MINHA DOR NÃO SAI NO JORNAL O fotógrafo Nilton Claudino lembra o que sofreu ao ser sequestrado por policiais cariocas
Vitória em Cristo O Pastor Silas Malafaia prospera imprecando contra os inimigos do Senhor
A Epidemia da Doença Mental Porque cresce o número de pacientes tratados com antidepressivos
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EDITORIAL
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prefeito Eduardo Paes é insaciável quando se trata de abocanhar eventos grandiosos para a cidade do Rio de Janeiro. Não bastasse ele ser o anfitrião da partida mais nobre da Copa do Mundo, além dos Jogos Olímpicos de 2016, a agenda do burgomestre agora inclui, também, a 28ª Jornada Mundial da Juventude, a JMJ, marcada para daqui a dois anos. É coisa grande. A julgar pelos 2 milhões de católicos de 193 países que afluíram a Madri no mês passado para se reunir com o papa Bento XVI, a Jornada carioca poderá atrair mais gente do que a final da Copa no Maracanã. Não é pouca coisa, mas Paes cobiça algo ainda maior: roubar da capital das Filipinas, Manila, o recorde de 4 milhões de fiéis que João Paulo II conseguiu atrair para a edição de 1995. Sendo assim, é bom começar a pensar grande também nas instalações específicas que o megaevento demanda: fileiras e mais fileiras de confessionários portáteis. Em Madri, onde algumas avenidas da cidade ficaram fechadas ao trânsito durante seis dias para dar vazão ao fluxo de peregrinos, os pecadores foram bem contemplados. Somente numa alameda do Parque Retiro, área que se estende por 118 hectares da capital espanhola, foram instalados 200 exemplares criados pelo arquiteto e designer Ignacio Vicens e executados pela centenária Carpintería Ebanistería Emilio Úbeda, da cidade de Ávila. O modelo fabricado em melanina e revestido de PVC alvíssimo é de montagem rápida e fácil, mas obviamente não prevê privacidade ao penitente.
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Nem precisa. Nos dias de hoje, já é muito a Igreja Católica ainda exigir a presença de um padre para que o rito sagrado se consuma. Todas as outras etapas do sacramento da confissão – que se destina a curar a alma e recuperar a graça divina perdida no pecado – já podem ser percorridas on-line. Foram-se os tempos em que a contrição (ato de se arrepender), a revelação (ato de narrar o pecado) e a penitência (ato de expiar) de pecadilhos veniais ou pecadões mortais eram feitas de joelhos, em confessionários claustrofóbicos e intimidantes. À época, a figura do padre do outro lado da divisória, só sugerida, jamais revelada durante a confissão, adquiria as formas propostas pela imaginação aflita do pecador. Nem precisa. Nos dias de hoje, já é muito a Igreja Católica ainda exigir a presença de um padre para que o rito sagrado se consuma. Todas as outras etapas do sacramento da confissão – que se destina a curar a alma e recuperar a graça divina perdida no pecado – já podem ser percorridas on-line. Foram-se os tempos em que a contrição (ato de se arrepender), a revelação (ato de narrar o pecado) e a penitência (ato de expiar) de pecadilhos veniais ou pecadões mortais eram feitas de joelhos, em confessionários claustrofóbicos e intimidantes. À época, a figura do padre do outro lado da divisória, só sugerida, jamais revelada durante a confissão, adquiria as formas propostas pela imaginação aflita do pecador.
Imagem: Elaine Rodrigues Zé Pequeno ensina aos policiais como lidar com a comunidade. “Este homem que está com a faca em seu pescoço vai matá-lo. Entregue sua alma a Deus e arrependa-se dos seus pecados.”
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AMARGO
SALGADO
Epidemia de doença mental 14
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Por que cresce assombrosamente o número de pessoas com transtornos mentais e de pacientes tratados com antidepressivos e outros medicamentos psicoativos.
A minha dor não sai no jornal 25 Eu era fotógrafo de O Dia, em 2008, quando fui morar numa favela para fazer uma reportagem sobre as milícias. Fui descoberto, torturado e humilhado.
AZEDO
Por falta de insumos, está difícil cumprir a pena de morte.
Amarelar, jamais 57 Como atua a associação que luta por um Brasil mais colorido.
DOCE
Badboy com toque patético 53 O afã de afrontar conveniências parece condição necessária para que Lars von Trier consiga se expressar.
O neoerudito alegórico 45 Pessimista, reacionário e retórico, o intelectual midiático voltou a fumar cachimbo.
Vitória em Cristo 47 O Pastor Silas Malafaia prospera imprecando contra os inimigos do Senhor.
Editorial 4 Cartas 6 Arte do Leitor 7 Quadrinhos 60 5
ESPAÇO DO LEITOR Questões líterobiográficas
Contradições religiosas
23/09/2011 14:00 Enviada pelo site
23/09/2011 14:00 Enviada pelo site
“Uma casa para Elizabeth” (piauí_59, agosto) foi uma das melhores reportagens que eu já li. Algo que torna cada releitura um fascínio gostoso de não querer esquecer completamente, sem falar da vida dessa poeta que amou o Brasil como sua estadia para um futuro relacionamento amoroso com a nossa terra.
“Super Mulher” Rodrigo Guimarães (Rn)
Primoroso o artigo “A morte sem os mortos” (piauí_61, outubro), do veterano diplomata Marcos de Azambuja. Histórias interessantíssimas narradas com estilo e muito senso de humor. Um texto saborosíssimo, de lamber os beiços. O Luis Fernando Verissimo que se cuide. Daniela Capistrano (RN)
Demian Lamblet (RN)
“Guarda-Sol” Thayssa Telles (RS)
Em defesa dos fortes
Questões de Verso e Vanguarda
23/09/2011 14:00 Enviada pelo site
23/09/2011 14:00 Enviada pelo site
Simplesmente não existe a figura de “padre marista”, como citado em “O protetor dos poderosos”. O religioso marista nunca é ordenado padre e, quando o quer, deve deixar a congregação. Pelo jeito, o douto criminalista burlou outras aulas além das de química.
“Uma casa para Elizabeth” (piauí_59, agosto) foi uma das melhores reportagens que eu já li. Algo que torna cada releitura um fascínio gostoso de não querer esquecer completamente, sem falar da vida dessa poeta que amou o Brasil como sua estadia para um futuro relacionamento amoroso com a nossa terra.
Marina Almeida (Rn)
Nathany Santos (Rn)
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“Tu taí Tatuí” Val de Castro, Viamão (RN)
The Lobão chronicles
Memórias pouco diplomáticas
23/09/2011 14:00 Enviada pelo site
23/09/2011 14:00 Enviada pelo site
O humor (sátira política?) do “The Café-Soçaite Herald” (piauí_61, outubro) destoa da qualidade e bom gosto da linha editorial da revista. O personagem destacado – se não for para uma crítica séria e contundente – deve ser esquecido. O senhor Edison Lobão é que deve estar contente com a propaganda gratuita – “Falem mal ou falem bem, mas falem de mim.”
Primoroso o artigo “A morte sem os mortos” (piauí_61, outubro), do veterano diplomata Marcos de Azambuja. Histórias interessantíssimas narradas com estilo e muito senso de humor. Um texto saborosíssimo, de lamber os beiços. O Luis Fernando Verissimo que se cuide.
“Garatuja” Renan Porto, Umarizal (Rn)
Mariana Araújo (Rn)
Bruna Lopes (Rn)
Tacacázitos 23/09/2011 14:00 Enviada pelo site Pus-me a marcar os lugarescomuns da edição 61, de piauí. Fiquei uma caneta marca-texto novinha mais pobre. Camila Cavalcanti (Rn)
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Azedo Por Dorrir Harazim
Por falta de insumos, está difícil cumprir a pena de morte.
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ra só o que faltava: falta anestésico para a execução dos condenados à morte nos Estados Unidos. E, pelo jeito, a escassez do insumo só tende a se agravar. O ano de 2011 começou com 3.251 detentos aguardando execução em 35 dos cinquenta estados que mantêm a pena capital. Desde que a quase totalidade desses estados adotou a injeção letal como sistema único de homicídio legal, o procedimento se dava em três tempos: a) Administração do sedativo tiopental sódico, que deixa o condenado inconsciente. Em cirurgias normais, usa-se o anestésico em doses de 100 a 150 miligramas. A dose para execuções chega a 5 mil miligramas. b) Injeção de brometo de pancurônio. Trata-se de um relaxante muscular que paralisa os pulmões e o diafragma. Também camufla qualquer sinal externo de dor. c) Aplicação de cloreto de potássio, que provoca parada cardíaca. Mais de 1.200 execuções vinham seguindo esse protocolo desde 1976, quando a pena de morte foi restabelecida nos Estados Unidos. Só que o único fabricante americano do tiopental sódico, a Hospira Inc., anunciou em janeiro passado que cessaria a produção do sedativo: estava com dificuldade de obter a matéria-prima necessária. Ainda tentou importar o insumo de Milão, mas o governo da Itália, pressionado pela opinião pública europeia, exigiu garantias de que o produto não seria usado em execuções. Para a Hospira Inc., o veto italiano veio a calhar. Onze anos atrás, o estado do Illinois, onde a empresa tem sede, já havia decretado uma moratória
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nas execuções – o governador da época fez história ao oficializar seu medo de conviver com o demônio do erro. E, no início de 2011, o Legislativo do Illinois deu o passo final, abolindo de vez a pena capital em suas fronteiras. Em contrapartida, nos estados americanos com fila de espera nos corredores da morte, o baque foi grande. Datas de execuções começaram a ser postergadas e o desabastecimento levou quatro estados a irem às compras no exterior – o que, por sua vez, gera protestos e processos de grupos humanitários que não confiam no produto importado. Visto que a importação do barbitúrico é estritamente controlada por lei federal, advogados de presos passaram a exigir que os departamentos penitenciários divulguem a procedência das drogas utilizadas. Em resumo, sujou.
alguém aí tem fósforo?
tido na alfândega um carregamento de tiopental sódico, importado através de uma firma de produtos hospitalares. “Depois fez negócio direto com uma empresa atacadista inglesa, a Dream Pharma, que funciona nos fundos de uma escola de pilotagem em Londres” e, segundo advogados ativistas, em franca violação das leis federais americanas. De todo modo, o carregamento acabou sendo interceptado pela polícia. O Kentucky (36)*e o Tennessee (87)*, dois estados que também tinham importado a muamba letal da mesma fonte, preferiram se adiantar e entregaram a mercadoria às autoridades policiais. Um carregamento despachado do Arizona (138)*para a prisão de San Quentin, na Califórnia (721)*, gerou um processo de mais de mil páginas que contém vinhetas esclarecedoras. “Esta é uma missão secreta (...) altamente sensível para a mídia”, alertou o secretário de Operações do Departamento Penitenciário da Califórnia a subordinados. Sua nota de agradecimento enviada ao colega do Arizona foi calorosa: “Vocês aí do Arizona são verdadeiros salva-vidas. Te pago uma cerveja quando passar por suas bandas.” Diante de tamanha penúria, a solução foi recorrer ao uso de um anestésico alternativo ao tiopental – o pentobarbital, ainda não aprovado pela agência reguladora americana, a Food and Drug Administration. Pior, de acordo com a Associação Americana de Veterinários, essa droga, em combinação com as outras duas, sequer é recomendada para encerrar a vida de um animal. No Texas (321)*, o uso veterinário do pentobarbitalsegue regulamentação rígida – a relação dosagem/peso do animal a ser sacrificado precisa constar dos autos. Só que o estado não adotou nenhuma instrução especial para o uso do mesmo em humanos. “Não há como experimentar o seu efeito em execuções de presos sem executá-los”, constata o óbvio o diretor do Death Penalty Information Center, de Washington. O condenado à morte Cleve Foster, cuja
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Azedo
execução em Huntsville estava prevista para abril deste ano, mas teve a morte suspensa pela terceira vez no mês passado, deve ser o primeiro texano a receber o pentobarbital. “Se a droga não funcionar a contento, ele sentirá uma dor inenarrável, semelhante a ter as veias do corpo incendiadas”, alerta Clive Smith, diretor da organização Reprieve, voltada para a abolição da pena de morte. Quem até agora se beneficiou da escassez do sódio tiopental foi a
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firma dinamarquesa Lundbeck. Ela é a única fabricante europeia de pentobarbital a fornecer o material para clientes americanos e na base do don’t ask, don’t tell, isto é, melhor não perguntar para não saber qual uso será dado ao produto. A empresa tenta defender a comercialização da droga alardeando sua eficácia no combate à epilepsia, mas o cerco continental está se fechando. Sob pressão da Comunidade Europeia, Inglaterra, Alemanha e Áustria já proibiram empresas insta-
“Esse silêncio tá me matando!”
ladas no país de exportar drogas usadas em execuções. A Dinamarca, agora, é a bola da vez. Até porque o último civil executado em sua fronteira remonta a 1882. Não haverá de querer sujar a sua história agora. A solução foi recorrer ao uso de um anestésico alternativo ao tiopental – o pentobarbital, ainda não aprovado pela agência reguladora americana, a Food and Drug Administration. Pior, de acordo com a Associação Americana de Veterinários, essa droga, em combinação com as outras duas, sequer é recomendada para encerrar a vida de um animal. No Texas (321)*, o uso veterinário do pentobarbital segue regulamentação rígida – a relação dosagem/ peso do animal a ser sacrificado precisa constar dos autos. Só que o estado não adotou nenhuma instrução especial para o uso do mesmo em humanos. “Não há como experimentar o seu efeito em execuções de presos sem executá-los”, constata o óbvio o diretor do Death Penalty Information Center, de Washington. O condenado à morte Cleve Foster, cuja execução em Huntsville estava prevista para abril deste ano, mas teve a morte suspensa pela terceira vez no mês passado, deve ser o primeiro texano a receber o pentobarbital. “Se a droga não funcionar a contento, ele sentirá uma dor inenarrável, semelhante a ter as veias do corpo incendiadas”, alerta Clive Smith, diretor da organização Reprieve, voltada para a abolição da pena de morte.
