Revista Eletrônica Estudos Hegelianos

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SUMÁRIO Editorial

Christian Klotz

Artigos A concepção holística de natureza de Hegel em uma Reinterpretação moderna Dieter Wandschneider

O movimento tautológico da natureza. Sobre a gênese da consciência de si a partir da consciência na Fenomenologia do Espírito Andreas Arndt

Neurociência Cognitiva e a Atualidade de Hegel Holger Hagen

O Conceito de Diversidade (Verschiedenheit) na Ciência da Lógica e na Filosofia do Direito de Hegel Paulo Roberto Konzen

The Thinking of Abstraction Guillaume Lejeune

Nota bibliográfica

Joãosinho Beckenkamp, O jovem Hegel. Formação de um sistema pós-kantiano Pedro Aparecido Novelli


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Editorial O presente número da Revista Estudos Hegelianos reúne artigos que se dedicam a aspectos centrais da Lógica, da Filosofia da Natureza e da Filosofia do Espírito de Hegel. As contribuições têm em comum que exploram aspectos da atualidade da filosofia de Hegel. O artigo de Dieter Wandschneider parte do diagnóstico de que o conceito cartesiano de natureza, mecanicista e baseado na concepção da matéria como extensão, tornou-se obsoleta. Portanto, há o desiderato de um conceito contemporâneo de natureza. No entanto, na medida em que a filosofia da natureza foi substituída pela filosofia da ciência, a filosofia não é capaz de desenvolver tal concepção. A tese principal de Wandschneider é que a filosofia idealistaobjetiva da natureza de Hegel pode ser interpretada como trazendo justamente o que nessa situação precisamos: uma concepção não-cartesiana da natureza que corresponda ao estado atual das ciências naturais. Conforme Wandschneider argumenta, as categorias a priori da natureza, desenvolvidas por Hegel, trazem uma fundamentação ontológica para teorias empíricas recentes. E, vice versa, elas recebem sua concretização pelos argumentos empírico científicos. A ideia de tal elucidação mútua entre desenvolvimento conceitual-categorial e concretização empírico-científica é, por assim dizer, o fio contudor da argumentação de Wandschneider. A tese hegeliana, fundamental para sua filosofia da natureza, de que há uma tendência da natureza à superação da exterioridade, isto é, à coerência e idealização, segundo Wandschneider pode ser interpretada de tal modo que teorias empíricas da física e biologia de hoje recebem um fundamento ontológico-idealista, que ao mesmo tempo nelas é concretizada empiricamente. Em particular, apesar da crítica de Hegel ao evolucionismo, Wandschneider defende que a concepção hegeliana da natureza pode ser entendida como fundamento ontológico de uma teoria da evolução, e que a teoria dos sistemas, influente na biologia, pode ser interpretada como concretização empírica do conceito hegeliano de organismo. A contribuição de Andreas Schmidt busca elucidar a passagem das figuras da consciência para as figuras da consciência de si no capítulo “Força e Entendimento” da Fenomenologia do Espírito. Nessa passagem transforma-se a compreensão da consciência do que para ela é “o verdadeiro”: o que deve ser conhecido não é mais um mundo de forças que atuam conforme leis da natureza, tal mundo sendo independente de qualquer observador. Agora para a consciência a essência da realidade a ser conhecida é seu próprio ser-para-si. A


