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AGORAESTAMOSAQUI Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
AGORAESTAMOSAQUI
Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
Elena Wesley
AGORAESTAMOSAQUI
Um olhar sobre as cotas raciais da UFF Livro ensaio de Elena Wesley Orientação: Professora Doutora Denise Tavares Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para obtenção do título de bacharel em Comunicação Social - Jornalismo Projeto gráfico e diagramação: Caio Max
Universidade Federal Fluminense
IACS
“Eles querem que alguém que vem De onde nós ‘vem’ Seja mais humilde, baixe a cabeça Nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda Eu quero é que eles se…” EMICIDA - Mandume
Sumário 10 13
Apresentação
Parte I - As cotas raciais na UFF
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Introdução
Panorama Histórico
Ação afirmativa no Brasil e no Mundo
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Fotos
Parte II - Eu, estudante Negro
53 Bernardo Affonso 57 Tainara Cardoso 62 Matheus Araújo 65 Luciana Silva 69 Considerações Finais 73 Referências 77 Memorial
Apresentação
Este trabalho, como se verá em seguida, é o resultado direto da ação de muitas
pessoas que assumiram a gigante tarefa de transformar uma cultura violenta, excludente e desumana. Por isso, ele só poderia começar com uma breve lista de agradecimentos que não vai contemplar todos, por uma questão de limite de espaço, mas que pretende, ao menos, nomear aqueles que são diretamente responsáveis por quem sou hoje e por esta travessia.
Agradeço aos meus pais, Eliana e Rosalvo Wesley, por me ensinarem a ter orgu-
lho de quem eu sou e de onde vim: mulher negra, pobre, moradora da Zona Oeste do Rio, filha de funcionários públicos, neta de empregada doméstica. Somo a isso o incentivo constante para seguir meus sonhos e confiar em meus instintos, pela paciência em ouvir minhas desilusões e a confiança de que cada centavo, segundo e lágrima investidos em minha formação, gerariam frutos, a seu tempo. Ao meu avô Gabriel Batista que, mesmo sem compreender as nuances da negritude, sempre me incentiva a pensar o mundo de forma crítica e a manter viva a intenção de transformá-lo. Refiro-me ainda aos avós Maria e Geraldino Wesley, com os quais, infelizmente, não pude conversar sobre as questões raciais; todavia, deixaram-me por herança seus exemplos de luta, em um tempo no qual, sem dúvida, a cor da pele agregava ainda mais obstáculos. Com suor e esperança em dias melhores, vocês calçaram o caminho que trilho hoje. E, nesse sentido, me estendo aos ancestrais que a escravidão me impediu de saber quem são. Sua história não foi apagada. Ela permanece em mim e nas histórias que trago nesse trabalho. Vocês resistiram e nós seguiremos o mesmo exemplo.
Meu muito obrigada aos jongueiros, às professoras Elaine Monteiro e Mônica
Sacramento e aos bolsistas do Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu, projeto de extensão que tanto contribuiu com reflexões acerca da realidade da população negra, da negação de direitos pelo Estado à dedicação em preservar um patrimônio de valor imensurável para o país.
Dedico este trabalho também à professora Carla Baiense, pela sensibilidade em
me ajudar a abordar a ausência do negro nas universidades públicas na edição número um do Jornal O Casarão; e à professora Denise Tavares que, ao ler a reportagem em questão, profetizou o que seria o projeto de conclusão do curso. A vocês devo
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não somente a gratidão pelas boas ideias, como também pelos puxões de orelha e pela confiança de que, em meio à inquietude do meu coração, poderia surgir, ainda que de forma modesta, uma contribuição ao debate sobre as cotas raciais.
À Universidade Federal Fluminense, pela oportunidade de expandir
horizontes e adquirir conhecimentos que, infelizmente, ainda se configuram como um privilégio de poucos. Obrigada aos professores e estudantes que se dispuseram a somar nesse projeto e, sobretudo, a Bernardo Affonso, Luciana Silva, Matheus Araújo e Tainara Cardoso, por compartilharem sua história, suas dores e suas conquistas. Mais que estatísticas, sua presença e resistência são a motivação para que nossos irmãos também acreditem que o ensino superior público deve ser um lugar de todos. Através de nós e dos que ainda virão, a Universidade se pintará de preto. UBUNTU.
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Parte I As Cotas Raciais na UFF
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Introdução
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Onde estão eles?
A pergunta martelava em minha mente como o tic tac de um relógio.
Ninguém nesta sala, nem nesta. Alguma coisa deve estar errada…
E estava.
Em uma turma de 25 alunos, eu era a única negra. Quando ingressei na
UFF em 2010, a Comunicação Social estava entre os cursos mais concorridos da instituição e, consequentemente, um dos mais brancos também. Para constatar isso não precisei de estimativas nem de pesquisas. Senti na pele. Eu era o número, a exceção.
Perceber o quão excludente é o ensino superior público foi um choque
de realidade, porque, antes de vê-lo com meus próprios olhos, eu não acreditava no cenário que me contavam.
Entre quatro pessoas negras na família, eu era a única que discordava
das cotas raciais como medida necessária a mudar o perfil do estudante universitário. Criada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde o convívio entre brancos e negros parecia igualitário, compreender as nuances do racismo, fosse nas vivências pessoais ou na estrutura social, se tornava uma tarefa difícil para mim.
Não por falta de conversa. Ao longo da adolescência, os ‘papos cabeça’
que os adultos gostam de promover à mesa de jantar costumavam abordar os desafios que, segundo meu pai, fariam parte de toda a minha trajetória. “A vida vai exigir mais de você por três razões: porque você é negra, porque você é mulher e porque você é pobre. Você precisa estar preparada para isso”, ele repetia.
O fator pobreza eu até entendia. Filha de funcionários públicos - um
bombeiro e uma professora da rede municipal -, eu conhecia os limites financeiros da família. Estudei em uma boa escola particular no Ensino Fundamental graças a uma bolsa de estudos. Fui boa aluna, gostava muito de ler, tirava boas notas (exceto em Matemática, apesar do esforço). Embora me destacasse, sabia que nem todas as vivências escolares seriam possíveis para mim. Quando a mãe
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diz que não tem dinheiro para o passeio x ou y, insistir é inútil. Hoje, anos depois, tal definição de pobreza me parece estúpida e egoísta. É preciso abrir os olhos para reconhecer o que a gente não vive.
Demorei muito para abrir os olhos em relação às questões raciais. O ra-
cismo sempre esteve presente: nas piadas com nariz e boca, na obrigação de “dar um jeito no cabelo rebelde” e até mesmo na dificuldade de conseguir um par para uma simples quadrilha de festa junina. Ele estava ali, a zombar de mim, eu que não sabia enxergá-lo.
Quando chegou 2009, o ano do vestibular, eu almejava estudar na dispu-
tada Universidade Estadual do Rio de Janeiro. A Uerj era a única pública da região que já havia aderido às cotas. A graduação de Jornalismo dispunha de 50 vagas, sendo 25 reservadas a candidatos negros e pobres e a outra metade à concorrência regular. Para meu pai, a medida representava uma vitória para a população preta, uma conquista da qual eu deveria participar. Sob a minha ótica, uma ofensa à minha capacidade.
- De jeito nenhum vou me candidatar por cotas raciais! Eu não preciso dis-
so. Não quero ajuda nenhuma, vou passar pelo meu próprio mérito - , argumentava, sempre aborrecida com a menção do assunto.
Mais chateada ainda fiquei diante da reprovação. A Uerj liderava meu
ranking de preferência por ser a menos distante. Significava menos gastos. Porém, obtive boas notas na UFF e na UFRJ e optei pela primeira devido às características do curso. Em compensação, seria necessário me mudar para Niterói, pois as aulas terminavam às 22h todos os dias.
Embora tenha sonhado frequentar aquele local por anos, a sensação de
não-pertencimento se tornou uma constante. Todos os dias eu contava quantos estudantes negros encontrava nos campi. Raras foram as vezes em que eu completava uma das mãos. Uma conta fácil de fazer, mas difícil de aceitar.
Para além dos muros da Universidade, o cenário também se mostrou bas-
tante hostil. Próximo à república onde eu morava, no coração de uma vizinhança considerada nobre na cidade, a desigualdade se tornou latente para mim. Os únicos
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negros que eu encontrava eram os porteiros, as atendentes dos supermercados e os motoristas de ônibus. Profissões dignas, porém de baixa remuneração.
O estopim para que as escamas dos meus olhos se dissipassem foi um
triste episódio num ônibus, quando seguia do campus para a república. Estava distraída lendo, ao fundo do coletivo, até ouvir a senhora ao meu lado resmungar “que cara estranho ali na frente, eu hein”. Olhei pra ela um tanto indiferente e na direção que havia citado. Nada demais, avaliei. No ponto seguinte, reparei em quem desembarcou e em quem permaneceu. Havia um rapaz em pé, aparência de uns 30 e poucos anos, vestindo bermuda, chinelo e boné. Na Zona Oeste do Rio, poderia ser apenas um pai a caminho da escola do filho; na Zona Sul de Niterói, um assaltante em potencial. É impressionante como os nossos traços e nossa cor são associados facilmente a fatores negativos. O cabelo muito distante dos padrões da empresa, o perfil de suspeito para a Polícia que proporciona constantes revistas vexatórias, o bem-sucedido de terno e gravata que, aos olhos do racista, é cotado como o vigilante, jamais o executivo. Em que estereótipo social aquela senhora me encaixaria?
Comecei a analisar os incentivos que recebi para chegar ao ensino su-
perior ao longo daqueles 19 anos: centenas de livros em casa à disposição, Ensino Fundamental na rede privada, Ensino Médio em um instituto federal, condição de pagar um curso preparatório, por mais simples e sem nome no mercado que ele fosse. Eu era, de fato, a única negra da turma, porém sequer me encaixava na realidade da maioria da população a qual pertenço. Pensei nos meus vizinhos e nos alunos da minha mãe, diariamente vulneráveis às tentações da criminalidade e prejudicados pelos confrontos entre o poder paralelo e o Estado, que suspendem as aulas e demarcam as paredes com projéteis. Crianças negras, de baixa autoestima e pouca perspectiva de futuro, fazendo jus aos índices de evasão escolar apontados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), segundo o qual um a cada quatro alunos do Ensino Fundamental abandona os estudos antes de completar a última série. Cerca de 65% desses desistentes são negros, e os principais motivos são a necessidade de trabalhar, a violência e o racismo.
As carências do ensino básico são refletidas no mercado de trabalho. Se-
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gundo a pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça (Ipea-2015), mulheres e homens negros ganham R$544,40 e R$833,50 em evidente desvantagem à média de renda de R$957,00 e R$1.491,00 das mulheres e homens brancos, respectivamente. Os números se tornam ainda mais alarmantes à medida que a análise se concentra nos espaços onde negros são maioria: as penitenciárias e os necrotérios. O Mapa da Violência 2016 estima que a cada 23 minutos um jovem negro de 15 a 29 anos é assassinado por arma de fogo. E de acordo com o Ministério da Justiça, somos 61% da população carcerária do país, que já ultrapassa 620 mil pessoas. São os engenheiros, advogados, arquitetos, médicos, com os quais nunca dividiremos uma sala de aula. O atestado de óbito que chega antes do diploma. A cruel resposta para “Onde estão eles?”.
Canalizei a indignação diante de tais desigualdades em um debate sobre
o tema no meu campus, que culminou na publicação da reportagem “Onde estão eles?” na edição um do Jornal O Casarão1, no início de 2013. A matéria questionava a ausência de negros nas universidades públicas e como, apesar dos números, a opinião da mídia, dos intelectuais e da própria comunidade acadêmica ainda se mostrava tão avessa a políticas de inclusão.
Ao me apontar como exceção, a UFF me pressionou a rever um posicio-
namento pessoal egoísta e retrógrado sobre as cotas raciais. Hoje, compreendo que continuarei sendo exceção, a menos que políticas públicas efetivas sejam criadas e executadas para modificar o cenário atual. É com base nesta tomada de posição que nasce “Agora, estamos aqui”. O ingresso de estudantes negros desencadeia uma série de demandas à Universidade. E, nós, alunos negros, sabemos que, independente das opiniões que a comunidade acadêmica ainda cultive, temos um bocado de estatísticas para reverter. E o desafio começa em nossa própria história.
O Jornal O Casarão é o jornal laboratório do curso de Comunicação Social da UFF, retomado em 2012 por iniciativa dos estudantes.A edição número 01 está disponível no link http://www.jornalocasarao.com/2013/03/o-casarao-n-um-cotas-nas-universidades.html
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Panorama Histรณrico
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No ano em que completa dez anos de adoção das primeiras políticas
de ação afirmativa, a Universidade Federal Fluminense dá mais um passo em direção à inclusão social. Em 2017, cinco áreas de formação terão, pela primeira vez, turmas formadas por alunos cotistas. Os Programas de Pós-Graduação da Antropologia (PPGA), da História (PPGH), da Psicologia e em Sociologia e Direito (PPGSD) terão asseguradas as medidas voltadas à entrada de negros, indígenas e pessoas com deficiência, unindo-se à Administração, que formatou turma com cotistas em meados de 2016. Assim como ocorreu na graduação, cujas cotas foram instituídas por lei em 2012, a Universidade aplica no Mestrado e no Doutorado as determinações do governo federal, divulgadas por meio da Portaria Normativa nº 13, em maio de 2016. Todavia, o Ministério da Educação concedeu autonomia às instituições quanto à porcentagem destinada aos grupos alcançados. Na UFF, a Psicologia se destacou ao assumir o compromisso de reservar 50% das vagas e ainda estender a política à luta LGBTT, contemplando também as travestis que realizarem a seleção.
Vinculado à Faculdade mais concorrida do vestibular tradicional, o Pro-
grama de Pós Graduação em Sociologia e Direito calcula a entrada de 16 novos alunos com quesitos de igualdade racial e atenção a minorias sociais na próxima turma. Doutor em Sociologia e Direito e Mestre em Antropologia pela UFF, Marcelino Conti exalta o diferencial da cota no PPGSD: a extinção da nota de corte na primeira etapa do processo seletivo.