“Vocês aí do Arizona são verdadeiros salva-vidas. Te pago uma cerveja quando passar por suas bandas.” Quem até agora se beneficiou da escassez do sódio tiopental foi a firma dinamarquesa Lundbeck. Ela é a única fabricante europeia de pentobarbital a fornecer o material para clientes ameri-
canos e na base do don’t ask, don’t tell, isto é, melhor não perguntar para não saber qual uso será dado ao produto. A empresa tenta defender a comercialização da droga alardeando sua eficácia no combate à epilepsia, mas o cerco continental está se fechando. Sob pressão da Comunidade Europeia, Inglaterra, Alemanha e Áustria já proibiram empresas instaladas no país de exportar drogas usadas em execuções. A Dinamarca, agora, é a bola da vez. Até porque o último civil executado em sua fronteira remonta a 1882. Não haverá de querer sujar a sua história agora. Diante de tamanha penúria, a solução foi recorrer ao uso de um anestésico alternativo ao tiopental – o pentobarbital, ainda não aprovado pela agência reguladora americana, a Food and Drug Administration. Pior, de acordo com a Associação Americana de Veterinários, essa droga, em combinação com as outras duas, sequer é recomendada para encerrar a vida de um animal. No Texas (321)*, o uso veterinário do pentobarbitalsegue regulamentação rígida – a relação dosagem/ peso do animal a ser sacrificado precisa constar dos autos. Só que o estado não adotou nenhuma instrução especial para o uso do mesmo em humanos. “Não há como experimentar o seu efeito em execuções de presos sem executá-los”, constata o óbvio o diretor do Death Penalty Information Center, de Washington. O condenado à morte Cleve Foster, cuja execução em Huntsville estava prevista para abril deste ano, mas teve a morte suspensa pela terceira vez no mês passado, deve ser o primeiro texano a receber o pentobarbital. “Se a droga não funcionar a contento, ele sentirá uma dor inenarrável, semelhante a ter as veias do corpo incendiadas”, alerta Clive Smith, diretor da organização Reprieve, voltada para a abolição da pena de morte.
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Amargo
A epidemia de doença mental
Por Marcia Angell
Por que cresce assombrosamente o nĂşmero de pessoas com transtornos mentais e de pacientes tratados com antidepressivos e outros medicamentos psicoativos.
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arece que os americanos estão em meio a uma violenta epidemia de doenças mentais. A quantidade de pessoas incapacitadas por transtornos mentais, e com direito a receber a renda de seguridade suplementar ou o seguro por incapacidade, aumentou quase duas vezes e meia entre 1987 e 2007 – de 1 em cada 184 americanos passou para 1 em 76. No que se refere às crianças, o número é ainda mais espantoso: um aumento de 35 vezes nas mesmas duas décadas. A doença mental é hoje a principal causa de incapacitação de crianças, bem à frente de deficiências físicas como a paralisia cerebral ou a síndrome de Down.
Eles funcionam? E, se funcionam, não deveríamos esperar que o número de doentes mentais estivesse em declínio e não em ascensão? Um grande estudo de adultos (selecionados aleatoriamente), patrocinado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental, realizado entre 2001 e 2003, descobriu que um percentual assombroso de 46% se encaixava nos critérios estabelecidos pela Associação Americana de Psiquiatria, por ter tido em algum momento de suas vidas pelo menos uma doença mental, entre quatro categorias. As categorias seriam “transtornos de ansiedade”, que incluem fobias e estresse pós-traumático; “transtornos de humor”, como depressão e transtorno bipolar; “transtornos de controle dos impulsos”, que abrangem problemas de comportamento e de déficit de atenção/hiperatividade; e “transtornos causados pelo uso de substâncias”, como o abuso de álcool e drogas. A maioria dos pesquisados se encaixava em mais de um diagnóstico. O tratamento médico desses transtornos quase sempre implica o uso de drogas psicoativas, os medicamentos que afetam o estado mental. Na verdade, a maioria dos psiquiatras usa apenas remédios no tratamento e encaminha os pacientes para psicólogos ou terapeutas se acha que uma psicoterapia é igualmente necessária.
A substituição da “terapia de conversa” pela das drogas como tratamento majoritário coincide com o surgimento, nas últimas quatro décadas, da teoria de que as doenças mentais são causadas por desequilíbrios químicos no cérebro, que podem ser corrigidos pelo uso de medicamentos. Essa teoria passou a ser amplamente aceita pela mídia e pelo público, bem como pelos médicos, depois que o Prozac chegou ao mercado, em 1987, e foi intensamente divulgado como um corretivo para a deficiência de serotonina no cérebro. O número de pessoas depressivas tratadas triplicou nos dez anos seguintes e, hoje, cerca de 10% dos americanos com mais de 6 anos de idade tomam antidepressivos. O aumento do uso de drogas para tratar a psicose é ainda mais impressionante. A nova geração de antipsicóticos, como o Risperdal, o Zyprexa e o Seroquel, ultrapassou os redutores do colesterol no topo da lista de remédios mais vendidos nos Estados Unidos. O que está acontecendo? A preponderância das doenças mentais sobre as físicas é de fato tão alta, e continua a crescer? Se os transtornos mentais são biologicamente determinados e não um produto de influências ambientais, é plausível supor que o seu crescimento seja real? Ou será que estamos aprendendo a diagnosticar transtornos mentais que sempre existiram? Ou, por outro lado, será que simplesmente ampliamos os critérios para definir as doenças mentais, de modo que quase todo mundo agora sofre de uma delas? E o que dizer dos medicamentos que viraram a base dos tratamentos? Eles funcionam? E, se funcionam, não deveríamos esperar que o número de doentes mentais estivesse em declínio e não em ascensão? Essas são as questões que preocupam os autores de três livros provocativos, aqui analisados. Eles vêm de diferentes formações: Irving Kirsch é psicólogo da Universidade de Hull, no Reino Unido; Robert Whitaker é jornalista; e Daniel Carlat é um psiquiatra que clinica num subúrbio de Boston. Os autores enfatizam diferentes aspectos da epidemia de doença mental. Kirsch está preocupado em saber se os antidepressivos funcionam. Whitaker pergunta se as drogas psicoativas não criam problemas piores do que aqueles que resolvem. Carlat examina como a sua profissão se aliou à indústria farmacêutica e é manipulada por ela. Mas, ape-
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Amargo sar de suas diferenças, os três estão de acordo sobre algumas questões importantes. Em primeiro lugar, concordam que é preocupante a extensão com a qual as empresas que vendem drogas psicoativas – por meio de várias formas de marketing, tanto legal como ilegal, e usando o que muita gente chamaria de suborno – passaram a determinar o que constitui uma doença mental e como os distúrbios devem ser diagnosticados e tratados. Em segundo lugar, nenhum dos três aceita a teoria de que a doença mental é provocada por um desequilíbrio químico no cérebro. Whitaker conta que essa teoria surgiu pouco depois que os remédios psicotrópicos foram introduzidos no mercado, na década de 50. O primeiro foi o Amplictil (clorpromazina), lançado em 1954, que rapidamente passou a ser muito usado em hospitais psiquiátricos, para acalmar pacientes psicóticos, sobretudo os com esquizofrenia. No ano seguinte, chegou o Miltown (meprobamato), vendido para tratar a ansiedade em pacientes ambulatoriais. Em 1957, o Marsilid (iproniazid) entrou no mercado como um “energizador psíquico” para tratar a depressão. Desse modo, no curto espaço de três anos, tornaram-se disponíveis medicamentos para tratar aquelas que, na época, eram consideradas as três principais categorias de doença mental – ansiedade, psicose e depressão – e a psiquiatria transformou-se totalmente. Essas drogas, no entanto, não haviam sido
desenvolvidas para tratar doenças mentais. Elas foram derivadas de remédios destinados ao combate de infecções, e se descobriu por acaso que alteravam o estado mental. No início, ninguém tinha ideia de como funcionavam. Elas simplesmente embotavam sintomas mentais perturbadores. Durante a década seguinte, pesquisadores descobriram que essas drogas afetavam os níveis de certas substâncias químicas no cérebro. Um pouco de pano de fundo, e necessariamente muito simplificado: o cérebro contém bilhões de células nervosas, os neurônios, distribuídos em redes complexas, que se comunicam uns com os outros constantemente. O neurônio típico tem múltiplas extensões filamentosas (uma chamada axônio e as outras chamadas dendritos), por meio das quais ele envia e recebe sinais de outros neurônios. Para um neurônio se comunicar com outro, no entanto, o sinal deve ser transmitido através do minúsculo espaço que os separa, a sinapse. Para conseguir isso, o axônio do neurônio libera na sinapse uma substância química chamada neurotransmissor. O neurotransmissor atravessa a sinapse e liga-se a receptores no segundo neurônio, muitas vezes um dendrito, ativando ou inibindo a célula receptora. Os axônios têm vários terminais e, desse modo, cada neurônio tem múltiplas sinapses. Depois, o neurotransmissor é reabsorvido pelo primeiro neurônio ou metabolizado pelas enzimas, de tal modo que o status quo anterior é restaurado. “Era melhor ter dado Prozac!”
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Quando se descobriu que as drogas psicoativas afetam os níveis de neurotransmissores, surgiu a teoria de que a causa da doença mental é uma anormalidade na concentração cerebral desses elementos químicos, a qual é combatida pelo medicamento apropriado.
No curto espaço de três anos, tornaram-se disponíveis medicamentos para tratar aquelas que,eram as três principais doenças mentais. Por exemplo: como o Thorazine diminui os níveis de dopamina no cérebro, postulou-se que psicoses como a esquizofrenia são causadas por excesso de dopamina. Ou então: tendo em vista que alguns antidepressivos aumentam os níveis do neurotransmissor chamado serotonina, defendeu-se que a depressão é causada pela escassez de serotonina. Antidepressivos como o Prozac ou o Celexa impedem a reabsorção de serotonina pelos neurônios que a liberam, e assim ela permanece mais nas sinapses e ativa outros neurônios. Desse modo, em vez de desenvolver um medicamento para tratar uma anormalidade, uma anormalidade foi postulada
para se adequar a um medicamento. Trata-se de uma grande pirueta lógica, como apontam os três autores. Era perfeitamente possível que as drogas que afetam os níveis dos neurotransmissores pudessem aliviar os sintomas, mesmo que os neurotransmissores não tivessem nada a ver com a doença. Como escreve Carlat: “Por essa mesma lógica, se poderia argumentar que a causa de todos os estados de dor é uma deficiência de opiáceos, uma vez que analgésicos narcóticos ativam os receptores de opiáceos do cérebro.” Ou, do mesmo modo, se poderia dizer que as febres são causadas pela escassez de aspirina. Mas o principal problema com essa teoria é que, após décadas tentando provála, os pesquisadores ainda estão de mãos vazias. Os três autores documentam o fracasso dos cientistas para encontrar boas provas a seu favor. Antes do tratamento, a função dos neurotransmissores parece ser normal nas pessoas com doença mental. Nas palavras de Whitaker: “Antes do tratamento, os pacientes diagnosticados com depressão, esquizofrenia e outros transtornos psiquiátricos não sofrem nenhum “desequilíbrio químico”. No entanto, depois que uma pessoa passa a tomar medicação psiquiátrica, que perturba a mecânica normal de uma via neuronal, seu cérebro começa a funcionar... anormalmente.
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Amargo Carlat refere-se à teoria do desequilíbrio químico como um “mito” (que ele chama de “conveniente” porque reduziria o estigma da doença mental). E Kirsch,cujo livro centrase na depressão, resume a questão assim: “Parece fora de dúvida que o conceito tradicional de considerar a depressão como um desequilíbrio químico no cérebro está simplesmente errado.” (O motivo da persistência dessa teoria, apesar da falta de provas, é um tema que tratarei adiante.) Os remédios funcionam? Afinal de contas, independentemente da teoria, essa é a questão prática. Em seu livro seco e extremamente cativante, The Emperor’s New Drugs [As Novas Drogas do Imperador], Kirsch descreve os seus quinze anos de pesquisa científica para responder a essa pergunta, no que diz respeito aos antidepressivos. Quando começou o trabalho em 1995, seu principal interesse eram os efeitos de placebos. Para estudá-los, ele e um colega revisaram 38 ensaios clínicos que comparavam vários tratamentos da depressão com placebos, ou comparavam a psicoterapia com nenhum tratamento. A maioria dessas experiências durava de seis a oito semanas, e durante esse período os pacientes tendiam a melhorar um pouco, mesmo se não tivessem nenhum tratamento. Mas Kirsch descobriu que os placebos eram três vezes mais eficazes do que a ausência de tratamento. Isso não o surpreendeu. O que o surpreendeu mesmo foi que os antidepressivos foram apenas marginalmente mais úteis do que os placebos: 75% dos placebos foram tão eficazes quanto os antidepressivos. Kirsch resolveu então repetir o estudo, dessa vez com a análise de um conjunto de dados mais completo e padronizado. Os dados que ele usou foram obtidos da Food and Drug Administration, a FDA [o órgão público americano encarregado do licenciamento e controle de medicamentos]. Quando buscam a aprovação da FDA para comercializar um novo remédio, os laboratórios farmacêuticos devem apresentar à agência todos os testes clínicos que patrocinaram. Os testes são geralmente duplo-cego e controlados com placebo. Ou seja: os pacientes participantes recebem aleatoriamente a droga ou o placebo, e nem eles nem os seus médicos sabem o que receberam. Os pacientes são informados de que receberão ou um medicamento ativo ou um placebo. E também são avisados dos efeitos
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colaterais que podem ocorrer. Se dois testes comprovam que o medicamento é mais eficaz do que o placebo, ele é geralmente aprovado. Mas os laboratórios podem patrocinar quantos testes quiserem, e a maioria deles pode dar negativo – isto é, não mostrar a eficácia do remédio. Tudo o que eles precisam é de dois testes com resultados positivos. (Os resultados dos testes de um mesmo medicamento podem variar por muitas razões, entre elas a forma como o ensaio foi concebido e realizado, seu tamanho e os tipos de pacientes pesquisados.)
