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R454 Revista Científica Teológica em Diálogo [periódico eletrônico] / editor Renato Zambrott; corpo editorial Elizeu Gomes da Rocha... [et al.] – Duque de Caxias, RJ: UNIGRANRIO, 2017. 190 f.: il. ; on-line.
Inclui Bibliografia. ISBN: 978-85-9549-035-2
1. Discriminação de gênero. 2. Discriminação institucional. 3. Racismo. 4. Religião – Brasil. I. Zambroti, Renato. II. Rocha, Elizeu Gomes da. III. Universidade do Grande Rio “Prof. José de Souza Herdy”. IV. Título. CDD – 241.675
Revista Teologia em Diálogo Revista do Departamento de Teologia
Universidade do Grande Rio
A Revista Digital Teologia em Diálogo é um ambiente virtual que possibilita a elaboração de discussões vinculadas a temas teológicos e às ciências humanas. Seu corte temático é plural, proporcionando a participação de diversos pesquisadores oriundos de diferentes áreas do conhecimento, que desejam interagir com o campo teológico. Nesse sentido, a Teologia em Diálogo busca ser um espaço no qual enfoques diversificados possam se encontrar de maneira conversacional, contribuindo, assim, para a produção acadêmica e a disseminação de pesquisas. Teologia em Diálogo se propõe a ser uma revista trimestral, que disponibiliza artigos, pesquisas, resenhas e indicações bibliográficas produzidas por professores com nível, no mínimo, de Pós-graduação. Editor: • Renato Zambrotti Editor Eletrônico: • Equipe NEaD - Unigranrio Membros do Corpo Editorial: • Elizeu Rocha • Renato Zambrotti
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Marcio Simão de Vasconcellos Antonio Lucio Avellar Santos Erik Mendonça Marcos Porto
Sumário Ano I, Nº1, outubro/ novembro/dezembro 2017 Editorial ............................................................
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Artigos Sobre Deus, Feminismo e Teologia ..................... Marcio Simão de Vasconcellos
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Religião Cristã no Brasil, Racismo, Discriminação de Gênero e suas Relações ....................................... 23 Marcos Porto Freitas da Rocha José Geraldo da Rocha Racismo Epistêmico Contra as Sagradas Matrizes Africanas no Brasil ............................................. 39 Jalber Luiz da Silva Sociedade e Religiosidade: A Influência Cristã em Meio à Pluralidade ...................................................... 61 Erik da Cruz Mendonça Fragilidade Humana: Teologia, Literatura e Sociologia em O Rio e Eu, de Lígia Bojunga ....................... 81
Sônia Almeida Barbosa Grund Idemburgo Frazão Inclusão e Humanidade: Breve Relato Sobre Deficiência Auditiva na EaD e no Evangelho de Cristo ......... 99 Roberta Andréa dos Santos Colombo Teologia e Ciência: Um Diálogo Possível? . ......... 115 Marcio Simão de Vasconcellos Martinho Lutero: Um Cristão que Buscou Responder às Questões do seu Tempo . .................................... 129 Antonio Lucio Avellar Santos O Estudante Adulto Maduro na EaD: Um Olhar Sobre o Perfil do Aluno do Curso de Teologia .............. 149 Mônica Campos Santos Mendes Cleuza Santos Faustino Resenhas O Dossel Sagrado ............................................... 165 Marcio Simão de Vasconcellos O Silêncio – Shusaku Endo: Uma Atormentada Busca pela Voz de Deus ................................................ 173 Cleuza Faustino Normas para Publicação .................................... 177
Editorial É com muita alegria que oferecemos aos leitores(as) a revista digital Teologia em Diálogo, uma produção do corpo docente do curso de Teologia da Universidade do Grande Rio. Nossa proposta é proporcionar um espaço aberto ao diálogo interdisciplinar, que possibilite encontros entre a leitura teológica e as demais áreas do saber humano. As discussões apresentadas neste primeiro volume ressaltam esse caráter interdisciplinar. Os autores que enriquecem este número com seus artigos são professores de diversos cursos no ambiente da Universidade. Os temas tratados nesses nove artigos vão desde questões de gênero, raça e etnia, lidas na perspectiva religiosa, até relações possíveis entre teologia e ciência, teologia e literatura e teologia e história. Em tal abordagem, os assuntos teológicos são enriquecidos pelos saberes oriundos de outras disciplinas sem que, contudo, percam sua especificidade. A revista apresenta, ainda, duas resenhas: uma de um clássico da Sociologia da Religião, o livro O Dossel Sagrado, escrito pelo sociólogo norte-americano Peter Berger, falecido recentemente; e a outra do romance O Silêncio, escrito por Shusaku Endo (1923-1996), importante romancista japonês. Nosso desejo é que esta edição sirva como indicações de novos caminhos para a pesquisa teológica, especialmente a desenvolvida no âmbito da Baixada Fluminense. Duque de Caxias, 1º de novembro de 2017.
