revista

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Maio 2010 €3,50

CASA DAS HISTÓRIAS As Configurações PAULA REGO Pétreas Rudy Ricciotti



editorial

Momentos Eternos

Enquanto o corpo puder e não nos lembrar constantemente o quão frágeis somos, talvez seja impossível perceber que já somos felizes e não o sabíamos. Felizes somos quando caminhamos em direcção ao sonho, muito mais do que quando o conquistamos. Somos felizes quando percebemos que as maiores provas de amor são as mais simples, quando finalmente compreendemos que um olhar diz mais que uma longa explicação, e que eterno é tudo aquilo que, ainda que

dure uma fracção de segundo, é tão intenso que se petrifica e nenhuma força nem nenhum tempo o demove. Somos felizes quando entendemos que o comum não nos atrai, que a dor emocional dura enquanto nós quisermos, que só vale a pena arrependermonos do que fizemos, do que não fizemos e do que poderíamos ter feito melhor para pedir perdão. Somos felizes quando damos conta que não somos imortais e arranjamos força para lutar e realizar todas as nossas «extravagâncias».

E mesmo que o corpo se lamente e nós comecemos a dar valor ao bem mais precioso de todos – a saúde –, seguremos os sorrisos, abasteçamos o coração de confiança e conservemos a vontade de viver: se é para voltar, voltemos, se é para seguir, sigamos e se é para recomeçar, recomecemos. Felizes pretendem ser os momentos que lhe sugerimos em cada edição, como nesta que agora esfolheia. Desejamos que os petrifique e os torne eternos. Maria Silva Santos, Directora

sumário Emídio Pinheiro «O BBC é um parceiro indissociável»

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Casa Impluvim Ela ergue-se numa configuração rasgada no céu Alexandre Alves Costa A Arquitectura e o Sentimento de Pertença

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Adega Merus O Estilo em Estado Puro

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Amanjiwo A Eterna Serenidade

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Luís Onofre Pensar e Criar com o Coração

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Villa Moda Um Mundo Fantástico

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Embarcações A Caravela do Futuro

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Ocean Golf Course Onde o Verde é mais Azul

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Nova Museologia

Casa das Hist贸rias

Paula Rego

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No Mundo Prodegioso


Personagens de fábula em contorções inusitadas; figuras que expõem tramas e enredos, mas que simultaneamente escondem segredos, emoções, sonhos e pesadelos; formas dramáticas, marcadas pela violência contraditória da solidão e da convivência; mulheres em crónicas do quotidiano; meninas em revolta, em subversão; meninas sabedoras de esconderijos onde moram duendes e espíritos malignos; meninas-mulheres, misto de inocência e perversidade; figuras grotescas, exibindo, impudicas, seus corpos compactos; danças e rodopios de imagens densas, em jogos de luz e sombra; criaturas habitantes de um mundo fantástico, eco daquelas que povoam o imaginário infantil, os contos tradicionais, as lendas, os mitos –, o universo pictórico de Paula Rego dá cor a mil histórias que, baseadas nas narrativas contadas às crianças, se abrem em infinitas interpretações e leituras. Mas nas histórias de Paula Rego nenhum príncipe vem, no seu cavalo branco, salvar a indefesa princesa de cabelo de ouro e longas tranças; nenhum beijo apaixonado de um nobre mancebo acorda a menina adormecida; nenhum sapo se transforma em enamorado infante – nos contos pictóricos de Paula Rego, os sapos são sempre sapos; os príncipes estão desaparecidos; as princesas preferem os sapos aos príncipes e as meninas conhecem o coração das trevas. É numa estrutura de betão pigmentado a vermelho, onde se erguem dois volumes prismáticos em forma de torre, farol, chaminé ou silo, que se guardam e se expõem as múltiplas ficções criadas pela pintora reconhecida internacionalmente pelo seu imaginário prodigioso. Projecto arquitectónico assinado por Eduardo Souto de Moura, a Casa das Histórias Paula Rego, localizada em Cascais, eleva-se num terreno que se estende na horizontalidade do verde, pontuado, aqui e ali, pelas figuras verticais e esguias das árvores. No interior do edifício, distribuído por quatro alas subdivididas em salas sequenciais, dispostas em torno de um volume central mais elevado, que corresponde à sala de exposições temporárias, exibe-se, em sistema rotativo, a colecção do museu – um extraordinário conjunto de obras de pintura, desenho e gravura de Paula Rego, em diversos suportes e técnicas, que abrangem cerca de 50 anos do percurso artístico da pintora. Trabalhos pic-

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tóricos de autoria de Victor Willing, falecido marido da artista, integram igualmente a colecção da Casa das Histórias, cujo estabelecimento do acervo se deve à doação de Paula Rego da totalidade da sua obra gravada, de 278 desenhos praticamente inéditos, e ao empréstimo de várias pinturas, desenhos e estudos preparatórios de figura e composição. Nos 750 m2 de área consagrados à exposição permanente e a duas exibições temporárias anuais, e no restante espaço do museu, composto por uma loja, por uma cafetaria com esplanada aberta para um frondoso jardim e por um auditório com 200 lugares, descobrem-se as fabulosas narrativas pictóricas visionadas por Paula Rego, porque, como se lê na frase de sua autoria impressa numa das paredes do museu,