O que todos tinham em comum era que produziam efeitos colaterais, sobre os quais os pacientes haviam sido informados de que ocorreriam. Por razões óbvias, as indústrias farmacêuticas fazem questão de que seus testes positivos sejam publicados em revistas médicas, e os médicos fiquem sabendo deles. Já os testes negativos ficam nas gavetas da FDA, que os considera propriedade privada e, portanto, confidenciais. Essa prática distorce a literatura médica, o ensino da medicina e as decisões de tratamento. Kirsch e seus colegas usaram a Lei de Liberdade de Informação para obter as revisões da FDA de todos os testes clínicos controlados por placebo, positivos ou negativos, submetidos para a aprovação dos seis antidepressivos mais utilizados, aprovados entre 1987 e 1999: Prozac, Paxil, Zoloft, Celexa, Serzone e Effexor. Ao todo, havia 42 testes das seis drogas. A maioria deles era negativo. No total, os placebos eram 82% tão eficazes quanto os medicamentos, tal como medido pela Escala de Depressão de Hamilton, uma classificação dos sintomas de depressão amplamente utilizada. A diferença média entre remédio e placebo era de apenas 1,8 ponto na Escala, uma diferença que, embora estatisticamente significativa, era insignificante do ponto de vista clínico. Os resultados foram quase os mesmos para as seis drogas: todos igualmente inexpressivos. No entanto, como os estudos positivos foram amplamente divulgados, en-
quanto os negativos eram escondidos, o público e os médicos passaram a acreditar que esses medicamentos antidepressivos eram altamente eficazes. Kirsch ficou impressionado com outro achado inesperado. Em seu estudo anterior, e em trabalhos de outros, observara que até mesmo tratamentos com substâncias que não eram consideradas antidepressivas – como hormônio sintético da tireoide, opiáceos, sedativos, estimulantes e algumas ervas medicinais – eram tão eficazes quanto os antidepressivos para aliviar os sintomas da depressão. Kirsch escreve: “Quando administrados como antidepressivos, remédios que aumentam, diminuem ou não têm nenhuma influência sobre a serotonina aliviam a depressão mais ou menos no mesmo grau.” O que todos esses medicamentos “eficazes” tinham em comum era que produziam efeitos colaterais, sobre os quais os pacientes participantes haviam sido informados de que poderiam ocorrer. Diante da descoberta de que quase qualquer comprimido com efeitos colaterais era ligeiramente mais eficaz no tratamento da depressão do que um placebo, Kirsch especulou que a presença de efeitos colaterais em indivíduos que recebem medicamentos lhes permitia adivinhar que recebiam tratamento ativo – e isso foi corroborado por entrevistas com pacientes e médicos –, o que os tornava mais propensos a relatar uma melhora. Ele sugere que a razão pela qual os antidepressivos parecem funcionar melhor no alívio de
depressão grave do que em casos menos graves é que os pacientes com sintomas graves provavelmente tomam doses mais elevadas e, portanto, sofrem mais efeitos colaterais. Para investigar melhor se os efeitos colaterais distorciam as respostas, Kirsch analisou alguns ensaios que utilizaram placebos “ativos”, em vez de inertes. Um placebo ativo é aquele que produz efeitos colaterais, como a atropina – droga que bloqueia a ação de certos tipos de fibras nervosas. Apesar de não ser um antidepressivo, a atropina causa, entre outras coisas, secura da boca. Em testes utilizando atropina como placebo, não houve diferença entre os antidepressivos e o placebo ativo. Todos tinham efeitos colaterais, e todos relataram o mesmo nível de melhora. Kirsch registrou outras descobertas estranhas em testes clínicos de antidepressivos, entre elas o fato de que não há nenhuma curva de dose-resposta, ou seja, altas doses não funcionavam melhor do que as baixas, o que é extremamente improvável para medicamentos eficazes. “Ao se juntar tudo isso”, escreve Kirsch,“chega-se à conclusão de que a diferença relativamente pequena entre medicamentos e placebos pode não ser um efeito verdadeiro do remédio. Em vez disso, pode ser um efeito placebo acentuado, produzido pelo fato de que alguns pacientes passaram a perceber que recebiam medicamentos ou placebos. Se este for o caso, então não há nenhum efeito antidepressivo dos medicamentos. Em vez de compararmos placebo com remédio, estávamos comparando placebos
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Amargo ‘normais’ com placebos ‘extrafortes’.” Trata-se de uma conclusão surpreendente, que desafia a opinião médica, mas Kirsch chega a ela de uma forma cuidadosa e lógica. Psiquiatras que usam antidepressivos – e isso significa a maioria deles – e pacientes que os tomam talvez insistam que sabem por experiência clínica que os medicamentos funcionam. Mas casos individuais são uma forma traiçoeira de avaliar tratamentos médicos, pois estão sujeitos a distorções. Eles podem sugerir hipóteses a serem estudadas, mas não podem prová-las. É por isso que o desenvolvimento do teste clínico duplo-cego, aleatório e controlado com placebo, foi um avanço tão importante na ciência médica, em meados do século passado. Histórias sobre sanguessugas, megadoses de vitamina cou vários outros tratamentos populares não suportariam o escrutínio de testes bem planejados. Kirsch é um defensor devotado do método científico e sua voz, portanto, traz objetividade a um tema muitas vezes influenciado por subjetividade, emoções ou, como veremos, interesse pessoal. O livro de Whitaker, Anatomy of an Epidemic [Anatomia de uma Epidemia], é
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mais amplo e polêmico. Ele leva em conta todas as doenças mentais, não apenas a depressão. EnquantoKirsch conclui que os antidepressivos não são provavelmente mais eficazes do que placebos, Whitaker conclui que eles e a maioria das drogas psicoativas não são apenas ineficazes, mas prejudiciais. Whitaker começa por observar que, se o tratamento de doenças mentais por meio de medicamentos disparou, o mesmo aconteceu com as patologias tratadas:
O que o surpreendeu mesmo foi que os antidepressivos foram apenas marginalmente mais úteis do que os placebos. O número de doentes mentais incapacitados aumentou imensamente desde 1955 e durante as duas últimas décadas, período em que a prescrição de medicamentos psiquiátricos explodiu e o número de adultos e crianças incapacitados por doença mental aumentou numa taxa alucinante. Assim, chegamos a uma pergunta óbvia, embora herética: o paradigma de tratamento baseado em drogas poderia estar alimentando, de alguma maneira imprevista, essa praga dos tempos modernos? Além disso, Whitaker sustenta que a história natural da doença mental mudou. Enquanto transtornos como esquizofrenia e depressão eram outrora episódicos, e cada episódio durava não mais de seis meses, sendo intercalado por longos períodos de normalidade, os distúrbios agora são crônicos e duram a vida inteira. Whitaker acredita que isso talvez aconteça porque os medicamentos, mesmo aqueles que aliviam os sintomas em curto prazo, causam em longo prazo danos mentais que continuam depois que a doença teria naturalmente se resolvido.
Vestilular UERJ 2012
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A Minha dor não sai no jornal
Por Nilton Claudino
Eu era fotógrafo de O Dia, em 2008, quando fui morar numa favela para fazer uma reportagem sobre as milícias. Fui descoberto, torturado e humilhado.
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ão sou bandido, mas tenho medo de polícia. Ando disfarçado por ruas de uma cidade distante de minhas raízes porque acho que estou sob ameaça de morte. Vivo ansioso e tenho dificuldade para dormir. Num laudo médico, minha psicóloga descreveu meu estado desta maneira: “Agitação neurossensorial e fixação mental em imagens que não conseguem se desprender e tomam de assalto a mente.” Muitas vezes choro sozinho. Tenho pesadelos. Lembro-me de que um dos meus torturadores, quando eu estava ajoelhado, vendado e de mãos atadas, dizia no meu ouvido: “Sua vida nunca mais será a mesma.” Ele tinha razão. Volta e meia, ainda ouço com clareza, como se estivesse sendo repetida de fato, a música angelical que os bandidos tocaram no cativeiro. O som me lança de volta àquela escuridão – estava encapuzado e ainda não imaginava o que aconteceria depois. Ouvia aquela música, criada para ser agradável aos ouvidos, vinda de um aparelho de som portátil, a poucos metros de distância. Eram sons de flauta, suaves e tranquilos, que a liturgia religiosa associa aos anjos. Uma voz de pastor, no entanto, pregava de forma aterrorizante: “Este homem que está com a faca em seu pescoço vai matá-lo. Entregue sua alma a Deus e arrependa-se dos seus pecados.” A mensagem durava poucos minutos. Havia um intervalo de silêncio e a gravação recomeçava – de novo a flauta e a fala do pastor, como se fosse um CD em modo de repetição automática. Esta era a parte branda dos suplícios que viria a sofrer. Três anos depois, em muitas madrugadas, ainda acordo sobressaltado, com essa melodia na cabeça. Aproximei-me do jornalismo, em 1977, ao começar a trabalhar como mensageiro da sucursal carioca da revista Veja. Depois, fui promovido a produtor da revista, com tarefas que incluíam pesquisas e envio do material dos fotógrafos para a sede, em São Paulo. Transferime mais tarde para a Placar. Passava horas no laboratório, onde aprendi todas as técnicas possíveis. Prestava muita atenção, especialmente no trabalho de Ricardo Chaves, Rodolfo Machado e J. B. Scalco. Num final de semana, sem outro fotógrafo disponível, empunhei a câmera profissional pela primeira vez, para registrar um jogo do Campeonato Brasileiro. Assim ingressei na profissão que abraçaria pelo resto da vida. É
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AMARGO engraçado que o futebol tenha me levado a ser fotógrafo. Sonhava ser jogador e cheguei a atuar no Madureira quando muito jovem. Frequentei a casa de Arthur Antunes de Coimbra, o Zico, em Quintino, na Zona Norte, depois de peladas em chão de terra batida que alimentaram a esperança de seguir os passos do craque já famoso – o maior jogador de futebol que vi atuar. Uma contusão no joelho haveria de interromper minha trajetória, sempre difícil desde que deixei o Pantanal mato-grossense, onde cresci entre dez irmãos, para tentar a sorte no Rio de Janeiro. Nasci em Corumbá, entre o Natal e o Réveillon de 1958, estudei em colégio de padres e achei que seguiria a carreira religiosa. De certo modo, ser repórter fotográfico exigiu uma profissão de fé.
“No segundo movimento da enxada, começaram a aparecer ossos e a plaqueta de controle de patrimônio da câmera da Globo.” Em 1990, comecei a trabalhar no Jornal do Brasil, no qual conquistei reconhecimento profissional e prêmios internacionais. Em 1992, transferi-me para o jornal O Dia, onde fui editor de fotografia por seis anos. Ganhei uma menção honrosa do Prêmio Vladimir Herzog com a foto Na Mira da Lei, depois de morar, com o repórter Aloísio Freire, por duas semanas na favela da Maré, investigando denúncias sobre o chamado Comando Azul, um grupo de policiais militares metidos a justiceiros que cometiam atrocidades contra moradores e outros bandidos. O jornalismo me levaria a outra situação de risco, em Capitán Bado, no Paraguai. Acompanhado de um guia, chegara a uma grande plantação de maconha e começara a fotografar com uma minicâmera quando percebi a aproximação de traficantes. Escondi a máquina na cueca e peguei uma abóbora enorme. Disse que estava roubando para comer. Sob a ameaça de fuzis AR-15, eu e o guia, que falava guarani, levamos um tempão negociando a liberdade. Foi um susto que não me impediu de assumir outra pauta arriscada: passei 28 dias viajando em uma investigação sobre o tráfico de cocaína para o Brasil, a partir do Peru e da
Bolívia. O que mais me impressionou ali foi a miséria e o trabalho escravo de crianças nas plantações de coca. O incentivo para o jornalismo investigativo veio do amigo Tim Lopes, repórter com quem trabalhei na Placar, no JB, n’O Dia e na Rede Globo. Tim foi chacinado em 2002 por traficantes do Complexo do Alemão ao fazer uma reportagem sobre venda de drogas a céu aberto numa favela, e apurava a realização de bailes funks com exploração sexual de menores de idade. Eu e os repórteres Alexandre Medeiros e Marcos Tristão tínhamos começado a pedir ajuda nas favelas, em busca de uma pista que levasse ao paradeiro do Tim. Um dia, fui abordado por uma pessoa que se aproximou por trás e não se deixou ver: “Sobe o Complexo do Alemão, vai até um lugar chamado Pedra do Sapo e manda cavar na sombra do bambuzal. O corpo está lá”, disse. Não pude voltar meu rosto em sua direção. Se o fizesse, poderia morrer. O coronel Venâncio Moura, então comandante do Bope, a tropa de elite da Polícia Militar do Rio, investigou a informação. Entrei mato adentro com os policiais, ao lado da repórter Albeniza Garcia. Os bombeiros fizeram a escavação. tFoi muito duro, mas
eu tinha que fotografar. Começamos todos a chorar. Era a ossada do amigo Tim Lopes. Tenho sempre comigo no bolso um livro de Salmos e comecei a ler o de número 23, para tentar amenizar o desespero: “O Senhor é meu pastor; nada me faltará.” No começo de 2008, fui chamado pelo diretor de redação de O Dia, Alexandre Freeland, para uma pauta que tinha que ser cumprida sigilosamente: investigar um grupo de milicianos (policiais militares e civis, bombeiros, funcionários do sistema penitenciário) que atuava no Jardim Batan, uma favela encravada em Realengo, na Zona Oeste. O Batan foi uma grande fazenda, onde havia criação de gado. Seu nome se origina de árvore típica, o ubatã ou chibatã. Foi local de muitos confrontos violentos entre facções criminosas, que procuravam controlar o tráfico de drogas por lá. Em 2007, milicianos se juntaram e expulsaram os traficantes, assumindo negócios como a venda de gás e a tevê a cabo pirata, o transporte de vans, e cobrando “taxa de segurança” dos moradores. Para investigar essa realidade, eu, uma repórter de O Dia e um motorista do jornal nos mudamos para o Batan, onde conseguimos alugar uma casa. Chegamos lá no
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AMARGO dia 1º de maio de 2008, pela manhã. Fomos direto até a padaria das imediações, que era do proprietário da casa que alugamos. Tomamos café da manhã ali, pegamos a chave de onde íamos morar e fomos nos instalar. Era uma casa de três andares. Ficamos no terceiro. Descobrimos que não havia nada dentro. Começamos contatos com moradores para que nos ajudassem a mobiliála. O vizinho do 1º andar nos apresentou a outros da comunidade, quando tivemos a oportunidade de arrematar uma televisão usada. No comércio de Bangu, compramos colchonetes e comida. Para me apresentar aos moradores, eu dizia ser do Pantanal, e que aguardava ser chamado para trabalhar em Macaé, numa prestadora de serviço da Petrobras. Aproximei-me das pessoas com esse discurso porque os milicianos não querem por perto os que chamam de “vagabundos”: desempregado não é tolerado. Fui ganhando confiança dos vizinhos. Fiquei amigo do morador do 1º andar, que havia sido criado nas proximidades, onde também crescera o motorista que trabalhava para o jornal. Fiz churrasco na esquina de casa, como forma de ampliar nosso relacionamento. Fingia ser marido da repórter. Dizia que ela era evangélica, tinha vindo de Minas Gerais e que o casamento me livrara do alcoolismo. Ela começou a frequentar uma igreja próxima de casa. Fomos vivendo desta forma: eu era um
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cara em busca de recuperação, ela arrumou um emprego de cozinheira. Todos acreditaram, o que nos permitiu começar a recolher informações, discretamente. Todo dia passávamos um boletim para a redação do jornal, por e-mail, enviado de uma lan house. Poucas pessoas do jornal sabiam que estávamos nessa pauta. Para que ninguém desconfiasse, dissemos na redação que estávamos em férias. Tudo parecia correr perfeitamente bem. O Dia das Mães caiu em 11 de maio. Fizemos um almoço comemorativo para umas dez pessoas próximas. Minha “mulher mineira” fez feijão-tropeiro. Cozinhei talharim e dei rosas para as mães em homenagem à data. A cada dia tínhamos mais amigos, e um deles nos deu um sofá de presente. Pessoas comuns, realmente do bem. Sou muito cristão. Oro todos os dias. Comecei a sentir que meu anjo da guarda queria me avisar de alguma coisa. Eu disse para a repórter que tinha tido visões de que seríamos descobertos. Lia muito as páginas de Habacuque, um dos profetas do Velho Testamento. Tinha tido a visão de que os milicianos arrombavam nossa porta. “Que nada, está tudo bem”, ela me respondia.
