustentada no pilar da ética. Não podemos, contudo, adotar crenças utópicas. Não procuramos, nem tão-pouco temos essa ambição, a irradiação do conflito. Conflitos de interesses existiram e existirão sempre. Buscamos um equilíbrio, buscamos reduzir o conflito tributário ao mínimo inevitável. Propomos que a intervenção dos mecanismos tradicionais e alternativos de resolução de conflitos, stricto sensu, sejam encarados pela comunidade e pelos seus representantes como uma ultima ratio. É, assim, desta base que parte o nosso discurso: a ética como meio alternativo de resolução do conflito, lato sensu, no âmbito especial da relação ius tributaria.
(5) A consagração da arbitragem como meio de resolução alternativa de litígios em matéria tributária, no nosso ordenamento jurídico, operou-se pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, alterado pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro e pela lei n.º 20/2012, de 14 de maio.
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2. Ética e direito: o casamento perfeito A vivência em comunidade impõe o respeito por determinados padrões e valores de conduta. Todos nós, enquanto seres inseridos no seio de uma comunidade, temos o dever de respeitar certas normas comportamentais. Tais normas, enquanto limites à liberdade de atuação dos cidadãos, devem, ou pelo menos deveriam, corresponder a certos princípios éticos. A justiça, valor último que o direito tem a pretensão de realizar, é em si mesmo um princípio ético (6). Na sociedade contemporânea, perderam-se alguns dos princípios éticos que foram também princípios de direito. No direito tributário, confessamos, contudo, que temos algumas dúvidas que alguma vez tais princípios tenham tido alguma existência prática. Ética e direito, um casal perfeito que se separou e cuja reconciliação se impõe. Concordamos, pois, com ANTÓNIO ARNAUD quando refere que “Ética e direito são, pois, realidades inseparáveis e complementares, ainda que, (…) constituam grandezas de natureza diferente, pois enquanto a ética tem uma dimensão moral, o direito tem raízes sócio culturais” (7). O direito sem ética fica vazio, não é direito, não é justiça. Podemos, com alguma segurança, afirmar que a justiça impõe a concretização de valores éticos. A sociedade atual tende a ficar alheia a determinados valores éticos e consequentemente o direito, porque fica materialmente vazio, deixa de realizar a sua pretensão de justiça. Vivenciamos, atualmente, uma crise na comunidade. A noção de justiça, “o mais antigo anseio do homem” está mais perdida do que nunca. O desejável objetivo da centralidade perdeu-se e o caos parece estar instalado. Importa, pois, considerar os conceitos de ética e direito. Sucintamente e tomando a explicação dada por ANTÓNIO ARNAUD, podemos dizer que “Ética, no sentido social (do grego, êthê, costumes), é a ciência normativa primordial, traduzida no conjunto de valores que devem reger o comportamento do homem na sua vida de relação, de modo a alcançar-se a paz social ou a harmo-
(6) Como refere BATISTA MACHADO “(…) não deve esquecer-se que a Justiça é um valor ético e que às normas de Direito inere a pretensão de realizar esse valor. (…) se considerarmos, não já o Direito formulado e positivado, mas «o Direito em devir», isto é, o Direito a criar por via legislativa e o Direito a «concretizar» por via judicial no sector do jus aequum e no domínio da integração e complementação da lei, não dúvida de que, neste plano, o jurista entra em contacto mais directo com os grandes princípios do direito que são, ao mesmo tempo, grandes princípios éticos” (MACHADO, João Batista, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 2013, p. 62). (7) ARNAUT, António, Ética e direito, livraria mateus, Coimbra, 1999, p. 11.
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nia dos contrários…” (8) e que “Direito, no sentido positivo (jus in civitate positum) é o conjunto de leis que se destinam a prevenir e a dirimir conflitos, e a realizar a justiça (…) medida e o fim último do direito, a fonte, ou ideia que deve inspirar toda a proposição jurídica” (9). Das noções propostas podemos retirar algumas ilações. Desde logo, que a ética é um conjunto de normas que tutela diversos valores, preexistentes ao direito. Por sua vez, que o direito, no sentido positivo, é um conjunto de leis, sucedâneas das normas de valor e que as conduz ao universo jurídico de modo a atingir o Bem comum, a Paz Social e a Justiça. Em suma, poder-se-á concluir que “para ser justa (…) a lei deve ter um conteúdo ético” (10). Sucede que nem sempre o direito incorpora valores éticos e, como tal, nem sempre o direito realiza a sua pretensão de justiça. A escassez de ética, o achicar do direito e a consequente desacreditação na justiça conduziram ao despoletar dos níveis de conflitualidade e à crise. O direito esgotado na construção racional da modernidade começa a ser substituído, como refere DIOGO LEITE DE CAMPOS (11), por direitos individuais opostos e com um sentido e um conteúdo muito dependente do caso em concreto. Se é verdade e importante que o direito deve “procurar a conciliação do homem consigo próprio” (12), não é menos verdade e menos importante que deve procurar a conciliação “com os outros e com o mundo, de modo a realizar a paz e a convivência sociais” (13). Assiste-se, assim, ao progressivo amanhecer de um direito, cada vez mais, construído com base em modelos espontâneos e emocionalmente regulativos. Os critérios racionais tendem a ceder o seu lugar a critérios puramente emocionais (14), os quais, porque encarnam um homem numa (8) ARNAUT, António, Ética…, cit., p. 12. (9) ARNAUT, António, Ética…, cit., p. 12. (10) ARNAUT, António, Ética…, cit., p. 14. (11) Segundo DIOGO LEITE DE CAMPOS, situamo-nos numa era em que o “O indivíduo aparece como o «único» actor social, pronto assumir-se como o «único» autor de si próprio e dos outros. Dotado de uma vontade limitada e não limitável – sobretudo pela norma geral e abstracta, prévia à sua vontade” (CAMPOS, Diogo Leite de, “A arbitragem voluntária, jurisdição típica do Estado-dos-Direitos e dos-cidadãos”, separata da obra A Evolução do Direito no século XXI. Estudos em homenagem do Professor Doutor Arnold Wald, Almedina, Coimbra, 2007, p. 44). (12) ARNAUT, António, Ética…, cit., p. 14. (13) ARNAUT, António, Ética…, cit., p. 14. (14) Neste sentido, JOAQUIM FREITAS ROCHA ao referir que “(…) consegue-se sem esforço reparar que muitas tomadas de decisão normativa são menos motivadas por critérios lógicos e racionais e mais por critérios de «emotividade», «medo», ou análogos. Basta pensar nas subidas ou descidas das taxas dos impostos antes ou depois dos períodos eleitorais ou na realização de determinada despesas pública em consequência das reivindicações dos grupos de pressão e das represálias que estes possam levar a cabo. Do mesmo modo, se podem incluir aqui as leis a pedido de determinado grupo. Em todos estes casos, pode-se estar em presença de medidas que, do ponto de vista lógico, seriam desaconselháveis, mas que do ponto de vista emotivo, são
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perspetiva individualista, carente de ética, secundarizando a conciliação com os outros e com o mundo, nem sempre revelam princípios éticos (15). Assiste-se a uma crescente produção normativa (16), revelando-se o direito uma substância cada vez mais descartável, de mera funcionalização partidária e eticamente vazia. Concordamos, pois, com JOÃO BATISTA MACHADO quando refere que “o Direito (…) tem de impedir que os seus destinatários o convertam em «objecto» ou matéria a afeiçoar tecnicamente aos seus desígnios, tem de evitar deixar-se fortemente aconselháveis. O Direito pós-moderno pretende chamar a atenção exatamente para isso: a norma é cada vez menos – na sua perspetiva, claro – uma ordenação racional dos poderes e da vida em sociedade” (Vide, ROCHA, Joaquim Freitas, Lições…, cit., p. 357, em especial, nota de rodapé n.º 668). (15) Pensemos, por exemplo, no casamento de homossexuais, questão já resolvida no nosso ordenamento jurídico pela Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, e na possibilidade de adoção entre pessoas do mesmo sexo. Aceitando que a homossexualidade é uma opção de vida respeitável, como qualquer outra, não nos parece, contudo, que a consagração da possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo e da adoção revele princípios éticos. De facto, como referimos a ética decorre da conciliação do indivíduo consigo próprio, mas também com os outros e com a sociedade de modo a alcançar a paz social. A verdade é que na sociedade portuguesa o casamento tem uma larga tradição e, desde sempre, encarada como uma instituição que visa a constituição de uma família entre pessoas de sexo diferente. Admite-se a união homossexual sujeita a um regime contratual próprio, mas com uma designação diferente de casamento. Em relação à adoção, reside na própria natureza do ser e na tradição que a procriação e a constituição de família se dá entre pessoas de sexo diferente. Admitir o contrário é, no fim da linha, admitir o fim da humanidade. Tomando as palavras de ANTÓNIO ARNAUD, “A ética é também uma forma de cultura, e a nossa cultura não aceita o casamento entre pessoas do mesmo sexo (…) o casamento tem uma tão larga e profunda tradição ético-cultural que não se compagina com os valores que a nossa sociedade considera como padrões de comportamento” (ARNAUT, António, Ética…, cit., pp. 26 e 27). As mesmas palavras valem, em nosso entendimento, para a adoção entre pessoas do mesmo sexo. (16) PAULO FERREIRA DA CUNHA/JOANA AGUIAR E SILVA/ANTÓNIO LEMOS SOARES responsabilizam a forte produção normativa pela crise que se evidencia no Direito hodierno. Com efeito, referem aqueles autores que “Grande parte da grande crise do Direito actual decorre do congestionamento de tarefas, e do curto-circuito entre as funções para que foi concebido e «programado» e aqueles que hoje é chamado a cumprir. (…). O Direito corrente tornou-se numa técnica, entre outras, de remover essa pedra sem o incómodo (e relativo risco) de ter de dar-lhe pessoalmente um pontapé. (…). Não se pode, insistimos, dissociar este fenómeno de funcionalização do Direito das ilusões (…) de mobilização social ascendente largamente difundidas entre as massas (…), da aceleração do ritmo da vida moderna (…), e, consequentemente, do aumento excepcional da conflitualidade, sempre potencialmente litigiosa, judicial. (…). Ora, como o sistema imperante ao nível político tende a espelhar e a devolver quase sem deformações os inputs «da sociedade civil» em matéria jurídica (…) quase se não pode escapar a que, com os freios e contrapesos próprios da clarividência dos governantes e legisladores, e da lentidão ou prudência da burocracia, a produção hodierna de Direito vá acompanhando, no substantivo e no adjectivo, as exigências sociais. Ou o que se julgue que sejam. Mas a distância entre o reclamado e o necessário existe, muitas vezes, e os governantes devem de forma esclarecida e não eleitoralista fazer o que se deve e não o que rende popularidade” (Vide, CUNHA, Paulo Ferreira, SILVA, Joana Aguiar e SOARES, António Lemos, História do Direito – Do Direito Romano à Constituição Europeia, almedina, Coimbra, 2010, pp. 76, 77 e 78).
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comandar – para poder manter o comando” (17). A consequência é o crescimento excecional dos níveis litigação e consequente aumento do número de pendências judiciais (18). As instituições jurisdicionais, típicas do Estado Moderno, revelam-se, deste modo, insuficientes para uma resposta eficaz aos problemas oriundos do direito desta fase de transição paradigmática. Os meios alternativos de resolução de litígios, stricto sensu, encontram, assim, um espaço próprio por onde podem começar a raiar. Com efeito, face aos crescentes níveis de litigação, absolutamente incomportáveis para o sistema de justiça tradicional, em particular, os tribunais arbitrais têm vindo a assumir-se como uma verdadeira alternativa para os cidadãos resolverem os seus litígios. O aparecimento de tais mecanismos ainda que desejado e necessário não é suficiente para resolver a crise da justiça (19). A crise social, originária no abalar de princípios éticos, afeta o direito, e repercute-se, necessariamente, na justiça (20). (17) MACHADO, João Batista, Lições de Direito Internacional Privado, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 285. (18) Refere CASALTA NABAIS que “verifica-se, neste ramo do direito, uma produção normativa que se carateriza por ser: 1) uma turboprodução, pois não há praticamente dia nenhum em que nas folhas do DR não surjam diplomas legais respeitantes a impostos, 2) uma produção marcada cada vez mais pelo efémero e pelo descartável como que a dar razão ao slogan «usar e deitar fora», 3) com patentes sinais de falta de qualidade técnica, própria de uma produção normativa a granel, o que contribui naturalmente para fomentar, em vez de evitar, a litigação, que assim cresce exponencialmente, bloqueando em termos práticos, a efectiva garantia constitucional de acesso aos tribunais” (NABAIS, José Casalta, Direito Fiscal, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 26). Refere FRANCISCO DE FARIA DA COSTA, citado por CASALTA NABAIS, que estamos perante um verdadeiro totalitarismo do Direito que “tem conduzido, no que à acção dos tribunais diz respeito, a níveis de litigação e consequente volume de pendências judiciais absolutamente incomportáveis para o sistema” (Vide, NABAIS, José Casalta, “Reflexão breve sobre a introdução da arbitragem tributária”, in Mais justiça Administrativa e Fiscal, org. NUNO DE VILLA-LOBOS e MÓNICA BRITO VIEIRA, Coimbra Editora, 1.ª ed., 2010, pp. 83 a 102, em especial, p. 88). (19) Refere BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS que “a década passada não foi uma época de ausência de reformas. Houve reformas e o problema com que nos confrontamos é o de saber porque é que tais reformas tiveram tão pouco impacto positivo e, por vezes, tiveram mesmo impacto negativo (…). Enuncio (…) as reformas da última década do século passado, que considero mais significativas: desjudicialização, meios alternativos de resolução de litígios e descriminalização de certas condutas; reformas processuais; reformas organizacionais. (…) Porque é que estas reformas tiveram tão poucos resultados? Porquê é que (…) o sistema judicial é menos eficiente agora do que era em 1994?” (SANTOS, Boaventura de Sousa, “A justiça em Portugal: diagnósticos e terapêuticas”, in Manifesto, março 2005, pp. 76 a 87 e p. 81). Para o autor “ineficiência, morosidade, inacessibilidade e desperdício são os quatro grandes problemas da justiça portuguesa” (SANTOS, Boaventura de Sousa, “A justiça…”, cit., p. 83). Em nossa opinião, a gestação destes quatro problemas tem um ventre comum: a falta de princípios éticos. (20) Concordamos com ANTÓNIO ARNAUD quando sustenta que: “A crise da justiça, de que tanto se fala, e não apenas em Portugal, resulta de uma complexidade de causas, que se formam acumulando ao longo dos anos e de que destaco: a explosão da litigiosidade e da criminalidade, a surgência de novos crimes, a instabilidade legislativa
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A solução poderá estar, em nosso entendimento, na descoberta ou na restauração do conceito de ética e de direito. É a descoberta de um conceito de ética no domínio específico do direito tributário, enquanto meio de resolução alternativa de litígios, lato sensu, que por ora se propõe. Vejamos, de seguida, em que termos.
3. A fundamentação ética: a busca por um princípio de ética na tributação 3.1. O passado do presente: o berço da tributação O conhecimento do passado é imprescindível para um correto entendimento do futuro. Só o passado nos pode dar os elementos essenciais para evitar cometer erros no futuro. No direito tributário, a pobreza do valor ética não é uma realidade de hoje, mas que já vem desde a criação do sistema tributário. A verdade é que desde sempre que a sociedade vê o tributo não como um instrumento necessário à realização do Bem Comum e da Paz Social, maxime justiça, mas como um instrumento de força e imposição (21). Ao Estado cabe a realização de um conjunto de tarefas fundamentais, isto é, compete-lhe a concretização de um conjunto de direitos fundamentais e, em particular, a diminuição das desigualdades sociais. Para tal, necessita de um sistema financeiro forte e sustentável. Nem sempre, porém, o sistema financeiro, em especial o sistema tributário, objetivou a realização de tais fins. Os impostos nasceram no século I a.c. no Império Romano (22) e fundavam-se no poder absoluto do príncipe e destinavam-se a pagar as vastas dese algum laxismo dos agentes judiciários (…). O descrédito da administração da justiça começa a ganhar corpo na consciência dos cidadãos e afecta gravemente o Estado de Direito e o próprio regime democrático. Os tribunais são o rosto mais visível do Estado, por isso que constituem a única garantia do cidadão indefeso contra as prepotências e arbitrariedades da classe possidente. São o verdadeiro espelho da sociedade, na medida em que neles desaguam a maior parte dos conflitos que a dilaceram. Por isso, a crise da justiça, é apenas um aspecto da crise social reinante, derivada pela falta de respeito pelos mais elementares princípios éticos” (ARNAUT, António, Ética…, cit., nota de rodapé n.º 10, p. 40). (21) Embora em alguns países do norte da Europa esta mentalidade tenha-se já dissipado perante o enraizamento na comunidade de determinados valores éticos que impelem os sujeitos a cumprirem. (22) Um princípio de tributação era, contudo, já visível no antigo Egipto. Com efeito, é possível retirar da Bíblia Sagrada a referencia a princípios de tributação, nomeadamente em Génesis, Capítulo 47, Versículo 24, onde se pode ler: “Quando chegar a
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pesas do império. O tributo germinou ao lado da criação romana do direito civil e da obrigação civil que se apresentava como “um acordo entre cidadãos, entre iguais” (23). Contrariamente, como refere DIOGO LEITE
DE
CAMPOS, a obrigação
tributária apresentava-se, pois, como uma medida substancial e eticamente injustificável (24). O tributo nasceu não com a essência de um pressuposto (25) necessário à realização do Bem Comum, mas com a “essência de um mal necessário, de limitação do direito pela força, de instrumento de denominação, de «império»” (26). Os adjetivos mal, força, denominação e obrigação são, assim, utilizados pela comunidade, desde a mais remota antiguidade clássica, para fazer alusão ao tributo. A herança que Roma nos deixou em matéria de tributação é a ideia do “imposto como produto e instrumento de opressão, crescendo à medida que se desenvolve a máquina político-legislativa; assente na força pura, sem referência à justiça” (27). É, assim, um sentimento de injustiça que está na origem do sistema tributário e que não obstante algumas vozes dissonantes (28) se mantém até à atualidade, no nosso ordenamento jurídico. A relação entre a administração tributária e o sujeito passivo, isto é, a relação jus tributária, é pautada por algum mau estar e bastantes fragilidades. Como poderá o tributo ser aceite, estimado e respeitado se a comunidade vive presa a uma ideia do passado e lhe desconhece qualquer fundamentação ética? A resposta poderá residir na busca de uma fundamentação ética da tributação,
colheita, devereis dar a quinta parte ao Faraó; as outras quatro partes servirão para semear e alimentar as vossas famílias e filhos… José fez disso uma lei, que ainda hoje vale para todo os terrenos do Egipto: um quinto da produção pertence ao Faraó”. Eis uma passagem da Bíblia Sagrada na qual se incute o dever de contribuir (entregar um quinto da produção ao faraó) para o direito de ter (terrenos e sementes para semear). (23) CAMPOS, Diogo Leite de, A Arbitragem Tributária “A Centralidade da pessoa”, Almedina, Coimbra, 2010, p. 20. (24) CAMPOS, Diogo Leite de, A Arbitragem…, cit., p. 20. (25) Pressuposto é segundo ANTÓNIO MORAIS DA SILVA, citado por SALDANHA SANCHES e JOÃO TABORDA DA GAMA é aquilo “que se supõe, e entende ou requer, que seja antecedente, e anterior ao seu consequente” (SANCHES, Saldanha, GAMA, João Taborda da, “Pressuposto Administrativo e Pressuposto Metodológico do Princípio da Solidariedade Social: a Derrogação do Sigilo Bancário e a Cláusula Geral Anti-abuso”, in Solidariedade Social e Tributação, org. MARCO AURÉLIO GRECO & MARCIANO GODOI, Dialética, São Paulo, 2005, pp. 89 a 109, cit. p. 89). (26) CAMPOS, Diogo Leite de, A Arbitragem…, cit., p. 20. (27) CAMPOS, Diogo Leite de, A Arbitragem…, cit., p. 20. (28) Alguns mentores da igreja, nomeadamente, S. Crisóstomo (S. João Crisóstomo – Antioquia C.340, Capadócia 407), Santo Agostinho (Tagasta, 354-430) e S. Tomás de Aquino (Castelo de Roccasecca, 1125 – Fossanova), 1274 defenderam, no geral, que o imposto visa permitir alcançar o Bem Comum sendo a fraude tributária um verdadeiro roubo contra a sociedade.
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ou tomando a expressão de DIOGO LEITE DE CAMPOS, na “humanização” (29) da tributação, ou seja na afirmação de um princípio da solidariedade social. 3.2. A ética tributária: a busca por um princípio de solidariedade social A ética tributária pode definir-se como a “humanização” e “solidarização” do tributo em todas as fases da sua vida. Tais critérios devem verificar-se em todos os momentos da vida do tributo, ou seja, ao nível do poder legislativo, judicial e administrativo, em especial, no relacionamento entre a administração tributária e o sujeito passivo (30). A ideia atualmente instituída na comunidade é a de que apenas uma pequena parte contribui para o sistema tributário. O peso da tributação sobre os cumpridores tende, assim, a tornar-se absolutamente incomportável. Partilhando do discurso de SALDANHA SANCHES/JOÃO TABORDA DA GAMA, alertamos para o facto de se criarem “assim, num primeiro momento, desigualdades relativas entre contribuintes cumpridores e incumpridores, e, num segundo momento, aumentos na carga fiscal daqueles, uma vez que, mantendo-se as necessidades colectivas a satisfazer, o Estado financiar-se-á junto das fontes de rendimento mais escrupulosas” (31). O problema surge quando as fontes de rendimento “mais escrupulosas” se começam a esgotar, quer porque se tornam insolventes, quer porque se tornam “menos escrupulosas”. Se toda a comunidade contribuir na medida da igualdade, então a carga distribuída igualmente por todos não se sentirá de forma excessiva. É necessário consciencializar a comunidade para o direito e “dever fundamental” (32) de contribuir. De facto, impõe-se que em cada ser que compõe a comunidade brote a consciencialização de que o Estado e outras entidades públicas para cumprirem as suas tarefas precisam de certos recursos ou meios. Tais meios e recursos são os impostos, as taxas e as contribuições que cada um de nós tem o “dever fundamental” de pagar. (29) CAMPOS, Diogo Leite de, A Arbitragem…, cit., p. 24. (30) Neste sentido, restringindo-se ao tributo imposto, refere MANUEL PIRES que “A ética tributária abrange todo o aspecto humano relacionado com os impostos: poderes legislativo, executivo e judicial, bem como os contribuintes e terceiros ligados ao fenómeno” (PIRES, Manuel, “Ética e Imposto”, in Ética Fiscal, cord. MANUEL PIRES, Colecção Ensaios, Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011). (31) SANCHES, Saldanha, GAMA, João Taborda da, “Pressuposto…”, cit., p. 104. (32) Concordamos com JOSÉ CASALTA NABAIS quando defende que o imposto (tributo, acrescentamos nós) se impõe como um dever fundamental que tem a sua disciplina traçada na nossa Constituição, integrando, pois, a “«constituição do indivíduo»”(NABAIS, José Casalta, O dever fundamental de pagar impostos, Almedina, Coimbra, 2012, p. 185).
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Devemos aceitar, como refere CASALTA NABAIS, que “a tributação não constitui, em si mesma, um objectivo (isto é, um objectivo originário ou primário) do estado, mas sim o meio que possibilita a este cumprir os seus objectivos (originários ou primários), actualmente consubstanciados em tarefas de estado social” (33). A tributação é, como já referimos supra, um pressuposto necessário à realização do Bem Comum e da Paz Social, isto é, à concretização de um princípio solidariedade social. Um princípio de solidariedade social decorre implicitamente do art. 103.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), o qual poderá, em nosso entendimento, ser elevado à categoria de um verdadeiro princípio concretizante de um dos princípios estruturantes da Constituição da República Portuguesa, ou seja, o princípio da sociabilidade. O direito e “dever fundamental” de contribuir deveriam estar incutidos na consciência de todos os cidadãos que integram a comunidade. Com efeito, tornando-se princípios éticos, tornar-se-ão desejavelmente e obrigatoriamente princípios de direito. No nosso ordenamento jurídico, a consciência tributária do povo parece estar adormecida. É necessário que a mesma desperte. Urge iluminar a consciência de cada cidadão com princípios éticos imanentes ao direito e “dever fundamental” de contribuir. Só assim a realização do princípio da solidariedade social será efetiva. O tributo não pode continuar “a ser encarado, nem como um mero poder para o estado, nem simplesmente como um mero sacrifício para os cidadãos” (34). Contrariamente, deve ser visto pela comunidade como um “contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade” (35). O valor ético deverá, assim, ser uma constante em todos os momentos da vida do tributo. Neste sentido, propõe-se, de seguida, um conjunto de instrumentos de ética tributária passíveis de adotar em cada um daqueles momentos. Tais instrumentos poderão constituir componentes essenciais na formação da tão almejada consciência tributária. 3.2.1. Instrumentos de ética tributária O valor ética na tributação vai muito além do dever de declaração do sujeito passivo e de colaboração entre aquele e a administração tributária. De facto, são vários os instrumentos que serão reveladores de ética na tributação. Tais instrumentos devem inserir-se nos diversos momentos da vida do tributo, (33) NABAIS, José Casalta, O dever fundamental…, cit., p. 185. (34) NABAIS, José Casalta, O dever fundamental…, cit., p. 185. (35) NABAIS, José Casalta, O dever fundamental…, cit., p. 185.
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ou seja, no momento de criação do tributo (i) e no momento de aplicação do tributo (ii). (i) Momento da criação do tributo A ética tributária deve verificar-se, ab initio, ou seja, a partir do momento da criação do tributo. A legalidade formal tem vindo a consentir, aos olhos da comunidade, a criação e a obrigação de pagamento do tributo. É a ideia de consentimento da tributação por parte dos sujeitos passivos que esteve, aliás, na sua origem (36). O princípio da legalidade garante que todas as receitas tributárias sejam criadas por lei, a qual deverá definir os elementos essenciais da obrigação tributária (37). No nosso ordenamento jurídico, a justificação do tributo basta-se, tão-só, pela sua origem legal (38). Sucede que o próprio princípio da legalidade tem vindo a dar sinais de um certo enfraquecimento, deixando de constituir, por si só, a garantia da criação de um direito tributário justo. A lei criada pelos supostos representantes do povo é, na maioria das vezes, subordinada a certos interesses individuais e especiais de determinados grupos de pressão (39). A lei (36) Com efeito, refere JOSÉ CASALTA NABAIS que o princípio da legalidade teve a sua origem na ideia de consentimento de impostos por parte do contribuinte. A ideia de que a tributação é um limite à liberdade individual e simultaneamente a ideia da segurança jurídica necessária à preservação daquela liberdade estão na origem do princípio da legalidade tributária. (NABAIS, José Casalta, O dever fundamental…, cit., p. 321). (37) O princípio da legalidade em matéria de impostos decorre do art. 102.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), no qual se pode ler que “Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuinte”. Em matéria de taxas e de contribuições decorre do art. 3.º, n.º 3, da Lei Geral tributária (LGT), no qual pode ler-se “O regime geral das taxas e das contribuições financeiras referidas no número anterior consta de lei especial”. O art. 8.º da LGT consagra o princípio da legalidade tributária impondo que “Estão sujeitos ao princípio da legalidade tributária a incidência, a taxa, os benefícios fiscais, as garantias dos contribuintes, a definição dos crimes fiscais e o regime geral das contra-ordenações fiscais” e ainda “a) A liquidação e cobrança dos tributos, incluindo os prazos de prescrição e caducidade; b) A regulamentação das figuras da substituição e responsabilidade tributárias; c) A definição das obrigações acessórias; d) A definição das sanções fiscais sem natureza criminal; e) As regras de procedimento e processo tributário”. (38) Como refere DIOGO LEITE DE CAMPOS, “Não se vai mais longe, indagando-se se essa lei é «Direito» por fundada na justiça. A forma de criação do imposto esgota o problema da justificação da sua criação” (CAMPOS, Diogo Leite de, A Arbitragem…, cit., p. 23). (39) A este respeito não podemos deixar de concordar com SALDANHA SANCHES quando, a propósito de um “Conjunto de problemas na democracia”, escreveu o seguinte: “Recentemente no que diz respeito aos problemas os autores liberais, que têm uma pressão muito crítica em relação ao Estado, aparecem retomando temas que antes eram da esquerda e que esta os deixou de tomar. Aparecem a tratar com grande destaque os grupos de interesse especiais que existem na sociedade.
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esquece, não raras as vezes, os direitos dos cidadãos, nomeadamente, os das minorias vencidas no parlamento ou daqueles que nada podem contra os grupos ativos que detém o poder económico e que dão expressão aos seus interesses através da sua canalização para todo o processo legislativo. Além disso, o legislador, como refere ISABEL MARQUES DA SILVA, encarna demasiadas vezes o papel do “cobrador de impostos” e mais do que “almejar a justa repartição dos encargos públicos, como lhe é eticamente e constitucionalmente imposto” (40), procura aumentar a carga tributária sem qualquer fundamentação ética. A solução residirá na consciencialização, em cada um de nós, de princípios éticos inerentes ao direito e ao “dever fundamental” de contribuir, porquanto todos os cidadãos são teoricamente suscetíveis de participar na vida política e de aceder a determinados cargos públicos. Com efeito, a participação na vida pública (41), o direito de acesso a cargos públicos (42) e a liberdade de associação (43) são direitos fundamentais dos cidadãos, logo a consciencialização ética deve residir em todos, enquanto possíveis candidatos e não apenas nos
Aponta-se uma contradição interessante, que é um dos problemas da Democracia de hoje entre a massa dos eleitores (todos nós)… A informação é adquirida por um pequeno grupo de especialistas, que raramente são neutros, ou seja estão ligados a interesses especiais desse sector, portanto temos que os ouvir com alguma reserva… Temos uma sociedade marcada por interesses especiais, isso verifica-se em relação a tudo e também aos impostos. Os impostos são objectos de estudos académicos, alguns muito interessantes e muito sérios mas que podem também ser marcados pelos interesses especiais. Aparece aqui a possibilidade de um grupo de cidadãos mais poderoso, mais influente e mais rico, não por qualquer teoria conspiratória mas porque as coisas funcionam realmente assim, influenciar alguns académicos que trabalham nestas matérias, para que eles tenham em relação à questão tributária posições que conferem os seus interesses e que são com eles compatíveis. De um lado estes interesses; do outro a massa dos eleitores, que possuem um interesse como cidadãos pela questão pública mas que não tem meios humanos, pessoais para ter uma opinião muito firme sobre as questões… Temos um conjunto de conflitos e de contradições sérias, em que a Democracia tem os seus limites e em que os interesses especiais podem por vezes ter mais força eleitoral que o conjunto global dos eleitores, porque este, como é evidente é um conjunto dividido e que só pode dar à questão pública e à política uma parte pequena da sua actividade e da sua vida”. (SANCHES, Saldanha, “Política Fiscal”, in Estado e Cidadania: O que impede boas políticas? org. VIRIATO SOROMENHO-MARQUES, Lisboa, 2007, pp. 111 a 132, cit. pp.114 e 115). (40) SILVA, Isabel Marques da, “Justiça e ética fiscal dos legisladores fiscais: pré condição ou obstáculo para vencer a crise económica global”, in Ética Fiscal, coordenação MANUEL PIRES, Universidade Lusíada editora, Lisboa, 2011, pp. 147 a 153, cit. p. 149. (41) Art. 48.º da CRP. (42) Art. 50.º da CRP. (43) Art. 51.º da CRP.
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atuais representantes do poder político. A consciencialização da existência de direitos e deveres fundamentais, maxime, do “dever fundamental de contribuir”, bem como a sua forma de execução são, em nosso entendimento, uma componente imprescindível na formação cívica de todos os jovens cidadãos. A introdução no ensino obrigatório de uma unidade curricular com noções fundamentais de direito seria, em nosso entendimento, um passo importante para a formação de uma verdadeira consciência ética nos educandos. De facto, estes serão os contribuintes, administrados e políticos de amanhã. A solução está em cuidar da semente e da raiz para depois nascer um fruto saudável. Uma semente e raiz bem cuidadas darão, certamente, um bom fruto. Esta parece-nos, de resto, uma verdadeira imposição constitucional, pois é uma tarefa fundamental do Estado promover, através do ensino, o desenvolvimento da personalidade, o espírito de solidariedade e de responsabilidade dos jovens para os consciencializar da importância da sua participação e colaboração com a vida pública (44). No seguimento do proposto e dado que nem todos os cidadãos desejam aceder a cargos públicos, talvez fosse vantajoso, por um lado, em situações justificáveis, apelar à participação do cidadão no processo legislativo de criação do tributo, nomeadamente através de formas de democracia direta, tal como o referendo sobre determinados aspetos da vida dos tributos45, impondo-se, contudo, uma alteração ao nível da Lei Fundamental (46) e, por outro lado, como refere CASALTA NABAIS, impor ao legislador uma maior responsabilidade “exigindo-lhe, através inclusive da constitucionalização duma tal exigência, a fundamentação adequada das leis e decretos-leis, a concretizar numa verdadeira exposição de motivos preambular” (47).
(44) Tal resulta, em nosso entendimento, da leitura conjugada dos arts. 9.º, alíneas b) e f), 7.º, n.º 1, e 74º da CRP. (45 ) Concordamos, pois, com CASALTA NABAIS quando refere que “não defendemos que se submeta a referendo se os contribuintes querem ou não pagar impostos – uma questão decidida, de resto, pela própria Constituição ao consagrar um Estado Fiscal –, o que não nos deixa, todavia, como única alternativa a interdição absoluta do referendo fiscal, já que não deixa de haver impostos ou aspectos destes que bem podem ser submetidos a referendo sem dificuldades técnicas de maior e sem receios demagógico-manipulativos, como, de resto, o prova a prática referendária fiscal dos Estados federados norte-americanos e da Confederação Helvética” (NABAIS, José Casalta, Direito Fiscal…, cit., p. 154). (46) Com efeito, a nossa Constituição veda no art. 115.º, n.º 4, alínea b), a possibilidade de referendo em matéria tributária. (47) NABAIS, José Casalta, Direito Fiscal…, cit., p. 26.
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(ii) Momento da aplicação do tributo O momento da aplicação do tributo pode analisar-se sob três diferentes pontos de vista. Em primeiro lugar, devemos considerar o ponto de vista da administração tributária (i.). Em segundo lugar, devemos cuidar de analisar o ponto de vista do contribuinte (ii.). Finalmente, em terceiro lugar, quando a primeira e a segunda perspetiva entram em conflito, temos de ter em atenção um terceiro ponto de vista, o dos juízes e dos árbitros que participam na administração da justiça. i. Do ponto de vista da administração tributária A atuação da administração deve pautar-se por vários princípios constitucionais (48). O princípio motor, como lhe chama DIOGO FREITAS DO AMARAL, de toda a Administração Pública é o princípio da prossecução do interesse público. Como refere o mesmo autor, a “administração existe, actua, e funciona para prosseguir o interesse público” (49). No entanto, ao prosseguir o interesse público, a Administração está limitada, pois deve fazê-lo sempre com respeito pelo princípio da legalidade e pelo princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. O sentido do princípio da legalidade, analisado agora do ponto de vista da atuação da administração, é o de que os órgãos da administração pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhe foram conferidos (50). A observância de princípios éticos pela administração será feita sempre que esta atue em estrita obediência à lei. Com efeito, se a lei a que administração deve obediência tiver sido eticamente criada pelo legislador, então a conduta do órgão administrativo será ética. O respeito pelo valor ética resultará, assim, não diretamente da atuação da administração, mas da própria lei a que esta deve obediência. Neste sentido, a conduta da administração só não será ética se esta praticar atos ilegais. Sucede que, cada vez mais, a lei concede à administração verdadeiros espaços de autonomia, ou seja, poderes discricionários. Ora, é no exercício desses poderes discricionários que se pede alguma cautela. Ao agir, a Administra(48) Art. 266.º da CRP. (49) AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 42. (50) Art. 3.º do CPA (Código de Procedimento Administrativo).
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ção deverá ter em atenção padrões de conduta éticos. Tais padrões serão assegurados sempre que a administração atue com respeito pelo direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e pelos princípios da justiça, da imparcialidade, da proporcionalidade, da igualdade e da boa-fé. Sabemos, contudo, que não raras vezes tais padrões de conduta falham e o sujeito passivo não tem confiança na administração. Como refere RITA CALÇADA PIRES, “verifica-se exigir a administração fiscal ao contribuinte comportamentos e ações extremamente exigentes, sem que, em muitos casos, do lado do fisco, haja o mesmo grau de exigência na sua actuação e no cumprimento dos seus deveres” (51). Parece-nos que a administração tributária deverá assumir um papel fundamental na criação dessa confiança, pois a ela cabe “el liderazgo en la demonstración de ética, responsabilidad y transparencia si quieren una respuesta recíproca de los contribuyentes” (52). Para uma consciencialização ética da Administração, tal como propusemos supra, será necessário tomar medidas ao nível da educação. Com efeito, a administração é uma realidade abstrata que na prática é constituída por diversos indivíduos, cuja formação é absolutamente essencial para o exercício de funções públicas. Além disso, impõe-se, por um lado, que toda a conduta da Administração Tributária se paute pela certeza e segurança jurídica. Como refere MIGUEL CRUZ AMORÓS, “la Administración debe preocuparse de la justicia del sistema y de la ética de aplicación si quiere que la obligación sea, además, convicción” (53) e, continua o mesmo autor, “La misión de la Administración tributaria no es sorprender sino proporcionar seguridad jurídica y previsibilidad en la aplicación de las normas” (54). A criação desse sentimento de segurança jurídica deve revelar-se, entre outros, no dever de fundamentação dos atos praticados pela administração, porquanto só assim o contribuinte poderá compreender a “correcta aplicação da lei pela administração fiscal” (55). Por outro (51) PIRES, Rita Calçada, “Ética e imposto – reflexo de uma preocupação com a valorização da sociologia e da psicologia fiscais”, in Ética Fiscal, coordenação MANUEL PIRES, Universidade Lusíada editora, Lisboa, 2011, pp. 33 a 58, cit. pp. 41 e 42. No texto citado a autora propõe um conjunto de ações para aproximar o contribuinte do dever de contribuir, nomeadamente imprimindo a ética em todas as funções do Estado (legislativa, executiva e judicial). (52) AMORÓS, Miguel Cruz, “Reforzar la ética de los funcionarios y los contribuyentes es condición para superar la crisis económica?”, in Ética Fiscal, coordenação MANUEL PIRES, Universidade Lusíada editora, Lisboa, 2011, pp. 15 a 20, cit. p. 17. O autor cita nestas palavras a apresentação canadiense sobre transparência e ética na assembleia geral de 2010 do Centro Interamericano de Administrações Tributárias – CIAT. (53) AMORÓS, Miguel Cruz, “Reforzar…”, p. 16. (54) AMORÓS, Miguel Cruz, “Reforzar…”, p. 16. (55) PIRES, Rita Calçada, “Ética e imposto…”, p. 47.
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lado, impõe-se que a Administração colabore com o sujeito passivo, nomeadamente adotando uma postura transparente e divulgando amplamente a aplicação efetiva das receitas obtidas, prestando as informações que lhe forem solicitadas, auxiliando no preenchimento das declarações, sensibilizando e publicitando através de campanhas a importância do cumprimento do “dever fundamental” de contribuir para a concretização de um princípio de solidariedade social (56). ii. Do ponto de vista do sujeito passivo Além da Administração, cabe também ao sujeito passivo desenvolver uma verdadeira consciência tributária. Em nota breve à obra em que reuniu um conjunto de textos coligidos de Eça de Queirós, publicados nas páginas do “Distrito de Évora e das Farpas”, na juventude do escritor, SÉRGIO VASQUES dá-nos conta dessa falta de consciência tributária do povo, imputando algumas responsabilidades à tradicional tributação do consumo. Refere o autor que “Portugal teve habilidade e imaginação na tributação do consumo” (57), pois “foram muitas as modas fiscais que por aqui nasceram, mais ainda as que por aqui passaram” (58), no entanto “ficou o país refém desse sucesso, refém da rotina alfandegária e das barreiras que à entrada das cidades se erguiam para exigir os direitos de consumo; refém das empresas majestáticas que se erguiam em torno dos monopólios; refém de um povo que, sempre habituado a pagar o imposto por entre o preço das coisas, chegaria ao século vinte sem uma consciência tributária formada” (59). Urge, como já referimos neste texto, a criação de uma verdadeira consciência tributária. Para a formação dessa consciência, importa implementar determinadas medidas, algumas das quais por nós já referidas aquando da análise do momento da criação do imposto e da perspetiva da atuação da adminis(56) Tal como ocorre, por exemplo, no ordenamento jurídico espanhol. A Ley General Tributaria prevê no art. 92.º várias formas de colaboração entre a Administração Tributária e o sujeito passivo, tais como “acuerdos”, “Realización de estudios o informes relacionados con la elaboración y aplicación de disposiciones generales”, “Campañas de información y difusión”, “Simplificación del cumplimiento de las obligaciones tributarias”, “Asistencia en la realización de autoliquidaciones, declaraciones y comunicaciones y en su correcta cumplimentación”, “Presentación y remisión a la Administración tributaria de autoliquidaciones, declaraciones, comunicaciones o cualquier otro documento con trascendencia tributaria, previa autorización de los obligados tributarios”. (57) VASQUES, Sérgio, Eça e os Impostos, Almedina, Coimbra, 2000, p. 5. (58) VASQUES, Sérgio, Eça e os Impostos, cit., p. 5. (59) VASQUES, Sérgio, Eça e os Impostos, cit., pp. 5 e 6.
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tração tributária. No elenco das medidas supra referidas, um papel essencial caberá à educação para a formação dessa consciência, apelando ao sentimento do direito e “dever fundamental” de todos contribuírem para a realização do Bem Comum e concretização do princípio da solidariedade social. O contribuinte bem formado e consciencializado será um bom parceiro da administração, nomeadamente utilizando os recursos e incentivos existentes para que o outro contribuinte também cumpra. Além das medidas já referidas, para reinventar a relação entre o sujeito passivo e a administração tributária, deve chamar-se a responsabilidade de outros atores sociais. Com efeito, na reinvenção desta relação caberá, em nosso entendimento, um papel preponderante à atuação dos advogados e dos consultores fiscais (60). Estes profissionais deverão informar, esclarecer e incentivar o sujeito passivo a declarar a realidade dos factos à administração tributaria. Atualmente, é do conhecimento geral que o bom funcionamento do sistema tributário depende cada vez mais de uma atuação ética por parte do contribuinte. É necessário travar a fuga aos impostos, a fuga a um “dever fundamental” que impera sobre todos nós. Reconhecemos, contudo, que nem sempre será fácil a atuação daqueles profissionais, pois poderão enfrentar algumas resistências por parte dos seus clientes. Uma vez mais um papel preeminente caberá à educação e à formação dos jovens advogados e consultores fiscais. No âmbito das respetivas licenciaturas (quando o consultor fiscal não for licenciado em direito) parece-nos que seria de uma grande utilidade a introdução no plano de cursos de uma unidade curricular ligada a outras ciências, tais como a psicologia e a sociologia. É um instrumento de trabalho indispensável aos profissionais da área, o conhecimento sobre o Homem enquanto ser pensante, introduzido no meio de uma determinada comunidade. Ao perceber os anseios dos seus clientes, os profissionais formados poderão mais facilmente ultrapassá-los e apelar ao sentido do “dever” e da “solidariedade”. De facto, estes deverão consciencializar os seus clientes dos seus deveres e dos seus direitos, bem como do correto exercício dos mesmos e dos efeitos positivos que o seu correto exercício tem na realização do Bem Comum e na concretização do princípio da solidariedade social.
(60) Neste sentido, a propósito da relação entre o “Contribuinte e o Estado”, refere RITA CALÇADA PIRES que “Sobre o contribuinte recaem (…) um vasto escopo de expectativas na forma de agir e de se relacionar com a fiscalidade e o papel dos consultores fiscais e dos advogados reveste-se, neste domínio, de primacial importância” (PIRES, Rita Calçada, “Ética e imposto…”, cit., p. 49).
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iii. O ponto de vista dos tribunais Enquanto órgãos de soberania, os Tribunais, através da boca do juiz e do árbitro, administram a justiça em nome do povo. Logo, cabe também aos Tribunais um papel fundamental para a formação de uma consciência tributária do povo. Ao juiz ou ao árbitro caberá, assim, assumir um papel de “consciencializador”, ao longo de toda a marcha processual e, quando esse papel não surta efeitos ao longo do processo, na própria proclamação das sentenças e acórdãos que deverão ser devidamente fundamentados. Para assumir esse papel também os titulares dos órgãos jurisdicionais devem estar previamente consciencializados, daí a importância, uma vez mais, do fator educação. Além disso, tal como em relação aos advogados, impõe-se na formação dos juízes alguns conhecimentos sobre o ser pensante e sobre o ser sociológico. O papel do juiz ou do árbitro não deve, pois, resumir-se à aplicação do direito, mas também à explicação e repulsa dos factos que violam os princípios éticos imprescindíveis à formação da consciência tributária. A jurisprudência poderá aqui assumir um papel fundamental na divulgação dos princípios éticos da tributação.
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Ética e direito penal (Reflexões epistemológicas sobre as relações entre ética e direito penal em face do direito positivo português)
Fernando Conde Monteiro
Nota prévia Sendo este ano subordinado ao tema “Ética e Direito” o habitual colóquio realizado no âmbito do Departamento de Ciências Jurídicas Publicistas, sentimos naturalmente a obrigação também ética de nos debruçarmos sobre as relações entre esta mesma ética e o direito penal. Portanto, este nosso pequeno contributo é assim uma reflexão sobre a eticidade do agir humano no contexto jurídico-penal.
A ética enquanto problema geral do ser humano Introdução A ética constitui uma dimensão universal e atemporal do ser humano. Ela nasceu do inter-relacionamento humano ou seja, da necessidade de dar resposta às questões que este inter-relacionamento colocou e ainda coloca ao mesmo ser humano (1). Efectivamente, o agir, o não agir, entre seres humanos, sempre colocaram prementes problemas de legitimidade ética. Até onde poderemos actuar relativamente ao nosso próximo? E em sentido oposto, até onde poderemos recusar esse mesmo nosso agir? Por outro lado, o desenvolvimento das (1) O que de resto não invalida a existência de éticas não sociais. Efectivamente, o relacionamento do indivíduo com a divindade (ética religiosa) pode possuir meras componentes associais. O dever de cultuar a divindade, por exemplo, pode nada ter que ver com o relacionamento relativo a terceiros. Por outro lado, poderemos também conceber uma mera ética solipsista, exclusivamente centrada no indivíduo. Se eu acho que devo perseverar a minha vida, promover a minha saúde, beleza, prazer, etc., por via de mim mesmo e para mim próprio (ética egoística), poderei naturalmente construir um sistema de princípios, valores e normas a adoptar, com a possibilidade também de os infringir. O único e fundamental problema que este tipo de ética levanta é de natureza epistemológica. Como fundamentar quaisquer asserções que possamos enunciar? Se renunciarmos a terceiros (seja a divindade ou os seres humanos), ficando assim apenas connosco próprios, tudo poderemos afirmar e, portanto, nada poderá dar qualquer solidez aos nossos enunciados…
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nossas sociedades implicou uma enorme complexidade das relações sociais (2). De facto, estas apresentam desde logo esta complexidade no mero plano dos intervenientes. Pessoas singulares relacionam-se entre si mas igualmente com diferentes entes colectivos. Estes, por sua vez, estabelecem múltiplos vínculos entre si, apresentando igualmente características muito heterogéneas (3). Por outro lado, nem os animais ou a própria natureza deixam de relevar neste plano (4). Podemos assim concluir que a necessidade de estabelecer, antes de mais, princípios, valores e normas no relacionamento dos seres humanos é uma realidade insofismável.