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passagem para tal concepção auto-referencial do conhecimento parece se dá através de uma contradição que surge dentro das explicações do entendimento, que por sua vez se orientam pelos conceitos de ‘força’ e de ‘lei’: nelas, o entendimento introduz uma distinção entre explanandum e explanans que, ao refletir sobre ela, o próprio entendimento reconhece como inválida. Como tal contradição pode trazer a passagem para a consciência de si? Poder-se-ia pensar em interpretá-la no sentido de que nela a consciência se torna consciente do fato de que a força é apenas projetada, ou “posta” por ela; ou, alternativamente, no sentido de que a contradição de distinção e não-distinção é análoga na sua estrutura à consciência de si. Ambas essas sugestões podem apoiar-se em passagens do texto hegeliano. No entanto, Schmidt argumenta que na contradição do explicar a estrutura geral das suas experiências se torna objeto da própria consciência e, com isso, justamente o que ela essencialmente é na perspectiva fenomenológica. Essa tese permite interpretar a passagem para a consciência de si não no sentido subjetivista da concepção da força como projeção da consciência, nem no sentido da analogia estrutural entre a forma da explicação e a consciência de si, mas no sentido da identidade da experiência do entendimento e da consciência de si. O objetivo do artigo de Holger Hagen é partir do pensamento de Hegel para dar um diagnóstico crítico acerca da neurociência cognitiva, cujas teses ficaram influentes também além do âmbito científico. A neurociência cognitiva identifica processos e atividades mentais com processos neuronais – ela acredita poder observar o pensamento como atividade do cérebro. No entanto, argumenta Hagen, essa identificação não possui fundamento, visto que os dois fenômenos – também pelo próprio neurocientista – são identificados de modos diferentes, o dado empírico sendo apenas uma correlação constante entre processos mentais e neuronais, e não sua identidade. Segundo Hagen, essa objeção já pode ser identificada na crítica de Hegel à teoria de Gall na Fenomenologia do Espírito. Que Hegel, além disso, também já criticou os pressupostos teóricos nos quais a neurociência cognitiva se baseia, segundo Hagen pode ser mostrado no exemplo da concepção do conhecimento que nela é defendida. Esta pode ser considerada como uma versão contemporânea do ceticismo moderno epistemológico. Assim, na neurociência cognitiva o sujeito cartesiano e suas representações são substituídos pelo cérebro, que tem acesso apenas aos seus próprios estados, estando separado do objeto por um abismo radical. Nessa visão, os conteúdos pensados transformam-se num instrumento para acessar a um objeto que está além do conhecimento. Portanto, aqui o cérebro não é entendido apenas como uma condição biológica do pensar, mas como o sujeito próprio do conhecimento, que é concebido como separado do objeto num sentido que corresponde às premissas do ceticismo moderno. Ora, na Introdução da Fenomenologia do Espírito Hegel destacou justamente esse pressuposto da separação de sujeito e objeto, e o modelo – ligado a este – do conhecimento como instrumento, como as pressuposições da epistemologia cética que devemos questionar. Segundo Hagen, mostra-se que esse pressuposto não se sustenta pela contradição interna da neurociência cognitiva, que, por um lado, nega a objetividade do conhecimento, e, por outro lado, se apoia num suposto conhecimento objetivo do cérebro. É uma característica da filosofia de Hegel que ela desenvolve as disciplinas da “filosofia real” em base de uma Lógica, no sentido de uma teria de conteúdos conceitualcategoriais que nelas se concretizam. Assim, para a interpretação das partes “reais” do sistema de Hegel surge a tarefa de identificar e explicitar aqueles elementos da Lógica que possuem um papel chave nelas. No seu artigo, Paulo Roberto Konzen pretende destacar o conceito de diversidade (Verschiedenheit) como uma categoria da Lógica da Essência que é fundamental para a filosofia do direito de Hegel. Konzen argumenta que, segundo a Lógica de Hegel, o conceito de diversidade envolve a ideia de uma igualdade qualitativa que o diverso tem em comum, mas também a de uma desigualdade qualitativa. Portanto, a diversidade pressupõe uma igualdade abstrata como condição da diferenciação do diverso. Já a frequência da ocorrência dos termos “diversidade” e “diverso” mostrariam que esse conceito da Lógica da

Essência possui um papel importante na Filosofia do Direito. Corresponde a isso o fato de que nela encontramos o aspecto da igualdade qualitativa como condição fundamental da efetuação da liberdade, que Hegel não entende como igualdade material, mas como igualdade jurídicaformal (embora sem ignorar os problemas que resultam da desigualdade material). No entanto, Konzen vê o problema central da filosofia do direito de Hegel num outro aspecto do conceito de diversidade na sua concretização social - na desigualdade qualitativa das pessoas que, segundo Hegel, deve ser respeitada, mas ao mesmo tempo mediatizada com a universalidade do estado. Conforme Konzen argumenta, é a partir dessa perspectiva que o sentido da concepção do estado como unidade “orgânica” precisa ser compreendido. Por fim, Guillaume Lejeune busca elucidar o projeto da Lógica de Hegel ao discutir criticamente as objeções que foram formuladas contra esse projeto por Trendelenburg. Trendelenburg criticou a Lógica de Hegel pelo seu caráter abstrato. Mais precisamente, a lógica hegeliana seria uma teoria acerca de categorias do pensamento que se deve à abstração de determinações concretas e que hipostasia as categorias sem refletir sobre as condições da abstração, sendo assim uma teoria “dogmática”. Assim, a intuição como condição de toda abstração ficaria ignorada nela. Por isso, Trendelenburg adotou o projeto de uma “philosophia fundamentalis”, que – como a Lógica de Hegel – visa estabelecer uma ligação entre lógica e metafísica, mas que leva em conta a origem gramatical-linguística das categorias do pensamento. Conforma argumenta Lejeune, Hegel não nega a ligação estreita do pensamento com a linguagem e sua gramática – sob esse aspecto, o projeto de Trendelenburg não é oposto ao de Hegel. No entanto, Hegel consideraria a linguagem do ponto de vista de uma metateoria crítica que reconstrói a autodeterminação objetiva do pensamento como fundamento implícito da semântica. Portanto, o objetivo de Hegel é entender como o pensamento pode tornar-se concreto, o abstrato sendo concebido como aquilo que ainda não está determinado, e não como abstração no sentido de Trendelenburg. Segundo Lejeune, Hegel concebe subjetividade e abstração de um modo original, como envolvidos num processo que sinteticamente concretiza o conteúdo, e não como objeto de uma mera análise. Trendelenburg, conclui Lejeune, ignorou esse ponto na sua crítica, errando assim em relação ao alvo da sua crítica. Pela revisão técnica dos trabalhos reunidos neste número agradeço a Luciano Carlos Utteich (Unioeste), Luíz Fernando Barrére Martin (UFABC), Fábio Mascarenhas Nolasco (Doutorando/Unicamp) e Adriana Oliveira de Santana (UFG). Por fim, meus agradecimentos a Verrah Chamma pela tradução do artigo de Dieter Wandschneider, e a Márcia Gonçalves pelo constante apoio.