“Morro de Amores, Rio” Fernanda Abreu
Havia feito fotos importantes, como as que mostravam o castigo que a milícia impunha a usuários de drogas. “Maconheiros” eram pintados de branco e mandados capinar e desfilar pelas ruas, para ficarem marcados pela comunidade. Outros tinham de ficar sentados por horas sobre tijolos quentes. O chefe da milícia, que todos chamavam de 01 (Zero Um), usava um caibro, que chamava de Madalena. Os moradores tinham muito medo da Madalena, usada em surras públicas. Outro cassetete era jocosamente apelidado de “Direitos Humanos”. Havia guardas penitenciários e muita polícia pelas ruas, o tempo todo. Polícia com farda e sem farda. Eles bebiam com o
carro da polícia na porta do botequim. Fotografei isso também. Nunca vira, como vi lá, uma integrante da tropa feminina da Polícia Militar atuar como miliciana. A PM loura do Batan, que andava com desenvoltura entre tantos outros fardados, foi uma das surpresas naquela apuração. Já havia combinado com um motorista de Kombi que servia à comunidade para que me levasse no dia seguinte até a rodoviária. Achava que o trabalho estava acabando. Todo o material que fotografava eu levava para a casa da mãe do motorista, que ficava do outro lado da avenida Brasil. Não havia nenhum material jornalístico onde morávamos. Nunca usei flash. Eram fotos de luz natural, tiradas com velocidade baixa e modo de alta sensibilidade para ter boas imagens. Havia fotografado muito: a movimentação pelas ruas, PMs bêbados, castigos, punições, carcaças de carros roubados acumuladas dentro de um terreno do Exército, o depósito clandestino de gás. Às 21h30 da quarta-feira, dia 14, falamos com o diretor de redação. Eu sempre me reportava a ele. A possibilidade de envolvimento de um deputado e um vereador com a milícia fez com que decidíssemos estender nosso período por lá. Queríamos provas indesmentíveis. Quinze minutos depois desse telefonema, fui pego em frente à pizzaria vizinha da nossa casa. Já comecei apanhando muito. Gritavam que sabiam que eu era jornalista. Mandaram trazer a repórter, que estava no 3º andar. Ela resistiu, e eles a agrediram fortemente, forçando-a a descer a escada aos tapas e pontapés. Eu era quem mais apanhava, porque chegara a beber cerveja com os milicianos, em busca de informação. Demonstravam ódio por terem sido enganados durante catorze dias. Fomos algemados, encapuzados com toucas pretas e enfiados no banco traseiro de um carro. Rodamos alguns minutos atrás da chave de onde seria nosso cativeiro. Para evitar a avenida Brasil, nossos sequestradores entraram em uma estrada vicinal com muitos quebra-molas. No caminho, apanhamos mais. Um deles brincava de roleta russa com o revólver na minha cabeça. Eu tinha certeza de que seríamos mortos. Ao chegarmos, notei que a casa que serviu de cativeiro parecia estar em construção. Havia brita espalhada pelo chão. Eles falavam: vai morrer, vai morrer!
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AMARGO O chefe, o chamado 01, sentou na minha frente. Tentei negociar. Disse: “Tenho moral no jornal. Vamos esquecer as porradas todas. Você libera a gente, e não falamos mais disso. Não se mata jornalista. Veja o caso do Tim Lopes. Era meu irmão, era um amigo muito ligado.” “Então parece que o problema é com a família”, respondeu 01. “Você vai morrer e precisa saber que foi alcaguetado por amigos de dentro do jornal. Vou provar: você tem na sua baia de trabalho as fotos de um de seus dois filhos tocando guitarra. Seus filhos são lindos. Você mora na Zona Sul”, disse, completando em seguida com meu endereço exato. Gelei, e ele continuou: “Vocês são uns bundões. Foram alcaguetados por seus amigos. Temos informantes em tudo o que é jornal e televisão.” Ele então deu uma ordem: “Chama o cinegrafista.” Nossa tortura foi filmada. Alguém, um dia, vai obter essa fita da tortura que sofremos. O que passamos lá, eles fizeram questão de gravar. Fiquei encapuzado a maior parte do tempo. Mas sabia que havia em volta muitos policiais. Sentia os chutes vindos de coturnos. O Zero Um saiu. À distância, bois mugiam. E começou o som da flauta e a voz de pastor pregando: “Este homem que está com a faca em seu pescoço vai matá-lo. Entregue sua alma a Deus e arrependa-se dos seus pecados.” Teatralmente, um homem colocava a faca em meu pescoço cada vez que tocava a gravação. Entre as sessões de torturas, havíamos passado por cinco “tribunais”, as ocasiões em que os milicianos se reuniam e julgavam qual seria o nosso destino. Nos cinco, anunciaram nossa sentença de morte. Pretendiam nos levar para a favela do Fumacê, ali do lado, queimar nossos corpos e dizer que haviam sido os traficantes que nos mataram. Discutiram também convocar moradores do Batan para que fôssemos apedrejados em praça pública, como traidores. Não tenho dúvida de que, se mandassem, os moradores, tiranizados por eles, poderiam nos apedrejar. Aí chegou aquele que todos chamavam de “Coronel”. Pegaram as senhas de meu e-mail e do da repórter. Leram todos os relatórios que passáramos para o jornal. Eu falava das fotos que tinha tirado, descreviaas com detalhes; a repórter contextualizava as informações que recolhera. A par de tudo, o
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Coronel decidiu que iríamos sobreviver. Mas tomamos mais porradas. Os milicianos ainda se referiam a outro chefe, a quem chamavam de “Comandante”. Durante a tortura, estávamos lado a lado, eu, a repórter e o motorista. Num quarto escuro, só iluminado por telas de celulares, que usavam para que pudéssemos assistir uns aos outros serem subjugados. O motorista pedia para que eu afastasse escorpiões que subiam por suas costas. Não podia ajudá-lo. Ouvíamos passos de muitos PMs. Tiraram nossos capuzes e substituíram por sacos plásticos, parecidos com os de supermercados. Com eles, produziam asfixiamentos temporários. Mas dava para ver as fardas quando olhava por baixo do plástico. A repórter reconheceu a voz de um vereador, filho de um deputado estadual. E ele a reconheceu. Recomeçou a porradaria. Esse político me batia muito. Perguntava o que eu tinha ido fazer na Zona Oeste. Questionava se eu não amava meus filhos. Os agressores estavam com toucas do tipo ninja. Houve um momento em que achei que tinha morrido. Senti como se estivesse subindo para o céu, mas não era minha vez. Tive que voltar para contar. Deus fez que eu voltasse. Cada vez chegavam mais camburões. Depois que apanhamos muito, levaram-nos para a sessão de choque. Era um instrumento que tinha o formato de uma pizza com um cano no meio. Tiraram minha roupa e me davam choques na região baixa e nos pés. Não posso, não devo, não quero entrar nos detalhes das brutalidades e das humilhações que sofremos.
Fomos levados para a casa dos pais do motorista, para que os milicianos pudessem pegar os cartões de memória e a máquina fotográfica. Não havia deixado a máquina dentro da comunidade em nenhum momento. Usava escondido e guardava em área vizinha para que não nos comprometesse a segurança. Chegamos em comboio, durante a madrugada. Os pais do motorista saíram de casa assustados. Os milicianos pediram para que eu os ensinasse a fotografar. Eles nos retrataram. Ensinei a mudar a ASA da máquina (aumentar ou diminuir a sensibilidade à luz). Fotografaram-me como a imprensa policial faz com os bandidos, forçando-nos a levantar o queixo com as mãos. Eles têm nossas fotos como prêmio. Por isso, não posso voltar para o Rio até hoje. Fomos soltos às quatro e meia da madrugada, na avenida Brasil, depois de mais de sete horas de tortura e sevícias. O pai do motorista dirigiu o carro que nos tirou da favela. Eu queria ir para um quartel do Exército. Mas queria falar primeiro com a direção do jornal. Quando estávamos na altura da Estação Leopoldina, logo após a saída da avenida Brasil, entramos numa grande discussão. A repórter revelou que os torturadores a chamaram por um apelido pelo qual ela só era conhecida na redação. A certeza da traição nos deixou inseguros. Fomos para minha
casa. Minha mulher disse: “Não falei que isso iria acontecer?” Abracei meu filho, que acabara de acordar. Eram quase seis horas. Estávamos descalços, feridos, destruídos. Tomamos banho na minha casa. Meu filho foi para a escola. Começou a pior tortura: a família conviver com o medo, para o resto da vida. Chegaram à casa o diretor de redação e uma editora-executiva. Ligaram para a dona do jornal, a Gigi Carvalho, filha do antigo dono de O Dia, Ary Carvalho. Um ano e meio depois, ela venderia o jornal para um grupo português. Eles falaram com o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame. Naquela manhã, depois de liberados pelos sequestradores, estranhamente, não me levaram para fazer exame de corpo de delito. Fui para o Hospital Copa D’Or, onde, mais estranho ainda, fui instruído a falar que havia caído do cavalo. Não podia contar que tinha sido torturado. Em casa, vi que havia uns caras na porta, com jeito de policiais. Estávamos sendo vigiados. Começou a nossa fuga. Eu, meus filhos e minha mulher fomos primeiro para a serra fluminense. Na edição de domingo, 1º de junho, duas semanas depois de cairmos nas mãos da milícia, o jornal enfim trouxe o caso a público. “Tortura – milícia da Zona Oeste sequestra e espanca repórter, fotógrafo e motorista de O Dia”, era o enunciado. Nessa altura, eu estava num quartel dos fuzileiros navais, longe de tudo. Recebi um telefonema dizendo que havia fuzileiros navais entre os milicianos do Rio, e que minha vida estava em risco. Não sei como me acharam lá. Foi quando minha sobrinha, uma adolescente, foi vítima de uma tentativa de sequestro. Tentaram pegá-la na saída da escola e só não conseguiram porque um senhor de 70 anos conseguiu tirá-la das mãos dos sequestradores. Só Deus sabe onde ele arrumou forças para tal. Minha sobrinha está traumatizada até hoje. Ligaram para a mãe dela e disseram que era “muita coincidência” ter ocorrido a minha fuga e a tentativa de sequestro da sobrinha no mesmo momento. Falaram que não me deixariam em paz. Afirmaram que me matariam. O Brasil não era seguro para mim. Decidi fugir para a Bolívia. Escondi-me numa cidade de 20 mil habitantes na região de Santa Cruz. Passadas as primeiras semanas, sentia saudade de minha família, que estava
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AMARGO em uma cidade praiana no sul do Brasil. Fui encontrá-los num hotel de frente para o mar. Minha mulher e meus filhos não falavam comigo. Ver o sofrimento deles foi a dor maior que senti. Tive vontade de me matar, de me jogar do 20º andar do hotel. Aquilo foi me consumindo. O único que me entendia e me dava carinho era Sávio, meu cachorro. Como se não bastasse tudo que passara, Sávio morreu. Abandonei minha família. Fiquei quinze dias sumido. Voltei para pegar minhas coisas e anunciar que os deixaria viver em paz, o que não seria possível comigo por perto. Mudei para uma cidade distante onde vivo hoje. Sofro sozinho. Meus amigos do Rio não podem falar comigo, nunca mais os vi. Com a possibilidade de ter sido traído por algum companheiro de trabalho, não posso falar com ninguém da redação d’O Dia. O ministro da Justiça chegou a propor que uma nova identidade me fosse fornecida, o que nunca ocorreu. No Rio, correu o inquérito. Descobriuse quem eram os líderes dos milicianos. Zero Um era o policial civil Odinei Fernando da Silva, também chefe de um grupo paramilitar denominado Águia. Zero Dois era Davi Liberato de Araújo, um presidiário que vivia fora da cadeia graças ao envolvimento de guardas penitenciários com a milícia. Os dois foram sentenciados pela Justiça a 31 anos de prisão, mas recentemente a pena foi reduzida para vinte anos. No Batan, criou-se uma Unidade de Polícia Pacificadora. E não aconteceu nada com o vereador e o deputado estadual cujas vozes minha companheira repórter reconheceu no cativeiro. Eles negaram envolvimento com a milícia e nunca foram punidos. Agora mesmo, em julho passado, o deputado apareceu ao lado do governador do Rio numa foto de inauguração, não muito longe de onde fomos torturados.
