BRI TADEI RA.02
Ian Guper (São Paulo-SP) Fachada (2012) Óleo sobre tela
O FORA DE DENTRO Concreto é uma massa que ao endurecer adquire resistência. É o real, o existente, o verdadeiro. É ainda o substantivo que nomeia o que é perceptível aos sentidos – aquelas sensações que exigem o esgotar do frenético para funcionar plenamente em ambientes urbanos. Afinal, para ver, ouvir, tocar, cheirar e experimentar inteiramente é preciso parar, e estar disposto. Cessar o fluxo e permitir-se enxergar, comover, refletir. Receita simples para o exercício do agir com a intenção de transformar, de concretizar a mudança. O impulso de intervir fez com que moradores de Berlim criassem hortas e jardins urbanos em áreas mortas. Esses “guerrilheiros da jardinagem” nos mostram quanto é possível semear a cidade que desejamos com as próprias mãos. Tendo como cenário uma praça de nome Liberdade, a bailarina Cassilene Abranches topou o desafio de abandonar a segurança proporcionada pela caixa preta do teatro e se jogar sem medo no espaço inesperado das ruas. No Observatório, imagens do metrô de São Paulo transcendem o cotidiano com interferências que transitam entre o real e o imaginário. E, se temos o poder de transformar o que está ao redor, o entorno também exerce sobre nós influência semelhante. O escritor Marcelino Freire conta em fato e ficção sobre as partes que deixou de si e os pedaços que levou consigo das cidades onde viveu. Como algumas questões ultrapassam aspectos geográficos, investigamos como é a vida dos artistas de rua de Buenos Aires. Para fechar, uma história de fuga do familiar em busca do desconhecido, pois, afinal, em meio a tantas histórias e trajetos, estamos sempre procurando por nós mesmos.
capa Fernando Vilela foto capa Everton Ballardin tiragem 5 mil exemplares distribuição gratuita gráfica PANCROM
efemeroconcreto.com.br
contato@efemeroconcreto.com.br
direção Deco Benedykt, Nucci edição Roberta Dezan arte Nucci assist. de arte Laila Szafran articulação Deco Benedykt revisão Rachel Reis colaboradores Fernando de Almeida, Henrique Amud, Ian Guper, Jonia Caon, Kelly Cristina Spinelli, Ludmila Azevedo, Luiza Fagá, Marcelino Freire, Mariano Juarez, Rodrigo Mendes, Rodrigo Piza Levy agradecimentos Caio T. Silva, Carla Fonseca, Catarse, Cassilene Abranches, Estufa, Fábio Maleronka, famílias, Grupo Corpo, Nabil Bonduki, Raffaela P. Meneguetti, Tatiana C. Waldman, Thiago Rosenberg
02.BRITADEIRA
O artista Ian Guper representa em óleo sobre tela formas naturais e concretas.
06.REPORTAGEM
Jardineiros: uni-vos Atividade conhecida como “jardinagem de guerrilha” mostra como é possível dar vida a locais esquecidos pelo poder público.
314.EM OBRAS
Uma praça chamada Liberdade A convite da revista, a bailarina Cassilene Abranches, do Grupo Corpo, faz coreografia urbana em cartão-postal mineiro.
24.OBSERVATÓRIO
Surreal subterrâneo Em ensaio fotográfico, Diego Kuffer cria caleidoscópios surreais com imagens da Linha Amarela do metrô paulistano.
38.CONFLUÊNCIA
Anotações de viagens De Sertânia a Recife, de Paulo Afonso a São Paulo. Memórias das terras onde Marcelino Freire viveu e amou.
46.REPORTAGEM Passando o chapéu Os anseios, as dificuldades e as recompensas de quem usa as ruas de Buenos Aires como palco para sua arte.
56.TAPA-BURACO
A procura por si mesmo entre florestas e cidades.
JARDINEIROS:
UNI -VOS POR LUIZA FAGÁ FOTOS RODRIGO PIZA LEVY
Duas iniciativas semelhantes na cidade de Berlim, na Alemanha, transformaram espaços abandonados e utilizados como depósito de lixo em hortas e jardins – atividade conhecida mundialmente como “jardinagem de guerrilha”. Além de embelezar a cidade, esse tipo de ação nos ensina sobre perseverança, colaboração e revitalização de locais esquecidos pelo poder público e ainda nos mostra como é possível arregaçarmos as mangas e plantarmos uma cidade mais verde com as próprias mãos.