Sobre Deus, Feminismo e Teologia Marcio Simão de Vasconcellos
Resumo Mesmo que tenha havido alguns avanços nas discussões de gênero, a mulher ainda continua sofrendo – em maior ou menor grau – imposições machistas, muitas vezes, feitas em nome de Deus. Para a perspectiva cristã, tal opressão revela-se incoerente e inaceitável. A proposta deste artigo é refletir sobre a teologia feminista, sua origem e características, vinculando-a ao ministério de Jesus de Nazaré, fonte da fé cristã. Com isso, busca-se desenvolver argumentações bíblicas e teológicas que ajudem no desenvolvimento de uma visão mais humana, fraterna e igualitária sobre a relação homem-mulher, criticando a lente machista e preconceituosa que ainda persiste na igreja cristã contemporânea. Palavras-chave: Teologia feminista; mulher; relações de gênero.
Introdução Em um de seus livros, o teólogo belga Adolphe Gesché faz uma pergunta que é central ao cristianismo que proclamamos. Gesché questiona: Será que faremos de Deus uma boa notícia para
o mundo?1 Essa pergunta implica na possibilidade contrária, isto é, na escolha de se fazer de Deus um instrumento de opressão, uma má notícia. Parece, portanto, que no âmbito da religião (inclusive a cristã) a palavra “Deus” recebe matizes diversas, elaboradas a partir do fiel que deseja relacionar-se com Ele, ou da instituição que busca carregar seu nome. Historicamente, essa questão tem gestado inúmeros escândalos, quase na mesma proporção que o cristianismo se alastrou pelo mundo. As inquisições – tanto as de ontem como as atuais – são um lamentável exemplo dessa realidade. O controle do discurso por elites religiosas aliado à defesa da “ortodoxia” da fé acabam substituindo a misericórdia, a compaixão e até mesmo o bom senso. O que se deseja ressaltar, nesta introdução, é o fato de que, para a fé neotestamentária, o evangelho só pode ser considerado uma boa notícia, se o Deus, que nele é proclamado, é o mesmo anunciado por Jesus de Nazaré. Caso contrário – se pregamos um ídolo no lugar do Deus verdadeiro – nossa prática religiosa irá gerar opressão, exclusão e morte. Por nossa causa, Deus não será apresentado como boa notícia aos homens e mulheres de nosso tempo. “Deus” será um mecanismo de destruição da vida! Essa questão torna-se essencialmente importante quando pensamos nas relações de gênero e na(s) teologia(s) que surgem dessa reflexão. É o que veremos a seguir.
Religião Cristã e Opressão às Mulheres Na história do cristianismo, as mulheres sofreram (e sofrem) discriminações em maior ou menor grau. Uma imagem torta de Deus gerou perseguições e rebaixamentos impostos à mulher que, supostamente, não teria a mesma dignidade que o homem. Mesmo afirmando que o ser humano, homem e mulher, foram criados à imagem de Deus (cf. Gn 1.26), e mesmo reconhecendo que entre 1
Cf.: GESCHÉ, Adolphe. Deus. Coleção Deus para pensar. Volume 3. São Paulo: Paulinas, 2004, p.24-29.