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“Do jeito que a coisa anda, é melhor virar bandido!”
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Vitória em Cristo
SALGADO
Por Daniela Pinheiro
Com uma leitura singular da Bíblia, o pastor Silas Malafaia ataca feministas, homossexuais e esquerdistas enquanto prega que é dando muito que se recebe ainda mais se expressar.
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e olhos fechados, o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, deixava-se empoar pela maquiadora, que encobria as manchas e o brilho de seu rosto. Dali a pouco, ele gravaria seu programa semanal na televisão. Naquela manhã de agosto, Malafaia estava amuado. Na véspera, soubera que um pastor – de quem se considerava amigo – havia lhe tirado o horário da madrugada na TV Bandeirantes, uma negociação feita pelas suas costas. Também lhe pesava a má repercussão de seu último programa, no qual havia pedido doações de 911 reais e 10 011 reais a seus fiéis. Na internet, o mais polido dos sites que tratou do assunto o chamou de “estelionatário”. A moça domava suas sobrancelhas com rímel transparente e, antes de lhe baforar laquê nos cabelos, ele falou sobre o caso. “A oferta é o que viabiliza minha missão, que é pregar o Evangelho e arrebanhar o maior número possível de fiéis”, explicou. “Eu gasto milhões, milhões e milhões por mês com horário na televisão, congressos, cruzadas evangelísticas, treinamento de pastores, abrindo novas igrejas. Como se paga isso? Não é um anjo do céu que desce com um cheque em branco para mim.” Levantou-se da cadeira com os bicos do colarinho em riste, pegou uma gravata vermelho-sangue e, com o queixo colado ao peito, passou à confecção do nó. “Então, quer dizer que eu tomo dinheiro há vinte anos dos pobres coitados e nenhum deles reclama? O cara lá do raio que o parta me dá 10 mil contos porque ele é um burro e eu sou um fera, porque ele é ingênuo e eu fiz lavagem cerebral nele?”, protestou, enquanto conferia a gola no espelho. “Isso é preconceito da elite, que acha que todo evangélico é tapado, idiota, a ralé da classe social explorada por um malandro. O cara dá oferta porque ele sabe onde eu invisto a grana dele, porque ele confia no trabalho que fazemos aqui e não quer que ele acabe.” Há 29 anos, o carioca de origem grega Silas Lima Malafaia está na televisão falando de Deus. Seu programa Vitória em Cristo é como um longo comercial da Polishop – ofertas e promoções de DCs, livros e DVDs de sua empresa, a Central Gospel –, intercalado de sermões bíblicos e mensagens na linha motivacional/autoajuda de matriz norteamericana. Dublado em inglês, é transmitido via satélite para 200 países pela Daystar
e Inspiration Network, redes evangélicas dos Estados Unidos. No Brasil, Malafaia pode ser visto na Rede TV, Rede Bandeirantes e CNT, emissoras nas quais compra horário. O seu discurso é socialmente conservador, e suas trovoadas retóricas recaem sobre grupos organizados que militam pela afirmação das minorias e pelos direitos individuais. Considera-os liberais, termo que nas suas pregações ganha conotação pejorativa, deslizando no mesmo campo semântico de libertinagem: umbandistas, a esquerda da Igreja Católica, pastores de outras denominações religiosas, feministas, defensores do aborto e da eutanásia. Nos últimos tempos, o seu alvo predileto tem sido os gays. Aos 53 anos, Malafaia anda impecavelmente penteado e se veste com apuro, não obstante os ternos marrons e as gravatas em tons plausíveis apenas na paleta da Caran D’Ache. Há anos, compra roupas e acessórios na mesma loja de um shopping na Flórida. O bigodão preto que o acompanhou por décadas foi tirado há quatro anos para rejuvenescer sua imagem. Ele tem um forte sotaque carioca que transforma a letra “s” em “r” característico, como em “são duarr da tarde”. No púlpito e na televisão, cultiva um estilo iracundo e indignado – o que lhe valeu o apodo de “Ratinho Evangélico”, em referência ao apresentador cascadura do sbt, de quem é amigo. Ao defender seus pontos de vista, fala de maneira virulenta, mas ao pedir dinheiro ou vender seus produtos é ameno e não adota a estratégia do pé na porta. “Eu sou o único pastor que realmente prega a palavra de Deus na televisão.” E explicou: enquanto o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, dedicaria muito tempo de seu programa ao exorcismo e ao pedido de ofertas; o apóstolo Valdemiro Santiago (Igreja Mundial do Poder de Deus), à cura; e o missionário R. R. Soares (Igreja Internacional da Graça de Deus), a transmitir imagens de cultos de sua igreja, ele interpreta a Sagrada Escritura à luz da vida cotidiana – o que faz de sua exegese bíblica uma peça única. Recentemente, quando pregava como a glória de Deus pode deixar a vida do crente, ele tratou assim da cobiça e do pecado: “Aí vem a irmã dentro da igreja com a roupa arroxada, os dois melões de fora e o cara do lado só olhando, só no somebody love. (...) Se você está indecorosa, você peca e faz o outro pecar! E se você deixa sua mulher
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SALGADO sair assim, você é um mané, um otário! Bota o silicone que você quiser, minha irmã! Mas se você quiser ser o instrumento do pecado, a glória de Deus vai embora e você vai pagar a conta com Jeová!” Entre o anúncio de um kit de Bíblias e a interpretação de um versículo, Malafaia também divulga campanhas para arrecadar doações, como a do Clube de 1 Milhão de Almas, na qual o fiel doa 1 mil reais em troca de uma graça igualmente generosa. O objetivo é levantar 1 bilhão de reais com 1 milhão de doações. No final de agosto, o contador eletrônico de seu site contabilizava quase 38 mil adesões. Malafaia também já pediu para os fiéis doarem parte do aluguel e 30% de seus rendimentos, em vez do dízimo literal de 10%. Em abril, quando tinha uma promissória de 1,5 milhão de reais a vencer, superou-se: pediu ofertas individuais de 100 mil reais. Levantou o dinheiro em menos de uma semana. “Ralé que doa 100 mil... As pessoas não têm ideia do que está acontecendo no meio evangélico”, disse-me no camarim do estúdio de televisão. A sede da Associação Vitória em Cristo ocupa uma área de 40 mil metros quadrados no bairro de Jacarepaguá, Zona Norte do Rio. A construção moderna e envidraçada contrasta com os arredores de comércio pobre e terrenos baldios abandonados. A entidade cristã – considerada sem fins lucrativos, o que a exime do pagamento de impostos – financia as ações do ministério religioso de Malafaia. São projetos sociais em favelas, cruzadas evangelísticas – que reúnem mais de 100 mil pessoas em praças públicas pelo Brasil –, congressos pentecostais, encontros anuais para a formação de mais de 3 mil pastores, além de seu programa na tevê. Por ano, fatura 40 milhões de reais, captados nas ofertas e doações de fiéis e admiradores. Segundo Malafaia, 20% dos que lhe mandam dinheiro não são evangélicos. No ano passado, a entidade adquiriu por 4 milhões de dólares, nos Estados Unidos, um jato Gulfstream III de segunda mão. É nele que Malafaia e sua família se locomovem pelo Brasil e no exterior. Fabricado em 1986, o avião tem doze lugares, sofá, cozinha, sistema individual de entretenimento e autonomia de oito horas de voo. Em sua fuselagem está escrito In favour of God. Numa manhã de julho, em seu escritório decorado com sobriedade em tons de
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preto e carvalho, ele usava um cardigã de listas azuis e brancas da grife Tommy Hilfiger, calça social e sapatos de verniz pretos. Como muitos pastores, também é adepto do relógio dourado, do anel de brilhantes na mão direita e, eventualmente, do celular pendurado no cinto.
“Não tenho problema com gay, tenho com ativista gay.” Desde 2006, quando o Projeto de Lei 122, que criminaliza a homofobia no país, entrou na pauta dos parlamentares, Malafaia se tornou uma das principais vozes contrárias à causa. Foi ele quem, em junho, conseguiu reunir 50 mil pessoas em frente ao Congresso Nacional para protestar contra a votação. Também pediu a seus 180 mil seguidores no Twitter para entupir a caixa postal e congestionar os telefones de parlamentares favoráveis à proposta – no que obteve sucesso. Dias depois, na Marcha para Jesus, em São Paulo, ganhou espaço em jornais e televisões ao dizer que o Supremo Tribunal Federal havia “rasgado a Constituição” no momento em que aprovou a união homossexual. “Não tenho problema com gay, tenho problema com ativista gay, porque são um bando de intolerantes, intransigentes, antidemocráticos”, falou. Segundo ele, caso o projeto seja aprovado, um diretor de escola que reclame de dois meninos se beijando no recreio poderá parar na cadeia.“Todo mundo se acha no direito de chamar evangélico de ladrão e não acontece nada. Mas se alguém falar um ‘a’ dessa bicharada, é o fim do mundo”, disse. (Há controvérsias. “Dependendo de como odiretor abordasse o casal, caberia uma reprimenda, mas prisão nunca. De qualquer maneira, essa cena não aconteceria num colégio, onde nem héteros podem ficar se beijando”, explicou Denise Taynah, assessora da Superintendência de Direitos Individuais Coletivos e Difusos, do governo do Rio de Janeiro.) Malafaia estava perplexo. Não conseguia compreender como o Supremo Tribunal Federal garante o direito à liberdade de expressão para a Marcha da Maconha enquanto uma lei federal cogitava punir quem não concordasse com a homossexualidade. “Também fico louco porque essas bichas ganham di-
nheiro para viver nessa palhaçada. Sabe quem patrocina a Parada Gay? Petrobras, Caixa Econômica. É com o nosso dinheiro”, protestou. Ao argumento de que um evangélico não corre o risco de ser espancado na rua por preconceito – como havia ocorrido com o pai que andava abraçado a seu filho e ambos foram tomados por um casal gay –, ele respondeu que o episódio foi uma “idiotice altamente condenável”, porém se tratava de uma tragédia isolada. “Mas os gays vão lá e propagandeiam como se fosse regra. Para isso, que é verdadeiramente homofobia, tem que ter cadeia, mas o que eles querem é privilégio”, disse. Depois que avivou a polêmica com os homossexuais, Malafaia passou a ser acompanhado por dois seguranças à paisana. “Se eu chegar num aeroporto e tomar tapa de bicha, vai ficar mal, né?” Segundo Malafaia, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais tentava, sob o argumento da homofobia, cassar pela terceira vez o seu registro de psicólogo junto ao Conselho Regional de Psicologia. Essa seria a origem de sua rusga com o movimento gay. “Se quisessem apenas defender os direitos deles, o.k., eu não ia me meter, tenho mais o que fazer. Mas quando vi que o que queriam era cercear o MEU direito, aí me chamaram para a briga”, fa-
lou. Sobre a possibilidade de perder a licença profissional, ele não se deixa abalar. “O que falo digo no púlpito, não em consultório, por isso o Conselho nada tem a ver com isso. Mas toda hora eles conseguem reviver essa história porque ali tem um bando de viado que foi fazer psicologia para se descobrir”, completou. Sua secretária – elegante e de preto, como todas as funcionárias da empresa – serviu água em copos de cristal. Malafaia se lembrou de outro embate à época da discussão do aborto na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. “Eu não debato tema polêmico usando religião. Eu uso a ciência, a biologia, a medicina, por isso não conseguem me contestar.” Afirmou ter emudecido os presentes ao desafiá-los a dizer se era a mãe ou o bebê quem controlava o líquido amniótico do útero ou decidia sobre a data de um parto normal – o que deixaria patente que o agente ativo da gravidez é o feto e, portanto, ele tem vida própria. Para Malafaia, o mundo está em decadência e os valores da sociedade estão no fundo do poço. Sua missão, como pastor e profeta de Deus, é chamar a atenção das pessoas para o que prega o Evangelho. Como exemplo da debacle humana, citou o caso de um pedófilo, preso nos Estados Unidos, que
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SALGADO obteve o direito, concedido pela Suprema Corte, de assistir na prisão a todos os vídeos pornográficos que gravou com crianças. “Aí, você vai quebrando, você vai afrouxando, vai banalizando ser pedófilo, daqui a pouco eles estão pedindo também para serem respeitados”, disse. Referia-se ao caso do piloto Weldon Marc Gilbert, preso em 2007, que, por ter assumido a própria defesa, teve acesso, durante o processo,às peças incriminatórias sem as quais não poderia se defender. Se um homem deseja fazer sexo com outrohomem, o que teria ele a ver com isso? “Nada! Cada um faz sexo com quem quiser. O que tenho é o direito de falar que isso é pecado, que é condenado por Deus e que a Bíblia diz que é uma perversão. Agora, o que esse pessoal quer não é o direito a fazer sexo – porque isso já fazem e não vão parar de fazer. Eles querem é colocar uma mordaça na nossa boca para nos proibir de falar qualquer coisa sobre eles. Olha o absurdo que é isso!”, indignou-se. Mas se alguém falar um ‘a’ dessa bicharada, é o fim do mundo”, disse. (Há controvérsias. “Dependendo de como odiretor abordasse o casal, caberia uma reprimenda, mas prisão nunca. De qualquer maneira, essa cena não aconteceria num colégio, onde nem héteros podem ficar se beijando”, explicou Denise Taynah, assessora da Superintendência de Direitos Individuais Coletivos e Difusos, do governo do Rio de Janeiro.) Malafaia nasceu na Tijuca, Zona Norte do Rio, filho de um militar da Aeronáutica – que, ao se aposentar, tornou-se pastor – e de uma diretora de escola, ambos ligados à Assembleia de Deus. Desde criança, participava de cultos domésticos e acompanhava os pais em eventos evangélicos. Aos 14 anos, conheceu Elizete, de 13, com quem viria a se casar e a ter três filhos. Um irmão dele também se casou com uma irmã dela. Foi nessa época que ele diz ter recebido “o chamado”. Ouvia uma pregação, quando no meio da frase do pastor sentiu algo inexplicável. “É como um estalo. De repente, tudo passa a fazer sentido. Você consegue integrar o emocional, o intelectual, o psicológico, você entende por que você está aqui. É uma coisa muito forte e muito pessoal”, contou. A experiência foi marcante, mas ele tinha dúvidas, sobretudo quando notava as dificuldades financeiras enfrentadas pelos religiosos de seu círculo social. Aos 20 anos, andava pela rua
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pensando no assunto, quando foi abordado por um amigo que, do nada, lhe disse para não temer porque ele teria como sustentar sua família. “Era Deus falando através dele”, disse Malafaia. Foi a confirmação de sua vocação de evangelizador. Ele, a mulher e amigos faziam parte de um grupo gospel chamado Coral e Orquestra Renascer, no qual era o baterista. Chegaram a gravar um LP, apresentavam-se em qualquer galpão e, nos fins de semana, Malafaia alugava uma Kombi para evangelizar mendigos e turistas na praia de Copacabana. A família vivia com os rendimentos da mulher, que trabalhava na Caderneta de Poupança Letra. Foi quando cursou a Faculdade de Teologia do Instituto Bíblico Pentecostal. Com diploma em mãos, tornou-se, aos 23 anos, pastor auxiliar na Assembleia de Deus da Penha, onde seu sogro era titular, ganhando cinco salários mínimos por mês. Nos anos 80, quando algumas emissoras brasileiras passaram a retransmitir programas de televangelistas americanos – como Jimmy Swaggart e Rex Humbard –, Malafaia ficou fascinado com o poder de evangelização da tevê. Vendeu um carro, pediu dinheiro emprestado a um amigo bem posicionado na hierarquia da igreja e contou com a simpatia de um rico empresário evangélico, Sotero Cunha, que durante anos o ajudou financeiramente. Foi assim que comprou um horário na antiga TV Record (atual CNT).