REPORTAGEM.06
Fachada da “casa da árvore do muro”, de Osman Kalin
H
á, em Berlim, uma casa que chama a atenção por sua estética e localização pouco convencionais. Sediada no bairro de Kreuzberg, tem dois andares, é feita de material reciclado e fica entre duas grandes árvores – sendo que uma delas atravessa a construção. No terreno triangular ao seu redor, uma horta beirada por ruas em seus três limites. “A casa da árvore do muro”, como é conhecida na cidade, é de autoria do imigrante turco Osman Kalin, que deixou a península de Anatólia em 1964, chegou à Alemanha no início dos anos 1970 e, no começo dos 1980, se estabeleceu em Berlim – cidade com a maior população turca fora da Turquia. Em 1983, ele decidiu encher de vida uma área morta – um terreno que oficialmente pertencia a Berlim Oriental, mas que ficava ao ocidente do muro. Tal confusão geográfica era possível porque, apesar de a fronteira entre os territórios leste e oeste ser irregular, a construção do muro desenhava linhas retas. Como nesses espaços nada era feito, muitos viravam depósitos de lixo. Osman, então aposentado, limpou o local e lá plantou uma horta. A casa só viria a ser construída depois da queda do muro. Hoje, aos 89 anos, o jardineiro sofre de Alzheimer. Quem conta a história é seu filho Mehmet Kalin. Ele diz que no começo os oficiais de ambas as Berlins desconfiavam de Osman. “Como meu pai passava muito
tempo mexendo nessa terra, que ficava bem próxima ao muro, os oficiais achavam que ele poderia estar cavando um túnel.” Embora incomodado com a presença de Osman, o exército ocidental se viu impedido de tomar qualquer providência, já que não tinha jurisdição sobre aquele pedaço de terra. O exército oriental, então, decidiu agir. “Oficiais armados chegaram para questionar o meu pai, que respondeu que estava apenas trabalhando. Em seguida, ele jogou seus documentos no chão, aos pés dos guardas, e disse pra eles que aquilo eram apenas pedaços de papel. Se queriam conversar, que agissem como seres humanos.” Com o tempo, o senhor Kalin conquistou a confiança dos militares, que só lhe impuseram uma condição: não construir nada mais alto que a grande muralha.
Daqui eu não
s a io, d a q u i ninguém me tira Aí derrubaram o muro. A primeira providência de Osman foi expandir seu terreno alguns metros sentido oeste. A segunda, reunir sucata – de madeira usada a estrado de cama – e elevar sua propriedade em direção às nuvens. “Quando meu pai começou a construir a casa, policiais passaram aqui para perguntar quantos andares ela teria. Meu pai respondeu que, do
chão ao céu, aquele espaço era dele”, conta Mehmet. Mas na história dessa horta nem tudo são flores. Após a reunificação da cidade, a prefeitura de Berlim tentou desapropriar o terreno diversas vezes. Osman sempre contou com o apoio dos vizinhos, um em especial: a igreja evangélica Saint-Thomas, cujas grandes costas de tijolo alaranjado dão de frente para a casa da árvore. Mesmo antes da queda do muro, era da igreja que o jardineiro comprava os vários litros de água necessários para irrigar sua plantação. Quando, em 2004, a pressão para que ele abandonasse sua casa aumentou – catalisada pela valorização econômica da
área onde fica o terreno –, o pastor Christian Müller tomou a frente da discussão com um argumento definitivo: o pequeno pedaço de terra ocupado pelo jardineiro pertencia, na verdade, à igreja e a casa não poderia ser posta abaixo sem prévia autorização desta. Mehmet não vê contradição no fato de autoridades cristãs oferecerem proteção para “um homem sem Deus”, em suas palavras. “Para o meu pai, as pessoas estão acima da religião. Ele respeita todo mundo e por isso é muito respeitado.” Osman Kalin é considerado por alguns como um dos precursores da jardinagem de guerrilha (ou guerrilla gardening), movimento que propõe a ocupação de áreas abandonadas para que nesses
10
Voluntários trabalham na horta do Prinzessinnengarten. Ao lado, entrada da “casa da árvore”
espaços sejam plantados hortas e jardins. Seu filho Mehmet, porém, considera o termo muito forte. “Meu pai nunca quis brigar com a polícia ou com o governo; ele só queria trabalhar e, como foi ele quem plantou a horta, acreditava que tinha o direito de ficar lá.”
O jardim móvel que não quer se mover Também no bairro de Kreuzberg, a 1 quilômetro e meio e 24 anos de distância da plantação de Osman Kalin, surge outra horta urbana. O Prinzessinnengarten é uma iniciativa de Robert Shaw e Marco
Clausen, que em 2009 reuniram um mutirão de cerca de 150 voluntários para limpar e semear uma área – oficialmente propriedade do Estado – que há mais de cinco décadas era utilizada como depósito de entulhos. Localizado no cruzamento de duas ruas de movimento intenso, o jardim chama a atenção de longe e, ao contrário da horta privada de Osman, é aberto a quem quiser conhecê-lo. Shaw e Clausen não tinham experiência com agricultura antes de iniciarem a empreitada, e o que sabem hoje foi aprendido no decorrer do caminho, com os diversos parceiros que o Prinzessinnengarten foi conquistando ao longo do tempo. Colaboração, aliás, é uma das