“O departamento cogitou definir média cinco para os cotistas, mas esta
poderia ser uma alternativa ineficaz caso os organizadores aumentassem a dificuldade do conteúdo da prova. Por conta disso, preferimos suspender a nota de corte e valorizar a subjetividade da apresentação das propostas de pesquisa. Se este modelo resultar na aprovação de alunos que não estejam no mesmo ritmo do restante da turma, é dever da universidade se adaptar para auxiliá-los. O docente deve sair da zona de conforto não apenas na assistência ao cotista, mas
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também se abrindo a autores e discussões que estes novos alunos vão trazer devido à singularidade de suas vivências”, explica Conti, militante filiado ao Movimento Negro Unificado (MNU), criado em 1978.
Um dos quatro negros em um corpo docente que ultrapassa cem pro-
fissionais, Conti ressalta que, apesar da breve aprovação da política no caso do PPGSD, a comunidade acadêmica apresentou bastante resistência à adoção na Pós. O professor afirma que até mesmo os argumentos que comprovam a eficácia das cotas na graduação foram utilizados para invalidar a necessidade das mesmas nas demais instâncias do ensino superior.
“Ao longo do processo de expansão e aprimoramento das cotas, ve-
rificou-se que o CR (coeficiente de rendimento) dos cotistas é equivalente ao dos não-cotistas. Logo, se já não há diferença entre os egressos da graduação, as cotas na pós seriam irrelevantes. É um argumento falho, já que desconsidera as questões econômicas. O homem branco aos 30 anos pode estar na casa dos pais e se dedicar à formação acadêmica, enquanto o homem negro de 18 anos já está no mercado de trabalho². Também devemos pontuar o racismo institucional que lê a candidata branca e com traços europeizados como a mais compatível ao curso, em detrimento da candidata negra, de cabelos crespos, que, segundo nossa sociedade, não aparenta atuar no ramo”, salienta.
Além dos fatores apontados por Conti, a própria portaria colabora para
a lentidão dos cursos em aderirem à norma. O MEC estabeleceu um prazo de 90 dias - já expirado - para o encaminhamento de propostas pelas instituições, porém a data de implementação efetiva está a critério das universidades. Visto que a UFF deu autonomia a cada colegiado, dos 80 programas de pós-graduação vigentes, apenas oito, vinculados às áreas citadas anteriormente, validaram a política com rapidez. Até mesmo na Antropologia, na qual a pressão popular já fomentava o debate em 2015, as discussões foram marcadas por opiniões diver² A pesquisa “Situação Social da População Negra por Estado”, elaborada pelo Ipea em 2014, revelou que,
entre os cidadãos com 12 anos ou mais de escolaridade, 22,2% são brancos e 9,4% negros. Em contrapartida, negros são maioria entre aqueles com oito anos ou menos de estudo, somando 12,2% nos que possuem até um ano na escola, enquanto brancos representam 6,6% na mesma categoria.
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gentes e o receio iminente de não aprovar a medida a tempo do primeiro edital válido para 2017. De acordo com o professor Julio Tavares, integrante do departamento, teoria e prática são realidades bastante distintas também nas áreas vinculadas às Ciências Humanas, consideradas as mais propensas à garantia de direitos. Para Tavares, a morosidade em ampliar o acesso de camadas populares na pós-graduação, de forma incisiva, é provocada pela falta de vontade da elite intelectual que predomina no mercado de trabalho e na academia atualmente, e que parece não desejar abrir mão de seus privilégios.
“A elite intelectual é branca e vê o negro como um objeto de estudo,
e não como um semelhante. A Antropologia, infelizmente, tem demonstrado o mesmo pensamento, sem atentar às especificidades de quem queremos inserir na universidade. O processo é lento como um todo, mas este é o caminho para criar mecanismos de ruptura em uma sociedade que restringe os espaços de conhecimento e poder. As cotas na Pós vão promover a médio e longo prazo recursos humanos negros de alta qualificação para o mercado, incluindo-se, aí, as salas de aula universitárias, nas quais os professores negros ainda são minoria”, avalia.
De fato, a presença de negros³ no corpo docente da UFF, em termos nu-
méricos, é desanimadora. Entre os 103 profissionais da graduação, do Mestrado 3 A exemplo do que ocorre na publicação “O Negro na Universidade: o direito à inclusão”, este trabalho utiliza o conceito negro para unir os referenciais preto e pardo somente quando se refere a dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. “Este instituto, aliás, historicamente o Estado brasileiro, desde o período da escravidão, criou uma divisão no grupo negro que remetia para uma proximidade (desejável em um inconsciente coletivo racista) com o grupo padrão-branco. Assim os mestiços já podiam apresentar-se não mais como negros, mas ao serem incluídos no grupo ‘pardo’, estavam, ao mesmo tempo, sendo estimulados a sair de uma condição pior para uma nova que, não obstante fosse a origem do ‘mal’, a negra, nem a do ‘bem’, a branca, reservada para os indivíduos com fenótipos predominantemente europeus, ainda assim diminuía seu valor social quanto ao seu pertencimento racial. Note-se que essa padronização, até hoje, não é auto-aplicável - as pessoas não dizem ‘sou pardo’, apenas incluem-se nesse grupo como alternativa para não se incluírem no grupo ‘preto’ no qual ironicamente identifica-se cor e não grupo racial. Via de regra ‘mulato’, ‘moreno’ ou ‘brasileirinho’ são nomes mais utilizados na autoidentificação livre. Então, o movimento negro nacional, de há muito, diante desse arranjo institucional e favorável ao movimento da ideologia racista no inconsciente coletivo nacional, tem juntado os grupos preto e pardo da nomenclatura oficial na categoria ‘negro’. Assim, em uma linguagem racialmente consciente, branco designa os indivíduos nos quais os traços europeus são predominantes. Negros são os indivíduos nos quais os traços negróides (africanos) são preponderantes e que são socialmente reconhecidos como pardos, mulatos, morenos ou pretos. (BERTULIO, 2007, págs. 53 e 54)
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e do Doutorado no Direito, somente quatro são negros. Isto é, a população negra não alcança 5% do corpo docente de um curso tradicional, mesmo sendo mais da metade da população brasileira, conforme o censo 2010 do IBGE. Marcelino Conti pontua que o baixo percentual de pós graduados negros está concentrado na Educação e é formado por mulheres, cuja atuação predomina no Ensino Médio, deixando o ensino superior sem referências. Se o aspecto quantitativo aponta a necessidade de políticas públicas, Julio Tavares destaca o caráter político e subjetivo. Para o professor, que também leciona no Programa de Pós-Graduação da Antropologia (PPGA), a escassez reforça aos alunos a uniformidade de que somente o branco chega às altas posições. Portanto, para o antropólogo, diversificar o quadro de professores pode motivar outros negros a conquistar o mesmo espaço.
“Por muito tempo acreditou-se que a universidade não era o lugar do
negro. A geração dos meus pais pensava assim e reproduzia esse discurso. O que cabe ao ensino superior é aplicar a Psicologia do Exemplo. À medida que criamos uma identificação entre professor e aluno negro, ampliamos a possibilidade de que outros acreditem ser possível participar deste espaço. Desconstruímos um paradigma posto há séculos que diz que o negro não é capaz”, projeta Tavares.
Cientes dos desafios que a implantação da política significaria, os es-
tudantes da graduação assumiram o papel de protagonistas na defesa de uma universidade mais democrática. Foram eles, aliás, os precursores do I Seminário Pró-Cotas, realizado duas semanas após a publicação da portaria e resultado da parceria entre dois movimentos: o Coletivo de Estudantes Negros e Negras da UFF Iolanda Oliveira e o Coletivo Pró-Cotas. Com o apoio do grupo “Pretos sem Nome” e de outros estudantes independentes, os universitários negros se mobilizam para pressionar os colegiados por meio da participação em reuniões internas, conversas com professores simpatizantes da causa e até mesmo protestos em eventos acadêmicos. Em um deles, na Antropologia, os alunos levaram cartazes com citações racistas de professores que buscavam inviabilizar as discussões para adoção da política.
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“Nenhum professor assume o posicionamento contrário às cotas, ele
prejudica a garantia de direitos à medida que cria uma série de burocracias. Discutir as cotas nunca é uma prioridade na reunião do colegiado, ainda que o tema esteja na pauta. ‘Fica para a próxima reunião’, eles anunciam, ‘porque não podemos instituir às pressas’; mas eu questiono a que pressa se referem. São 13 anos de vigência das cotas no país. A pós graduação está, na verdade, atrasada. Houve muita dedicação dos graduandos em acompanhar discussões que sequer faziam parte de suas áreas de formação. Os mesmos que militavam na História, articulavam na Antropologia, por exemplo, e compartilhavam informação para difundir o debate em diferentes colegiados. A nossa presença causava constrangimento nos professores. Os contrários não queriam ser mal vistos, e os favoráveis precisavam mostrar, na prática, que realmente desejam ver diversidade na Pós-graduação”, conta Aline Maia, mestranda em Antropologia.
No PPGA, os estudantes participaram da comissão que elaborou a pro-
posta de edital com ações afirmativas e, mesmo sem poder de voto, estiveram presentes ao longo do extenso debate que definiu os parâmetros do programa, reforçando a importância das medidas e fazendo o contraponto ao posicionamento mais conservador de alguns professores. Como resultado, conquistaram a aprovação de 30% de reserva de vagas para negros, com adicional de uma para deficientes e duas para indígenas (que terão direito à aplicação de prova oral), além da suspensão da prova de idioma estrangeiro e a reformulação da concessão de bolsas. A partir de 2017, haverá um novo processo seletivo entre os classificados para aquisição do auxílio, de acordo com critérios socioeconômicos.
Enquanto conciliam a comemoração das conquistas com o diálogo
junto a outros colegiados, os militantes das cotas na Pós-Graduação avaliam o quanto ainda é preciso avançar. A falta de representatividade com a qual convivem na comunidade acadêmica mostra-se desafiadora diante de números tão excludentes. Negros representam 28,9% dos estudantes de Mestrado e Doutorado das universidades, o que equivale a 112 mil alunos. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013 revelam ainda que os es-
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tudantes pretos somam apenas 18,8 mil, enquanto brancos são 270,6 mil. Um levantamento divulgado em 2015 pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) aponta que das 91 mil bolsas de formação e pesquisa do instituto em janeiro do mesmo ano, 26% eram destinadas a estudantes negros, contra 58% concedidas aos brancos. O percentual de indígenas não atinge 1%4, e cerca de 11% dos bolsistas não declararam raça.
A Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação (Proppi) estuda
a implantação das cotas por meio de um grupo de trabalho com o corpo docente. O GT foi constituído como encaminhamento do Seminário “Política de Ações Afirmativas”, promovido em julho, pela Proppi. Fundadora do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb) e integrante do GT, a professora Iolanda de Oliveira explica que a equipe elabora um mapeamento dos 80 programas de pós-graduação vigentes, a fim de identificar a presença do negro nas turmas e entre os candidatos.
“Coletamos questionários em todos os 80 programas para, com base
nestes dados, compreender a particularidade de cada um e definir a porcentagem ideal, com maior incentivo aos cursos nos quais os negros são mais escassos ou sequer compõem as turmas ou até mesmo não se inscrevem. É possível que a UFF aprove 80 editais diferentes, mas realmente eficazes em assegurar a igualdade de direitos”, conta.
Segundo a pesquisadora, a UFF não pode cometer no Mestrado e no
Doutorado os mesmos erros verificados na graduação devido aos termos definidos pela Lei 12.711/12.
“A Lei de Cotas se mostrou um retrocesso para a população negra ao
condicionar a questão racial à escolaridade na rede pública, desconsiderando a cota étnica constitucional como medida de reparação histórica. Por conta disso, a UnB (Universidade de Brasília), por exemplo, reduziu de 20% para 5% a reserva de vagas a negros. Classe e raça se cruzam, mas são fatores autônomos. O racis4
O Censo 2010 do IBGE aponta que pouco mais de 817 mil pessoas se autodeclararam indígenas, o equivalente a 0,42% do total da população brasileira naquele ano, que somava 190,6 milhões de habitantes.
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mo é vivenciado tanto pelo negro da rede pública quanto pelo da rede privada. Queremos que na pós graduação a cota racial seja aplicada independente da origem de ensino desse estudante e, por isso, me sinto orgulhosa de participar da estruturação dessa política. Vemos hoje uma abertura ao tema que eu nunca havia vivenciado em mais de 30 anos numa universidade que sempre demonstrou uma posição mais conservadora”, pontua.
Sancionada pela presidente Dilma Rousseff em agosto de 2012, a Lei
de Cotas determinou a reserva de 50% das vagas ofertadas para as ações afirmativas em favor das populações negra e indígena no quesito étnico, de baixa renda e oriunda do ensino básico na rede pública. O ajuste poderia ser feito de forma gradativa, com a adesão inicial de 12,5%. A cada ano a instituição deveria acrescentar este mesmo percentual ao cálculo. Seguindo este modelo, a UFF realizou o ingresso de 2013 com o valor mínimo, passando aos 25% em 2014, 37,5% em 2015 e, finalmente, 50% em 2016 em todos os cursos da graduação. Para concorrer pelas ações afirmativas, todos os candidatos devem ser egressos do Ensino Médio na rede pública e podem optar por uma entre três ramificações (ver Figura 1): cota para ensino público, para o qual são destinadas metade das vagas reservadas; cota social, que leva em conta os candidatos cuja renda familiar é igual ou inferior a 1,5 salário mínimo por pessoa (aproximadamente R$1.320,00); e a cota racial, voltada a pretos, pardos e indígenas considerando ou não o critério econômico. O percentual étnico é calculado conforme os dados populacionais do IBGE na unidade federativa onde a instituição está situada. Segundo o instituto, 79,2% dos estudantes de 15 a 17 anos do Rio de Janeiro estão matriculados no ensino público, o que equivale a 530.374 jovens.