“O semeador planta a semente do limão porque ele quer colher limão, não laranja ou mamão ou abacaxi.” Com duas câmeras paradas, sentado atrás de uma mesa, Malafaia chamava pastores para cantar e palpitava sobre qualquer assunto. Com muitas contas a pagar, completava o orçamento com palestras, conferências e sermões em igrejas de amigos. Em uma ocasião, chegou a pregar noventa vezes em setenta dias. Perdeu a voz. Em 1990, ele já era o campeão de audiência da emissora. “A explosão dele se deu quando passou a aparecer em rede nacional descendo
“Lei da semeadura”: Por que afinal, quem quer colher limão tem que plantar limão e não laranja ou mamão. Entendeu?
o pau em todo mundo e falando de temas atuais. Ele não poupava ninguém. Falava de pastor safado, de evangélico falso, de político corrupto. As pessoas sentiam que ele estava verbalizando publicamente o sentimento que cada um carregava dentro de si”, disse o pastor Silmar Coelho, um dos melhores amigos de Malafaia, durante uma viagem de avião. Ia para as gravações de ônibus pela manhã e à noite cursava psicologia, na mesma sala da mulher, na Faculdade Gama Filho, no Rio. Nunca atendeu pacientes em consultório. Sua visibilidade e intrepidez no discurso atraíam ofertas, que ele sempre pediu. Com dinheiro em caixa, passou a organizar eventos de evangelização e, paralelamente, investia em oportunidades que nunca foram para frente: loja de decoração, fábrica de “guaraná gospel” e uma rádio. Em seus negócios privados, sua grande alavancada, como ele diz, deu-se quando conseguiu vender Bíblias em parcelas a perder de vista na televisão. Até então, as
editoras dividiam o valor em apenas três vezes. Graças à amizade com um evangélico da diretoria do Banco Cédula, no Rio, Malafaia conseguiu que lhe dessem crédito na emissão de boletos bancários e junto a operadoras de cartão de crédito. Em 2005, em três meses, vendeu 100 mil Bíblias de 120 reais divididos em dez vezes sem juros – um recorde ainda inédito no mercado. Era hora do almoço e Malafaia se dirigiu a uma sala a poucos metros da sua, que faz as vezes de refeitório da diretoria. Réchauds prateados ocupavam uma mesa comprida, diante da qual o cunhado, a cunhada, uma filha e a nora faziam seus pratos. Quase toda a família trabalha na Associação Vitória em Cristo ou na Editora Central Gospel – que dividem o mesmo prédio –, onde exercem cargos administrativos. Além deles, Elizete é conferencista, autora e também apresenta um quadro no programa de tevê do marido, e o primogênito Silas Filho, formado em teologia nos Estados Unidos, é pastor e vice-presidente do conglomerado.
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“É o defensor das minorias (gay!) E é sempre contra as tiranias (gay!) ... É o Capitão Gay, gay, gay!”
Enquanto comia, Malafaia contou ter aberto mão do salário de pastor da Assembleia de Deus da Penha e disse que não usava um centavo das verbas da associação para despesas pessoais. Segundo ele, sua única fonte de renda era o que retirava como empresário na Central Gospel, cujo catálogo chega a quase 600 títulos, entre livros, CDs e DVDs. Os autores são ele mesmo, seus familiares, amigos ou pastores best-sellers americanos. De sua lavra, Malafaia lança a média de quatro livros por ano. São cerca de noventa publicados, todos entre 64 e 72 páginas (“Mais do que isso, o cara não lê, acha grosso demais”), cujo enfoque é quase sempre superar desafios e romper barreiras no contexto da palavra divina. Um ghost-writerreúne suas falas em palestras, cultos e congressos e as transforma em texto corrido. Os títulos incluem Lições de Vencedor, O Perigo da Inversão de Valores, Como Vencer as Estratégias de Satanás, O Cristão e a Sexualidade, entre outros. A Central Gospel é a segunda editora que mais vende livros evangélicos no país, em torno de 1 milhão de exemplares por ano. Recentemente, a empresa de cosméticos Avon, que agora também distribui produtos populares, comprou um lote de 400 mil livros para comercializar de porta em porta. Segundo
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Malafaia, seu patrimônio se resume a uma casa, quatro apartamentos pequenos no Recreio dos Bandeirantes, um no Espírito Santo e um imóvel de dois quartos, financiado em trinta anos, em Boca Raton, na Flórida. Ao ouvir que, para um empresário de sucesso, o patrimônio parecia modesto, respondeu que ele não era ganancioso.
Se eu chegar num aeroporto e tomar um tapa de bicha, vai ficar mal, né? Desde 2007, Malafaia já foi investigado duas vezes pela Receita Federal e outras três pelo Ministério Público Federal por suspeita de desvio do dinheiro do dízimo e lesão à crendice popular. Em uma das vezes, disse que ficou provado o erro de um contador que, sem sua anuência, deixou de recolher um tributo. “Paguei tudo no outro dia sem contestar. Quem atira pedra como eu atiro não pode ter telhado de vidro. Eu sou besta?”
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o NEOERUDTIO ALEGÓRICO
Por Renato Terra
Pessimista, reacionário e retórico, o intelectual midiático voltou a fumar cachimbo
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aros convivas, me chamo Romualdo Fonfonelle. Recorro a estas mal digitadas linhas para brindá-los com os insignes feitiços da erudição. A saber: há tempos, o conhecimento notório deixou a intransponível teia dos acadêmicos para se esparramar pelo Google e adjacências. É imperativo, pois, atualizar os rizomas entranhados nos solilóquios das casas dos saberes e congêneres, ou que espocam ao término das sessões intermináveis de documentários iranianos, ou são impiedosamente decodificados em artigos de publicações universitárias que ninguém lê. Liberto das algemas paradigmáticas de um páthos que emula a si mesmo, venho aqui delimitar o perfil do neoerudito 2.0. Pois bem, pergunto eu, prenhe de retórica, como formular questões pertinentes sobre os livros líquidos de Zygmunt Bauman ou os filmes secos de Apichatpong Weerasethakul? Com tantos atrativos à procrastinação exegética, quem consegue mergulhar nas obras completas de Nietzsche, Schopenhauer ou Arnaldo Jabor? A primeira
lição da nova leva de pensadores contemporâneos vem do filósofo russo Aleksandr Tomanov: “Mais importante do que armazenar informação é saber o que fazer com ela.” Para tanto, urge estar preparado para sustentar uma argumentação de índole escolástica. O segredo, caros convivas, é ter foco, até porque “ter foco” é expressão que entrou na moda, a despeito das máquinas fotográficas digitais terem foco automático. Diante de um erudito old school, disposto a argumentar sobre a poética nórdica de Ingmar Bergman com o mesmo afinco com que fala das fragrâncias cromáticas de Keith Haring, o postulante a uma cadeira na academia www do saber tem sempre, na ponta da língua, uma teoria buliçosamente construída. De preferência, abissalmente pessimista. A chave do sucesso? Ser alegórico e reacionário. Afirmações como “Nada influenciou mais o cinema do século XX que o rompimento com o paradigma da linearidade” são perfeitas porque podem ser recicladas: a palavra “cinema” pode ser trocada por
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Reginaldo Rossi, cantor; A Raposa, a Uva, o Transe e a Terra
“literatura”, “frescobol”, “culinária” ou “par ou ímpar”. Já “paradigma” pode ser intercambiado por “padrão”, “arquétipo” ou “sintagma”. No lugar de “linearidade” ponha “temporalidade”, “modernidade” ou mesmo “doxa”. Se possível, leve três ou quatro sentenças como essa anotadas na carteira. Qual um conta-gotas, dose-as conforme a plateia. Age de forma primária aquele que titubeia diante de uma pergunta sobre a exposição de fotografias impressionistas de um artista de rua oriundo do Laos. Atua de maneira ingênua o bípede que ergue as sobrancelhas quando o assunto tangencia um filme marginal, um livro maldito ou uma música “do lado B” de um compositor contemporâneo búlgaro de
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polcas rizomáticas. O conhecimento é uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel, e, portanto, deve ser domesticado e travestido de soberba. Há que saber lidar, todavia, com os gladiadores da parábola, uma espécie que habita os cafés dos centros culturais, filas de shows com bandas desconhecidas e botequins pés-sujos num fim de noite chuvoso. Ao cair de paraquedas ao lado desse tipo, há que se fecundar um arsenal de armas tergiversais. Invariavelmente, o leque de frases decoradas cai por terra. O invólucro doce da cultura superior se abre para quem souber pescar nomes ou títulos citados na conversa alheia para soltar associações dilacerantes, sempre ligadas por verbos algo afrescalhados. “Terra em Transe adentra
uma estética pueril à la Odair José” ou “David Byrne brinca nos limites da estética oswaldiana”, quiçá “Darth Vader é o José Lewgoy do status quo”. Caso lhe cobrem o desenvolvimento do raciocínio, vá ao banheiro.
Os predestinados a ter um QI elevato usam óculos com armações grossas e retangulares.
PC Siqueira, vlogger
Importante: detentores de um nível de exigência fora do comum nunca dizem nada. Peças de teatro, filmes, exposições, programas de tevê são, a princípio, fracos, sem substância, insossos. Para não dar bandeira de mostrar entusiasmo por uma estética batida, o segredo é garimpar algo que, certamente, ninguém conhece: “Admiro Banda de Pífanos do Nepal. Eles são influenciados por Bento XVI.” A segunda lição tem origem em uma famosa declaração de Andy Warhol em uma entrevista à revista Variety: “É preciso vestir-se de modo a criar uma expectativa de que, a qualquer momento, a genialidade pode irromper.” Os predestinados a ter QI elevado usam óculos com armações grossas e retangulares, tênis All Star coloridos, fumam
cachimbo, adornam o crânio privilegiado com chapéus (mas, cuidado: boina, nem pensar), curtem casacos xadrezes e, em quase todas as regiões do Brasil e estações do ano, enrolam um cachecol encardido no pescoço. Comumente, trajam tecidos que emulam as vestes de camponeses medievais da Bavária. Os homens cultivam uma barba cuidadosamente maltratada e as mulheres são ideologicamente a favor da chapinha e contra o cavalheirismo. O legítimo erudito alegórico é reconhecido a distância pelo corte de cabelo no melhor estilo hype. E faça chuva ou sol, haja progresso material ou não, são radicalmente contra o governo, desde que, é claro, o governo seja do PT. Nesse contexto, é de bom alvitre atacar a Revolução Francesa, os campos da morte do Camboja, o Gulag e o Bolsa Família, fazendo um amálgama bem nutrido. E defender a família, a propriedade e Nossa Senhora de Fátima, mas sempre se dizendo um racionalista sem ilusões. Para manter a nave da história nos trilhos é desaconselhável usar transporte público. Prefira um Mini Cooper. Impressiona as mocinhas ingênuas. Em contato com elas, aliás, seja abertamente machista. Nelson Rodrigues nunca sai de moda. Adentrar o fabuloso campo das engenhocas imprescindíveis no mundo pop contemporâneo faz parte das atividades de quem é diariamente atordoado por pensamentos geniais. Mas nada de MP3 Player, câmera digital ou filme em 3D. Ponto para a película, o vinil e o filme analógico (de preferência se houver espaço para montar um estúdio de revelação em casa).