Os diferentes tipos de ética Aspectos gerais A referida complexidade das nossas sociedades implica naturalmente a necessidade de diferentes tipos de regras adequadas ao concreto tipo de realidade a regular. Daqui que se compreenda a presença de diferentes tipos de ética inerentes a cada espécie de objecto a tratar (5). Por outro lado, esta diferença de natureza de regras não diz apenas respeito aos diferentes objectos de relacionamentos em presença. Expressa igualmente diferentes características provenientes do tipo de relacionamentos em causa, que podem derivar de específicas intencionalidades, contextos culturais e históricos, aspectos idiossincráticos, etc. A ética reflecte assim, necessariamente, um contexto existencial, embora também actue sobre este, influenciando-o.
(2) Neste sentido, o nosso artigo “Algumas Reflexões Sobre O Direito Penal A Partir Da Psicanálise”, in Revista Jurídica da Universidade Portucalense, n.º 15, 2012, p. 73; MORIN, Edgar, Introduction à la pensée complexe, Paris, ESF éditeur, 1990. (3) Assim, o nosso artigo “Algumas Reflexões Epistemológicas Sobre o Direito Penal”, in Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Vol. II, Coimbra Editora, 2009, p. 763. (4) Sobre os animais, na extensa bibliografia, e entre outros, Animal Rights and Human Obligations, REGAN, Tom e SINGER, Peter (eds.), 2.ª ed., New Jersey: Prentice Hall, 1976; The Animal Ethics Reader, Susan Armstrong, BOTZLER, Richard, 2..ª ed., 2008. Relativamente ao meio ambiente numa perspetiva de globalização , entre outros, ATTFIELD, Robin, The Ethics of the Global Environment, Edinburgh University Press, 1999; PETERSON, Anna, Being Human, Ethics, Environment and Our Place in the World, University of California Press, 2001. (5) Cf. BLACKBURN, Simon, Dicionário de Filosofia, The Oxford Dicionary of Philosophy, Oxford University Press, 1994, trad., Lisboa, Gradiva, 1997 (“ética de situações”), pp. 145-6. 46
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A ética e o direito penal Introdução Se olharmos para a realidade jurídico-penal, de imediato deparamo-nos com a existência de uma multiplicidade de normas de conduta (negativas e positivas) acompanhadas de consequências maioritariamente punitivas (6). Naturalmente que o contexto em causa implica aspectos caracterológicos que inevitavelmente se irão, em maior ou menor grau, reflectir no tipo de ética existente. Portanto, será a partir daqui que iremos perscrutar a natureza e sentidos gerais da ética aqui presente. Características fundamentais da ética jurídico-penal Esta ética apresenta um propósito definido. Não se trata de caracterizar o ser humano, maximizando as suas qualidades éticas, com vista a traçar a sua perfeição eticamente concebida (7). Trata-se tão-só de pretender que os homens respeitem padrões básicos de comportamentos. Neste plano encontramo-nos perante uma ética minimal (8). É igualmente uma ética de fins (9). Por via da sua origem de cariz funcional atrás referida, o seu propósito básico é, antes de mais, o de evitar a produção de condutas reais, definindo os limites ou imposições do agir humano, latamente concebido (incluindo a omissão, portanto). Deste modo, simples pensamentos, intenções, decisões, por regra, não interessarão neste plano, apenas como expressão de condutas exteriores (ética grosseira) (10). (6) Neste sentido, desenvolvidamente, o nosso Direito Penal I, AEDUM, 2013, pp. 15 e segs. (7) Algo que, por exemplo, ao estilo kantiano, se poderá revelar naturalmente utópico, por via da citada complexidade e heterogeneidade do viver humano. Efectivamente, como pretender cobrir espaços tão diferentes entre si como o sejam, v.g., o relacionamento do indivíduo consigo próprio, as relações entre indivíduos no seio de uma corporação profissional ou como conciliar uma ética religiosa de cariz católica, por exemplo, com uma ética desportiva? (8) Sobre isto, tendo em conta as limitações num plano contextual (jurídico) e extracontextual (social), a nossa Sobre a Omissão Impura em Direito Penal (Reflexões acerca do fundamento e do ilícito material-objetivo do crime de omissão impura), Braga, 2006, pp. 91 e segs. (9) Lembremos de resto que toda a ética comporta necessariamente finalidades ou é dotada de uma qualquer intencionalidade, antes de mais, de regular o inter-relacionamento humano, deste com a divindade (ética religiosa) ou mesmo, eventualmente, num plano intrinsecamente individualista (ética individual), supra n. 1. (10) Algo derivado do nosso ordenamento jurídico-penal ser um direito penal do facto e não de personalidade, por via, antes de mais, do princípio da legalidade. Sobre este último, em termos de ciência jurídico-penal, o nosso Direito Penal I, cit., pp. 86-7. Especificamente sobre a incapacidade de legitimação de um direito penal meramente assente em pensamentos, intenções, ainda a nossa Sobre a Omissão Impura em Direito Penal, cit., pp. 348-9. 47
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Esta mesma ética, por virtude igualmente da sua ligação à realidade jurídico-penal e particularmente por via do lado empírico desta, ou seja, da sua intencionalidade de produzir efeitos na sociedade, prevenindo a prática de actos eticamente ilegítimos, deve igualmente exercer uma função limitadora da intervenção deste último item.
O direito penal Introdução O direito penal, como já deixámos dito, apresenta dois aspectos fundamentais. A um lado, é pura ética (jurídico-penal). A outro, é eficácia ou pretende sê-lo. Isto significa portanto que, antes de mais, o sistema jurídico-penal visa estabelecer princípios, valores, normas de natureza ética, no sentido de regular condutas de entes individuais, colectivos e mesmo relativamente à natureza (11). Por outro lado, o direito penal não se contenta com a mera regulamentação do agir (em sentido amplo), visa igualmente influenciar este, ou seja, procura evitar a realização de actos ou omissões (lado empírico) (12). O lado puramente ético do direito penal Como já deixámos dito, o inter-relacionamento humano implica a necessidade de se estabelecerem normas de condutas, que se configurem como legítimas. Por outro lado, também já sabemos que esse inter-relacionamento se apresenta como algo necessariamente complexo. Efectivamente, esta complexidade surge, antes de mais e como já referimos, do tipo de entes nele presentes (pessoas singulares, colectivas, natureza, animais). Ganha, por outro lado, densidade igualmente complexiva, por virtude da própria espécie (natureza de objectos) de relacionamentos em causa. Finalmente, é algo que de per se se afigura ainda difícil de se determinar. Efectivamente não se trata somente (e isso já é tarefa complexa) de erigir princípios, valores e normas de conduta. Ainda se torna imperativo determinar contextos justificativos (eventualmente exculpativos) de violações (aparentes) de normas.
(11) Obviamente que este último tópico (natureza) só tem sentido como algo em relação ao ser humano, por via, antes de mais, do sujeito enunciador desta mesma ética, também por via das consequências deste tipo de relacionamento. (12) Neste sentido, o nosso Direito Penal I, cit., pp. 5-6. 48
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Os critérios de legitimação Introdução Os critérios de legitimidade de quaisquer normas éticas não poderão naturalmente abstrair do contexto envolvente dessas mesmas normas. Se, por exemplo, no plano de uma religião revelada, se aceita sem mais a existência de regras éticas, porque directa ou indirectamente provenientes do ente transcendente (ética religiosa); já num plano laico, as normas, por princípio, existentes não encontrarão do seu emissor qualquer legitimidade material – o mero critério orgânico será assim, em regra, insuficiente. O mesmo se dirá natural e relativamente a quaisquer critérios formais.
Os critérios de legitimação jurídico-penais Espécies de critérios a considerar Introdução Também aqui, naturalmente que aspectos contextuais deverão fazer-se sentir. Efectivamente se, por exemplo, fizermos derivar o direito (penal) da mera vontade do soberano (algo que aconteceu no passado e ainda sucede em determinados sistemas jurídico-penais), naturalmente que este facto implica uma tomada de postura oposta ao caso em que tal não suceda; noutros termos, a tarefa de legitimidade desde logo material será ou poderá ser extremamente fácil de determinar em sistemas deste teor e particularmente difícil em ordenamentos que estabeleçam critérios de legitimidade material. Aspectos contextuais no âmbito do direito penal O sistema jurídico-penal português é um sistema laico. Tal significa que nenhum critério de base religiosa deverá aqui intervir. Portanto, a tarefa em causa deverá ser realizada através de critérios que de nenhum modo façam apelo a realidades de natureza transcendental (13). Serão, deste modo, juízos críticos (13) Sobre as relações no plano epistemológico entre religião e direito penal, o nosso “Para uma caracterização sumária de um moderno direito penal”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Aníbal de Almeida, Coimbra Editora, 2012, pp. 704-6. Com interesse ainda e sobre as relações entre a religião e o direito nos Estados anglo-saxónicos, EDGE, Peter W., Religion and Law, an Introduction, Ashgate Publishing, 2006. 49
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de natureza racional a desempenharem este papel. Por outro lado, tratar-se-á de tomar em consideração que estaremos perante realidades provenientes antes de mais do dever-ser. Ou seja, não nos encontramos perante um tipo de fenomenologia de carácter meramente empírico. Dever-se-á finalmente referir que a questão em causa não deixará naturalmente de fazer apelo a realidades de múltipla natureza: aspectos contextuais de carácter jurídico, não somente jurídico-penal, de âmbito filosófico, de natureza científica e portanto também empírica, de carácter histórico, cultural, etc. Tal derivará, antes de mais, do carácter intrinsecamente contextual da fenomenologia em causa e, portanto, do âmbito necessariamente aberto desta. Noutros termos, dir-se-á que, sendo a ética jurídico-penal produto do ser humano e este constituindo um ser multifacetado, também esta mesma ética não poderá ficar imune a toda esta trama de aspectos que necessariamente a envolvem (14).
Enunciação de alguns princípios fundamentais inerentes à realidade jurídico-penal e sua fundamentação Introdução Poderemos encontrar fundamentalmente três tipos de critérios de legitimação das normas jurídico-penais: um critério orgânico, outro formal e, finalmente, um material. Será facilmente compreensivo que o mais importante é o último dos mencionados critérios. Efectivamente, é no plano material que se revela de forma mais pertinente o conteúdo ético-normativo inerente às decisões tomadas pelo legislador e os seus consequentes efeitos para os concretos destinatários. Deste modo, pouco importará que a decisão seja conforme com o procedimento formal e tomada pelo órgão legitimado a tal. Tudo isto será irrelevante se o concreto conteúdo normativo for intrinsecamente ilegítimo. Certamente que o oposto também poderá ter lugar: um conteúdo adequado em contraste com o desrespeito de normas processuais. Simplesmente, neste último caso, para além de, por regra, ser mais simples aferir da sua ilegitimidade, não se configura, em si mesma e por princípio, a gravidade de violações materiais. Entre matar alguém ilegitimamente do ponto de vista material e apenas omitir
(14) Neste sentido, a nossa Sobre a Omissão Impura em Direito Penal, cit., p. 58. 50
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um trâmite processual de validação de uma norma, há naturalmente uma óbvia distância, que impede de sequer se poder traçar um termo de comparação (15). Por consequência, iremo-nos debruçar sobre os critérios materiais de legitimação da ética jurídico-penal, mais numa base especulativa, em termos especificamente epistemológicos e sem pretendermos de nenhum modo realizar um exame exaustivo desta problemática.
A definição de critérios de legitimação ética no plano dos princípios jurídico-penais Introdução Um qualquer discurso de carácter ético-jurídico deve apresentar-se como validado em termos epistemológicos. Isto significa, desde logo, que qualquer afirmação neste plano meramente fundamentada num plano individual (doxa) carecerá totalmente de validação material. Efectivamente, reduzir o discurso neste âmbito a meras afirmações sem mais implica a possibilidade de fundamentar tudo e, portanto, nada fundamentando (16). Deste modo, parece óbvio que a objectividade terá aqui necessariamente que ser afirmada. As preposições deverão valer para além do seu sujeito enunciador e, portanto, num plano transcendente a este.
Os princípios axiomáticos, os valores e as normas Sua formulação inicial A ética implica a enunciação de princípios axiomáticos. Estes permitem expressar uma perspectiva global que sustente o surgimento de valores (axiologia), que, por sua vez, fundamentarão o surgimento das específicas normas. Daqui surgirá uma regulamentação prévia, inicial, expressa através de normas proibitivas ou impositivas. Tal expressará no plano axiológico a ilicitude das condutas contrárias a estas normas.
(15) De notar também neste âmbito a possibilidade amiudadas vezes de se sanar vícios formais ou orgânicos pelo decurso do tempo, sendo tal mais difícil de acontecer no plano material. (16) Supra n. 1. Neste sentido, HUSSERL, Ideen zu einer Phänomenologie und phänomenologischen Philisophie, I, 1950, §103. 51
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Sua delimitação final O carácter inicial proibitivo ou impositivo das normas e a sua expressão no âmbito axiológico podem ser apagados pela existência de contextos empírico-axiológico-normativos. Estes, a partir da teleologia inerente à realidade concreta inicialmente desenhada, vão assim dar sentido a condutas inicialmente consideradas ilícitas.
O inter-relacionamento humano como substrato dos princípios jurídico-penais Enunciação e fundamentação de alguns dos mais fundamentais princípios axiológicos jurídico-penais a partir do relacionamento humano As relações de independência dos indivíduos e o princípio da não interferência ou não ingerência na esfera alheia O inter-relacionamento humano entre simples seres singulares, sem mais, só pode ser fundamentado, ab initio, num plano de igualdade. Se todos somos iguais no plano da nossa natureza e, assim, na nossa dignidade, portanto, enquanto pessoas, então, o nosso agir não pode naturalmente escapar a este fundamental princípio (17). Daqui que dele se possa fazer derivar a existência de um princípio de liberdade (encarada esta, antes de mais, num plano externo) como fundamento do nosso agir ou não agir. Trata-se assim de uma fundamentação intrínseca, intrapessoal. A liberdade em causa, por outro lado, pode esbarrar com a liberdade daquele com quem coexistimos, que também detém a mesma legitimidade que nós mesmos. Portanto, se, em regra, a minha liberdade não legitima a intervenção sem mais no outro, esta legitimidade só poderá encontrar fundamento na liberdade do outro. Noutras palavras, será através, antes de mais, do seu consentimento (acto de liberdade) que, por regra, o exercício da minha liberdade ganhará legitimidade. Deste modo, de tudo isto deriva logicamente um princípio de não ingerência em esfera alheia, como regra geral das condutas humanas. O que aqui se afirma relativamente a entes singulares também tem sentido relativamente a entes colectivos. Estes, num plano horizontal (a partir da sua igual dignidade), só poderão interferir uns com os outros no âmbito do exercí(17) Neste sentido, a nossa Sobre a Omissão Impura em Direito Penal, cit., pp. 66 e segs. 52
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cio da sua liberdade e, portanto, através do consentimento da parte que é objecto de interferência (princípio de não ingerência). Deste modo, o conceito do agir sem mais pode ser plenamente afirmado se não interferir com terceiros; caso contrário, pode, desde logo, ser legitimado, se ao menos for aceite pelo seu destinatário. Não se esgotando deste modo esta problemática, poder-se-á de qualquer maneira afirmar constituírem estas asserções aspectos básicos do agir humano. As relações de dependência dos indivíduos e o princípio de interferência ou ingerência na esfera alheia O ser humano, a par da sua autonomia, também é caracterizado como um ser dependente de terceiros. Desde a concepção (18) até atingirmos a idade adulta que nos manifestamos como seres dependentes de outros. Dependência esta que se pode expressar ainda no plano da existência de estados patológicos a ela conducentes, no âmbito económico, jurídico, social, etc. Algo, de resto, cada vez mais presente e acentuado nas modernas sociedades, por virtude, antes de mais, da hipercomplexidade que as caracteriza (19). Dentro deste plano, as próprias relações entre entes colectivos, maxime o Estado e os seus membros, podem igualmente manifestar esta característica. Daqui, desde logo, resulta a existência de uma maior ou menor ingerência da parte de quem detenha uma posição dominante em face do dependente. Limitações, antes de mais, à liberdade do intervencionado serão aqui óbvias. Também incursões de natureza pessoal (à privacidade, desde logo) não serão de excluir, como igualmente no plano económico e mesmo patrimonial (basta pensar nos impostos), jurídico, cultural, etc. De notar, de qualquer maneira, que o sentido destas limitações não se apresenta com carácter necessariamente nefasto. Em caso de patologias, de menoridade e mesmo no plano estatal, por exemplo, há um global sentido positivo de assegurar o bem-estar dos seus destinatários, promovendo, por exemplo, o desenvolvimento da sua personalidade (através do Estado), minorando as suas limitações (patologias), assegurando o seu crescimento harmonioso (menores), etc. Poderemos mesmo considerar que, eticamente, o fenómeno da dependência, por um lado, pode ter um sentido de positividade (solidariedade, (18) A nossa existência deveu-se aos outros e não a nós próprios, pelo menos num plano empírico. (19) Complexidade que de resto assenta na sua base no próprio desenvolvimento tecnológico e nos riscos inerentes à sua utilização. Sobre a sociedade do risco e o direito penal, FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, PG, TI, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2007, pp. 133 e segs. 53
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protecção, auxílio…); por outro, que as limitações, a terem lugar, terão de ser necessariamente subordinadas a um inquestionável princípio de proporcionalidade, que em última análise preserve a pessoa humana no seu núcleo essencial de direitos fundamentais (concepção antropológica inerente ao sentido último da existência humana). Epistemologicamente, a fundamentação do que se acabou de referir repousa necessariamente numa ideia de estado de necessidade em que a presença inevitável da relação de dependência é limitada ao mínimo imprescindível, entendido este não apenas empiricamente mas igualmente num plano axiológico. O que naturalmente apenas expressa a condição do ser humana como ente em essência livre, porque igual entre si (no plano dos seus membros): fundamento antropológico de todo o relacionamento humano (20). O plano comunicacional entre indivíduos e o princípio da veracidade Se o inter-relacionamento humano nunca poderá abstrair do aspecto comunicacional, este, por seu turno, para ter efectivamente lugar e ser legitimado, deverá consequentemente ser expressivo de um inequívoco princípio de veracidade, sob pena de o processo em causa se revelar desprovido de sentido e assim sair frustrado. Que tal comporte a possibilidade de excepções, explicáveis num plano de um estado de necessidade, será algo que naturalmente aceitamos, o que também não invalidará, de qualquer maneira, o seu funcionamento como regra.
O direito penal e a eficácia Introdução Como anteriormente referimos, o lado empírico (21) do direito penal apresenta-se, antes de mais, como uma intencionalidade de eficácia. Noutras palavras, a realidade jurídico-penal pretende assegurar em termos técnico-jurídicos o cumprimento do conteúdo normativo a ela inerente.
(20) Assim, a nossa Sobre a Omissão Impura em Direito Penal, cit., pp. 68 e segs. (21) De notar que esta bipartição entre aspecto ético e empírico não é de todo absoluta. Toda a ética pressupõe uma realidade empírica (desde logo, em ser humano de carne e osso, condicionado por uma multiplicidade de factores empíricos) e toda a questão da eficácia não deixa de também obedecer a aspectos éticos. 54
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O problema dos modelos empíricos de intervenção jurídico-penal e as suas relações com a ética A discussão dos modelos de intervenção na sociedade através do direito penal pode ir desde a hipótese da sua não intervenção até diferentes modos de esta ter lugar (22). De qualquer maneira, deve-se referir que esta discussão não pode de nenhum modo abstrair de considerações éticas. Efectivamente, intervenções sobre seres humanos (mesmo entes colectivos) acarretam custos mais ou menos elevados para estes (basta, desde logo, pensar na pena de morte, penas corporais, pena de prisão perpétua ou limitada, pena de dissolução…). Portanto, não se pode simplesmente ignora este decisivo facto (23). Os sistemas jurídico-penais modernos: características mais salientes De um modo geral, a grande maioria dos sistemas jurídico-penais vigentes assenta numa base punitiva. A esta são acrescentados elementos de cariz socializador (mesmo de natureza terapêutica) (24). Por outro lado, em todos eles se faz sentir em maior ou menor grau a influência da ética, sob a forma de um omnipresente princípio da proporcionalidade. Daqui que a espécie de consequências jurídico-penais e sua duração (abstracta e concreta), desde logo, isto mesmo reflicta. Os limites da eficácia no plano jurídico-penal Quaisquer modelos que possam ter lugar no âmbito jurídico-penal poderão ser, desde logo, objecto de críticas no plano epistemológico, dado o facto de, neste âmbito, não podermos decompor a realidade em camadas mais simples e assim realizarmos experiências laboratoriais (25). Deste modo, as estatísticas
(22) Sobre esta problemática desenvolvidamente, o nosso Direito Penal I, cit., pp. 15 e segs. (23) De notar que o moderno direito penal surgiu fundamentalmente como reacção a um direito pregresso extremamente gravoso nas suas consequências para os seus destinatários. Sobre tudo isto, o nosso “Para uma caracterização sumária de um moderno direito penal”, cit., pp. 728-0 (24) Neste sentido, MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, PG, III, Teoria das Penas e Medidas de Segurança, Verbo, 2008, pp. 19-0. (25) Assim, o nosso “As finalidades das penas no âmbito do artigo 40.º do Código Penal”, in Estudos em Homenagem a Joaquim da Silva Cunha, Fundação Universidade Portucalense Infante D. Henrique, 1999, pp. 326-7. 55
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sobre a criminalidade (a existirem) (26), para além das suas próprias limitações (27), podem dizer muito pouco ou quase nada sobre a real operacionalidade de um concreto sistema jurídico-penal. Assim, por exemplo, o aparente sucesso de uma nova pena pode nada ter que ver com o seu surgimento, mas dever-se a um factor estranho não considerado. De resto, é conhecido o facto de pesarem na caracterização dos sistemas jurídico-penais factores de múltipla proveniência a ele totalmente alheios em termos epistemológicos. Efectivamente, o desenho e as características de um concreto sistema obedecem frequentemente a aspectos como tradições, ideologias políticas, perspectivas idiossincráticas, estereótipos, etc. Neste plano, não há sistemas puros. Tudo se encontra poluído (28). Em última análise, há extensas áreas que só poderão ser sustentadas num plano de crença. Deste modo, finalidades de justiça, problemas como a verdade não são nunca, na sua plenitude, demonstrados (29). A própria eficácia revela-se largamente como um mito (30). Tudo isto implica um necessário reforço de considerações de eticidade.
O direito penal português: o lado intrinsecamente ético Considerações gerais O princípio da não interferência na esfera jurídica alheia manifesta-se de forma concludente ao longo, desde logo, do Código Penal (CP) (arts. 131.º e segs.). Expressa-se através de uma axiologia que contempla valores como a vida (incluindo a vida intra-uterina), a integridade física, a liberdade, etc. Ao mesmo tempo, o princípio da interferência revela-se, desde logo, a partir do art. 10.º do CP (31). Expressões, para além desta, na parte especial, têm lugar como no âmbi-
(26) Pense-se entre nós, por exemplo, na falta de estatísticas sobre a reincidência. (27) Como uma ciência de alcance médio designam FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, Criminologia, Coimbra Editora, 1984, p. 159, a criminologia, na esteira de Merton. (28) Algo comum a muitas outras áreas: educação, administração pública, saúde, etc., epistemologicamente abrangidas pelas designadas ciências sociais. Neste sentido, o nosso artigo “Algumas Reflexões Epistemológicas Sobre o Direito Penal”, cit., pp. 759-0. (29) Assim, o nosso artigo “O problema da Verdade em Direito Processual Penal (Considerações Epistemológicas)”, in Que Futuro para o Direito Processual Penal. Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, coord. MONTE, Mário et al., 2009, pp. 327 e segs. (30) Sobre em geral a disfuncionalidade dos sistemas jurídico-penais, FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, Criminologia, cit., pp. 443 e segs. (31) Sobre esta problemática, a nossa Sobre a Omissão Impura em Direito Penal, cit. 56
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to do art. 139.º, n.º 1, alínea b), art. 200.º ou art. 205.º. Por outro lado, o princípio da veracidade tem abundantes expressões: arts. 248.º, 256.º e segs., 336.º, etc. Outros princípios têm naturalmente lugar como o princípio da imparcialidade dos funcionários públicos (arts. 372.º e segs. do CP), princípio da protecção da natureza (arts. 278.º, 279.º a 281.º do CP), etc. Por outro lado, trata-se também aqui (caso português), inequivocamente, de uma ética de externalidade (tenha-se, antes de mais, em consideração o art. 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – CRP), por via do modelo adoptado ter sido o de um direito penal do facto (32). Portanto, meras intenções ou decisões não são suficientes para legitimar uma intervenção jurídico-penal (33). Tal, por outro lado, ainda, não invalida o facto de esta externalidade comportar uma forte componente de interioridade. Efectivamente, desde a consideração do dolo como elemento fundamental da imputação subjectiva de um facto criminoso (art. 13.º do CP), até à presença de elementos subjectivos no tipo de ilícito (veja-se, por exemplo, o elemento “intenção de enriquecimento ilegítimo” no caso da burla, art. 217.º do CP), que a ética de interioridade está presente no nosso ordenamento jurídico-penal. Neste âmbito, parece claro o carácter fragmentário da ética aqui presente. Por um lado, no plano estritamente do conteúdo normativo e valorativo. Outros valores e respectivas normas não contemplados no Código Penal ou em legislação especial fazem parte de outros ramos jurídicos, direito das contra-ordenações, direito administrativo, direito civil, etc. Por outro, no domínio da referida ética de interioridade, em contraposição a espaços de normatividade jurídica que dela, em larga medida, abstraem (34). Assim, sem estas características, muitas condutas com o mesmo resultado não são ético-penalmente relevantes. As próprias incidências do princípio da legalidade, ou seja, a necessidade de existência de lei para se poder punir alguém (art. 29.º, n.os 1 a 4, da CRP) não deixam de expressar globalmente ínsitas preocupações éticas, na medida em que lacunas provenientes do legislador não deverão, por regra, serem preenchidas pelo juiz, nem num plano analógico, nem através do recurso a princípios gerais. Noutros termos, dir-se-á que a eficácia deverá ceder em face da ética
(32) Supra n. 10. (33) Idem. (34) Pense-se, desde logo, numa norma do Código Civil como a do art. 483.º, em que a culpa surge somente como pressuposto da reacção aí prevista. 57
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protectiva do eventual delinquente (segurança e certeza jurídicas) (35). Algo igualmente expressivo na dinâmica temporal aplicativa das normas jurídico-penais, onde os princípios da aplicação da lei mais favorável (vide, desde logo, o art. 2.º, n.os 2 e 4, do CP) isto mesmo expressam. De resto, nem a aplicação da lei penal no espaço é totalmente alheia a esta mesma realidade (vide, neste sentido, art. 6.º, n.º 2, do CP).
O direito penal português: o lado empírico Considerações gerais Os sistemas jurídico-penais são na generalidade e na sua essência punitivos, como já deixámos dito. No entanto, este facto de natureza empírica é coberto em larga medida por uma série de princípios de natureza ética. Efectivamente e antes de mais, as penas, no ordenamento jurídico-penal português, estão subordinadas a um estrito princípio de proporcionalidade (art. 18.º, n.os 2 e 3, da CRP) que impede a existência de sanções de natureza cruel ou infamante (art. 25.º, n.º 2, da CRP), também da pena de morte ou de penas perpétuas (arts. 24.º, n.º 2, e 30.º, n.º 1, da CRP), na própria execução de penas privativas de liberdade (art. 30.º, n.º 5, da CRP) e se expressa igualmente no princípio da culpa na determinação das consequências jurídico-penais (arts. 40.º, n.º 2, e 71.º do CP e, indirectamente, no art. 30.º, n.os 3 e 4, da CRP). Algo extensível em larga medida às medidas de segurança, onde o princípio da proporcionalidade também tem lugar (arts. 18.º, n.os 2 e 3, e 30.º n.os 1 e 2, da CRP; arts. 90.º e segs. e, ainda, arts. 100.º a 103.º do CP). Portanto, a ética povoa de forma clara todo o lado empírico do direito penal, desde logo, no âmbito do ordenamento jurídico português.
(35) Sobre isto desenvolvidamente, o nosso artigo “A aplicação das normas no âmbito jurídico-penal: reflexões epistemológicas”, in Direitos de Personalidade e Sua Tutela, Vol. I, Coord. COSTA ANDRADE, Rei dos Livros, 2013, pp. 151 e segs. 58
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Conclusão A ética como realidade universal e atemporal não poderia naturalmente deixar de estar presente no âmbito jurídico-penal e, particularmente, no caso português. Certamente que, ao se fazer sentir no plano do direito penal, vai contextualizar-se e, assim, adquirir características próprias, como deixámos referido. Por outro lado, não se vai bastar na definição do conteúdo do ilícito em causa mas vai igualmente estender-se no plano das consequências jurídico-penais Deste modo, pode-se efectivamente concluir que a dimensão ética do ser humano, como realidade irrenunciável deste, não deixa de estar presente no seu agir, ou melhor, nos seus diferentes agires e, portanto, repercutindo-se inevitavelmente na realidade jurídico-penal.
(*) Este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico. 59
A revisão do Código do Procedimento Administrativo: pontos (mais) fortes e pontos (mais) fracos
Isabel Celeste M. Fonseca
Sumário: 0. Nota prévia (genérica). I. De alguns pontos fortes e fracos do regime proposto. II. Do mais forte. III. Do mais fraco.
0. Nota prévia (genérica) Antes de tratar o tema escolhido para integrar esta especial obra colectiva, queria aqui expressar, de forma muito clara e autêntica, o meu absoluto respeito pelos Membros da Comissão que procedeu à reforma do Código de Procedimento Administrativo (CPA), pelo que tudo o que disser a seguir não traduzirá menos a profunda admiração que tenho pelos membros desta Comissão. Depois, ainda em jeito de intróito, importa sublinhar que as propostas que iremos destacar se enquadram num cenário muito conhecido da sociedade de risco ou sociedade-da-urgência, em que vivemos: i) de precarização de direitos e de reconhecimento de situações jurídicas; ii) de reivindicação pelos cidadãos e operadores económicos nacionais e estrangeiros da satisfação urgente ou imediata de pretensões, através de procedimentos jurídico-públicos simplificados e prioritários; iii) de aceleração de procedimentos jurídico-públicos acompanhada da desformalização procedimental e de leveza garantística; iv) de preferência pelo provisório imediato (mesmo que frágil e esfumado), em detrimento do definitivo, por ser demorado, ainda que, provavelmente, materialmente mais justo; v) de redução da vinculação procedimental e ampliação da discricionariedade na fixação do iter procedimental pelo órgão que dirige o procedimento, com a consequente impossibilidade de controlo a posteriori, para a qual também contribui a endocontratualização. Apresentamos, em terceiro lugar, nesta nota prévia, a ideia de que esta reforma é positiva, dela se destacando muitos pontos fortes, alguns deles gizados segundo uma lógica pragmática, pensamos nós. Ainda assim, aqui e ali, vislumbram-se soluções menos fortes.
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I. De alguns pontos fortes e fracos do regime proposto Assim, como aspectos fortes, lembro, designadamente, o acolhimento no CPA de um conjunto de princípios gerais sobre a actividade administrativa, absolutamente necessários para orientação na tomada de decisão, como seja o da boa administração e o da administração electrónica, ainda que falte o da precaução. Aliás, o projecto também apresenta como aspecto positivo a adesão à e.procedimentalização, acolhendo soluções no sentido da procedimentalização electrónica. Do ponto de vista procedimental, importa sublinhar o acolhimento das conferências procedimentais para deliberação e as conferências de coordenação, dada a complexidade para decidir em certos domínios, onde se impõe diálogo, em directo, entre órgãos das entidades públicas, que decidem ou opinam sobre o mesmo assunto. No que respeita ao acolhimento do princípio da adequação procedimental e dos acordos endoprocedimentais para determinação dos momentos discricionários, em princípio, parece ser uma boa solução. Contudo, receamos que possam aumentar o carácter indeterminado do procedimento, com o consequente afastamento da legalidade procedimental, perda de garantias procedimentais e diminuição da intensidade e extensão do controlo jurisdicional. Ainda a propósito do procedimento administrativo, apraz realçar pela positiva a introdução de um regime sobre auxílio administrativo e sobre notificações (arts. 97.º e ss.). Aqui, como positivo, prevê-se o dever de notificação dos interessados do início do procedimento. Já menos positivo, quiçá, pode ser o acolhimento da regra sobre notificações. Esta vai no sentido da notificação por via postal simples (art. 104.º), excepcionando-se a notificação de actos, que será por carta registada (art. 102.º, n.º 1). Uma proposta, que não sei se é boa ou má, confesso, é a que decorre da alteração introduzida em matéria de contagem de prazos (art. 84.º): o prazo fixado em dias suspende-se aos Sábados, Domingos e feriados. Os outros não. Ainda a propósito de procedimentos e prazos, também me parece que o prazo de 90 dias para conclusão do procedimento (com possibilidade de prorrogação por mais 90 dias) pode traduzir-se em tempo demasiado longo, tendo em conta os ritmos da sociedade-da-urgência e os interesses de celeridade, sempre presentes na vida dos operadores económicos. Também é positiva a alteração do regime sobre o silêncio administrativo, que agora está previsto nos arts. 108.º e 109.º do CPA. Assim, procedendo à harmonização da lei substantiva com a processual (e com a leitura actual da figura
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do acto tácito de indeferimento), entende-se no projecto que a falta de decisão, no prazo legal, sobre a pretensão dirigida ao órgão competente constitui incumprimento do dever de decidir, conferindo ao particular a possibilidade de lançar mãos de mecanismos de tutela administrativa e jurisdicional, designadamente, a Acção Administrativa Especial de condenação à prática de acto devido – tendo desaparecido do CPA a figura da presunção de acto tácito de indeferimento. Não tendo esta proposta ido tão longe quanto ao acto tácito de deferimento, o novo CPA irá acolher a figura, uma vez que, excepcionalmente, considera deferida tacitamente a pretensão nas situações previstas em legislação especial, sendo certo que, nas situações em que a prática de acto dependa de autorização prévia ou aprovação, consideram-se, pois, estas tacitamente deferidas, se não forem expressamente dadas ou recusadas. Lamenta-se que o projecto não tenha acolhido a figura da comunicação prévia. Também o novo conceito de acto administrativo (art. 146.º) parece ser melhor, se considerado do ponto de vista adjectivo, perdendo, pois, se o considerarmos a partir da perspectiva substantiva, já que se consideram actos administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta. No que respeita ao regime de invalidades, aqui parecem existir mais pontos fracos a acentuar. Sem prejuízo do que se dirá no ponto final deste texto, sobre os casos em que a lei autoriza o juiz a não retirar efeitos anulatórios ao acto anulável (art. 161.º, n.º 5), destaco o regime da nulidade. Assim, prevê-se a nulidade por determinação legal e desaparece a nulidade por natureza, fechando-se o universo de actos nulos (ainda que se preveja um “designadamente”, no art. 159.º, n.º 2). E julgo que no art. 153.º, n.º 3, se procede a uma confusão entre “eficácia” e “inexistência jurídica” (art. 153.º, n.º 3). Importa acentuar o reforço significativo do regime sobre regulamentos administrativos, mormente do regime procedimental (com a previsão da audiência prévia e consulta pública) e o das invalidades do regulamento (arts. 93.º e ss.), ainda que o regime deixe de fora o regulamento de natureza interna. Igual destaque merece a introdução de uma distinção, pelo menos terminológica, entre revogação de actos e anulação administrativa, na actualidade conhecida como revogação anulatória, sendo certo que a primeira tem subjacente o demérito do acto e a segunda tem como fundamento a sua anulabilidade. A propósito da revogação, a alteração introduzida vai no sentido de estender o seu domínio, alargando-se a actos constitutivos de direitos, id est,
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actos sem carácter precário que atribuam ou reconheçam situações jurídicas e vantagem ou eliminem ou limitem deveres, ónus, encargos ou sujeições. Aqui são fixados novos condicionalismos do acto revogatório, destacando-se o fundamento na alteração objectiva das circunstâncias ou superveniência de conhecimentos técnicos ou científicos, em face dos quais eles não poderiam ter sido praticados, e o fundamento em reserva de revogação. Como o néscio critica muito facilmente, aqui vou eu falar num ponto que, salvo devido respeito, acho que é um ponto muitíssimo fraco, do ponto de vista daquilo que identifica a Administração Pública de tipo francês ou de acto administrativo e que vulgarmente se chama privilégio da execução prévia. Ou não estou a ver bem as coisas ou parece-me que desaparece, como regra, o poder de auto-tutela executiva da Administração Pública portuguesa. E passamos a ter uma Administração Pública de tipo inglês. É certo que o actual art. 149.º, n.º 2, tem diversas leituras (1). Ora, definitivamente, parece-me, o acto administrativo português deixa de ser executório, por natureza, pois só terá tal natureza quando a lei o disser. Logo, como a execução coerciva tem que ter uma habilitação específica, ela ou decorre da lei ou de decisão jurisdicional, que o titular do órgão tem que adquirir (nos termos do art. 181.º). Na verdade, nos termos desse preceito, a Administração Pública deve solicitar a respectiva execução ao tribunal administrativo competente, nos termos do disposto na lei processual administrativa. Pois bem, fica a dúvida quanto a saber se isto significa que o acto administrativo já não é título executivo sequer, e é necessário obter essa confirmação em juízo da executividade, ou se só perde o carácter executório. Afinal, também fica a dúvida quanto a saber que tipo de acção processual deve a Administração Pública propor em juízo, uma acção declarativa ou executiva. Claro está que aqui se ressalvam as situações: i) de execução de obrigações pecuniárias a favor da administração, que deve seguir o regulado para a execução fiscal; ii) a adopção de medidas de polícia, que segue regime próprio; iii) e as situações em que a execução coerciva de obrigações impostas deva acontecer em situações de extrema urgência. É certo que aumentam as garantias dos executados, previstas no art. 180.º do proposto CPA: podem os mesmos recorrer (e solicitar a suspensão) adminis(1) A título de exemplo, vd. VIEIRA DE ANDRADE, J. C., Lições de Direito Administrativo, 2.ª ed., Coimbra, 2011, pp. 158 e ss.; FREITAS DO AMARAL, D., Curso de Direito Administrativo, vol. II, Coimbra, 2001, pp. 477 e ss. Sobre o privilégio da execução prévia, vd. MACHETE, R., “Privilégio da Execução prévia”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. VI, pp. 448 a 470.
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trativa e jurisdicional do acto exequendo, da decisão de proceder à execução administrativa, por vícios próprios, e de outros actos próprios da execução.
II. Do mais forte Do nosso ponto de vista, verdadeiramente forte é a solução transitória, prevista no art. 5.º do projecto de alteração. Na verdade, entendemos que no tema das garantias administrativas se procede ao acolhimento de uma solução de compromisso, procurando conciliar o princípio da tutela jurisdicional efectiva com o da unidade e eficácia da acção administrativa. Esta proposta traz, aliás, para a letra da lei, a solução apontada pela corrente maioritária (da doutrina e da jurisprudência) que tem vindo a proceder à harmonização da lei substantiva com a processual (e da lei ordinária com a CRP). Assim: i) propõe, pois, um modelo de garantias administrativas que assenta nas de natureza facultativa, ainda que aceite a existência em legislação especial de impugnações necessárias; ii) procede à identificação do universo (fechado) das impugnações necessárias (previstas em legislação especial); iii) esforça-se por determinar, de forma uniforme, os efeitos das impugnações necessárias em relação à eficácia do acto revisitado administrativamente. Julgo, pois, que há um reforço da garantia de que a utilização desses mecanismos não é um obstáculo ao direito de acesso aos tribunais e à tutela efectiva, realçando-se a preocupação de clarificação de incertezas na aplicação de regimes especiais e o esforço de uniformização de regimes especiais que dispõem sobre as impugnações necessárias e os seus efeitos. Assim, o novo CPA visa concretizar um propósito de clarificação de diversas incertezas. Apresenta um critério de distinção claro entre as impugnações facultativas e necessárias: conforme o acesso aos meios contenciosos dependa da sua utilização prévia ou não. E procura determinar o universo das impugnações necessárias e uniformizar regimes especiais que versam sobre impugnações necessárias, sendo certo que, para clarificar as situações actuais de incerteza, o projecto dispõe o seguinte: a) as impugnações administrativas em legislação especial posterior à entrada em vigor do presente diploma só são necessárias quando a lei as denomine expressamente como tais; b) as impugnações administrativas existentes à data da entrada em vigor do presente diploma só são necessárias quando previstas em lei que utilize uma das seguintes expressões: i) A impugnação administrativa em causa é “necessária”; ii) do acto
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em causa “cabe” reclamação ou recurso; iii) do acto em causa “existe sempre” reclamação ou recurso; iv) a utilização de impugnação administrativa “suspende” ou “tem efeito suspensivo” dos efeitos do acto impugnado. E, sendo certo, ainda, que não são necessárias as impugnações administrativas: i) não previstas em lei; ii) previstas em lei que se limite a prever que elas existem ou podem ser utilizadas, sem associar à sua utilização o efeito de suspender a eficácia do acto impugnado. E, finalmente, sendo certo que, para uniformizar os múltiplos regimes especiais e as várias soluções dadas pelos tribunais (que reduzem perda de tutela), o projecto dispõe o seguinte: a) o prazo mínimo para a utilização das impugnações administrativas necessárias é de dez dias, passando a ser esse o prazo a observar, quando seja previsto prazo inferior na legislação existente à data da entrada em vigor do presente diploma; b) As impugnações administrativas necessárias previstas em legislação existente à data da entrada em vigor do presente diploma têm sempre efeito suspensivo da eficácia do acto impugnado. O artigo determina a revogação de todas as normas avulsas incompatíveis com estas soluções.