Distribuição de vagas reservadas conforme a Lei de Cotas
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Os critérios definidos pela Lei de Cotas dividiram opiniões até mesmo en-
tre os defensores da política. Por um lado, a determinação significava um avanço histórico por tornar a adoção obrigatória, já que das 59 instituições federais, somente 36 ofereciam algum tipo de ação afirmativa, entre as quais 25 consideravam o diferencial étnico para pretos, pardos ou indígenas. Em contrapartida, a lei restringiu a aplicação da cota racial ao condicioná-la à origem na rede pública de ensino. Esperava-se que a legislação seguiria o parecer do Supremo Tribunal Federal (STF), o qual havia aprovado, meses antes e por unanimidade, a constitucionalidade das cotas raciais, com o objetivo de superar as desigualdades provocadas pelo racismo, tendo a UnB como referência e modelo a ser seguido. A discussão do tema começara em 2008 quando o Partido Democratas (DEM) recorreu à Justiça sob o pretexto de que, ao diferenciar brancos e negros, a política feria a Constitui-
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ção Brasileira, que versa a respeito da igualdade entre todos os cidadãos. O STF, no entanto, se valeu da mesma legislação para julgar em favor da necessidade de viabilizar condições para que a população negra também tenha garantido o acesso à educação de qualidade.
A UFF teve a chance de se tornar um referencial quanto à inclusão racial
em 2004, por meio de uma proposta de implementação de cotas raciais formulada pelo Penesb. Ao realizar o primeiro Censo Étnico-Racial da história da instituição no ano anterior, os pesquisadores constataram que, entre os 10.968 alunos matriculados, somente 669 eram pretos. O Censo também revelou que 63,7% do corpo discente era formado por brancos, seguidos dos pardos com 25,8% e dos pretos com 4,3%. A partir daquele ano, a Federal Fluminense passou a perguntar a etnia dos candidatos no momento da inscrição. De acordo com Iolanda de Oliveira, a análise racial dos vestibulandos, desde a candidatura até o resultado final, indicou parcelas significativas de negros entre os aprovados não classificados, isto é, aqueles que obtiveram notas válidas, porém não suficientes para a quantidade de vagas em cursos bem disputados, como Medicina e algumas Engenharias. A proposta recebeu parecer favorável da algumas instâncias administrativas, porém encontrou resistência junto ao Conselho de Ensino e Pesquisa.
“A ausência de negros na sala de aula era gritante, como comprovado
no Censo, porém as estatísticas sinalizavam que a reserva de vagas daria conta de absorver este potencial negro. Preferimos congelar a ideia do que submetê-la à reprovação. Caso tivéssemos obtido sucesso, a discrepância entre brancos e negros na UFF ainda não seria tão acentuada mais de dez anos depois”, lamenta Iolanda.
Uma pesquisa realizada em 2012, último vestibular sem cotas na UFF,
levantou os cursos em que a população negra supera a branca em interesse e aprovação. São eles Administração (Itaperuna), Enfermagem (Niterói), Pedagogia (Angra, Pádua e Niterói), Produção Cultural (Rio das Ostras) e Serviço Social (Campos, Rio das Ostras e Niterói). A presença se reduz à medida que os candidatos são aprovados. A Pedagogia lidera (Angra dos Reis e Niterói), seguida pela Psicologia (Rio das Ostras) e o Serviço Social (Campos e Niterói). O estudo afirma que as áreas
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têm em comum a maior empregabilidade, predominante no setor público, cujos processos de concorrência têm potencial de preconceito reduzidos.
Iolanda colabora com o levantamento ao afirmar que alguns cursos não
registram procura da população negra porque a própria seleção é uma política de discriminação.
“O estudante desiste da carreira dos sonhos à medida que avalia a rea-
lidade do curso. A Odontologia, por exemplo, exige aquisição de kit, um material com itens caros. Os cursos integrais também comprovam isso, já que o candidato precisa estar no mercado de trabalho para sustentar a si mesmo ou à família. Todos estes fatores precisam ser avaliados quando se fala em política de ação afirmativa”, reforça Iolanda.
Referência na região e alvo de inúmeras críticas à semelhança da UnB, a
Universidade Estadual do Rio de Janeiro se tornou a pioneira na adoção de cotas no ensino superior do país com a aprovação de leis estaduais sob forte ação dos movimentos sociais. A Lei 3.524/00 destinou 50% das vagas a egressos do ensino médio na rede pública, e a Lei 3.708/01 instituiu, pela primeira vez, as cotas raciais, estabelecendo que 40% das oportunidades seriam preenchidas pela população negra. Com base nessa legislação, em 2003, a Uerj distribuiu a oferta de vagas em dois vestibulares: um destinado aos candidatos que cumpriram o Ensino Médio público e outro para ampla concorrência. As cotas raciais seriam aplicadas em ambos. Neste modelo, 63,4% dos aprovados ingressaram pelas cotas, o que representou 3.116 estudantes. Os demais 36,6%, sem cotas, totalizaram 1.793 alunos (Ver Figura 2).
Distribuição de ingressantes no primeiro vestibular com Cotas da Uerj
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Fonte: Coordenadoria de Articulação e Iniciação Acadêmicas da Sub-reitoria de Graduação
2.114 (43,7% do total) estudantes de escolas públicas 972 (19,7% do total) pretos e pardos que não estudaram em escolas públicas (atendem apenas ao requisito racial) 997 (20,3% do total) pretos e pardos oriundos da rede pública (atendem aos dois requisitos) 1.147 (23,4% do total) outros estudantes da rede pública (atendem apenas ao requisito da escola pública)
Após a primeira seleção inclusiva, a Lei 4.151/03 trouxe modificações
ao estabelecer a renda familiar como critério para candidatura a quaisquer tipos de cotas5. A alteração também definiu uma nova divisão: 45% de vagas reservadas, sendo 20% para estudantes oriundos da rede pública desde o segundo ciclo do Ensino Fundamental até a conclusão do Ensino Médio; 20% para negros; e 5% para pessoas com deficiência e minorias étnicas. Quando as cotas completaram dez anos, a Uerj registrava a entrada de 15 mil cotistas, entre eles quase sete mil negros (Ver Figura 3).
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Fonte: Coordenadoria de Articulação e Iniciação Acadêmicas da Sub-reitoria de Graduação
* Dados relativos ao primeiro semestre de 2012
Autora de uma tese de doutorado a respeito das cotas na Uerj, a profes-
sora Teresa Caminha, da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da UFF, afirma que o sucesso da política na instituição estadual se deve a dois fatores principais: a criação de mecanismos em prol da melhoria das condições de estudo do estudante e o esforço do cotista em alcançar resultados de uma conquista custosa. Através do Programa de Iniciação Acadêmica - o PROINICIAR, a Uerj começou a oferecer oficinas em diversas áreas de conhecimento, como Português, Inglês, Italiano, Alemão, Informática, além de atividades culturais. Até 2008, a participação dos cotistas era obrigatória. Atualmente, as oficinas estão acessíveis a todos os alunos de graduação, porém cerca de 60% são destinadas aos alunos da reserva de vagas. No segundo semestre de 2014, 1.413 estudantes participaram das oficinas.
“Além deste acompanhamento no aprendizado, a assistência abrange as
bolsas de incentivo à manutenção do estudo, que pode se estender até a formatura caso o aluno mantenha a condição financeira desfavorável. O cotista também tem direito, anualmente, a um auxílio no material didático, garantido por meio de dotação orçamentária específica para este fim. Medidas como essas contribuíram para que a evasão entre os cotistas seja menor do que entre os não-cotistas. O sis5
Em 2016, o corte socioeconômico socioeconômico da Uerj equivalia a R$ 960,00 mensais per capita.
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tema de cotas, sem uma política de permanência, corre sérios riscos”, avalia Teresa.
O rendimento dos estudantes cotistas derrubou fortes argumentos utili-
zados para deslegitimar as ações afirmativas na educação superior, como a queda na qualidade do ensino devido à entrada de alunos ‘menos preparados’ e a perspectiva de que, por não conseguirem acompanhar o ritmo da turma, os cotistas desistiriam do curso. Para Teresa, a assistência estudantil aliada ao esforço pessoal dos alunos têm comprovado em números por que motivos a Uerj é reconhecida como referência (Ver Figura 4).
Fonte: Coordenadoria de Articulação e Iniciação Acadêmicas da Sub-reitoria de Graduação
Embora reconheça o indício de sucesso da política na pioneira Uerj, o
professor Julio Tavares lembra que o processo se mostrou gradativo na UFF, devido à resistência a um sistema ‘mais radical’. As ações afirmativas começam a ganhar forma na Universidade em 2007 com a implantação da Política de Assistência Estudantil (PAS) e do Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), que regulamentaram a concessão de bolsas de alimentação, apoio emergencial, treinamen-
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to, auxílio-creche, auxílio-moradia e auxílio-alimentação. Somente em 2009, a UFF consolida a bonificação na nota dos candidatos egressos do Ensino Médio na rede pública, modelo aplicado até hoje na Universidade de São Paulo e (USP) e na de Campinas (Unicamp). Segundo o regulamento, o aluno deveria acertar ao menos 50% das questões da primeira fase do vestibular para ganhar 10% de bônus sobre o cálculo das duas etapas do concurso. Assim, a turma de Medicina de 2011 se tornou a primeira entre as federais do Rio de Janeiro a contar com dez alunos oriundos da rede pública de ensino. Em 2012 o percentual da bonificação duplicou.
“A Universidade reuniu uma equipe de matemáticos em busca de uma
porcentagem ideal. No entanto, os estudos relacionados às ações afirmativas no Brasil e no exterior acenavam em direção à relevância dos valores qualitativos. Nos Estados Unidos, por exemplo, a prioridade não é o número exato de negros que vão ingressar, e sim a importância da presença do negro na universidade, quais saberes e valores culturais ele trará. Da forma como adotamos, houve mudanças, porém sem a autorreflexão. Ela tem se formado recentemente, com as cotas”, conta Julio. Estudos da Unicamp verificaram uma distribuição desigual dos candidatos beneficiados pela bonificação: os cursos menos concorridos apresentam maior quantidade de ingressantes, enquanto as graduações mais disputadas permanecem intactas. Essa assimetria é fácil de entender. Imaginemos que o bônus consiste em adicionar 20 pontos a alunos oriundos da escola pública e que para o curso de Pedagogia a nota de corte no vestibular (acima da qual o candidato é aprovado) seja 100 e para o curso de Medicina seja 400. O bônus de 20 pontos confere ao candidato ao curso de Pedagogia uma vantagem muito maior, 20% da nota de corte, do que ao candidato ao curso de Medicina, para o qual o bônus corresponde apenas a 5% da nota de corte. Isso não ocorre nos sistemas de cotas em que as reservas são aplicadas a cada curso e turno, pois nesse caso a presença do grupo de beneficiários é nominalmente garantida pelo procedimento, a despeito das notas e outros procedimentos de entrada (DAFLON & FERES JUNIOR, 2014, pág. 37).
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Para Teresa Caminha, a bonificação apresenta resultados tímidos, sem
assegurar o acesso, pois não não existe uma deficiência de aprendizado padrão.
“A defasagem é herdada de diferentes ofertas de ensino, que têm, igual-
mente, graus de problema distintos. Do mesmo modo, as condições das famílias. A reserva de uma quantidade de vagas, ainda que não elimine essas diferenças, oferece melhores condições da proposta de inclusão. Por hipótese, podemos ter uma bonificação que será superada por todos os candidatos não beneficiados, inviabilizando a inclusão. Isto me parece matematicamente possível”, analisa Teresa, que fará, a partir de 2017, pesquisa semelhante definindo a UFF como objeto de estudo. De pronto, a especialista assevera que ainda é cedo para apontar grandes resultados na Federal Fluminense, visto que as primeiras turmas formadas pela reserva de vagas concluem a graduação no segundo semestre de 2016. “São trajetórias muito distintas. Vamos analisar como a UFF se comporta com a Lei de Cotas e como tem formulado a assistência estudantil”, acrescenta.
Os números acenam que a população negra e a população de baixa ren-
da devem crescer de forma efetiva à medida que as universidades federais cumpram o valor máximo delimitado às cotas. Ou seja, se o percentual de 50% na reserva de vagas passou a ser aplicado em todas as federais em 2016, as turmas com formatura prevista para 2019 terão o reflexo idealizado. Isso porque, mesmo com políticas isoladas, as ações afirmativas têm proporcionado o aumento da representatividade da população negra na graduação. Em 1997, o Ministério da Educação contabilizava apenas 1,8% de jovens pretos e 2,2% de pardos entre 18 e 24 anos cursando ou com diploma universitário. De acordo com levantamento divulgado em agosto de 2016 pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), o perfil do estudante universitário tem se modificado (Ver Figura 5).
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Perfil do Universitário entre 2003 a 2014
Na UFF, a disposição dos dados raciais mais recentes dificulta uma ava-
liação mais conclusiva sobre a distribuição populacional, visto que os percentuais de aluno que não informam ou não declaram a que etnia pertencem são bastante altos. Apesar desse fator, a comparação entre o Censo Étnico de 2003 e os dados do Sistema de Informação referentes a 2016 indica alteração no perfil do graduando nos cursos tidos como os mais concorridos da universidade no ano base: Medicina, Comunicação, Biomedicina e Direito, respectivamente (Ver Figuras 6, 7, 8 e 9).
Representatividade Étnico-Racial no Curso de Medicina
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Representatividade Étnico-Racial no Curso de Comunicação Social
Representatividade Étnico-Racial no Curso de Biomedicina
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Representatividade Étnico-Racial no Curso de Direito
*O curso de Direito, em 2016, também é oferecido em Macaé e Volta Redonda
Tendo como base os números relacionados aos cotistas, a instituição
também demonstra crescimento da população preta e parda. De 2014 para 2015, a UFF apresentou um salto quantitativo de 460 para 6.192 alunos cadastrados na política, sendo que a maioria está inserida no recorte racial (Ver Figura 10).
Total de Alunos nos Programas de Reserva deVagas
Fonte: IdUFF- Sistema Acadêmico de Graduação da UFF
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Se compararmos o ingresso de cotistas entre 2013, ano de aplicação de
12,5% de cotas, e em 2016 com 50%, poderemos analisar um crescimento que tende a se intensificar (Ver Figuras 11, 12, 13 e 14).