«É na história que eu coloco toda a minha vitalidade». Personagens de fábula em contorções inusitadas; figuras que expõem tramas e enredos, mas que simultaneamente escondem segredos, emoções, sonhos e pesadelos; formas dramáticas, marcadas pela violência contraditória da solidão e da convivência; mulheres em crónicas do quotidiano; meninas em revolta, em subversão; meninas sabedoras de esconderijos onde moram duendes e espíritos malignos; meninas-mulheres, misto de inocência e perversidade; figuras grotescas, exibindo, impudicas, seus corpos compactos; danças e rodopios de imagens densas, em jogos de luz e sombra; criaturas habitantes de um mundo fantástico, eco daquelas que povoam o imaginário infantil, os contos tradicionais, as lendas, os mitos –, o universo pictórico de Paula Rego dá cor a mil histórias que, baseadas nas narrativas contadas às crianças, se abrem em infinitas interpretações e leituras. Ponto de Fuga | Mas 26 nas histórias de Paula Rego nenhum príncipe vem, no seu cavalo branco, salvar a indefesa princesa de cabelo de ouro e longas tranças; nenhum beijo apaixonado de um nobre mancebo acorda a menina


adormecida; nenhum sapo se transforma em enamorado infante – nos contos pictóricos de Paula Rego, os sapos são sempre sapos; os príncipes estão desaparecidos; as princesas preferem os sapos aos príncipes e as meninas conhecem o coração das trevas. É numa estrutura de betão pigmentado a vermelho, onde se erguem dois volumes prismáticos em forma de torre, farol, chaminé ou silo, que se guardam e se expõem as múltiplas ficções criadas pela pintora reconhecida internacionalmente pelo seu imaginário prodigioso. Projecto arquitectónico assinado por Eduardo Souto de Moura, a Casa das Histórias Paula Rego, localizada em Cascais, eleva-se num terreno que se estende na horizontalidade do verde, pontuado, aqui e ali, pelas figuras verticais e esguias das árvores. No interior do edifício, distribuído por quatro alas subdivididas em salas sequenciais, Ponto dedisposFuga | 27 tas em torno de um volume


central mais elevado, que corresponde à sala de exposições temporárias, exibe-se, em sistema rotativo, a colecção do museu – um extraordinário conjunto de obras de pintura, desenho e gravura de Paula Rego, em diversos suportes e técnicas, que abrangem cerca de 50 anos do percurso artístico da pintora. Trabalhos pictóricos de autoria de Victor Willing, falecido marido da artista, integram igualmente a colecção da Casa das Histórias, cujo estabelecimento do acervo se deve à doação de Paula Rego da totalidade da sua obra gravada, de 278 desenhos praticamente inéditos, e ao empréstimo de várias pinturas, desenhos e estudos preparatórios de figura e composição. Nos 750 m2 de área consagrados à exposição permanente e a duas exibições temporárias anuais, e no restante espaço do museu, composto por uma loja, por uma cafetaria com esplanada aberta para um frondoso jardim e por um auditório com 200 lugares, descobrem-se as fabulosas narrativas pictóricas visionadas por Paula Rego, porque, como se lê na frase de sua autoria impressa numa das paredes do museu, «É na história que eu coloco toda a minha vitalidade». Texto: Paula Monteiro Fotografias: FG + SG – Fotografia de Arquitectura

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Arquitectura Contemporânea

As Configurações Pétreas de Rudy Ricciotti Corpo longilíneo incrustado num rochedo, do qual comunga a forma, a casa projectada pelo atelier de Rudy Ricciotti e com arquitectura de interiores da Marchi Architectes, inscreve-se na paisagem da Provença como uma construção integradora do espaço natural que a envolve.

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É na região francesa de Var, famosa pelos seus 300 quilómetros de linha costeira, pelo clima ameno e pelo impressivo cenário, onde convivem a linha horizontal do Mar Mediterrâneo com as ondulações dos vales e das colinas e com os cumes verticais das montanhas e das árvores que povoam as florestas, que se localiza o pequeno município de Bandol. Conhecido pela qualidade das vinhas, pelo porto marítimo e pela animada marina, Bandol é uma importante estância balnear: alguns dos seus mais famosos visitantes foram Thomas Mann, Aldous Huxley e Marcel Pagnol, que aqui procuraram e encontraram inspiração para as suas obras literárias ou descobriram o repouso nas praias de areais dourados e águas cálidas. Localizado entre Marselha e Toulon, envolto em montes e penhascos, Bandol acolhe todos os anos múltiplos turistas que aqui acorrem em demanda da segurança das praias, dos diversos desportos náuticos e de um passeio por barco às encantadoras ilhas Bendor, Embiez e Cassis.