III. Do mais fraco O aspecto menos forte diz respeito ao regime da anulabilidade acolhido na proposta em discussão. Acentuando o que já disse sobre o assunto, reforço que entendo o procedimento administrativo sobretudo como uma ferramenta ao serviço da prossecução eficiente e racional dos interesses públicos, mas também não posso deixar de o pensar como instrumento de recolha de informação, contraditoriedade, diálogo, legitimação e garantia dos interessados. Por isso mesmo, é minha convicção que, no que concerne às formalidades procedimentais, a proposta traduz um golpe de morte daquelas que são as garantias procedimentais fundamentais dos interessados, mormente das que, devendo realizar-se antes da prática do acto, são oferecidas constitucionalmente aos destinatários de actos desfavoráveis. E digo isto por uma razão: não é porque o CPA não acolha garantias procedimentais dos interessados, como seja: a audiência prévia, nos arts. 120.º e ss.; a obrigatoriedade de o órgão que dirige o procedimento solicitar pareceres obrigatórios (e segui-los, quando assim tem que ser), nos termos dos arts. 88.º e ss.; o dever de fundamentação de actos que interferem com a esfera de direitos e
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interesses legalmente protegidos, nos termos do art. 150.º. Portanto, o projecto acolhe-as e reitera no essencial o que está previsto no actual CPA. O problema está, pois, a jusante, quando desvaloriza a preterição dessas formalidades, permitindo que o juiz não retire consequências dos vícios de forma, nos termos do art. 161.º, n.º 5, alínea a); ou quando permite que a própria administração, a todo o tempo, sane tais vícios: basta pensar que, mesmo que o acto seja inimpugnável, a Administração Pública pode, no prazo de um ano contado da data do conhecimento, anular tal acto, nos termos do art. 167.º, n.º 1. Há, pois, menosprezo pelos direitos fundamentais dos interessados a prestações procedimentais e que vai no sentido de desvalorizar o incumprimento pelos entes públicos de formalidades essenciais procedimentais, associando as preterições formais a irregularidades, não sancionando o acto que padeça de tal tipo de vícios e desresponsabilizando quem os pratica, pois basta pensar que a garantia a uma indemnização por danos decorrentes de tais actos ilegais não está garantida. Aliás, quanto ao regime da anulabilidade e quanto à possibilidade de o juiz não reconhecer efeitos anulatórios ao acto anulável, acolhe-se aqui a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) sobre o aproveitamento do acto, que vale tanto para vícios formais como para outras situações contempladas no art. 161.º, n.º 5, alíneas a), c) e d). É uma solução que o STA tem apresentado, tanto para a preterição das formalidades essenciais procedimentais anteriores à prática do acto administrativo como outras, como seja a relativa à audiência prévia, como para o vício de forma por falta de fundamentação, sustentando tal solução no princípio do aproveitamento do acto ou princípio da inoperância dos vícios ou utile per inutile non vitiatur (ac. do STA de 15.02.2007, proc. 01055/06) (2), ou princípio que também tem merecido outras designações: como princípio anti-formalista ou princípio da economia dos actos públicos. O princípio inclui, pois, outras situações. Veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 27.10.2011 (proc. 00695/06.1BEVIS): o princípio habilita o julgador a poder negar relevância anulatória ao erro da administra(2) No aresto do STA de 15.02.2007, proc. 01054/06, a propósito de um acto que nega a extensão de pagamento de suplemento a certos funcionários, escreveu-se o seguinte: “se o art. 100.º do CPA não tiver sido cumprido até ao momento da emissão do acto primário, a interposição de recurso hierárquico permite aos interessados aduzir todas as razões que ali deixaram caladas e que a entidade autora do acto secundário tem de ter em conta”, sendo certo que “se, não obstante a verificação do vício anulatório do acto recorrido, no caso, o incumprimento do art. 100.º do CPA, se concluir que tal anulação não traria qualquer vantagem para o recorrente, deixando-o na mesma posição jurídica, a existência de tal vício não deve conduzir à anulação, por aplicação da inoperância do vícios ou utili per inutile non vitiatur”. 67
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ção, seja por ilegalidades formais ou materiais, mesmo no domínio dos actos proferidos no exercício da discricionariedade, quando pelo conteúdo do acto ou pela incidência de sindicação que foi chamado a fazer possa afirmar com inteira segurança que a representação errónea dos factos ou do direito aplicável não interferiu com o conteúdo da decisão. E isto porque: não afectou as ponderações ou opções compreendidas (efectuadas ou potenciais) nesse espaço de discricionariedade; ou porque subsistem fundamentos exactos bastantes para suportar a validade do acto (v.g., derivados da natureza vinculada dos actos praticados conforme à lei.); contemplando ainda as situações em que se antevê que inexiste, em concreto, utilidade prática efectiva para o impugnante, do operar daquela anulação, visto os vícios existentes não inquinarem a substância do conteúdo de decisão administrativa em questão, não possuindo a anulação qualquer sentido ou alcance. É isto, pois, o que contempla o projectado art. 161.º, n.º 5, sendo certo que, nos casos de impossibilidade absoluta (alínea c)) e invocação de prejuízo de excepcional gravidade para o interesse público ou danos de difícil ou impossível reparação para contra-interessados, o juiz convida as partes para acordarem no montante da indemnização. É certo que na Alemanha se tem vindo a desvalorizar os vícios de procedimento, permitindo a sua sanação pela própria Administração das imperfeições procedimentais e consagrando a irrelevância dos vícios procedimentais dos actos do ponto de vista jurisdicional (§§ 45, 46 da Lei do Procedimento Administrativo, VwVfG) (3). Assim, a restrição da anulação de actos que padecem de vícios de procedimento, segundo o § 46 VwVfG, tem fundamentalmente como argumento razões de economia processual (tal como se afirma na exposição de motivos da VwVfG), uma vez que parece pouco razoável consentir na anulação de um acto administrativo materialmente correcto devido unicamente ao facto de padecer de um vício de procedimento, especialmente quando se chega à conclusão que é possível proceder-se à emanação imediata de um outro com o mesmo conteúdo, corrigindo-se o vício procedimental. Em todo o caso, importa lembrar que a doutrina alemã divide-se quanto à bondade da solução consagrada neste parágrafo da lei do procedimento administrativo, pois, como bem se compreende, as normas que impõem forma-
(3) Sobre o tema, vd., por todos, com exemplos, DETTERBECK, S., Allgemeines Verwaltungsrecht mit Verwaltungsprozessrecht, 7. Auflage, Verlag C. H. Beck, München, 2009, pp. 212 e ss.; ns. ms. 629 e ss. 68
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lidades procedimentais não visam apenas garantir direitos aos interessados, elas visam também assegurar a correcção material da decisão final do procedimento. Ora, importa lembrar que, não obstante a nova redacção do § 46 VwVfG ter subjacente este desígnio, pois elimina a possibilidade de se proceder à anulação de um acto viciado, tal só acontece se for seguro dizer que o vício procedimental não teve influência no conteúdo da decisão e isto de forma evidente. Ora, isto exige que o órgão judicial proceda às suas próprias indagações e aos seus próprios juízos quanto a essa relação entre a preterição de formalidades procedimentais, renovação hipotética de formalidades e fixação de conteúdo da decisão eventual. De um modo ou de outro, a doutrina alemã reconhece que o § 46 VwVfG pode relativizar e desvalorizar os direitos procedimentais dos cidadãos alemães reconhecidos na respectiva Lei Fundamental e, por isso, há até quem entenda que pode ter-se adoptado uma solução do tipo “dar com uma mão e tirar com a outra” (H. MAURER) (4). Vejamos, pois, mais de perto, o que pode estar na origem das ideias acolhidas no projecto, realçando, ao mesmo tempo as respectivas contradições. Comecemos pelo regime alemão da sanação pela Administração das imperfeições procedimentais e da irrelevância dos vícios procedimentais dos actos (§§ 45, 46 da Lei do Procedimento Administrativo, VwVfG) (5). Como se referiu, a VwVfG trata o tema das imperfeições do procedimento (ou dos vícios procedimentais e formais) nos §§ 45, 46 VwVfG, sendo certo que o § 45 regula a sanação das imperfeições do procedimento e a recuperação desses defeitos formais pela via administrativa e o § 46 refere-se às consequências dos vícios do procedimentos e, mais propriamente, à inoperância ou irrelevância de tais vícios. De qualquer modo, o chamamento dos §§ 45, 46 pressupõe que em causa não está um vício que deva ser sancionado com a nulidade, nos termos do § 44 VwVfG. Ora, se é verdade que, nos termos do § 44 VwVfG, um acto administrativo pode ser nulo de pleno direito quando padece, com evidência, de um vício de especial gravidade (6), também não é menos verdade que um acto que padeça de um vício por desrespeitar disposições sobre forma e procedimento (e certas normas (4) Sobre este tema, por todos, vd. MAURER, H., Allgemeines Verwaltungsrecht, 17. Auflage, Verlag C.H. Beck, 2009 (há uma tradução coordenada por G. DOMÉNECH PASCUAL, Derecho Administrativo. Parte General, Marcial Pons, Madrid, 2011, pp. 285 e ss). (5) Sobre o tema, vd., por todos, com exemplos, DETTERBECK, S., Allgemeines Verwaltungsrecht mit Verwaltungsprozessrecht, 7. Auflage, Verlag C. H. Beck, München, 2009, pp. 212 e ss.; ns.ms. 629 e ss. (6) Sobre a nulidade, a teoria da evidência e a teoria da impossibilidade, por todos, vd. MAURER, H., Allgemeines…, cit., ns.ms. 31 e ss. 69
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sobre competência) é merecedor de uma consequência jurídica negativa. A questão é saber que tipo de consequência opera o vício de procedimento, pois, se é certo que um acto pode ser materialmente conforme ao Direito, ainda que formalmente padeça de imperfeições, também é certo que as normas procedimentais atribuem direitos aos interessados e são garantia da justeza da decisão administrativa. Vejamos o dilema: por exemplo, a proibição de realizar uma actividade económica, ainda que faltando a audiência prévia do interessado, pode estar em conformidade com os pressupostos materiais fixados no respectivo regime jurídico do § 35 da Lei sobre actividades empresariais (GewO) e ser, por conseguinte, correcta no seu conteúdo (7). Neste sentido, a pergunta que se faz é a de saber se a este acto, que padece de vícios de procedimento, deve corresponder um desvalor jurídico e uma sanção, devendo ser anulado por preterição das formalidades procedimentais, ou mantido, por ser certo no seu conteúdo. Este é, portanto, o problema que a lei resolve, ainda que não agrade a todos. De um ponto de vista material, a sanação (superação) dos vícios procedimentais pela própria Administração Pública pressupõe a preterição de formalidades do procedimento que conduziu à prática do acto e pode ter subjacente, nos termos do § 45 VwVfG, um pedido revisivo, com vista a proceder-se à fundamentação de um acto, de realização de audiência dos interessados ou de colaboração de outros órgãos administrativos no procedimento (8). Do ponto de vista temporal, se é certo que, de acordo com a redacção anterior do § 45 II VwVfG, a sanação só poderia acontecer até ao final do procedimento, incluindo o revisivo (id est, enquanto o assunto estivesse dentro do foro administrativo), de acordo com a actual redacção do § 45 II VwVfG, é também possível às entidades públicas procederem à sanação de vícios formais e procedimentais durante o (e até à conclusão do) processo litigioso desencadeado contra o acto (incluindo o momento de recurso de apelação) (9). No que concerne à fundamentação do acto, a nova redacção do § 114 da VwGO veio permitir que, mesmo tratando-se de actos discricionários, a entidade administrativa complemente no processo judicial a fundamentação aposta no acto impugnado por vício de
(7) Neste sentido, MAURER, H., Allgemeines…, cit., § 10, nm. 38. (8) § 45 I VwVfG. Vd. MAURER, H., Allgemeines…, cit., § 10, nm. 39. (9) Neste sentido, MAURER, H., Allgemeines…, cit., § 10, nm. 39. Se ao sujeito G se nega, sem audiência prévia, a permanência no exercício de uma actividade económica, segundo o § 35 GewO, essa proibição é contrária ao direito, padecendo de um vício, pois não foi precedida de uma formalidade procedimental. Contudo, se G recorre desse acto e nesse procedimento revisivo tem oportunidade de se pronunciar, a ilegalidade fica, portanto, sanada. 70
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forma (por insuficiência de fundamentação) (10). Muitas foram, no entanto, as dúvidas suscitadas pela doutrina e muitos foram os avanços e recuos da jurisprudência dos tribunais administrativos, mormente do BVerwG, quanto a este tema. Para além da regulação dos vícios procedimentais consagrada no § 45 VwVfG, a que fizemos alusão breve, configure-se, agora, a solução que o sistema alemão acolhe no § 46 VwVfG, pressupondo-se, aqui, que não é possível ou não aconteceu a sanação de vícios procedimentais por actuação da própria Administração Pública. Assim, por força do disposto no § 46 VwVfG, não pode proceder-se à anulação de um acto administrativo que padece de vício de forma ou vício procedimental se é evidente que a violação do preceito procedimental não teve influência no conteúdo da decisão tomada. Esta solução foi introduzida pela Lei de Aceleração dos Procedimentos de autorização (GenBeschG) de 1996, por razões de economia processual e, quanto ao seu âmbito, inicialmente limitava-se aos casos de exercício de poder vinculado (11). Na realidade, a redacção anterior do § 46 VwVfG estabelecia que não poderia proceder-se à anulação do acto que padecesse de vício de procedimento apenas na situação em que nenhuma outra decisão poderia ter sido tomada (reduzindo a possibilidade de anulação de actos viciados por ilegalidades procedimentais aos domínios de discricionariedade, já que nestes casos a margem de decisão poderia permitir alternativa de conteúdo decisório) (12). A nova configuração do § 46 VwVfG não se limita a abranger os actos vinculados que padecem de vícios de procedimento, pois não se centra no tema da falta de alternativa do conteúdo da decisão, mas na relação entre a preterição de formalidades e a consequência dessa preterição no conteúdo do acto, de tal modo que, se o incumprimento do preceito procedimental órgão para emissão de parecer obrigatório
como seja a audição de
é inócuo quanto à decisão material,
então, a mesma deve manter-se. Por outras palavras, se é possível entender-se que o conteúdo da decisão seria esse, mesmo que se tivesse cumprido a formalidade procedimental, então o incumprimento da norma é irrelevante e não deve operar qualquer consequência (13).
(10) Assim, MAURER, H., Allgemeines…, cit., § 10, nm. 40. (11) MAURER, H., Allgemeines…, cit., § 10, ns.ms. 41 e ss. (12 ) “Die Aufhebung eines Verwaltungsaktes, der nicht nach § 44 nichtig ist, kann nicht allein deshalb beansprucht werden, weil er unter Verletzung von Vorschriften über das Verfahren, die Form,oder die örtliche Zuständigkeit zustande gekommen ist, wenn keine andere Entscheidung in der Sache hätte getroffen werden können” (§ 46 VwVfG, antes do GenBeschlG 1996). (13) MAURER, H., Allgemeines…, cit., § 10, nm. 41. 71
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Importa, no entanto, lembrar aqui e chamar a atenção para um aspecto de suma importância na aplicação da norma. Trata-se do grau de “evidência” quanto à relação de causalidade entre a preterição da norma e o conteúdo do acto que seria adoptado sem vício formal. Entende-se que deve existir, pois, uma evidência quanto à relação mencionada, não bastando uma simples presunção quanto aos efeitos que pode ter tido a preterição da formalidade procedimental na determinação do conteúdo do acto. Como se percebe, no sistema alemão, sempre que se verifiquem as condições estabelecidas no § 46 VwVfG, esta norma retira força à pretensão do cidadão de alcançar com sucesso garantido a anulação de um acto que padeça de vício de forma ou procedimental, pois, em bom rigor, do que se trata aqui é de enfraquecimento de sucesso quanto à utilização dos mecanismos de impugnação (administrativa e judicial) desencadeados contra tal acto (14). Aliás, a restrição da anulação de actos que padecem de vícios de procedimento, segundo o § 46 VwVfG, tem fundamentalmente como argumento razões de economia processual (15) (tal como se afirma na exposição de motivos da VwVfG): parece pouco razoável anular um acto administrativo materialmente correcto devido unicamente ao facto de padecer de um vício de procedimento, especialmente quando se chega à conclusão que é possível proceder-se à emanação imediata de um outro com o mesmo conteúdo, corrigindo-se o vício procedimental (16). Em todo o caso, importa lembrar que a doutrina alemã divide-se quanto à bondade da solução consagrada neste parágrafo da lei do procedimento administrativo, a partir de uma certa perspectiva, as normas, pois, como bem se compreende, que impõem formalidades procedimentais não visam apenas garantir direitos aos interessados, elas visam também assegurar a correcção material da decisão final do procedimento. Se é verdade que a nova redacção do § 46 VwVfG tem subjacente esse desígnio, pois elimina a possibilidade de anular um acto unicamente se o vício procedimental não teve influência no con(14) Considere-se que, num procedimento administrativo desencadeado pela entidade administrativa competente com vista a proibir B de exercer certa actividade económica, não é realizada a audiência prévia. Se B impugna a decisão invocando a invalidade formal e material da proibição administrativa, cabe ao órgão judicial averiguar em que termos a preterição de audiência prévia de B se repercutiu na decisão tomada. Se é evidente para o juiz que, realizando a audiência, a entidade administrativa competente tomaria exactamente a mesma decisão (materialmente com o mesmo conteúdo, por estar conforme ao quadro legal que prevê a proibição do exercício de actividade económica), então, deve (o juiz) considerar infundada a pretensão de B, por entender (com certeza) que a preterição da formalidade procedimental carecer de relevância, já que, de um forma ou de outra, materialmente a decisão está conforme ao Direito. (15) Neste sentido, vd. KOPP/RAMSAUER, VwVfG, 13.º edição; § 46, nm. 4. (16) Neste sentido, MAURER, H., Allgemeines…, cit., § 10, nm. 42. 72
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teúdo da decisão de forma evidente, também é verdade que isso exige que o órgão judicial proceda às suas próprias indagações e aos seus próprios juízos quanto a essa relação entre preterição de formalidades procedimentais, renovação hipotética de formalidades e fixação de conteúdo da decisão eventual
o
que por si só também envolve incertezas (17). E a partir de uma outra perspectiva, também se compreende a falta de consenso da doutrina alemã quanto à justeza da norma, pois, os §§ 45 e 46 VwVfG podem relativizar e desvalorizar os direitos procedimentais dos cidadãos alemães reconhecidos na respectiva Lei Fundamental (18). O certo é que, o Bundesrat justificou a sua opção de introduzir na Lei de aceleração procedimental o § 46 VwVfG, dizendo que é expressão de um princípio geral da ilicitude da invocação juridicamente abusiva de direitos acolhidos no § 242 do Código Civil (19). Como se compreenderá, esta afirmação é contestada por uma significativa parte da doutrina, pois, do ponto de vista jurídico, não pode (nunca pode) considerar-se abusiva a invocação de direitos que a própria lei e a Constituição garantem aos cidadãos. Aliás, como diz H. MAURER, pouco sentido tem afirmar a existência de direitos procedimentais se a violação dos mesmos (por quem os deve cumprir) fica destituída de sanção (20). Ainda assim, sendo incerta a aplicação da norma pela jurisprudência e estando enfraquecidos os direitos fundamentais dos interessados, no seu conjunto, a regulação descrita sobre a preterição das formalidades procedimentais é considerada aceitável (21).
(17) Sobre o tema, vd., por todos, DETTERBECK, S., Allgemeines Verwaltungsrecht mit Verwaltungsprozessrecht, cit., esp. pp. pp. 213 e 214; ns.ms. 629 ss. (18) Neste sentido, MAURER, H., Allgemeines…, cit., § 10, nm. 42. (19) Deutscher Bundestag: Drucksache 13/1445, p. 7. (20) Neste sentido, MAURER, H., Allgemeines…, cit., § 10, nm. 42. (21) Neste sentido, MAURER, H., Allgemeines…, cit., § 10, nm. 42. Como se disse, também a jurisprudência administrativa alemã tem variado muito na aplicação da norma e não é unânime quanto ao entendimento deste preceito. Por exemplo, no que respeita à audiência prévia do interessado, prevista no § 28 I VwVfG, considera-se que o interessado deve ser ouvido antes da tomada de decisão, mas também pode ser depois, nos termos do § 45 VwVfG, podendo ser mesmo no âmbito do próprio processo judicial. Contudo, importa, perceber que tantas vezes tal audição já não surte qualquer efeito. É por isso mesmo que o Tribunal Social Federal (BSozG) tem entendido que, no procedimento regulado pelo Código da Segurança Social, cujo § 42 é idêntico ao § 46 VwVfG), sempre se deve entender relevante a violação do direito procedimental à audiência prévia, devendo conduzir à anulação do acto administrativo. 73
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Importa perguntar, pois, se é isso que também desejamos e esperamos do legislador português, especialmente agora, que anda tão activo: que nos dê com uma mão e que nos tire com a outra.
(*) Este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico.
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Bibliografia sucinta ANDRÉ SALGADO
DE
MATOS, “Perspectivas de reforma dos procedimentos
administrativos revisivos após reforma do contencioso administrativo”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 54, 2005 CARLA AMADO GOMES, “Sobre a não preclusão do direito de invocar novos vícios no âmbito do recurso contencioso por referência ao recurso hierárquico”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 0, 1996 DIOGO FREITAS
DO
AMARAL, Conceito e natureza do recurso hierárquico, vol. I,
Coimbra, 1981 _____, “O Projecto de Código de Procedimento Administrativo”, in Scientia Iuridica, XLI (1992) _____, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Coimbra, 2001 ISABEL CELESTE M. FONSECA, “Repensar as impugnações administrativas entre a efectividade do processo e a unidade da acção administrativa”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 82, 2010 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Em defesa do recurso hierárquico necessário”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 0, 1996 _____, A justiça administrativa (lições), Coimbra, 2011. _____, Lições de Direito Administrativo, 2.ª ed., Coimbra, 2011. MARIA TERESA DE MELO RIBEIRO, “A eliminação do acto definitivo e executório na revisão constitucional de 1989”, in Direito e Justiça, VII, 1993, pp. 221 e ss. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “As implicações de direito substantivo da reforma do contencioso administrativo”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 34, 2002 _____, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, 2.ª ed., Coimbra, 2003. _____, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2010. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª ed., 2010 PAULO OTERO, “As garantias impugnatórias dos particulares no Código de Procedimento administrativo”, in Scientia Iuridica, XLI, 1992 _____, “Impugnações administrativas”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 28, 2001
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PEDRO GONÇALVES, Relações entre as impugnações administrativas necessárias e o recurso contencioso por de anulação de actos administrativos, Coimbra, 1996 ROGÉRIO E. SOARES, “O acto administrativo”, in Scientia Iuridica, XLI, 1992 RUI MACHETE, “Privilégio da Execução prévia”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. VI, pp. 448 a 470 VASCO PEREIRA
DA
SILVA, “De necessário a útil: a metamorfose do recurso
hierárquico no novo contencioso administrativo”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 47, 2004 _____, Em busca do acto administrativo perdido, Coimbra, 1996 _____, “Breve crónica de uma reforma anunciada”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 1, 1997 _____, “O contencioso administrativo como «direito constitucional concretizado» ou «ainda por concretizar»?”, in Ventos de Mudança no Contencioso Administrativo, Coimbra, 2000
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O procedimento europeu de injunção de pagamento: solução simplificada de cobrança de créditos transfronteiriços?
Joana Covelo de Abreu
1. A cooperação judiciária em matéria civil e o Tratado de Lisboa O Tratado de Lisboa afigura-se como um marco na construção da União Europeia porque aboliu as Comunidades (1), o que determinou que “a palavra «comunitário» se torn[asse], portanto, obsoleta” (2 ). Para a matéria aqui em análise releva o desaparecimento da estrutura pilarizada (3), que existia antes do Tratado de Lisboa, com especial ênfase para a determinação de uma competência alargada do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) a todas as matérias reguladas nos Tratados, salvo as situações excecionais bem identificadas (4). Este tratado subdivide as matérias em categorias relativas às competências da União e/ou dos Estados-Membros: 1) umas sujeitas à competência exclusiva da União Europeia; 2) outras de competência exclusiva dos Estados-Membros; e 3) outras sujeitas a competências partilhadas entre a União Euro-
(1) Das três Comunidades criadas na década de 1950, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) extinguiu-se pela caducidade do Tratado de Paris em 2002. À Comunidade Europeia sucede a União Europeia com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa. Mantém-se, atento o Protocolo n.º 2 anexo ao Tratado de Lisboa, a Comunidade Europeia da Energia Atómica (EUROTOM) mas cuja teleologia específica da energia atómica não entrava a vocação dada à atual União Europeia. Para mais esclarecimentos, cfr. DUARTE, Maria Luísa, Estudos sobre o Tratado de Lisboa, Almedina, 2010, pp. 27-28. ( 2 ) Cfr. BIAVATI, Paolo, “L'avenir du droit judiciaire privé d'origine européenne. De l'harmonisation des règles à l'harmonisation des effects”, in RTDeur – Revue trimestrielle de droit européen, juillet /septembre 2010, 46, n.º 3, Dalloz, p. 564 (tradução livre). (3) Cfr. SILVEIRA, Alessandra, “A transição possível: do Tratado Constitucional ao Tratado reformador – prefácio (1.ª Edição)”, in SILVEIRA, Alessandra (colaboração de Pedro Madeira Froufe), Tratado de Lisboa – Versão Consolidada, 2.ª Edição (completa e ampliada), Quid Juris, 2010, p. 14. (4) Apesar de existirem autores que consideram que a estrutura pilarizada ainda foi mantida em alguns sectores (“moderna arquitetura de pilares invisíveis”), nomeadamente naqueles em que há relação mais estrita com a soberania estadual, a realidade é que, nas matérias relativas ao Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, essas críticas são mantidas quanto à cooperação judiciária e policial em matéria penal, pois estes autores reconhecem que “o artigo 276.º TFUE impõe limites ao poder de controlo do TJUE”. Cfr., sobre esta matéria, DUARTE, Maria Luísa, Estudos sobre o Tratado de Lisboa, cit., p. 29.
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peia e os Estados-Membros. Atenta esta tripartição, verificamos que o art. 4.º, n.º 2, alínea j), do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) postula que as competências partilhadas entre a União e os Estados-Membros aplicam-se ao domínio do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Neste sentido, tanto a União como os Estados-Membros gozam de iniciativa legiferante. Ora, a cooperação judiciária em matéria civil – ou, como alguns autores referem, o “Processo Civil Europeu” (5) – está na ordem do dia no que diz respeito ao procedimento europeu de injunção de pagamento, já que este, ao importar a criação de um processo próprio, no seio da União, foi considerado como um efetivo desiderato para a proclamação de um Direito Processual Civil Europeu (6). Afinal, “o RPEI [Regulamento do procedimento europeu de injunção] representaria um primeiro e fundamental passo no sentido da criação de um Direito Processual Civil Europeu, por constituir um percursor e original encadeado de regras adjetivas de natureza uniforme, aplicável em todo o espaço da União (com exceção da Dinamarca)” (7). Contudo, como resulta da própria leitura do art. 26.º do Regulamento n.º 1896/2006 (relativo às injunções europeias de pagamento), é aplicável o direito interno dos diversos Estados-Membros às questões processuais que nele não se encontram equacionadas, pelo que se depreende que este ato normativo da União não configura uma regulação exaustiva de todos os aspetos processuais envolvidos. Ainda assim, este regulamento “apresenta-se como coerente com o ambicioso objetivo de criação do Espaço Europeu de Justiça” (8). Pelo exposto, consideramos mais prudente, por ora, usarmos as palavras do Juiz Desembargador CARLOS MARINHO, falando de um “Direito Europeu dos processos temáticos homogeneizados para efeitos de cooperação judiciária, que se nutre da cristalização de bases técnicas de processados convergentes de incidência meramente horizontal e de conexões extramuros” (9). Na realidade, apesar de o próprio Relatório Anual de 2012 do TJUE fazer expressa referên-
(5) Cfr., entre outros, BIAVATI, Paolo, “L'avenir du droit judiciaire privé...”, cit., p. 565; TARZIA, G., “L'ordine europeo del processo civile”, in Rivista di diritto processuale, 2001, p. 902; CANNIZZARO, E., “Sui rapporti fra sistemi processuali nazionali e diritto dell'Unione europea”, in Il diritto dell' Unione europea, 2008, p. 447. ( 6 ) Cfr. AMIGO, Luiz Gómez, El proceso monitório europeo, S.A., Navarra, Editorial Aranzadi, 2008, p. 29. (7) Cfr. MARINHO, Carlos M. G. de Melo, A cobrança de créditos na Europa. Os processos europeus de injunção e pequenas causas, Quid Juris, 2012, p. 20. (8) Cfr. MARINHO, Carlos M. G. de Melo, A cobrança de créditos na Europa..., cit., p. 21. (9) Cfr. MARINHO, Carlos M. G. de Melo, A cobrança de créditos na Europa..., cit., p. 21. 78
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cia (10), na arrumação dos temas abordados, a um Direito Internacional Privado da União Europeia, recentes discussões doutrinais sobre a matéria (11), envolvendo Juízes e Advogados-Gerais do próprio TJUE, Membros da Comissão Europeia e Académicos, levam-nos a percecionar que se torna cada vez mais clara a aceitação de um Processo Civil Europeu inserido no âmbito mais alargado do designado “Direito Civil Europeu” (12) (13). Com o Tratado de Amesterdão, a cooperação judiciária em matéria civil recebeu consagração expressa no antigo art. 65.º do Tratado da Comunidade Europeia (TCE), o qual foi substituído pelo atual art. 81.º do TFUE que veio, substancialmente, confirmar “as grandes linhas de ação da União”, mas que introduziu diferente semântica, novos objetivos específicos e que determinou o processo legislativo ordinário como o processo de legiferação para estas matérias (14). No que diz respeito às alterações semânticas, os juristas que operam no seio da União, porque assente num sistema multilinguístico, não as podem sobrevalorizar, já que nunca é totalmente certo se o que apreendemos da leitura do texto resultou da vontade do legislador em redesenhar o que estava regulado ou se foi fruto de uma arte de tradução mais ou menos literal. Ainda assim, os operadores judiciários e doutrinais não podem descurar em absoluto o argumento literal que preside a sua interpretação dos atos normativos em geral e, na União, em particular: aliás, é com base nesta ideia que se pode retirar a conclusão de que, em certos aspetos, “a formulação do artigo 81.º do TFUE parece […] mais incisiva do que a do artigo 65.º do TCE” (15). Na realidade, a escolha do processo legislativo ordinário parece espelhar “uma vontade precisa
(10) Cfr. Relatório Anual do Tribunal de Justiça da União Europeia 2012, disponível em versão pdf, para download, no site http://curia.europa.eu/jcms/jcms/Jo2_7000/, pp. 26-29. (11) Cfr., sobre esta matéria, os temas discutidos na Conferência “Assises de la justice”, em novembro de 2013, que conta com a chancela da Comissão Europeia, através do site http://ec.europa.eu/justice/events/assises-justice-2013/discussion_papers_en.htm. ( 12 ) Cfr. sobre a matéria, o Discussion Paper 1: EU Civil Law, atinente à Conferência “Assises de la justice”, referida supra, disponível em versão pdf, para download, no site http://ec.europa.eu/justice/events/assises-justice-2013/files/civil_law_en.pdf. (13) No direito da União Europeia é muito comum que não haja uma clara distinção entre o direito substantivo e o direito processual. O mesmo fenómeno é bem patente em matérias inseridas na cooperação judiciária em matéria penal. Para mais esclarecimentos, cfr. o Discussion Paper 2: EU Criminal Law, atinente à Conferência “Assises de la justice”, referida supra, disponível em versão pdf., para download, no site http://ec.europa.eu/justice/events/assises-justice2013/files/criminal_law_en.pdf. (14) Cfr. BIAVATI, Paolo, “L'avenir du droit judiciaire privé...”, cit., p. 565 (tradução livre). (15) Cfr. BIAVATI, Paolo, “L'avenir du droit judiciaire privé...”, cit., p. 566 (tradução livre). 79
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de tornar mais fácil e mais frequente a intervenção normativa da União, sem dúvida sob uma ótica de expansão e não de recessão” (16). Dispõe o art. 81.º, n.º 1 do TFUE que “a União desenvolve uma cooperação judiciária nas matérias civis com incidência transfronteiriça, assente no princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais e extrajudiciais. Essa cooperação pode incluir a adoção de medidas de aproximação das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros” (sublinhado e itálico da autora). Pela leitura da disposição do Tratado, depreendemos a manutenção da expressão “incidência transfronteiriça”, o que, para alguns autores, significa que a sua inclusão surgiu dos esforços dos Estados-Membros, ou de alguns entre estes, de “reprimir a expansão horizontal das competências da União” (17), embora o fulgor jurisprudencial do TJUE e a teleologia inerente aos tratados constitutivos venha colmatar ou aligeirar esses desejos. No que diz respeito à incidência transfronteiriça, o designado “«Livro Verde» relativo a um procedimento europeu de injunção de pagamento e a medidas destinadas a simplificar e acelerar as ações de pequeno montante” (18) esteve na base da criação do mecanismo das injunções europeias, sendo que neste «Livro Verde» foi formulada uma série de questões para avaliar os seus impactos e os seus efeitos. Quanto ao âmbito de incidência do procedimento de injunção, foram colocadas algumas questões às partes interessadas, sendo que a primeira pergunta rezava assim: “Os instrumentos europeus relativos às injunções de pagamento […] só devem ser aplicados a processos transfronteiras ou também a processos puramente internos?”, seguida deste convite explanatório: “[q]ueiram pronunciar-se sobre as vantagens e as desvantagens de um âmbito de aplicação reduzido ou alargado [...]” (19). Pelo que pudemos aferir, as partes interessadas foram efetivamente auscultadas para demonstrarem os entraves/as vantagens da incidência deste procedimento em situações transfronteiriças e puramente internas, pelo que a opção legislativa concretizada derivou de uma conjugação de esforços entre instituições europeias e Estados-Membros que, neste processo, consideraram mais profícua a aplicação deste mecanismo a relações transfronteiriças. Só a análise do referido «Livro Verde»
(16) Cfr. BIAVATI, Paolo, “L'avenir du droit judiciaire privé...”, cit., p. 566 (tradução livre). (17) Cfr. BIAVATI, Paolo, “L'avenir du droit judiciaire privé...”, cit., p. 566 (tradução livre). (18) Cfr. «Livro Verde» relativo a um procedimento europeu de injunção de pagamento e a medidas destinadas a simplificar e acelerar as acções de pequeno montante, disponível em versão pdf, para download, no site http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2002: 0746:FIN:PT:PDF. (19) Cfr. «Livro Verde» relativo a um procedimento europeu de injunção..., cit., p. 77. 80
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justifica o “cabal conhecimento das linhas conceptuais que conduziram às opções normativas” (20) contidas no Regulamento n.º 1896/2006. Por seu lado, esta opção não se afigura tão descabida, sobretudo quando o procedimento europeu de injunção de pagamento não surge como um mecanismo substitutivo dos meios internos de cobrança de dívidas, o que pode ter fundamentalmente baseado esta decisão de o direcionar para relações jurídicas extramuros. Por seu turno, “o Tratado de Lisboa veio expandir as fundações lançadas com o artigo 65.º do TCE” (21), já que verificamos que o art. 81.º, n.º 2, alíneas e), g) e h), do TFUE ( 22 ) importa três novos elementos que não constavam na redação do art. 65.º do TCE. Partindo desta constatação, talvez estejamos em condições de derivar as perspetivas da “justiça civil de origem europeia”: será uma justiça mais vocacionada para a “homogeneidade de resultados (juízes, advogados e funcionários bem preparados, limitação do contencioso judiciário, etc.)” do que para a “harmonização das regras” (23). Obviamente que as alterações introduzidas no art. 81.º do TFUE perspetivam horizontes muito vastos, pelo que a criação de um “espaço judiciário europeu não depende da modificação de uma norma-programa, mas do que a vontade dos políticos e dos operadores do mundo judiciário será capaz de retirar desta modificação” (24).
(20) Cfr. MARINHO, Carlos M. G. de Melo, A cobrança de créditos na Europa..., cit., p. 15. (21) Cfr. HARTNELL, Helen E., A Cinderella story: ‘Judicial cooperation in civil matters’ meets the prince. Review article of Eva Storskrubb, Civil procedure and EU Law: a policy area uncovered (Oxford University Press, 2008), 521 pages, £52.50, Hardback, ISBN 978-0-19-953317-6, in EECKHOUT, P e T. TRIDIMAS (Eds.), Yearbook of European Law, 29, 2010, Clarendon Press, Oxford, Oxford University Press, p. 486. (22) “2. Para efeitos do n.º 1, o Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário, adoptam, nomeadamente quando tal seja necessário para o bom funcionamento do mercado interno, medidas destinadas a assegurar: […] e) O acesso efectivo à justiça; […] g) O desenvolvimento de métodos alternativos de resolução dos litígios; h) O apoio à formação dos magistrados e dos funcionários e agentes de justiça.” (23) Cfr. BIAVATI, Paolo, “L'avenir du droit judiciaire privé...”, cit., p. 566 (tradução livre). (24) Cfr. BIAVATI, Paolo, “L'avenir du droit judiciaire privé...”, cit., p. 566 (tradução livre). 81
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2. O procedimento europeu de injunção de pagamento: a simplificação na alegação/exposição dos factos através da adoção de formulários normalizados e a jurisprudência do TJUE Szyrocka A injunção europeia de pagamento foi introduzida no ordenamento jurídico da União pelo Regulamento n.º 1896/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006. O primeiro considerando do Regulamento determina os seus objetivos, que passam pela promoção do desenvolvimento do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, onde a livre circulação de pessoas seja assegurada. Assim, cabe à União criar medidas em sede de cooperação judiciária em matéria civil que permitam promover o bom funcionamento do mercado interno. Na realidade, este procedimento assume, em tempos de crise, como aqueles que assolam a União Europeia nos nossos dias, uma importância vital no que diz respeito a criar, quer para particulares, quer para empresas, um mecanismo célere e eficaz na cobrança de dívidas emergentes de relações jurídicas transfronteiriças. Aliás, como vem expresso no sexto considerando do Regulamento, “a cobrança rápida e eficaz de dívidas pendentes juridicamente não controvertidas é de importância capital para os operadores económicos na União Europeia, dado que os atrasos de pagamento representam uma das principais causas de falência que ameaçam a sobrevivência das empresas, em especial das pequenas e médias empresas, e provocam a perda de inúmeros postos de trabalho”. Posto isto, tornou-se premente a criação de um mecanismo que buscasse “simplificar, acelerar e reduzir os custos dos processos judiciais em casos transfronteiriços de créditos pecuniários não contestados” (25), na medida em que, apesar de quase todos os Estados-Membros se encontrarem dotados de procedimentos de injunção internos, estes nem sempre são adequados a situações transfronteiriças e, quando o são, tornam-se quase impraticáveis. Por seu lado, a existência em quase todos os Estados-Membros (26) de um procedimento de injunção apenas cria uma ilusão de facilidade de cobrança deste tipo de créditos já que a Europa era, até à criação deste procedimento, “uma verdadeira Babel, marcada por fortes assimetrias ao nível dos requisitos formais e (25) Cfr. Considerando (9) do Regulamento n.º 1896/2006 cit. (26) Como nos ensina o Juiz Desembargador Carlos Marinho, esta tendência (de existência de mecanismos injuntivos nacionais) não contempla, na sua globalidade, os Estados-Membros que integraram o alargamento ao leste europeu. Cfr., sobre esta conclusão, MARINHO, Carlos M. G. de Melo, A cobrança de créditos na Europa..., cit., p. 19. 82
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substantivos, prazos, autoridades competentes […] e encadeado de regras adjetivas. Daqui emergia a agressão dos interesses dos cidadãos e das empresas, sujeitos à plurilitigação e a uma miríade de procedimentos” (27). Este modelo, ao implementar um novo procedimento que tramita no espaço da União, com a maior parte das regras processuais a encontrarem-se reguladas nos termos do regulamento, primou por não se substituir aos procedimentos injuntivos existentes no tecido judiciário dos Estados-Membros, constituindo-se como um “meio suplementar e facultativo à disposição do requerente, que manterá toda a liberdade de recorrer aos procedimentos previstos no direito interno” (28). Não teve, assim, a intenção de se substituir aos meios internos nem de os harmonizar. Posto isto, sabemos que, no seio da cooperação judiciária em matéria civil, a confiança recíproca na administração da justiça entre Estados-Membros foi e é um dos princípios mais marcantes. No caso do procedimento europeu de injunção de pagamento, podemos dizer que já ultrapassámos este limiar, caminhando num novo mundo. Aquele princípio da confiança recíproca foi desenvolvido à luz da simplificação e mesmo da supressão dos procedimentos de reconhecimento e de declaração de executoriedade de sentenças emitidas num Estado-Membro, por parte do Estado-Membro de execução. No caso em concreto, um título executivo obtido através de uma injunção europeia não passa por qualquer um daqueles processos, sendo exequível em qualquer ordenamento jurídico de qualquer Estado-Membro, à exceção da Dinamarca (29). A injunção de pagamento europeia trata-se de um processo viabilizador da célere e eficaz cobrança de créditos transfronteiriços não liquidados e que visa criar amplos e concretos benefícios para os particulares (quer cidadãos, quer empresas). A génese do procedimento é o do pragmatismo e o da rapidez. Os créditos que podem ser exigidos através deste procedimento têm de ser “pecuniários, líquidos e exigíveis na data em que é apresentado o requerimento de injunção de pagamento europeia” (30). A juntar a estes requisitos, o crédito não pode ter natureza controvertida, ou seja, não pode existir qualquer litígio sobre o mesmo. Atentos os termos do art. 2.º do Regulamento, retiramos que apenas os créditos emergentes de relações contratuais podem ser exigidos, (27) Cfr. MARINHO, Carlos M. G. de Melo, A cobrança de créditos na Europa..., cit., pp. 19-20. (28) Cfr. Considerando (10) do Regulamento n.º 1896/2006 cit. (29) Resulta do próprio texto do art. 2.º, n.º 3 do Regulamento n.º 1896/2006, por força dos arts. 1.º e 2.º do Protocolo n.º 22 relativo à posição da Dinamarca, no que concerne ao Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. (30) Cfr. Art. 4.º do Regulamento cit. 83
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salvo se 1) houver acordo das partes quanto ao crédito emergente de uma relação não contratual e tenha havido reconhecimento da dívida [art. 2.º, n.º 2, alínea d), subalínea i)] e se 2) o crédito se relacionar com dívidas líquidas decorrentes da compropriedade de bens [art. 2.º, n.º 2, alínea d), subalínea ii)]. Estas exceções, porque permitem a manutenção do fito de baixa conflitualidade imanente a este procedimento, foram contempladas de modo a que o seu âmbito de aplicação pudesse ser mais alargado. Relativamente às características que o crédito deve revestir, este deve assumir 1) natureza pecuniária, ou seja, ter expressão na moeda corrente do Estado-Membro de origem (31); 2) ser líquido, ou seja, encontrar-se totalmente determinado e apurado; e 3) ser exigível, ou seja, o crédito tem de ter “a suscetibilidade de ser peticionado em termos presentes e não meramente futuros (32). Revisitando o disposto no art. 4.º do Regulamento, estas características têm de ser congregadas, no momento em que é apresentado o requerimento de injunção europeia. Tendo em conta estas explicações, cabe-nos demonstrar que se considerarão incluídos no crédito reclamado os juros, as sanções contratuais e os custos, conforme se deriva da interpretação do texto do art. 7.º, n.º 2, alíneas b) e c), do Regulamento. De modo a simplificar a utilização deste mecanismo, o legislador da União sujeitou a sua tramitação ao preenchimento de formulários normalizados, que se encontram disponíveis em anexo ao citado Regulamento. Assim, quer o requerimento inicial, quer as demais comunicações entre a entidade competente, no Estado-Membro de origem, e as partes (nomeadamente, os pedidos de aperfeiçoamento do requerimento inicial e a injunção de pagamento europeia), quer a oposição que o requerido tem a suscetibilidade de apresentar, serão realizados através da submissão desses formulários. Atentos os referidos formulários, parece que o seu preenchimento se poderá fazer de forma muito intuitiva. Contudo, não é tão fácil como se pode derivar da sua análise menos cuidada. Aliás, muito menos quando a sua suposta facilidade quer justificar a opção legislativa de dispensar o patrocínio judiciário obrigatório quer do requerente, quer do requerido, para a apresentação, respetivamente, do requerimento inicial e da declaração de oposição à injunção, como ficou estatuído nos termos do art. 24.º do Regulamento. Como nos ensina o Juiz (31) Segundo as densificações terminológicas constantes no art. 5.º, n.º 1 do Regulamento cit., “Estado-Membro de origem” é “o Estado-Membro no qual é emitida uma injunção de pagamento europeia”. (32) Cfr. MARINHO, Carlos M. G. de Melo, A cobrança de créditos na Europa..., cit., p. 24. 84
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Desembargador CARLOS MARINHO, tal “impõe um maior cuidado do Tribunal com a garantia de exercício de direitos e informação às partes” (33). A finalidade que presidiu esta opção legislativa foi a de tentar reduzir, ao máximo, os gastos dos particulares com a cobrança de créditos. Contudo, alguém menos informado não consegue discernir, na plenitude, todas as consequências inerentes ao preenchimento de um formulário, nomeadamente de início de procedimento – “a tecnicidade associada a algumas estruturas (como ocorre, por exemplo, com a da escolha do órgão competente) é de tal calibre que deveria, à partida, desaconselhar a incursão isolada do cidadão” (34). Neste contexto, e porque as dúvidas suscitadas conduziram a um reenvio prejudicial recente por parte de um tribunal polaco, consideramos pertinente verificar de que modo a jurisprudência do TJUE se direcionou também, neste contexto de crise, a fim de salvaguardar os interesses das partes, alteando sempre o princípio da tutela jurisdicional efetiva. No acórdão Szyrocka, de 13 de dezembro de 2012 (35), o TJUE foi chamado a pronunciar-se, entre outras questões, sobre a possibilidade de o Requerente, através de uma injunção europeia, demandar o pagamento de juros vencidos e vincendos ao Requerido. O processo principal opunha Iwona Szyrocka, residente na Polónia, a uma empresa alemã – SiGer Technologie GmbH. Assim, Iwona Szyrocka apresentou um requerimento de injunção europeia na Polónia, perante o Tribunal competente (36). Dirimidas as devidas questões de competência terri(33) Cfr. MARINHO, Carlos M. G. de Melo, A cobrança de créditos na Europa..., cit., p. 64. (34) Cfr. MARINHO, Carlos M. G. de Melo, A cobrança de créditos na Europa..., cit., p. 64. (35) Cfr. Acórdão TJUE Szyrocka, de 13 de Dezembro de 2012, processo n.º C-215/11, disponível no site curia.europa.eu. (36) Convém apenas determinar, sobre esta matéria, que o Regulamento não pede que seja um tribunal, enquanto entidade jurisdicional, o competente para conhecer dos procedimentos europeus de injunção. Como decorre do texto do art. 5.º, n.º 3 do Regulamento, “Tribunal é qualquer autoridade de um Estado-Membro competente em matéria de injunções de pagamento europeias ou em quaisquer outras matérias conexas”. Esta redação não está isenta de críticas doutrinais e dos próprios agentes forenses. Na realidade, é questionada a utilização da terminologia “Tribunal” quando, na realidade, a entidade competente indicada pelo Estado-Membro pode ser um serviço administrativo ou uma secretaria judicial. Aliás, normalmente, a doutrina ataca a falta de clareza na escolha das expressões, sobretudo quando se atenta à epígrafe do artigo 6.º do mesmo Regulamento, que fala em “competência judiciária”, termo que apenas deveria ser adotado quando se está a falar de tribunais, enquanto terceiro poder do Estado. Ainda assim, parece-nos que esta utilização foi o modo mais simplificado que o legislador da União conseguiu discernir para evitar que as normas do Regulamento fossem impercetíveis. Um advogado/juiz/funcionário judicial ou administrativo, olhando para a terminologia “tribunal” (quando no Estado-Membro em questão é outra a entidade competente), consegue fazer a necessária interpretação corretiva, sendo mais fácil a leitura dos artigos onde 85
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torial, e atento o requerimento de injunção apresentado, o tribunal polaco queria saber, no essencial e com relevo para a análise que ora se entabula, 1) se os arts. 4.º e 7.º, n.º 2, alínea c), do Regulamento se opunham a que o Requerente pudesse reclamar juros devidos desde a data do vencimento do crédito até efetivo e integral pagamento; e 2) como deveria preencher o formulário de injunção de pagamento europeia ( 37 ), no caso em que se verificasse que o Requerente poderia reclamar o pagamento dos juros vencidos e vincendos (38). Como decorre da letra do próprio acórdão, o Tribunal polaco não sabia como podia congregar as exigências de liquidez e exigibilidade que decorrem do texto do art. 4.º do Regulamento com a possibilidade de exigência dos juros vencidos e vincendos que o art. 7.º, n.º 2, alíneas b) e c), do Regulamento dá. Quanto a isto, o TJUE esclareceu que “decorre do contexto em que essa disposição [art. 4.º do Regulamento] se insere, nomeadamente da sua leitura conjugada com o artigo 7.º, n.º 2, alínea c), do referido regulamento, que os requisitos de liquidez e de exigibilidade do crédito aí previstos não visam os juros” (39), já que “nenhuma disposição do Regulamento n.º 1896/2006 exige que o requerente indique, no seu requerimento de injunção de pagamento europeia, o montante exato dos juros” (40). O art. 7.º, n.º 2, alínea c), do Regulamento determina que, sempre que sejam peticionados juros, a taxa a que os mesmos apenas figura a referência a “tribunal”. Afinal, se o legislador tivesse sido mais cuidadoso terminologicamente, poderíamos deparar-nos com artigos em que, para fazer referência à entidade competente, figurasse uma redação semelhante à que se sugere “autoridade do Estado-membro competente em matéria de injunções”. Em termos de manutenção da simplicidade do ato normativo, parece-nos que esta opção legislativa é mais vantajosa do que tornar os artigos do Regulamento autênticos labirintos circulares. Em sentido contrário, cfr., por exemplo, MARINHO, Carlos M. G. de Melo, A cobrança de créditos na Europa..., cit., p. 64. Sobre a competência, cfr. CARAVACA, Alfonso-Luis Calvo e GONZÁLEZ, Javier Carrascosa, Derecho internacional privado, 2.º Volume, 11.ª Edição, Granada, Comares Editorial, 2010. (37) Ou seja, formulário preenchido pela entidade competente e que acompanha a citação do requerido. (38) No caso em análise, o tribunal nacional também interrogou o TJUE sobre o seguinte: se o art. 7.º do Regulamento estabelece todos os requisitos que o requerimento de injunção tem de preencher ou se prevê apenas normas mínimas, podendo cada Estado-Membro aduzir mais requisitos que derivem da aplicação do direito interno. Concretamente, o TJUE esclareceu que o art. 7.º não estabelece normas mínimas, mas contém uma série de exigências de forma e de conteúdo, não havendo nada, na sua redação, que permita concluir que os Estados-Membros são livres de aditar requisitos. Lembra, aliás, que sempre que tal é permitido aos Estados-Membros, o próprio Regulamento expressamente o prevê. No que diz respeito à fixação das custas processuais, por força do disposto no art. 25.º do Regulamento, ao tribunal nacional cabe auxiliar-se da legislação interna na matéria, tendo sempre de observar o limite máximo de custas constante no art. 25.º, n.º 1, 2.ª parte do Regulamento. (39) Cfr. Acórdão TJUE Szyrocka cit., considerando 41. (40) Cfr. Acórdão TJUE Szyrocka cit., considerando 42. 86
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devem ser calculados e o período de tempo ao qual dizem respeito têm de constar no requerimento de injunção, realidade refletida no formulário normalizado que contempla o requerimento de injunção. Assim, a realidade é que, apesar de o Requerente não ser obrigado a quantificar os juros no requerimento inicial – porque tal não lhe é exigido – a alínea c) do art. 7.º, n.º 2, também não é clara, no que diz respeito à data até à qual podem ser peticionados os juros. Perante isto, o TJUE definiu que a interpretação da referida disposição se deve operar “à luz do objetivo do Regulamento n.º 1896/2006, que, [...] não consiste apenas em instituir um mecanismo simples, rápido e eficaz de cobrança de créditos pecuniários não contestados, mas também em reduzir os custos desse processo”(41). Na realidade, o TJUE condescendeu nas Conclusões do Advogado-Geral deste processo: “se se obrigasse os credores a limitar o seu pedido unicamente ao montante do capital, eventualmente acrescido de juros devidos no momento em que o requerimento é apresentado ou, no máximo, no momento em que a injunção é emitida, esses credores estariam obrigados a apresentar vários requerimentos: o primeiro para obter o pagamento do crédito principal e dos juros vencidos, os outros para obter os juros referentes ao período posterior”, o que tornaria “mais difícil a instituição de um único título judicial, apto a circular no interior dos Estados-Membros e o montante global do crédito seria dividido nos seus diferentes elementos, o que levaria a uma multiplicação de títulos judiciais suscetíveis de aumentar os litígios e os prazos e custos respetivos, dificultando a cobrança das quantias devidas, mais que não fosse porque seria necessário iniciar vários procedimentos” (42). Por outro lado, iria conduzir o Requerente a tentar optar pelos meios nacionais de cobrança de créditos, que lhe permitissem cobrar juros, votando o instituto da injunção europeia à inutilidade. Afinal, apesar de este mecanismo se configurar um meio suplementar face aos institutos de direito nacional, “para que este procedimento represente uma verdadeira escolha para os credores, estes devem poder invocar, nesse procedimento, os mesmos direitos que nos procedimentos nacionais” (43). Perante esta conclusão, o TJUE viu-se na contingência de demonstrar ao Tribunal nacional como poderia proceder ao preenchimento do formulário normalizado, constante como Anexo V ao Regulamento em análise, através do qual este emite a injunção de pagamento europeia, que irá ser citada ao Reque(41) Cfr. Acórdão TJUE Szyrocka cit., considerando 44. (42) Cfr. Conclusões do Advogado-Geral Paolo Mengozzi, caso Szyrocka, de 28 de junho de 2012, processo n.º C-215/11, considerandos 66-67. (43) Cfr. Acórdão TJUE Szyrocka cit., considerando 47. 87
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rido. A título preliminar, há que precisar que, no referido formulário, “figura uma linha horizontal intitulada «Juros (a partir de)» que se cruza com três colunas verticais intituladas, respetivamente, «Moeda», «Montante» e «Data (dia/mês/ano)»” ( 44 ). Sucede, com isto, que à entidade competente apenas é possível preencher estes campos, no que diz respeito aos juros, não podendo dar a conhecer ao Requerido que estes serão quantificados até ao momento em que o crédito principal também for liquidado. Posto isto, e atento o princípio da tutela jurisdicional efetiva, agora consagrado expressamente como direito fundamental no art. 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), quer o direito à ação, quer os direitos de defesa são dimensões que o integram, significando isto que a ordem jurídica da União tem uma preocupação em salvaguardar quer a suscetibilidade que o Autor/Requerente tem de propor uma ação, quer a faculdade que o Réu/Requerido tem de se defender e contraditar em juízo. Tal silogismo derivou do acórdão G. vs. Visser, de 15 de março de 2012 (45), onde o TJUE declarou que o respeito pelos direitos de defesa, enquanto direito fundamental, não se assume como uma prerrogativa absoluta. Contudo, para que este possa ser restringido, a restrição tem de corresponder efetivamente a objetivos de interesse geral e não constituir, à luz do fim prosseguido, uma violação desmesurada daqueles direitos. No caso, o facto de existir um formulário normalizado não pode, por si só, justificar uma restrição aos direitos de defesa do Requerido, na medida em que, se o formulário fosse preenchido sem mais, este poderia não tomar consciência de que os juros se venceriam até efetivo e integral pagamento do crédito principal, ou seja, que o facto cessante da contagem daqueles juros era, no fundo, um ato volitivo próprio do Requerido. Mostrando-se sensibilizado para esta realidade, o TJUE lembrou que “os formulários [têm] por base as situações mais típicas que podem ocorrer na prática”, mas proclamou que, em circunstâncias como as do processo em causa, “o conteúdo do referido formulário deve ser adaptado às circunstâncias particulares do processo”(46). Posto isto, cabe ao tribunal nacional alterar a configuração do formulário normalizado, de modo a incluir campos que permitam ao Requerido perceber que os juros se vencerão até efetivo e integral pagamento do crédito principal.