Distribuição de vagas de acordo com a aplicação da Lei de Cotas Medicina
Comunicação Social
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Biomedicina
Direito
Legenda: AC: Vagas preenchidas por ampla concorrência; Cota Social 1 = Ensino Médio cursado integralmente em escolas públicas e renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo por pessoa; Cota Racial 1 = Pretos, pardos e indígenas com Ensino Médio cursado integralmente em escolas públicas e renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo por pessoa; Cota Escola Pública 1 = Ensino Médio cursado integralmente em escolas públicas,
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sem recorte de renda; Cota Racial 2 = Pretos, pardos e indígenas com Ensino Médio cursado integralmente em escolas públicas, sem recorte de renda; Cota Escola Pública 2 = Ensino Médio cursado integralmente em escola pública, à exceção das unidades federais, militares, de aplicação e universitárias. Esta opção equivalia à bonificação aplicada pela UFF antes da Lei de Cotas e foi suspensa a partir do processo seletivo de 2015. FONTE: Coordenação de Seleção Acadêmica (COSEAC-UFF)
Mais do que uma transformação quantitativa, os estudantes negros da
UFF têm ampliado sua representatividade com iniciativas que buscam dar visibilidade a demandas próprias e agregar indivíduos. Nesse sentido, 2016 se tornou um marco com a realização da I Calourada Preta, durante a Semana de Acolhimento Estudantil do primeiro semestre letivo. Com mostras de filmes, rodas de conversa, oficinas e palestras, os participantes discutiram temas como a saúde da população negra, a estética como empoderamento, a realidade da mulher e do LGBTT negro.
“Foi uma iniciativa para dar boas vindas ao estudante preto e alterar
esta primeira impressão da universidade como um ambiente excludente. Resultou em uma oportunidade de trocar experiências. Pudemos conversar sobre nossa vida e criar vínculos. Havia negros na universidade, mas que não se conheciam. A partir dali, passamos a andar mais juntos, a nos comunicar a respeito dos nossos desafios e nos articular politicamente”, conta Matheus Cabral, aluno da História e integrante do Pretos Sem Nome.
Diante das manifestações de repúdio à PEC, que pretende congelar os
investimentos do Estado em educação e saúde pelos próximos 20 anos, o grupo criou, em novembro, a Ocupação Preta, com a apropriação de uma estrutura abandonada no campus do Gragoatá, ao lado da livraria. Os estudantes transformaram a construção em um espaço de convivência onde dormem, fazem refeições e promovem atividades culturais, entre elas oficinas de pintura e contação de história sobre mitologia africana com crianças da creche universitária
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e comunidades adjacentes, rodas de leitura de autores negros, aulas com professores que apoiam o movimento, encontro de poesia com artistas negros, etc. Valendo-se do conceito de “aquilombar-se”6 trabalhado por Abdias Nascimento, enxergam a ocupação como um “espaço de cura”, onde podem compartilhar experiências e ajudarem-se uns aos outros.
Desde a reunião que desencadeou a ocupação, os estudantes proje-
tam a permanência no local, com a aquisição definitiva junto à Universidade. O grupo já deu início a estudos para aprimorar as condições de salubridade, devido à inexistência de banheiros e à escassez de água, e está esperançoso quanto à resposta da UFF em favor da manutenção do espaço com os estudantes. A expectativa é expandir as ações aos funcionários terceirizados e a moradores de áreas próximas, com aulas de reforço escolar, oficinas de música e, a longo prazo, um pré vestibular comunitário. Mesmo em pouco tempo, a Ocupação recebeu representantes do movimento Black Lives Matter, que denuncia a violência policial contra a juventude negra nos Estados Unidos.
“Sabemos que a população preta será a mais afetada pelas consequ-
ências da PEC, dentro e fora da universidade. Independente da resolução que tivermos em nível nacional e da retomada das aulas, vamos manter a Ocupação. Ela nos é necessária como espaço onde podemos falar de vivências não contempladas pelas ementas das disciplinas, onde encontramos quem nos ouça e compreenda sem debochar dos nossos problemas ou nos acusar de ver racismo em tudo. Estamos aqui para falar dele sim, porque não queremos que ele exista. Quem se incomoda com o nosso discurso provavelmente é beneficiado por ele. Temos muito a dizer e contamos com os estudantes não negros nesse processo. Queremos que eles saibam o porquê de estarmos aqui”, enfatiza Lorena Gomes, de Ciências Sociais. 6
Aquilombar-se é, portanto, uma ação contínua de existência autônoma frente aos antagonismos que se caracterizam de diferentes formas ao longo da história dessas comunidades, e que demandam ações de luta ao longo das gerações para que esses sujeitos tenham o direito fundamental a resistirem e existirem com seus usos e costumes. Esse existir tem um movimento fortemente voltado para a coletividade, para os laços que unem os quilombolas entre si e que, num movimento mais amplo, une as comunidades de distintas regiões. (SOUZA, Barbara Oliveira, 2008, pág. 11)
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Mesmo com tantos desafios diários nos espaços da Universidade, os es-
tudantes negros buscam aplicar o ideal de coletividade em defesa daqueles que ainda sonham e lutam por uma vaga no ensino superior público. Isso porque as fraudes nas cotas têm colocado em risco o cumprimento das ações afirmativas em favor do público ao qual se destinam. Instituições renomadas como a Uerj e as federais do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Espírito Santo (UFES) registram, desde 2014, denúncias de uso da medida por candidatos que se autodeclaram negros durante a seleção, contudo não pertencem a tal grupo social. A repercussão em nível nacional acentuou os debates sobre a autodeclaração se mostrar um critério insuficiente para a ocupação das vagas reservadas, quando aplicada de forma exclusiva. Durante a votação de 2012, o STF considerou que o candidato deveria ter aparência de negro para concorrer às cotas raciais, ou seja, apresentar características de fenótipo negro, como cor da pele, textura do cabelo e traços físicos, em detrimento do genótipo, que leva em conta a composição genética. Contudo, a Lei de Cotas não inclui em seu texto critérios acerca da fiscalização. Sendo assim, cada universidade tem optado pelo método que julga mais adequado para avaliar ou não os candidatos.
Após ser notificada pelo Ministério Público sobre 27 casos de fraude no
curso de Medicina, a Universidade Federal de Pelotas (UFPel), instituiu um grupo formado por professores, alunos e militantes do movimento negro para levantar informações e entrevistar os acusados, o que resultou na redução do número de denúncias. A comissão comprovou o uso indevido da cota por candidatos brancos, todos expulsos da instituição no final de dezembro. A Reitoria da UFPel se comprometeu a abrir um novo edital para reocupar as vagas, direcionando-as a estudantes negros que chegaram a iniciar uma Faculdade de Medicina, mas que precisaram abandonar as aulas devido a dificuldades financeiras, deixando o exemplo de que, além de combater a fraude, a Universidade deve reparar os danos causados por ela. Os coletivos negros da UFF formularam proposta semelhante, após constatarem turmas de 2015 e 2016 que não apresentam qualquer ingressante negro ou ainda possuem alunos negros, porém aprovados sem
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utilizar a cota racial. Somente no curso de Relações Internacionais, um dos mais visados, o grupo apurou 12 pessoas brancas beneficiadas de forma indevida pela cota racial. Até dezembro de 2016, a contagem de fraudes se aproximava dos 100 casos. O movimento pretende levar as denúncias à Reitoria e sugere a formação de uma comissão de aferição, composta por professores, técnico-administrativos e estudantes, que farão entrevistas com os ingressantes cotistas no momento da matrícula.
Para os coletivos, o fenômeno explicita as nuances do racismo brasilei-
ro. Num primeiro momento, a sociedade desprezou a necessidade de políticas públicas destinadas à população negra, valendo-se de argumentos como a inexistência de racismo no país, o mito da democracia racial ou até mesmo a dificuldade de definir quem é ou não negro por conta da miscigenação. À medida que as cotas raciais se consolidam através da lei, outros artifícios passam a ser utilizados para inviabilizá-la, entre eles a alegação de ascendência familiar, como comenta Dora Lucia Bertulio. A discussão de ações afirmativas para a população negra tem criado certa mudança comportamental nos indivíduos com ascendência negra, mas socialmente identificados como brancos, quer pela distância entre eles e seus ascendentes negros, quer pela famosa obra da natureza que permite, a uma família mista, ter filhos brancos ou negros. Todos esses fenômenos no contexto do racismo estrutural, que permeia as relações sociais, permitem a alguns indivíduos sentir ou entender que, no momento de programas positivos, seu recalque ou desespero, por terem na família membros negros ou por estarem em constante alerta para apresentarem-se socialmente como brancos, agora deve ser considerado para uma, talvez, compensação de dores (BERTULIO, 2007, pág. 54)
Como esperado, divulgar o cenário de fraudes não desencadeou o
apoio da comunidade acadêmica em coibir os brancos praticantes de falsidade ideológica, e sim acarretou mais desgaste aos militantes negros. Opositores às
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ações afirmativas étnicas chegaram a acusá-los de querer estabelecer um “tribunal racial” no processo seletivo, argumento recorrente nos debates pró-cotas da década de 1990, que apela a uma suposta dificuldade de identificar o indivíduo pardo.
“Voltamos ao discurso da democracia racial consolidado por Gylberto
Freire e amplamente difundido como projeto político dos governos da época e seguintes. Quase cem anos depois da publicação (do livro Casa Grande & Senzala), tal ideia de nação miscigenada, nas quais os conflitos raciais inexistem, permanece no imaginário popular. Contudo, sabemos que a escolha de determinados argumentos é proposital. Garantir a presença do negro no espaço de maior privilégio - que é a produção de conhecimento - não se configura como prioridade na nossa sociedade, porque ela não deseja que surja de um intelectual negro a tese que pode vigorar no Brasil dos próximos anos. E o falseamento da noção de pertencimento social vem desse jogo, com a problemática do pardo. Mas nós sabemos quem é negro e quem não é, quem é pardo e quem não é. A leitura racial ocorre pela sua marca. Não há dificuldade em reconhecer o negro na hora de praticar o racismo; a questão torna-se um problema somente quando buscamos a garantia de direitos”, explicam os representantes dos coletivos e estudantes negros independentes7.
De acordo com a Professora Iolanda de Oliveira, as universidades po-
dem enfrentar o mau uso das cotas raciais tendo como respaldo a Orientação Normativa Nº03, publicada pelo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, em agosto de 2016, que regulamentou a aferição de veracidade dos candidatos a cotas raciais nos concursos públicos. A legislação estabelece que as comissões atuem antes da homologação do resultado final, analisando, presencialmente, os aspectos fenotípicos do candidato negro que se autodeclarar preto ou pardo. A reserva de vagas no serviço público vigora desde 2014, conforme 7
Os estudantes que abordam a questão das fraudes não foram identificados por nome e curso com o intuito de evitar possíveis represálias, que já têm ocorrido contra alguns deles.
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a Lei 12.990, que determina 20% de cotas raciais nos concursos. Iolanda ressalta ressalta que as comissões objetivam garantir o cumprimento de uma política de reparação e não definir quem é ou não negro.
“Raça é um conceito social, não biológico. Por conta disso, o STF não
considera os critérios de genótipo, pois sabemos que a raiz do ser humano é africana, ou seja, todos nós, brancos ou negros, podemos ter genes de origem africana. O que a sociedade precisa compreender é que uma política pública voltada a um grupo social historicamente excluído deve cumprir tal função e ser aplicada para que esta desigualdade seja superada. Sendo assim, não importa o pai negro, o avô negro, o primo negro, pois ninguém na rua pergunta a cor dos familiares antes de praticar racismo. Nem na loja onde o negro é perseguido, tampouco na vaga de emprego para a qual ele é preterido. O racismo no Brasil se constitui devido às características negras do indivíduo, portanto, podemos reconhecer a negritude autodeclarada, mas a política de reparação deverá ser assegurada a quem é, de fato, afetado pelo racismo”, explica.