Hans Christian Klotz (UFG) Editor


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O movimento tautológico da natureza. Sobre a gênese da consciência de si a partir da consciência na Fenomenologia do Espírito1 Andreas Schmidt* Resumo: O capítulo “Força e Entendimento” possui na Fenomenologia do Espírito a função central de trazer a passagem das figuras dogmáticas da consciência para as figuras da consciência de si, nas quais a consciência é para si mesma o verdadeiro. O objetivo do presente artigo é elucidar o sentido sistemático dessa passagem. Para isso é preciso reconstruir a contradição interna que, segundo Hegel, surge nas explicações do entendimento que se orientam pelos conceitos de força e lei. Defende-se que o caráter particular dessa contradição possibilita interpretar a passagem para a consciência de si no sentido da tese de que, na contradição do movimento da explicação, a consciência experiência a estrutura geral das suas próprias experiências e, com isso, experiência a si mesma. Portanto, a passagem para a consciência de si não deve ser entendida no sentido de uma tese subjetivista do objeto como projeção, nem como asserção de uma analogia entre a forma da explanação e a estrutura da consciência, mas no sentido da tese da identidade entre a experiência do entendimento e a consciência de si. Palavras-chave: Hegel, Consciência de si, Força, Lei, Entendimento, Explicação. Abstract: Dem Kapitel “Kraft und Verstand” kommt in Hegels Phänomenologie des Geistes die zentrale Funktion zu, den Übergang von den dogmatischen Gestalten des Bewusstseins zu denen des Selbstbewusstseins zu leisten, in denen das Bewusstsein sich selbst das Wahre ist. Ziel des vorliegenden Aufsatzes ist es, die Bedeutung dieses Übergangs aufzuklären. Hierfür ist der innere Widerspruch zu rekonstruieren, der Hegels Darstellung zufolge in den an den Begriffen der Kraft und des Gesetzes orientierten Erklärungen des Verstandes hervortritt. Es wird die These vertreten, dass der eigentümliche Charakter dieses Widerspruchs es ermöglicht, den Übergang zum Selbstbewusstsein im Sinne der These zu interpretieren, dass das Bewusstsein im Widerpruch des Erklärens die allgemeine Struktur seiner eigenen Erfahrungen, damit aber sich selbst erfährt. 1 1 Tradução do alemão de Christian Klotz e Fábio Mascarenhas Nolasco. * Doutor em Filosofia pela Universidade de Tübingen (Alemanha); professor da Universidade de Jena (Alemanha). Email: andreas.as.schmidt@uni-jena.de.


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Der Übergang zum Selbstbewusstsein ist demnach nicht im Sinne einer subjektivistischen Projektionsthese zu verstehen, auch nicht als Behauptung einer Analogie zwischen Erklärungsform und Struktur des Selbstbewusstseins, sondern im Sinne der These der Identität der Erfahrung des Verstandes und des Selbstbewusstseins. Schlagworte: Hegel, Selbstbewusstsein, Kraft, Gesetz, Verstand, Erklärung. O capítulo “Força e Entendimento” possui um papel central na Fenomenologia do Espírito de Hegel, pois é nele que se dá a passagem da consciência, para a qual “o verdadeiro é ... algo outro que ela mesma” (§ 166, 120 (135))2, para a a consciência de si, na qual “a consciência é para si mesma o verdadeiro” (ibid.). Pode-se entender isso como passagem de um ponto de vista dogmático para um ponto de vista transcendental – com o que essa passagem é motivada por uma crítica imanente ao ponto de vista anterior. Ora, no capítulo “Força e Entendimento” Hegel descreve o mundo tal como ele se apresenta nas ciências naturais. O mundo das ciências naturais parece, para Hegel, já predestinado a nos levar, através das suas contradições internas, ao ponto de vista transcendental. No que segue pretendo abordar a questão de como podemos entender isso.

A Percepção

Antes de adentrar de modo mais pormenorizado o capítulo “Força e Entendimento”, preciso primeiro esboçar brevemente a problemática para a qual ele deve ser uma resposta. Isso significa: preciso fazer algumas observações sobre o capítulo (imediatamente anterior) “A Percepção ou: a coisa e a ilusão”. A percepção é uma figura da consciência, e como todas as figuras da consciência ela faz uso de categorias a respeito das quais, segundo Hegel, se pode mostrar que levam a contradições. Para a percepção, o mundo consiste em objetos singulares com uma pluralidade de propriedades transitórias. O problema que a percepção tem que enfrentar é o da mediação entre a unidade da coisa, por um lado, e a pluralidade das propriedades transitórias, por outro. Se a unidade da coisa deve consistir meramente na copresença das muitas propriedades – se a coisa deve ser meramente um “também” (§ 120, 86 (101)) de muitas propriedades, como Hegel o exprime –, então não pode haver nenhuma identidade da coisa por sobre a variação de popriedades. Porque neste caso a coisa é idêntica a um determinado agregado de propriedades; se uma propriedade desaparece, a coisa também desaparece. No entanto, se a unidade da coisa deve consistir num portador “por trás” das propriedades, então a identidade da coisa por sobre a variação das propriedades não é mais problemática. Mas um portador de propriedades ao qual não se atribui essencialmente nenhuma das propriedades que porta – que, portanto, é definido pela exclusão dessas propriedades de si – seria um mero particular sem propriedades e não poderia mais ser distinguido numericamente de outros meros particulares (pelo menos se aceitamos o principium identitatis indiscernibilium). Nas palavras de Hegel: a coisa “não exclui de si as outras porque seja uno – já que ser Uno é o universal relacionar-se-consigo-mesmo, e, na verdade, ao ser uma, ela é igual a todas as outras” (§ 120, 85 (101)). Com isso, o mundo da percepção – isto é, um mundo de substâncias particulares com propriedades que variam – evidencia-se como contraditório. No entanto, não podemos parar aqui se queremos fazer enunciados verdadeiros com pretensões de objetividade sobre o mundo. Para salvar a possibilidade de pretensões válidas de objetividade em relação ao mundo, uma nova figura da consciência é introduzida, que Hegel chama de “entendimento”. O entendimento vai além do mundo da percepção, além do dado sensível, para 2 As citações no texto original são feitas conforme Hegel, 1988. A esta edição refere-se o primeiro número de páginas informado depois de cada citação. O segundo número de páginas, entre parênteses, refere-se a Hegel, 2003, que é a tradução citada aqui. Os números de parágrafos referem-se à numeração dos parágrafos que se encontra, por exemplo, na tradução de Miller.