(44) Cfr. Acórdão TJUE Szyrocka cit., considerando 55. (45) Cfr. Acórdão TJUE G. vs. Visser, de 15 de março de 2012, processo n.º C-292/10, disponível em curia.europa.eu. (46) Cfr. Acórdão TJUE Szyrocka cit., considerando 57. 88
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Com este aresto, o TJUE permitiu a suplantação de dúvidas interpretativas que se iriam colocar, mais cedo ou mais tarde, no território do mesmo ou de outro Estado-Membro. Os formulários surgiram da necessidade de simplificação que se pretendeu imprimir a este mecanismo, mas a sua utilização não pode conduzir a uma violação grave dos direitos de defesa do Requerido. 3. Notas conclusivas – o procedimento europeu de injunção de pagamento e a tutela jurisdicional efetiva Como ficou patente da análise da jurisprudência do TJUE, a tutela jurisdicional efetiva é assegurada em todas as suas dimensões, sendo o procedimento europeu de injunção de pagamento adequado à cada vez mais intensa observância deste princípio geral e direito fundamental. Como tivemos oportunidade de analisar, o direito à ação encerra em si os designados direitos de defesa, que são reconhecidos, no âmbito da cooperação judiciária em matéria civil, aos Réus/Requeridos. Nesta senda, ensina-nos MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA que “o direito à ação é configurado pela Carta [CDFUE] como um direito que se encontra em conexão com a violação de «direitos e liberdades garantidos pelo direito da União». Tal significa que o direito em causa não se circunscreve à tutela dos direitos consagrados na Carta que o prevê expressamente: pelo contrário, permite aos titulares do direito a tutela judicial de violações de direitos – e todos os direitos [...]” (47). Num contexto de crise, os credores podem ver os seus direitos mais rapidamente acautelados através deste procedimento de injunção, que, não estando adstrito a limites pecuniários, como sucede com alguns procedimentos de carácter interno (Portugal é um exemplo desta realidade), permite um processo célere que coloca a tónica da obtenção do título executivo, pelo Requerente, no comportamento processual do Requerido. Na realidade, é a este que cabe, apresentando oposição à injunção europeia, evitar que o Requerente, através de um procedimento quase automático (48), consiga obter um título que (47) Cfr. RANGEL DE MESQUITA, Maria José, “Anotação ao artigo 47.º da CDFUE”, in SILVEIRA, Alessandra e CANOTILHO, Mariana (Coord.), Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, Almedina, 2013, p. 540. (48) Dizemos que é quase automático na medida em que a entidade competente para conhecer a injunção de pagamento europeia irá proceder a uma apreciação liminar do requerimento, à luz do disposto no art. 8.º do Regulamento, podendo convidar o Requerente a completar ou a retificar o requerimento (art. 9.º do Regulamento). Nos casos expressamente previstos no art. 11.º, poderá mesmo recusar o requerimento. 89
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é imediatamente exequível no espaço jurídico da União Europeia. Contudo, nada se opera ao acaso neste procedimento – e a prova é a jurisprudência que hoje trouxemos aqui à colação: para que a ausência de comportamento processual do Requerido no processo possa produzir todos os efeitos enunciados, os seus direitos de defesa e de informação processual têm de ser salvaguardados na plenitude, daí ser necessário dirimir dúvidas quanto à emissão de uma injunção europeia, quando os campos do formulário normalizado não permitem, naquela situação concreta, ao Requerido, ter consciência de todo o processado e do que é efetivamente aí elencado, como a quantia global devida. Como vimos, todos os elementos indispensáveis a que o Requerido se possa opor à injunção de pagamento europeia têm de ser claros, nos termos dos arts. 16.º e 17.º do Regulamento. Assim, apesar de a finalidade inerente à criação deste mecanismo ter passado pela necessidade de dotar a União de um meio capaz de conduzir a uma mais rápida e simples cobrança de créditos de carácter transfronteiriço, não foi deixada ao acaso a proteção do Requerido. Na realidade, apesar de o formulário normalizado para emissão de uma injunção de pagamento europeia, no campo analisado relativo aos juros, apresentar uma composição inócua – que, à partida, não acarretaria qualquer entrave à total efetivação dos direitos de defesa do Requerido – verificamos que, num caso concreto (quando se demanda o pagamento de juros vencidos e vincendos), aquele campo poderia acarretar uma desproteção para aquele sujeito processual. Neste sentido, a atuação do TJUE é fundamental de modo a que se opere uma interpretação homogénea do direito da União. Com este caso, é agora possível que outras entidades competentes em matéria de injunções europeias, deparando-se com situações similares, saibam como agir, modificando o formulário de modo a fornecer, ao Requerido, todas as informações necessárias. Respondendo, assim, à pergunta que deu mote a este artigo, pensamos que o procedimento europeu de injunção de pagamento configura um mecanismo viabilizador da rápida cobrança de créditos transfronteiriços que empiricamente sabemos serem aqueles que os credores mais facilmente deixam “cair” numa situação em que a sua liquidez pode não ser suficiente para suportar anos de processos morosos e dispendiosos de cobrança de créditos num ordenamento jurídico que lhes é absolutamente estranho. Assim, a criação deste mecanismo, cuja apreensão é de relativa simplicidade, deu a estes credores a fé necessária de que os seus créditos poderão ser efetivamente cobrados.
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Quando me deparei pela primeira vez com o Acórdão Szyrocka, estabeleci instantaneamente um paralelismo com a obra “O Mercador de Veneza”, de William Shakespeare. Lembrando o desenlace da trama – embora correndo o risco de desvendar um dos fins mais deliciosos da literatura! –, o agiota Shylock, pedindo a observância da cláusula de não cumprimento do contrato celebrado com António (o Mercador que dá nome à obra), exige que este lhe entregue o seu coração por não ter conseguido cumprir, pontualmente, as suas obrigações contratuais. Mas, inesperadamente, num golpe de lógica jurídica, António é salvo por Pórcia, disfarçada de Baltasar. O incumprimento do contrato celebrado entre António e Shylock determinava que o primeiro teria de entregar o seu coração ao segundo. O incumprimento passa, então, a ser discutido perante o Duque, onde se apresenta Pórcia, na pele do jurista Baltasar, de modo a tentar salvar a vida de António. No final, Pórcia descobre uma lacuna no contrato, na medida em que a entrega do coração não implicava a perda de sangue por parte de António, sendo assim impossível o cumprimento de tal cláusula. Olhando para o acórdão Szyrocka, o paralelismo é inevitável: apesar de o direito da União preservar a observância estrita dos direitos das partes, a realidade é que abre a porta para a possibilidade de serem reclamados juros moratórios vencidos e vincendos, como se estes fossem o sangue que, no caso de António, não pôde ser derramado, salvando-lhe a vida. Mas a “vida” a ter em conta, no contexto atual, é a de todos aqueles que são detentores de créditos não pagos e cuja caracterização extramuros fazia depreender, à partida, uma maior dificuldade de cobrança. Ora, observando-se inexpugnavelmente os direitos à ação e de defesa do Requerente e do Requerido, respetivamente, tornou-se fácil e possível, num curto espaço de tempo, obter o cumprimento coercivo ou não coercivo da dívida reclamada. Apesar das muitas críticas que lhe são assacadas, o procedimento europeu de injunção de pagamento é um mecanismo ao serviço da tutela jurisdicional dos direitos dos particulares envolvidos, tornando-se num forte aliado no combate aos créditos não pagos, embora líquidos e exigíveis.
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A diretiva relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade
João Sérgio Ribeiro
Introdução O tema deste ano para o Colloquium Juris, e que serviu de mote para uma grande parte dos contributos para este anuário do Departamento das Ciências Jurídicas Públicas, foi o Direito e Ética. Tentámos no domínio do direito fiscal encontrar uma questão jurídica que tivesse uma ligação clara com a ética. A evasão e a fraude fiscais são das matérias que, pelo seu desvalor, mais relevância teriam para um estudo que se enquadrasse nesse grande tema. Essa circunstância, aliada à constatação de que com a internacionalização crescente da economia se potencia igualmente o problema da evasão e fraude, fez-nos eleger esse domínio para aí identificar um assunto relevante. Sem prejuízo de o problema da fraude e evasão fiscal ter impacto em vários contextos e suscitar, em cada um deles, vários mecanismos de combate a esse fenómeno, decidimos fazer um estudo de uma diretiva que, no plano da União Europeia, mais recentemente materializou um esforço de combate a esse fenómeno. Julgamos ser uma análise atual e relevante. Em primeiro lugar, porque, especificamente no domínio da União Europeia, a liberdade de circulação, de serviços, mercadorias, pessoas e principalmente de capitais e pagamentos, não obstante as óbvias vantagens que implica, aumenta as oportunidades para fraude e evasão, especialmente se considerarmos que estão em causa 28 Estados-Membros. Depois, a União Europeia está no centro de uma crise financeira, pelo que, naturalmente, o combate à evasão e fraudes fiscais adquire uma importância acrescida na medida em que pode, como é óbvio, minorar esse problema. Salientamos, todavia, que o estudo que agora se enceta tem como objetivo não resolver uma qualquer questão específica que se levante a propósito da diretiva que será objeto de análise, mas divulgá-la através do estudo de alguns dos seus aspetos mais inovadores. Este trabalho terá, assim, de modo assumido, um pendor essencialmente descritivo e de apresentação deste instrumento.
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Num primeiro momento, faremos uma nota breve acerca dos vários instrumentos de troca de informações e de assistência administrativa mais importantes no plano internacional, para delimitar minimamente o quadro da cooperação que serve de pano de fundo à diretiva que analisaremos. Num segundo e derradeiro momento, dedicar-nos-emos propriamente à diretiva que serve de objeto a este trabalho
a diretiva 2011/16/EU do Conselho,
de 15 de fevereiro de 2011, relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade e que revoga a diretiva 77/799/ CEE (1). Tentando apresentá-la nos seus aspetos mais relevantes e fazendo, sempre que seja relevante, um exercício, por opção muito sucinto, de comparação com a diretiva que anteriormente regulava essa matéria.
1. Instrumentos de cooperação administrativa no plano internacional A assistência administrativa é suscetível de ser levada a cabo através de diversos mecanismos que podem assentar numa abordagem bilateral ou multilateral. As formas mais correntes de abordagem bilateral são as convenções sobre dupla tributação contendo disposições que se refiram à assistência mútua, e os acordos sobre troca de informações em matéria fiscal. A abordagem multilateral, por sua vez, assenta em convenções multilaterais que incluem disposições sobre assistência administrativa ou convenções dirigidas especificamente à assistência administrativa mútua. 1.1. Abordagem bilateral A este grupo podem ser reconduzidas as convenções sobre dupla tributação e os acordos sobre a troca de informações em matéria tributária. 1.1.1. Convenções sobre dupla tributação É importante começar por recordar que a maioria dos acordos celebrados por Portugal segue a Convenção Modelo da OCDE que no art. 26.º se refere à
(1) Diretiva 77/799/CEE do Conselho, de 19 de dezembro de 1977, relativa à assistência mútua das autoridades competentes dos Estados-Membros no domínio dos impostos diretos, que sofreu diversas alterações. 94
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troca de informações. Logo, a maioria das convenções sobre dupla tributação terá disposições muito semelhantes a esse artigo. Em 2005, o art. 26.º sofreu aditamentos (n.os 4 e 5) que se referem à necessidade de os Estados fornecerem e obterem informação mesmo que esta não seja necessária para a aplicação do seu direito fiscal interno. Não podendo recusar essa informação só por esta ser detida por um banco ou instituição financeira. 1.1.2. Acordos sobre troca de informações em matéria fiscal Acordos sobre troca de informações têm uma grande importância, dado que permitem, de certo modo, compensar as limitações impostas pelo princípio da territorialidade que impede os Estados de levar a cabo investigações e auditorias no território de outros Estados. A maioria deste tipo de acordos segue de perto o Acordo Modelo da OCDE e prevê não só a troca de informações mediante pedido, mas também a troca automática e espontânea de informações (2). Além disso, permite que investigações relativas aos impostos tenham lugar no território do Estado ao qual é solicitada a informação. 1.2. Acordos multilaterais Há neste contexto acordos orientados específica e exclusivamente para a cooperação administrativa e outros que, tendo um caráter mais geral, contêm disposições relativas à troca de informações e assistência mútua. Destacamos a Convenção Multilateral sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Fiscal da OCDE (Joint Council of Europe/OECD Multilateral Convention on Mutual Assistance in Tax Matters). O facto de cobrir um número apreciável de impostos e de ir para além da informação fornecida a pedido (permitindo outras formas de assistência, designadamente automáticas e espontâneas, exames simultâneos, exames no estrangeiro, entre outros), combinado com a abertura a Estados não-membros do Conselho da Europa ou da OCDE, torna este instrumento especialmente atraente.
(2) Cfr. ARNOLD, Brian J., “Tax Havens «coming in from the cold» a sign of changing times?”, in Bulletin for International Taxation, November, 2010, p. 546. 95
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2. Diretiva 2011/16/UE do Conselho, de 15 de fevereiro de 2011, relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade e que revoga a Diretiva 77/799/ CEE A diretiva 2011/16/EU (doravante Diretiva), em vigor desde 1 de janeiro de 2013, sucede à Diretiva 77/799/CEE que deixou de ser apropriada, trazendo consigo algumas mudanças relativamente àquela. Desde logo, o facto de ser mais abrangente, na medida em que cobre a maior parte dos tributos, com exceção do IVA, dos impostos especiais de consumo e contribuições para a segurança social, o que aliás está em sintonia com o art. 26.º da Convenção Modelo da OCDE. Esta diretiva tem essencialmente em vista a cooperação administrativa entre as administrações fiscais dos Estados-Membros, no que respeita à troca de informações previsivelmente relevantes para administração e legislação interna dos Estados-Membros (3) referente aos impostos abrangidos por ela (4). Para além de todas as evoluções de que teremos a oportunidade de dar nota, há dois aspetos que gostaríamos de destacar. Por um lado, a particularidade de se limitar a fixar um mínimo de cooperação e, por outro, a especificidade de integrar uma cláusula que acolhe o princípio da nação mais favorecida. O facto de fixar apenas um mínimo de cooperação implica que os Estados-Membros possam estabelecer “uma cooperação mais ampla com outros Estados-Membros ao abrigo da respetiva legislação nacional ou no quadro de acordos bilaterais ou multilaterais celebrados com outros Estados-Membros” (5), não sendo essa cooperação afetada pela Diretiva (6). A circunstância de a Diretiva incluir, de uma forma explícita, uma cláusula que acolhe o princípio da nação mais favorecida leva a que “sempre que um Estado-Membro preste a um país terceiro uma cooperação mais ampla do que a prevista na presente diretiva, esse Estado-Membro não pode recusar a prestação dessa cooperação mais ampla a outro Estado-Membro que deseje participar em tal cooperação mais ampla com o primeiro” (7). Um exemplo concreto da aplicação desta disposição é a possibilidade de um Estado-Membro não signatário da
(3) Cfr. art. 1.º da Diretiva. (4) Cfr. art. 4.º da Diretiva. (5) In considerando 21 da Diretiva. (6) Cfr. art. 1.º, n.º 3, da Diretiva. (7) In art. 19.º da Diretiva. 96
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Convenção sobre Dupla Tributação Nórdica (8) poder ver ser-lhe aplicadas as soluções dessa convenção em matéria de cooperação administrativa se forem mais amplas. Há, no entanto, autores que negam que esta cláusula se possa aplicar no âmbito da União Europeia (9). Apesar da omissão da disposição a esse respeito, temos grandes dúvidas que possa ser defensável a exclusão dos países da União Europeia, pois, nesse estrito contexto, as exigências de uma integração mais plena não serão muito consentâneas com esse entendimento. O tema necessita certamente de uma reflexão mais aprofundada, a prosseguir em trabalhos futuros. Antes de passarmos ao âmbito de aplicação da diretiva, formas de troca de informações e outros aspetos caraterizadores da mesma, julgamos importante, neste ponto inicial de delimitação, dar nota de um outro aspeto que, apesar de não ser tão relevante como os que acabámos de indicar, merece, ainda assim, ser mencionado. Referimo-nos ao aspeto inovador, relativamente à diretiva que é substituída, que se traduz no facto de os pedidos de cooperação e documentos anexados, poderem ser apresentados em qualquer língua acordada entre a autoridade requerida e a autoridade requerente (10). 2.1. Sujeitos relativamente aos quais pode ser trocada informação A troca de informações tem um âmbito alargado no que respeita às pessoas (sujeitos passivos) relativamente às quais a informação diz respeito, não havendo limitações quanto à nacionalidade ou residência daquelas. Pelo que, mesmo a troca de informações referente a não residentes que não sejam nacionais ou residentes num Estado-Membro, é possível (11). Aliás, essa abrangência transparece da própria definição que a Diretiva dá de pessoa que compreende as pessoas singulares e coletivas; associações de pessoas às quais tenha sido reconhecida capacidade para a prática de atos jurídicos; ou qualquer outra estrutura jurídica seja qual for a sua natureza ou forma, dotada ou não de personalidade jurídica, cujos ativos de que seja proprietária ou gestora e rendimentos deles derivados estejam sujeitos a qualquer um dos impostos abrangidos pela Diretiva (12). (8) Cfr. HELMINEN, Marjaana, “Scope and interpretation of the Nordic Multilateral Double Taxation Convention”, in Bulletin for International Taxation, January 2007, pp. 23-38. (9) Cfr. TERRA, Ben e WATTEL, Peter, European Tax Law, Wolters Kluwer, 2012, p. 824. (10) Cfr. art. 21, n.º 4, da Diretiva. (11) Cfr. TERRA, Ben e WATTEL, Peter, European Tax Law, cit., p. 827. (12) Cfr. art. 3.º, n.º 11, da Diretiva. 97
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2.2. Impostos abrangidos A Diretiva abrange todos os tipos de impostos, incluindo, designadamente, impostos locais, impostos sobre o património, entre outros, sendo mais abrangente que a diretiva que vem substituir, que se aplicava unicamente aos impostos sobre o rendimento e património (13). Exclui, no entanto, o imposto sobre o valor acrescentado; impostos aduaneiros; impostos especiais sobre o consumo abrangidos por outra legislação da União em matéria de cooperação administrativa; e contribuições obrigatórias para a segurança social (consideradas como verdadeiros impostos em vários Estados-Membros) devidas ao Estado-Membro ou a uma subdivisão do Estado-Membro, ou às instituições de segurança social e direito público (14). A Diretiva faz ainda uma delimitação do conceito de imposto para efeitos da sua aplicação, afirmando que este não deve incluir as taxas em geral e os direitos de natureza contratual como, por exemplo, os pagamentos de serviços públicos (15). 2.3. Formas de troca de informações A informação pode ser fornecida mediante pedido, mas pode igualmente ser automática ou espontânea, o que tornará certamente a cooperação mais rápida e eficiente. A informação é, na medida do possível, transmitida por via eletrónica através da rede CCN (16), isto é, a plataforma comum baseada na rede comum de comunicações, desenvolvida pela União para todas as transmissões por via eletrónica entre autoridades competentes nos domínios aduaneiro e fiscal (17). 2.3.1. Informação obrigatória a pedido As autoridades do Estado requerido devem fornecer às autoridades do Estado requerente todas as informações de que disponham. Devendo o Estado que requer a informação fornecer dados relativos à pessoa a investigar ou ins-
(13) Cfr. art. 1.º da diretiva 77/799/CEE. (14) Cfr. art. 2.º da Diretiva. (15) Cfr. art. 2.º, n.º 2, da Diretiva. (16) Cfr. art. 21.º, n.º 1, da Diretiva. (17) Cfr. art. 3.º, n.º 13, da Diretiva. 98
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peccionar, especificar o tipo de informações que pretende e o fim fiscal a que se destinam (18). Caso essa informação não esteja disponível, as autoridades do Estado a quem foi requerida devem mandar efetuar os inquéritos administrativos para obtê-la, mesmo que esses dados não sejam necessários para os seus próprios fins fiscais (19). Convém salientar que, no processo de obtenção dessas informações, as autoridades requeridas devem atuar como se agissem por iniciativa própria ou a pedido de outra autoridade do seu próprio Estado-Membro. Esta solução é a que decorre do art. 6.º, n.º 3, da Diretiva que consagra, por conseguinte, a esse propósito, o princípio do tratamento nacional (20). Caso seja feito um pedido de inquérito administrativo específico, este tem de ser devidamente fundamentado. Neste âmbito a autoridade requerida, se entender que esse inquérito não é necessário, informa imediatamente a autoridade requerente das razões que lhe assiste (21) para sustentar esse entendimento. A informação solicitada deve ser comunicada o mais rápido possível, o mais tardar no prazo de seis meses a contar da receção do pedido, a não ser que a informação já esteja disponível, situações em que é transmitida no prazo de dois meses (22). A fixação de prazos constitui uma evolução importante face à diretiva substituída, dado que esta apenas exigia que a informação fosse disponibilizada logo que possível (23). Na eventualidade de a autoridade requerida não dispor da informação solicitada ou de não estar em condições de responder ao pedido de informações ou se recusar a responder com base nalguma razões admissíveis nos termos do art. 17.º da Diretiva, deve informar imediatamente a autoridade requerente das razões que lhe assistem, no prazo de um mês a contar da receção do pedido (24).
(18) Cfr. art. 20.º, n.º 2, da Diretiva (19) Cfr. art. 18.º, n.º 1, da Diretiva. (20) Cfr. TERRA, Ben e WATTEL, Peter, European Tax Law, cit., p. 830. (21) Cfr. art. 6.º, n.º 2, da Diretiva. (22) Cfr. art. 7.º, n.º 1, da Diretiva. (23) Cfr. art. 5.º da diretiva 77/799/CEE. (24) Cfr. art. 7.º, n.º 6, da Diretiva. 99
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2.3.2. Troca automática de informações obrigatória A troca automática de informações encontra-se prevista em vários acordos bilaterais (25), contudo, os procedimentos seguidos para esse efeito são pouco homogéneos e representam um tipo de troca pouco eficiente (26). Essencialmente devido ao facto de cada um dos Estados-Membros ter tratados bilaterais de conteúdo diferente. A Diretiva terá um papel harmonizador, porém, só a partir e 1 de janeiro de 2015 é que serão postas em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à troca automática de informações (27). Da redação do art. 8.º da Diretiva, infere-se que a troca automática de informações implicará várias fases. Numa primeira fase, que decorrerá a partir de 1 de janeiro de 2014, e tendo como referência períodos de tributação ocorridos a partir dessa data, serão trocadas as informações disponíveis no que concerne a rendimentos de trabalho; honorários de administradores, produtos de seguro de vida não abrangidos por outros instrumentos jurídicos da União em matéria de troca de informações e outras medidas análogas; pensões, propriedade e rendimento de bens imóveis. Antevendo que nem todos os Estados estarão em condições de fornecer informações concernentes a todas essas categorias e para assegurar alguma previsibilidade, a Diretiva previu que, até 1 de janeiro de 2014, os Estados informem a Comissão das categorias em relação às quais disponham de informações (28). No sentido de estimular os Estados-Membros a disponibilizar informação, pelo menos no que diz respeito a uma categoria dos rendimentos avançados, a Diretiva determina que pode considerar-se que um Estado-Membro não pretende receber informações se não informar a Comissão das categorias relativamente às quais disponha de informações (29). Numa segunda fase, que decorrerá até 1 de julho de 2016, os Estados-Membros devem fornecer à Comissão estatísticas sobre o volume de trocas automáticas, para que, até 1 de julho de 2017, a Comissão apresente um relatório com uma panorâmica e uma avaliação das estatísticas recebidas, para, no (25) Que era, aliás, o contexto da diretiva 77/799/CEE. Ver arts. 3.º e 9.º dessa diretiva. (26) Cfr. TERRA, Ben e WATTEL, Peter, European Tax Law, cit., p. 831. (27) Cfr. art. 29.º da Diretiva. (28) Cfr. art. 8.º, n.º 2, da Diretiva. (29) Cft. art. 8.º, n.º 3, da Diretiva. 100
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caso de ser adequado, apresentar uma proposta ao Conselho, de modo a melhorar o funcionamento do sistema. Nesse sentido, foi previsto, por um lado, que os Estados-Membros comuniquem informação, mediante troca automática, no que se refere a pelo menos três das categorias específicas de rendimento e de património enumeradas no art. 8.º, n.º 1, da Diretiva; e, por outro, que a lista de categorias constante desse número seja alargada de modo a incluir dividendos, mais-valias e royalties (30). No que concerne ao prazo, determina-se que as comunicações devem ter lugar pelo menos uma vez por ano, no prazo de seis meses a contar do termo do ano fiscal do Estado-Membro durante o qual as informações foram disponibilizadas (31). 2.3.3. Troca espontânea de informações Troca espontânea de informações significa tão-só que esta é feita sem que seja necessário um requerimento prévio. É, por conseguinte, possível identificar, neste âmbito, duas situações. Aquelas em que a troca espontânea é obrigatória e aquela em que a troca espontânea é voluntária. Um Estado-Membro tem de comunicar obrigatoriamente as informações de que tenha conhecimento quando: “a) A autoridade competente de um Estado-Membro tem razões para presumir que existe uma redução ou uma isenção anormal de impostos no outro Estado-Membro; b) Um sujeito passivo de imposto obtém num Estado-Membro uma redução ou isenção de imposto que pode implicar um agravamento de imposto ou a sujeição a imposto no outro Estado-Membro; c) Os negócios entre um devedor de imposto de um Estado-Membro e um sujeito passivo de imposto no outro Estado-Membro, efetuados através de um ou mais países, são de molde a dar origem a uma redução de imposto num ou no outro Estado-Membro ou em ambos; d) A autoridade competente de um Estado-Membro tem razões para presumir que existe uma diminuição de imposto resultante de transferências fictícias de lucros no interior de grupos de empresas;
(30) Cfr. art. 8.º, n.º 5, da Diretiva. (31) Cfr. art. 8.º, n.º 6, da Diretiva. 101
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e) Na sequência de informações comunicadas a um Estado-Membro pela autoridade competente de outro Estado-Membro, são obtidas informações que podem ser úteis ao estabelecimento do imposto devido neste último Estado-Membro” (32). Fora das situações acabadas de elencar, os Estados-Membros podem comunicar quaisquer informações que possam ser úteis às autoridades competentes dos outros Estados-Membros (33). No que concerne ao prazo para este tipo de troca de informações a Diretiva determina que as informações devem ser disponibilizadas o mais rapidamente possível, no prazo máximo de um mês a partir do momento em que chegaram ao conhecimento da autoridade sobre quem impende o dever de as comunicar. Ora isto representa uma inovação face à anterior diretiva que se limitava a exigir que a comunicação fosse feita com toda a celeridade possível. Como é óbvio, este prazo só se aplica quando a troca espontânea de informações é obrigatória, isto é, quando se refere às situações descritas no art. 9.º, n.º 1, da Diretiva. 2.4. Outras formas de cooperação administrativa Existem outras formas de cooperação, designadamente a possibilidade de os funcionários dos Estados-Membros poderem estar presentes nos serviços administrativos dos outros Estados-Membros e participarem nos inquéritos administrativo daqueles; os controlos simultâneos e as notificações administrativas. 2.4.1. Presença nos serviços administrativos e participação em inquéritos administrativos No âmbito da diretiva anterior, a admissão de funcionários estrangeiros estava dependente de uma consulta entre os Estados-Membros e da fixação, na decorrência daquela, das condições de admissão (34). No âmbito da presente diretiva, esse procedimento está facilitado, na medida em que basta um acordo entre as autoridades dos Estados envolvidos, mediante o qual a autoridade do
(32) In art. 9.º, n.º 9, da Diretiva. (33) Cfr. art. 9.º, n.º 2, da Diretiva. (34) Cfr. art. 6.º da diretiva 77/799/CEE. 102
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Estado requerido fixa os termos segundo os quais os funcionários podem, tendo em vista a troca de informações, estar presentes nos serviços em que exercem funções as autoridades administrativas do Estado-Membro requerido e nos inquéritos administrativos aí realizados (35). Sempre que as informações solicitadas constem de documentação a que os funcionários da autoridade requerida têm acesso, cópias dessa documentação devem ser facultadas aos funcionários do Estado requerente (36). É ainda possível, sempre que a legislação do Estado requerido o permita, que os funcionários da autoridade requerente possam entrevistar pessoas e analisar registos (37). Importante para assegurar a colaboração com funcionários do Estado requerente é o facto de uma eventual recusa da pessoa submetida a inquérito em respeitar as medidas de controlo desses funcionários ser tratada tal e qual como se fosse uma recusa dirigida aos funcionários do Estado requerido (38). 2.4.2. Controlos simultâneos A Diretiva permite controlos simultâneos a uma ou mais pessoas envolvendo dois ou mais Estados, cada um no seu território, sempre que se apresentem como sendo de interesse para a troca de informações (39). Os Estados são livres para decidir se pretendem ou não participar neste tipo de controlos (40) que normalmente lhes são propostos por outros Estados que entendam haver vantagem nesse tipo de ações (41). Em caso de recusa, esta tem de ser devidamente justificada (42). Os Estados envolvidos em controlos simultâneos são obrigados a designar um representante responsável pela direção e coordenação da operação de controlo (43). Não há neste aspeto grandes alterações relativamente à diretiva anterior (44).
(35) Cfr. art. 11.º, n.º 1, da Diretiva. (36) Ibidem. (37) Cfr. art. 11.º, n.º 2, da Diretiva. (38) Ibidem. (39) Cfr. art. 12.º, n.º 1, da Diretiva. (40) Cfr. art. 12.º, n.º 3, da Diretiva. (41) Cfr. art. 12.º, n.º 2, da Diretiva. (42) Cfr. art. 12.º, n.º 3, da Diretiva. (43) Cfr. art. 12.º, n.º 4, da Diretiva. (44) Cfr. art. 8.º, alínea b), da diretiva 77/799/CEE. 103
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2.4.3. Notificações administrativas É normal que as leis nacionais dos vários Estados-Membros prevejam a notificação de atos ou decisões de âmbito tributário aos sujeitos passivos. Todavia, com a internacionalização crescente das atividades económicas e a consequente mobilidade dos sujeitos passivos, esse exercício é cada vez mais difícil. De modo a atenuar este problema, a Diretiva prevê que a pedido de um Estado-Membro o outro Estado-Membro notifique ao destinatário dos atos ou decisões emanados do Estado-Membro requerente (que digam respeito a impostos cobertos pela presente diretiva) nos mesmos termos em que o faria de acordo com a sua legislação interna (45). Mais uma vez se aplica aqui o princípio do tratamento nacional. Exige-se, contudo, que o pedido de notificação só possa ser feito quando o Estado requerente não esteja em condições de notificar, de acordo com as normas do seu direito que regem a notificação ou quando tal notificação puder implicar dificuldades desproporcionadas (46). 2.5. Justificações para recusar a cooperação Estão previstas várias justificações para recusar a cooperação, significando isso que, sempre que um Estado requerido se recuse a prestar as informações, deve informar acerca dos motivos que obstam a que o pedido de informações seja satisfeito (47). Relativamente à diretiva anterior destacamos o facto de haver menos justificações aceitáveis para a recusa de cooperação. De relevar que o sigilo bancário deixou de ser aceite como justificação (48). Não deixa de ser curioso constatar que as justificações avançadas pela Diretiva coincidem em grande medida com as previstas no art. 26.º, n.º 2, da Convenção Modelo da OCDE (49). As justificações especificamente avançadas para recusar a cooperação são: (i) o não esgotamento das fontes internas de informação; (ii) a falta de base legal; (iii) a falta de reciprocidade; (iv) a proteção de segredos comerciais; e (v) a preservação da ordem pública. Para além, obviamente, de uma justificação de caráter geral que resulta do âmbito de aplicação da diretiva e que permite que a (45) Cfr. art. 13.º, n.º 1, da Diretiva. (46) Cfr. art. 13.º, n.º 4, da Diretiva. (47) Cfr. art. 17.º, n.º 5, da Diretiva. (48) Cfr. art. 8.º, n.º 1, da diretiva 77/799/CEE. (49) Cfr. TERRA, Ben e WATTEL, Peter, European Tax Law, cit., p. 837. 104
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informação seja recusada quando se refira a impostos que estejam fora do âmbito desta. 2.5.1. Não esgotamento das fontes internas de informação O Estado requerido pode recusar as informações se o Estado requerente não tiver esgotado as fontes habituais de informação a que teria podido recorrer, para obter as informações solicitadas, sem correr o risco de prejudicar os seus objetivos (50). Esta justificação, apesar de fazer sentido, dificilmente poderá ser invocada, pois implica uma prova muito difícil de fazer. Na prática, supomos, o Estado requerido vai inferir do pedido de dados que foram esgotadas as fontes internas de informação. 2.5.2. Falta de base legal O Estado requerido pode recusar a disponibilização da informação solicitada se a recolha da mesma infringir a sua legislação (51), com a exceção de eventuais normas que protejam o sigilo bancário (52), o que, como já foi salientado, constitui uma inovação relativamente à anterior diretiva. 2.5.3. Falta de reciprocidade Nas situações em que o Estado que requer a informação, por razões legais, não esteja em condições de prestar informações desse tipo, não pode exigir que estas lhes sejam prestadas. Isto é, o Estado requerido pode recusar-se a prestar informações sempre que, por razões (53) legais, o Estado requerente não esteja em posição de prestar informações análogas. 2.5.4. Proteção de segredos comerciais Os Estados-Membros podem recursar-se a prestar informações quando isso implique a divulgação de um segredo comercial, industrial ou profissional,
(50) Cfr. art. 17.º, n.º 1, da Diretiva. (51) Cfr. art. 17.º, n.º 2, da Diretiva. (52) Cfr. art. 18.º, n.º 2, da Diretiva. (53) Cfr. art. 17.º, n.º 3, da Diretiva. 105
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ou de um processo comercial (54). Esta justificação tem como objetivo proteger os investimentos feitos a nível de cada um dos Estados nessas áreas e, de certo modo, protegê-los da uma potencial espionagem industrial que poderia ser propiciada por eventuais fugas de informação. 2.5.5. Preservação da ordem pública Sempre que a troca de informações seja contrária à ordem pública, o Estado requerido pode escusar-se a fornecer a informação solicitada (55). Um exemplo clássico, dado por TERRA e WATTEL (56), é aquela situação em que um Estado-Membro que tenha celebrado uma convenção para eliminar a dupla tributação com outro Estado-Membro, solicite informação que pretenda depois utilizar para afastar a aplicação da convenção. Nesta situação, não é expectável que o Estado requerido ajude o Estado requerente a violar uma das obrigações que decorrem da convenção celebrada entre os dois. 2.6. Garantias dos sujeitos passivos As únicas garantias que decorrem diretamente da Diretiva são, por um lado, a sujeição das informações comunicadas à obrigação do segredo oficial e da proteção concedida a informações da mesma natureza pela legislação do Estado-Membro que as recebeu e, por outro, a sujeição às disposições nacionais de execução da diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados. Tanto a obrigação de segredo oficial constante do art. 16.º, n.º 1, da Diretiva como a disposição relativa à proteção de dados, isto é o art. 25.º da Diretiva, parecem ser suficientemente claros e incondicionais para ter efeito direto, como salientam TERRA e WATTEL (57). De notar, no entanto, que há uma remissão para o direito nacional, à luz do qual, em último termo, serão dirimidos os conflitos envolvendo os sujeitos passivos potencialmente afetados pela troca de informações. É importante,
(54) O art. 18.º, n.º 2, da Diretiva clarifica que o segredo bancário não pode ser reconduzido à noção de segredo comercial. (55) Cfr. art. 17.º, n.º 3, da Diretiva. (56) Cfr. TERRA, Ben e WATTEL, Peter, European Tax Law, cit., p. 840. (57) Cfr. TERRA, Ben e WATTEL, Peter, European Tax Law, cit., p. 844. 106
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porém, perceber que o nível de proteção legal varia de Estado para Estado, especialmente no que concerne às garantias procedimentais e processuais (58). Destacamos no contexto do sistema fiscal português os seguintes direitos e garantias: a existência de prazos de prescrição (art. 48.º da Lei Geral Tributária – LGT) e caducidade (art. 45.º da LGT) que, como é óbvio, condicionam a possibilidade de lançar mão do procedimento de troca de informações; direito a ser notificado acerca de uma troca de informações em curso, exceto nas situações em que isso comprometa a troca de informações (59); direito de audição (art. 60.º da LGT) e direito ao recurso aos meios contenciosos (art. 97.º e art. 146.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário). Dos direitos referidos assume especial relevância o direito a ser notificado, na medida em que é condição essencial para a efetivação dos outros direitos. Essa circunstância explica o facto de, no nosso país, já no diploma que transpôs a diretiva 77/799/EEC para o nosso sistema legal (Decreto-Lei n.º 127/90, de 17 de abril) ter implicado alguns desvios relativamente ao texto original da diretiva. Com efeito, o art. 6.º, n.º 1 e n.º 3, do Decreto-Lei n.º 127/90, de 17 de abril, determinava que a autoridade competente devia notificar a pessoa a que respeitava a informação fornecida, podendo esse sujeito apresentar razões que impedissem a informação de ser transmitida (a menos que pudesse pôr em causa a investigação em causa). Esta solução é retomada pelo Decreto-Lei n.º 61/2013, de 10 de maio, que transpôs a diretiva que analisamos, no seu art. 14.º, n.º 3 e n.º 5. Deixa, contudo, de ser possível impedir a troca de informação, também quando a prestação de informações é automática ou espontânea e a informação conste da base de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira, para além das situações em que a investigação possa ser posta em causa, impossibilidade que já estava prevista na diretiva anterior. 2.7. Relação com outros instrumentos Tal como se demonstrou no primeiro ponto deste estudo, existem vários instrumentos relativos à cooperação administrativa, designadamente as convenções sobre dupla tributação, os acordos sobre troca de informações em matéria Fiscal e a Convenção Multilateral sobre Assistência Mútua Administra(58) Cfr. SEER, Roman e GABERT, Isabel, “European and International Cooperation: Legal Basis, Practice, Burden of Proof, Legal Protection and Requirements”, in Bulletin for International Taxation, fevereiro de 2011, pp. 88-98. (59) Cfr. arts. 37.º e 50.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária. 107
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tiva em Matéria Fiscal da OCDE. Levanta-se, por conseguinte, um problema de articulação entre estes instrumentos e a diretiva que analisamos. Relativamente às convenções sobre dupla tributação e os acordos sobre troca de informações em matéria fiscal, a diretiva em análise prevalece sobre esses instrumentos nas relações entre os Estados-Membros, independentemente de serem anteriores ou subsequentes àquela. A não ser, tal como prevê a própria Diretiva, que a cooperação prevista nesses instrumentos seja mais ampla, situações em que prevalecerão, dado que a Diretiva fixa apenas um limiar mínimo de cooperação (60). No que concerne à Convenção Multilateral sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Fiscal da OCDE, a solução é a mesma. Isto é, prevalece a Diretiva, a não ser que as modalidades de assistência previstas na Convenção permitam uma cooperação mais ampla, situação em que os Estados-Membros que sejam signatários da Convenção a aplicarão (61), o que aliás é previsto pela própria Convenção, ao dizer que os Estados contratantes que sejam Estados-Membros da União Europeia devem aplicar nas suas relações as regras comuns em vigor na União Europeia.
Conclusão Esta diretiva tem, de facto, um potencial muito elevado no que diz respeito ao desenvolvimento da cooperação administrativa entre os Estados-Membros, devido aos mecanismos inovadores que institui e pelo enquadramento que lhes dá. Destacamos: - A circunstância de se limitar a fixar um mínimo de cooperação, abrindo a possibilidade de aplicação de outros instrumentos mais generosos em termos de cooperação administrativa; - O facto de acolher o princípio da nação mais favorecida em matéria de cooperação; - O permitir a troca automática generalizada de informações com uma amplitude sem precedentes, relativamente aos instrumentos que a antecederam;
(60) Cfr. art. 1.º, n.º 3, da Diretiva. É defensável que este princípio se aplique igualmente à relação com outras diretivas. Nesse sentido, ver TERRA, Ben e WATTEL, Peter, European Tax Law, cit., p. 825. (61) Cfr. art. 27.º, n.º 2, da Convenção Multilateral sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Fiscal da OCDE. 108
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- A admissão de uma mais fácil presença dos funcionários estrangeiros nos serviços e inquéritos administrativos das autoridades fiscais dos Estados-Membros. A execução plena desta diretiva terá seguramente efeitos muito positivos a nível do combate à evasão fiscal, mobilizando, nessa medida, o sistema e os contribuintes para que haja mais ética nas questões fiscais, e, consequentemente, no Direito em geral.
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Contributo para um conceito de democracia plena (*)
Joaquim Freitas da Rocha
No presente escrito, pretende-se evidenciar uma ideia fundamental que, apesar de clara, é frequentemente secundarizada: a democracia não se basta com o simples exercício do direito de voto. Pretende-se demonstrar, de um modo breve, sistematicamente inteligível e juridicamente enquadrado, que a mera possibilidade de deslocação periódica ao local de voto não é condição suficiente para caracterizar um sistema ou subsistema político como democrático, antes se exigindo bastantes outras qualidades jurídicas e vivenciais para que tal predicado seja utilizado. Neste sentido, redefinem-se aqui os contornos do princípio democrático e ensaia-se um conceito de democracia plena, baseado numa ética plural e numa axiologia renovada e abrangente.
1. Colocação dos problemas: ética democrática e défice democrático Importará começar por enfatizar que, do ponto de vista metodológico, o autor realizará aqui algumas cedências aos pressupostos estruturais subjacentes a colocações discursivas anteriores. Desde logo, embora continue a ser patente que o real é racional e que, para ser entendido, carece sempre de realização em sistema e conceito, na presente exposição desconsiderar-se-ão ligeiramente as exigências lógico-estruturais que devem subjazer a qualquer estrutura de pensamento – designadamente no âmbito jurídico – e trar-se-ão à consideração um conjunto de reflexões que, sem serem assistemáticas, poderão não encontrar entre si o elemento de reductio ad unum que permite afirmar o resultado como puramente científico. Em todo o caso, a cedência à dispersão – primeira cedência – tem um propósito meritório: salientar uma ideia, mais do que a enquadrar em sistema ou a categorizar jurídico-normativamente. E a ideia fundamental a expor é esta: a democracia realiza-se em si mediante a efectivação de múltiplas condições e não apenas por via do exercício do direito de voto.
(*) O presente registo discursivo constitui a concretização escrita de uma conferência (“As Autarquias Locais no Novo Constitucionalismo”) que teve lugar em Lubango, Angola, no dia 14 Outubro de 2013, na Universidade Mandume Ya Ndemufayo. Trata-se de um registo marcadamente narrativo e expositivo.