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Ação afirmativa no Brasil e no Mundo O conceito de ação afirmativa vem da Índia, cuja legislação incorporou, três anos após a independência, a reserva de vagas nos espaços de decisão, no serviço público e nas universidades, com o objetivo de reduzir as desigualdades socioeconômicas provocadas pelo sistema de castas. As políticas ganharam visibilidade mundial nas décadas de 1970 e 1980, quando os Estados Unidos instituíram tais práticas na contratação e formação de empresas, participação de negros na publicidade e promoção de consciência racial, de forma a estimular toda a população a refletir sobre o combate ao racismo. O presidente Lyndon Jhonson discursou em favor da política ainda em 1965, afirmando que apenas a garantia dos direitos civis, principal foco das mobilizações populares da época, não seria suficiente para enfrentar a discriminação: “Você não cura as cicatrizes de séculos apenas ao dizer: ‘agora vocês são livres para ir aonde querem, fazer o que desejarem e escolher os líderes que lhes aprouverem’. Você não pode pegar um homem que passou anos acorrentado, libertá-lo, trazê-lo para a linha de partida de uma corrida, e dizer: ‘você está livre para competir com os outros’, e acreditar que você está sendo justo... Este é o próximo e mais profundo estágio da batalha pelos direitos civis. Não buscamos apenas liberdade, mas também igualdade de oportunidades, (...) não apenas igualdade como um direito e uma teoria, mas igualdade como um fato e como resultado”. Com base no exemplo estadunidense, África do Sul e Colômbia implementaram políticas de igualdade racial, como também promovem até hoje Malásia, China, Sri Lanka, Irlanda do Norte e Canadá. No Brasil, as ações afirmativas mais antigas remetem à Lei de Terras de 1850, que concedia facilidades à aquisição de território aos imigrantes europeus, com a pretensão de substituir a mão de obra negra e escravizada pela branca e assalariada. Impulsionada pelas teorias racistas do século XIX, que defendiam a superioridade de brancos sobre não brancos, a política se constituiu como estratégia para executar o ideal de embranquecimento da população brasileira tanto nas características físicas quanto nas culturais e, consequentemente, impedindo que os
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escravizados almejassem, após a liberdade, uma sociedade na qual pudessem ser reconhecidos como construtores do país. Como resultado, os negros livres foram privados de políticas de acesso à educação e reinserção no mercado de trabalho como cidadãos, o que resultou na predominância negra entre a população mais pobre do país, no ensino público, no topo dos rankings de analfabetismo e na base das estimativas de rendimento. Estes e outros fatores impulsionaram vertentes do Movimento Negro a pleitear a inclusão social e reparação histórica. Na década de 1930, a Frente Negra Brasileira emergiu na luta antirracista questionando, sobretudo, a irrisória presença de negros no mercado de trabalho formal e denunciando órgãos públicos que se negavam a formar quadros mais igualitários. A FNB priorizava a educação como caminho necessário à inclusão étnica, com a oferta de cursos profissionalizantes em filiais nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul. A FNB divulgava suas ideias em debates, passeatas e pelo jornal “A Voz da Raça”, criado em 1933, e chegou a registrar-se como partido político, porém sofreu a repressão da ditadura de Getúlio Vargas. Em 1944, a mobilização ganhou cunho cultural a partir da formação do Teatro Experimental do Negro, pelo escritor e professor Abdias Nascimento, como iniciativa de modificar a dramaturgia, constituída por atores brancos. O TEN estreou no ano seguinte, levando negros ao palco e à plateia do Teatro Municipal do Rio de Janeiro pela primeira vez. Pela atuação de Abdias como deputado e senador, chegou ao Legislativo Federal o primeiro projeto de ações afirmativas para a população negra, o PL 1.332 de 1983. Por ocasião dos 110 anos da abolição da escravidão, o escritor e professor defendeu a necessidade das cotas: “Ação afirmativa ou ação compensatória, é, pois, um instrumento, ou conjunto de instrumentos, utilizado para promover a igualdade de oportunidades no emprego, na educação, no acesso à moradia e no mundo dos negócios. Por meio deles, o Estado, a universidade e as empresas podem não apenas remediar a discriminação passada e presente, mas também prevenir a discriminação futura, num esforço para se chegar a uma sociedade inclusiva, aberta à participação igualitária de todos os cidadãos”. A proposta ficou estagnada e sofreu o revés de ser substituída nas discussões sobre ações afirmativas pelo PL 73/99 que defendia a reserva de no mínimo 50% das vagas nas universidades públicas federais para estudantes que tenham
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cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. O projeto anexou outros sobre o mesmo tema e mencionou a cota racial a negros e indígenas em forma de emenda. A partir dali, a preponderância social se sobreporia à racial. O Movimento Negro, intelectuais simpatizantes e representantes das instituições públicas de referência assinaram o Manifesto em favor das cotas raciais no ensino superior, enviado ao Congresso Nacional em 2006. Mesmo em um governo mais propício ao debate às demandas da população negra, as cotas étnicas foram excluídas do texto final do Estatuto da Igualdade Racial divulgado em 2010. A Câmara dos Deputados aprovou o PL 73/99 em 2008, em moldes semelhantes à definição da Lei 12.711/12.
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Fotos
Estudantes organizados protestaram durante evento da Antropologia para reivindicar avanço nas definições das cotas na pós-graduação. [Outubro 2016]
Pichação encontrada no bloco A do campus Gragoatá, onde são ministradas aulas dos cursos de Relações Internacionais, Psicologia, Estudos de Mídia e Comunicação Social. [Novembro 2016]
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Estudantes ocuparam uma estrutura abandonada no campus Gragoatá. [Novembro 2016]
A Ocupação Preta promove atividades sobre as demandas da população negra com o intuito de fortalecer os jovens e dar visibilidade às suas particularidades. [Dezembro 2016]
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Intervenção na entrada da Ocupação sugere que os visitantes reconheçam seus privilégios a fim de participarem das ações. [Dezembro 2016]
Reportagem do Jornal O Casarão abordou a ausência de estudantes negros no Instituto de Artes e Comunicação Social. [Fevereiro 2013]
Produção dos alunos suscitou debate sobre cotas e ajudou a desmistificar argumentos contrários à política, como a meritocracia e a maior relevância da má qualidade da educação pública como fator mais relevante do que o racismo. [Arquivo Jornal O Casarão - Fevereiro 2013]
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Parte I I Eu, Estudante Negro
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Bernardo Affonso Bernardo tem 24 anos e cursa Relações Internacionais na UFF. Ingressou aos 21, no segundo semestre de 2013, pelas cotas destinadas a estudantes do ensino público. Morador de Santa Cruz, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, viu na distância entre casa e faculdade um dos principais obstáculos a adquirir o diploma. Estudar, para ele, é uma luta diária.
Era passar ou passar, a mãe dizia. Reforçava uma premissa que ele já
conhecia bem. Não haveria recursos para financiar o curso preparatório por mais um ano. Durante aquele período comprovou o que já suspeitava. Faltavam conteúdos básicos em diversas disciplinas importantes para fazer a prova com segurança devido a um Ensino Médio conturbado na Faetec de Santa Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro.
“Eu tinha muita dificuldade em Matemática. Não tive a disciplina em
pelo menos um ano e meio. Física e Português também foram retiradas da grade durante um ano letivo inteiro. Prejudicou bastante não ter acesso a essas matérias com qualidade, porque te impul“Como pensar em ser engenheiro se não sei o básico de matemática? Não dá nem pra começar a sonhar, né...”
siona a se distanciar delas. Como pensar em ser engenheiro se não sei o básico de matemática? Não dá nem pra começar a sonhar, né...”.
“Era passar ou passar. Mas não passei!”.
Estudar em casa se tornou a única opção disponível. “Mas imagina uma
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“É isso o que acontece com os cotistas em geral. A gente entra porque uma lei garantiu. Ninguém faz questão que a gente permaneça”.
pessoa que tem dificuldade em várias disciplinas depender de estudar sozinho para o vestibular”, questiona.
A cobrança e a pressão da
mãe, professora na rede municipal do Rio e única fonte de renda da família, se intensificava à medida que a data da prova batia à porta. “Se não passar, você vai ter que ir trabalhar”. Nem precisava abrir a boca, o olhar dela já expressava a realidade. E o único cenário à frente era um emprego de baixa remuneração pelo resto da vida. Este medo, Bernardo desabafa, persiste até hoje. Ele ingressou no curso de Relações Internacionais na UFF em 2013, quando já havia “desencanado da ideia”. Porém se deparou com as dificuldades do pós vestibular. Do lado de dentro da universidade, os obstáculos também são múltiplos. “A exigência do inglês me atrapalha bastante. Estou aprendendo o idioma agora em um curso, porque na escola era só para dizer que estava na grade. Tenho uma prova de Introdução ao Comércio Internacional nesta semana e 90% das obras da bibliografia estão disponíveis apenas em inglês. Você busca resumos na internet, pede ajuda a amigos para traduzir, mas é óbvio que o seu desempenho não vai ser tão bom, porque você não tem acesso ao conteúdo da disciplina. Tem que
Morador de Santa Cruz, Bernardo utiliza três meios de transporte para chegar às aulas, que começam às 7h da manhã. Para chegar a tempo, sai de cssa com, pelo menos, três horas e meia de antecedência.
correr atrás do básico para tentar alcançar os colegas”.
Se a língua estrangeira atrapalha o rendimento, a Geografia tam-
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“Meu rendimento caiu muito, nunca me senti tão burro. Demorei a perceber que o problema não era comigo”
bém tem sua parcela de culpa. Da casa, em Santa Cruz, até a universidade, em Niterói, são 70 quilômetros, percorridos por BRT, trem e um ônibus intermunicipal.
“Eu gastava seis horas do meu dia no transporte público. Para che-
gar na aula às 7h, precisava pegar o trem das 4h20, no máximo. A aula termina às 13h. Se eu parasse para almoçar, chegava em casa às 18h,19h. Por muitas vezes eu pensei em desistir… Você chega em casa exausto, estressado, não tem força para estudar e ter que fazer tudo de novo no dia seguinte e prefere dormir. Meu rendimento caiu muito, nunca me senti tão burro. Demorei a perceber que o problema não era comigo, e sim com uma rotina cansativa por morar tão longe”.
Das cinco disciplinas inscritas, Bernardo passava em duas ou três. A
média de aprovação, no entanto, nunca chamou a atenção da universidade.
“O máximo que aconteceu foi receber um aviso do sistema online da
UFF que alertava sobre o risco de perder a matrícula caso eu reprovasse a mesma disciplina mais uma vez. Fora isso, nunca houve qualquer preocupação da coordenação ou de algum departamento com o meu rendimento. Não sei dizer se eles deduzem que eu não gosto de estudar ou coisa do tipo. Mas é isso o que acontece com os cotistas em geral. A gente entra porque uma lei garantiu. Ninguém faz questão que a gente permaneça”.
Matriculado na primeira
fase das cotas, quando a porcentagem mínima era de 12,5%, Bernardo encontrou uma versão bem meA rotina desgastante tem afetado o rendimento escolar do estudante de Relações Internacionais.
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nos preta da que vê hoje.
“A primeira impressão que
eu tive foi: a universidade é uma droga. Era um lugar ao qual eu não pertencia. Uma turma de 40 alunos e você como o único negro. E eu sequer era cotista racial, havia optado pela categoria social, que oferecia mais vagas. Tive dois professores negros em três anos de curso. O papel social dos negros na universidade é na limpeza, no bandejão, nos espaços de pouco poder. Daí a importância de ampliarmos o acesso às bolsas de iniciação científica aos cotistas e alcançarmos políticas de ação afirmativa na pós graduação. Precisamos de professores pretos para ter uma universidade mais democrática de fato”.
Nos três anos que se passaram, a presença de estudantes negros se tor-
nou mais nítida. Mas, para comemorar, Bernardo ainda enxerga uma a jornada longa e que ultrapassa questões quantitativas. O racismo continua a se reproduzir, de segunda a sexta, dentro ou fora de sala.
“Racismo é tabu. No meu curso, quando querem discutir preconceito,
preferem falar da intolerância religiosa dos europeus contra os árabes. É mais fácil criticar o que está distante do que aquilo que é perpetuado debaixo do nosso nariz. Aliás, essa técnica de silenciamento é a principal arma do racismo velado praticado pelos colegas de sala. Se você questiona o fato de que existe apenas uma disciplina sobre os países africanos e que todos os pensadores de Sociologia são brancos e ocidentais, torna-se o preto chato, que vê racismo em tudo. A galera apela para a máxima ‘Somos Todos Iguais’, como se o racismo já não existisse. Mas ele está ali, sendo reproduzido dia após dia”.
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Tainara Cardoso
A gonçalense de 23 anos atribui à
irmã a “culpa” pelo interesse em Psicologia. A caçula da família sofreu complicações do parto e adquiriu algumas debilidades cognitivas. “Queria ser útil para pessoas como ela”, afirma. Ao ingressar na UFF no segundo semestre de 2012, se deparou com a carência de profissionais negros já na sala de aula, seja em meio aos alunos ou aos professores. E mais uma série de preconceitos que precisam ser derrubados. Ao que depender de sua determinação e ativismo, poucos restarão.
Os ‘olhinhos’ das crianças brilham ao ouvi-la falar. “Tia, eu sei bem o que
é isso. Aconteceu comigo também”. Essas são afirmações frequentes nas oficinas que Tainara Cardoso ministra em escolas da rede pública de São Gonçalo, município onde mora. Há um ano, o Projeto África em Nós articula uma rede de amigos para debater temas ligados à negritude, com o objetivo de explicar as facetas do racismo e incentivar crianças e adolescentes a amarem a si mesmas, respeitarem-se umas às outras e acreditarem em seu potencial.
O prazer em fortalecer os mais novos tem origem nas lições recebidas
em casa. Sempre que visitavam as proximidades da UFF, os pais de Tainara afirmavam, com bastante convicção: “A Universidade é o lugar da diferença. Se alguém se torna referência simplesmente por ser negro, é porque nossa presença ainda está muito contável”.
“Tá vendo aqueles prédios ali? É onde você vai estudar!”. O coração da jovem se dividia entre a alegria de ter a confiança da família e a pres-
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são de não decepcioná-la.
“Eles enfatizavam que meu ingresso no ensino superior seria nossa
única chance de ascensão social. Não é uma questão de status, e sim uma necessidade. Minha família via em mim a chance que ninguém teve antes. Apesar de toda a expertise, meu pai, que é construtor civil, mal terminou a quinta série”, conta Tainara, que além de bater o recorde de pioneira na universidade, também se tornou uma das primeiras a concluir o Ensino Médio.
Contar sobre os primeiros passos rumo ao campus do Gragoatá faz res-
surgir as lembranças de tempos difíceis, de sacrifício e preocupação. Do Ensino Fundamental II ao Ensino Médio, Tainara enfrentou três greves na rede pública. Com a última delas às vésperas do vestibular, matricular-se num curso preparatório era a única saída.
O África em Nós desenvolve atividades nas escolas públicas de São Gonçalo, destrinchando o racismo com crianças e adolescentes. Entre os principais temas abordados estão o genocídio da juventude negra e a representatividade .
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“Não tínhamos dinheiro para pagar o curso. Me ofereci para lavar louça,
passar pano, varrer, qualquer tarefa útil em troca de uma bolsa de estudos. Depois de muito chorar junto aos coordenadores, ganhamos um super desconto, mas, ainda assim, meus pais tiravam aqueles R$150 de outras contas. De pron“No hospital, a pretinha de cabelo black power nunca é reconhecida como psicóloga; no máximo, a enfermeira”.
to senti a carência em certas disciplinas e passei a morar no curso. Pedia aos professores para assistir às aulas em todos os turnos disponíveis. Enquanto a mente trabalhava, o corpo respondia com crises de
insônia, de estômago, emagreci muito. Mas quando você é preto e quer chegar a algum lugar precisa se esforçar para ser o melhor em tudo”, lembra.
Embora ciente dos diversos obstáculos que precisou ultrapassar para
chegar ao ensino superior, Tainara revela que, quando ingressou na UFF, em 2012, cultivava opiniões ainda conflituosas.
“Eu me isentava das discussões sobre as cotas, porque não tinha argu-
mentos para questionar os discursos contrários, geralmente tão engessados. Fui contemplada pela bonificação na nota final para estudantes de escola pública e, mesmo convicta da necessidade das ações afirmativas, senti, por muito tempo, um certo peso na consciência”, confessa.