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É neste panorama idílico, numa colina que lança as suas vistas sobre Bandol, que se ergue a Casa criada por Rudy Ricciotti, uma das figuras mais criativas da recente arquitectura francesa pela exploração de vias conceptuais que cruzam esta arte e técnica com outros campos da cultura contemporânea. Habitação particular, a Casa em Bandol está construída sobre uma rocha e desenvolve-se num volume rectangular de três pisos que se enredam uns nos outros, num intrincado conjunto de áreas que mimetizam e acompanham a configuração da pedra que a envolve. Uma piscina de 30 metros, situada ao longo da fachada do nível superior, possuidora de grandes aberturas, assemelha-se a um grande aquário e oferece uma vista do mar e do nível intermédio do interior da casa. Nesta parcela da habitação, os movimentos da água da piscina e as evoluções

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dos banhistas que nela se refrescam são, assim, visíveis, tornando a água e a luz por ela coadas elementos omnipresentes na Casa. O design interior, concebido pelo atelier parisiense Marchi Architectes (laureado este ano no concurso «Nouveaux Albums de la Jeune Architecture»), transforma a rocha suporte da habitação em sua parte integrante, adaptandoa a diversas funções. Reaparecendo em forma de esculturas de madeira, a pedra é perceptível em todos os níveis da Casa. Todas as funções dos espaços interiores são geridas por paredes revestidas em madeira maciça compostas por ripas paralelas que se unem umas às outras: cerca de 1700 módulos de três comprimentos distintos distribuem-se pelos três pisos da habitação e incluem armários, mesas, camas, um escritório, um ecrã de televisão, casas de banho e «mini-cozinhas». A forma da rocha está patente


nas nuances da montagem das ripas. Modulada de acordo com o espaço onde foi construída, a Casa em Bandol articula-se de modo perfeito com a natureza pétrea, aquática e luminosa que a circunda. É na região francesa de Var, famosa pelos seus 300 quilómetros de linha costeira, pelo clima ameno e pelo impressivo cenário, onde convivem a linha horizontal do Mar Mediterrâneo com as ondulações dos vales e das colinas e com os cumes verticais das montanhas e das árvores que povoam as florestas, que se localiza o pequeno município de Bandol. Conhecido pela qualidade das vinhas, pelo porto marítimo e pela animada marina, Bandol é uma importante estância balnear: alguns dos seus famosos visitantes foram Thomas demanda damais segurança das praias, dos diversos Mann, Aldous náuticos Huxley ee Marcel Pagnol, por quebarco aqui às prodesportos de um passeio curaram e encontraram inspiração para as suas obras encantadoras ilhas Bendor, Embiez e Cassis. literárias ou descobriram repouso nas praias areais É neste panorama oidílico, numa colinadeque dourados e águas cálidas. Localizado Marselha lança as suas vistas sobre Bandol,entre que se ergue e Toulon, envolto em montes e penhascos, Bandol acolhe a Casa criada por Rudy Ricciotti, uma das figuras todos os anos múltiplos turistas que aqui acorrem mais criativas da recente arquitectura francesaem pela exploração de vias conceptuais que cruzam esta arte e técnica com outros campos da cultura contemporânea. Ponto de Fugaparticular, | 33 Habitação a Casa em Bandol está

construída sobre uma rocha e desenvolve-se num volume rectangular de três pisos que se enredam uns nos outros, num intrincado conjunto de áreas que mimetizam e acompanham a configuração da pedra que a envolve. Uma piscina de 30 metros, situada ao longo da fachada do nível superior, possuidora de grandes aberturas, assemelha-se a um grande aquário e oferece uma vista do mar e do nível intermédio do interior da casa. Nesta parcela da habitação, os movimentos da água da


piscina e as evoluções dos banhistas que nela se refrescam são, assim, visíveis, tornando a água e a luz por ela coadas elementos omnipresentes na Casa. O design interior, concebido pelo atelier parisiense Marchi Architectes (laureado este ano no concurso «Nouveaux Albums de la Jeune Architecture»), transforma a rocha suporte da habitação em sua parte integrante, adaptando-a a diversas funções. Reaparecendo em forma de esculturas de madeira, a pedra é perceptível em todos os níveis da Casa. Todas as funções dos espaços interiores são geridas por paredes revestidas em madeira maciça compostas por ripas paralelas que se unem umas às outras: cerca de 1700 módulos de três comprimentos distintos distribuemse pelos três pisos da habitação e incluem armários, mesas, camas, um escritório, um ecrã de televisão, casas de banho e «mini-cozinhas». A forma da rocha está patente nas nuances da montagem das ripas. Modulada de acordo com o espaço onde foi construída, a Casa em Bandol articula-se de modo perfeito com a natureza pétrea, aquática e luminosa que a circunda. Texto de Paula Monteiro Fotografias de FG + SG – Fotografia de Arquitectura

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