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Trata-se, como se disse, de expor uma ideia e não de originariamente sustentá-la, pois não se perde de vista que as questões inerentes à existência de um défice democrático não são novas, como também nova não é a questão da graduação da democracia (1). Ainda assim, considera-se que o momento que grande parte dos ordenamentos e Estados ocidentais atravessa – e aqui encontra-se a segunda cedência: a cedência ao realismo – reclama uma reflexão a partir da questão que outros autores já colocaram: ist die Finanzkrise auch eine Demokratiekrise (2)? Assumindo-se como um conceito polissémico (fim, valor, forma de Estado, instrumento, qualidade de um sistema, etc.) e com uma forte densidade histórica, a democracia ganha tradicionalmente forma ou revestimento jurídico por via do princípio democrático, formalmente consagrado em grande parte dos textos constitucionais ou para-constitucionais dos Ordenamentos e Estados modernos. Na prática, o que acontece é que esses Ordenamentos e Estados, que se reputam democráticos, apelam nos seus textos constituintes e fundamentais a retóricas que se baseiam grandemente no exercício do direito de voto como condição suprema de efectivação da vontade popular, e, tendo como substrato fórmulas como “a soberania reside no povo”, o sufrágio universal, livre, igual, secreto e periódico é erigido a paradigma democrático, tal como uma Constituição ideal, com a qual são cotejadas as diversas soluções em termos de se afirmar a sua bondade intrínseca. Porém, resulta evidente que um sistema que se alicerce apenas no exercício do direito de voto como modo de realização participativa não é um sistema democrático, antes se configurando como um complexo político e jurídico eticamente deficitário. Acresce que em alguns Ordenamentos nem sequer existe uma ligação directa ou um nexo constitucionalmente rele-
(1) V., a propósito, e por exemplo, BÜHLMANN, Marc et al., “Demokratiebarometer: ein neues Instrument zur Messung von Demokratiequalität”, in Zeitschrift für Vergleichende Politikwissenschaft, volume 6 (1), suplemento, Setembro de 2012, p. 116; MÜLLER, Thomas e PICKEL, Susanne, “Wie lässt sich Demokratie am besten messen? Zur Konzeptqualität von Demokratie-Indizes”, in Politische Vierteljahresschrift, 2007, 3, pp. 511 e ss. Cfr., ainda, STOCKEMER, Daniel e SUNDSTRÖM, Aksel, “Corruption and citizens’ satisfaction with democracy in Europe: what is the empirical linkage?”, in Zeitschrift für Vergleichende Politikwissenschaft, 2013, edição electrónica disponível (acesso restrito) em http://download.springer.com/static/pdf/670/art %253A10.1007%252Fs12286-013-0168-3.pdf?auth66=1384681550_c8b14f6745247bfb7fea31337f96a5a 6&ext=.pdf. (2) Sobre a relação entre democracia e crise económico-financeira, v. SCHÄFER-GÜMBEL, Thorsten e WIESNER, Claudia, “Ist die Finanzkrise auch eine Demokratiekrise? Eine Diskussion aus politischer und politikwissenschaftlicher Sicht”, in Zeitschrift für Vergleichende Politikwissenschaft, volume 6 (2), Dezembro de 2012, pp. 187 e ss. 112
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vante entre, por um lado, a representatividade que resulta do exercício desse direito ao voto e, por outro lado, as decisões fundamentais respeitantes às estruturas da sociedade e a produção político-normativa concreta. Por outras palavras: o défice democrático pode resultar da circunstância de o exercício do direito ao voto não ter por referência os órgãos que, realmente, levam à prática as decisões fundamentais e emanam as normas que afectam as pessoas e as instituições, mas antes outros órgãos com competências intermédias, preparatórias ou meramente consultivas. Nestes casos (pense-se, por exemplo, nas instituições da União europeia (3)), o povo é somente chamado a escolher representantes para órgãos secundários. Em outra perspectiva, não pode deixar de se considerar que, nos dias que correm, a questão da qualidade da democracia convoca uma atenção acrescida e assume uma importância ampliada em face da crise financeira e das derrogações democráticas que a mesma tem transportado, seja ao nível da representatividade (v.g., normas restritivas aprovadas por corpos não democraticamente eleitos), da participação (por exemplo, desconsideração, no decurso do procedimento normador, das entidades representativas de sectores política e socialmente relevantes) e, até, da socialidade (restrições e cortes prestacionais desproporcionais), entre outros. Num quadro de emergência social em que se pretende fazer face às “investidas do mercado”, “responder à crise” ou assegurar a necessidade de “cumprir os compromissos” – e em que nem a própria dignidade da pessoa humana aparece como intocável ou intangível (4) –, a democracia claudica. Por estas e por outras razões, a verdadeira questão nos dias de hoje já não será tanto saber se determinado Ordenamento ou Estado é ou não é democrático – embora isso também seja importante –, mas antes saber em que medida o é, estabelecendo-se parâmetros para aferir da qualidade da democracia e índices com os quais essa mesma qualidade pode ser mensurada. Assumindo estas inquietações, ensaia-se aqui um conceito de democracia plena que, assentando em quatro realizações estruturais (5) (liberdade, parti(3) V., entre muitos outros, MEYER, Jan-Henrik, “Gibt es eine Europäische Öffentlichkeit? Neuere empirische Studien zu Demokratiedefizit, Legitimation und Kontrolle in Europa”, in Berliner Journal für Soziologie, volume 14 (1), Março de 2004, pp. 135 e ss. (4) Cfr. KIRCHHOF, Paul, “Die Zukunft der Verfassung”, in Journal für Rechtspolitik, 2011, 19, p. 62. (5) Em sentido aproximado, mas fazendo assentar a democracia em diversas realizações (Freiheit, Gleichheit und Kontrolle), cfr. BÜHLMANN, Marc et al., “Demokratiebarometer…”, cit., pp. 119 e ss. 113
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cipação, sustentabilidade e responsabilidade), e sem descurar a dimensão jurídico-normativa que as questões encerram, pretende tão-somente constituir um contributo para a reflexão, sem desvirtuar as exigências básicas do pensamento racional, analítico e lógico. Precedentemente à abordagem directa das realizações referidas, convirá enfatizar um pressuposto valorativo essencial: a importância da estadualidade (6). Na verdade, do ponto de vista dos actores, a democracia não se basta com os cidadãos, as empresas ou os corpos civis que os representam, antes reclamando a existência de um Estado atento (à sociedade e à técnica), responsável, portador de uma visão temporalmente transversal e revestido de um substrato ético que o dirige e limita. A ausência deste Estado (deste Estado, com as características apontadas, e não de um Estado monopolista, perturbador, intrusivo e ofensivo, não respeitador do princípio da subsidiariedade onde este deva ser observado (7)) comporta uma concepção democrática minimalista, pouco exigente e, na maior parte das vezes, meramente retórica. É certo que se pode anunciar o “fim do Estado”, não apenas do ponto de vista físico ou geográfico (“da clara delimitação à conexão difusa”), mas igualmente do ponto de vista das estruturas organizatórias (“do Governo para a Governança”) (8), mas, mesmo assim, crê-se que se trata de uma mera tendência ou propensão temporalmente localizada que, a prazo, não desvaloriza o estatuto do actor público estadual, pois a este estão e estarão reservadas importantes atribuições no âmbito, não apenas da definição e determinação das estruturas fundamentais da sociedade (v.g., defesa, tributação e normação), mas igualmente no âmbito da protecção das liberdades, assumindo-se como um “último garante” (9). A este respeito, parece certeira a expressão utilizada por BOEHME-NESSLER acerca do novo estatuto do Estado: Vom Monopolisten zum Primus inter Pares (10).
(6) Cfr. BÜHLMANN Marc et al., “Demokratiebarometer…”, cit., pp. 124 e ss. (7) Cfr. ZIMMERMANN, Host et al., Finanzwissenschaft (Eine Einführung in die Lehre von der öffentlichen Finanzwirtschaft), 11.ª ed., Verlag Franz Vahlen, München, 2012, p. 218. (8) As expressões (“Von der klaren Trennung zur diffusen Verbindung” e “Vom Government zur Governance”) são de BOEHME-NESSLER, Volker, Das Ende des Staates? Zu den Auswirkungen der Digitalisierung auf den Staat, in Zeitschrift für öffentliches Recht, volume 64, 2009, pp. 159, 161. (9) Cfr. OPPITZ, Florian, “Pluralismus, Frieden und Respekt: Die Grundprinzipien der Meinungsfreiheit”, in Zeitschrift für öffentliches Recht, volume 64, 2009, p. 280. (10) Assim, uma vez mais, BOEHME-NESSLER, Das Ende des Staates?..., cit., pp. 187, 193. 114
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2. Os sustentáculos da democracia plena Como se referiu, entende-se aqui que a consideração de um arranjo político-organizatório como verdadeiramente democrático convoca a efectivação de quatro realizações estruturais: liberdade, participação, sustentabilidade e responsabilidade. Apenas se considerará existir uma democracia plena se estes pressupostos fundamentais ou basilares estiverem verificados, igualmente apenas aí se identificando uma verdadeira ética democrática. Procure-se averiguar em que termos. 2.1. Liberdade Em primeiro lugar, a democracia não prescinde da liberdade (insiste-se sempre neste ponto: mesmo existindo eleições periódicas). Trata-se aqui de exigir a consagração expressa, formal, directa das diversas liberdades fundamentais, mas, muito mais do que isso, a sua realização em acto. Do ponto de vista material, importa acentuar que a real liberdade comporta em si não somente os clássicos direitos negativos de protecção contra ingerências externas, mas também todas as múltiplas projecções que o normal desenvolvimento da personalidade reclama. Neste sentido, o sujeito apenas se sentirá verdadeiramente livre quando, além de poder dispor da titularidade e do exercício dos tradicionais direitos de deslocação, reunião, expressão, associação, etc. (11), puder igualmente adquirir como certa a inviolabilidade da correspondência e das comunicações (confiando que não existem aberturas indevidas de caixas de correio electrónicas ou escutas das suas conversas), bem assim como constituir família e escolher a profissão (projectando em si próprio a ideia de que a democracia lhe permite verdadeiramente optar). Do ponto de vista subjectivo, a realização destes direitos ou liberdades projecta-se (vincula) não apenas no Estado e nas restantes entidades públicas, mas também – e, porventura, principalmente – nas entidades privadas, nomeadamente grupos económicos poderosos e agentes de mercado (entidades patronais, sindicatos, bancos, seguradoras, ou outros fornecedores privados de bens e serviços essenciais) que se devem abster de comportamentos intrusivos e restritivos (12). (11) Assim, OPPITZ, Florian, “Pluralismus, Frieden und Respekt... ”, cit., p. 280. (12) V., a respeito, PETERSEN, Niels, “Die Eingriffsdogmatik aus deutscher Perspektive: Der Grundrechtseingriff als Zurechnungskategorie”, in Zeitschrift für öffentliches Recht, volume 67, 2012, pp. 460 e ss. 115
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Naturalmente que esta liberdade democrática tem por assumida a existência de um ambiente comportamental aberto, respeitador e tolerante (13) e de um ambiente de mercado salutarmente competitivo que, ao nível económico, se materializa na efectiva concorrência entre agentes. Além disso, pressupõe igualmente a própria liberdade do Estado, o qual não se deve sentir desproporcionalmente ameaçado ou constrangido por outros poderes, em termos de condicionamento das suas decisões políticas essenciais, ainda que enformado por uma “Neukonzeption der staatlichen Souveränität” e actuando integrado em complexas redes regulatórias compostas por actores públicos e não públicos (14). Se assim for (isto é, se essas ameaças existirem), então o Estado pós-moderno actual dificilmente se pode caracterizar como um Estado livre – e, consequentemente, como um Estado democrático, neste sentido –, visto que ele se encontra fortemente cerceado por forças externas, particularmente nas situações em que se encontra subordinado aos “agentes de mercado” e a programas de assistência que obrigam ao cumprimento de metas e condicionalidades constantes de exigentes programas e memorandos de entendimento impostos por actores supra- ou para-estaduais, como as Troikas. Estas são indubitavelmente verdadeiras comissões de controlo (Kontrollgremium) que, embora nada decidindo directamente, desempenham um importante estatuto controlador e inspector da actuação de Estados soberanos (15). 2.2. Participação A segunda exigência refere-se às prerrogativas participativas. Desde logo, ao nível da participação política, é adquirido que a ética democrática não se esgota com a democracia representativa – ainda que esta se demonstre constitucionalmente enquadrada e válida, por via de um sufrágio universal, livre, igual, secreto e periódico –, antes exigindo outros modos de efectivação de vontade que tornem os cidadãos (no sentido de destinatários das medidas e das normas) corresponsáveis pelas mesmas e lhes transmita um conveniente sentido de pertença à decisão. Neste particular, essa democracia representativa deverá ser adequadamente complementada com mecanismos de (13) Cfr., a propósito, KLEIN, Anna e ZICK, Andreas, “Toleranz versus Vorurteil? Eine empirische Analyse zum Verhältnis von Toleranz und Vorurteil”, in Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie, Volume 65 (2), Junho de 2013, p. 281. (14) Cfr. BOEHME-NESSLER, Volker, Das Ende des Staates?, cit., pp. 161, 169. (15) SCHÄFER-GÜMBEL, Thorsten e WIESNER, Claudia, “Ist die Finanzkrise auch eine Demokratiekrise?...”, pp. 191, 192. 116
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democracia participativa, dos quais os direitos de iniciativa legislativa, as consultas referendárias e os direitos de veto popular constituem os exemplos mais significativos (16). Sem pretender descentrar o alinhamento discursivo, sempre se poderá trazer à consideração as experiências que em matéria de Direito financeiro público (finanças públicas) têm sido ensaiadas, no sentido de conferir um mais elevado grau de incorporação dos destinatários nas tomadas de decisão, como sejam os casos de orçamento participativo (17). Será certo que muitas vezes tal “participação” não passa de um ardil pré-eleitoral que pretende incutir a ilusão de inclusão, mas também não será menos certo que em outros casos pode configurar uma verdadeira densificação do princípio democrático em matéria de Direito orçamental público, por via da qual se submetem a escrutínio alargado e significativo medidas controversas respeitantes à utilização dos dinheiros públicos, contribuindo para um mais adequado grau de justificação e motivação da decisão despesista. Neste contexto, não apenas a participação política (por via do voto, do referendo ou outros modos) é relevante, sendo também valiosa a participação cívica, mediatizada no exercício de direitos e liberdades várias, como o direito de manifestação ou de associação (18).
(16) Cfr., para análise de um caso paradigmático, BIAGGINI, Giovanni, “Die schweizerische direkte Demokratie und das Völkerrecht – Gedanken aus Anlass der Volksabstimmung über die Volksinitiative «Gegen den Bau von Minaretten»”, in Zeitschrift für öffentliches Recht, volume 65, 2010, pp. 327 e ss. (17) O orçamento participativo (OP) consistirá num contributo para a decisão orçamental, em termos de permitir a participação popular numa das fases conducentes à aprovação do orçamento. Logo por aqui se vê que se trata de um contributo relativamente limitado, na medida em que os cidadãos não aprovam o documento orçamental propriamente dito, verificando-se apenas a pronúncia em relação a alguma das suas dimensões. Por tal motivo, não se pode dizer que se esteja em presença de uma forma de democracia directa, mas antes de uma forma de democracia participativa. Importa igualmente mencionar que, do ponto de vista dos assuntos a discutir, não se trata de uma discussão muito alargada, pois há matérias “indisponíveis”, por imposição constitucional e legal (por exemplo, certa disciplina relativa a impostos ou a coimas ou multas), o que leva a que a sua incidência recaia substancialmente sobre despesa pública e projectos de investimento público. Seja como for, não pode deixar de se concordar com a ideia de que se trata de um esquema jurídico meritório de democratizar e socializar as decisões, introduzindo um assinalável e louvável factor de “controlo cívico da actividade pública”. A propósito de experiências de OP´s no ordenamento português, cfr. http://www.op-portugal.org., e, no ordenamento brasileiro — onde a cidade de Porto Alegre é apontada como caso paradigmático — http://www.redeopbrasil.com.br/home/ (sites não oficiais). (18) Para uma análise crítica, ponderando os aspectos positivos e negativos da intervenção e participação cívicas, v. JEONG, Hoi Ok, “From Civic Participation to Political Participation”, in Voluntas, 24, 2013, pp. 1138 e ss. 117
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2.3. Sustentabilidade O terceiro alicerce em que deve assentar um edifício jurídico-político que se queira intitular como verdadeiramente democrático é a sustentabilidade, entendida esta como a característica típica do que é perdurável e resistente à adversidade. De facto, a sustentabilidade, no sentido que aqui se pretende empregar, significa permanência temporal a longo prazo – porventura mesmo, permanência transtemporal ou ilimitada –, o que apenas será concretizável se determinado sistema for capaz de se configurar como autónomo (não necessariamente independente), por resistir às contrariedades com que se depara. Pelo contrário, se tal sistema é datado e não se consegue perspectivar num alcance temporal minimamente longo ou não dispõe de capacidade de exercício para enfrentar os problemas e os obstáculos (ainda que disponha de esquemas eleitorais regulares ou cíclicos), dificilmente pode ser qualificado como sustentável e, concomitantemente, plenamente democrático. Essa sustentabilidade deve projectar-se em três distintas exigências: - possibilidade de assegurar coesão social mínima (sustentabilidade cívica ou social); - aptidão para preservar o habitat em que se insere (sustentabilidade ecológica); - capacidade para suportar as seus próprios custos (sustentabilidade financeira). Procuremos, ainda que brevemente, discernir os contornos destas exigências. i) Sustentabilidade cívica ou social – em primeiro lugar, importa que uma democracia plena se configure como um agregado humano que seja minimamente igualitário e coeso, não encerrando em si desequilíbrios graves e não sendo excludente. Por um lado, requer-se a existência de coesão social, mediante o combate às desigualdades – jurídicas e fácticas, horizontais e verticais – e às discrepâncias, procurando-se construir um agregado social que permita a realização mínima do indivíduo enquanto pessoa. Por outro lado, e em decorrência dessa exigência, torna-se indispensável a existência de uma noção colectiva de inclusão, um autêntico sentimento de pertença do indivíduo ao agregado, sendo de eliminar os mecanismos marcantes de rejeição, por exemplo, em função das condições económicas, da localização geográfica, da nacionalidade ou da ascendência. Nesta medida, uma sociedade na qual as pessoas – mesmo
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podendo votar, insiste-se – se sentem excluídas (consideram-se “outros”) por serem pobres, por não terem acesso a certos bens ou serviços essenciais, por morarem longe de determinados centros decisórios ou por não pertencerem a certo grupo não será considerada uma verdadeira democracia. Importa notar que neste particular se tem principalmente em vista a inclusão económica (no sentido de acesso a bens e serviços básicos) – pois a inclusão cívica está consagrada acima na exigência de participação –, e assim sendo, não será difícil aceitar que uma democracia inclusiva não se pode escorar na exclusão e no desamparo, devendo proporcionar adequadas condições mínimas de existência, por exemplo por meio de um sistema (estadual) de protecção social abrangente, assente designadamente nos princípios da solidariedade e a auto-responsabilização (19), e que permita a todos a afirmação da sua dignidade enquanto pessoa. Por conseguinte, reclamará e prosseguirá sempre um ideal de redistribuição, colmatando e suprindo as falhas do mercado (20). Este ideal redistributivo, como facilmente se poderá pressupor, deverá contemplar os próprios entes públicos (Estados, Regiões, Autarquias, etc.), atendendo aos contributos da teoria do federalismo fiscal (Fiscal federalism, Finanzausgleich), na medida em que por seu intermédio se poderá melhor prosseguir o desiderato da igualdade no domínio da provisão pública de bens e o equilíbrio entre as próprias estruturas dos poderes públicos (21). Igualmente importa evidenciar a exigência de sustentabilidade (equidade) entre gerações, rejeitando-se a oneração de gerações com as dívidas do passado, ainda por cima dívidas por si não autorizadas e que nada recebem de útil por elas (22). Por fim, interessará ainda reter que todas estas considerações deverão ser entendidas em termos razoáveis e prudentes, pois a sustentabilidade social continuará a existir quando os desequilíbrios e as desigualdades existentes – que sempre existirão – não forem suficientemente graves para colocar em causa o fundamento aglutinador do complexo social.
(19) Neste sentido, BECKER, Ulrich, “Sozialrecht und Sozialrechtswissenschaft”, in Zeitschrift für öffentliches Recht, volume 65, 2010, pp. 615 e ss. (20) V., a propósito, HULME, David et al., “Social Protection, Marginality, and Extreme Poverty: Just Give Money to the Poor?”, in Marginality: Addressing the Nexus of Poverty, Exclusion and Ecology, Von Braun and F.W. Gatzweiler (eds.), Springer, p.327. (21) V., a propósito do tema, ZIMMERMANN, Host et al., Finanzwissenschaft, cit., pp. 205 e ss. Cfr., também o nosso “Da perequação financeira em referência aos entes locais. Contornos de um enquadramento jurídico- normativo”, in 30 anos de Poder Local na Constituição da República Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 2007. (22) Cfr. KIRCHHOF, Paul, “Die Zukunft der Verfassung”, cit., p. 55. 119
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ii) Sustentabilidade ecológica – em segundo lugar, no contexto da sustentabilidade, uma democracia completa, no sentido amplo da expressão, não prescinde de um modelo de desenvolvimento assente num crescimento ecologicamente harmonioso. Traz-se aqui à consideração, uma vez mais, o princípio da equidade intergeracional, o qual, no cosmos temático ambiental, convoca o imperativo pós-moderno (23) de deixar às gerações futuras um arsenal de recursos naturais no mínimo equivalente ao recebido da geração anterior, por forma a conseguir a manutenção de condições de existência dignas. Aqui, tanto quanto os privados, o Estado e outros actores públicos devem encontrar-se especialmente vinculados a concretos deveres decorrentes de uma bem (auto- e hetero-) definida política ambiental (Umweltpolitik), a qual deverá ter como fim último a protecção de bens jurídicos fundamentais, nomeadamente a saúde e bem-estar dos indivíduos e a protecção da natureza. Tal fim deverá ser prosseguido através de instrumentos vários, sejam de natureza política (por exemplo, através da vinculação a instrumentos de cooperação internacional), normativa (por meio da disciplina das emissões poluentes e das utilizações da propriedade), ou financeira (v.g., imposição ecológica, impostos ambientais, taxas ambientais) (24). Neste sentido, a democracia plena será aquela que se demonstre capaz de ter consciência das limitações de recursos e da necessidade da sua utilização disciplinada e regrada, uma vez mais se evidenciando que a democracia do voto, só por si, não basta, pois de pouco serve a possibilidade de escolha de representantes se estes não têm o cuidado de preparar o caminho do futuro, sem impor ónus pesadíssimos de restrição de recursos. iii) Sustentabilidade financeira – finalmente, a sustentabilidade deve ser encarada de um ponto de vista financeiro, assumindo que uma verdadeira sociedade democrática tem custos e que os mesmos não são, nem podem ser, negligenciáveis. Na realidade, deve ter-se presente que os desenhos de organização política minimamente realizados, além de deverem dispor de um conveniente e oneroso aparato organizatório (v.g., parlamentos, gabinetes admi(23) Não deixa de ser interessante reparar que o aportamento da retórica ambientalista no quadro mais amplo da pós-modernidade jurídica, mais do que se justificar com a devastação ambiental que a era industrial e pós-industrial implicou – com toda a destruição de recursos inerente – parece ganhar vigor ideográfico ou simbólico acrescido com a chegada do Homem à lua e com a suposição de que este finalmente encontra o seu “lugar no mundo” e toma consciência de que não está só no universo. V., a propósito, o excelente, e já clássico, WELSCH, Wolfgang (org.), Wege aus der Moderne. Schlüsseltexte der Postmoderne – Diskussion, Akademie Verlag, Berlin, 1994. (24) V., uma vez mais, ZIMMERMANN, Host et al., Finanzwissenschaft, cit., pp. 504, 505. 120
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nistrativos, exército, polícias, tribunais, etc.), devem ainda estar munidos de adequados esquemas operativos que permitam que tudo funcione de um modo ordenado e regular (actos eleitorais, procedimentos administrativos, processos jurisdicionais, etc.), ao que acresce ainda a dimensão social do Estado, incontornável numa sociedade inclusiva (direitos a prestações, como o direito a rendimento mínimo, salário mínimo, pensões, ajudas na saúde e na educação, etc.). Ora, não será difícil perspectivar que, para fazer face a este arsenal de despesas, torna-se necessária a obtenção de meios de financiamento da mais diversa natureza, sendo que a captação de receitas tributárias e o recurso ao crédito serão os meios mais comummente utilizados, resultando igualmente patente que os actores e decisores políticos se vêem obrigados a efectuar ponderações e balanceamentos entre receitas e despesas, em termos de considerar a sua correcta afectação. Ora, a democracia apenas será plena quando o respectivo aparato for auto-suficiente e conseguir um equilíbrio financeiro interno que permita afirmar que existem meios suficientes para enfrentar as adversidades, sem dependência de endividamento excessivo. Pelo contrário, um sistema que apresente uma possibilidade efectiva de participação política através do voto mas que, do ponto de vista financeiro, não se consegue manter a si próprio, não parece que se possa enquadrar no conceito de democracia plena que temos vindo a expor e defender (25). 2.4. Responsabilidade A plenitude democrática é conseguida, em quarto lugar, quando, ao cumprimento das exigências de liberdade, participação efectiva (representativa e referendária) e de sustentabilidade (cívica, ecológica e financeira) se adiciona o cumprimento das exigências responsabilizatórias. Significa isto que um ordenamento democraticamente equilibrado deve exigir que os actores públicos e políticos com competências decisórias estejam adstritos a deveres genéricos e específicos de prestação de contas, sendo indispensável que os mesmos se configurem como deveres efectivos – e não meramente possíveis ou eventuais – e tenham por referência o desempenho (performance (26)) do actor em questão em todas as suas dimensões relevantes (dimensão política, económica e jurí(25) V., a respeito, o nosso “Sustentabilidade e finanças públicas responsáveis. Urgência de um Direito Financeiro equigeracional”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, volume I, Stvdia Ivridica – 102, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 619 e ss. (26) V. KONG, Dongsung, “Performance-Based Budgeting: The U.S. Experience”, in Public Organization Review, 2005, 5, p. 92. 121
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dica) (27). Procura-se, de um modo geral, prevenir e sancionar a utilização da coisa pública para prossecução de fins privados, por intermédio de canais não públicos de influência (28) e, neste quadro, a condição responsabilizante – dando por adquirido (o que não é certo) que não se fundamenta por si mesma – encontra a sua ratio na ideia de transparência, designadamente no objectivo do combate à corrupção, vista como um mecanismo que deteriora e deforma a vontade verdadeiramente democrática. Essa accountability há-de pressupor um conjunto de esquemas organizatórios e competenciais assentes na limitação dos poderes instituídos e na sua interdependência, em termos de se poder afirmar o seu controlo recíproco (checks and balances). Do mesmo modo, há-de ser efectivada perante entidades e órgãos de natureza diversa, revelando-se fundamental que existam esquemas (procedimentos ou processos) credíveis de prestação de contas perante outros actores, em primeiro lugar, políticos (por exemplo, por via dos Parlamentos, que devem acompanhar realmente, e não apenas formalmente, as actuações públicas); em segundo lugar, administrativos (com inspecções, auditorias, poderes de tutela e de superintendência convincentes e eficazes, com imposição de verdadeiras sanções, custosas e penalizadoras); e em terceiro lugar, jurisdicionais (reservando-se um ineliminável papel de sindicância para os Tribunais). Neste último contexto, a democracia reclama sistemas adequados de aferição da validade das normas e dos actos, seja ao nível da constitucionalidade (29), seja ao nível da legalidade (englobando, num caso e no outro, as prerrogativas de controlo de economia, eficiência e eficácia), assim como modos concretos de efectivar o respeito das decisões.
(27) No texto, tem-se em vista principalmente a responsabilidade individual ou pessoal dos actores que devem ser chamados a prestar contas. Porém, além dessa, cumpre igualmente considerar uma responsabilidade colectiva como significativa do juízo de valoração de actos que tenha por referência e destinatário uma pluralidade de agentes, uma colectividade ou uma comunidade, com os seus membros indistintamente vistos. Cfr. o nosso “Breves reflexões sobre responsabilidade colectiva e finanças públicas”, in Anuário Publicista da Escola de Direito da Universidade do Minho, Tomo I, Escola de Direito da Universidade do Minho – Departamento de Ciências Jurídicas Públicas, Braga, 2012, pp. 126 e ss., e MILLER, Seumas, The Moral Foundations of Social Institutions. A Philosophical Study, Cambridge University Press, Cambridge, 2010, pp. 120 e ss. (28) Assim, STOCKEMER, Daniel e SUNDSTRÖM, Aksel, “Corruption and citizens’ satisfaction…”, cit. (29) O referido no texto, valorizando o estatuto da Constituição e dos actores de controlo da constitucionalidade, não negligencia a circunstância de que, como refere KIRCHHOF (“Die Zukunft der Verfassung”, cit., p. 55), muitos dos valores da Constituição já não se revelam tão claramente como antes (“nicht mehr selbstverständlich erscheinen”). 122
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É igualmente de salientar o relevantíssimo estatuto que os tribunais constitucionais e tribunais de contas – enquanto “controladores externos” – desempenham nos quadros de um modelo que se queira reputar de verdadeiramente democrático, na medida em que permitirão que os cidadãos em geral possam acompanhar o desempenho dos actores públicos e daí retirar as devidas ilações, averiguando se o Interesse público está ou não a ser adequadamente prosseguido e exercendo uma real cidadania por via do controlo de actuações. De resto, não pode deixar de se concordar com a ideia de que o controlo externo assegura a manutenção das estruturas fundamentais do Estado democrático (30), tornando-se particularmente fundamental salientar a necessidade de “perseguir”, mais do que as pessoas ou entidades, os dinheiros públicos onde quer que eles se encontrem.
3. Conclusões Pois bem. A proposta reflexiva fica por aqui. Reconhece-se que as questões não foram tratadas com a profundidade, nomeadamente científica, que deveriam. Em todo o caso, crê-se que a ideia inicialmente colocada à consideração — um Ordenamento que se alicerce apenas no exercício do direito de voto como modo de realização não é um Ordenamento democrático – ficou demonstrada, convocando consigo todo um conjunto de conclusões conexas que se poderão sintetizar do modo que segue: i) em alguns casos, não existe sequer um nexo relevante entre a representatividade que resulta do exercício do direito de voto e as decisões fundamentais que são tomadas; ii) a questão da qualidade da democracia assume uma importância acrescida em face da crise financeira e das derrogações democráticas que a mesma tem transportado; iii) a verdadeira questão já não será tanto saber se determinado Ordenamento é ou não é democrático, mas antes saber em que medida o é; iv) devem ser estabelecidos parâmetros para aferir da qualidade da democracia e índices com os quais essa mesma qualidade pode ser mensurada;
(30) Neste sentido, ISENSEE, Josef, “Finanzkontrolle im Bundesstaat. Zur Vollständigkeit und Einheitlichkeit der Rechnungsprüfung nach österreichischem und deutschem Recht”, in Zeitschrift für öffentliches Recht, volume 63, 2008, pp. 30, 31. 123
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v) uma democracia verdadeira (plena) deve assentar em quatro realizações estruturais: liberdade, participação, sustentabilidade (cívica, ecológica e financeira) e responsabilidade; e vi) a democracia não se basta com os cidadãos ou com os corpos civis que os representam, antes reclamando a existência de um Estado atento, eticamente responsável e portador de uma visão temporalmente transversal.
(**) Este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico.
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Uma análise (também crítica) do “novo” princípio da boa administração no projecto de revisão do Código do Procedimento Administrativo
Pedro Cruz e Silva
1. No âmbito do projecto de revisão do nosso Código do Procedimento Administrativo (CPA), variadas foram as iniciativas científicas (seminários, conferências, colóquios, publicações) que se dedicaram à análise crítica do conteúdo do projectado diploma legal, centrando as suas atenções, uma boa parte delas, nas novidades que o referido projecto de revisão apresenta em relação ao conteúdo do ainda vigente CPA. Uma dessas novidades é, precisamente, a introdução de um princípio designado de “boa administração” (art. 5.º do projecto), explanado nos seguintes termos: Artigo 5.º Princípio da boa administração 1 – A Administração Pública deve pautar-se por critérios de eficiência, de economicidade e de celeridade. 2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, a Administração Pública deve ser organizada de modo a aproximar os serviços das populações e por forma não burocratizada. A doutrina mais destacada aplaudiu a introdução deste novo princípio. Todavia, não parece haver – tanto quanto nos é possível conhecer – uma discussão aprofundada, nem sobre a justificação deste princípio, nem sobre a sua concreta utilidade prática na vida da Administração Pública e dos cidadãos. Será que a “boa administração” é um valor jurídico manifesto por si mesmo, que, por isso, dispensa críticas ou outros comentários? Será que, como sustentam alguns autores alemães, a boa administração (no que ela representa quanto à prossecução do interesse público) “é um princípio estrutural, não escrito, de toda a forma de manifestação da Administração” (1)? Neste sentido, será possível que a opção dos autores do projecto de revisão do CPA se tenha limitado a
(1) WOLFF, Hans J., BACHOF, Otto, STOUBER, Rolf, Direito Administrativo, vol. I, Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, p. 424.
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reduzir a texto de lei um valor axiológico seguro e basilar – e, assim, indiscutível e indisputável – da própria existência da actividade administrativa? Parece-nos plausível que a resposta a todas as questões levantadas acabe por ser afirmativa. De todo o modo, abalançamo-nos, a propósito da ocasião que nos é oferecida pela realização desta obra colectiva que é o Anuário Publicista da Escola de Direito da Universidade do Minho, a deixar algumas sucintas reflexões, também críticas, sobre o enquadramento do princípio, o seu desenho dogmático e a sua inserção na sistemática do futuro texto legislativo. 2. Para isso, e antes de mais, importa procurar saber qual foi a intenção do projecto de revisão, no momento em que se decidiu pela introdução deste princípio da boa administração. Do teor da exposição de motivos, não é possível retirar conclusões auspiciosas; sobre a parte dedicada aos princípios gerais da actividade administrativa, refere a dita exposição de motivos, tão-somente, que “começou-se por incluir no Código o princípio da boa administração, indo de encontro ao que era sugerido pelo Direito Comparado, com essa ou outra designação, e a sugestões da doutrina. Integraram-se nesses princípios os princípios constitucionais da eficiência, da aproximação dos serviços das populações e da desburocratização”. É manifestamente pouco. O coordenador da Comissão (2) de revisão do CPA, FAUSTO DE QUADROS, acrescentou um pouco mais e, sobre o princípio da boa administração, sustentou que “consta hoje de muitos códigos homólogos e já fazia falta no nosso CPA. Ele diz muito em poucas palavras, mas diz o que é evidente e devia ser redundante num Estado de Direito e em qualquer democracia estabilizada: ou seja, que a Administração Pública deve ser eficiente na prossecução do interesse público, deve reger-se por critérios de economicidade e deve agir com rapidez. (…)” (3). Corroborando a perspectiva de self-evidence da introdução do princípio da boa administração, VASCO PEREIRA
DA
SILVA, por um lado, faz
notar que “o princípio da boa administração era inevitável, dado que pertence à
(2) A Comissão, empossada pela Ministra da Justiça, em 17 de Julho de 2012, tendo como objecto de trabalho não só a revisão do Código do Procedimento Administrativo, mas, também, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, foi composta por SÉRVULO CORREIA, RUI MACHETE, VIEIRA DE ANDRADE, GLÓRIA GARCIA, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, POLÍBIO HENRIQUES, TERESA NAIA e JOSÉ MIGUEL SARDINHA, para além do referido coordenador FAUSTO DE QUADROS. (3) FAUSTO DE QUADROS, “As principais inovações do projecto do CPA”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 100, Julho/Agosto 2013, p. 130. 126
Tomo II – Ano de 2013 – Ética e Direito
Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (…)” (4); por outro lado, mas inserido na mesma dinâmica, PEDRO COSTA GONÇALVES sublinha que, como nota de apreciação positiva, merece “um destaque especial, por corresponderem a soluções normativas correctas e afeiçoadas ao sentido do actual direito administrativo (…) a consagração de novos princípios gerais da actividade administrativa, como: i) o princípio da «boa administração» (ainda que formulado para captar sobretudo uma dimensão de eficiência e economicidade, assumindo-se mais como um princípio do «bom andamento ou funcionamento da Administração») (…)” (5). 3. A escassez de debate e de dissidências críticas sobre a introdução do princípio da boa administração, designadamente sobre o seu sentido e o seu recorte axiológico, parece reforçar a ideia de que se tratou de um desenlace natural, de um momento de afirmar o óbvio ou, pelo menos, o indiscutível. À míngua de uma argumentação concludente para justificar a oportunidade ou a necessidade deste princípio, que parece impor-se pela força de si mesmo ao novo texto legal, como uma inevitabilidade, ultrapasse-se esta barreira e analise-se os seus termos na exacta proporção em que eles são servidos pelo projecto de revisão. Assim, haverá boa administração quando esta for eficiente, económica e célere (n.º 1 do art. 5.º) e, ao mesmo tempo, quando a própria Administração Pública for organizada de modo a aproximar os seus serviços das populações e por forma não burocratizada (n.º 2 do art. 5.º). No auxílio à interpretação destes valores, FAUSTO DE QUADROS esclarece que “pelo lado da eficiência, ficam proibidas na actividade administrativa a culpa grave, o dolo, o erro indesculpável, a corrupção, assim como se impõe que na actividade administrativa os meios se adeqúem aos fins. Pelo lado da economicidade, está-se a dizer que a Administração tem de ser poupada ao gastar dinheiro dos contribuintes. Por celeridade, quer-se significar que o interesse público exige que a sua prossecução seja o mais rápida possível. O País não pode parar, ou andar devagar, porque a Administração Pública não decide ou decide lentamente” (6).