O cabelo crespo natural que encanta as crianças assistidas pelo África
em Nós foi um elemento importante no processo de afirmação pessoal. É ato político, como gosta de afirmar. Entretanto, incomoda e causa estranhamento nos espaços de poder. Durante estágio no Hospital Universitário Antonio Pedro, os pacientes apresentavam dificuldade em reconhecê-la como psicóloga.
“No hospital, a pretinha de cabelo black power nunca é reconhecida
como especialista; no máximo, a enfermeira. Somos a mão de obra mais barata que, quando perde a função de servir, é destinada ao extermínio.
“Quando você é preto e quer chegar a algum lugar precisa se esforçar para ser o melhor em tudo!”.
Temos lugares que são determina-
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dos para nós, e a Universidade ou o bom emprego não estão entre eles”, assevera.
Seja na experiência
profissional ou no dia a dia da sala de aula, a sensação permanece - “A Universidade é o lugar da diferença”. Única negra em um semestre com 50 ingressantes, a gonçalense explica a falta de entendimento dos colegas quanto à realiTainara questiona a resistência do curso de Psicologia a reconhecer as demandas específicas da população negra, que é majoritária nos hospitais psiquiátricos.
dade da população negra.
“Não entra na cabeça
de certas pessoas que tem to-
que de recolher no meu bairro e, por isso, não posso ficar até tarde na Cantareira. Meu pai e meu irmão se revezam em me dar carona e, quando escapam de ser advertidos pelo ‘comando’, são acusados como criminosos pela Polícia. Ninguém nunca me xingou de ‘macaca’ ou alguma outra ofensa que geralmente a sociedade associa a racismo com mais facilidade. Aqui se reproduz a visão do negro como o exótico, o espetáculo. ‘Olha como o cabelo e as roupas dela são diferentes; tem uma negra na Psicologia, vamos bater palmas para ela’. Fui a única graduanda convidada para um evento da Pós sobre questões raciais. Se alguém se torna referência simplesmente por ser negro, é porque nossa presença ainda está muito contável. E isso me assusta muito, pois a universidade pública não aplica o fator público efetivamente. Falta entendimento sobre a nossa realidade. Daí, se levantamos esses questionamentos, somos criticados por ver racismo em tudo. Sim, matou a questão. Ele está em tudo!”, enfatiza.
Segundo Tainara, apesar do viés humanizado e de ser conhecida pela
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empatia quanto às questões sociais, o curso de Psicologia apresenta resistência em compreender o racismo como um problema estrutural.
“Faço parte da equipe de profissionais e estagiários que oferece à po-
pulação e à comunidade acadêmica atendimento a preços populares. O pobre enxerga a Psicologia como algo distante de sua realidade. Depressão é doença de rico, pobre não pode chorar nem mostrar fraqueza. Mesmo os que superam o senso comum não dispõem de R$400 para pagar uma consulta. Sabendo que a maioria da população de baixa renda é formada por negros, o serviço que prestamos deveria considerar a importância de disponibilizar profissionais negros para os atendimentos. Eu mesma acompanhei uma paciente bastante vaidosa com o cabelo até que apareceu na consulta careca. Ela havia sofrido um corte químico devido aos produtos que usava, e aquilo prejudicou muito a autoestima dela. Mas por conhecer o tema, pude ter a sensibilidade de compreender como aquilo poderia afetá-la. A academia não reconhece as demandas específicas do paciente negro, tanto que o assunto não faz parte da grade. Porém, enquanto estes fatos são negados, a população negra predomina nos hospitais psiquiátricos1”, questiona.
Em meio a tantos preconceitos a serem derrubados, pequenos episó-
dios revigoram a esperança de ver a Universidade enegrecer. Entre eles, Tainara destaca a primeira vez em que encontrou uma mesa ocupada somente por estudantes negros no bandejão.
“Foi um momento épico para mim. Eles sequer se conheciam. Fui a cha-
ta de perguntar o nome, o curso, a localidade de todos. Ontem era somente eu, amanhã a turma terá três, quatro e, assim, vamos avançando. É algo que sempre converso com as crianças. Isso aqui (apontando para o campus) tem que ser opção para nós”, ressalta.
1
O estudo “A Custódia e o Tratamento Psiquiátrico no Brasil - Censo 2011”, publicado pela UnB, revelou que, nos 26 estabelecimentos em funcionamento no país, pretos e pardos somavam 44% (1.782), brancos, 38% (1.535), 0,2% (9) de amarelos e 0,2% (7) de indígenas e para outros 16% (621) dos internos, não havia registro de cor.
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Matheus Araújo
A incerteza financeira preocupa o jovem
de 21 anos que cursa o terceiro período de Engenharia Mecânica. Mas o que realmente o incomoda é ver que a igualdade racial ainda é uma meta distante na sua área. Intitulando-se “a cota da cota”, Matheus critica os colegas de turma que utilizam as cotas raciais por conveniência e prejudicam o público a quem a política se destina. Cheio de sonhos, projeta uma Universidade mais atenta às necessidades dos cotistas e, obviamente, mais preta.
A má gestão administrativa do governo desencadeou uma crise his-
tórica no Estado do Rio de Janeiro. Entre os serviços sob a mira dos cortes de gastos está o Bilhete Único Intermunicipal, que beneficia mais de quatro milhões de fluminenses com descontos na utilização do sistema de transporte. Desde a segunda metade de 2016, as empresas de ônibus têm ameaçado suspender o serviço devido à falta de pagamento pelo Estado, o que colocaria em risco o dia a dia do universitário Matheus Araújo. O morador do Méier precisaria desembolsar R$22 por dia para cumprir o trajeto de ida e volta à Niterói, quase o dobro do custo com o cartão, que deixa cada viagem a R$6,50.
“Se o Bilhete Único realmente acabar, não sei como vamos fazer. Meu
pai ficou desempregado nesse ano, e o orçamento está apertado. Meu curso é integral, é difícil conciliar com estágio. E como eu ainda estou no terceiro período, também é cedo para conseguir entrar no mercado de trabalho”, avalia.
“Eu sou a cota da cota!”
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Matheus se inscreveu para o auxílio emergencial, mas não obteve êxito.
Atualmente, a UFF oferece 1.700 bolsas de alimentação, moradia e transporte. No entanto, com mais de 30 mil alunos e 6 mil cotistas, a conta não fecha.
“A moradia estudantil é uma das mais difíceis. Eu não moro tão lon-
ge, mas os gastos são bem altos. Quem solicita percebe que os critérios de seleção não são muito claros. Quando eu tentei o emergencial, me negaram sob alegação de que havia casos piores. Eu “O tratamento da Universidade é ‘Parabéns! Boa Sorte!’. Ela precisa saber quem nós somos”.
realmente acredito nesse argumento. Mas todos precisam. Como eu, há certamente outras centenas de alunos, e isso é um fator que prejudica bastante
o aluno. Desanima não ter condição de permanecer na universidade pública ou demorar mais para se formar por conta disso”, argumenta.
Tendo cursado o Ensino Fundamental na rede privada e o Ensino Médio
na pública, Matheus conhece os dois lados da educação básica e compara: na escola particular, sofria preconceito por precisar tirar xerox dos livros, enquanto na Faetec, instituição técnica vinculada ao Governo do Estado, negros e brancos estavam distribuídos de forma proporcional e tinham boa convivência, cenário que gostaria de ver na UFF. Embora tenha ingressado no segundo semestre de 2015, quando as cotas já representavam 37,5% das vagas oferecidas, o futuro engenheiro observa que a escassez de negros no campus ainda é latente: de uma turma de 50 alunos, ele é o único negro cotista.
“Eu sou a cota da cota! Na minha turma, deveria haver cinco negros co-
tistas. Na prática, tem um. Incomoda conviver com pessoas que estão aqui usufruindo de vagas destinadas a quem realmente precisa, que se assumem como brancas no cotidiano, mas
“Incomoda conviver com quem declara uma negritude que não existe para usufruir das vagas de quem realmente precisa. Discursam contra a corrupção, mas a praticam”.
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declararam uma negritude que não existe para tirar vantagem. Discursam contra a corrupção, mas a praticam. A Engenharia da UFF segue um padrão: branco, playboy, com carro, filho de dono de empresa. É difícil encontrar alguém com uma história de superação. E o mercado de trabalho reflete isso. Quem está no comando é branco, e vai preferir outros brancos, porque a nós, pretos, estão estabelecidos os subempregos. Somos descendentes de pessoas que foram escravizadas e não há nenhuma vergonha nisso. Mas quantas famílias conseguiram se recuperar ao longo desses anos? O que motiva alguém a nos tirar esse direito?”, questiona.
Para combater as fraudes nas cotas raciais, Matheus toma como exem-
plo o CEFET de Nova Iguaçu, onde cursou alguns meses, antes de ser aprovado na UFF. Ele acredita que medidas aliadas à autodeclaração podem inibir a ação de quem se apropria indevidamente das ações afirmativas e transformar o perfil dos graduandos da UFF. A meta é deixar a Universidade mais preta do que quando chegou.
“Senti diferença na dinâmica de matrícula dos cotistas entre as duas
faculdades. Na UFF, eu entreguei o que exigiam e fui embora. Não fiquei 15 minutos na sala, ninguém nem olhou para mim. No CEFET, as assistentes sociais conversam, avaliam os documentos. Uma política um pouco mais exigente pode ajudar, porque é menos provável que o branco se disponha a encarar uma verificação, ele vai ficar com receio de ser questionado como cotista. E a Universidade também poderia nos acompanhar mais. O tratamento atual é ‘Parabéns! Boa Sorte!’. Ela precisa saber quem nós somos”, sugere.
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Luciana Silva
A paulista de 28 anos abandonou
o funcionalismo público para viver o sonho de cursar Direito. Ao ingressar na UFF no segundo semestre de 2014, se deparou com as contradições da Universidade. De um lado, a organização dos estudantes pretos; do outro, o racismo institucionalizado que ignora a importância das questões raciais. Diante do que já enfrentou para chegar ao ensino superior público, Luciana Silva não se deixa intimidar. Acredita que é chegado o tempo dos negros escreverem novas histórias, de conquista e positividade.
Da Zona Leste de São Paulo para Niterói, Luciana Silva enfrentou um
longo percurso. Na bagagem, trouxe sonhos, determinação e consciência crítica de que a universidade pública é um lugar de todos. Nem sempre pensou assim, confessa. A necessidade de ingressar no mercado de trabalho prejudicou até mesmo o ritmo do ensino básico, concluído por meio do Programa de Educação de Jovens e Adultos, somente aos 20 anos de idade. Na periferia de São Paulo, ao som de rap, era fácil identificar as desigualdades. Enquanto o sonho de conquistar uma vaga na universidade pública adormecia no peito, Luciana encontrou uma forma de incentivar outros jovens de baixa renda a acre-
“Sempre brinco que nasci duas vezes: a primeira quando vim ao mundo, e a segunda quando me descobri negra”
ditar em si mesmos. Ela começou a dar aulas de interpretação de texto em um pré-vestibular comunitário,
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vinculado à Educafro, o que culminou no envolvimento com a militância negra.
“Não havia referências de familiares, amigos ou vizinhos no ensino su-
perior público, logo os autores negros se tornaram a minha inspiração. Defendi as cotas raciais nas manifestações em Brasília e me integrei às ações da Educafro. Quando nos encontramos, descobrimos quem somos, adquirimos uma identidade crítica e começamos a compreender nossa capacidade de alcançar espaços que parecem utópicos, de romper barreiras”, conta.
A dedicação aos estudos e o incentivo da mãe culminaram no ingresso
no curso de Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 2008, primeiro ano de aplicação de cotas raciais no ProUni. Mesmo com a política, a turma contava com apenas duas negras, ambas contempladas pelas ações afirmativas. A definição do Enem como método de seleção reacendeu o desejo de expandir horizontes. Àquela altura, o envolvimento com as questões raciais havia consolidado a meta de cursar Direito. No
“Foram mais de 300 anos de escravidão no país, e a Universidade acha desnecessário ter disciplinas que abordem as questões raciais.”
entanto, seria necessário deixar um emprego como servidora pública, casa, família, e começar do zero aos 26 anos.
“Devido à falta de informação, achávamos que a USP era a única op-
ção. Ela ainda está muito distante para quem é da periferia… Percebi a diferença da Mackenzie para a UFF ao encontrar outros estudantes negros na Semana de Acolhimento Estudantil, mas a convivência na sala de aula se mostrou bastante negativa. Em poucas semanas de aula as piadas racistas já se faziam frequentes e, ao final do primeiro semestre, eu não falava com metade da turma. Quando você é preto e se posiciona, incomoda muita gente”, salienta.
Para Luciana, o racismo da UFF se expressa não apenas no dia a dia com
os demais estudantes e professores, mas também pelo posicionamento burocrático da própria instituição.
“Estamos atrasados em fatores básicos. É assustador que uma univer-
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sidade pública, num país com mais de 300 anos de escravidão, não tenha na grade dos cursos disciplinas que abordem as questões raciais e apresente tanta resistência às propostas de modificação de currículo com esse objetivo. Há um distanciamento considerável das questões de gênero, da origem latinoamericana. O Direito é um curso eurocêntrico e “Temos sempre a mesma história, de sofrimento e privação, precisamos escrever outras mais positivas”
ministrado por professores conservadores, que defendem meritocracia. Mais grave ainda é a instituição contratar prestadoras de serviço cujas cláusulas de contrato proíbem os funcionários de participar de quaisquer
eventos. Isso prova que a Universidade pretende manter a configuração atual, porque potencializar as pessoas significa modificar estruturas sociais que têm dado certo para quem já está no poder”, avalia.
Faltam, pelo menos, três anos de curso, porém a estudante de Direito
já percebe a influência que exerce sobre a família. Nesse período, três primas foram aprovadas em instituições públicas e o pai adquiriu uma nova visão sobre as ações afirmativas. Para além do círculo social, Luciana planeja ver mudanças concretas na Universidade e acredita que a articulação dos alunos negros será importante para construir este cenário.