uma esfera suprassensível, que, consequentemente, não pode consistir em coisas singulares com propriedades variáveis. Portanto, o entendimento abandona a ontologia coisal (Dingontologie). No entanto, a tarefa da nova ontologia é definida pelo problema da ontologia da coisa: ela deve possibilitar de volta a identidade diacrônica por sobre uma variação de estados. Inicialmente, para esse objetivo, a ontologia do entendimento adota como fundamental o conceito de lei, depois o de força, e finalmente o conceito de vida. No entanto, dado que tal como antes vale ainda o princípio de que o contato com a realidade se dá por sobre a percepção, o dado sensível, então, não pode simplesmente ser ignorado pelo entendimento: o que agora é considerado como ontologicamente fundamental – a lei, a força ou a vida – só pode ser introduzido legitimamente na medida em que possui uma função explicativa em relação ao dado sensível. Em todo caso, o não-sensível (como aquilo que sempre se fará presente) é assim um fundamento não-sensível do sensível, e só como tal pode ser estabelecido legitimamente. Para a interpretação do capítulo “Força e Entendimento”, que pretendo propor agora, preciso pressupor duas observações: primeiro: Hegel costuma dividir os capítulos da Fenomenologia do Espírito de tal modo que primeiro é introduzido o novo objeto da maneira como este se apresenta para nós, os leitores, para depois descrever como o objeto se apresenta para a figura da consciência a ser abordada, esta que então faz sua experiência dialética com esse objeto. No que segue, parto do fato de que no capítulo “Força e Entendimento” a primeira parte, que descreve o objeto para nós, é extraordinariamente extensa, e que a discussão longa e complicada a respeito das forças “solicitantes” e “solicitadas” e da sua unidade ainda faz parte, de fato, dessa etapa preparatória. A experiência propriamente dita da consciência com seu objeto, a meu ver, começa só com o conceito de lei. A consciência, então, tem que primeiro se esforçar para subir do conceito de lei para o conceito de força, que para nos, os leitores, já foi introduzido ex cathedra como o objeto apropriado do entendimento3. Segundo: conforme já dito, a esfera do suprassensível deve possuir uma função explanatória em relação ao sensível. Além disso, Hegel compreende esse fundamento suprassensível como fundamento suficiente da existência do sensível, razão pela qual premissas monistas ou necessitaristas têm, no capítulo “Força e Entendimento”, sempre repetidamente um papel4. No entanto, a meu ver, esse fato não tem nenhum papel central na dinâmica própria dos argumentos desenvolvidos nesse capítulo. Por isso, farei abstração disso completamente no que se segue.

A Lei O primeiro candidato para o papel do fundamento suprassensível do sensível é o conceito de lei: “O mundo suprassensível é, portanto, um tranqüilo reino das leis; certamente, além do mundo percebido, pois esse só apresenta a lei através da mudança constante; mas as leis estão também presentes no mundo percebido, e são sua cópia imediata e tranqüila” (§ 149, 105 (119120)). A ideia de que o conceito de lei possui uma prioridade ontológica perante o da coisa singular implica que os objetos de que tratam as leis são delas dependentes, e isto no sentido de que não possuem nenhuma propriedade intrínseca fora das relações conforme à lei nas quais se encontram. (Naturalmente, esses objetos não são idênticos aos objetos da percepção; são entidades teóricas que, no entanto, estão vinculadas a objetos perceptíveis através de leis-ponte (Brückengesetze), de 3 Não é por acaso que a abordagem sobre as forças “solicitantes” e “solicitadas” não se encontra nem na versão curta da Enciclopédia, nem nas versões dos Escritos de Nuremberg. 4 Tais premissas monistas são particularmente evidentes (a) na discussão da relação entre forças solicitantes e solicitadas – de fato, Hegel discute aqui o problema de uma causa sui – e (b) na sua primeira crítica ao conceito de lei (que não será considerada aqui): ele critica que a lei pressupõe a existência dos dados do antecedens sem explicá-los – o que só é uma crítica plausível na medida em que o fundamento suprassensível deve ser um fundamento suficiente de tudo. Cf. Schmidt, 2012