(4) PEREIRA DA SILVA, Vasco, “Primeiro comentário acerca do projecto de revisão do CPA (a recordar um texto de Steinbeck)”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 101, Setembro/ /Outubro 2013, p. 85. (5) GONÇALVES, Pedro Costa, “Âmbito de aplicação do Código do Procedimento Administrativo (na versão do anteprojecto de revisão)”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 100, Julho/Agosto 2013, p. 9. (6) FAUSTO DE QUADROS, “As principais inovações do projecto do CPA”, cit., p. 131. 127
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4. É forçoso reconhecer: a boa administração há-de ser mais, bastante mais, do que o conjunto de valores que o projecto de revisão do CPA lhe reservou. Parece-nos uma densificação pobre, mesmo se a perspectiva fosse a de apenas fazer sobressair, em atenção às circunstâncias extraordinárias em que o País vive, a dimensão de eficiência e de particular cautela nos gastos públicos que à Administração se impõe. Acresce que a questão da “boa administração” nem sequer é um problema recente: já em 1966, MARCELLO CAETANO sublinhava que “existe ainda uma vasta obra a realizar no sentido de simplificar trâmites, abreviar procedimentos e reduzir custos, aumentando a produtividade do pessoal, o rendimento dos serviços e a comodidade do público. (…) O que constitui problema é assegurar à Administração o conhecimento permanente das autênticas necessidades e dos legítimos interesses dos administrados e garantir o esclarecimento do público acerca dos propósitos e razões de decidir da Administração, de modo a diminuir o mais possível tensões e atritos entre administradores e administrados” (7). O que deveria ser, pois então, “boa administração”? A expressão, muito embora seja captada (menos profusamente do que se poderia supor) em artigos doutrinais (8) e mesmo em decisões das mais altas instâncias judiciais, não é, todavia, nem de alcance fácil, nem de sentido unívoco. Desde logo, a “boa administração” não é sequer vista unanimemente como um princípio jurídico, mas antes como um dever jurídico, dever este que se constitui como um dos corolários, isso sim, do princípio da prossecução do interesse público que a toda a Administração cabe prosseguir. De facto, para FREITAS DO AMARAL, “o princípio da prossecução do interesse público, constitucionalmente consagrado, implica, além do mais, a existência de um dever de boa administração, quer dizer, o dever de a Administração prosseguir o bem comum da forma mais eficiente possível” (9). Mais: segundo ainda o mesmo Autor, “a ideia é, pois, a de que a actividade administrativa deve traduzir-se em actos cujo conteúdo seja também (7) CAETANO, Marcello, “Artigos Doutrinais n’O Direito – A construção de uma doutrina portuguesa de direito público”, in Revista O Direito, número especial, 2012, pp. 297 e 299; artigo publicado originalmente sob o título “Problemas actuais da Administração Pública portuguesa”, in O Direito, ano 98 (1966). (8) Por recurso a um catálogo meramente exemplificativo, destacamos LOUREIRO, João Carlos, O Procedimento Administrativo Entre a Eficiência e a Garantia dos Particulares, Coimbra, 1995; CABRAL DE MONCADA, Luís, “Direito Público e Eficácia”, in Estudos de Direito Público, Coimbra, 2001; AROSO DE ALMEIDA, Mário, Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares, Coimbra, 2012; SOARES, Rogério Ehrahrdt, Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, 1955; e OTERO, Paulo, O poder de substituição em Direito Administrativo, vol. II, Lisboa, 1995, pp. 638 e ss. (9) FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2.ª ed., Coimbra, 2012, p. 46. 128
Tomo II – Ano de 2013 – Ética e Direito
inspirado pela necessidade de satisfazer de forma mais eficiente – isto é, mais racional, expedita e económica – o interesse público constitucional e legalmente fixado” (10). Mas a verdade é que, da prossecução do princípio do interesse público, nem todos retiram um dever jurídico de boa administração a cargo das entidades públicas administrativas. Ou dito de melhor forma: o conceito ou ideia de “boa administração” nem sempre é autonomamente determinável a partir do princípio da prossecução do interesse público. De facto, e por recurso à doutrina comparada, verificamos que, na Alemanha, alguns destacados autores constatam que há, por um lado, uma vertente negativa do princípio da prossecução do interesse público, que impõe à Administração deveres como o respeito pelos princípios jurídicos gerais e especiais (como o princípio da igualdade, como a proibição de violação dos costumes ou como a proibição da parcialidade e do arbítrio), pelo princípio de conduzir o procedimento administrativo de forma simples, adequada e célere, pelo princípio da ponderação dos interesses materiais – públicos e individuais – em presença, pela obrigação de protecção da expectativa imposta pela segurança jurídica, pelo princípio da colaboração leal e de assistência mútua entre todos os titulares de um órgão administrativo, pelo princípio da proporcionalidade (tanto na vertente, por nós amplamente conhecida, da proibição do excesso, como na vertente da proibição do “ficar aquém” – UntermaBverbot –, que consiste numa manifestação de um dever de protecção do Estado nos casos em que as circunstâncias normativas e materiais o imponham) ou pela obrigação de respeito pelo orçamento ou pelos princípios orçamentais, da rentabilidade e da economia (11). Por outro lado, os mesmos Autores constatam a existência de uma vertente positiva do princípio da prossecução do interesse público, que tanto impõe à Administração limites quanto à sua capacidade de ingerência, por exemplo no processo associativo particular, como lhe estabelece obrigações definidas quanto a actuações na assistência ao risco (autonomizando, até, um designado direito administrativo do risco) (12). Em Espanha, uma parte relevante da doutrina realizou, a partir do texto constitucional e das soluções legais estabilizadas, um catálogo de valores relativos à organização e funcionamento das administrações públicas que se extraem, também, do princípio da prossecução do interesse público, e que podem ser sintetizados da seguinte forma: eficácia (sobre esta pode dizer-se, com PAREJA ALFONSO, que “não basta já ao Estado a legitimação que lhe presta a (10) FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, cit., p. 46. (11) WOLFF, Hans J., BACHOF, Otto, STOUBER, Rolf, Direito Administrativo, cit., pp. 438 a 440. (12) WOLFF, Hans J., BACHOF, Otto, STOUBER, Rolf, Direito Administrativo, cit., pp. 442 a 443. 129
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origem democrática do seu poder, nem a derivada da efectividade (em termos tradicionais) do seu mando sobre os cidadãos: torna-se-lhe necessário justificar-se permanentemente na adequada utilização dos meios postos à sua disposição e na obtenção de resultados reais, ou seja, necessita ele da legitimação que provém da eficácia na resolução dos problemas sociais” (13)); descentralização (como transferência do poder de uma estrutura centralizada a outros centros situados na periferia que têm, desde o momento da transferência, poder de decisão sobre os assuntos e competências objecto das mesmas (14)); simplicidade e proximidade aos cidadãos; programação, desenvolvimento de objectivos e controlo de gestão dos resultados; objectividade e transparência da actuação administrativa; racionalização e agilização dos procedimentos administrativos e de actividades materiais de gestão; cooperação e coordenação entre as administrações públicas; e, por último (15), serviço efectivo aos cidadãos. Em atenção aos ensinamentos assim vertidos, somos da opinião de que “boa administração” será, pois, um repositório de valores ou ideais axiologicamente estruturantes da organização e funcionamento das administrações públicas, nunca encerrado ou concluso (porque materialmente flutuante ou variável em função das opções políticas ou legislativas, sem prejuízo de um continuum permanente de valores imanentes à própria função administrativa), que, por um lado, contribui decisivamente para distinguir a actividade administrativa da actividade privada e que, por outro lado, não prescinde de recolher no seu seio, ao mesmo tempo, valores jurídicos justiciabilizáveis e valores jurídicos não justiciabilizáveis e, até, valores não jurídicos. Entendida assim a ideia de “boa administração”, como acervo de valores (que recebem, alguns deles, dignidade constitucional, ao lado de outros que merecem, “apenas”, valor legal) que constitui, ele mesmo, o repositório último da função administrativa, melhor se constata que a densificação prevista no art. 5.º do projecto de revisão do CPA, desdobrando a “boa administração” nas ideias de “eficiência”, “economicidade”, “eficácia” (seu n.º 1) e “proximidade aos cidadãos” e “desburocratização” (seu n.º 2), é
(13) PAREJA ALFONSO, “La eficácia como princípio jurídico de la actuación de la Administración Pública”, in Documentación Administrativa, n.os 218-219, Abril/Setembro de 1989, p. 16. (14) No mesmo sentido, GARRIDO FALLA, Fernando, PALOMAR OLMEDA, Alberto, LOSADA GONZALEZ, Herminio, Tratado de Derecho Administrativo, Volume I, Parte General, 14.ª ed., Tecnos, 2005. (15) A lista não se pretende, naturalmente, exaustiva: podem ser identificados outros valores como a desconcentração ou a responsabilidade por gestão pública. Pretendemos fazer sobressair apenas aqueles que mais directamente se relacionam com a temática da boa administração, centrada nas soluções do projecto de revisão do CPA – no fundo, com o objecto deste trabalho. 130
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uma concretização redutora, que fica muito aquém da sua auspiciosa e prometedora epígrafe – “princípio da boa administração”. E esta é, quanto a nós, uma fraqueza muito relevante da proposta de revisão do nosso CPA, pelo menos no que toca ao seu momento vestibular. Muito ajustada nos parece, assim, a crítica de VASCO PEREIRA DA SILVA, segundo o qual “(…) sou também obrigado a verificar que alguns destes princípios, sobretudo os novos, são apresentados segundo uma fórmula definitória fechada, deixando de fora tudo o que não cabe nessa formulação (…). Assim, quando se faz reconduzir o princípio da boa administração às dimensões da economia, da eficácia e da eficiência, tal acaba por ser uma versão pobre daquilo que, hoje em dia, no direito administrativo europeu, é o princípio da boa administração. Falta a «cláusula aberta» em matéria de direitos procedimentais (concretizadora de um due process of law), assim como a referência às ideias de confiança, transparência, de prevenção e precaução – esta última é considerada por PAUL CRAIG, no European Administrative Law, como um dos novos princípios gerais do direito administrativo que resulta do princípio da boa administração. Tudo isso não «cabe» na definição dada pelo legislador, não obstante tenha sido correcta a inclusão do princípio da boa administração” (16). 5. Acresce que os supra citados valores da “eficiência”, “economicidade”, “eficácia”, “proximidade aos cidadãos” e “desburocratização” não são uma absoluta novidade. O art. 10.º do ainda vigente CPA já prevê, sob a epígrafe de “princípio da desburocratização e da eficiência”, que a “a Administração Pública deve ser estruturada de modo a aproximar os serviços das populações e de forma não burocratizada, a fim de assegurar a celeridade, a economia e a eficiência das suas decisões”. Como se vê, a primeira parte do artigo corresponde, integralmente, ao que se mostra previsto no n.º 2 do art.5.º do projecto de revisão, ao passo que os valores da celeridade, economia e eficiência, que constam da segunda parte do referido art. 10.º passam, agora, a estar previstos no n.º 1 do art. 5.º. Substituiu-se “economia” por “economicidade” e “eficiência” por “eficácia”. Não cremos que se tenha tratado, nesta perspectiva, de uma modificação substancial. Pensamos até que os termos escolhidos pelo projecto de revisão – “a Administração Pública deve pautar-se…” – não são os mais adequados, sendo, quanto a nós, claramente preferível a escolha do legislador do CPA quanto ao seu já referido art. 10.º: “a Administração Pública deve assegurar…” (16) PEREIRA DA SILVA, Vasco, “Primeiro comentário acerca do projecto de revisão do CPA…”, cit., p. 86. 131
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(muito embora, há que reconhecê-lo, esta seja uma questão talvez pouco relevante na dinâmica do problema). É dizer: o princípio da boa administração, tal como se encontra previsto no projecto de revisão do CPA, (i) mostra-se densificado através de um conteúdo pobre e reduzido em face das imensas potencialidades que o princípio, por si só, poderia mobilizar, como, para além disso, (ii) se mostra recortado com um conteúdo axiológico não original, totalmente transplantado do teor do art. 10.º do ainda actual CPA, sem que se mostre cabalmente percebido o que terá levado (iii) à escolha da eliminação do princípio da desburocratização e da eficiência (que não cabe nas escolhas principiológicas do projecto de revisão), este sim muito mais adequado a acolher no seu seio os valores da celeridade, economia e eficiência que à Administração Pública se impõem. 6. Por outro lado, jogam claramente a favor da introdução do princípio da boa administração dois vectores: em primeiro lugar (e ainda que sob a epígrafe errada…), a opção de manter no nosso Código do Procedimento Administrativo as ideias irrecusáveis da celeridade, da economia, da eficiência, da desburocratização e da aproximação dos serviços às populações que nenhum diploma base de procedimento administrativo pode, actualmente, postergar. Neste sentido, cumpre-se um padrão constitucional impreterível – arts. 266.º e 267.º da Constituição da República Portuguesa. Pode também haver a tentação de ver no corpo deste art. 5.º do projecto de revisão do CPA a adopção, no plano interno, do disposto no art. 41.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, cuja epígrafe é, precisamente, “direito a uma boa administração” (17). Ora, parece-nos relevante excluir esta apreciação. Desde logo porque o conteúdo deste art. 41.º da Carta é um produto da actividade jurisprudencial do Tribunal (17) O art. 41.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia estabelece que: Direito a uma boa administração 1 – Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições, órgãos e organismos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável. 2 – Este direito compreende, nomeadamente: a) O direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afecte desfavoravelmente; b) O direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito pelos legítimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial; c) A obrigação, por parte da administração, de fundamentar as suas decisões. 3 – Todas as pessoas têm direito à reparação, por parte da União, dos danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das respectivas funções, de acordo com os princípios gerais comuns às legislações dos Estados-membros. 4 – Todas as pessoas têm a possibilidade de se dirigir às instituições da União numa das línguas dos Tratados, devendo obter uma resposta na mesma língua. 132
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de Justiça das Comunidades Europeias, o qual construiu, ou melhor dito, foi construindo um conceito de “boa administração” a partir das suas decisões quanto a um direito dos cidadãos comunitários à tomada de decisões administrativas justas, imparciais, equitativas e em prazo razoável. Ora, o nosso Código do Procedimento Administrativo, já desde a sua redacção original (portanto, anterior à proclamação da Carta, em 7 de Dezembro de 2000), contempla os valores da igualdade e da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, da boa-fé, da colaboração entre Administração e cidadãos, da participação, da proibição da decisão surpresa e dos já supra mencionados valores da desburocratização e da eficiência. Por isso, e quanto ao direito positivado português, a Carta não traz – pelo menos no plano dos princípios – qualquer novidade que precisasse, neste momento, de ser transposta para o “novo” Código do Procedimento Administrativo. Acresce que, com excepção de uma parte da epígrafe – a relacionada, precisamente, com a “boa administração” – não há qualquer semelhança terminológica essencial entre o conteúdo do art. 41.º da Carta e o art. 5.º do projecto de revisão do CPA, pelo que sempre nos pareceria forçada a tentativa de retirar daquele art. 41.º qualquer contributo decisivo para a redacção escolhida pelo projecto de revisão do CPA para o seu art. 5.º. Em segundo lugar, joga também a favor do princípio da boa administração, com o recorte axiológico já abundantemente referido, a “ousadia” do projecto em fazer incluir (ou em fazer manter…), no plano dos princípios, valores jurídicos seguros, mesmo que não justiciabilizáveis. É verdade que os conceitos de eficiência, economicidade e celeridade arrastam a actuação administrativa para o campo do mérito, distanciando-a, potencialmente, do campo da legalidade e, com isso, criam-se espaços de actuação administrativa dificilmente (ou mais dificilmente) sindicáveis pelos tribunais. Conforme também refere FREITAS DO
AMARAL, “o dever de boa administração é um dever jurídico, mas é um
dever jurídico que não integra o espaço da justiciabilidade, em virtude de não comportar uma protecção jurisdicional. Não é possível ir a tribunal obter a declaração de que determinada solução não é a mais eficiente do ponto de vista técnico, administrativo ou financeiro, devendo, portanto, ser anulada: os tribunais só podem pronunciar-se sobre a legalidade das decisões administrativas e não sobre o mérito dessas decisões” (18). Muito embora se possa – ou se deva – reconhecer que haverá circunstâncias que habilitam os tribunais à sindicância das soluções de mérito da Administração Pública (matéria que, naturalmente, não desenvolvemos, porque escapa, de todo em todo, ao objecto deste trabalho), (18) FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, cit., p. 47. 133
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é de reter o essencial da lição: podem ser criados deveres à Administração Pública que, pela natureza elástica que assumem, se consomem – no momento do seu cumprimento – em decisões de mérito da Administração e que, por isso, comportam um conteúdo mais rarefeito no que ao seu controlo judicial possa dizer respeito. Do que se fala, ainda assim e sempre, é de deveres jurídicos funcionais, isto é, de vinculações da actividade administrativa à juridicidade. Como superiormente salienta PAULO OTERO, no seu recentíssimo Manual, há “diferentes níveis de subordinação à juridicidade: (i) a vinculação pode ser absoluta ou rígida, desde que nos encontremos diante de normas jurídicas que são regras (e não princípios), incorporando uma solução de tudo ou nada, revelando momentos de certeza, segurança e previsibilidade decisória administrativa; (ii) a vinculação pode ser relativa ou flexível, se tiver como parâmetro subordinante princípios jurídicos (e não regras jurídicas), envolvendo a necessidade de soluções de ponderação ou balanceamento entre diferentes princípios concorrentes, numa manifestação de momentos de flexibilidade e abertura decisórias da Administração Pública” (19). É, portanto, da natureza da actividade administrativa a submissão da sua conduta, tanto a deveres jurídicos padronizados em conceitos abertos, amplos ou indeterminados, como a deveres jurídicos assentes em conceitos fechados, restritos ou determinados. O que determina que há momentos de actuação administrativa perfeitamente sindicáveis pela ordem jurisdicional administrativa, convivendo com outros momentos em que essa sindicância jurisdicional só em circunstâncias excepcionais pode ser feita. Todavia, fala-se, ainda e sempre, em momentos administrativos encerrados no círculo da juridicidade. No fundo, excluída que esteja a confusão entre justiciabilidade e juridicidade, é de elogiar a opção do projecto de revisão em remeter a “boa administração” para o cumprimento de deveres de eficiência, economicidade e celeridade (sem prejuízo, claro esteja, de que a “boa administração” deva sempre incluir bem mais do que estes conceitos). 7. Aliás, a defesa do conteúdo do art. 5.º do projecto de revisão poderia ir um pouco mais longe. Acima, quando ensaiámos uma ideia, em abstracto, do que possa ser “boa administração”, incluímos nela a observância de valores jurídicos justiciabilizáveis e não justiciabilizáveis, e, além disso, até valores não jurídicos. De novo com PAULO OTERO, dizemos: “a implementação administrativa das vinculações, sempre teleologicamente subordinada à prossecução do interesse público, exige (…) níveis de eficiência, economicidade, optimização ou (19) OTERO, Paulo, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra, 2013, pp. 76 e 77. 134
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bom andamento por parte da Administração Pública: (i) não basta administrar, há sempre que procurar administrar o melhor possível, obtendo uma «óptima administração» – fala-se agora em vinculação ao princípio da eficiência ou boa administração; (ii) a boa administração envolve uma remissão dos critérios ou pautas de decisão administrativa para normas não jurídicas, fazendo apelo a valores e parâmetros extrajurídicos (v.g., princípios de gestão e de racionalidade económico-financeira) – bem administrar é uma vinculação a que todo o administrador se encontra vinculado; (…) (iv) a própria exigência constitucional de prossecução do interesse público tem subjacente uma regra de óptima administração” (20). Repare-se: procurar reduzir a boa administração a parâmetros puramente jurídicos (mesmo aqueles que comportam mais plasticidade) pode ter como consequência uma formalização ou uma procedimentalização excessiva da decisão administrativa. O momento da actuação administrativa (mais até do que a decisão) seria bom ou mau em função do cumprimento das regras jurídicas que balizassem essa actuação. Ora, a actividade administrativa só pode ser condicionada por padrões que assegurem um critério finalístico de boa administração, isto é, mais relevante do que o iter procedimentalis (por natureza, instrumental) – e aqui sem qualquer prejuízo da consagração plena de regras jurídicas estabilizadas e claras, que parametrizem todo o procedimento, em homenagem (dir-se-ia, em cumprimento) da legalidade e do Estado de Direito – está a capacidade da Administração Pública ser capaz de satisfazer todas as necessidades colectivas que, a cada momento político, estiverem a seu cargo. No fundo, trata-se de ser capaz de evitar a má administração. Conforme salienta MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA, “de um modo geral, existe má administração sempre que existam
disfunções, mau funcionamento dos organismos e serviços públicos – realidade de amplo espectro, que cobre um universo heterogéneo de situações, que podem ir da prática de um acto administrativo vinculado ilegal até à existência de uma situação de mau funcionamento generalizado de todo um serviço ou departamento público (seja, v.g., por injustificada morosidade sistemática na atribuição de pensões por um determinado serviço, ou por inaceitável estado de conservação das estradas em determinada região, causador de reiteradas situações lesivas). As disfunções, da mais variada índole, não decorrem, normalmente, da específica violação de princípios jurídicos, proclamados em letra de lei” (21). Está, assim, em curso a criação de uma nova perspectiva da “boa admi-
(20) OTERO, Paulo, Manual de Direito Administrativo, cit., pp. 77 e 78. (21) AROSO DE ALMEIDA, Mário, “Princípio da legalidade e boa administração: dificuldades e desafios”, cit., p. 65. 135
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nistração”, um novo conceito, que seja integrado por componentes jurídicos e não jurídicos: “a boa administração haverá, pois, de resultar do equilíbrio entre as exigências de uma eficiência economicista e as exigências de juridicidade que são próprias de uma visão constitucionalmente adequada em função de ingredientes democráticos, participativos e axiológicos” (22). Ao lado dos padrões jurídicos da boa administração (igualdade e não discriminação, imparcialidade, respeito pelos direitos de defesa e proibição da decisão surpresa, direito de participação activa no procedimento, dever de fundamentação das decisões que afectem a esfera jurídica dos cidadãos, direito à notificação das decisões, direito de obter informações e esclarecimentos, direito de acesso aos documentos), coabitam outros padrões não jurídicos (acessibilidade, efectividade, continuidade, poupança, simplificação, flexibilidade), todos juntos formando este repositório de valores designado de “boa administração”. 8. Em conclusão: a inclusão de critérios ou padrões não jurídicos de actuação administrativa no art. 5.º do projecto de revisão do CPA não se mostra ao arrepio, por conseguinte, das mais hodiernas teorias que concebem a “boa administração” (23). O que se verifica é que, atento o seu conteúdo, as soluções plasmadas são, ao mesmo tempo, uma sua força e uma sua debilidade. A verdade é que nos parece que, por todos os motivos já indicados, este art. 5.º demonstra, principalmente em face da sua epígrafe – que muito prometia –, uma feição não só nada original, como bastante incompleta em razão daquilo que a boa administração exige. Sendo um bom princípio guarda-chuva, ideal para estar aberto em permanência (como título ou como capítulo) tememos que, em função do lugar e do conteúdo que o projecto lhe reservou, acabe por estar fechado na maior parte das ocasiões em que era necessário.
(*) Este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico. (22) AROSO DE ALMEIDA, Mário, “Princípio da legalidade e boa administração: dificuldades e desafios”, cit., p. 67. (23) Vai neste sentido, por exemplo, a recentíssima Ley 27/2013, de 27 de Dezembro, a qual, destinando-se à criação de um novo regime jurídico das autarquias locais em Espanha (alteração do marco de atribuições e competências das autarquias locais, delegação de competência do Estado nas autarquias locais, reforço das atribuições das entidades supramunicipais e fusão voluntária de municípios, entre outras matérias), se designa por “ley de racionalización y sostenibilidad de la Administración Local”. 136
O Tribunal de Justiça e o respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros
Sophie Perez Fernandes
I. Introdução Em 2003, MIGUEL POIARES MADURO usou a imagem do contraponto para ilustrar as vantagens de uma conceção pluralista da ordem jurídica da União Europeia. O objeto da referida técnica de composição musical traduz-se na sobreposição de linhas melódicas distintas que não se encontram em relação hierárquica. A descoberta de que diferentes melodias podiam ser ouvidas ao mesmo tempo de forma harmoniosa constituiu um dos maiores desenvolvimentos da história da música da qual o eminente euro-constitucionalista extrai uma lição para o mundo jurídico contemporâneo. Em direito, e especialmente em direito da União Europeia, impõe-se aprender a lidar com a relação não hierárquica entre diferentes ordens jurídicas e instituições e descobrir como tirar partido da diversidade a ela inerente, sem gerar conflitos que, em último termo, apenas destruiriam aquelas ordens jurídicas e os valores que lhes estão subjacentes. Num mundo onde os problemas e os interesses não conhecem fronteiras, seria um erro concentrar a última autoridade e o monopólio normativo numa única fonte. Para tirar o máximo partido deste pluralismo jurídico, torna-se necessário conceber formas de reduzir e lidar com os potenciais conflitos entre ordens jurídicas, promovendo trocas entre elas, e demandar aos respetivos tribunais que concebam as suas decisões e os conflitos de interesses que têm para resolver à luz de um mais amplo contexto europeu (1). O propósito do presente texto é demonstrar a atualidade deste discurso reportando-se a uma das mais recentes, e centrais, questões em torno das relações (constitucionais) entre a União Europeia e os seus Estados-Membros: o
(1) Cfr. MADURO, Miguel Poiares, “Europe and the constitution: what if this is as good as it gets?”, in AA.VV., European Constitutionalism Beyond the State, WEILER, J. H. H. e WIND, Marlene (ed.), Cambridge, Cambridge University Press, 2003, e “Contrapunctual Law: Europe’s Constitutional Pluralism in Action”, in AA.VV., Sovereignty in Transition, WALKER, Neil (ed.), Oxford, Hart Publishing, 2003. Este último texto foi retomado em MADURO, Miguel Poiares, A Constituição Plural. Constitucionalismo e União Europeia, Cascais, Principia, 2006, pp. 11 e 38 a 47.
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respeito pela identidade (constitucional) nacional destes, a que a União está obrigada nos termos do art. 4.º, n.º 2, do Tratado da União Europeia (TUE). No estado atual de evolução do processo de integração europeia, está assente que o debate em torno da identidade nacional superou o debate em torno da soberania nacional – ou, nas palavras de JOSEPH WEILER, “(to) protect national sovereignty is passé; to protect national identity by insisting on constitutional specificity is à la mode” (2). O art. 4.º, n.º 2, do TUE, objeto central da presente reflexão, é disso elucidativo exemplo. Releva, contudo, de verdade lapaliciana afirmar que a definição do que é a identidade de certa comunidade, nomeadamente – ou especialmente – quando organizada como Estado, é altamente complexa e requer a constante atenção e compreensão da evolução dessa comunidade, da interação dos seus elementos e da relação destes com elementos exteriores à comunidade. Mas hoje, e cada vez mais, esta reflexão em torno do que se pode reconduzir ao núcleo essencial do “eu” de cada Estado-Membro integra a ordem do dia da agenda jurídico-constitucional da União Europeia. E, para além do evidente problema da definição propriamente dita da identidade (constitucional) nacional de cada Estado-Membro, coloca o problema de saber quem procede e como proceder a tal definição. A solução não pode deixar de passar por um (ainda que ficcionado) diálogo de jurisdições que tem o Tribunal de Justiça (3) como peça fundamental. Por isso o presente texto se propõe averiguar, ainda que sumariamente, a forma como o Tribunal de Justiça tem contribuído para este debate constitucional e, assim, aferir de que forma a (re)definição da identidade nacional tem escapado aos estritos limites dos respetivos Estados-Membros.
(2) WEILER, Joseph, “In defense of the status quo: Europe’s constitutional Soderweg”, in AA.VV., European Constitutionalism Beyond the State, WEILER, J. H. H. e WIND, Marlene (ed.), Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. 16. Utilizando a mesma expressão, SIMON, Denys, “L’identité constitutionnelle dans la jurisprudence de l’Union européenne”, in AA.VV., L’identité constitutionnelle saisie par les juges en Europe, BURGORGUE-LARSEN, Laurence (dir.), Editions Pedone, 2011, p. 27. (3) Como é sabido, o Tribunal de Justiça da União Europeia integra, nos termos do art. 19.º, n.º 1, do TUE, três jurisdições: o Tribunal de Justiça, o Tribunal Geral e os tribunais especializados. O texto refere-se, pois, à primeira destas jurisdições. 138
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II. A cláusula do respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros do art. 4.º, n.º 2, do TUE – breve enquadramento A cláusula do respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros está inserida no art. 4.º do TUE que, nos seus três parágrafos, consagra cinco princípios fundamentais que norteiam as relações entre a União Europeia e os Estados-Membros. O n.º 1, remetendo para o art. 5.º do TUE, refere-se ao princípio da atribuição, por força do qual a União apenas exerce as competências que, de modo expresso ou implícito, lhe tenham sido atribuídas nos Tratados, de modo que as competências que não sejam atribuídas à União continuam na esfera competencial dos Estados-Membros. O n.º 3 consagra o princípio da cooperação leal, pedra angular de qualquer sistema de natureza federativa, impondo aos atores envolvidos no processo de integração europeia uma “obrigação de fidelidade ao conjunto” a partir da noção de “complementaridade de dois níveis” que se suportam e se apoiam mutuamente (4). E, finalmente, o n.º 2 enuncia três outros princípios: o princípio da igualdade dos Estados-Membros, o respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros e o respeito pelas funções essenciais do Estado. O n.º 2 já foi interpretado pela doutrina como refletindo a vontade dos Estados-Membros se afirmarem como atores políticos autónomos no cenário jurídico-político da União Europeia (5), nele estando reunidos os elementos fundamentais do estatuto de Estado-Membro da União Europeia (6). Nada de transcendente quando se sabe que a intenção dos pais fundadores, retomando as célebres palavras de JEAN MONNET, não era construir a Europa “sem os Estados e muito menos contra os Estados”, que continuam a ser os “agentes insubstituíveis no compromisso (4) SILVEIRA, Alessandra, Cooperação e Compromisso Constitucional nos Estados Compostos. Estudo sobre a teoria do federalismo e a organização jurídica dos sistemas federativos, Coimbra, Almedina, 2007, p. 106. Sobre o princípio da cooperação leal e os seus corolários no âmbito do direito da União Europeia, cfr. SILVEIRA, Alessandra, Princípios de Direito da União Europeia. Doutrina e Jurisprudência, 2.ª edição, Lisboa, Quid Iuris, 2011, pp. 103 a 128. (5) Neste sentido, cfr. BOGDANDY, Armin von e SHILL, Stephan, “Overcoming Absolute Supremacy: Respect for National Identity under the Lisbon Treaty”, in Common Market Law Review, Vol. 48, 2011, p. 1425. (6) Neste sentido, cfr. MOUTON, Jean-Denis, “L’État Membre entre souveraineté et respect de son identité: quelle Union européenne?”, in Revue de l’Union européenne, n.º 556, 2012, p. 208. Do preceito resultaria, segundo o Autor, a emergência de verdadeiros direitos fundamentais em benefício dos Estados-Membros, dos quais o direito ao respeito pela identidade nacional seria o exemplo mais acabado até hoje. Também falando da emergência de um “direito ao respeito pela identidade constitucional dos Estados-Membros”, cfr. RITLENG, Dominique, “De l’utilité du principe de primauté du droit de l’Union”, in Revue trimestrielle de droit européen, ano 45, n.º 4, 2009, pp. 683 a 689. 139
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constitucional europeu” (7). O respeito pela identidade (constitucional) dos Estados-Membros faz “parte da própria essência do projecto europeu lançado no início da década de 1950, que consiste em avançar na via da integração sem deixar de preservar a existência política dos Estados” (8). O que não impede que a construção jurídico-política da União Europeia não implique um certo “repensamento do próprio Estado” (9). Para demonstrar o processo de desgaste crítico que o Estado soberano enfrenta na era da pós-modernidade – “vítima do seu sucesso”, nas palavras de GOMES CANOTILHO (10) –, FRANCISCO LUCAS PIRES, retomando os elementos tradicionais do Estado enunciados por GEORGE JELLINEK, avançava que “o território se tornou menos estanque, a população menos exclusiva e a soberania menos indivisível” (11). E desde os inícios do processo de integração europeia ficou claro que os Estados-Membros não ficariam imunes aos ventos de mudança trazidos pela construção em marcha. A jurisprudência inicial do Tribunal de Justiça é disso paradigmático exemplo. Ainda na década de 1960, o Tribunal de Justiça logo sublinhou que a então Comunidade constituía uma (nova) ordem jurídica própria, integrada no sistema jurídico dos Estados-Membros e a favor da qual estes limitaram, ainda que em domínios (hoje cada vez menos (12)) restritos, os seus direitos soberanos, criando um corpo de normas aplicável aos seus nacionais e a si próprios (13). (7) GOMES CANOTILHO, J. J., “Brancosos” e Interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional, Coimbra, Almedina, 2008, p. 244. (8) Conclusões do Advogado-Geral MIGUEL POIARES MADURO, de 8 de outubro de 2008, Processo C-213/07 (acórdão Michaniki), Colet. 2008, p. I-9999, considerando 31. De tal é exemplo a “Declaração sobre a Identidade Europeia”, adotada em Copenhaga, a 14 de dezembro de 1973, na qual os então nove Estados-Membros associaram a afirmação dos “éléments fondamentaux de l’identité européenne” – a saber, “les principes de la démocratie représentative, du règne de la loi, de la justice sociale – finalité du progrès économique – et du respect des droits de l’homme” – à sua preocupação em “assurer le respect des valeurs d’ordre juridique, politique et moral auxquelles ils sont attachés” e em “préserver la riche variété de leurs cultures nationales” (considerando 1) (disponível em http://www.cvce.eu/obj/declaration_ sur_l_identite_europeenne_copenhague_14_decembre_1973-fr-02798dc9-9c69-4b7d-b2c9-f03a8db7da32 .html). (9) GOMES CANOTILHO, J. J., “Brancosos” e Interconstitucionalidade…, cit., p. 242. (10) GOMES CANOTILHO, J. J., “Brancosos” e Interconstitucionalidade…, cit., p. 219. (11) LUCAS PIRES, Francisco, Introdução ao Direito Constitucional Europeu (Seu Sentido, Problemas e Limites), Coimbra, Almedina, 1997, p. 8.
(12) No seu Parecer 1/91, de 14 de dezembro de 1991, Colet. 1991, p. I-6079, o Tribunal de Justiça afirma que os Estados-Membros limitaram os seus direitos soberanos “em domínios cada vez mais vastos” (considerando 21). (13) Cfr. acórdão Van Gend & Loos, de 5 de fevereiro de 1963, Processo 26/62, Colet. 1962-1964, p. 205, parte II-B, parágrafo 7; e acórdão Costa/ENEL, de 15 de julho de 1964, Colet. 1962-1964, p. 549, parágrafos 10 e 11. 140
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Não é por acaso, pois, que o normativo em apreço se refira à “identidade” dos Estados-Membros e não à “soberania”, o que denota a intensidade do atual estádio de integração (14) e demonstra a veracidade das palavras de JOSEPH WEILER supra citadas (15). Aliás, em nenhuma das suas versões anteriores a norma se referia à “soberania nacional”. Assim, o então art. 6.º, n.º 3, do TUE, dispunha como segue: “A União respeitará as identidades nacionais dos Estados-Membros”. Da mesma forma, o art. I-5.º, n.º 1, do malogrado Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, dispunha nos seguintes termos: “A União respeita a igualdade dos Estados-Membros perante a Constituição, bem como a respectiva identidade nacional, reflectida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada um deles, incluindo no que se refere à autonomia local e regional. A União respeita as funções essenciais do Estado, nomeadamente as que se destinam a garantir a integridade territorial, a manter a ordem pública e a salvaguardar a segurança nacional”. O atual art. 4.º, n.º 2, do TUE mantém, no essencial, esta formulação (16), embora lhe tenha introduzido algumas alterações, nomeadamente na parte final: “A União respeita a igualdade dos Estados-Membros perante os Tratados, bem como a respetiva identidade nacional, refletida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada um deles, incluindo no que se refere à autonomia local e regional. A União respeita as funções essenciais do Estado, nomeadamente as que se destinam a garantir a integridade territorial, a manter a ordem pública e a salvaguardar a segurança nacional. Em especial, a segurança nacional continua a ser da exclusiva responsabilidade de cada Estado-Membro”. (14) Neste sentido, cfr. BOGDANDY, Armin von e SHILL, Stephan, “Overcoming Absolute Supremacy…”, cit., p. 1425. (15) Cfr., supra, nota 2. (16) Para um apanhado dos trabalhos preparatórios relativos ao art. I-5.º, n.º 1, do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa e a sua repercussão no atual art. 4.º, n.º 2, TUE, cfr. GUASTAFERRO, Barbara, Beyond the Exceptionalism of Constitutional Conflicts: the Ordinary Functions of the Identity Clause, Jean Monnet Working Paper 01/12, New York, NYU School of Law, pp. 13 a 34 (disponível em http://centers.law.nyu.edu/jeanmonnet/). 141
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A referência aos antecedentes do atual art. 4.º, n.º 2, do TUE demonstra a tentativa dos Tratados em clarificar o sentido da noção de “identidade nacional”. O resultado final não ficou, contudo, isento de ambiguidades. Desde logo, o texto do art. 4.º, n.º 2, do TUE, versão Lisboa, quando confrontado com a única versão anterior do normativo que chegou a entrar em vigor (o art. 6.º, n.º 3, do TUE, versão Nice), põe o acento tónico na identidade constitucional nacional dos Estados-Membros (17). De facto, resulta do preceito que a União Europeia se obriga a respeitar a identidade nacional dos Estados-Membros, tal como “refletida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada um deles, incluindo no que se refere à autonomia local e regional”. Distintas interpretações têm sido avançadas pela doutrina a este respeito. ARMIN VON BOGDANDY e STEPHAN SCHILL reconduzem o conceito de identidade nacional contido no art. 4.º, n.º 2, do TUE às “estruturas políticas e constitucionais fundamentais” dos Estados-Membros, excluindo elementos culturais, históricos e linguísticos; o respeito pela diversidade cultural e linguística resultaria do art. 3.º, n.º 3, do TUE [bem como do art. 22.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE)] e não do art. 4.º, n.º 2, do TUE (18). Pelo contrário, LEONARD BESSELINK inclui o respeito pela identidade cultural como parte da identidade nacional dos Estados-Membros; a esta leitura, para a qual o Autor também se apoia no preâmbulo do TUE (19), não se oporia o art. 3.º, n.º 3, do TUE, na medida em que as estruturas políticas e constitucionais fundamentais dos Estados-Membros são frequentemente expressão de fenómenos culturais (20). Esta nos parece a leitura mais adequada, que, aliás, parece também ser partilhada pelo Tribunal de Justiça. Pela mesma razão, a referência às “estruturas políticas e constitucionais fundamentais” dos Estados-Membros não parece ser entendida no sentido de remeter apenas para a organização político-institucional de cada Estado-Membro, antes referindo-se também aos respetivos valores político-constitucionais fundamentais. (17) Neste sentido, cfr. BESSELINK, Leonard F. M., “National and constitutional identity before and after Lisbon”, in Utrecht Law Review, Vol. 6, n.º 3, 2010, p. 44. (18) Assim, BOGDANDY, Armin von e SHILL, Stephan, “Overcoming Absolute Supremacy…”, cit., p. 1427. (19) Em especial, o seu considerando 6: “DESEJANDO aprofundar a solidariedade entre os seus povos, respeitando a sua história, cultura e tradições”. (20) Assim, BESSELINK, Leonard F. M., “National and constitutional identity before and after Lisbon”, cit., pp. 42 a 44. No mesmo sentido, cfr. SCHYFF , Gerard van der, “The Constitutional Relationship between the European Union and its Member States: the Role of National Identity in Article 4(2) TEU”, in European Law Review, Vol. 37, n.º 5, 2012, p. 568; e MOUTON, Jean-Denis, “L’État Membre entre souveraineté et respect de son identité: quelle Union européenne?”, cit., p. 209. 142
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Para além disso, o confronto com outras versões linguísticas do art. 4.º, n.º 2, do TUE, traz à luz do dia algumas diferenças, pequenas nuances terminológicas, facilmente ultrapassáveis, contudo. Assim, por um lado, o plural empregue no art. 6.º, n.º 3, do TUE, versão Nice, caiu no art. 4.º, n.º 2, do TUE, versão Lisboa – na versão portuguesa, bem como nas versões alemã (“nationale Identität”), espanhola (“identidad nacional”), francesa (“identité nationale”) e italiana (“identità nazionale”). Contudo, na versão inglesa, o plural manteve-se (“national identities”). O emprego do plural tem a vantagem de traduzir a realidade de alguns Estados-Membros nos quais a identidade nacional não coincide com a identidade estadual, como é o caso da Bélgica, da Espanha ou do Reino Unido (21) – mas também não parece que o uso do singular impeça o reconhecimento do pluralismo identitário de alguns Estados-Membros. Por outro lado, e tendo por referência as mesmas versões linguísticas, o verbo “refletir” empregue na versão portuguesa encontra um equivalente próximo no verbo “expressar” empregue na versão alemã (“zum Ausdruck kommt”); já as versões espanhola, francesa e inglesa usam o termo “inerente” e encontra-se o termo “ínsita” na versão italiana. Tentar encontrar diferenças de conteúdo nesta variedade terminológica parece, contudo, relativamente artificioso (22). Ainda em sede de primeiras ilações respeitantes ao texto do art. 4.º, n.º 2, do TUE, é especialmente importante sublinhar que o preceito refere-se a uma obrigação que impende sobre a União Europeia de respeitar a identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros. Não cabe, pois, à União Europeia promover a identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros: zelando pelo aprofundamento do processo integrativo, apenas deve procurar manter a diversidade a ele inerente, não atentando contra o que é nuclear e distintivo de cada Estado-Membro. Para além disso, tratando-se de uma obrigação, significa que o imperativo que exprime não reveste importância meramente política, decorativa ou simbólica, antes assume valor jurídico, de modo que a violação daquela obrigação acarreta consequências jurídicas a serem determinadas caso a caso. Em nenhum caso, contudo, a cláusula do art. 4.º, n.º 2, do TUE poderá servir aos Estados-Membros de carta-branca para obstaculizar a realização dos
(21) Neste sentido, cfr. BESSELINK, Leonard F. M., “National and constitutional identity before and after Lisbon”, cit., p. 42. (22) Contra, cfr. BOGDANDY, Armin von e SHILL, Stephan, “Overcoming Absolute Supremacy…”, cit., p. 1427. Os Autores interpretam o uso da forma verbal “expressar” no sentido de traduzir a ideia de que a identidade nacional pré-existe à constituição nacional, então que o termo “inerente” traduziria a ideia de que a própria constituição nacional constitui a identidade nacional. 143
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objetivos da União e o aprofundamento do processo integrativo, o que iria contra o compromisso constitucional de cooperação assumido por todos os atores envolvidos no processo de integração e inscrito no art. 4.º, n.º 3, do TUE.
III. Quem decide acerca da identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros – a competência discursiva do Tribunal de Justiça Como repara LEONARD BESSELINK, à questão de saber quem decide acerca da identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros, seria facilmente de responder, numa abordagem puramente supranacional (e hierarquizada) da construção jurídico-política da União Europeia, o Tribunal de Justiça com exclusão dos tribunais constitucionais nacionais (23): caberia em exclusivo ao Tribunal de Justiça determinar se um certo ato jurídico da União conflitua com a identidade (constitucional) nacional de certo Estado-Membro ou se certo Estado-Membro poderia legitimamente eximir-se do cumprimento de uma obrigação decorrente do direito da União Europeia com fundamento na sua identidade (constitucional) nacional. Esta solução implicaria que o próprio Tribunal de Justiça interpretasse o direito constitucional do Estado-Membro em causa – e não é de todo esta a solução resultante dos Tratados. Nos termos do art. 19.º, n.º 1, do TUE, o Tribunal de Justiça tem por missão garantir o respeito do direito na interpretação e aplicação dos Tratados. Mesmo quando chamado a pronunciar-se a pedido de um órgão jurisdicional nacional, apenas tem competência para interpretar os Tratados e apreciar a validade e interpretar atos jurídicos da União, nos termos do art. 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). É por isso que o Tribunal de Justiça se declara incompetente para aferir da compatibilidade do direito nacional com o direito da União Europeia, limitando-se a fornecer aos órgãos jurisdicionais nacionais todos os elementos de direito da União necessários a tal apreciação. E de outra forma não poderá ser em relação à cláusula do respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros. Ora, muito embora o Tribunal de Justiça não tenha competência para interpretar o direito (constitucional) nacional dos Estados-Membros, é inegável que a interpretação do art. 4.º, n.º 2, do TUE, enquanto disposição de direito da União Europeia, cai no âmbito da competência do Tribunal de Justiça nos ter(23) Cfr. BESSELINK, Leonard F. M., “National and constitutional identity before and after Lisbon”, cit., p. 44. 144
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mos do art. 19.º, n.º 1, do TUE e do art. 267.º do TFUE. Nestes termos, o conceito de “identidade (constitucional) nacional” é um conceito próprio de direito da União Europeia, cujo sentido e alcance devem ser interpretados de modo autónomo e uniforme em toda a União – interpretação que, por isso, deve ser assegurada pelo Tribunal de Justiça. Mas a este não caberá determinar o que integra ou não a identidade (constitucional) nacional de certo Estado-Membro – pois isto implicaria, reitere-se, uma interpretação do direito (constitucional) nacional do Estado-Membro em causa, para o que o Tribunal de Justiça não tem competência. Assim, no que toca ao conteúdo, a identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros será determinada em função de elementos inscritos no respetivo direito constitucional e código genético, na autocompreensão que cada Estado-Membro concebe das especificidades que se reconduzem ao núcleo essencial do seu “eu” e que permite distingui-lo dos demais (24). Cabe, por sua vez, ao Tribunal de Justiça determinar as consequências que daí decorrem à luz do direito da União Europeia para efeitos do art. 4.º, n.º 2, do TUE (25). Tribunal de Justiça e autoridades nacionais, especialmente os tribunais constitucionais nacionais, devem, pois, atuar ao abrigo do art. 4.º, n.º 2, do TUE em estreita colaboração e, por isso, em termos de mise en oeuvre ou modus operandi, a cláusula do respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros deve ser compreendida à luz do princípio da cooperação leal consagrado no art. 4.º, n.º 3, do TUE, chave de ouro para a interpretação de todo o sistema. Como avançou MIGUEL POIARES MADURO ainda se referindo ao art. 6.º, n.º 3, do TUE, se, por um lado, há que reconhecer às autoridades nacionais, especialmente aos tribunais constitucionais, “a responsabilidade de definirem a natureza das especificidades nacionais”, pois “estão melhor colocados para (24) Neste sentido, cfr. BOGDANDY, Armin von e SHILL, Stephan, “Overcoming Absolute Supremacy…”, cit., pp. 1428 e 1429; e BESSELINK, Leonard F. M., “National and constitutional identity before and after Lisbon”, cit., p. 45. (25) Foi o que sucedeu no acórdão Dermod Patrick O’Brien, de 1 de março de 2012, Processo C-393/10, Colet. 2012, não publicado. Estava em causa a diferença estabelecida pela regulamentação britânica relativa à concessão de uma pensão de aposentação entre os juízes a tempo inteiro e os juízes a tempo parcial não assalariados (remunerados com base em honorários diários). O Governo letão avançou, nas suas observações, que “a aplicação do direito da União ao poder judicial implicaria o desrespeito das identidades nacionais dos Estados-Membros”, o que seria contrário ao art 4.º, n.º 2, do TUE. O Tribunal de Justiça respondeu que a aplicação da Diretiva 97/81/CE do Conselho, de 15 de dezembro de 1997, respeitante ao acordo-quadro relativo ao trabalho a tempo parcial celebrado pela UNICE, pelo CEEP e pela CES (JO L 14, 20.01.1998, p. 9-14), e do acordo-quadro relativo ao trabalho a tempo parcial a ela anexo “não pode afetar a identidade nacional, visando tão-só permitir que beneficiem do princípio geral da igualdade de tratamento, que constitui um dos objetivos destes textos e, assim, protegê-los contra as discriminações em relação aos trabalhadores a tempo parcial” (considerando 49). 145
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definir a identidade constitucional dos Estados-Membros que a União Europeia tem por missão respeitar”, terá, por outro lado, o Tribunal de Justiça o “dever de verificar se essa apreciação está em conformidade com os direitos e objectivos fundamentais cuja observância garante no quadro comunitário” (26). O Tribunal de Justiça e os tribunais constitucionais dos Estados-Membros, no âmbito das respetivas competências, são, assim, chamados a contribuir, em termos de complementaridade, para a elaboração de uma decisão respeitante à validade de uma disposição de direito da União Europeia ou que legitime o não cumprimento de uma obrigação decorrente do direito da União com fundamento na identidade (constitucional) nacional de certo Estado-Membro. No contexto da repartição competencial desenhada pelos Tratados, o Tribunal de Justiça e os tribunais dos Estados-Membros, especialmente os respetivos tribunais constitucionais, podem ser vistos como os dois agentes complementares que integram o sistema plural da justiça constitucional europeia (27). Não é outra a razão pela qual DANIEL SARMIENTO qualifica a jurisprudência do Tribunal de Justiça como discursiva (28), característica que, no contexto particular do art. 4.º, n.º 2, do TUE assume particular relevância e, por isso, aproveitamos em epígrafe. O pluralismo que carateriza a arquitetura jurídica e jurisdicional da União Europeia impede que, à questão de saber quem decide acerca da identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros seja dada uma resposta de sentido único. A solução passa, necessariamente, por um diálogo de jurisdições que tem, contudo, o Tribunal de Justiça como maestro, para dar continuidade à imagem musical usada no início. O relativo isolamento do Tribunal de Justiça na arbitragem de tais questões – por ter sido chamado a pronunciar-se sobre elas por um órgão jurisdicional nacional não constitucional ou no âmbito de um processo por incumprimento iniciado pela Comissão (ou por outro Estado-Membro) – poderia ser atenuado se existisse algum mecanis(26) Conclusões do Advogado-Geral MIGUEL POIARES MADURO, de 20 de setembro de 2005, Processo C-53/04 (acórdão Marrosu), Colet. 2006, p. I-7213, considerando 40. No mesmo sentido, cfr. PLIAKOS, Asteris, “La fonction communautaire/européenne du juge nationale mise en question”, in Revue de L’Union Européenne, n.º 545, 2011, p. 87; RITLENG, Dominique, “De l’utilité du principe de primauté du droit de l’Union”, cit., p. 689; SCHYFF, Gerard van der, “The Constitutional Relationship between the European Union and its Member States…”, cit., p. 579; e BESSELINK, Leonard F. M., “National and constitutional identity before and after Lisbon”, cit., p. 45. (27) Neste sentido, ARMIN VON BOGDANDY e STEPHAN SHILL avançam com a expressão “composite system of European constitutional adjudication” – cfr. BOGDANDY, Armin von e SHILL, Stephan, “Overcoming Absolute Supremacy…”, cit., pp. 1447 e 1452. (28) SARMIENTO, Daniel, Poder Judicial e Integración Europea. La construcción de un modelo jurisdiccional para la Unión, Madrid, Civitas Ediciones, 2004, pp. 300 e ss. 146
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mo “primus inter pares” (29) que permitisse ao Tribunal de Justiça entabular uma “diálogo para baixo” e convidar a instância constitucional do Estado-Membro em causa a pronunciar-se sobre a questão suscitada. Não exatamente nestes termos, mas a possibilidade já existe. Com efeito, nos termos do art. 24.º, n.º 1, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, este pode solicitar às partes que apresentem os documentos e prestem as informações que considerem necessárias à apreciação da causa (30). Assim, em qualquer processo no qual uma questão relativa à identidade (constitucional) nacional de certo Estado-Membro seja suscitada, o Tribunal de Justiça tem a possibilidade de solicitar a esse mesmo Estado-Membro informações adicionais (caso não se considere suficientemente esclarecido pelas observações já remetidas), devendo este aproveitar para dar conta da posição da respetiva instância constitucional sobre a questão concretamente em causa (31). As condições estão, pois, reunidas para um discurso jurídico permanente entre o Tribunal de Justiça e os tribunais constitucionais nacionais, ainda que de alguma forma ficcionado em alguns casos (quando não seja o próprio tribunal constitucional do Estado-Membro em causa que tenha iniciado o diálogo nos termos do art. 267.º do TFUE), que permita ao Tribunal de Justiça compor a “tensão dialéctica” (32) entre o respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros e o cumprimento dos objetivos fundamentais da União Europeia. Vejamos, com alguns exemplos, a forma como o Tribunal de Justiça tem “maestrado” este “processo discursivo, plural e descentralizado” (33) que carateriza a arquitetura jurídica da União Europeia.
(29) Neste sentido, mas sugerindo, em tom interrogativo, a criação de um Tribunal Constitucional composto por juízes do Tribunal de Justiça e juízes constitucionais nacionais para a resolução de conflitos entre o direito da União e o direito constitucional nacional, cfr. MADURO, Miguel Poiares, “Europe and the constitution: what if this is as good as it gets?”, cit., p. 97. (30) Possibilidade que o n.º 2 estende aos Estados-Membros, às instituições, órgãos e organismos da União que não sejam parte no processo em causa. (31) Neste sentido, cfr. BOGDANDY, Armin von e SHILL, Stephan, “Overcoming Absolute Supremacy…”, cit., p. 1449. (32) FAUSTO DE QUADROS, Direito da União Europeia. Direito Constitucional e Administrativo da União Europeia, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2013, p. 121. (33) MADURO, Miguel Poiares, A Constituição Plural…, cit., p. 9. 147
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IV. A identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros perante o Tribunal de Justiça – uma amostragem jurisprudencial Até ao momento, o art. 4.º, n.º 2, do TUE foi raramente invocado junto do Tribunal de Justiça. É, contudo, impossível percorrer a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros limitando a análise aos casos nos quais o conceito foi expressamente chamado à colação ou nos quais o ainda jovem art. 4.º, n.º 2, do TUE foi invocado. Assim alargado o escopo da análise, é vasta a jurisprudência do Tribunal de Justiça (34) que testemunha da consideração de elementos atinentes à identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros. Antes, contudo, de avançar com uma amostragem dessa mesma jurisprudência, e de forma a contribuir para uma leitura integrada da mesma num contexto mais alargado, importa relacioná-la, ainda que de forma breve, com a jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de primado do direito da União Europeia e de proteção de direitos fundamentais. Por um lado, a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao princípio do primado do direito da União Europeia, enquanto “garantia atómica” (35) ou “exigência existencial” (36) da ordem constitucional da União Europeia, não resulta fragilizada com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa e, em especial, da norma do art. 4.º, n.º 2, do TUE. Não só a ela é feita referência na Declaração n.º 17 anexa ao Tratado de Lisboa, como, em particular, a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao primado do direito da União Europeia sobre as normas constitucionais nacionais (37), nascida dos célebres acórdãos Costa/ENEL e Internationale Handelsgesellschaft (38), continua de atualidade. No recente acór(34) Para uma leitura da jurisprudência dos tribunais constitucionais de alguns Estados-Membros no que toca ao respeito pela respetiva identidade constitucional nacional, cfr. BOGDANDY, Armin von e SHILL, Stephan, “Overcoming Absolute Supremacy…”, cit., pp. 1433 a 1440; GUASTAFERRO, Barbara, Beyond the Exceptionalism of Constitutional Conflicts…, cit., pp. 8 a 12; e BESSELINK, Leonard F. M., “National and constitutional identity before and after Lisbon”, cit., pp. 46 e 47. (35) LUCAS PIRES, Francisco, Introdução ao Direito Constitucional Europeu…, cit., p. 28. (36) PESCATORE, Pierre, L’Ordre juridique des Communautés européennes, 2.ª edição, Liège, Presses universitaires, 1975, reedição Bruylant, 2006, p. 227, apud RITLENG, Dominique, “De l’utilité du principe de primauté du droit de l’Union”, cit., p. 677. (37) Acerca do primado do direito da União Europeia sobre normas constitucionais nacionais, cfr. MARTINS, Patrícia Fragoso, O Princípio do Primado do Direito Comunitário sobre as Normas Constitucionais dos Estados-Membros. Dos Tratados ao Projecto de Constituição Europeia, 1.ª edição, Estoril, Principia, 2006. (38) Cfr. acórdãos Costa/ENEL, cit., parágrafo 19, e Internationale Handelsgesellschaft, de 11 de dezembro de 1970, Processo 11-70, Colet. 1970, p. 1125, considerando 4. Depois de, no primei148
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dão Melloni, o Tribunal de Justiça recorda que, “por força do princípio do primado do direito da União, que é uma característica essencial da ordem jurídica da União, a invocação, por um Estado-Membro, de disposições de direito nacional, ainda que de natureza constitucional, não pode afetar o efeito do direito da União no território deste Estado” (39). À luz desta jurisprudência, o art. 4.º, n.º 2, do TUE deve, pois, ser interpretado no sentido de que a apreciação da validade de um ato jurídico da União ou do seu “efeito no território” dos Estados-Membros, nomeadamente estando em causa o não cumprimento de uma obrigação decorrente do direito da União com fundamento nos valores e princípios fundamentais de certo Estado-Membro, só pode ser determinado nos termos do direito da União, sob pena de ser posta em causa a sua eficácia e uniformidade em todo o espaço da União. Por outro lado, importa não confundir a consideração das especificidades que integram a substância da identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros com a consideração do nível de proteção que certo Estado-Membro pretende garantir a certo direito fundamental (40). Em sede de proteção de direitos fundamentais, impera o princípio do nível de proteção mais elevado (41) que ro, o Tribunal de Justiça ter afirmado que “ao direito emergente do Tratado, emanado de uma fonte autónoma, não podem, em virtude da sua natureza, ser opostas em juízo regras de direito nacional, quaisquer que sejam, sob pena de perder o seu carácter comunitário e de ser posta em causa a base jurídica da própria Comunidade”, acrescentaria, no segundo, que “a invocação de violações, quer aos direitos fundamentais, tais como estes são enunciados na Constituição de um Estado-membro, quer aos princípios da estrutura constitucional nacional, não pode afectar nem a validade de um acto da Comunidade ou o seu efeito no território desse Estado”. Para uma leitura atualizada de ambos os acórdãos, cfr. os diversos contributos in AA.VV., The Past and Future of EU Law. The Classics of EU Law Revisited on the 50th Anniversary of the Rome Treaty, MADURO, Miguel Poiares e AZOULAI, Loïc (coord.), Oxford, Hart Publishing, 2010, pp. 39 a 85 e pp. 89 a 129; e ainda MARTINS, Patrícia Fragoso, “Princípio do Primado do Direito da União”, in AA.VV., Princípios Fundamentas de Direito da União Europeia. Uma abordagem jurisprudencial, PAIS, Sofia Oliveira (org.), Coimbra, Almedina, 2011, pp. 37 a 56 e pp. 72 a 87.