raízes do projeto, que contabiliza 30 mil horas de serviço voluntário por estação de plantio. Os frutos de tanto trabalho – obviamente orgânicos – são vendidos lá mesmo, a preços acessíveis. Além disso, há um pequeno restaurante no local que prepara receitas com os ingredientes colhidos da horta. Os legumes e as verduras do Prinzessinnengarten são cultivados em caixotes, sobre camas de compostagem, para que possam ser transportados de forma fácil e eficiente. Segundo Shaw e Clausen, em hortas urbanas a mobilidade é um conceito-chave, pois permite que se responda rapidamente às reestruturações da cidade. Os jardins móveis são pensados não como soluções
permanentes, mas como alternativas provisórias para terrenos sem uso, negligenciados por seus proprietários legais ou pelo poder público. A relevância de um ambiente como o Prinzessinnengarten, porém, vai além do cultivo. O jardim, que recebe cerca de 50 mil visitantes por ano, se tornou um importante espaço de socialização e cultura, onde se pode aprender sobre sustentabilidade e colocá-la em prática. Qualquer um pode se voluntariar para participar dos trabalhos necessários para a manutenção do espaço e sugerir e encabeçar novos projetos que explorem seus potenciais. Além disso, eventos como pequenos
concertos e exposições de arte, peças infantis e abaixo-assinados que envolvem temas relevantes para a comunidade local também são sediados por lá. Como aconteceu com a horta de Osman Kalin, o Prinzessinnengarten foi ameaçado pela valorização econômica do bairro: o terreno ocupado corria o risco de ser vendido para a iniciativa privada. Aqui, não havia pastor que pudesse interceder, mas o apoio da comunidade local garantiu a permanência do jardim: a petição divulgada no site do projeto (prinzessinnengarten.net) contou com mais de 30 mil assinaturas. Em carta aberta, os fundadores defendem que, “quando se trata
Vista geral do Prinzessinnengarten. Ao lado, caixotes sobre camas de compostagem
de áreas públicas, não se deve levar em conta apenas interesses financeiros de curto prazo. O valor social, cultural e o engajamento ambiental também devem ser considerados. Só assim espaços livres poderão ser preservados ou criados”. Uma coisa se sabe: cabe à sociedade plantar a cidade na qual se deseja viver. Luiza Fagá é paulistana. Jornalista e cineasta, atualmente mora em Berlim.
POR LUDMILA AZEVEDO FOTOS RODRIGO MENDES
A bailarina Cassilene Abranches, do Grupo Corpo, faz uma crônica contemporânea por onde passaram escritores modernistas em Belo Horizonte e coreografa movimentos do próprio local e de quem momentaneamente o ocupa. Ao invadir o espaço sem bordas das ruas, cria um novo cotidiano urbano e borra a hierarquia arte-público.
EM OBRAS.14
Primeiro ato Imagine um cartão-postal num sábado desses que vêm depois de um feriado. Uma Belo Horizonte quase vazia. Mas o movimento persistia como se fosse ali a “Cidadezinha Qualquer” descrita por Drummond. O homem anda devagar, a vida anda devagar. Ele também passeava por ali, certamente em passos tranquilos, num tempo em que as pessoas faziam footing. Assim está registrado em crônicas, prosas e poesias. Devagar. Famílias, casais, amigos e pessoas solitárias estão em dia de pausa. Entreolham-se quando a bailarina chega. Está diante da fonte: luminosa à noite, desligada naquele momento de inspiração. Ela também observa. Alonga-se e, na ponta dos pés, no esticar dos braços, começa a desenhar outros cenários. As maneiras particulares de se mover estão ali, o permanente teste de domínio da estrutura-espaço. O movimento de quadris, assinatura do Grupo Corpo, do qual faz parte, integra-se aos passos da bailarina e coreógrafa – faceta que vem se intensificando desde que assinou Contracapa, para o Ballet Jovem Palácio das Artes. Não há trilha sonora. Apenas ruídos vindos de um microfone
distante sendo testado num palco provisório. É o “som, som”, “ei, ei” de um show que vai acontecer no cair do dia. Pouco importa. Ela segue sua coreografia, explorando seus limites físicos e a velocidade dos movimentos. Alterna narrativas e chega a ultrapassar o que é meramente visível, palpável ou compreensível. O fotógrafo acompanha freneticamente e impõe outro ritmo à calmaria. Deita no chão para não perder a luz, o foco, o ângulo perfeito, os curiosos, essa tal liberdade que a praça evoca. As pessoas seguem desconfiadas diante dela. Após longas pausas – ou seriam entreatos? –, quebram o quase silêncio. “Arreda aí para não atrapalhar a moça”, diz um senhor ao neto de bicicleta, que queria sair na foto.
Segundo ato Ela se aproxima de artistas de rua munidos de fitas, bolas e outros apetrechos típicos de malabares. A coreografia ganha contornos vigorosos. À medida que amplia os movimentos para acompanhar a trupe vinda da Colômbia e da
16
Argentina, os sorrisos se abrem e transformam o sábado vagaroso. No próximo gesto, entra em cena uma garota. Como quase toda menina, ela também quer ser bailarina. Estica os bracinhos de modo desengonçado, tenta ficar elástica, concentrada e longilínea. Ao chamar a atenção dos demais, cai na gargalhada, sai correndo e se joga no colo dos pais. O coreto interditado está ocupado. Na escadaria, adolescentes de preto e jeans rasgados parecem alheios a qualquer coisa. “Posso ficar aqui com vocês?”, pergunta a bailarina. Diante do consentimento, ela decifra o código do grupo e reproduz uma atitude mais forte. Saltos repetidos do alto daqueles degraus. Por cima dos jovens, de modo abrupto, radical. “Ó que dó, gente. Que povo maluco! Ninguém pode arrumar um colchão pra ela?”, desabafa a senhora com pronúncia tipicamente nordestina, em meio a um lugar com uma profusão de outros sotaques. Todos que ocupam o cartão-postal parecem não ser dali.