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forma tal que podem explicar o comportamento deles5.) Hegel formulou várias objeções contra a identificação do fundamento suprassensível com as leis. A objeção mais importante é a seguinte: na medida em que defendemos uma concepção humeana das leis, isto é, entendemos leis como codificação de regularidades na natureza, então elas não possuem nenhum papel explanador – um papel que deveriam cumprir como fundamento não-sensível do sensível. Pode-se elucidar esse ponto através de um exemplo: suponhamos que eu tenha percebido que até agora sempre que molhei um cubo de açúcar no café, o cubo se dissolveu. Assim (desconsiderando o problema da indução) posso concluir corretamente: “Cada vez que se molha um cubo de açúcar no café, o açúcar se dissolve. Molharei agora este cubo de açúcar no café. Portanto, este cubo de açúcar se dissolverá”. Esse silogismo é correto. No entanto, não dei nenhuma explicação da dissolução do cubo de açúcar. Essa situação muda quando digo: “O café possui uma força dissolvente em relação ao açúcar; portanto, se molho este cubo de açúcar no café, ele se dissolverá”. Isso, admite-se, não é uma explanação particularmente elucidativa, mas pelo menos é alguma: porque pela referência a uma força inerente ao café é dito que a ligação entre os dois acontecimentos não é mera coincidência, mas se dá necessariamente. Isto é: se queremos explanações de verdade, a ligação entre os tipos de eventos precisa ser necessária, e essa necessidade precisa de algum fundamentum in re – por exemplo, a referência às forças. O próprio Hegel formula essa crítica da seguinte maneira: “É justamente na lei que a diferença é captada imediatamente e acolhida no universal; mas com isso [também] um subsistir dos momentos cuja relação o universal exprime como essencialidades indiferentes e em si-essentes (§ 141, 106 (121), grifo de A.S.). A “diferença” em questão aqui é a diferença entre tipos diferentes de acontecimentos: um cubo de açúcar é mergulhado no café – o cubo de açúcar dissolve-se. Essa diferença é acolhida no universal na medida em que se observa, entre os dois tipos de acontecimentos, uma ligação conforme à lei. No entanto, os momentos dessa lei – os tipos de acontecimentos – são “indiferentes” entre si: não há nenhuma relação intrínseca de um tipo de acontecimento com o outro; com isso, falta à lei seu caráter de necessidade. A ‘indiferença’ dos momentos contradiz a “necessidade interna” (ibid.) que a lei precisa possuir, se deve ser explanatória. Na sua ‘Doutrina da consciência para as turmas intermediárias’ (1809 ss.) Hegel escreve sobre a lei: “A universalidade e a permanência dessa relação leva à necessidade da mesma, mas sem que a diferença seja uma diferença determinada ou interna, na qual uma das determinações está imediatamente contida no conceito da outra”6.Isso significa: uma necessidade da ligação é afirmada na lei, mas permanece inexplicada. Se queremos explicações, temos que introduzir forças.

A força Hegel também o vê assim, e por isso passa do conceito de lei ao conceito de força: “A lei está portanto presente de duas maneiras: uma vez como lei, em que as diferenças são expressas 5 À primeira vista, a ideia da prioridade ontológica das leis em relação às coisas particulares talvez seja um pouco contra-intuitiva. No entanto, ela encontra-se desenvolvida com mais pormenor, por exemplo, em Ernst Cassirer (“Agora a física não trata mais imediatamente do ser-ai como conteúdo efetivo, mas ela trata do conjunto das relações (“Gefüge”), da sua constituição formal. A tendência para a unificação venceu em relação à tendência para a intuitividade: a síntese, que é feita pelos conceitos puros de leis, mostrou-se superior à unificação em conceitos de coisas. Com isso, a ordem tornou-se o conceito fundamental próprio, “absoluto”, da física (Cassirer, 1994, pág. 547). Uma posição parecida encontra-se também – em parte com referência explícita a Cassirer – no assim chamado realismo estruturalista, como resposta ao problema de compatibilizar uma posição realista em relação a teorias científicas com uma “meta-indução pessimista” em relação à validade de teorias passadas: o pessimismo seria apropriado em relação às entidades de que tratam as teorias científicas, mas não em relação às estruturas matemáticas que são formuladas nelas. Com isso sugerese entender as estruturas matemáticas como o que é propriamente real. Ver, por exemplo, French e.a., 2003. 6 G.W.F. Hegel, 1986a, pág. 116.