(39) Acórdão Melloni, de 26 de fevereiro de 2013, Processo C-399/11, Colet. 2013, não publicado, considerando 59. (40) Como alertou recentemente o Advogado-Geral YVES BOT nas suas Conclusões de 2 de outubro de 2012, Processo C-399/11 (acórdão Melloni), Colet. 2012, não publicado: “não se pode confundir o que faz parte de uma conceção exigente da proteção de um direito fundamental com uma violação da identidade nacional ou, mais precisamente, da identidade constitucional de um Estado-Membro. É verdade que, no caso em apreço, se trata de um direito fundamental protegido pela Constituição espanhola cuja importância não pode ser subestimada [os direitos a um processo equitativo e de defesa em caso de sentenças proferidas à revelia], mas isso, no entanto, não significa que, neste caso, o artigo 4.º, n.º 2, TUE seja aplicável.” (considerando 142). (41) Sobre o princípio do nível de proteção mais elevada, cfr. MARIANA CANOTILHO, O princípio do nível mais elevado de protecção dos direitos fundamentais na União Europeia, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), 149
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obedece a uma metodologia discursiva distinta da metodologia discursiva subjacente à cláusula do respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros. Por força do art. 53.º da CDFUE, sendo mobilizáveis, numa dada situação concreta, vários regimes jurídicos relativos ao mesmo direito fundamental, será aplicável aquele que garante o mais elevado nível de proteção ao titular do direito fundamental em causa – seja o resultante do direito da União Europeia, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou da constituição do Estado-Membro em questão. Deste modo, o nível de proteção assegurado a nível da União será aquele que resulta da aplicação preferente da norma – de direito da União Europeia/CDFUE, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou da constituição nacional – “mais favorável” (42). Opera-se a uma espécie de assimilação a nível da União do nível mais elevado de proteção de certo direito fundamental que se impõe, depois, a todos os Estados-Membros e beneficia a todos os cidadãos. Pelo contrário, a lógica que preside à aplicação do art. 4.º, n.º 2, do TUE assenta na identificação das especificidades nucleares e distintivas de certo Estado-Membro que, num contexto que lhe é próprio, lhe permite legitimamente não cumprir com uma obrigação decorrente do direito da União Europeia ou pôr em causa a validade de uma disposição de direito da União Europeia. O exemplo mais recente no que toca ao tema que nos ocupa é dado pelo acórdão Sayn-Wittgenstein (43), um dos primeiros casos no qual o art. 4.º, n.º 2, do TUE foi invocado, após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa. Em causa estava a compatibilidade com o direito à livre circulação e residência (art. 21.º do TFUE) do regime jurídico austríaco por força do qual as autoridades austríacas não podiam reconhecer o apelido de um nacional austríaco adquirido aquando da sua adoção (na idade adulta) por um nacional de outro Estado-Membro (in casu, a República Federal da Alemanha), pelo facto de o apelido em causa integrar um título nobiliárquico que não era admitido nos termos da
Menção Honrosa Prémio Jacques Delors 2011, disponível em www.eurocid.pt, e “Artigo 53.º – Nível de proteção” (comentário), in AA.VV., Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, ALESSANDRA SILVEIRA e MARIANA CANOTILHO (coord.), Coimbra, Almedina, 2013, pp. 606 a 624, e ALESSANDRA SILVEIRA, “Citizenship of rights and the principle of the highest standard of fundamental rights’ protection: notes on the Melloni case” (no prelo). (42) Neste sentido, cfr. SILVEIRA, Alessandra, “Da interconstitucionalidade na União Europeia (ou do esbatimento de fronteiras entre ordens jurídicas”, in Scientia Ivridica, Tomo LX, n.º 326, 2011, p. 216. (43) Acórdão Sayn-Wittgenstein, de 22 de dezembro de 2010, Processo C-208/09, Colet. 2010, p. I-13693. 150
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lei austríaca de abolição da nobreza (44). O caso concreto foi despoletado na sequência da prolação de um acórdão pelo Tribunal Constitucional austríaco. Resumindo o estado do direito austríaco relevante sobre a questão, o Tribunal Constitucional austríaco declarou – como nos dá conta o Tribunal de Justiça – que “a lei da abolição da nobreza, que tem força constitucional e dá execução, neste domínio, ao princípio da igualdade, impedia que os cidadãos austríacos adquirissem, por via da adopção por um cidadão alemão que ostenta legalmente esse título nobiliárquico como elemento constitutivo do seu nome, um apelido composto por um antigo título nobiliárquico”, de tal modo que, “em conformidade com a lei da abolição da nobreza, os cidadãos austríacos não estão autorizados a utilizar títulos nobiliárquicos, incluindo de origem estrangeira” (45). A questão que se colocava ao Tribunal de Justiça era, pois, a de saber se razões de ordem constitucional podiam autorizar um Estado-Membro a não reconhecer todos os elementos de um nome obtido por um dos seus nacionais noutro Estado-Membro (pois em causa apenas estava a partícula nobiliárquica “Fürstin von” – “Princesa de”) e, assim, obtido por conta do exercício do direito à livre circulação e residência, direito inerente ao estatuto de cidadão da União Europeia nos termos do art. 21.º do TFUE. Atendendo à divergência de apelidos que na situação concreta se podia gerar entre, por um lado, o nome constante nos documentos de identificação austríacos, retificado na sequência da prolação do acórdão do Tribunal Constitucional austríaco, e o nome que Ilonka Sayn-Wittgenstein usava há quinze anos na sua vida pessoal e profissional, indicado nos documentos redigidos na Alemanha e que foi reconhecido na Áustria até à retificação em causa, o Tribunal de Justiça considerou que a recusa, por parte das autoridades de um Estado-Membro, de reconhecer, em todos os seus elementos, aquele apelido consti-
(44) No caso concreto, Ilonka Sayn-Wittgenstein, de nacionalidade austríaca, foi adotada (em 1991), aos 47 anos, por um cidadão alemão, sendo que já residia na Alemanha no momento da adoção, tendo aí continuado a residir e a exercer a sua atividade profissional no setor do imobiliário de prestígio. Sem que a adoção tivesse consequências sobre a sua nacionalidade, teve, contudo, sobre o seu nome, tendo a recorrente adquirido o apelido do pai adotivo sob a forma “Fürstin von Sayn-Wittgenstein”, que passou a usar durante mais de 15 anos. Em 1992, na sequência da adoção, as autoridades austríacas procederam à inscrição do apelido no registo civil austríaco, renovaram o seu passaporte e emitiram dois certificados de nacionalidade em conformidade com o referido apelido; do seu lado, as autoridades alemães também emitiram uma carta de condução alemã, tendo sido também constituída uma sociedade na Alemanha sob aquele nome. Contudo, na sequência da prolação, em 2003, do acórdão do Tribunal Constitucional austríaco referido no texto, Ilonka Sayn-Wittgenstein foi informada, em 2007, da intenção da autoridade austríaca competente em proceder à retificação do seu apelido inscrito no registo civil para “Sayn-Wittgenstein”. (45) Acórdão Sayn-Wittgenstein, cit., considerando 25. 151
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tuía uma restrição às liberdades reconhecidas pelo art. 21.º do TFUE aos cidadãos da União (46). Contudo, o Tribunal de Justiça também foi sensível às precisões fornecidas pelo Governo austríaco relativas à lei de abolição da nobreza. O Governo austríaco explicou que a referida lei tinha por objetivo “salvaguardar a identidade constitucional da República da Áustria” e constituía uma “uma decisão fundamental a favor de uma igualdade formal de tratamento de todos os cidadãos perante a lei”, de modo que “as eventuais restrições às liberdades de circulação, susceptíveis de resultar para os cidadãos austríacos da aplicação das disposições em causa […] são […] justificadas à luz da história e dos valores fundamentais da República da Áustria” (47). Foi assim que o Tribunal de Justiça considerou que, “no contexto da história constitucional austríaca”, a lei da abolição da nobreza, “enquanto elemento da identidade nacional”, constituía uma razão objetiva de ordem pública suscetível de justificar uma restrição à livre circulação e residência dos cidadãos da União (48), recordando que “em conformidade com o artigo 4.º, n.º 2, TUE, a União respeita a identidade nacional dos seus Estados-Membros, da qual faz também parte a forma republicana do Estado” (49) (50). Claro que, enquanto medida restritiva de uma liberdade fundamental, a recusa de reconhecer, em todos os seus elementos, o apelido adquirido num outro Estado-Membro com fundamento na lei da abolição da nobreza, devia respeitar o princípio da proporcionalidade, o que o Tribunal de Justiça considerou ser o caso (51).
(46) Cfr. acórdão Sayn-Wittgenstein, cit., considerandos 52 a 71. (47) Cfr. acórdão Sayn-Wittgenstein, cit., considerandos 74 e 75. (48) Cfr. acórdão Sayn-Wittgenstein, cit., considerandos 83 a 89. (49) Acórdão Sayn-Wittgenstein, cit., considerando 92. (50) Se alguns autores relativizam a referência ao art. 4.º, n.º 2, TUE no acórdão SaynWittgenstein – assim, BOGDANDY, Armin von e SHILL, Stephan, “Overcoming Absolute Supremacy…”, cit., pp. 1424 e 1442 – outros refutam tal leitura, considerando que a mesma banaliza uma questão de ordem constitucional aos olhos de um Estado-Membro – assim, BESSELINK, Leonard F. M., “Case C-208/09, Ilonka Sayn-Wittgenstein v. Landeshauptmann von Wien, Judgment of the Court (Second Chamber) of 22 December 2010, nyr”, in Common Market Law Review, Vol. 49, 2012, pp. 682 a 684. De reparar, a este propósito, que a Advogada-Geral ELEANOR SHARPSTON também não se refere ao art. 4.º, n.º 2, do TUE ou ao conceito de “identidade (constitucional) nacional” nas suas Conclusões, tendo, contudo, considerado justificada e não desproporcionada a proibição da aquisição, posse ou utilização de títulos nobiliárquicos enquanto elementos integrantes do nome de uma pessoa à luz do “objectivo constitucional fundamental” prosseguido pela lei de abolição da nobreza austríaca – cfr. Conclusões da Advogada-Geral ELEANOR SHARPSTON, DE 14 de outubro de 2010, Processo C-208/09, Colet. 2010, p. I-13693, considerandos 59 a 65. (51) Cfr. acórdão Sayn-Wittgenstein, cit., considerandos 90 a 95. 152
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O caso é testemunho do “respeito mútuo” e da “inclusão construtiva” (52) de normas fundamentais oriundas de duas ordens jurídicas que convivem no mesmo espaço político – a lei da abolição da nobreza austríaca enquanto “elemento da identidade nacional” da República da Áustria e o direito à livre circulação e residência enquanto direito inerente ao estatuto de cidadão da União (53) que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tende a ser o “estatuto fundamental dos nacionais dos Estados-Membros” (54) –, indispensáveis a uma invocação não abusiva do art. 4.º, n.º 2, do TUE. Ainda no que concerne à metodologia da cláusula do respeito pela identidade (constitucional) nacional, a importância do acórdão também reside no facto de, sem surpresas, o Tribunal de Justiça ter reconduzido a invocação do art. 4.º, n.º 2, do TUE a um teste de proporcionalidade. No acórdão, o Tribunal de Justiça reconhece que o exercício do direito à livre circulação e residência reconhecido aos cidadãos da União Europeia pode ser restringido por razões (de ordem pública (55)) que expressam e concretizem, de forma proporcionada, a identidade de certo Estado-Membro, tal como refletida nas suas estruturas políticas e constitucionais fundamentais. Resulta, pois, do acórdão que um elemento da identidade (constitucional) nacional de um Estado-Membro pode ser considerado na ponderação de interesses legítimos que esse Estado pretende salvaguardar e de objetivos funda-
(52) Assim, BESSELINK, Leonard F. M., “Case C-208/09, Ilonka Sayn-Wittgenstein…”, cit., p. 698. (53) Muito embora Ilonka Sayn-Wittgenstein tenha invocado a livre prestação de serviços, consagrada no art. 56.º do TFUE, para impugnar a decisão das autoridades austríacas em retificarem o seu apelido, o órgão jurisdicional de reenvio circunscreveu a questão prejudicial ao direito de livre circulação e residência consagrado no art. 21.º do TFUE e o Tribunal de Justiça, em conformidade, esclareceu que a questão que se lhe colocava não se prendia em “saber se o facto de não reconhecer um nome adquirido legalmente noutro Estado-Membro é constitutivo de um entrave à livre prestação de serviços garantida pelo artigo 56.° TFUE” – cfr. acórdão Sayn-Wittgenstein, cit., considerandos 29, 35 e 41, respetivamente. (54) Afirmação primeiramente contida no acórdão Rudy Grzelczyk, de 20 de setembro de 2001, Processo C-184/99, Colet. 2001, p. I-6193, considerando 31, e sucessivamente retomada desde então. (55) É o próprio Tribunal de Justiça que qualifica a “justificação invocada pelo Governo austríaco relativamente à situação constitucional austríaca […] como uma invocação da ordem pública” – acórdão Sayn-Wittgenstein, cit., considerando 84. De notar que, neste caso, a exceção de ordem pública foi apreciada apenas tendo por norma de referência o art. 21.º do TFUE e não as disposições relevantes nesta matéria constantes da Diretiva 2004/38 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados-Membros (JO L 158, 30.04.2004, p. 77-123), em especial os seus arts. 27.º a 33.º. 153
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mentais prosseguidos a nível da União (56) – e não é outro o sentido do art. 4.º, n.º 2, do TUE. Ilustrativa deste teste de proporcionalidade é a jurisprudência do Tribunal de Justiça em sede de respeito pela diversidade linguística dos Estados-Membros. O Tribunal de Justiça teve recentemente a ocasião de associar o respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros com o respeito pela diversidade linguística na União. No acórdão Vardyn, depois de se referir ao art. 3.º, n.º 3, do TUE e ao art. 22.º da CDFUE, dos quais resulta que “a União respeita a riqueza da sua diversidade cultural e linguística”, o Tribunal de Justiça afirmou que, “[e]m conformidade com o artigo 4.º, n.º 2, TUE, a União respeita igualmente a identidade nacional dos seus Estados-Membros, da qual também faz parte a protecção da língua oficial nacional do Estado” (57). O Tribunal de Justiça parece afastar-se das leituras, referidas supra, que circunscrevem o âmbito de proteção do art. 4.º, n.º 2, do TUE às “estruturas políticas e constitucionais fundamentais” dos Estados-Membros, incluindo, pois, também a expressão de fenómenos culturais (58), desde logo linguísticos (59). Um dos primeiros casos nos quais o Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar-se acerca da diversidade linguística enquanto expressão da identidade de um Estado-Membro prendeu-se com a recusa da administração irlandesa em nomear Anita Groener, cidadã neerlandesa, para um lugar permanente de professora de arte após ter sido reprovada num exame destinado a avaliar os seus conhecimentos em língua irlandesa. No acórdão Groener (60), o Tribunal de Justiça foi sensível à “situação especial da Irlanda, do ponto de vista linguístico”, tal (56) Cfr. acórdão Sayn-Wittgenstein, cit., considerando 83. (57) Acórdão Vardyn, de 12 de maio de 2011, Processo C-391/09, Colet. 2011, p. I-3787, considerando 86. (58) Neste sentido também aponta a jurisprudência do Tribunal de Justiça pela qual objetivos de política cultural são suscetíveis de justificar restrições às liberdades económicas fundamentais, do que são exemplos os acórdãos Comissão contra República Francesa, de 26 de fevereiro de 1991, Processo C-154/89, Colet. 1991, p. I-659, considerando 17; Comissão contra República italiana, de 26 de fevereiro de 1991, Processo C-180/89, Colet. 1991, p. I-709, considerando 20; Comissão contra República helénica, de 26 de fevereiro de 1991, Processo C-198/89, Colet. 1991, p. I-727, considerando 21; Stichting Collectieve, de 25 de julho de 1991, Processo C-288/89, Colet. 1991, p. I-4007, considerandos 14 e 23; Vereniging Veronica Omroep Organisatie, de 3 de fevereiro de 1993, Processo C-148/91, Colet. 1993, p. I-145, considerando 10. A referência a tais casos é feita por SIMON, Denys, “L’identité constitutionnelle dans la jurisprudence de l’Union européenne”, cit., p. 33. (59) Sobre o respeito pela diversidade linguística como “aspecto essencial” do respeito pela identidade nacional dos Estados-Membros, cfr. Conclusões do Advogado-Geral MIGUEL POIARES MADURO, de 16 de dezembro de 2004, Processo C-160/03 (acórdão Espanha contra Eurojust), Colet. 2005, p. I-2077, considerandos 24 e 34 a 38. (60) Acórdão Groener, de 28 de novembro de 1989, Processo 379/87, Colet. 1989, p. 3967. 154
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como resultava da respetiva Constituição, pela qual a língua irlandesa era a primeira língua oficial do Estado (sendo a língua inglesa a segunda), bem como à “política seguida desde há muitos anos pelos governos irlandeses”, no sentido de apoiar e promover a utilização da língua irlandesa “como forma de expressão da identidade e cultura nacionais”, já que a mesma não era falada por toda a população irlandesa (61). Foi por isso que, atendendo à importância do ensino para a execução de tal política linguística, o Tribunal de Justiça aceitou como justificada a exigência de que os professores tivessem um conhecimento adequado da língua irlandesa, desde que “a exigência linguística em causa se insira no âmbito de uma política de promoção da língua nacional, que é também a primeira língua oficial, e que esta exigência seja aplicada de modo proporcionado e não discriminatório” (62). Exigências linguísticas também foram aceites pelo Tribunal de Justiça em outros domínios para além do ensino. No acórdão UTECA, a propósito da legislação espanhola em matéria de televisão e cinematografia que impunha aos operadores televisivos o dever de afetarem parte das suas receitas ao financiamento de produções cinematográficas ou televisivas que tivessem como língua oficial uma das línguas oficiais de Espanha, o Tribunal de Justiça, tendo por ponto de partida a jurisprudência Groener, considerou as “razões culturais de defesa do multilinguismo espanhol” avançadas pelo Governo espanhol como “razões imperiosas de interesse geral” suscetíveis de justificar uma restrição a várias liberdades fundamentais, tendo considerado, inclusivamente, a medida adequada à prossecução do objetivo proposto e não desproporcional, uma vez que, em termos práticos, aquela obrigação dizia respeito a apenas 3% das receitas de exploração dos operadores abrangidos, não tendo sido apresentados no decurso do processo elementos que permitissem concluir que a percentagem fosse desproporcionada face ao objetivo prosseguido (63).
(61) Cfr. acórdão Groener, cit., considerandos 17 e 18, respetivamente. (62) Acórdão Groener, cit., considerando 24; cfr., ainda, considerandos 19 e 20. No que toca às condições de proporcionalidade e de não discriminação, o Tribunal de Justiça referiu, por um lado, que o nível de conhecimento exigido devia ser proporcional ao objetivo prosseguido (considerando 21), e, por outro, que não seria de exigir que os conhecimentos linguísticos tivessem sido obtidos no território nacional e que as disposições nacionais que previam a possibilidade de dispensa dessa exigência linguística, quando não houvesse candidato plenamente qualificado ao emprego a preencher, fossem aplicadas de modo não discriminatório (considerandos 22 e 23). (63) Acórdão Unión de Televisiones Comerciales Asociadas (UTECA), de 5 de março de 2009, Processo C-222/07, Colet. 2009, p. I-1407, considerandos 24 a 40. O Tribunal de Justiça não se refere no acórdão ao multilinguismo espanhol como expressão da identidade e da cultura nacionais, provavelmente porque, contrariamente ao que sucedeu no caso Groener, o Governo espanhol também não o fez. A referência, ainda que indireta, foi feita pela Advogada-Geral 155
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No já referido acórdão Vardyn, colocou-se a questão da compatibilidade com as disposições de direito da União Europeia em matéria de cidadania das regras lituanas relativas à grafia dos apelidos e dos nomes próprios (64). Tais regras previam que os apelidos e os nomes próprios de uma pessoa só podiam ser transcritos nos atos de registo civil numa forma que respeitasse as regras de grafia da língua oficial nacional – o lituano. A aplicação de tais regras no caso concreto teve por consequência que a transcrição do apelido e do nome próprio de Malgožata Runevič-Vardyn, cidadã lituana que fazia parte da minoria polaca da República da Lituânia, tivesse sido feita, desde o nascimento e após o seu casamento, utilizando exclusivamente caracteres lituanos (65). No acórdão, o Tribunal de Justiça atendeu os argumentos do Governo lituano – sublinhando que “a língua lituana constitui um valor constitucional que preserva a identidade da nação, contribui para a integração dos cidadãos, assegura a expressão da soberania nacional, a indivisibilidade do Estado assim como o bom funcionamento dos serviços do Estado e das autarquias” – e, também referindo-se à jurisprudência Groener, considerou a proteção da língua oficial nacional prosseguido pela legislação lituana em causa “um objectivo legítimo susceptível de justificar restrições aos direitos de livre circulação e de permanência previstos no artigo 21.º TFUE”. Quanto ao resto, o Tribunal de Justiça devolveu ao órgão jurisdicional de reenvio a apreciação, tanto da existência de uma restrição ao exercício deste direito fundamental, como do caráter proporcional dessa restrição, de forma a assegurar um “equilíbrio equita-
JULIANE KOKOTT nas suas Conclusões: “(…) a Comunidade contribuirá para o desenvolvimento das culturas dos Estados-Membros, respeitando a sua diversidade nacional e regional, e pondo simultaneamente em evidência o património cultural comum (artigo 151.°, n.° 1, CE). Apoia a acção dos Estados-Membros, designadamente, no domínio da melhoria do conhecimento e da divulgação da cultura e da história dos povos europeus e da criação artística e literária no sector audiovisual (artigo 151.°, n.° 2, CE). O respeito e a promoção da diversidade das suas culturas devem nortear a Comunidade no âmbito de todas as suas acções (artigo 151.°, n.° 4, CE), ou seja, também ao legislar no domínio dos serviços audiovisuais; por último, constituem a expressão do respeito pela União Europeia da identidade nacional dos seus Estados-Membros (artigo 6.°, n.° 3, UE)” – Conclusões da Advogada-Geral KOKOTT, Juliane, de 4 de setembro de 2008, Processo C-222/07, Colet. 2009, p. I-1407 (acórdão UTECA), considerando 93. (64) O Tribunal de Justiça já havia sido chamado a pronunciar-se sobre a questão no acórdão Konstantidinis, de 30 de março de 1993, Processo C-168/91, Colet. 1993, p. I-1193, a propósito da transcrição em caracteres latinos do nome de um nacional grego residente na Alemanha; contudo, a questão foi abordada à luz do direito de estabelecimento e do interesse comercial do cidadão grego em não ver a pronúncia do seu nome deturpada e o seu nome confundido com o de outra pessoa. (65) Tendo sido recusados os seus pedidos de alteração dos seus nome próprio e apelido constantes da sua certidão de nascimento de “Malgožata Runevič” para “Małgorzata Runiewicz” e dos seus nome próprio e apelido constantes da sua certidão de casamento de “Malgožata Runevič-Vardyn” para “Małgorzata Runiewicz-Wardyn”. 156
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tivo” entre os interesses em presença – por um lado, o direito à livre circulação e residência e o direito ao respeito da vida privada e familiar (66) e, por outro, “a protecção legítima pelo Estado-Membro em causa da sua língua oficial nacional e das suas tradições” (67). Em outros casos, contudo, o teste da proporcionalidade não balanceou em favor dos interesses prosseguidos pelo Estado. Assim, por exemplo, no acórdão Comissão c. Luxemburgo – a propósito da lei luxemburguesa relativa à organização do notariado que reservava o acesso à profissão aos cidadãos luxemburgueses –, o Tribunal de Justiça rejeitou o argumento esboçado pelo Governo luxemburguês pelo qual, “sendo a utilização da língua luxemburguesa necessária no exercício das actividades do notário, o requisito de nacionalidade em causa visa[va] assegurar o respeito pela história, pela cultura, pela tradição e pela identidade luxemburguesas” na aceção do então art. 6.º, n.º 3, do TUE (68). Muito embora o Tribunal de Justiça tenha reconhecido que “a salvaguarda da identidade nacional dos Estados-Membros constitua um objectivo legítimo respeitado pela ordem jurídica da União, como reconhece, aliás, o artigo 4.º, n.º 2, TUE”, o interesse invocado pelo Governo luxemburguês podia ser “eficazmente salvaguardado por outros meios que não a exclusão, em termos gerais, dos nacionais dos outros Estados-Membros” do acesso à profissão de notário (69). (66) Pois, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, “o nome próprio e o apelido de uma pessoa não deixam de constituir um elemento da vida privada e familiar dessa pessoa enquanto meio de identificação pessoal e de conexão a uma família” – acórdão Vardyn, cit., considerando 66; e acórdão Sayn-Wittgenstein, cit., considerando 52 e jurisprudência aí referida. A este propósito, cfr. FERNANDES, Sophie Perez, “Artigo 7.º – Respeito pela vida privada e familiar” (comentário), in AA.VV., Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, SILVEIRA, Alessandra e CANOTILHO, Mariana (coord.), Coimbra, Almedina, 2013, pp. 109 a 112. (67) Cfr. acórdão Vardyn, cit., considerandos 83 a 93 e, em especial, considerandos 84, 87 e 91. O órgão jurisdicional de reenvio fez referência, no seu pedido de decisão prejudicial, a uma decisão do Tribunal Constitucional lituano, que o Tribunal de Justiça fez questão de mencionar, nos termos da qual “num passaporte, o nome próprio e o apelido de uma pessoa devem ser redigidos segundo as regras de grafia da língua oficial nacional, de modo a não pôr em causa o estatuto constitucional desta língua” (considerando 27). (68) Acórdão Comissão c. Luxemburgo, de 24 de maio de 2011, Processo C-51/08, Colet. 2011, p. I-4231, considerando 72. (69) Acórdão Comissão c. Luxemburgo, de 24 de maio de 2011, cit., considerando 124. Não era a primeira vez que o Governo luxemburguês lançava mão de um argumento desta natureza e que o Tribunal de Justiça o rejeitava. A propósito da exigência da nacionalidade luxemburguesa para o acesso a lugares de funcionário ou empregado público em vários sectores públicos, o Governo luxemburguês afirmou, relativamente ao sector do ensino, que a nacionalidade luxemburguesa dos professores era “necessária para garantir a transmissão dos valores tradicionais” e que constituía, por isso, “tendo em consideração a superfície deste Estado e a sua situação demográfica específica, uma condição essencial da salvaguarda da identidade nacional” que “não poderia ser preservada se a maior parte do corpo docente fosse constituída por nacionais comunitários não 157
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Também assim sucedeu no acórdão Michaniki. No caso, era questionada a compatibilidade com o direito (derivado) da União Europeia em matéria de contratação pública (70) das disposições de direito grego que instituíam uma incompatibilidade entre o sector dos meios de comunicação social e o sector dos contratos públicos; a própria Constituição grega determinava a incompatibilidade da qualidade de proprietário, sócio, acionista importante ou quadro dirigente de uma empresa de comunicação social com a qualidade de proprietário, sócio, acionista importante ou quadro dirigente de uma empresa que tivesse para com o Estado ou outra pessoa coletiva pública a responsabilidade da execução de obras, de fornecimentos ou de prestações de serviços. No acórdão, o Tribunal de Justiça admitiu a referida causa de exclusão, juntamente com as causas de exclusão taxativamente enumeradas na diretiva em causa, na medida em que tinha por fim garantir o respeito dos princípios da transparência e de igualdade de tratamento dos concorrentes (71). Para tal, teve em consideração a margem de apreciação reconhecida aos Estados-Membros para, “à luz de considerações históricas, jurídicas, económicas ou sociais que lhe são próprias”, adotar medidas tendentes à concretização daqueles princípios, não pondo em causa a apreciação concretamente feita pelo Estado grego, “em função do contexto que lhe é próprio”, acerca dos riscos de interferência do poder dos meios de comunicação social nos procedimentos de adjudicação dos contratos públicos (72). Contudo, não considerou a medida de exclusão em causa proporcional em virtude do seu caráter automático e absoluto. As normas em causa, que instituíam uma incompatibilidade geral entre o sector das obras públicas e o sector dos meios de comunicação social, tinham como consequência “excluir da adjudicação de contratos públicos determinados empreiteiros também envolvidos no sector dos meios de comunicação social por serem proprietários, accionistas importantes, sócios ou directoluxemburgueses”. Ao argumento, o Tribunal de Justiça retorquiu que, mesmo que a “identidade nacional dos Estados-Membros [constituísse] um objectivo legítimo respeitado pela ordem jurídica comunitária”, o interesse invocado podia, “mesmo em sectores particularmente sensíveis como é o caso do ensino, ser eficazmente salvaguardado por outros meios que não a exclusão, em termos gerais, dos nacionais dos outros Estados-Membros”, até porque, tal como os nacionais luxemburgueses, também os nacionais de outros Estados-Membros teriam de “preencher todas as condições exigidas para o recrutamento, nomeadamente as respeitantes à formação, experiência e conhecimentos linguísticos” – cfr. acórdão Comissão c. Luxemburgo, de 2 de julho de 1996, Processo C-473/93, Colet. 1996, p. I-3207, considerandos 32 e 35, respetivamente. (70) Em especial, com a Diretiva 93/37/CEE do Conselho, de 14 de junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas (JO L 199, 09.08.1993, p. 54-83). (71) Cfr. acórdão Michaniki, de 16 de dezembro de 2008, Processo C-213/07, Colet. 2008, p. I-9999, considerando 49. (72) Cfr. acórdão Michaniki, cit., considerandos 55 a 60. 158
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res, sem lhes dar a mínima possibilidade de demonstrarem (…) que, no seu caso, não existe um risco” de ocorrência de práticas suscetíveis de ameaçar a transparência e de falsear a concorrência. A norma (constitucional) nacional ia, pois, para além do necessário para alcançar os objetivos de transparência e de igualdade de tratamento (73). Mas não só de questões de ordem substancial é feita a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros. Também questões que relevam da organização constitucional de certos Estados-Membros têm sido objeto de apreciação à luz do direito da União Europeia (74). Cabe recordar, a este propósito, a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça pela qual “uma autoridade de um Estado-Membro não pode invocar disposições, práticas ou situações da sua ordem jurídica interna, incluindo as que decorrem da organização constitucional desse Estado, para justificar a inobservância das obrigações resultantes do direito comunitário”, jurisprudência retomada no acórdão Gouvernement de la Communauté française e Gouvernement wallon con-
(73) Cfr. acórdão Michaniki, cit., considerandos 61 a 69. (74) Cfr., também, acórdão Comissão contra Alemanha, de 9 de março de 2010, Processo C-518/07, Colet. 2010, p. I-1885. No caso, a Alemanha alegou que o estabelecimento de uma autoridade pública de controlo para fiscalizar o tratamento de dados pessoais que exercesse as suas funções “com total independência”, nos termos do art. 28.º, n.º 1, 2.º parágrafo, da Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (JO L 281, 23.11.1995, p. 31-50), era contrário ao princípio democrático tal como consagrado na respetiva Constituição, para além de obrigar à adoção de um “sistema estranho à sua ordem jurídica” e ao abandono de um “um sistema de controlo eficaz que dá provas há quase trinta anos e que tem sido um exemplo no domínio da legislação em matéria de protecção de dados, cuja reputação ultrapassou as fronteiras nacionais” (considerandos 39, 40 e 54). No entendimento da República Federal da Alemanha, na medida em que as autoridades de controlo em matéria de proteção das pessoas no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais dispõem de determinados poderes de intervenção em relação aos cidadãos, era “absolutamente necessário um controlo alargado da legalidade das suas actividades através de meios de controlo da legalidade ou do mérito”, não sendo suficiente o controlo dos órgãos jurisdicionais competentes (considerando 40). A República Federal da Alemanha não formulou o argumento como uma questão de identidade (constitucional) nacional mas apenas como uma questão de respeito pelo princípio democrático e de respeito por práticas nacionais assentes no que toca à organização e ao funcionamento do seu sistema jurídico – como notam BOGDANDY, Armin von e SHILL, Stephan, “Overcoming Absolute Supremacy…”, cit., p. 1443 (nota 132). Por isso, o Tribunal de Justiça não teve grandes dificuldades em não acolher o argumento, na medida em que, por um lado, o princípio da democracia, que também “emana da ordem jurídica comunitária e foi consagrado expressamente no artigo 6.º, n.º 1, UE como um dos fundamentos da União Europeia”, não obsta “à existência de autoridades públicas fora do âmbito da administração hierárquica clássica e mais ou menos independentes do governo”, nomeadamente em sede proteção de dados pessoais, e, por outro, a exigência de independência em causa, no sentido de que se opõe a uma tutela do Estado, não excedia o que era necessário para atingir os objetivos fixados (considerandos 41, 42 e 55). 159
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tre Gouvernement flamand no âmbito de um litígio entre várias entidades federadas do Reino da Bélgica (75). Em causa estava a legislação vigente na Comunidade Flamenga que limitava a inscrição num regime de segurança social, e o consequente direito às prestações previstas por este regime, às pessoas que residiam ou exerciam uma atividade profissional em território flamengo. O Tribunal de Justiça considerou que a referida legislação restringia o exercício dos direitos de livre circulação de trabalhadores e de estabelecimento, na medida em que os trabalhadores que exerciam ou pretendiam exercer uma atividade profissional, assalariada ou não, na Bélgica podiam ser dissuadidos de fazer uso da sua liberdade de circulação e de deixar o seu Estado-Membro de origem em razão de a sua instalação em determinadas partes do território belga comportar a perda da possibilidade de beneficiarem de prestações a que, de outro modo, poderiam ter direito (76). Para além disso, o Tribunal de Justiça não acolheu o argumento tecido pelo Governo flamengo relativo às “exigências inerentes à repartição dos poderes no seio da estrutura federal belga” que impossibilitavam a Comunidade Flamenga de “exercer qualquer competência em matéria de seguro de assistência relativamente a pessoas que residam no território de outras comunidades linguísticas do Reino da Bélgica” (77). O argumento não foi suficientemente forte para justificar a restrição à livre circulação de trabalhadores e à liberdade de estabelecimento resultante da legislação em causa (78). Assim, apesar da neutralidade da ordem jurídica da União em relação à configuração da organização dos Estados-Membros (79), a mesma não pode servir de “álibi” para estes se furtarem ao cumprimento das obrigações decorrentes do direito da União Europeia (80). Nos casos acabados de mencionar (e outros existiriam), o respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros serviu, com ou sem sucesso, de fundamento para o não cumprimento de uma obrigação decorrente (75) Acórdão Gouvernement de la Communauté française e Gouvernement wallon contre Gouvernement flamand, de 1 de abril de 2008, Processo C-212/06, Colet. 2008, p. I-1683, considerando 58 e jurisprudência aí referida. (76) Cfr. Acórdão Gouvernement de la Communauté française e Gouvernement wallon contre Gouvernement flamand, cit., considerandos 47 a 54. (77) Acórdão Gouvernement de la Communauté française e Gouvernement wallon contre Gouvernement flamand, cit., considerando 57. (78) Cfr. Acórdão Gouvernement de la Communauté française e Gouvernement wallon contre Gouvernement flamand, cit., considerandos 47 a 54. (79) Assim, Conclusões da Advogada-Geral VERICA TRSTENJAK, de 16 de julho de 2009, Processo C-428/07 (acórdão Horvath) Colet. 2009, p. I-6355, considerando 96. (80) SIMON, Denys, “L’identité constitutionnelle dans la jurisprudence de l’Union européenne”, cit., p. 35. 160
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do direito da União Europeia, ora como fundamento autónomo, ora reconduzindo-se à clássica exceção de ordem pública (81). Mas o respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros é igualmente suscetível de ser invocado como fundamento invalidante do direito da União Europeia. Como foi referido, tratando-se de uma obrigação que impende sobre a União, a cláusula do respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros consagrada no art. 4.º, n.º 2, do TUE não reveste importância meramente política, mas assume sobretudo valor jurídico, o que pode implicar, por um lado, o não cumprimento de alguma obrigação decorrente do direito da União Europeia por algum Estado-Membro, de forma a preservar a sua identidade (constitucional) nacional, ou, por outro lado, a invalidade de um ato jurídico da União que atente contra a identidade (constitucional) de um Estado-Membro (82). Trata-se de um desfecho que ainda paira no mundo das conjeturas doutrinais (83). Antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, é possível apontar, neste contexto, um conjunto de recursos de anulação interpostos junto do Tribunal Geral pela República italiana com fundamento na não publicação de um conjunto de documentos em todas as línguas oficiais da União (84). A República italiana alegava, entre outros, a violação do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, bem como do, então, art. 6.º, n.º 3, do TUE relativo ao respeito pela identidade nacional dos Estados-Membros. Num dos referidos casos, depois de ter afastado a violação do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, o Tribunal Geral apenas declarou que tão-pouco havia violação do art. 6.º, n.º 3, do TUE que “se limita a indicar que a União respeita as (81) A distinção é de GUASTAFERRO, Barbara, Beyond the Exceptionalism of Constitutional Conflicts…, cit., pp. 34 a 41. (82) Sobre as implicações da cláusula do respeito pela identidade (constitucional) dos Estados-Membros como “norma de referência do controlo da legalidade” dos atos jurídicos da União, cfr. PLATON, Sébastian, “Le respect de l’identité nationale des États Membres: frein ou recomposition de la gouvernance?”, in Revue de l’Union européenne, n.º 556, 2012, pp. 150 a 158. (83) Assim, cfr. SILVEIRA, Alessandra, “União Europeia: da unidade jurídico-política do ordenamento composto (ou da estaca em brasa no olho do ciclope Polifemo”, in Direito da União Europeia e Transnacionalidade, SILVEIRA, Alessandra (coord.), Lisboa, Quid Iuris, 2010, p. 18 (nota 20 e doutrina aí referida). (84) Cfr. acórdão República italiana contra Comissão, de 13 de setembro de 2010, Processos apensos T-166/07 e T-285/07, Colet. 2010, p. II- II-193 (anulação de avisos de concursos gerais para o recrutamento de administradores e assistentes); acórdão República italiana contra Comissão, de 3 de fevereiro de 2011, Processo T-205/07, Colet. 2011, p. II-15 (anulação de um convite à manifestação de interesse para a constituição de uma base de dados de candidatos a recrutar como agentes contratuais); e acórdão República italiana contra Comité Económico e Social Europeu, de 31 de março de 2011, Processo T-117/08, Colet. 2011, p. II- 1463 (anulação de um aviso de vaga para o recrutamento do secretário-geral do Comité Económico e Social Europeu) (publicações sumárias; o texto integral dos acórdãos foi consultado na sua versão francesa). 161
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identidades nacionais” (85). Se bem que o Tribunal Geral tenha considerado a alegada violação do art. 6.º, n.º 3, do TUE de forma autónoma em relação a todos os demais fundamentos deduzidos pela República italiana, também rejeitou “lapidarmente” o argumento, quase negando qualquer alcance realmente vinculativo ao princípio (86). Após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, regista-se, também, uma tentativa de utilização da cláusula do art. 4.º, n.º 2, do TUE como fundamento invalidante do direito da União Europeia. No caso Affatato, o Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar-se sobre a interpretação do art. 5.º do acordo-quadro relativo a contratos de trabalho a termo, o qual impõe aos Estados-Membros a adoção de um conjunto de medidas tendentes a evitar abusos decorrentes da conclusão de sucessivos contratos de trabalho a termo (87). A dúvida do órgão jurisdicional de reenvio prendia-se com a compatibilidade com este preceito do regime de direito italiano aplicável aos contratos de trabalho celebrados com a Administração Pública, que proíbe, mesmo em caso de abuso resultante da utilização de sucessivos contratos de trabalho a termo, que estes sejam transformados em contrato de trabalho de duração indeterminada. A dúvida não era inédita e revestia dimensão constitucional. No acórdão Marrosu e Sardino, ao qual o Tribunal de Justiça faz referência no despacho Affatato, é dado conta que a norma italiana em causa havia sido declarada, pelo Tribunal Constitucional italiano, conforme com “os princípios constitucionais da igualdade e da boa administração”; a Corte costituzionale havia considerado, inclusivamente, que “o princípio fundamental segundo o qual o acesso aos empregos nos organismos públicos se efectua por concurso, em aplicação do artigo 97.º, n.º 3, da (…) Constituição, torna legítima a diferença de tratamento entre os trabalhadores do sector privado e os trabalhadores da (85) Acórdão República italiana contra Comissão, de 13 de setembro de 2010, cit., considerando 90 (tradução livre). (86) Neste sentido, cfr. PLATON, Sébastian, “Le respect de l’identité nationale des États Membres…”, cit., p. 153. (87) O art. 5.º, n.º 1, do acordo-quadro relativo a contratos de trabalho a termo, celebrado em 18 de março de 1999, que figura em anexo à Diretiva 1999/70/CE do Conselho, de 28 de junho de 1999, respeitante ao acordo-quadro CES, UNICE e CEEP relativo a contratos de trabalho a termo (JO L 175, 10.07.1999, pp. 43-48), dispõe o seguinte: “Para evitar os abusos decorrentes da conclusão de sucessivos contratos de trabalho ou relações laborais a termo e sempre que não existam medidas legais equivalentes para a sua prevenção, os Estados-Membros, após consulta dos parceiros sociais e de acordo com a lei, acordos colectivos ou práticas nacionais, e/ou os parceiros sociais deverão introduzir, de forma a que se tenham em conta as necessidades de sectores e/ou categorias de trabalhadores específicos, uma ou várias das seguintes medidas: a) Razões objectivas que justifiquem a renovação dos supramencionados contratos ou relações laborais; b) Duração máxima total dos sucessivos contratos de trabalho ou relações laborais a termo; c) Número máximo de renovações dos contratos ou relações laborais a termo”. 162
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Administração Pública, no caso de se verificar a existência de uma irregularidade na celebração de contratos a termo sucessivos” (88). O que resulta interessante do caso Affatato é que o órgão jurisdicional de reenvio, confirmando-se a incompatibilidade entre a norma nacional em causa e o art. 5.º do acordo-quadro, pretendia igualmente saber se este não seria suscetível de afetar as estruturas políticas e constitucionais fundamentais do Estado italiano, bem como as suas funções essenciais, na aceção do art. 4.°, n.º 2, do TUE (89). Por outras palavras, o órgão jurisdicional italiano pretendia que o Tribunal de Justiça se pronunciasse acerca da eventual violação do art. 4.º, n.º 2, do TUE por uma disposição de direito da União Europeia. Na sua resposta, o Tribunal de Justiça, apoiando-se em jurisprudência anterior, nomeadamente no referido acórdão Marrosu e Sardino, afastou o conflito normativo conjeturado pelo órgão jurisdicional de reenvio. O art. 5.º do acordo-quadro deixa uma certa margem de apreciação aos Estados-Membros no que toca à prevenção de abusos decorrentes da conclusão de sucessivos contratos de trabalho a termo: dele não resulta, por um lado, uma “obrigação geral de os Estados-Membros preverem a conversão dos contratos de trabalho a termo em contratos sem termo”, nem se opõe, por outro, “a que um Estado-Membro preveja consequências diferentes para o abuso decorrente da utilização de contratos ou relações de trabalho a termo sucessivos, consoante esses contratos ou relações de trabalho tenham sido celebrados com uma entidade patronal privada ou com uma entidade patronal pública” (90). Assim, o art. 5.º do acordo-quadro não obsta à regulamentação italiana em causa, desde que, no ordenamento jurídico interno, existam medidas efetivas para prevenir e sancionar a utilização abusiva pela administração pública de sucessivos contratos de trabalho a termo (91). Consequentemente, o art. 5.º do acordo-quadro, “enquanto tal”, não é “susceptível de afectar em nada as estruturas políticas
(88) Acórdão Marrosu e Sardino, de 7 de setembro de 2006, Processo C-53/04, Colet. 2006, p. I-7213, considerando 16. (89) Cfr. despacho Affatato, de 1 de outubro de 2010, Processo C-3/10, Colet. 2010, p. I-121 (publicação sumária; o texto integral do despacho foi consultado na sua versão francesa), considerandos 21 e 36. Doze das dezasseis questões prejudiciais formuladas foram julgadas inadmissíveis (considerandos 24 a 33), tendo o Tribunal de Justiça respondido às restantes à luz de jurisprudência anterior (considerando 35). (90) Acórdão Marrosu e Sardino, cit., considerandos 47 e 48, retomados no despacho Affatato, cit., considerandos 38 e 40, respetivamente. (91) Cfr. despacho Affatato, cit., considerandos 42 a 50, bem como ponto 2, 1.º travessão da publicação sumária em português. 163
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e constitucionais fundamentais, nem as funções essenciais do Estado-Membro em questão, na acepção do artigo 4.º, n.º 2, do TUE” (92). O despacho Affatato não é senão mais um exemplo da forma como o Tribunal de Justiça tem vindo a reduzir e a lidar com os potenciais conflitos entre a ordem jurídica da União e as ordens jurídicas (constitucionais) nacionais, ora desconstruindo o alegado conflito, ora minimizando os seus efeitos por via do teste da proporcionalidade. É esta a metodologia discursiva própria do “direito contrapontual” avançada por MIGUEL POIARES MADURO, como se deu conta no início do presente texto. Isto não quer dizer que o potencial invalidante do art. 4.º, n.º 2, do TUE seja meramente ilusório – o que minaria a afirmação da União Europeia como União de Direito; apenas significa que se concretizará em situações de caráter excecional, situações para as quais um teste de proporcionalidade é igualmente imprescindível: só a violação desproporcional da identidade (constitucional) nacional de um Estado-Membro constitui fundamento invalidante do ato jurídico da União em causa (93), invalidade a reconhecer pelo Tribunal de Justiça, que goza para tal de competência exclusiva (94). Assim, da mesma forma que apenas a ponderação de valores constitucionais fundamentais, concretizados de forma proporcional a nível interno, pode justificar o não cumprimento de uma obrigação decorrente do direito da União Europeia por um certo Estado-Membro, também apenas a violação desproporcionada de tais valores constitucionais fundamentais é suscetível de invalidar um ato jurídico da União Europeia.