Ato final
Em outra extremidade desse lugar oportunamente projetado em estilo eclético, com elementos neoclássicos, a bailarina troca o figurino. A malha preta e justa, que revela o físico de quem desde sempre entrega o corpo
ao balé, dá lugar ao vestido fluido claro. Venta e ela utiliza o poste como suporte cênico, pisa sorrateiramente na grama; algo vetado na Praça da Liberdade. Vai entender... Devagar, as cortinas parecem se abrir. “Olha, mãe, a bailarina”, aponta a menina. O homem com a câmera pendurada no pescoço, às voltas com uma dezena de crianças, fotografa a coreografia. Um grupo observa e conversa ao pé do ouvido tentando interpretar o inesperado. “Sabia que ela era bailarina”, constata a senhora no banco em tom de provocação à amiga ao lado. Quando os ensimesmados, os retraídos, os desconfiados e os vagarosos pensam se o aplauso é cabível, o sol se despede, enfim, deixando o toque alaranjado nas copas das árvores e nos casarões antigos ao redor da Liberdade. Ele se foi lentamente nesse sábado incomum, como a bailarina, que fica suave até desaparecer e voltar a ser Cassilene Abranches, que, em algumas horas, parte para turnês em outras praças. Ludmila Azevedo é jornalista especializada em cultura e possui o blog ludj.blogspot.com.
O ensaio (ou as escolhas e sensações) Montanha. O ponto de partida. Não há lembrança maior do que viver cercado por ela. Ainda que se passem dias, meses e anos fora de Minas, abrir a janela todos os dias e observá-la é mais que um hábito. A ideia de que a curva está em tudo, especialmente na cintura, renderia uma série de possibilidades coreográficas. Bastou falar em montanha para ela
se empolgar e partir para outras geometrias. Conscientemente ou não, a reprodução do movimento da Serra do Curral está impregnada nos jeitos e trejeitos daqueles que andam por aqui. Uma particularidade do povo mineiro, talvez. Foi quando surgiu a intenção de traduzir em dança esse tal gingado. O palco poderia ser o centrão. A Praça 7, cercada de calçadões largos, a porta do Cine Brasil, que vai reabrir, o Café Nice, que
Niemeyer, pela biblioteca pública, por um palácio e até mesmo por uma edificação conhecida como “rainha da sucata”, a praça renderia observações interessantes. A ideia de fazer poesia com o corpo, “esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica”. Cassilene é conhecida justamente pelo caráter poético que imprime em cada gesto, independentemente da cena, do pretexto ou do lugar. Daí o fascínio da maioria em simplesmente observá-la. Se a leveza inerente ao balé transparecia a cada momento da intervenção, a artista vivenciava um turbilhão de sensações. A proposta desafiadora a tirou da zona de conforto proporcionada pela caixa preta do teatro. “Aos poucos fui me sentindo à vontade, especialmente por perceber o interesse e a curiosidade das pessoas.”
nunca fechou em décadas, ou o casarão que já foi e sempre será o Instituto Moreira Salles. Ela poderia coreografar entre tantos aquis e acolás. Também há a Praça do Papa, com aquele horizonte belo aos pés e a imensidão rochosa ao fundo. Pipas coloridas no céu e as pessoas aproveitando a doçura de não fazer nada. A Praça da Liberdade, porém, teria um gosto especial. Cercada pelo recém-inaugurado circuito cultural, pelo prédio sinuoso de
Instantes tangenciados pela surpresa, pela “troca com os artistas de rua como se fôssemos cúmplices falando a mesma língua. Mas, sem dúvida, o que mais me encantou foi a garotinha que não se conteve e se juntou a mim, na tentativa de reproduzir os mesmos movimentos. Naquele momento, me senti a inspiração para um caminho que ela poderia vir a seguir. Cada segundo na praça foi intenso e absolutamente sensacional”. Assim, o encaminhamento ao espetacular não se reduzia em favor da intervenção, pois encantador mesmo é se movimentar em direção ao outro.
SURREAL
SUBTERRÂNEO Desdobramento da série Transitórios, Linha Amarela toma o pulso da veia subterrânea da cidade de São Paulo e poetiza o serpentear de vagões e o fluxo intenso de passageiros. Ao desconstruir imagens, o fotógrafo Diego Kuffer cria caleidoscópios surreais e transforma o cotidiano de túneis e trens.
OBSERVATÓRI O.24
32
Diego Kuffer é paulistano, formado em administração de empresas pela Faap e pós-graduado em semiótica psicanalítica pela PUC-SP. Em 2010, abandonou a carreira em marketing para se dedicar à fotografia, como arte e profissão.