“Quem entra na universidade hoje mostra mais convicção sobre sua
identidade racial e seus direitos. A organização tem permitido firmar laços para enfrentar o racismo juntos e discutir nossa realidade por nós mesmos, como fizemos no ECUN (Encontro de Universitários Negros) na UFRJ, em maio deste ano. Caminhamos a partir do que nossos antepassados construíram e vamos dar continuidade, evoluindo a cada geração. Raramente, as crianças de escola pública com as quais converso contam sobre o sonho de serem médicas ou advogadas. Na realidade delas constam ser mãe aos 16 anos, fazer supletivo para poder trabalhar, ver os amigos morrerem pela violência, enxergar no Pelé o referencial negro de sucesso. Brinco que tenho duas certidões de nascimento - a de quando eu vim ao mundo e a de quando me descobri negra. Hoje, eu acredito em mim,
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vejo meu potencial como intelectual e sei que tudo o que é possível para mim, pode ser para os nossos irmãos e irmãs. Temos sempre a mesma história, de sofrimento e privação, precisamos escrever outras mais positivas”, finaliza.
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Considerações Finais
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Pierre Bourdieu inovou a sociologia ao definir o conceito de habitus,
em síntese, como o “princípio não escolhido de todas as escolhas”, ou seja, o indivíduo tem a predisposição a determinadas atitudes e ações ligadas ao gosto, ao comportamento e aos valores, por conta das estruturas sociais nas quais está inserido. Com base nessa fundamentação teórica, Hustana Vargas, em seu estudo “Cor e curso na interiorização de uma universidade federal”, entende que o fenômeno da escolha da carreira pode ser relacionado a construções típicas do habitus, como algo que os indivíduos incorporam ao longo de sua história de vida e de suas interações sociais. Sendo assim, cursos e carreiras seriam apropriados por grupos sociais que se estabelecem nas instituições e no mercado, incentivando e atraindo seus iguais. Nesse sentido, a autora argumenta que “o ingresso e a permanência de mais negros no ensino superior, em todo tipo de carreiras, não significam apenas a alteração de horizontes econômicos individuais ou familiares. Significam, também, alterações nas representações sobre relações raciais, nas identidades étnico-raciais e na autoestima. Ao mesmo tempo, disseminam novas expectativas em relação à educação formal e uma ética antirracista sobre as hierarquias raciais, possibilitando que os estudantes tornem-se referências dentro e fora de suas universidades. Nesse sentido, eles referenciariam novos habitus” (VARGAS, 2016, pág. 06).
o contexto de instabilidade política e econômica no qual este trabalho é finalizado, enquanto são votados os cortes nos gastos do Governo com os serviços de saúde e educação, põe em risco décadas de conquistas sociais. Se as universidades públicas esperam prejuízo com tais medidas, maior ainda é a preocupação dos cotistas. No entanto, a luta não se deixa conter por decisões pautadas pela má vontade política; ela permanece em curso através do testemunho e do exemplo de Bernardo Affonso, Tainara Cardoso, Matheus Araújo, Luciana Silva e tantos outros que denunciam o lugar da exceção hoje, a fim de ver um cenário menos desigual amanhã. Enxergamos as transformações sociais que as cotas raciais têm gerado, ainda que em pequena proporção, na
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Universidade Federal Fluminense e reafirmamos que elas não se restringem a números, mas perpassam as nossas vidas. Seremos nós os responsáveis a formular novos habitus e, a partir deles, impulsionar mais negros e negras a desejarem, sonharem e ocuparem os espaços de poder, rompendo com os papéis sociais determinados à população negra pela sociedade racista, que apela desde o mito da democracia racial a discursos que visam ferir nossa autoestima para nos manter em lugares de subalternidade. Defendemos as ações afirmativas não por duvidarmos da capacidade do negro em caminhar sozinho, mas por acreditarmos no potencial daqueles que não foram incentivados a explorá-lo ou precisaram escolher a sobrevivência imediata, em detrimento da trajetória acadêmica. Portanto, esperamos que, mesmo de forma modesta, este projeto lhes forneça informação para suscitar reflexões, pois “somente a partir do momento em que nos enxergarmos como parte do problema, poderemos passar a fazer parte da sua solução” (CARVALHO, 2005/2006, pág. 102).
Enfim, Agora Estamos Aqui constitui uma tentativa de registrar nar-
rativas que há muito estão invisíveis, mas precisam ser compartilhadas. São histórias que representam não apenas estes quatro personagens, e sim milhares de negros e negras que têm superado estigmas, dificuldades financeiras, problemas de autoestima e tantas outras formas cruéis pelas quais o racismo se expressa. Cada experiência se tornou possível por conta das ações afirmativas e, por isso, reforçam o que este projeto se propôs a olhar: políticas públicas sérias e eficazes são ferramentas para transformar vidas, derrubar paradigmas e construir uma sociedade mais justa. Aliar uma experiência tão particular ao conhecimento adquirido no curso de Comunicação se mostrou não apenas um desafio, como uma satisfação. Sempre vai haver uma boa história, um novo ‘gancho’, um detalhe que fará a diferença na apuração. Adquiri sabedoria, exercitei habilidades, fiz amigos, ouso dizer. E, também assumo que foi fundamental à minha motivação tentar retribuir aquilo que a Universidade me ofereceu de forma gratuita: a capacidade de abrir meus horizontes e, deste modo, me permitir aprender. Hoje, olho para trás e só consigo pensar isso:
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assim como pude desfrutar de tantas qualidades que o ensino superior pĂşblico tem a oferecer, desejo que outros negros e negras tambĂŠm tenham esta oportunidade.
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ReferĂŞncias
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ALCANTARA, Maria das Graças A. dos S. Estudantes Cotistas: limites para permanência e conclusão do curso superior na UFF. Niterói: UFF, 2015. 14 p. Especialização em Gestão em Administração Pública, Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da Universidade Federal Fluminense. Disponível em <www.ichs. uff.br/wp-content/.../01/TFC_MARIA-DAS-GRAÇAS-ALCANTARA.pdf> Acesso em: novembro 2015 BRANDÃO, André; TEIXEIRA, Moema De Poli. Censo Étnico-Racial da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Federal do Mato Grosso. Niterói: EDUFF, 2003. CADERNOS PENESB: DISCUSSÕES SOBRE O NEGRO NA CONTEMPORANEIDADE E SUAS DEMANDAS. Niterói: EdUFF, 2008/2010, n.10. CARVALHAES, Flávio; DAFLON, Verônica Toste; FERES JÚNIOR, João. O impacto da Lei de Cotas nos estados: um estudo preliminar. Rio de Janeiro: IESP-Uerj, 2013. Disponível em <http://gemaa.iesp.uerj.br/files/TdP/TpD_gemaa_1.pdf> Acesso em: janeiro 2016 CARVALHO, José Jorge. “O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro”, in Revista USP, São Paulo, n.68, dezembro/fevereiro 2005-2006, p. 88-103. Disponível em <www.revistas.usp.br/revusp/article/download/13485/15303> Acesso em: março 2016 CENTRO DE ESTUDOS DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E DESIGUALDADES. O que afasta as crianças e adolescentes negros da escola?. São Paulo: 2014. Disponível em
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Memorial
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Resumo Agora estamos aqui é um ensaio sobre o ingresso de estudantes negros a partir das políticas de ação afirmativa implementadas na Universidade Federal Fluminense. O trabalho procura registrar a trajetória dos cotistas e abordar o impacto das cotas raciais sobre a instituição, que precisa adaptar-se às demandas deste novo público. Palavras-chave: cotas raciais, ação afirmativa, UFF, racismo.
Introdução
As políticas de ação afirmativa difundiram-se pelo mundo com a pre-
tensão de reverter quadros de desigualdades socioeconômicas provocadas por fatores históricos. No Brasil, o conceito ganhou visibilidade ao reivindicar intervenções do Estado em defesa da população negra, visto que a superficialidade da Lei Áurea e das legislações seguintes não garantiu a inserção dos ex-escravizados e seus descendentes na sociedade como cidadãos, ao contrário da população migrante européia e asiática, que receberam benefícios do governo para sua instalação e sobrevivência. Apesar da comprovação, por meio de dados, da discrepância entre brancos e negros quanto à escolaridade, ao rendimento salarial, aos índices de desemprego e ao acesso à moradia de qualidade, entre outros fatores, as propostas de medidas de reparação enfrentaram críticas de intelectuais e da mídia, com uma série de argumentos subjetivos que buscam deslegitimar a necessidade da aplicação da política em espaços de poder, como os cargos públicos e o ensino superior, numa tentativa de manter a população negra na base da pirâmide social e em posições de subserviência. Opiniões à parte, as ações afirmativas se consolidam e implicam no ingresso cada vez maior de negros nas universidades públicas.
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É nesse contexto de transformação no perfil dos estudantes do ensi-
no superior que este livro-ensaio se propõe a abordar, particularmente, as cotas raciais na Universidade Federal Fluminense, tomando como ponto inicial as primeiras discussões acerca da ausência de negros na instituição, até o cenário apresentado em 2016, ano de conclusão desta pesquisa, como também do ingresso das primeiras turmas formadas com a totalidade do percentual de reserva de vagas, estabelecido pela Lei 12.711/2012. Por meio de entrevistas e da cobertura de alguns eventos, a pesquisa buscou analisar o impacto cotas raciais na UFF e nos estudantes contemplados pela política ao longo desse período.
O livro se apresenta em duas partes. Na primeira, explico de que forma
o tema se tornou uma pauta da minha trajetória acadêmica, seguido do panorama histórico das ações afirmativas da UFF. No segundo bloco, os estudantes entrevistados contam sobre suas vidas antes e durante a Universidade. Com o registro das experiências pessoais de alguns desses sujeitos, pretendo abordar àqueles, geralmente, tratados como estatísticas e, a partir destas narrativas, inspirar outros negros e negras a ocuparem um lugar que lhes pertence por direito. “Agora estamos aqui” é um convite a conhecer nossa existência e resistência na UFF, mas também uma indagação à própria instituição, para que esteja atenta às novas demandas e desafios que as ações afirmativas desencadeiam.
Pré - Produção
Esse trabalho nasceu há seis anos, quando percebi a desproporcionali-
dade entre a população negra no Brasil e aquela presente no corpo discente da UFF. Contudo, a primeira experiência em abordar o tema ocorreu em 2011, devido a uma avaliação proposta pela Professora Sylvia Moretzsohn, na disciplina “Oficina de Reportagem”. Em parceria com a colega Elisa Araújo, iniciei as pesquisas sobre as políticas de ação afirmativa no ensino superior. Juntas, elaboramos uma matéria que comparava as universidades estaduais do Rio de Janeiro (Uerj) e da Bahia (Uneb) quanto às medidas implementadas em prol da inclusão de
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alunos negros e de baixa renda e seu respectivo impacto nas instituições. Em meio à apuração, nos surpreendemos com a hostilidade apresentada pela mídia em relação ao assunto. Naquele ano, argumentos favoráveis e contrários às cotas raciais fervilhavam os debates, por conta de Ações Diretas de Inconstitucionalidade que descansavam sobre as mesas do Supremo Tribunal Federal. Veículos como a Folha de São Paulo nos concederam o desprazer de ler reportagens pouco informativas, que exageravam nas críticas e careciam das informações mais básicas que um lead jornalístico deve conter, entre elas por quê as cotas seriam necessárias. O questionamento ganhou respaldo com a publicação do estudo Imprensa e racismo: uma análise das tendências da cobertura jornalística, pela ANDI - Comunicação e Direito. A pesquisa considerou 45 periódicos, entre locais e nacionais, e apontou “a propensão dos jornais impressos brasileiros em dissociar as violências físicas praticadas contra a população negra e o debate sobre seu contexto primordial de produção - ou seja, a violência simbólica do racismo” (ANDI, 2012, pág. 8).
O estudo fortaleceu o desejo de praticar um jornalismo diferente, dis-
tante dos ideais de “neutralidade” e “objetividade” que a imprensa alegava praticar e fortemente problematizados nas aulas de Comunicação Social, curso conhecido pelo cunho crítico e reflexivo. Como explica Moretzsohn na obra Pensando contra os fatos – Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico, o conhecimento é um processo mediado pela subjetividade. A questão essencial para a afirmação da objetividade está em que há uma realidade exterior ao sujeito, que o precede, com a qual ele interage necessariamente através – mas não só – do trabalho e que é cognoscível através da razão. Uma polêmica central, porém, gira em torno da perspectiva de se conhecer o objeto “tal qual é”, na medida em que esse conhecimento depende do sujeito, do tipo de indagações que fará e dos instrumentos que desenvolve e utiliza nesse processo, e que evoluem ao longo da história. (...) não significa, portanto uma rejeição à razão, mas a compreensão de que o conhecimento é um processo mediado pela subjetividade. (MORETZSOHN, 2007)
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A retomada de um jornal laboratório na Comunicação Social por um
grupo de alunos da turma 2010.2, da qual fazia parte, contribuiu para que a apuração prosseguisse e resultasse em uma reportagem, produzida com a orientação da professora Carla Baiense, que lecionava a disciplina. A matéria “Onde Estão Eles?”, publicada na edição um do Jornal O Casarão em fevereiro de 2013, questionava a ausência da população negra nas universidades públicas. Naquele processo, entrevistei fontes ligadas ao Movimento Negro, candidatos ao vestibular, professores do ensino público e alunos e ex-alunos de diferentes origens e opiniões, além de acrescentar os desdobramentos recentes, como a aprovação do STF e a Lei de Cotas, sancionada pela presidente Dilma Rousseff. A veiculação do tema desencadeou um debate saudável no campus e se consolidou como uma bandeira pessoal e profissional. A partir dali, agreguei leituras de obras sobre o tema e acompanhei os desdobramentos da política. Nesse sentido, “Afrocidadanização: ações afirmativas e trajetórias de vida no Rio de Janeiro”, que consta entre as referências para este trabalho, exerceu forte influência na realização deste projeto, pois foi o primeiro livro no qual percebi a valorização da trajetória do estudante negro e suas particularidades, em detrimento das informações numéricas e factuais. A obra me indicou o desejo de contar a história de estudantes negros da UFF e, a partir de sua trajetória de lutas e conquistas, inspirar outros negros e negras a ocupar a universidade pública. A estes relatos seriam acrescentados a fundamentação teórica e o processo de implementação da Federal Fluminense.