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os dois há uma igualdade vivenciada em suas especificidades, não faltaram vezes em que a teologia cristã se expressou em termos bastante preconceituosos. Vejamos, por exemplo, algumas citações de teólogos cristãos do período da Patrística: Mulher, foi você quem abriu a porta para o demônio... foi você quem persuadiu o homem a quem o diabo não foi suficientemente forte para atacar. De uma forma tão simples, você destruiu a imagem de Deus, o homem. Por causa da sua comida, isto é, a morte, até o Filho de Deus teve que morrer. (Tertuliano) Adão foi seduzido ao pecado por Eva e não Eva por Adão. É justo e correto que a mulher aceite como Senhor e Mestre aquele a quem ela levou ao pecado. (Ambrósio) Entre todas as bestas selvagens, não se pode encontrar nenhuma tão perigosa quanto a mulher. (Crisóstomo).2
Essa leitura patriarcal da Bíblia acompanhou o desenvolvimento do cristianismo ao longo dos séculos. Por meio dela, mulheres foram rebaixadas e inseridas em uma hierarquia na qual Deus aparece no topo da pirâmide; o homem-macho vem logo a seguir, e a mulher e os filhos disputam espaço em sua base. Tal lógica desumana permanece presente em nossas sociedades do século XXI. O que surge daí é um sistema opressor que se autojustifica por meio de hermenêuticas tortas do texto bíblico, e que naturaliza as injustiças socioeconômicas, religiosas, moralistas, sexuais e violentas contra as mulheres. Sim, porque nesse universo pintado com as cores do cristianismo, mulheres são estupradas, violentadas, despidas de sua dignidade e culpadas por aquilo que sofrem nas mãos do “cristão-macho”. Afinal, dizem estes homens de deus-ídolo: “essas mulheres não deveriam ter saído de casa com uma roupa dessas; não deveriam ter saído 2
HIGUET, Etienne A. et al. Teologia e modernidade, p.207.
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de casa nesse horário; não deveriam ter saído de casa”. Discursos desumanos de gente igualmente desumana! Esse tipo de opressão contra a mulher tem uma história longa e triste. Na sociedade judaica, por exemplo, na qual Jesus nasceu e cresceu, a mulher era considerada propriedade do homem. Primeiro pertence ao pai; ao casar-se passa a ser propriedade do esposo; se fica viúva pertence aos filhos ou volta ao pai e aos irmãos. Era impensável uma mulher com autonomia. O decálogo santo do Sinai considerava-a uma propriedade a mais do dono da casa: “Não cobiçarás a casa de teu próximo, nem cobiçarás a mulher de teu próximo, nem seu servo, nem sua serva, nem seu boi, nem seu asno, nem nada que seja de teu próximo.” A função social da mulher estava bem definida: ter filhos e servir fielmente ao varão.3 A mulher era fonte de impureza, de tentação e pecado4. Seus deveres eram muito bem delimitados; sua participação social, fora de casa, era praticamente nula. Afastar-se de sua casa e andar sozinha pelas ruas da Palestina, sem a vigilância de um homem, dava à mulher uma reputação duvidosa. A presença da mulher na liturgia judaica era muito restrita. A circuncisão, como rito de pertencimento ao povo de Deus, vale lembrar, era obviamente algo destinado exclusivamente a homens; a mulher só podia exercer alguma atividade religiosa nas cerimônias ocorridas dentro de casa5. Bastavam os homens em tudo quanto se referia à relação com Deus: tudo era dirigido pelos sacerdotes do templo e pelos escribas da lei. Portanto, não era necessário iniciar as mulheres na Torá: elas não estavam obrigadas ao estudo da lei, nem os escribas as aceitavam como discípulas. É surpreendente a dureza de certos ditos rabínicos que, embora sendo de data posterior a Jesus, podem sugerir algo daquilo que se vivia também em seu tempo: “Quem ensina à sua filha a Torá, ensina-lhe a libertinagem, pois ela fará
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PAGOLA, José Antonio. Jesus: aproximação histórica. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p.256. A passagem bíblica citada é a de Êxodo 20.17. Ibid., p.257. Ibid., p.258.