APOSTAMOS NA S U A A P O S T A Ajude a Efêmero Concreto a ser a primeira revista nacional totalmente viabilizada pelos seus leitores
Cada uma das três edições já lançadas da Efêmero Concreto nasceu de um jeito diferente. A primeira delas só pôde ser impressa e distribuída graças à colaboração de mais de 200 pessoas – que acreditaram na ideia e apoiaram o projeto por meio do Catarse, plataforma online de financiamento coletivo. A segunda edição, por sua vez, contou com a ajuda do Itaú Cultural – que bancou os gastos de produção da revista – e dos artistas que, abrindo mão de seus cachês, participaram da festa de lançamento da publicação. E este número foi produzido, impresso e distribuído de forma independente. Não é à toa, portanto, que ele chegou um pouco atrasado: a equipe da revista levou muito mais tempo para
conseguir o dinheiro destinado aos jornalistas, fotógrafos, ilustradores, artistas e demais profissionais que colaboraram para a edição, bem como ao pessoal da gráfica, que deu corpo aos 5 mil exemplares desta Efêmero Concreto #3. Depois de todas essas experiências, resolvemos voltar ao financiamento coletivo. Queremos apostar na ideia de que o crowdfunding pode ser entendido não apenas como o pontapé inicial de um projeto, mas também como o seu meio de produção permanente. Podemos, juntos, fazer a primeira publicação do Brasil totalmente financiada pelas pessoas – sem se prender a marcas, lucro ou ao governo.
Será possível?
SEG 25 MARÇO
catarse.me/efemeroconcreto4
FAÇA PARTE! APOIE!
Nesta edição da Efêmero Concreto contamos com o apoio de grandes e importantes parceiros que nos ajudaram a realizar mais uma etapa deste sonho.
C ONFLU ÊNC I A.38
ANOTACOES DE VIAGENS
POR MARCELINO FREIRE ILUSTRAÇÃO FERNANDO DE ALMEIDA
O escritor Marcelino Freire conta sobre as terras nas quais deixou parte de si, sobre o poder e o impacto de uma primeira vez e sobre as lembranças que leva consigo por todos os pontos que percorre, seja nos mapas da ficção, seja na realidade.
A
primeira terra em que morri foi Sertânia. Cidade do Sertão de Pernambuco, a 350 quilômetros do Recife. Vivi lá até os 3 anos. Minha mãe arrastou os nove filhos – eu, o caçula. Fugimos da seca. Para estudar. Meu filho, ninguém é ninguém sem o estudo. Você ainda será um médico, um advogado. Uma mãe nunca cria um filho para ser poeta. A segunda terra em que morri foi Paulo Afonso. Cidade da Bahia. Lembro-me da cachoeira. Minha infância foi cheia de água. Mulungus, algarobas. Havia verde. E o sol queimava. A primeira roda-gigante foi em Paulo Afonso. O primeiro cavalinho. O primeiro circo. No quintal mesmo, de casa, meu irmão montou uma lona para o fim de semana. E a gente se apresentava. Fazia de conta que era gorila, palhaço, mulher barbada. O primeiro animal que domestiquei foi um urubu.
A terceira terra em que morri foi o Recife. Cheguei aos 8 anos. Minha mãe teimava: ia de um lugar ao outro. Atrás de faculdade. Para os filhos serem gente. Moramos no bairro de Água Fria, perto de Olinda. E Olinda tinha praia e Carnaval. E eu comprei minha primeira bicicleta com o salário de office boy. Fiz teatro no Recife. Tive grupo de poesia. Fui à casa de Gilberto Freyre. Participei de oficinas literárias. Sofri de paixão. Isso que acaba nos tirando o chão. A vontade que dava de pular de alguma ponte. Rio Capibaribe. A quarta terra em que morri foi São Paulo. Dia 13 de julho de 1991. Dia de minha vinda. Chovia e fazia 12 graus. Nem imaginava que um dia eu moraria em um prédio de 12 andares. E beberia na Vila Madalena. Vasculharia sebos.
40
Conheceria uma geração de escritores. Coordenaria oficinas de criação. Em São Paulo, virei um agitado. Não sei dirigir carros. Tomei gosto por cafés amargos. São Paulo me deu um sotaque – eu não sabia que falava cantando. E cordelizado. Eu digo que amo São Paulo. Mas só quero sexo. Nessa cidade envelheço. E aqui serei enterrado. Um pouco da poeira de Sertânia irá comigo. Da paisagem irá comigo. Bodes, berros. O gogó da gata. Um sopro de teimosia irá comigo. Um verbo. A quentura dos galhos. A água do balneário. O Cine Castelo de Paulo Afonso. Homens fantasiados de cangaceiros. No Carnaval. O dia em que meu irmão me vestiu de menina. E eu tinha um cabelo liso. E umas pernas finas. Irá comigo também minha primeira fantasia. Do Recife as leituras. A poesia de Manuel Bandeira irá comigo. A Rua da União. A 7 de Setembro. O desfile militar – para ver meu irmão mais velho passar marchando. As duas goiabeiras. Meu pai e o jogo de bicho. Meu primeiro conto. O espetáculo de teatro que ajudei a produzir. A casa, a casa. Sempre sonho com aquela casa. Vejo. São Paulo habita todas as paisagens. E organiza para mim um inventário. Um testamento. São Paulo um dia acordará para trabalhar. Enquanto eu durmo. Onde estarei? Lá, com certeza, lá. Do outro lado do mundo. Na primeira terra em que viverei.