como momentos independentes; outra vez, na forma do simples Ser-retornado-a-si-mesmo, que [...] pode chamar-se força; contando que não se entenda a força recalçada mas a força em geral ou o conceito de força: uma abstração que arrasta para si as diferenças [...] (§ 152, 107 (121)). No conceito de lei os momentos (isto é, os tipos de acontecimentos) são “momentos independentes” sem relação interna entre si; o conceito de força, por oposição, é aquilo que “arrasta para si as diferenças”, isto é, que estabelece sua ligação intrínseca. Portanto, a ideia aqui é que a lei está fundada na força; que a lei é o modo como a força se manifesta. Ora, normalmente concebemos forças como propriedades de coisas. Mas está claro que aqui não podemos entendê-las assim: a ontologia da coisa mostrou-se deficiente no capítulo “A Percepção”. As forças, sobre o que se trata agora, precisam ser, por assim dizer, forças puras, isto é, forças que, por sua vez, não são inerentes a objetos. No entanto, no caso das forças também fica claro de que modo elas podem oferecer uma solução do problema que ficou em aberto no capítulo “A Percepção”. O problema dizia respeito à possibilidade de se captar conceitualmente a identidade por sobre a variação. No caso das forças, isso é compreensível por si; pois forças, por definição, estão relacionadas a seus efeitos, e se se trata de uma força cujo efeito consiste num processo de várias etapas, então se compreende que aqui a mesma força se manifesta no decorrer dessas etapas. Nesse caso, a força não é algo que permanece idêntico apesar da variação, mas algo que permanece idêntico justamente pela variação dos efeitos nos quais se manifesta. Podemos supor que é por isso que o capítulo é intitulado “Força e Entendimento”, e não “Lei e Entendimento”: o conceito de lei ainda não é apropriado como sucessor para o conceito de coisa. Justamente porque uma lei não é explicatória em relação à variação, mas apenas a codifica, então não podem os estados que variam ser entendidos como manifestações dela, e, portanto, não faz sentido dizer que a lei permanece neles, por sobre a variação, idêntica. De fato, de nenhum modo a lei está “neles”. Até aqui, tudo bem. No entanto, o conceito de força também traz consigo um problema. Conforme já dito, o contato com a realidade se dá, tanto antes como agora, no plano da percepção; não dispomos de um acesso epistêmico às forças elas mesmas que fosse independente. Por isso, uma explanação através de uma força corre o risco de tornar-se, tal como diz Hegel, um “movimento tautológico” (§ 155, 109 (124)) desprovido de qualquer conteúdo empírico. Observamos uma regularidade e postulamos uma força que é definida justamente pelo fato de que ela gera essa regularidade com necessidade. Assim, introduzimos através das forças uma diferença que não é nenhuma: “As diferenças são a pura exteriorização universal ou a lei, e a pura força; as duas têm o mesmo conteúdo, a mesma constituição. Assim é descartada de novo a diferença como diferença de conteúdo, isto é, da Coisa.” (§ 154, 109 (124)) Essa diferença, que é posta para ser logo descartada, reflete-se no prefixo modal das regularidades. Com as forças, a regularidade é necessária, sem forças ela é contingente – mas essa diferença modal não pode ser localizada empiricamente. E na medida em que, na ontologia, a parcimônia é uma virtude, parece ilegitimo introduzir tais entidades geradoras de necessidade, como as forças. Na Enciclopédia, Hegel é ainda mais explícito: “Por um lado, a completa determinação-do-conteúdo da força é exatamente o mesmo que a exteriorização: a explicação de um fenômeno por sua força é, por isso, uma tautologia vazia. [...] Essa forma [da reflexão-sobre-si; da força] nada acrescenta, no mínimo que seja, ao conteúdo e á lei, que só devem ser conhecidos a partir do fenômeno. Garante-se, de todos os lados, que nada se deve afirmar sobre a força; assim não se vê por que a forma da força foi introduzida nas ciências.7” No entanto, se abrimos mão do conceito de força, então recaímos de volta no conceito de lei; e porque se mostrou que o conceito de lei não apresentava alternativa nenhuma ao conceito de coisa, vemo-nos novamente remetidos à percepção e suas categorias. No entanto, conforme mostrado, também não podemos permanecer junto a elas, porque eram contraditórias e nos remeteram ao mundo suprassensível das leis e forças. 7

Hegel, 1986b, § 136, pág. 270 (tradução citada aqui: Hegel, 1995, pág. 257-58).


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Movemo-nos explicitamente num círculo.