(92) Despacho Affatato, cit., ponto 2, 2.º travessão da publicação sumária em português, e considerando 41 do despacho. (93) Neste sentido, cfr. BOGDANDY, Armin von e SHILL, Stephan, “Overcoming Absolute Supremacy…”, cit., pp. 1441 e 1443; e GUASTAFERRO, Barbara, Beyond the Exceptionalism of Constitutional Conflicts…, cit., p. 63. A situação de “ruptura constitucional” poderia ser de tal gravidade que “afectasse por completo a relação constitucional entre a União Europeia e o Estado-membro e suscitasse assim a hipótese de denúncia por este do tratado que vincula o Estado-membro à União Europeia”, como refere MADURO, Miguel Poiares, A Constituição Plural…, cit., p. 51. De notar que, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, ficou, pela primeira vez, consagrada a possibilidade de um Estado-Membro se retirar da União mediante um acordo negociado (art. 50.º do TUE), hipótese que, concordando com as palavras de ALESSANDRA SILVEIRA, se “revela, nas actuais circunstâncias de dependência económico-financeira, tão simbólica quanto impraticável” – SILVEIRA, Alessandra, “União Europeia: da unidade jurídico-política do ordenamento composto…”, cit., p. 20. (94) O que ficou particularmente claro desde a prolação do acórdão Foto-Frost, de 22 de outubro de 1987, Processo 314/85, Colet. 1987, p. I-4199, considerandos 17 a 20. 164
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V. Conclusão – um método discursivo e construtivo para o respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros Pretendeu-se com esta exposição indagar de que forma tem o Tribunal de Justiça contribuído para o debate em torno do respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros que ganhou novo fôlego com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa e, em especial, da nova formulação dada ao art. 4.º, n.º 2, do TUE. Resulta da jurisprudência selecionada que em nenhum caso a cláusula em apreço poderá ser entendida como uma deferência absoluta perante toda e qualquer norma constitucional ou especificidade nacionais (95) – mas sim como uma deferência discursiva à identidade (constitucional) dos Estados-Membros, pautado por um teste de proporcionalidade indispensável à garantia da coerência e da integridade da ordem jurídica da União Europeia. A jurisprudência Costa/ENEL e Internationale Handelsgesellschaft continua, pois, de atualidade e as normas constitucionais nacionais não escapam ao primado do direito da União Europeia (96) – “não há qualquer «cedência» do princípio do primado do direito da União, pois é o próprio direito da União quem reconhece e autoriza o respeito às identidades nacionais” (97). O art. 4.º, n.º 2, do TUE não introduz um novo equilíbrio nas relações constitucionais entre a União e os Estados-Membros, que seria mais favorável ou tolerante às reivindicações identitárias destes – surge, sim, como a expressão atual do pluralismo que sempre caracterizou a construção jurídica da União Europeia.
(95) Neste sentido, cfr. BOGDANDY, Armin von e SHILL, Stephan, “Overcoming Absolute Supremacy…”, cit., pp. 1430 e 1431; e BESSELINK, Leonard F. M., “National and constitutional identity before and after Lisbon”, cit., pp. 48 e 49. (96) De tal é exemplo o caso que deu origem ao acórdão Michaniki: o facto de a norma nacional em causa concretizar uma específica norma constitucional grega, não impediu o Tribunal de Justiça de considerar que impunha uma restrição desproporcional às obrigações impostas pelo direito da União Europeia em matéria de contratação pública. Da mesma forma, no acórdão Melki no que toca ao procedimento incidental de fiscalização da constitucionalidade previsto pela Constituição francesa, na medida em que o caráter prioritário desse procedimento tinha como consequência impedir que os órgãos jurisdicionais nacionais exercessem a sua faculdade ou cumprissem a sua obrigação de submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça nos termos do art. 267.º do TFUE (cfr. acórdão Melki, de 22 de junho de 2010, Processos apensos C-188/10 e C-189/10, Colet. 2010, p. I-5667), ou ainda no acórdão Tanja Kreil relativamente à norma constitucional alemã que excluía as mulheres dos empregos militares que incluíam a utilização de armas por violação do princípio da não discriminação em razão do género (cfr. acórdão Tanja Kreil, de 10 de janeiro de 2000, Processo C-285/98, Colet., p. I-69). (97) SILVEIRA, Alessandra, “Artigo 52.º – Âmbito e interpretação dos direitos e dos princípios” (comentário), in AA.VV., Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, cit., p. 600. 165
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A cláusula do art. 4.º, n.º 2, do TUE deve igualmente ser compreendida como uma deferência construtiva à identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros. Como ensina MARCELO NEVES, “ordens jurídicas isoladas são evidentemente levadas, especialmente mediante os seus tribunais supremos ou constitucionais, a considerar em primeiro plano a sua identidade”. Em termos metodológicos, torna-se “indispensável a reconstrução da «identidade constitucional» por força de uma consideração permanente da alteridade”, ou seja, que a identidade seja “rearticulada a partir da alteridade” (98). É claro que tal modelo coloca um “delicado desafio teorético”, mas “corresponde certamente a uma solução preferível ao modelo metódico top down e à eterna disputa pela última instância decisória no processo de integração europeu” (99). Daí que à questão de saber quem decide acerca da identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros não possa ser dada outra resposta a não ser “diálogo de jurisdições”. Não existindo hierarquia neste diálogo, é claro, contudo, o destaque assumido pelo Tribunal de Justiça. Maestro da composição plural do ordenamento jurídico da União Europeia, é ele que se encontra mais bem situado para evitar um abuso de “exceções constitucionais nacionais” ao abrigo do art. 4.º, n.º 2, do TUE, ou seja, para evitar que as reivindicações identitárias dos Estados-Membros obstaculizem a realização dos objetivos fundamentais da União – impedir, no fundo, que reivindicações identitárias nacionais assumam tendências fragmentárias e sirvam de escudo para os Estados-Membros se eximirem do cumprimento de toda e qualquer obrigação decorrente do direito da União Europeia. O Tribunal de Justiça tem-se mostrado recetivo a este diálogo de jurisdições – e os exemplos mencionados o ilustram. Mostra-se especialmente atento aos casos em que exista algum pronunciamento da instância constitucional do Estado-Membro em causa sobre o problema levantado, de que são exemplos o acórdão Sayn-Wittgenstein e o despacho Affatato jurisprudencialmente contextualizado, nomeadamente à luz do acórdão Marrrosu e Sardino, ou em que exista consenso da parte das autoridades públicas, jurisdicionais e outras, quanto ao conteúdo da identidade (constitucional) nacional do Estado-Membro em causa, de que é exemplo o acórdão Groener. Mas também combate as reivindicações identitárias suscetíveis de pôr em causa a efetividade do direito da União Euro(98) NEVES, Marcelo, Transconstitucionalismo, 1.ª edição, São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 272. (99) Assim explica, referindo-se a MARCELO NEVES, SILVEIRA, Alessandra, “Da interconstitucionalidade na União Europeia (ou do esbatimento de fronteiras entre ordens jurídicas”, cit., p. 221. 166
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peia, de que são exemplos os acórdãos Comissão c. Luxemburgo e Gouvernement de la Communauté française e Gouvernement wallon contre Gouvernement flamand, ou que a invocação de normas constitucionais nacionais seja instrumentalizada pelos Estados-Membros em ordem a eximirem-se do cumprimento do direito da União Europeia em determinados domínios, do que é exemplo o acórdão Michaniki. O art. 4.º, n.º 2, do TUE chama a atenção para a imperiosa valoração e devida ponderação, não só das especificidades que fazem o “coração” de cada Estado-Membro, mas também do caráter específico da integração europeia e do direito da União – e para um método discursivo e construtivo de identidades, mais do que a deliberação de uma última instância decisória (100), para uma “postura de alteridade orientada pela reflexividade permanente em face das ordens jurídicas com que se esteja a interagir” (101). O pluralismo jurídico da União Europeia implica não só a consideração da existência de distintas ordens jurídicas, mas também – ou principalmente – dos laços de interdependência existentes entre elas. É a razão pela qual a cláusula do respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros não pode deixar de ser equacionada e metodologicamente posta em prática senão à luz do princípio da cooperação leal, fundamento identitário último da própria União Europeia. À luz deste princípio, a cláusula do respeito pela identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros implica, do lado da União, a promoção do pluralismo que lhe é característico, que é parte da identidade europeia. Não é por acaso que o lema da União seja precisamente “unidade na diversidade”, “fórmula que convoca um equilíbrio difícil entre integração e autonomia, mas que, no discurso europeu oficial, é assumida com confiança como o traço distintivo da empresa europeia e a chave do seu sucesso” (102). A identidade europeia é, pois, uma “identidade de identidades” – e o povo europeu um “povo de
(100) Neste sentido, MARCELO NEVES conclui que “o método transconstitucional precisa desenvolver-se na busca de contruir “pontes de transição” que possibilitam um relacionamento mais construtivo (ou menos destrutivo) entre ordens jurídicas, mediante a articulação pluridimensional de seus princípios e regras em face de problemas jurídico-constitucionais comuns, dependentes de soluções suportáveis para todas as ordens envolvidas, sem uma última instância decisória. Antes do que de autoridade, o transconstitucionalismo precisa de método”. – NEVES, Marcelo, Transconstitucionalismo, cit., p. 277. (101) SILVEIRA, Alessandra, “Da interconstitucionalidade na União Europeia…”, cit., p. 222. (102) JERÓNIMO, Patrícia, “Artigo 22.º – Diversidade cultural, religiosa e linguística” (comentário), in AA.VV., Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, cit., p. 269. 167
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outros” (103). Por seu turno, implica que os Estados-Membros lancem mão da cláusula do art. 4.º, n.º 2, do TUE para salvaguardar o que lhes é nuclear e distintivo – mas apenas com esse fim, sem com isso pôr em perigo a realização dos objetivos fundamentais da União. Como explica MIGUEL POIARES MADURO, o pluralismo que define a essência da construção jurídica da União Europeia implica que “todo o ordenamento jurídico (nacional ou europeu) deve respeitar a identidade e a reivindicação normativa dos outros ordenamentos jurídicos; a sua identidade não deve ser afirmada de forma que desafie quer a identidade normativa dos outros ordenamentos jurídicos, quer a concepção pluralista do próprio ordenamento jurídico europeu” (104). Por outras palavras, ao lançar mão da cláusula do respeito pela identidade (constitucional) nacional, os Estados-Membros deverão ter em conta que a sua participação na empresa europeia também integra, ela própria, a sua identidade constitucional nacional (105). A questão está em promover uma lógica integradora da identidade (106). Regressando ao ponto inicial, não se pode perder de vista (ou do ouvido…) que União e Estados-Membros são linhas melódicas igualmente diferentes que, unidos, têm por objetivo formar um todo harmonioso…
(103) WEILER, Joseph, “In defense of the status quo: Europe’s constitutional Soderweg”, cit., p. 20. (104) MADURO, Miguel Poiares, A Constituição Plural…, cit., p. 41. (105) Neste sentido, ARMIN VON BOGDANDY e STEPHAN SHILL, referindo-se aos tribunais constitucionais nacionais, sublinham que “national constitutional courts must be aware of their responsability not only for the integrity of their domestic constitutional legal order, but also for the constitutional order of the Union” – cfr. BOGDANDY, Armin von e SHILL, Stephan, “Overcoming Absolute Supremacy…”, cit., p. 1451. (106) Neste sentido, cfr. SIMON, Denys, “L’identité constitutionnelle dans la jurisprudence de l’Union européenne”, cit., p. 41. 168
O direito das contraordenações e o princípio da proibição da reformatio in pejus: em especial, a Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, o Código dos Valores Mobiliários e o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras
Tiago Lopes de Azevedo
Sumário: Introdução. I. O princípio sancionatório da proibição da reformatio in pejus. 1. Natureza jurídica. 2. Aproximação histórica. 2.1. No direito português. 2.2. No direito comparado. II. O direito sancionatório contraordenacional. 1. Natureza jurídica. 2. O direito internacional e o direito contraordenacional. III. A proibição da reformatio in pejus no direito sancionatório contraordenacional. 1. Regra geral: o art. 72.º-A do Regime Geral das Contraordenações. 2. Exceção: A Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, o Código dos Valores Mobiliários e o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras. 3. Doutrina existente divergente. 4. Posição defendida. 4.1. Manutenção de garantias de defesa do arguido. 4.2. Procura da verdade material. 4.3. Celeridade processual. 4.4. Posição seguida. Bibliografia.
Introdução O direito das contraordenações tem andado esquecido da Academia. Urge laborar neste singular ramo de direito sancionatório uma orientação sistemática, doutrinariamente sedimentada e não votada ao abandono e à disposição de evidentes conveniências económicas estaduais sem ligação a verdadeiras finalidades sancionatórias (1). Reflexo desta avidez tributária, que atravessa de fio a pavio o poder legislativo, é precisamente o abandono cada vez mais frequente de um dos princípios que julgávamos estar devidamente sedimentado na ordem jurídica portuguesa. Mas não está. Aliás, o acolhimento da reformatio in pejus vai surgindo em áreas onde o direito das contraordenações parece tomar uma nova vida – na Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, no Código dos Valores Mobiliários e no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras. Concentramo-nos no problema, que se pretende aprofundar, o qual se expõe na possibilidade legal que o órgão jurisdicional de recurso tem em agra-
(1) Em jeito de desabafo, não nos inibimos de referir: já é tempo de a Academia pensar seriamente numa teoria geral do ilícito contraordenacional.
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var a sanção aplicada em Primeira Instância aos arguidos contraordenacionais nas referidas áreas, quando só o referido sujeito processual recorreu ou o próprio Ministério Público recorreu no exclusivo interesse do arguido. Tentaremos, sistematicamente, partir da origem do princípio da proibição da reformatio in pejus e posteriormente enquadrá-lo devidamente no direito sancionatório contraordenacional e direito internacional, sempre com o auxílio da jurisprudência e doutrina que no nosso entender se mostram mais fiéis à ideia de direito sancionatório. O direito molda-se com precisão se contar com uma doutrina e jurisprudência mais fiel aos princípios nucleares.
I. O princípio sancionatório da proibição da reformatio in pejus 1. Natureza jurídica São várias as razões apontadas por estudiosos para a consagração da proibição da reformatio in pejus. Alguns autores entendem que a proibição da reformatio in pejus advém do princípio civilístico do dispositivo, na medida em que apenas os sujeitos processuais têm a possibilidade de fixar o thema decidendum, ficando tal possibilidade vedada ao tribunal superior. Este tribunal não tem a possibilidade de agravar a sanção para além do pedido dos sujeitos processuais (2). Para OTTORINO VANNINI, a proibição da reformatio in pejus tem como base o interesse do sujeito processual que recorreu. Tendo em conta que o recurso, neste caso, é interposto no exclusivo interesse do acusado, então esse mesmo recurso não pode aplicar sanções contrárias ao interesse do referido recorrente (3). Segundo outra doutrina, a proibição da reformatio in pejus visa fomentar precisamente a interposição de recursos, para que haja maiores probabilidades de um melhor julgamento da causa, através de um novo reexame crítico, em que o acusado não tem receio de lhe vir a ser aplicada uma sanção mais grave (4).
(2) Cfr. SABATINI, Guglielmo, “Reformatio in pejus”, in Novissimo Digesto Italiano, vol XIV, [s. n.], 1957, p. 1122. (3) VANNINI, Ottorino, Manuale di diritto processuale penale italiano, Milano: A. Giuffrè, 1965, p. 242. (4) Assim, PISANI, Mario, Il divieto della “reformatio in peius" nel processo penale italiano, Giuffrè, 1967, p. 58. 170
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Constatamos ainda que para outros autores, o receio do acusado em recorrer e a sua inércia em interpor o respetivo recurso são apenas o reflexo de uma decisão a quo justa. Assim, a proibição da reformatio in pejus serviria apenas para ajudar a que esses condenados justamente apresentassem recurso, aumentando por isso quer a pendência processual nos tribunais superiores, quer a possibilidade de ser aplicada uma sanção mais leve e injusta (5). Um outro fator que nos parece igualmente relevante é relativo à relação entre a proibição da reformatio in pejus e o tipo de Estado in casu. Já defendemos noutra sede que há uma relação entre o tipo de Estado, os serviços que esse estado presta e as contrapartidas que este exige, designadamente ao nível das garantias processuais aos seus administrados (6). Pensamos que há uma relação crescente entre os serviços que a comunidade solicita ao Estado, a prestação desses serviços e a contraprestação ao nível das garantias processuais dos sancionados. V.g., há maior regulação sancionatória porque a sociedade o exige? Consequentemente, o legislador cria mais obstáculos a um efetivo recurso por parte das entidades reguladas? Há possibilidade de recurso em matéria de direito ou só em matéria de facto? E, para o que nos interessa, há lugar à reformatio in pejus ou esta é vedada aos órgãos jurisdicionais superiores? 2. Aproximação histórica É sabido que o direito romano não contemplava o princípio da reformatio in pejus. Segundo alguma doutrina, este princípio tem a sua origem no século XVIII, suportado pela teoria dos direitos adquiridos à época segundo a qual, após a primeira sentença, o arguido (assim designado no direito português) adquiria o direito de não lhe ser aplicada uma sanção mais grave. Para outra doutrina, o referido princípio tem a sua origem numa decisão do Conselho de Estado francês, em 12 de novembro de 1806 (7).
(5) Cfr., DELITALA, Giacomo, Il Divieto della Reformatio in Pejus nel Processo Penale, Milano: Societã editrice «VIta e Pensiero», 1927, p. 213. ( 6 ) AZEVEDO, Tiago Lopes de, Da Subsidiariedade no Direito das Contra-Ordenações: Problemas, Críticas e Sugestões Práticas, 1.a ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2011, pp. 23, 24. (7) Para maiores pormenores, cfr. DELITALA, Giacomo, Il Divieto della Reformatio in Pejus nel Processo Penale, cit., pp. 195 e ss. 171
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2.1. No direito português Recuando o benevolente leitor até às Ordenações Filipinas de 1595 ou ao Regime da Reforma Judiciária de 1841, não encontrará limitações à atuação sancionatória do tribunal ad quem. De facto, tais limitações começaram claramente a ser questionadas na doutrina e jurisprudência, segundo pensamos, com o Código de Processo Penal de 1929. Estamos convictos que o primeiro marco jurisprudencial relativo ao princípio da (proibição) da reformatio in pejus terá ocorrido com o Assento de 4 de maio de 1950. Pela primeira vez na ordem jurídica portuguesa, o Supremo Tribunal de Justiça firmava a obtenção de uma decisão justa como a finalidade primordial do sistema sancionatório. Neste aresto, com aliás quatro votos de vencido, o Supremo Tribunal de Justiça fixou a jurisprudência de acordo com a orientação de que em “recurso penal, embora só interposto pelo reu [sic], pode o Tribunal agravar a pena” (8). Vejamos com maior pormenor. Aquele Tribunal começou por explanar que os tribunais superiores não tinham limitações legais, quer ao nível do Código de Processo Penal de 1929, quer quanto a legislação complementar, relativas à extensão da apreciação jurisdicional. Nesses termos, tal juízo devia ser apreciado com recurso aos princípios gerais de direito que orientavam o processo penal. Ora, analisado o caráter público do direito processual penal, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que o ius imperii estadual implicava obrigatoriamente a devida liberdade de aplicação de sanções que julgassem adequadas ao caso, sem com isso estarem limitados ao objeto do recurso indicado pelos sujeitos processuais. O caráter público obstava pois a que houvesse limites à cognição dos órgãos jurisdicionais superiores. Por outro lado, o princípio da aplicação da sanção justa era igualmente beliscado caso a reformatio in pejus ficasse limitada. O facto de os tribunais superiores ficarem limitados à fixação do objeto dos recursos efetuada pelos sujeitos processuais criminais restringia indevidamente a finalidade de aplicar uma sanção justa (9).
(8) Cfr. Sumário do aresto, em Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 04.05.1950, Relator António de Magalhães Barros (Processo n.º 026890 1950). (9) O mesmo não ocorria à data no âmbito processual civilístico, onde as partes fixavam de facto o objeto do recurso, o que aliás o respetivo Código de Processo Civil previa expressamente, no seu art. 685.º. 172
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No referido aresto foi ainda indicado o art. 663.º do referido Código de Processo Penal, o qual, previa que os tribunais ad quem deviam conhecer da causa em relação a todos os réus (hodiernamente designados por arguidos), mesmo que apenas alguns réus interpusessem recurso. Assim, ao abrigo do princípio da unicidade ou incindibilidade das decisões penais, entendeu o Tribunal que o legislador pretendeu abrir a possibilidade dos tribunais superiores conhecerem além do objeto do recurso fixado pelos réus que recorreram. A decisão superior abrangia pois os réus que não tinham interposto o respetivo recurso mas que, apesar dessa inércia, teriam os seus factos conhecidos na instância de recurso. Cumpre ainda salientar que até 1965, com a publicação e entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 46 206, estava consagrada no Código de Processo Militar a proibição da reformatio in pejus, situação que com a entrada em vigor do referido diploma se alterar, de forma a efetuar-se uma aproximação ao regime processualista criminal comum. Só em em 1969, com a entrada em vigor da Lei n.º 2139, de 14 de março de 1969, foi alterado o alterou o art. 667.º do Código de Processo Penal. Assim, consagrou-se expressamente a proibição de reformatio in pejus. Todavia, tal alteração manteve a reformatio in pejus nos casos em que houvesse aplicação de medidas de segurança ou quando o representante do Ministério Público junto do tribunal ad quem pedisse a agravação da pena, mesmo que o recurso tivesse sido interposto só pelo arguido ou pelo Ministério Público no interesse daquele. Posteriormente, o Código de Processo Penal de 1987 pôs termo à possibilidade de aplicação da reformatio in pejus nos casos descritos no parágrafo anterior, mantendo todavia tal possibilidade ao nível do processo criminal militar. 2.2. No direito comparado Os primeiros ordenamentos jurídicos a consagrarem expressamente a proibição da reformatio in pejus foram a França, a Alemanha e a Itália, em geral, desde a primeira metade do século XX. Quanto a França, não obstante a decisão referida supra, em 1806, só em 1959, com o Code de Procédure Pénale, no seu art. 515 foi consagrada explicitamente a proibição da reformatio in pejus. Na Alemanha, apesar da reformatio in pejus em vigor desde 1935, fruto da época, foi em 1950 que a Vereinheitlichungsgesetz consagrou finalmente o princípio da proibição da reformatio in pejus.
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Excecionalmente, em Itália, o referido princípio vigora desde 1865 no âmbito do Codice di Procedura Penale, embora com alguma instabilidade e determinadas limitações. Em Inglaterra, o princípio da proibição da reformatio in pejus vigora desde a entrada em vigor Criminal Appeal Act, em 1964.
II. O direito sancionatório contraordenacional 1. Natureza jurídica Já discorremos com algum pormenor acerca da natureza jurídica do direito das contraordenações, razão pela qual não nos vamos deter com igual detalhe nesta pequena reflexão (10). Devemos todavia assumir que o direito das contraordenações enquadra-se num ramo de direito público, uma vez que está imbuído do ius puniendi estadual, protegendo e privilegiando dessa forma o interesse público e o bem-estar comum, a par da justiça, especialmente ao nível da Administração enquanto autoridade com poderes sancionatórios. Além de ser direito público, o direito das contraordenações enquadra-se perfeitamente na natureza sancionatória, a par do direito criminal. O direito das contraordenações é pois direito (público) sancionatório. E este ponto é fundamental. É sabido que o direito criminal é pertença do direito sancionatório. É um ramo do direito de ultima ratio – defende interesses fundamentais, essenciais à vida em comunidade, só atua se determinados bens jurídicos fundamentais são colocados em perigo e o Estado e a comunidade não têm outra forma de os proteger senão recorrer ao direito criminal. Além disso, o direito criminal comporta um leque variado de sanções onde se destaca a privação de liberdade. É pois o expoente máximo do ius puniendi estadual. Já o direito contraordenacional é, em termos correntes, o outro direito sancionatório. O direito sancionatório contraordenacional atua para defender bens jurídicos que não são fundamentais à vida em sociedade – não protege a vida, a liberdade, a integridade física. Assim, não se trata de um direito sancio-
(10) Cfr., o nosso Da Subsidiariedade no Direito das Contra-Ordenações: Problemas, Críticas e Sugestões Práticas, cit., pp. 69 -77. 174
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natório de ultima ratio mas um direito sancionatório mais abrangente, mais genérico. O direito das contraordenações protege valores importantes à vida em sociedade, comporta a manifestação do ius puniendi estadual mas não se reflete na proteção de bens jurídicos essenciais a qualquer comunidade politicamente organizada. Por isso as suas sanções são (ou deviam ser) menos gravosas para o agente infrator – a sanção principal é a coima, ou seja, uma limitação ao direito de propriedade do sancionado (11). Por outro lado, é igualmente importante firmar que o direito das contraordenações não é direito tributário. Visto de outro prisma, as coimas não são tributos. E disto se tem o legislador esquecido. Já sabemos de outras lidas: os tributos têm finalidades financeiras, de satisfação das necessidades do Estado derivadas da prestação de bens públicos e semipúblicos; por outro lado têm uma função de redistribuição da riqueza e do rendimento dos sujeitos passivos (12). A cobrança de coimas, ou melhor, a aplicação da sanção principal do direito contraordenacional não tem quaisquer finalidades tributárias. As coimas têm tão-só finalidades sancionatórias, aliás à semelhança do direito criminal, que se consubstanciam em finalidades de prevenção geral e, na nossa opinião, de prevenção especial (13). Não nos vamos alongar mais nesta vertente teleológica da aplicação de coimas e da cobrança de tributos. Mas queremos deixar bem claro – coimas não são tributos, são sanções. 2. O direito internacional e o direito contraordenacional Partindo da natureza jurídica assinalada supra, verifiquemos como é que o direito internacional se debruça acerca do direito contraordenacional o qual, já sabemos, o nosso ordenamento jurídico abraça, em virtude do princípio da
(11) Já as sanções acessórias, paradoxalmente, podem ser mais graves que as sanções criminais. Por outro lado, há coimas que comportam uma limitação tão extensa à propriedade dos agentes que, na nossa opinião, pairam constantemente algumas dúvidas acerca da sua inconstitucionalidade, designadamente por violação do princípio da proporcionalidade. Mas o nosso Tribunal Constitucional assim não tem entendido. (12) Cfr., entre outros, o art. 103.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e o art. 5.º da Lei Geral Tributária. ( 13 ) Com maior desenvolvimento, apontando algumas consequências desta singular confusão entre tributo e coima, veja-se o nosso Da Subsidiariedade no Direito das Contra-Ordenações: Problemas, Críticas e Sugestões Práticas, cit., pp. 67, 111-117, maxime, 114 e 115. 175
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abertura internacional previsto no art. 8.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (14). A Convenção Europeia dos Direitos do Homem é paradigmática, em especial, no que por hora nos interessa, em relação ao art. 6.º. Dispõe o referido artigo que qualquer “pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá (…) sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela (...)” (itálico nosso). A versão deste n.º 1 não traduzida estabelece o seguinte: “In the determination of his civil rights and obligations or of any criminal charge against him, everyone is entitled to a fair and public hearing within a reasonable time by an independent and impartial tribunal established by law(...)” (itálico nosso) (15). Primus, é sabido que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sempre deixou alguma discricionariedade aos estados contratantes para que efetuassem a delimitação entre os diferentes ilícitos sancionatórios, desde que tal demarcação não violasse as finalidades e objetivos da Convenção (16). Secundus, em virtude da referida margem de liberdade que a Convenção consagra relativa à delimitação entre direito criminal e outros direitos sancionatórios, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entende que os conceitos criminal e charge devem enquadrar-se nos diferentes direitos sancionatórios internos, das Partes Contratantes. O que deve existir é sempre um respeito escrupuloso das finalidades e objetivos da Convenção (17). Tertius, já entendeu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que o conceito de criminal offence presente no art. 6.º, n.º 3, da Convenção vinculava as (14) Ibid., pp. 217-249, acerca das fontes internacionais e comunitárias de direito contraordenacional. (15) In Council of Europe, Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms – as amended by Protocols Nos. 11 and 14, with Protocols Nos. 1, 4, 6, 7, 12 and 13, 2010, http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_ENG.pdf. (16) Assim, o Acórdão Engel e outros vs Holanda, de 08.06.1976, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, 81 (Application no. 5100/71; 5101/71; 5102/71; 5354/72; 5370/72, disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=2&portal=hbkm&action=html&highlight=ENGEL& sessionid=58304697&skin=hudoc-en, acedido em 18.08.2010). (17) Acórdão Engel e outros vs Holanda, de 08.06.1976, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Application no. 5100/71; 5101/71; 5102/71; 5354/72; 5370/72, disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=2&portal=hbkm&action=html&highlight=ENGEL&sess ionid=58304697&skin=hudoc-en, acedido em 18.08.2010); e BREDOW, Lippold Freiherr von, “Direito Processual Administrativo no Contexto Europeu – tutela administrativa sob influência do Direito Internacional Público e supranacional”, trad. Martim Vicente Gottschalk, in Revista do Centro de Estudos Judiciários (Brasil) Brasília, n. 27 (outubro de 2004): sec 2, http://www2.cjf. jus.br/ojs2/index.php/cej/article/view/628/808. 176
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normas constantes da Ordnungswidrigkeitengesetz. Pela primeira vez, aquele Tribunal obrigou os Estados a respeitarem a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ao nível da aplicação das sanções criminais, quanto às sanções disciplinares e, para o que nos interessa particularmente, no âmbito da sanção contraordenacional (Ordnungswidrigkeit) (18). Em suma, o estado português, no que concerne ao direito contraordenacional, está vinculado ao respeito pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
III. A proibição da reformatio in pejus no direito sancionatório contraordenacional 1. Regra geral: o art. 72.º-A do Regime Geral das Contraordenações Estabelece o art. 72.º-A do Regime Geral das Contraordenações, no seu n.º 1: “Impugnada a decisão da autoridade administrativa ou interposto recurso da decisão judicial somente pelo arguido, ou no seu exclusivo interesse, não pode a sanção aplicada ser modificada em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes”. Parece-nos claro que a regra geral do direito das contraordenações é a proibição da reformatio in pejus (19). Em relação à Ordnungswidrigkeitengesetz, verifica-se que a reformatio in pejus vale tão-só no recurso judicial: (§66.º) “Der Bußgeldbescheid enthält ferner (1) den Hinweis, daß (b) bei einem Einspruch auch eine für den Betroffenen nachteiligere Entscheidung getroffen werden kann” (20). Já a proibição da reformatio in pejus é aplicada no recurso jurisdicional: [§72.º (3)] “Das Gericht darf von der im Bußgeldbescheid getroffenen Entscheidung nicht zum Nachteil des Betroffenen abweichen.” (21).
( 18 ) Acórdão Öztürk vs República Federal da Alemanha, de 21.02.1984, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pp. 54-56 (Processo n.º 8544/79, disponível em http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-57553, acedido em 30.07.2010). (19) Não iremos analisar o n.º 2 do mesmo artigo, uma vez que não nos parece que tenha a devida importância no âmbito destas reflexões. ( 20 ) Na versão inglesa: “(§66.º) The regulatory fining notice shall further contain (1) an indication to the effect that (b) in the event of objection a decision may be given that is more disadvantageous to the person concerned”. ( 21 ) Tradução inglesa: “[§72.º, (3)] The court may not deviate from the decision in the regulatory fining notice to the detriment of the person concerned”. 177
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2. Exceção: a Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, o Código dos Valores Mobiliários e o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras A Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais estabelece no seu art. 75.º que não “é aplicável aos processos de contraordenação instaurados e decididos nos termos desta lei a proibição de reformatio in pejus, devendo essa informação constar de todas as decisões finais que admitam impugnação ou recurso”. Da mesma forma, o Código dos Valores Mobiliários dispõe, no art. 416.º, n.º 8: “Não é aplicável aos processos de contraordenação instaurados e decididos nos termos deste Código a proibição de reformatio in pejus, devendo essa informação constar de todas as decisões finais que admitam impugnação ou recurso”. Por fim, o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras permite igualmente a reformatio in pejus, no seu art. 22.º, n.º 1, alínea f): “A decisão que aplique sanção conterá [alínea f)] [i]ndicação de que não vigora o princípio da proibição da reformatio in pejus”. Devemos desde já sublinhar dois fatores essenciais: Primus, em todos os referidos regimes há a possibilidade de se aplicar coimas em montantes que podem alcançar vários milhões de euros. Secundus, em todos aqueles regimes, o tribunal de segunda instância só conhece em matéria de direito, não havendo, consequentemente, recurso para um tribunal superior. 3. Doutrina existente divergente A orientação do legislador seguida no art. 72.º-A do Regime Geral das Contraordenações, no seu n.º 1, tem sido maioritariamente criticada na doutrina. A doutrina maioritária tem entendido que a proibição da reformatio in pejus limita desmesuradamente a celeridade que é (ou devia ser) pertença de um processo contraordenacional moderno. Em geral, estes autores entendem que a proibição da reformatio in pejus aumenta a pendência processual em diversas gravidades de sanções contraordenacionais, quer nas bagatelares, quer nas que são tão ou mais graves que as sanções criminais, privilegiando dessa forma os arguidos com maiores posses económicas, quanto mais não seja, porque com recursos sucessivos e com a
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garantia e não aplicação de uma sanção mais grave, o respetivo pagamento da coima sempre se vai protelando (22). Há ainda quem entenda que, em virtude da presença do princípio da proibição da reformatio in pejus, a administração pode cair na tentação de desconsiderar os direitos precessuais do arguido e ainda de aplicar sanções mais graves, para prevenir eventuais reduções das sanções a posteriori (23). Para outros autores, a aplicação da reformatio in pejus implica um “risco acrescido no exercício do direito fundamental à tutela efetiva” que é desajustado ao direito das contraordenações (24). Muito recentemente, ALEXANDRA VILELA propôs um interessantíssimo regime geral das contraordenações redesenhado, face ao atual. Em relação à aplicação do princípio da proibição da reformatio in pejus, a Autora defendeu uma aproximação ao §69.º da Ordnungswidrigkeitengesetz, através da criação de um processo intermédio de apreciação por parte do juiz e da própria administração sancionatória. Este processo intermédio, existente entre a apresentação da impugnação judicial e a respetiva prossecução dos autos, serviria para que a administração ou o juiz, sempre que verificassem que
(22) Assim, entre outros, VILELA, Alexandra, O Direito de Mera Ordenação Social: Entre a Ideia de “Recorrência” e a de “Erosão” do Direito Penal Clássico, 1.a ed, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, 483; DANTAS, A. Leones, “[s.n. – texto gentilmente cedido pelo Autor]” (Texto policopiado gentilmente cedido pelo Autor, que nas palavras deste, engloba designadamente, as “Considerações sobre o processo das contra-ordenações: as fases do recurso e da execução”, publicado na Revista do Ministério Público, n.º 57, janeiro/março de 1994, pp. 71 e ss., “Considerações sobre o processo das contra-ordenações – A fase administrativa”, publicado na Revista do Ministério Público, n.º 61, janeiro/março de 1995, pp. 103 e ss., “Coimas e Sanções Acessórias no Direito das Contra-Ordenações do Ambiente”, publicado em Textos, Ambiente e Consumo, II Volume, CEJ, 1996, pp. 445 e ss., e “O Ministério Público no Processo das Contra-ordenações”, publicado em Questões Laborais, Ano VIII, 2001, pp. 26 e ss. Pontualmente recuperaram-se ainda outros elementos, nomeadamente, do parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 84/2007, de 28 de fevereiro de 2008, publicado no Diário da República, 2.a série, de 7 de abril de 2008, de que o signatário foi relator, junho de 2009), pp. 34, 35; ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011, pp. 25, 294 e 295. (23) Assim, CARVALHO, Américo Taipa de, Direito Penal: Parte Geral, 2.a ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 140. (24) Cfr. CATARINO, Luís Guilherme, Regulação e Supervisão dos Mercados de Instrumentos Financeiros – Fundamento e Limites do Governo e Jurisdição das Autoridades Independentes, Teses de Doutoramento, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 765, 766. 179
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existia falhas de investigação, deveriam devolver os autos à administração, para que este suprisse as referidas falhas (25). Não obstante a louvável proposta, apresentamos, salvo melhor opinião, duas críticas. Em primeiro lugar, a administração já tem a possibilidade de reapreciar a decisão definitiva quando recebe a impugnação judicial, nos termos do art. 62.º, n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações. Aliás, a impugnação judicial é apresentada junto da autoridade sancionatória respetiva, precisamente para que esta possa reapreciar a sua decisão condenatória. Na prática, porque pleiteamos, verificamos que a autoridade administrativa nunca reaprecia a sua decisão. Por outro lado, não vemos como é que um juiz, subordinado, grosso modo, a um dever de imparcialidade, iria devolver os autos à autoridade sancionatória para que esta suprisse eventuais deficiências. O referido processo intermédio, segundo a Autora defende, possibilitaria a aplicação da reformatio in pejus na decisão judicial derivada da impugnação judicial. Já quanto ao acórdão proveniente do recurso jurisdicional, a Autora defende a manutenção da proibição da reformatio in pejus (26). 4. Posição defendida A nossa opinião, já defendida em 2011, vai no sentido de que não deve vigorar uma proibição absoluta da reformatio in pejus (27). Vejamos o seguinte esquema: Deve desde já ficar explícito que a proibição da reformatio in pejus apenas se colocará na fase 2, quando o arguido impugna a decisão para um órgão jurisdicional (recurso judicial), e na fase 3, quando o arguido recorre da sentença de primeira instância para um tribunal superior (recurso jurisdicional). Em termos genéricos, a reformatio in pejus ou a sua proibição têm sobretudo que ver com a prevalência de diferentes valores adjetivos sancionatórios potencialmente conflituantes: manutenção de garantias de defesa do arguido, procura da verdade material e celeridade processual.
(25) VILELA, Alexandra, O Direito de Mera Ordenação Social: Entre a Ideia de “Recorrência” e a de “Erosão” do Direito Penal Clássico, cit., p. 484. (26) Ibid., pp. 485-487. (27) Cfr. AZEVEDO, Tiago Lopes de, Da Subsidiariedade no Direito das Contra-Ordenações: Problemas, Críticas e Sugestões Práticas, cit., pp. 156-169. 180
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4.1. Manutenção de garantias de defesa do arguido O processo sancionatório está enformado pelo princípio da acusação, o qual deriva do princípio do processo equitativo. Relativamente ao princípio do processo equitativo, limitamo-nos a citar as doutas palavras de HENRIQUES GASPAR, patentes num voto vencido: “o princípio do processo equitativo (enunciado no art. 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e no art. 14.º do Pacto Internacional sobre os Direito Civis e Políticos, e particularmente densificado pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) também impõe que a proibição da reformatio in pejus seja avaliada e confrontada neste âmbito de compreensão: a lisura, o equilíbrio, a lealdade tanto da acusação como da defesa, que constituem, ao lado do contraditório, da igualdade de armas e da imparcialidade do tribunal, momentos de referência da noção de processo equitativo, impõem que o arguido, no caso de único recorrente e que usa o recurso como uma das garantias de defesa constitucionalmente reconhecidas, não possa ser, em nenhuma circunstância, surpreendido no processo com a decorrência de uma situação desequilibrante; o recurso, inscrito como meio de defesa, não pode, quando a acusação o não requerer, produzir, sem desconformidade constitucional, um resultado de agravamento (neste sentido interpreto a doutrina subjacente à decisão do Tribunal Constitucional no acórdãos n.os 499/97 e 498/98)” (28). O princípio do contraditório é igualmente importante. É um princípio essencial na relação de forças entre a acusação e a defesa, na relação entre a autoridade administrativa e o arguido no processo contraordenacional. O contraditório surge no direito adjetivo sancionatório como um verdadeiro satélite. Tem de estar sempre presente, tem de acompanhar a prova que se vai produzindo e claro, tem de seguir a sentença. Sejamos claros. A reformatio in pejus limita o direito do contraditório do arguido. Ou seja, o arguido não tem sequer o direito ao contraditório, na medida em que, após o recurso apresentado por ele ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse do arguido, numa fase em que a prova está produzida em audiência do tribunal a quo ou no tribunal ad quem, o arguido não mais é ouvi-
(28) Do voto de vencido do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09.04.2003, processo n.º 2628/02-3, que teve como Relator Borges de Pinho, citado em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.11.2007, Relator: Simas Santos (Processo n.º 3761/07, 5.a Secção 2007).
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do, não volta a apresentar novos argumentos, não volta a existir um direito ao contraditório. Ao existir a reformatio in pejus, o arguido deixa de poder apresentar uma efetiva defesa – fica impossibilitado de apresentar novos argumentos. 4.2. Procura da verdade material A verdade material não é prejudicada com a proibição da reformatio in pejus. Se, por um lado, há a possibilidade de se alcançar a verdade material com a inexistência da referida proibição, não é menos verdade que caso a proibição não exista sem quaisquer limites, não será difícil que os arguidos pensem duas vezes antes de recorrer devido aos riscos de verem as sanções agravadas, sabendo todavia que a verdade material não foi alcançada na decisão em crise. 4.3. Celeridade processual A celeridade deve ser igualmente um valor a que o legislador não pode ficar alheio. O que não pode o legislador é cair na tentação de legislar para as estatísticas, limitando de forma desproporcional o direito de acesso ao recurso jurisdicional, constrangendo pois o acesso ao direito, através de um risco adicional aos condenados que paira, sempre que queiram colocar em questão uma decisão de aplicação de uma sanção contraordenacional (29). 4.4. Posição seguida Primus, deixemos bem claro, novamente, que estamos perante a aplicação de coimas (e não de tributos) cujos montantes chegam facilmente aos milhares ou mesmo milhões de euros. Afirmamos supra que o legislador se esqueceu de que estamos perante prestações coativas de diferentes naturezas. De facto, a limitação da aplicação da proibição da reformatio in pejus nos diplomas normativos in casu é mais um reflexo de uma avidez desproporcional do Estado em angariar recursos financeiros a todo o custo – nem que seja através de sanções contraordenacionais que deviam ter como únicas finalidades, as finalidades sancionatórias, de prevenção
(29) Cfr. GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo, e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón, Curso de Derecho Administrativo, vol II, 7.a ed, Reimpressão, Madrid: Civitas Ediciones, S. L., 2001, p. 202. 182
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geral e especial. Lamentavelmente, é esta a tendência que o legislador tem seguido e, acreditamos, vai seguir cada vez com mais frequência. Tentamos, porém, chegar a uma posição de compromisso. Em relação à fase 2, somos da opinião de que deve vigorar a reformatio in pejus sempre que seja possível ao arguido recorrer para uma instância jurisdicional superior. Ao nível do princípio do processo equitativo, verificamos que o arguido não é apanhado numa posição irremediável de desvantagem. Pelo contrário, caso o pretenda, pode colocar tal decisão em crise, através de um recurso para o órgão jurisdicional superior respetivo. O princípio do contraditório, admitimos, é de alguma forma comprimido. De facto, ao nível dos tribunais de segunda instância não pode haver recursos em matéria de facto; situação que já criticámos ( 30). Porém, alterando-se esta limitação que a nosso ver é claramente inconstitucional, pensamos que a reformatio in pejus deixa de limitar desproporcionalmente o princípio do contraditório. Por fim, é evidente que a celeridade é devidamente defendida. Escusamo-nos de mais explicações a este respeito. Em relação à fase 3, temos outra posição. Tendo em conta que já não há a possibilidade do arguido interpor novo recurso jurisdicional, somos da opinião que deve vigorar, sem qualquer margem para dúvidas, o princípio da proibição da reformatio in pejus. Quanto ao princípio do processo equitativo, verificamos que o condenado, neste caso, é apanhado numa posição de desvantagem irremediável. De facto, após tal decisão condenatória mais severa que a anterior aplicada, o condenado nunca mais poderá, tendencialmente, colocar em questão a aplicação da respetiva sanção. O princípio do contraditório, claro está, desvanece-se. O condenado não tem mais armas para reagir processualmente, apresentando o respetivo contraditório. Finalmente, é evidente que também neste caso a celeridade é defendida. Mas é uma defesa à custa de valores adjetivos sancionatórios essenciais a qualquer Estado de Direito.
( 30 ) AZEVEDO, Tiago Lopes de, Da Subsidiariedade no Direito das Contra-Ordenações: Problemas, Críticas e Sugestões Práticas, cit., pp. 167, 169-182. 183
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Ora, com o afastamento da proibição da reformatio in pejus constante da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, do Código dos Valores Mobiliários e do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, parece-nos que os direitos de defesa inscritos na Constituição da República Portuguesa, no seu art. 32.º, n.º 10, ficam irremediavelmente postos em causa se forem aplicados à decisão judicial derivada do último órgão jurisdicional com competência para julgar a causa contraordenacional. E não nos ficamos com a violação da Constituição. Como expusemos supra, também a Convenção Europeia dos Direitos do Homem é aplicável ao direito contraordenacional. Assim, não temos dúvidas que a previsão legal onde conste a reformatio in pejus relativamente à decisão do mais elevado órgão jurisdicional viola o art. 6.º, n.º 1, da Convenção, por violação do princípio do processo equitativo. Da mesma forma, viola o art. 13.º da mesma Convenção, uma vez que em virtude da reformatio in pejus há uma evidente limitação ao direito a um recurso efetivo, pois o condenado não dispõe de uma igualdade de armas que lhe possibilitem, com a devida liberdade interior, interpor um respetivo recurso jurisdicional. Concluindo, estamos convictos que a reformatio in pejus constante da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, do Código dos Valores Mobiliários e do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, viola a Constituição da República Portuguesa, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, não menos importante, princípios fundamentais de qualquer direito público sancionatório.
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Bibliografia A. LEONES DANTAS – Texto policopiado gentilmente cedido pelo Autor, que nas palavras deste, engloba designadamente, as: “Considerações sobre o processo das contra-ordenações: as fases do recurso e da execução”, publicado na Revista do Ministério Público, n.º 57, janeiro/março de 1994, pp. 71 e ss.; “Considerações sobre o processo das contra-ordenações – A fase administrativa”, publicado na Revista do Ministério Público, n.º 61, janeiro/março de 1995, pp. 103 e ss.; “Coimas e Sanções Acessórias no Direito das Contra-Ordenações do Ambiente”, publicado em Textos, Ambiente e Consumo, II Volume, CEJ, 1996, pp. 445 e ss.; e “O Ministério Público no Processo das Contra-Ordenações”, publicado em Questões Laborais, Ano VIII – 2001, pp. 26 e ss. Pontualmente recuperaram-se ainda outros elementos, nomeadamente, do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 84/2007, de 28 de fevereiro de 2008, publicado no Diário da República, 2.a série, de 7 de abril de 2008, de que o signatário foi relator, junho de 2009. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.11.2007, Relator: Simas Santos (Processo n.o 3761/07, 5.a Secção 2007). Acórdão Engel e outros vs Holanda, de 08.06.1976, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Application no. 5100/71; 5101/71; 5102/71; 5354/72; 5370/72, disponível
em
http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=2&portal=hbkm&
action=html&highlight=ENGEL&sessionid=58304697&skin=hudoc-en, acedido em 18.08.2010). Acórdão Öztürk vs República Federal da Alemanha, de 21.02.1984, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Processo n.o 8544/79, disponível em http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-57553, acedido em 30.07. 2010). ALEXANDRA VILELA – O Direito de Mera Ordenação Social: Entre a Ideia de “Recorrência” e a de “Erosão” do Direito Penal Clássico, 1.a ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2013. AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO – Direito Penal: Parte Geral, 2.a ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2008. Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 04.05.1950, Relator: António de Magalhães Barros (Processo n.o 026890).
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Council of Europe – Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms – as amended by Protocols Nos. 11 and 14, with Protocols Nos. 1, 4, 6, 7, 12 and 13, 2010, http://www.echr.coe.int/Documents/ Convention_ENG.pdf. EDUARDO GARCÍA
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