A primeira poesia Que o tomate te mate. Que a batata te bata. A primeira vontade Ser tuberculoso igual o Manuel Bandeira. O primeiro pensamento Urubu sabe o que come. O primeiro microconto – Faz um favor para mim? – Qual? – Aperta o gatilho. Quando a gente escreve cria uma cidade. Uma mistura de todas as cidades em que vivemos. Ou onde gostaríamos de viver. Erguemos um pântano quando a gente escreve. Atravessamos pontes. Abismos altos. Somos habitantes de planetas que não existem. Por exemplo: esta rua. Não há número nas casas quando a gente escreve. Nem portas. As janelas sempre abertas. E o coração fica no centro. Os mendigos não envelhecem sujos. Quando a gente escreve um bando de gente vem morar no nosso olhar. Sem pedir licença. Nada de alvará. Nem de comprovante de residência. Não me peça para ficar. Quando a gente escreve a viagem é outra. Sempre na próxima esquina. Qualquer palavra solta. A primeira foto Sou eu mesmo? O primeiro beijo Foi numa galinha.
A primeira saudade Não vai embora. A primeira dúvida Será que ele gosta mesmo de mim? Urgente. Quero uma outra arquitetura para minha literatura. Como se eu tivesse, em algum momento, atravessado uma portinhola para uma outra esfera. Longe de minha ladainha costumeira. Porque me dizem: você escreve muito sobre a miséria. Uma reza sem fim. A moça banguela. Escreve hiper-realista sobre ela. Você não levanta outras paisagens. Por que não tenta? Uma miragem que seja. Por mais pequena, uma nova voz se erga. Uma flor do lácio. No asfalto. Fiquei tentado. Rascunhei alguns gráficos. Pedi conselhos. Andei, por esses dias, vendo fotografias. Reli contos do Cortázar. Reparei os cruzamentos que ele faz. Em Paris, Buenos Aires, no ringue, no nocaute. Misturei as estações. Parece, até, que estou psicografando. Ou sonhando. Terras tão distantes essas que nascem quando escrevemos. Sem contar as plataformas. Eu tenho um blog chamado Ossos do Ofídio. O último pôste Quando escrevo sou um índio. E tenho uma tribo. Uma toca. Um rio à minha volta. Um canto único. De guerra. Acredito que defendo. Com unha e flecha. O que resta
da floresta. Quando escrevo sou um velho. Que carrego comigo as dores do tempo. Um coração baleado. Um amor do passado. Em meus poros. Cavo na própria pele uma cova. Para habitar os mortos. Quando escrevo creio que sou um doido. Varrido do mapa. Que não tenho casa. E vivo à solta. Sou um bicho. Não uma pessoa. Mordo quem venha se meter. No meu mundo. Vou sem medo ao poço sem fundo. Quando escrevo sou um soldado. Desses que se armam com o próprio corpo. Tocam fogo nas vestes. Correm em chamas. À praça. Um guerreiro em prece. Em brasa. Não sou covarde. Nem viro fumaça. Quando escrevo estou cantando. Para uma multidão. Uma canção antiga. Algo que sai do peito. Minha palavra ganha força. E peso. Mesmo sozinho no meu canto. Sinto que sou a voz de um povo inteiro. Quando escrevo eu sou sempre o outro. Em que me vejo. Para terminar Só começando. Marcelino Freire é escritor. Publicou, entre outros, os livros Angu de Sangue (Ateliê Editorial, 2005) e Contos Negreiros (Editora Record, 2005 – Prêmio Jabuti 2006). É criador da Balada Literária e integra o coletivo EDITH, pelo qual lançou o livro de contos Amar É Crime (2011). [marcelinofreire.wordpress.com]
44
PA S S A N D, O O CHAPEU POR KELLY CRISTINA SPINELLI FOTOS MARIANO JUAREZ
Não importa se determinada cidade incentiva, ignora ou proíbe a arte feita nas ruas. Tanto faz se os performers – estrangeiros ou locais – trabalham para os turistas ou para quem vive ali. Os anseios, as dificuldades, os sonhos, os impasses e as recompensas de quem usa o espaço urbano como palco parecem independer de questões geográficas. Das brigas com vizinhos a um improvável encontro com os Red Hot Chilli Peppers, histórias dos artistas de rua de Buenos Aires.
REPORTAGEM.46
48
“O
brigado, obrigado a todos! Mas nós não vivemos apenas de aplausos. Não se privem do prazer de contribuir. Um show de tango custa, no mínimo, 100 dólares por pessoa, portanto, se você gostou, não vai sair caro deixar 20 dólares, 20 reais ou 20 pesos”, repete Pedro “El Indio” Benavente, depois de rodopiar com sua parceira Diana Parra pela Plaza Dorrego, em Buenos Aires, capital argentina. O cabelo enrolado, bem preto e comprido, preso em um rabo, e a camisa com alguns botões abertos ajudam a entender o apelido de um dos mais conhecidos artistas de rua da feira de San Telmo. Em uma das mãos, El Indio segura um chapéu preto, o qual passa ao redor do círculo de espectadores para receber as gorjetas, que parecem fartas. Senta-se para descansar e escuta uma senhora pedir a Diana: “Meu marido gostaria de dançar com você”. Diana olha para o parceiro, que responde por ela. “Se contribuírem, não há problema”, diz esboçando um sorriso enquanto assiste à moça caminhar com o senhor de cabelos brancos até uma espécie de tapete feito com caixas de papelão, que faz as vezes de palco.