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SALGADO No que tange à parte escrita, o Manual de Redação dos Eruditos Alegóricos, versão 1.2.8, estabeleceu idiossincrasias, pilares e subitens. Ei-las. i. Uso obrigatório de aforismos no início e no final de cada texto; ii. utilização indiscriminada de ponto e vírgula; iii. simpatia irrestrita pelas notas de pé de página; iv. adoção, pelo menos uma vez, dos sufixos pseudo, neo, pós e hype; v. apego a expressões estrangeiras como ma non troppo, sine qua non, en passant e Weltanschauung; vi. uso criativo de neologismos: “chicobuarquização” e “maugostismo”, por exemplo. Mas, atenção. Ao escrever em jornais e revistas de grande circulação, use os pés. A alegria é permitida, desde que pareça ingênua. Mas é a angústia de sentir o peso do tempo e da efemeridade dos gestos que adorna a aura daqueles dotados de sensibilidade. Com ela, choverão convites para simpósios, jantares, congressos e passeios de lancha. Aleksandr Tomanov, in: Paradigmas Soviéticos Contemporâneos ao Caos, 1899, edição Príncipe, prefaciada e comentada por Fausto Silva. Pois bem, pergunto eu, prenhe de retórica, como formular questões pertinentes sobre os livros líquidos de Zygmunt Bauman ou os filmes secos de Apichatpong Weerasethakul? Com tantos atrativos à procrastinação exegética, quem consegue mergulhar nas obras completas de Nietzsche, Schopenhauer ou Arnaldo Jabor? A primeira lição da nova leva de pensadores contemporâneos vem do filósofo russo Aleksandr Tomanov: “Mais importante do que armazenar informação é saber o que fazer com ela.” Para tanto, urge estar preparado para sustentar uma argumentação de índole escolástica. O segredo, caros convivas, é ter foco, até porque “ter foco” é expressão que entrou na moda, a despeito das máquinas fotográficas digitais terem foco automático. Diante de um erudito old school, disposto a argumentar sobre a poética nórdica de Ingmar Bergman com o mesmo afinco com que fala das fragrâncias cromáticas de Keith
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Haring, o postulante a uma cadeira na academia www do saber tem sempre, na ponta da língua, uma teoria buliçosamente construída. De preferência, abissalmente pessimista. Aleksandr Tomanov, in: Paradigmas Soviéticos Contemporâneos ao Caos, 1899, edição Príncipe, prefaciada e comentada por Fausto Silva.
“Mais importante do que armazenar informação é saber o que fazer com ela.” A chave do sucesso? Ser alegórico e reacionário. Afirmações como “Nada influenciou mais o cinema do século XX que o rompimento com o paradigma da linearidade” são perfeitas porque podem ser recicladas: a palavra “cinema” pode ser trocada por “literatura”, “frescobol”, “culinária” ou “par ou ímpar”. Já “paradigma” pode ser intercambiado por “padrão”, “arquétipo” ou “sintagma”. No lugar de “linearidade” ponha “temporalidade”, “modernidade” ou mesmo “doxa”. Se possível, leve três ou quatro sentenças como essa anotadas na carteira. Qual um conta-gotas, dose-as conforme a plateia. Age de forma primária aquele que titubeia diante de uma pergunta sobre a exposição de fotografias impressionistas de um artista de rua oriundo do Laos. Atua de maneira ingênua o bípede que ergue as sobrancelhas quando o assunto tangencia um filme marginal, um livro maldito ou uma música “do lado B” de um compositor contemporâneo búlgaro de polcas rizomáticas. O conhecimento é uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel, e, portanto, deve ser domesticado e travestido de soberba. Para manter a nave da história nos trilhos é desaconselhável usar transporte público. Prefira um Mini Cooper. Impressiona as mocinhas ingênuas.
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Bad boy com toque patético
Azedo
Por Eduardo Escorel
O afã de afrontar conveniências parece condição necessária para que Lars von Trier consiga se expressar.
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sar o prelúdio da abertura de Tristão e Isolda, de Wagner, como trilha musical é prova da audácia de Lars von Trier, roteirista e diretor de Melancolia. Recorrendo a tamanho lugar-comum para dar tom solene e impressão de grandiosidade ao filme, Trier corre o alto risco de ultrapassar o limite que separa ambição legítima de artifício pretensioso. Trier consegue, porém, escapar pela tangente dessa armadilha que preparou para si mesmo, e evita a gratuidade formal, apesar de, além de recorrer a Wagner, dedicar os dez minutos iniciais deMelancolia a imagens alegóricas de instantes descontextualizados, reproduzidas em câmera lentíssima. Em retrospecto, o sentido dos planos da abertura fica claro, constituindo figura de linguagem conhecida – antecipação estilizada do desfecho da narrativa para criar expectativa pelo que virá. Depois de dois anos de trabalho, horrorizado com o resultado, Trier declarou estar pronto para rejeitar Melancolia “como um órgão mal transplantado” por ter “chantili em cima de chantili” e ser “um filme de mulher!”. Ele quisera “mergulhar de cabeça no abismo do romantismo alemão. Wagner ao quadrado”. Isso estava claro para ele, mas ainda assim se perguntava: “Essa não será apenas outra maneira de expressar derrota? Derrota para um dos denominadores comuns mais baixos do cinema? O romantismo é maltratado
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de tudo quanto é forma no insuportavelmente entediante cinema industrial.” Tinha esperança, contudo, que “em meio a todo o creme houvesse uma lasca de osso que pudesse afinal quebrar um dente frágil”. A primeira reação de Trier a Melancolia denota senso crítico incomum e pode tê-lo ajudado a fazer um filme mais a seu gosto – ácido, pessimista e opressor –, evitando um estilo meloso e ornamental. Mesmo frustrado, por não ter sido capaz de incluir um pouco da feiura que tanto aprecia em meio às belíssimas imagens, Trier não deixa de provocar inquietação no espectador. Nem o uso de câmera instável, estilo já banalizado pela linguagem corrente, nem o elenco de estrelas internacionais apagam sua marca autoral, fácil de reconhecer desde O Elemento do Crime, seu primeiro filme, realizado em 1984 – qualquer que seja o enredo, os personagens devem percorrer sua via dolorosa. Inconformado com a própria maturidade, há algo de patético na resistência de Trier em deixar de ser, aos 55 anos, um bad boy. Nostálgico das transgressões da juventude, parece ter orgulho da coleção de notas zero em comportamento recebidas ao longo da sua premiada carreira. Propenso a ser sempre do contra e a causar sofrimento, foi irresponsável na entrevista coletiva do último Festival de Cannes. Sem medir as palavras, declarou em tom irônico entender e simpatizar com Hitler, que “fez algumas coisas
erradas, sim, com certeza. […] Eu sou, é claro, muito a favor dos judeus, não, não muito porque Israel não presta”. Arrematou dizendo, depois de um suspiro: “O.k., eu sou um nazista.” Declarado persona non grata pela direção do evento, no qual Melancolia foi exibido na mostra oficial, é possível que Trier tenha recebido a notícia como um prêmio por sua leviandade. O paradoxo é que seu compromisso de afrontar conveniências, traço que imprime a seus personagens, parece condição necessária para que consiga se expressar. Mesmo frustrado, por não ter sido capaz de incluir um pouco da feiura que tanto aprecia em meio às belíssimas imagens, Trier não deixa de provocar inquietação no espectador. Nem o uso de câmera instável, estilo já banalizado pela linguagem corrente, nem o elenco de estrelas internacionais apagam sua marca autoral, fácil de reconhecer desde O Elemento do Crime, seu primeiro filme, realizado em 1984. Graças à estrutura simples do roteiro, Trier não perde o rumo em Melancolia. Inspirado, segundo declarou, em As Criadas, de Jean Genet, depois da abertura o filme é dividido em duas partes, que têm a mesma duração aproximada de sessenta minutos. A primeira, dedicada a Justine (Kirsten Dunst); a segunda, a Claire (Charlotte Gainsbourg) – irmãs de personalidades assimétricas. Uma tenta se ajustar aos ritos sociais, enquanto a outra é escrava das convenções. Na definição de Trier, Justine “anseia por naufrágios e morte súbita”, enquanto Claire “é considerada normal”.
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Azedo Na primeira parte, o desajuste dos mecanismos da sociedade fica patente logo na sequência inicial em que a limusine branca tenta passar por uma estrada estreita com curvas fechadas. A inépcia do motorista e, quando assumem o volante, do próprio casal de noivos voluptuosos – Justine e Michael (Alexander Skarsgård) – os leva a chegar a pé, e com duas horas de atraso, à sua própria festa de casamento. Organizada pela irmã, Claire, e financiada pelo cunhado, John (Kiefer Sutherland), a celebração prossegue noite adentro na mansão onde moram com o filho Leo (Cameron Spurr). Ainda a caminho da festa, Justine admira o brilho vermelho de Antares. Seu sorriso permanente é a máscara que usa para encobrir a infelicidade. Ela tenta se ajustar ao papel de noiva, mas a trivialidade das etapas da festa vai minando sua resistência e acaba impedindo que continue a atender o que esperam dela. Frustrando todas as iniciativas do noivo para estabelecer contato, Justine se retrai. Com medo do que a espera, termina sabotando o jogo das aparências. No mundo dela falta algo indefinido. E a festa de casamento se torna a crônica de uma implosão que ela mesma detona. Ao olhar para o céu, no final da primeira parte, Antares não está mais visível em Escorpião. Na segunda parte, sem relação temporal precisa com a primeira, o temor das personagens muda de natureza. Ao medo neurótico de Justine se substitui o pânico de Claire. Faltam cinco dias para o planeta Melancolia, dez vezes maior, aproximar-se ao máximo da Terra. Um espetáculo lindo está previsto para sua passagem, mas também há prognósticos de que as trajetórias dos dois planetas estão numa dança de morte. Claire continua a cuidar de Justine, acolhendo a irmã que está incapaz de tomar providência tão corriqueira quanto chamar um táxi que a traga até a mansão. E ao chegar não consegue tomar banho nem comer. À medida que os planetas se
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aproximam, as reações das irmãs se opõem. É Claire quem fica cada vez mais preocupada e ansiosa, enquanto Justine sai do seu estado de catatonia e fica apaziguada.
A primeira reação de Trier a Melancolia denota senso crítico incomum e pode tê-lo ajudado a fazer um filme mais a seu gosto. Claire vai sendo dominada pelo pavor e passa a agir de maneira errática, recusando-se a aceitar o que acredita estar prestes a ocorrer. A melancólica Justine, por sua vez, sente-se melhor com a aproximação do planeta. Excitada com a previsão do que poderá acontecer na noite seguinte, oferece seu corpo, banhando-se na luz refletida crescente de Melancolia. Aceita com serenidade o que parece inevitável. Para ela, não há nada a lamentar porque, nas suas palavras, a Terra é má e ninguém sentirá sua falta. Diante do medo do sobrinho, só o que Justine tem a oferecer é uma caverna mágica construída com galhos de árvore, em forma de tenda de laterais vazadas. É ali que Justine, Claire e Leo se refugiam, de mãos dadas, à espera do cataclismo. Em entrevista disponível no site oficial de Melancolia, Trier declara que Justine é baseada nele mesmo e em suas próprias experiências com profecias do fim do mundo e depressão. “Se pudesse acontecer em um instante, a ideia me atrai. Então, se todo o sofrimento e ansiedade desaparecessem em um flash, provavelmente apertaria o botão eu mesmo, se ninguém tivesse dor. Ansiedade melancólica evoca imagens de lobos uivando para a lua. É por isso que Justine uiva para o planeta: venha e me pegue. E o planeta a devora. E é por isso que, afinal de contas, o filme tem um final feliz.” Ainda a caminho da festa, Justine admira o brilho vermelho de
Se Trier é a Justine e Justine inverte o papel com Claire, logo as duas são uma só. No caso Trier. Será que é esse o final do filme?
Antares. Seu sorriso permanente é a máscara que usa para encobrir a infelicidade. Ela tenta se ajustar ao papel de noiva, mas a trivialidade das etapas da festa vai minando sua resistência e acaba impedindo que continue a atender o que esperam dela. Frustrando todas as iniciativas do noivo para estabelecer contato, Justine se retrai. Com medo do que a espera, termina sabotando o jogo das aparências. No mundo dela falta algo indefinido. E a festa de casamento se torna a crônica de uma implosão que ela mesma detona. Ao olhar para o céu, no final da primeira parte, Antares não está mais visível em Escorpião. Na segunda parte, sem relação temporal precisa com a primeira, o temor das personagens muda de natureza. Ao medo neurótico de Justine se substitui o pânico de Claire. Faltam cinco dias para o planeta Melancolia, dez vezes maior, aproximar-se ao máximo da Terra. Um espetáculo lindo está previsto para sua passagem, mas também há prognósticos de que as trajetórias dos dois planetas estão numa dança de morte. Claire continua a cuidar de Justine, acolhendo a irmã que está incapaz de tomar providência tão corriqueira quanto chamar um táxi que a traga até a mansão. E ao chegar não consegue tomar banho nem comer.