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mau uso do que aprendeu”; “Antes sejam queimadas as palavras da Torá do que confiadas a uma mulher.”6
Teologia Feminista: Origem e Perspectivas Tal misoginia, como já afirmamos, se fez presente, em maior ou menor grau, na história cristã. Na tentativa de criticar esses posicionamentos, e na esteira do desenvolvimento da Teologia da Libertação latino-americana, com sua preocupação em dar voz aos oprimidos do ponto de vista socioeconômico, a Teologia Feminista foi sendo gestada. O contexto dessa teologia são os movimentos feministas de meados do século XX, que buscavam a igualdade dos gêneros em questões sociais e o exercício de direitos civis. Mais que isso: a Teologia Feminista buscava enxergar a mulher como um ser que vivencia uma realidade própria, diferente da vivência do homem, em sua relação com o mundo e com o próprio Deus. Começou-se, portanto, a valorizar a mulher pela sua feminilidade; ela não era mais vista como doença, praga ou ameaça a ser vencida, mas, sim, como criação de Deus e lente específica para ver a realidade, inclusive a da fé. Em outras palavras, a Teologia Feminista procurava dar destaque à maneira da mulher ver o mundo; uma maneira distinta da do homem, não superior ou inferior, apenas diferente e, justamente, por isso, complementar. Isso mudaria o curso da teologia e da sua antropologia. A compreensão da mulher e de seu papel no mundo e na Igreja se orientaria pela experiência que as mulheres fazem de sua realidade feminina, e não pela experiência que o homem-varão faz de si mesmo. A teologia e a sua antropologia deixariam de ser androcêntricas [isto é, centradas exclusivamente no homem].7 Pela perspectiva da Teologia Feminista, a mulher, portanto, é também agente na produção de teologia e na vivência atuante 6 7
Ibid., p.259. HIGUET, Etienne A. et al. Teologia e modernidade. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p.205.
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no reino de Deus. Em sua origem, a Teologia Feminista afirma a igualdade dos gêneros, não a supremacia de um sobre o outro. É preciso reconhecer que nem sempre essa lógica é seguida: em algumas ocasiões, a Teologia Feminista se transforma em afirmação da superioridade da mulher sobre o homem. Quando age assim, contudo, perde de vista sua própria intenção teológica original. Quais são as bases para fazer essa relação entre movimento feminista, reflexão teológica e leitura bíblica? O relato da criação, em Gênesis, afirma a igualdade de gêneros à medida que declara que homem e mulher são apresentados como imagem e semelhança de Deus. Isso significa dizer que, se Deus cria à sua imagem, então em Deus, coexistem os dois gêneros, tanto o masculino quanto o feminino. Deus não tem sexo, mas Nele, se encontram, em plena harmonia, elementos do universo masculino e feminino. Isso parece assustador a princípio, mas é uma característica de Deus revelada abundantemente no texto bíblico. O Espírito de Deus citado em Gn 1.2 é, em hebraico, RUAH, um substantivo feminino. Esse Espírito age como útero da criação, gestando, em seu interior, todo o universo. É essa RUAH de Deus que dá vida ao ser humano (homem e mulher, pois Adão, em hebraico, significa humanidade), soprando em suas narinas o fôlego da vida. Ora, se é assim, então, no ser humano, (homem e mulher) também coexistem os princípios masculino e feminino, assim como ocorre em Deus. Considerando homem e mulher à imagem e semelhança de Deus, também encontramos Nele, aspectos masculinos e femininos. Há no homem sensibilidade, ternura, cuidado, assim como há na mulher força e racionalidade, tão próprias do varão. A diferença é que a dimensão feminina é mais aguçada na mulher; nela, ele tem sua mais plena realização, assim como os aspectos masculinos no varão. São dimensões ontológicas, traços profundos de cada ser humano.8 Nos profetas, Deus é apresentado com imagens do universo feminino. Deus é aquele que cuida, amamenta seu povo, 8
ROCHA, Alessandro. Espírito Santo: aspectos de uma pneumatologia solidária à condição humana. São Paulo: Vida, 2008, p.54.