Faz frio e, já que não está se apresentando oficialmente, Diana dança com uma blusa de lã coberta por uma jaqueta. Quando a dupla voltar ao trabalho, após o descanso, ela estará com as costas expostas ao vento, porque seu vestido de show é decotado até quase a cintura. “A pior parte de trabalhar na rua é o frio, ou o calor nos dias de verão, quando você passa o dia inteiro suando”, fala Diana, ao sentar-se, finalmente. Ela é colombiana, tem 24 anos, e dançar na praça é uma das fontes de renda que a mantêm na Argentina. “Muitas vezes, trabalhar na rua é melhor do que em outros lugares. Tem gente que acha humilhante, mas não é. É a sua arte, pura e transparente, não uma coreografia que você repete diariamente, como nas casas de tango, sob uma estrutura puramente mercantilista”, acredita. Seu sonho é ser convidada a fazer parte de um grupo de baile de uma companhia profissional e sair pelo mundo em turnê (em 2012, o casal Paola Sanz e Facundo de La Cruz, que se apresentava na Rua Florida, foi o vencedor do campeonato mundial de tango e ganhou o passe para uma nova vida: recebeu 40 mil pesos, uma
viagem a Paris e a oportunidade de fazer uma turnê pelo Japão). Já El Indio, mais velho e experiente, fez o caminho oposto: foi integrante do Ballet Nacional Folclórico, esteve em diversas turnês pelo mundo e se apresentou com o balé Bolshoi, na Rússia, mas decidiu largar as companhias por sentir-se mais feliz ao dançar nas ruas – o que já faz há mais de 20 anos. “É assim que eu transmito a minha cultura; não me apresento pelo dinheiro”, diz. Ainda assim, o público o escutará repetir seu pedido por gorjetas como um mantra após cada apresentação. Afinal, o artista tem que viver.
O boneco de madeira e a pinga ruim A alguns quarteirões dali, Guillermo Bernasconi tem seu próprio ritual. Ele está vestido com a mesma camisa e com os mesmos suspensórios que sua marionete, um boneco de madeira com jeito de bêbado que segura uma garrafa em uma das mãos. No chão, um aparelho toca tangos conhecidos, enquanto Bernasconi faz o boneco caminhar por seu pequeno palco, aparentando estar triste com a vida. A marionete tropeça, olha para o céu e toma da garrafinha. Termina desmaiada em um dos cantos, perto de um poste de luz, em uma rotina de 3 minutos, repetida cerca de 90 vezes entre o meio-dia e as 6 da tarde de cada domingo.
Artesão, Bernasconi tomou gosto pelo trabalho com títeres e marionetes quando morou no Brasil e fez oficinas com os integrantes do Giramundo, um dos mais premiados grupos de bonecos do mundo. Diz que em terras canarinhas, onde desenvolveu esse show, seu personagem se chamava Zeca Pagodinho e a garrafinha que carregava tinha uma etiqueta na qual se lia “pinga ruim”. O artista sabe agradecer em português as gorjetas dos brasileiros. Na Argentina, o boneco se chama Cholito, nome dado por um espectador que acabou virando um dos alunos de Bernasconi. Ele dá aulas e se envolve em toda e qualquer atividade que tenha a ver com as marionetes, já que os artistas raramente conseguem manter-se só com o que ganham nas ruas. Em uma feira como a de San Telmo, que recebe 10 mil turistas a cada domingo, o dia costuma render entre 200 e 300 pesos (86 e 130 reais).
A vizinhança é quem manda Nem todo mundo gosta da presença dos artistas pelas ruas da cidade. A feira de San Telmo é dividida em pequenas organizações de vizinhos, que se responsabilizam pelo que acontece em travessas e ruas – são várias pequenas feiras, na verdade. Cada qual decide se permite ou não a presença dos artistas.
5094
Bernasconi trabalha na Rua Defensa, dividindo seu espaço com uma série de mágicos e estátuas vivas que ficam na porta de alguns antiquários. De vez em quando a polícia aparece e manda todos embora, por reclamação dos vizinhos ou dos donos das lojas – em geral fazendo uso do Código de Contravenções da Cidade de Buenos Aires (a Lei 1.472), que em seu artigo 82 prevê multas de até mil pesos por “ruidos molestos”, apesar de a mesma lei, no artigo seguinte, dizer que o trabalho dos artistas de rua não constitui crime. “Agora está tranquilo, mas no começo do ano não nos queriam aqui”, diz Bernasconi. “Eu sou dos poucos que têm autorização da organização da feira para trabalhar, mas mesmo assim já tive muitos problemas”, conta. O Indio
Benavente também já passou por maus bocados – chegou a ser ameaçado de prisão por realizar milongas na Plaza Dorrego. “É incrível como a mesma prefeitura que promove o tango como patrimônio cultural da humanidade aceite tirar os artistas da rua”, indigna-se. Mesmo assim, em poucas horas de um domingo é possível ver mais de 20 artistas circulando por ali. É uma tradição antiga, em geral impulsionada por crises financeiras. Diz-se que durante o chamado “corralito”, em 2001, quando muita gente perdeu todo o dinheiro de sua poupança e a Argentina mergulhou em uma gravíssima recessão, muitas duplas de tango perderam o emprego em casas de shows e passaram a fazer suas performances em praças e calçadas.