A vida Poder-se-ia talvez esperar que o capítulo termina com esse resultado. No entanto, isso não é o caso; o entendimento ainda não desiste. Sua última saída consiste em simplesmente afirmar esse oscilar entre o mundo sensível e o mundo suprassensível e sustê-lo como essência da efetividade. O oscilar mesmo torna-se, agora, como uma “segunda-lei” (§ 156, 110 (125)), uma lei, por assim dizer, de segunda ordem, introduzida como uma lei na qual a essência do mundo se reflete: “Assim, [o entendimento] experimenta, como sendo lei do próprio fenômeno, que diferenças vêm-a-ser que não são diferenças nenhumas, ou que o homônimo se repele de si mesmo; e também, que as diferenças são apenas tais que não são nenhumas, e se suprassumem; ou, que o heterônimo se atrai.” (§ 156, 110 (125)) Aquilo que acabou de ser criticado como movimento tautológico do esclarecimento torna-se agora num movimento que é característico para o próprio mundo. Essa oscilação é o que Hegel chama de “vida”: “Esta infinitude simples – ou o conceito absoluto – deve-se chamar a essência simples da vida, a alma do mundo, o sangue universal, que onipresente não é perturbado nem interrompido por nenhuma diferença, mas que antes é todas as diferenças como também seu Ser-suprassumido; assim, pulsa em si sem mover-se, treme em si sem inquietar-se.” (§ 162, 115 (129)) A meu ver, Hegel não se refere aqui à vida biológica, mas a esse movimento “desconstrutivo,” que primeiramente remete o pensamento do mundo sensível para o mundo suprassensível – e, com isso, introduz uma diferença entre ambos – e em seguida, pela falta de um conteúdo fixável, ‘descarta’ de novo o mundo suprassensível – e, com isso, a diferença. Com isso, a efetividade ela mesma possui uma estrutura contraditória8. Essa solução também é criticada por Hegel. Mas qual crítica ainda é possível? Não podemos criticar a nova posição ao constatar-lhe sua contraditoriedade. Sua contraditoriedade é afirmada por ela mesma. Cito Hegel: “Há que pensar a mudança pura, ou a oposição em si mesma: a contradição” (§ 160, 114 (128). A respeito dessa posição, o que Hegel critica nela é antes o fato de que ela não é suficientemente consequente; que não compreende completamente as suas próprias implicações. Procedeu-se como se essa tal “segunda-lei”, que exige pensar na variação o mundo sensível e suprassensível como o que efetivamente é, fosse algo objetivo: justamente a lei essencial do mundo, tal como ela é constituída em si. No entanto, isso é impossível: o mundo suprassensível havia sido introduzido para garantir a possibilidade de pretensões de objetividade em relação ao mundo – em relação ao mundo da percepção tais pretensões já se mostraram impossíveis. Na medida em que – conforme a “segunda lei” – o mundo suprassensível precisa tanto ser posto como ser ‘descartado’, a objetividade do mundo, também, precisa sempre ser ‘descartada’. O oscilar entre o pôr e o negar do mundo suprassensível não é algo que se deixa domesticar como lei essencial objetiva: ela faz desmoronar a diferença ela mesma 8 Pode-se perguntar quem jamais propôs tal teoria – é claro que não se trata da posição do próprio Hegel, pois tal teoria também será criticada. Talvez a posição apresentada não seja outra senão a ontologia implícita às modernas ciências da natureza, que de fato tanto introduz forças para satisfazer suas pretensões explanatórias, como também pretende delimitar-se empiricamente à descrição matemática de regularidades. Os dois aspectos encontram-se, por exemplo, imediatamente nos Principia de Newton. No seu comentário à Definição VIII, Newton escreve: “Não [considero] essas forças fisicamente, mas apenas matematicamente […]. Por isso, o leitor tome cuidado para não pensar que eu pretendesse definir através de tais conceitos o modo como os efeitos acontecem, ou sua causa ou seu modo de ser físico; ou que eu quisesse atribuir aos centros (que são pontos matemáticos) forças reais e no sentido físico, mesmo que eu utilizasse os termos: os centros atraem um o outro, ou: há forças dos pontos” (Newton, 1988, pág. 43 – ligeiramente modificada). No entanto, no início dos Principia Newton diz: “Toda dificuldade da filosofia consiste no fato de que inferimos as forças da natureza a partir dos fenômenos do movimento, e posteriormente, a partir dessas forças, determinamos com exatidão os demais fenômenos. É a isso que se referem as proposições universais de que tratamos no Primeiro e no Segundo Livro” (ibid.).

entre sujeito e mundo objetivo. Assim escreve Hegel: “A infinitude certamente se torna objeto do entendimento na lei oposta – como inversão da primeira lei – ou na diferença interior; mas o entendimento de novo fahla em atingi-la como infinitude, ao dividir a diferença em si em dois mundos, ou em dois elementos substanciais: o repelir-se a si mesmo do homônimo, e os desiguais que se atraem. Para o entendimento, o movimento, tal como é na experiência, é aqui um acontecer; e o homônimo e o desigual são predicados cuja essência é um substrato essente” (§ 164,117 (131)). Os “dois mundos” ou os “dois elementos substanciais” dos quais se trata aqui são a consciência e o mundo objetivo. A falha do entendimento consiste em pensar que o movimento seja apenas um movimento objetivo na essência do mundo, um (como Hegel o expressa) “acontecimento” no qual a consciência não estaria envolvida e que ela só teria que constatar. No entanto, isso é um erro. A objetividade mesma – e, com isso, também a consciência – fica envolvida nesse movimento.