Produção
O decorrer deste trabalho foi marcado por sucessivos adiamentos e
desistências da disciplina devido à falta de organização em conciliar a jornada de trabalho pessoal e a produção do projeto de conclusão do curso. Nesse período, substituí a ideia de realizar um registro audiovisual pela produção de um livro-ensaio, por não possuir os atributos e as ferramentas necessárias à primeira
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opção. Por compreender a importância da imagem como representatividade aos que terão acesso a este trabalho, optei por material impresso que contenha infográficos e registro fotográfico dos entrevistados. Embora as leituras tenham sido constantes ao longo de toda a trajetória acadêmica e o tema tenha grande relação com vivências e opiniões pessoais, as entrevistas realizadas se concentraram entre os meses de outubro e dezembro de 2016.
Personagens
A escolha dos personagens se desencadeou a partir de relações inter-
pessoais (Bernardo e Tainara), indicações de amigos (Luciana) e de estudantes articulados junto aos coletivos (Matheus). A todos eles, foram separadas perguntas-padrão; entretanto, o desenrolar da entrevista culminava em outras. Os questionamentos principais se centravam nos seguintes tópicos:
1 - Trajetória pessoal: informações pessoais (nome, idade, localidade,
curso, data de ingresso, tipo de ação afirmativa); escolha da universidade e do curso; relação familiar e pessoas referência; trajetória de ensino básico. O objetivo era conhecer o perfil do entrevistado
2 - Primeira impressão sobre a UFF e o que mudou ao longo do percurso
3 - Opinião sobre as ações afirmativas antes e depois do ingresso e ava-
liação da do funcionamento da política na UFF
4 - Que experiências de racismo vivencia na universidade
5 - Quais as expectativas pessoais e para a universidade
Todas as entrevistas foram realizadas no campus do Gragoatá, segun-
do a preferência dos personagens. Os encontros ocorreram em outubro com Bernardo e Luciana, e no mês seguinte com Tainara e Matheus, nesta ordem. A narrativa de dois estudantes exigiram a produção do conteúdo fotográfico em outros ambientes. A distância entre moradia e local de estudo se apresenta como um elemento importante no relato de Bernardo e, por isso, agendamos as fotografias no bairro Santa Cruz. A sessão buscou retratar parte do trajeto re-
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alizado, o desgaste físico e emocional do cotidiano do universitário. Entretanto, questões técnicas e externas nos impediam de alinhar reprodução e realidade. Fotografar por volta das 4h da manhã poderia afetar a qualidade das imagens e colocava em risco a utilização do equipamento. No caso da estudante de Psicologia, a menção ao projeto África em Nós demonstrou que, embora não pudéssemos utilizar a imagem dos adolescentes, o registro de uma atividade realizada pela rede proporcionaria um diferencial ao trabalho. Curiosamente, após a entrevista, passei a integrar a rede do África em Nós, auxiliando com o registro fotográfico de algumas ações. Utilizei a imagem de uma delas, realizada em uma escola estadual do município de Magé, na Baixada Fluminense. A participação na atividade contribuiu com a edição do perfil da Tainara, por me permitir compreender as sutilezas do trabalho desenvolvido e o impacto do conteúdo sobre os alunos, cuja faixa etária se aproximava dos 14 anos. A programação da escola fazia alusão ao Dia da Consciência Negra e contou com oficinas de poesia, batalha de passinho, apresentações de música e dança, além do debate promovido pelo África em Nós, que enfocou o cabelo natural como identidade, o genocídio da juventude negra no Brasil e a falta de representatividade no negro na mídia. Durante o evento, também tive a oportunidade de compartilhar conhecimentos sobre fotografia com alguns dos alunos.
Os perfis são desenvolvidos em terceira pessoa, com o recurso de al-
gumas falas em discurso direto. Tal escolha se sobrepôs à opção de reproduzir as transcrições das entrevistas no formato ping-pong, pois provocaria um distanciamento da autora do trabalho em relação às narrativas. A preferência, no entanto, não exclui a condução jornalística do material. O objetivo era aproximar a linguagem do Jornalismo Literário, considerando que neste gênero “o autor pode ser observador ou até mesmo um participante da ação. Além do visto, o não-visto – pensamentos, sentimentos, emoções – é descrito a partir de um trabalho de campo efetivo, de uma apuração vigorosa, de uma entrevista pautada pelo tempo farto, pela atenção e pela acuidade” (NECCHI, 2009, pág.103).
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O Panorama Histórico
O panorama histórico é resultado de um somatório de vivências, des-
de as avaliações pessoais, passando pelas leituras sobre o tema, as análises do comportamento dos noticiários e o saldo da reportagem publicada no Jornal O Casarão, como abordado anteriormente. No entanto, reconstruir este percurso, dessa vez, com o intuito de contextualizar as cotas raciais, exigia apuração junto a fontes de relevância nos estudos e na militância sobre as demandas do negro na Universidade. Ademais, era necessário encontrar nomes que pudessem contribuir sobre a articulação em favor das cotas na pós-graduação e a problemática das fraudes. Nesse sentido, procurei Julio Tavares, coordenador do Laboratório de Etnografia e Estudos em Comunicação, Cultura e Cognição e professor no Programa de Pós-Graduação da Antropologia da UFF; e Marcelino Conti, Mestre em Antropologia e Doutor em Sociologia e Direito. O nome de Julio surgiu em virtude de pesquisas sobre especialistas em etnicidade, racismo e discriminação na UFF. Conti, por sua vez, foi escolhido devido a sua intensa militância na academia e articulação junto aos estudantes. Realizada pelo telefone, a entrevista com o professor Julio abordou a resistência da academia em reconhecer as questões raciais e discutir maneiras efetivas de combater a exclusão à qual está submetida a população negra. Enfático e sem rodeios, o professor de Antropologia ressaltou o racismo impregnado na elite intelectual, explicou as negociações pelo modelo de bonificação na nota e argumentou em favor das cotas na pós-graduação, destacando, como ponto central de sua fala, a contribuição da presença do negro, seja em conhecimento, seja por desmascarar o racismo a partir da convivência entre etnias na vida universitária. Já Marcelino Conti me encontrou no campus do Direito, na Rua Tiradentes. Por conta do atraso, teve a gentileza de me convidar para almoçar e passamos cerca de duas horas conversando. O professor explicou de forma minuciosa o processo de adesão às cotas raciais no programa de pós-graduação em Sociologia e Direito e pontuou a escassez de professores negros em diferentes colegiados, que, segundo ele, também é resultado da
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falta de identificação racial de alguns profissionais que, embora pardos, não se assumem como negros, tampouco promovem a questão racial em sala de aula ou pressionam um posicionamento afirmativo da Universidade. Ao relatar sua trajetória pessoal na academia e no mercado de trabalho, Conti lembrou que a presença de um professor negro no ensino superior tem origem em uma jornada de sacrifícios e insistências. Infelizmente, não pude acrescentar os desabafos ao texto histórico, por receio de interromper o fluxo das informações sobre as cotas na Pós, porém a entrevista se tornou, sem dúvida, uma motivação para prosseguir com o trabalho e uma prova da urgência em abordar o assunto.
Considerações Finais
O contexto nacional que levou à greve dos servidores e às ocupações
trouxe reflexos à realização do trabalho em relação a contatos com setores admInistrativos da Universidade. Profissionais da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PROAES) e da Pró-Reitoria de Graduação (PROAC) se revezavam no expediente e nem sempre se encontravam disponíveis nos horários indicados pelo setor. A burocracia da instituição também provocava empreitadas sem êxito, já que funcionários de um mesmo setor forneciam informações desconexas. Apesar de certo percalço, as portas se abriram com algumas pesquisas mais caprichosas em relatórios de prestação de contas da UFF e em trabalhos já publicados sobre as políticas de ação afirmativa. A escassez de dados na Federal Fluminense consolidou a proposta de comparar os processos de implementação da UFF e da Uerj. A instituição estadual é citada em diversos trabalhos pelo Brasil devido ao pioneirismo e aos resultados das ações afirmativas. Para executar tal ideia, recorri à professora Teresa Caminha, da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da UFF, que produziu sua tese de Doutorado sobre as cotas e defendeu o trabalho em uma universidade dos Estados Unidos. Teresa explicou a tese de forma breve pelo telefone e mantivemos contato por email. A pesquisadora agregou informações sobre as medidas adotadas pela Uerj em prol da permanência do
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estudante cotista, tanto no aspecto financeiro quanto ao aprendizado, e confirmou a hipótese de que a bonificação na nota final não implicaria em resultados significativos de inclusão social, como demonstravam os números da população negra e da de baixa renda na UFF e também estudos sobre as experiências da Universidade Federal de Grandes Dourados, no Mato Grosso, e das estaduais USP e Unicamp.
Fundadora do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Bra-
sileira (Penesb-UFF), a professora Iolanda de Oliveira figura no topo do ranking de especialistas da Federal Fluminense sobre as demandas da população negra e, por conta de tantos artigos e livros publicados e palestras realizadas, já exercia influência neste trabalho. Seu nome sempre constou como fonte essencial para o projeto, contudo entendia que precisava acioná-la no momento em que tivesse formulado as perguntas certas. Nosso encontro ocorreu já na segunda metade de dezembro, após uma banca na qual participava na Faculdade de Educação. Na expectativa de receber uma aula, pedi para que ela avaliasse a UFF antes e depois das cotas. Com imensurável doçura, Iolanda me contou sobre a iniciativa do Penesb em formular uma proposta de cotas raciais na UFF em 2004, pouco depois de constatar a predominância discrepante da população branca sobre a negra por meio de um Censo Étnico-Racial realizado no ano anterior. O Censo já constava na referência bibliográfica deste trabalho, mas a nova informação trouxe outro significado ao que eu buscava elaborar. O relato do antropólogo Julio Tavares havia denunciado o posicionamento retrógrado da UFF e a adoção tardia de uma política de ação afirmativa cujo modelo implicava em mudanças irrisórias em termos numéricos; contudo, havia um núcleo de resistência, pequeno em quantidade, porém grande em determinação, disposto a levantar aquela bandeira nos primeiros anos em que a política se difundiu pelas instituições públicas. Iolanda também me trouxe estímulo ao pontuar que enxerga, pela primeira vez, um cenário favorável às cotas raciais sem recorte de classe ou de escolaridade na pós-graduação.
Entrevistar especialistas sobre as demandas da população negra se
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configurou como uma experiência enriquecedora para a produção deste trabalho. No entanto, alguns episódios de apuração foram marcantes e precisam ser destacados: a votação das cotas da Pós na Antropologia, os encontros dos coletivos e as visitas à Ocupação Preta. Conforme relatado no livro, a Antropologia foi um dos primeiros colegiados a apontar o desejo de expandir a política de cotas para a pós-graduação, porém a proposta permanecia em esfera abstrata perto da publicação de um novo edital. Compareci à reunião a convite da mestranda Aline Maia, a quem desejava entrevistar a respeito da articulação dos estudantes. No encontro, realizado no Bloco O em meados de dezembro, comprovei o que os coletivos já relatavam: o discurso contraditório de alguns professores quanto à medida, pois os mesmos se dizem favoráveis, mas buscam pontuar defeitos em qualquer sugestão. Em contrapartida, a presença de estudantes de fato pressionava aqueles com poder de voto e fortalecia a proposta com argumentos bem embasados. A apresentação do edital e a votação duraram cerca de quatro horas. Ao final, o clima se dividia entre comemorações e lamentos. De um lado, a comissão que formulou a proposta e os estudantes celebravam a conquista sem acreditar no que haviam presenciado; do outro, alguns docentes lamentavam os prejuízos acarretados ao curso. São 13 anos de vigência das cotas no país, mas as medidas continuam a provocar desconforto às elites.
Longe de ser o cenário ideal, a demora em concluir a produção des-
te trabalho favoreceu o resultado do mesmo, já que o ano de 2016 foi histórico para o contexto das cotas raciais, com a articulação política e o fortalecimento dos estudantes negros como comunidade. Ao longo do ano, os coletivos e os alunos independentes se mobilizaram tanto pela adesão dos programas da Pós às cotas, quanto em prol da apuração das denúncias de fraudes na graduação. Em um dos encontros em que participei, em setembro deste mesmo ano, pude entender a organização das ações. Representantes compartilharam o cenário dos cursos, explicaram a legislação que daria respaldo à criação da comissão de verificação dos ingressantes e propuseram a votação da proposta ideal, que contemplasse o entendimento de todos os presentes. A partir dali, traçaram estraté-
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gias para pressionar os colegiados e se dividiram em grupos de trabalho, cujas tarefas seriam divulgar a ocorrência das fraudes nos campi e nas redes sociais, pesquisar modelos de enfrentamento às fraudes junto a outras universidades, acompanhar os desdobramentos do tema na UFF. A partir desses encontros, pude obter fontes para o trabalho e compreender melhor o novo cenário. De ausentes ou escassos, os negros se tornaram um movimento em potencial pela garantia de direitos. As visitas à Ocupação Preta demonstraram o mesmo panorama. Pude observar que os ocupantes compartilham objetos pessoais, ideias, aflições. Tais experiências contribuíram para a definição do título deste ensaio. “Agora estamos aqui”, como pontuou a estudante Lorena Gomes, não apenas confirma a mudança no perfil do universitário, como também representa um posicionamento político dos estudantes negros que acarretará transformações no espaço e no pensamento acadêmico.
Referências Bibliográficas MORETZSOHN, Sylvia. Pensando contra os fatos – Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico. Rio de Janeiro: Revan, 2007. NECCHI, Vitor. A (im)pertinência da denominação “jornalismo literário”. In: Estudos em Jornalismo e Mídia. Porto Alegre: Ano VI - n. 1 pp. 99 - 109 jan./jun. 2009. Disponível em <https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/viewFile/10950/10420> Acesso em dezembro 2016.
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