Em dezembro de 2004, um incêndio na boate Cromañón – que resultou na morte de 200 jovens durante um show, figurando uma das maiores tragédias da história contemporânea argentina – fez com que uma orquestra típica de tango recém-formada, El Afronte, não encontrasse lugar para trabalhar. Além do medo generalizado, a prefeitura passou a fiscalizar com mais rigor a estrutura dos lugares onde os grupos musicais poderiam se apresentar. Os 11 músicos se reuniram e a orquestra passou a tocar em uma das travessas de San Telmo todos os domingos. O cantor, Marco Bellini, mescla as dramáticas melodias tangueiras, cantadas com a ajuda de um microfone, com a venda de dois CDs do grupo e de entradas para shows. “Levem o primeiro por
35 pesos, ou os dois por 60, mais uma entrada grátis para o nosso show de amanhã com aula de tango”, diz, enquanto distribui uma filipeta na qual estão descritas as três apresentações semanais da orquestra, duas delas em clubes de tango. Em 2012, a El Afronte partiu para a quinta turnê na Europa. Esse é um sucesso que o Buenos Aires Jazz Cuarteto, que se apresenta aos domingos na Pasaje San Lorenzo, uma das travessas da Rua Defensa, nem sequer almeja. O grupo, formado há um ano e meio por colegas do conservatório superior de música Manual de Falla, encontrou na rua uma forma de ganhar dinheiro nos fins de semana. No entanto, os músicos não consideram o local ideal para mostrar sua arte, pois, além da
inadequação acústica, eles têm que focar um repertório mais popular e, no inverno, tocam com os dedos congelados. Gostariam, no mínimo, de ser contratados para apresentações fixas em um bar. Por enquanto, ganham uma média de mil pesos de gorjetas a cada dia de apresentação, que dividem entre os quatro. E brincam sobre a ocasião fatídica em que levaram apenas 13 pesos para casa cada um, justo quando o preço do metrô saltou de 1,10 para 2,50. Enquanto o salário não aumenta, os músicos colecionam boas histórias, como a maioria dos artistas de rua. Um mendigo, uma vez, colocou uma empanada dentro do chapéu do quarteto, no lugar da gorjeta – depois recuperada pelo cachorro que estava com ele. Mas talvez o melhor caso seja o contado pelo Indio Benavente. Era 1993, ele estava dançando com uma de suas antigas parceiras ali pelo Caminito, perto do estádio do Boca Juniors, outro ponto turístico importante da cidade. Não entendia por que uns garotões cabeludos colocavam mais e mais dinheiro no chapéu. “Achei que eram uns torcedores do estádio, mas não fazia sentido”, conta. Foi se informar com um colega, que lhe disse que, na verdade, se tratava dos Red Hot Chilli Peppers. Resultado: o grupo o convidou para se apresentar em seu próximo show, no dia seguinte, no Estádio Obras Sanitária. Dançou “La Cumparsita”, de Carlos Gardel, com sua parceira, tocada ao vivo pelo baixista Flea.
Como figurantes num cartão-postal As ruas de San Telmo são um exemplo do que acontece semanalmente em feiras de Buenos Aires. Uma pequena multidão de turistas percorre o bairro, circulando entre barracas de artesanato, restaurantes e artistas. Há uma série de mágicos, dançarinos, titeriteiros, estátuas vivas e músicos, alguns com local fixo para se apresentar, outros itinerantes. Anônimos, os artistas de rua são como figurantes nos cartões-postais da cidade, atrações para as quais o turista aponta, tira fotos e faz comentários. Poucos sabem que entre eles há ganhadores de mundiais, alunos de conservatórios, profissionais que saem em turnê pelo mundo. Lidam com vizinhos incomodados e com a prefeitura, que não reconhece sua existência. Enfrentam o frio, o calor e o sol, e a chuva que os impede de trabalhar. Mas reclamam principalmente de quem para, olha, fotografa e não deixa nenhum centavo. No domingo em que estivemos ali, um grupo de turistas se encantou com Ricardo Ferrer, estátua viva da feira de San Telmo há dez anos. Ele fica das 11 às 19 horas posando na Rua Defensa, bem ao lado do show de marionetes, para ganhar algo entre 200 e 300 pesos. Não come o dia inteiro, nem nos breves
intervalos, para não engolir a tinta branca que cobre seu rosto. “Será que tem que pagar para tirar foto dele?”, pergunta uma moça para a amiga. “Que nada; para ali na frente dele rapidinho.” Elas posam em frente à estátua, batem uma foto e saem andando sem deixar sequer uma moeda. Poucos minutos antes, os meninos do Buenos Aires Jazz Cuarteto tinham recebido quatro pintas de cerveja de presente, trazidas pelo garçom do bar vizinho. Foram oferecidas por outro artista, um russo chamado Pavel. Músico de uma orquestra de câmara, ele havia se apresentado no dia anterior no Teatro Colón e seguia dali para o Uruguai. Deu-lhes parabéns e lhes desejou “muita sorte, muita arte e bastante dinheiro”, resumindo o desejo da maioria dos artistas que vivem de passar o chapéu. Kelly Cristina Spinelli é jornalista, ilustradora e mais uma estrangeira em Buenos Aires. Escreve e ilustra uma coluna semanal para o Terra Magazine e contribui para revistas como Piauí e Trip.
TAPA-BU RAC O.56