A Autoconsciência Como podemos, a partir desse diagnóstico, passar para a autoconsciência? Ora, poderia parecer plausível pensar que Hegel pretenda estabelecer uma tese anti-realista em relação ao mundo suprassensível: ele seria simplesmente algo postulado pela consciência. Tal interpretação é sugerida quando Hegel diz: “Levanta-se, pois, essa cortina sobre o interior e dá-se o olhar do interior para dentro do interior [...] Fica patente que por trás da assim chamada cortina, que deve cobrir o interior, nada há para ver; a não ser que nós entremos lá dentro – tanto para ver como para que haja algo ali atrás que possa ser visto” (§ 165, 118 (132)). No entanto, não creio que tal teoria da projeção pode ser o resultado visado por Hegel, e isso por duas razões. Primeiro: se o mundo suprassensível fosse algo meramente postulado pela consciência, então Hegel adotaria uma simples posição empirista, conforme a qual justamente o mundo sensível constituiria a essência das coisas. No entanto, que isso não é o caso sabemo-lo já desde o capítulo sobre a percepção. Segundo: se a intenção fosse meramente criticar a crença na realidade do mundo suprassensível, então Hegel já poderia ter terminado o capítulo com sua crítica ao conceito de força. Já ali está atingida a ideia de que a diferença entre o mundo sensível e o mundo suprassensível “recai exclusivamente no entendimento; não está [...] posta na Coisa mesma” (§ 154, 109, (123)). No entanto, o capítulo não terminou com isso; seguiu ainda a discussão do conceito de “vida”. Uma segunda possibilidade de interpretação consistiria em que Hegel pretenderia apontar para uma analogia estrutural entre a autoconsciência e aquilo que ele descreveu como o movimento da vida: nos dois casos há uma diferença que não é nenhuma. Hegel escreve: “ [...] a consciência é, para-si-mesma, o diferenciar do não-diferenciado ou consciência-de-si. Eu me distingo de mim mesmo, e nisso é imediatamente para mim que este diferente não é diferente. Eu, o homônimo, me expulso de mim mesmo; mas este diferente, este posto-como-desigual, é imediatamente, enquanto diferente, nenhuma diferença para mim” (§ 164, 117s., (131)). No entanto, nesse caso não se entende bem porque essa analogia deveria trazer uma nova figura da consciência, para a qual a autoconsciência é o essencial. Uma relação de analogia entre a vida e a consciência de si me parece uma motivação fraca demais para isso. Por isso, gostaria de sugerir que se concebesse a relação entre a vida e a autoconsciência como uma relação de identidade. Assim, resultaria a seguinte interpretação da passagem: a consciência fez nas figuras anteriores uma série de experiências – “experiência” no sentido hegeliano, isto é, a experiência da contraditoriedade interna de suas concepções de saber e de objeto. Ora, no fim do capítulo “A Força e o Entendimento” a consciência não faz apenas uma experiência, mas pela primeira vez a experiência ela mesma torna-se objeto da consciência, justamente na medida em que esse oscilar necessário entre posições contradizentes é ele mesmo fixado como objeto. A


Revista Eletrônica Estudos Hegelianos

consciência, poder-se- dizer, faz aqui a experiência da experiência ela mesma. E se se acrescenta a premissa de que a autoconsciência não é outra coisa senão essa experiência dialética – então a consciência agora toma, de fato, conhecimento de sua autoconsciência9. Que isso é bem o significado da passagem é também sugerido pela seguinte formulação: “Nós vemos que no interior do fenômeno o entendimento na verdade não experimenta outra coisa que o fenômeno mesmo. Não o fenômeno do modo como é jogo de forças, mas sim, o jogo das forças em seus momentos absolutamente universais, e no movimento deles: de fato, o entendimento só faz experiência de si mesmo” (§ 165, 118 (132)). Portanto, o entendimento experiencia a si mesmo ao experienciar o jogo – não das forças, mas o jogo dos momentos na sua universalidade mais alta: e isso é justamente a experiência dialética ela mesma10.

Bibliografia Cassirer, Ernst, Philosophie der Symbolischen Formen, Vol. III, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1994 French, Steven e Ladyman, James, “Remodelling Structural Realism: Quantum Physics and the Metaphysics of Structure”, in: Synthese 136 (2003), 31-56 Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, Nürnberger und Heidelberger Schriften 1808-1817 (= Werke, vol. IV), org. por Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel, Frankfurt am Main: Suhrkamp 1986 (= 1986a) - Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, Vol. I (= Werke, Vol. VIII), org. por Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel, Frankfurt am Main: Suhrkamp 1986 (= 1986b) - Phänomenologie des Geistes. Neu herausgegeben von Hans-Friedrich Wessels und Heinrich Clairmont, Hamburg: Meiner 1988 - Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio, Vol. I: A Ciência da Lógica, tradução de Paulo Meneses, São Paulo: Loyola 1995 - Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses, Petrópolis: Vozes 2003 Newton, Isaac, Mathematische Grundlagen der Naturphilosophie, Hamburg: Meiner, 1988 Schmidt, Andreas, “Differences that are none. Hegel’s Theory of Force in the Phenomenology of Spirit”, in: Juhani Pietarinen e Valtteri Viljanen (Hrsg.): The World as Active Power, Leiden: Brill, 2012, pp. 283-304 Verene, Donald Phillip, Hegel’s Absolute. An Introduction to Reading the Phenomenology of Spirit, Albany, State University of New York Press, 2007 Artigo recebido em abril de 2010 Artigo aceito para publicação em fevereiro de 2013

9 Talvez D. Verene tenha algo parecido em mente, quando escreve: „This principle of inversion that destroys consciousness as the ultimate form of experience, in particular, the understanding, is transformed into the principle of the inner life of the self. Consciousness through its preoccupation with the object has all along attempted to stop or avoid dialectic. Now the principle of dialectic—the passing of a moment to its opposite — is overtly taken up as the life of self-consciousness. Dialectic is not a threat to self-consciousness but its security” (Verene, 2007, pág. 54) 10 Esse momento do movimento (conceitual) como elemento constitutivo da consciência de si é também retomado no início do capítulo “A verdade da certeza de si mesmo”: “Mas de fato, porém, a consciência-desi é a reflexão, a partir do ser do mundo sensível e percebido; é essencialmente o retorno a partir do serOutro. Como consciência-de-si é movimento; mas quando diferencia de si apenas a si mesma enquanto si mesma, então para ela a diferença é imediatamente suprassumida, como um ser-outro. A diferença não é; e a consciência-de-si é apenas a tautologia sem movimento do “Eu sou Eu”. Enquanto para ela a diferença não tem também a figura do ser, não é consciencia-de-si” (§ 167, 121 (136)).



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