À medida que os planetas se aproximam, as reações das irmãs se opõem. É Claire quem fica cada vez mais preocupada e ansiosa, enquanto Justine sai do seu estado de catatonia e fica apaziguada. Claire vai sendo dominada pelo pavor e passa a agir de maneira errática, recusando-se a aceitar o que acredita estar prestes a ocorrer. A melancólica Justine, por sua vez, sente-se melhor com a aproximação do planeta. Excitada com a previsão do que poderá acontecer na noite seguinte, oferece seu corpo, banhando-se na luz refletida crescente de Melancolia. Aceita com serenidade o que parece inevitável. Para ela, não há nada a lamentar porque, nas suas palavras, a Terra é má e ninguém sentirá sua falta. Diante do medo do sobrinho, só o que Justine tem a oferecer é uma caverna mágica construída com galhos de árvore, em forma de tenda de laterais vazadas. É ali que Justine, Claire e Leo se refugiam, de mãos dadas, à espera do cataclismo. Em entrevista disponível no site oficial de Melancolia, Trier declara que Justine é baseada nele mesmo e em suas próprias experiências com profecias do fim do mundo e depressão. Nostálgico das transgressões da juventude, parece ter orgulho da coleção de notas zero em comportamento recebidas ao longo da sua premiada carreira. Propenso a ser sempre do contra e a causar sofrimento, foi irresponsável na entrevista coletiva do último Festival de Cannes. Sem medir as palavras, declarou em tom irônico entender e simpatizar com Hitler, que “fez algumas coisas erradas, sim, com certeza. “Se pudesse acontecer em um instante, a ideia me atrai. Então, se todo o sofrimento e ansiedade desaparecessem em um flash, provavelmente apertaria o botão eu mesmo, se ninguém tivesse dor. Ansiedade melancólica evoca imagens de lobos uivando para a lua. É por isso que Justine uiva para o planeta: venha e me pegue. E o planeta a devora.
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Amarelar, jamaiS
Por Bruno Moreschi
Como atua a associação que luta por um Brasil mais colorido
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ue o tom rubro do pau-brasil tenha sido dos primeiros detalhes a despertar o interesse dos colonizadores é motivo de renovado júbilo para a diretoria da Associação Pró-Cor do Brasil. “Foi uma festa quando os portugueses chegaram e perceberam que havia por aqui a avermelhada madeira tão comum na Índia”, regozijou-se o presidente Paulo Félix, após perorar com entusiasmo sobre as propriedades corantes da madeira em questão. “Definitivamente a cor está inserida na história do nosso Brasil.” Meio milênio depois, os apaixonados pelas cores estão reunidos numa agremiação que tem o propósito de zelar pelo esplendor cromático do país. A associação dá respaldo institucional a uma causa que congrega artistas plásticos, designers e fabricantes de tintas, mas também químicos, psicólogos e tantas outras categorias que lidam com as cores em seu ofício. A Pró-Cor, no entanto, não foi a iniciativa pioneira. Ela é herdeira da finada Associação Brasileira da Cor, ABCor, surgida em Porto Alegre, em 1998. Durante três anos, o grupo pioneiro lutou por um Brasil multicolorido. Sem recursos para se manter, definhou. Foi com a alma ainda enegrecida de luto que seus órfãos decidiram criar outra sociedade para preencher o vácuo que se abriu com o pesaroso fim da ABCor. Para garantir o êxito do grêmio que a sucederia, seus criadores concluíram que era mais prudente trocar os verdes pampas do Rio Grande
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pelo cinza dos prédios da agitada São Paulo. É na avenida Paulista, nas proximidades das colunas vermelhas do Masp, que a Pró-Cor fincou suas raízes. Encontrou abrigo junto ao Sindicato da Indústria de Tintas e Vernizes do Estado de São Paulo, no 9º andar do prédio da Fiesp. São ambiciosas as metas da PróCor, devidamente protocoladas em seu estatuto, sacramentado em junho de 2006 no 4º Registro de Pessoas Jurídicas de São Paulo. Entre elas, estão “o desenvolvimento de projetos sociais para difundir a cultura da cor” no Brasil e “sensibilizar o poder público e a sociedade no sentido de instituir o ensino da cor em todos os níveis da educação”. Para esses idealistas coloridos, o mundo perfeito seria aquele em que as crianças declinassem de cor todos os tons do arco-íris com a mesma desenvoltura com que recitam a tabuada do sete. No que dependesse dos associados, os templos de todas as religiões deveriam se espelhar na riqueza cromática das igrejas ortodoxas russas, como defendeu num artigo José Cristovan de Góes, diretor-secretário da Pró-Cor. Aos 63 anos, ele é o editor de um portal de notícias sobre cores, muito popular entre seus pares. Góes frisou a abnegação dos sócios e da diretoria: “Não recebemos nenhuma remuneração para trabalhar na associação.” Pelo contrário, os sócios precisam pagar uma semestralidade de 120 reais, empenhada para manter a associação em funcionamento e custear eventos. Na sua visão, o
Restart: Exemplo de luta!
desafio maior da Pró-Cor é agregar os amantes das cores. “A verdade é que somos ainda muito desunidos.” Em setembro do ano passado, a diretoria da associação prestigiou um seminário internacional sobre cores promovido num hotel paulistano. Naquela época, eles buscavam alguém de pulso firme disposto a ocupar a vice-presidência da Pró-Cor. Encantaram-se com a fala da professora Paula Csillag, da Escola Superior de Propaganda e Marketing. Sua capacidade de articulação e sua inquestionável paixão pelas cores faziam dela uma candidata natural ao cargo. Paula aceitou de pronto o convite recebido, que ela encarou como uma missão. Já nos primeiros meses de gestão, a vice-presidente aproveitou suas aulas para catequizar os alunos e en-
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grossar as fileiras da Pró-Cor. Quando fez seu primeiro discurso de convencimento, nove pupilos levantaram as mãos e se dispuseram a atuar em defesa da causa cromática no Brasil – mais interessados, quem sabe, em ampliar seu leque de amizades coloridas. Foi assim que a Pró-Cor finalmente atingiu a marca de trinta filiados, que mantém até hoje. Acima de Paula na hierarquia, o presidente Paulo Félix é a autoridade maior do assunto no Brasil. For-
mado em química pela Mackenzie e com doutorado em educação física e esporte pela USP, ele é o autor de um respeitado estudo cromático chamado “Amarelão no esporte”. Nesse trabalho, investigou por que os brasileiros usam o verbo “amarelar” para designar a atitude daqueles que deixam de fazer algo por medo. O químico examinou a variação do tom da tez de diversos atletas brasileiros que treinavam para as Olimpíadas de Pequim. Logo constatou que suas peles
ficavam amareladas por causa de um tipo de estresse comum entre esportistas que almejam em excesso vencer uma competição. O estudo valeu a Félix a notoriedade entre os colegas por ter decifrado um dos mistérios do amarelo. Os diretores da Pró-Cor defendem seus ideais com afinco, mas basta uma pergunta para que se esvaia sua convicção. Quem ousar lhes indagar qual é sua cor favorita será recebido com uma indecisão que beira o constrangimento. O diretor-secretário Góes titubeou. Numa possível tentativa de bajular seu superior, acabou por responder que se trata do amarelo. “Por estar associado à riqueza”, justificou-se, pouco convincente. A vice-presidente saiu pela tangente num relativismo professoral: “Depende da circunstância. Tenho uma cor favorita para o esmalte, outra para o carro, e assim por diante.” Do presidente Paulo Félix se esperava uma atitude mais enérgica, que pusesse um ponto final na questão, como preto no branco. Diplomático, contudo, preferiu não ser injusto com nenhuma tonalidade, cioso do peso que sua autoridade conferiria a sua declaração. “Sinto muito, mas não há resposta exata para essa questão.” No que dependesse dos associados, os templos de todas as religiões deveriam se espelhar na riqueza cromática das igrejas ortodoxas russas, como defendeu num artigo José Cristovan de Góes, diretor-secretário da Pró-Cor. Aos 63 anos, ele é o editor de um portal de notícias sobre cores, muito popular entre seus pares. Góes frisou a abnegação dos sócios e da diretoria: “Não recebemos nenhuma remuneração para trabalhar
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DOCE na associação.” Pelo contrário, os sócios precisam pagar uma semestralidade de 120 reais, empenhada para manter a associação em funcionamento e custear eventos. Na sua visão, o desafio maior da Pró-Cor é agregar os amantes das cores. “A verdade é que somos ainda muito desunidos.” No que dependesse dos associados, os templos de todas as religiões deveriam se espelhar na riqueza cromática das igrejas ortodoxas russas, como defendeu num artigo José Cristovan de Góes, diretor-secretário da Pró-Cor. Aos 63 anos, ele é o editor de um portal de notícias sobre cores, muito popular entre seus pares. Em setembro do ano passado, a diretoria da associação prestigiou um seminário internacional sobre cores promovido num hotel paulistano. Naquela época, eles buscavam alguém de pulso firme disposto a ocupar a vice-presidência da Pró-Cor. Encantaram-se com a fala da professora Paula Csillag, da Escola Superior de Propaganda e Marketing. Sua capacidade de articulação e sua inquestionável paixão pelas cores faziam dela uma candidata natural ao cargo. Paula aceitou de pronto o convite recebido, que ela encarou como uma missão. Já nos primeiros meses de gestão, a vice-presidente aproveitou suas aulas para catequizar os alunos e engrossar as fileiras da Pró-Cor. Quando fez seu primeiro discurso de convencimento, nove pupilos levantaram as mãos e se dispuseram a atuar em defesa da causa cromática no Brasil – mais interessados, quem sabe, em ampliar seu leque de amizades coloridas. Foi assim que a Pró-Cor finalmente atingiu a marca de trinta filiados, que mantém até hoje. São ambiciosas as metas da PróCor, devidamente protocoladas em seu estatuto, sacramentado em junho de 2006 no 4º Registro de Pessoas Jurídicas de São Paulo. Entre elas, estão “o desenvolvimento de projetos sociais para difundir a cultura da cor” no Brasil e “sensibilizar o poder público e a sociedade no sentido de instituir o ensino da cor em todos os níveis da educação”.
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Para esses idealistas coloridos, o mundo perfeito seria aquele em que as crianças declinassem de cor todos os tons do arco-íris com a mesma desenvoltura com que recitam a tabuada do sete. No que dependesse dos associados, os templos de todas as religiões deveriam se espelhar na riqueza cromática das igrejas ortodoxas russas, como defendeu num artigo José Cristovan de Góes, diretor-secretário da Pró-Cor. Aos 63 anos, ele é o editor de um portal de notícias sobre cores, muito popular entre seus pares. Os diretores da Pró-Cor defendem seus ideais com afinco, mas basta uma pergunta para que se esvaia sua convicção. Quem ousar lhes indagar qual é sua cor favorita será recebido com uma indecisão que beira o constrangimento. O diretorsecretário Góes titubeou. Numa possível tentativa de bajular seu superior, acabou por responder que se trata do amarelo.
Yes, nós temos laranja! E roxo, azul, rosa, verde...
“Por estar associado à riqueza”, justificou-se, pouco convincente. A vicepresidente saiu pela tangente num relativismo professoral: “Depende da circunstância. Tenho uma cor favorita para o esmalte, outra para o carro, e assim por diante.” Do presidente Paulo Félix se esperava uma atitude mais enérgica, que pusesse um ponto final na questão, como preto no branco. Diplomático, contudo, preferiu não ser injusto com nenhuma tonalidade, cioso do peso que sua autoridade conferiria a sua declaração. “Sinto muito, mas não há resposta exata para essa questão.”
Definitivamente a cor está inserida na história do nosso Brasil. Góes frisou a abnegação dos sócios e da diretoria: “Não recebemos nenhuma remuneração para trabalhar na associação.” Pelo contrário, os sócios precisam pagar uma semestralidade de 120 reais, empenhada para manter a associação em funcionamento e custear eventos. Na sua visão, o desafio maior da Pró-Cor é agregar os amantes das cores. “A verdade é que somos ainda muito desunidos.” Em setembro do ano passado, a diretoria da associação prestigiou um seminário internacional sobre cores promovido num hotel paulistano. Naquela época, eles buscavam alguém de pulso firme disposto a ocupar a vice-presidência da Pró-Cor. Encantaram-se com a fala da professora Paula Csillag, da Escola Superior de Propaganda e Marketing. Sua capacidade de articulação e sua inquestionável paixão pelas cores faziam dela uma candidata natural ao cargo. Paula aceitou de pronto o convite recebido, que ela encarou como uma missão. Já nos primeiros meses de gestão, a vice-presidente aproveitou suas aulas para catequizar os alunos e engrossar as fileiras da Pró-Cor. Quando fez seu primeiro discurso de con-
vencimento, nove pupilos levantaram as mãos e se dispuseram a atuar em defesa da causa cromática no Brasil – mais interessados, quem sabe, em ampliar seu leque de amizades coloridas. Foi assim que a Pró-Cor finalmente atingiu a marca de trinta filiados, que mantém até hoje. Acima de Paula na hierarquia, o presidente Paulo Félix é a autoridade maior do assunto no Brasil. Formado em química pela Mackenzie e com doutorado em educação física e esporte pela USP, ele é o autor de um respeitado estudo cromático chamado “Amarelão no esporte”. Nesse trabalho, investigou por que os brasileiros usam o verbo “amarelar” para designar a atitude daqueles que deixam de fazer algo por medo. O químico examinou a variação do tom da tez de diversos atletas brasileiros que treinavam para as Olimpíadas de Pequim. Logo constatou que suas peles ficavam amareladas por causa de um tipo de estresse comum entre esportistas que almejam em excesso vencer uma competição. O estudo valeu a Félix a notoriedade entre os colegas por ter decifrado um dos mistérios do amarelo. Os diretores da Pró-Cor defendem seus ideais com afinco, mas basta uma pergunta para que se esvaia sua convicção. Quem ousar lhes indagar qual é sua cor favorita será recebido com uma indecisão que beira o constrangimento. O diretorsecretário Góes titubeou. Numa possível tentativa de bajular seu superior, acabou por responder que se trata do amarelo. “Por estar associado à riqueza”, justificou-se, pouco convincente. A vice-presidente saiu pela tangente num relativismo professoral: “Depende da circunstância. Tenho uma cor favorita para o esmalte, outra para o carro, e assim por diante.” Do presidente Paulo Félix se esperava uma atitude mais enérgica, que pusesse um ponto final na questão, como preto no branco. Diplomático, contudo, preferiu não ser injusto com nenhuma tonalidade, cioso do peso que sua autoridade conferiria a sua declaração.
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