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toma-o em seus braços e o ensina a dar seus passos (cf. Os 11). Deus é como uma mãe perfeita, que não se esquece de seus filhos, ainda que as mães humanas venham a fazê-lo (cf. Is 49.15). Ou ainda, de forma mais clara, Deus afirma por meio do profeta que “como uma pessoa que a sua mãe consola, assim eu vos consolarei” (Is 66.13). A misericórdia de Deus, tão claramente afirmada pelos profetas, é compreendida no ambiente judaico como “ter entranhas maternas”. Enfim, a compaixão divina, sua ternura, seu cuidado, sua atenção ao aflito e ao de coração quebrantado, revelam aspectos do universo feminino, que é percebido em Deus. Nesse sentido, podemos afirmar que Deus é Pai, mas também é Mãe. E em Jesus, revelação plena de Deus? É certo que Jesus foi um homem, judeu, nascido e criado no interior de uma cultura patriarcal. Contudo, mesmo aí, encontramos traços do feminino no Filho de Deus. Em primeiro lugar, Jesus não é um estranho às mulheres; não as afasta, como faziam os religiosos de seu tempo. Na sociedade da época de Jesus, a mulher era “propriedade do pai até se casar e propriedade do marido após o casamento. Era vista como um objeto adquirido por dinheiro, contrato ou relações sexuais” 9. Mas Jesus não as enxerga assim, de tal maneira que as recebe, as cura, as alimenta e as aceita como suas discípulas. O que para nós, hoje, parece algo normal, na época de Cristo era um escândalo. Um homem, solteiro, um rabi, ser acompanhado por mulheres e (mais escandaloso ainda) ser sustentado financeiramente por elas (cf. Lc 8.1-3) era algo difícil de ser aceito naquela sociedade. Jesus recebe mulheres em sua presença e, em uma sociedade patriarcal, fornece a elas valor, honra, cuidado e amor. Ao lado do Mestre, as mulheres também podiam ver a si mesmas como amadas por Deus. Sentiam-se em liberdade para se aproximar daquele homem de Nazaré e prostrar-se diante Dele, com lágrimas nos olhos e perfume nas mãos, para ungir seus pés, mesmo que, para isso, precisassem invadir um jantar na casa de um fariseu (cf. Lc 7.36-50). Sem dúvida as mulheres veem em Jesus uma atitude diferente. Nunca ouvem de seus lábios expressões depreciativas, tão 9
Ibid., p.61.
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frequentes mais tarde nos rabinos. Nunca ouvem Dele nenhuma exortação a viver submissas a seus esposos nem ao sistema patriarcal. Não há em Jesus animosidade nem precaução alguma diante delas. Somente respeito, compaixão e uma simpatia desconhecida.10 Jesus vai mais longe e compara o próprio Deus a uma dona de casa saltitante de alegria porque reencontrou a moeda perdida dentro de casa (cf. Lc 15). As mulheres são, para Jesus, exemplos de fidelidade a Deus e de generosidade e entrega desinteressada. Uma viúva pobre, por exemplo, torna-se padrão para julgar ofertas e ofertantes diante do Templo em Jerusalém (cf. Mc 12.41-44). Os exemplos se multiplicam no Novo Testamento a tal ponto de percebermos, claramente, que, no reino de Deus anunciado por Jesus, as mulheres são tão protagonistas quanto os homens. Em nenhum momento Jesus afasta ou exclui as mulheres de seu convívio, seja em razão de sexo ou por motivos de impureza. “São ‘irmãs’ que pertencem à nova família que Jesus vai formando, e são levadas em conta da mesma forma que os ‘irmãos’. O profeta do reino só admite um discipulado de iguais”11. Por fim, são as mulheres as primeiras testemunhas da ressurreição de Jesus, sobretudo, uma em especial: Maria de Magdala, injustamente denominada de prostituta12, que, na condição de amiga de Jesus, é a primeira a ouvir de seus lábios ressurretos o seu nome sendo chamado (cf. Jo 20.11-18). Ao agir dessa forma com as mulheres, o próprio Jesus revela a face materna de Deus em si mesmo. Jesus é compassivo tal como Deus, e se compadece como uma galinha que deseja ajuntar para si seus pintinhos e protegê-los debaixo de suas asas. 10 11 12
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PAGOLA, José Antonio. Jesus: aproximação histórica. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p.262. Ibid., p.276. É preciso perceber que, em nenhum momento, o Novo Testamento afirma que Maria de Madalena era uma prostituta. A fama de Maria como prostituta foi sendo criada na igreja cristã, a partir do século IV d.C., quando, devido a uma leitura equivocada de Gregório de Nissa, Maria foi associada à mulher pega em adultério, no relato do evangelho joanino.
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Se por feminista entendemos todo aquele que defende a igualdade fundamental da mulher com o homem, considerando-a pessoa e opondo-se aos organismos que a fazem ou a transformam em objeto, então Jesus Cristo foi um decisivo feminista. Com efeito, a tendência geral de sua pregação ética consistia em libertar os homens de uma moral legalista e discriminadora, para uma moral de decisão, da liberdade e da fraternidade.13 No início, a igreja cristã primitiva também era repleta da participação feminina, incluindo a liderança de mulheres. Ao despedir-se dos cristãos de Roma, por exemplo, Paulo fala de Febe, como uma hospitaleira diaconisa; fala também de Maria, que trabalhou muito pelo apóstolo; e de um casal (Andrônico e Júnia), que foi apresentado por Paulo como apóstolos14; além de falar de Trifena, Trifosa, Pérside e outras que muito trabalharam no Senhor. Em todos os casos, o termo grego é diaconia, serviço, o mesmo termo usado para referir-se aos diáconos homens em Atos, Capítulo 6. E em todos os casos, não há nenhum tipo de hierarquia que divide homens e mulheres em graus de serviço, posição ou aceitação diante de Deus. Tratando especificamente de divisões de ordem social, econômica e de gênero, Paulo é ainda mais enfático: segundo o apóstolo, todos e todas são filhos e filhas de Deus por meio da fé em Jesus e, exatamente por essa razão, “não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher” (Gl 3.28), pois todos são um só em Cristo. Parece estranho, portanto, que ainda se desenvolvam, em muitas igrejas, um rebaixamento da mulher, uma compreensão que faz dela um ser de segunda 13 14
BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: a reinvenção da igreja. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.197. Em algumas traduções do texto grego, o nome Júnia, que é feminino, foi trocado para Júnias (nome masculino). O problema dessa tradução é que, enquanto o nome feminino Júnia era comum no século I d.C., não há indícios no mundo antigo de Júnias como nome masculino. Cf., a respeito: EHRMAN, Bart D. O que Jesus disse? O que Jesus não disse?, p.195.
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categoria, uma “auxiliar” do homem-macho, uma “empregada de luxo” do marido. Lamentável e diabólico equívoco que rejeita a lógica do reino de Deus e que sacraliza uma hierarquia estranha à fé em Jesus. É nesse sentido de afirmação da igualdade de gênero, que a Teologia Feminista e o próprio movimento feminista no qual ela surgiu podem ser considerados necessários à vida da igreja contemporânea. Nessa ótica, não é somente possível seguir os ideais feministas e a Bíblia ao mesmo tempo, como também é absolutamente imprescindível que se faça assim. Uma leitura da Bíblia que gere hierarquias, submissões que anulam a identidade do ser em nome do autoritarismo do outro, opressões de maridos contra esposas, simplesmente não faz parte do evangelho de Cristo. Tais informações devem ser, portanto, denunciadas e excluídas de nosso convívio de fé. Até mesmo na relação marido-mulher, em que pese o texto paulino que é tão comumente mal interpretado, não há espaço para a dominação de um sobre o outro. Se é a mulher que, por amor, se submete ao esposo, é este que, igualmente por amor, a ama como Cristo amou a igreja, isto é, dando-se como sacrifício vivo para o seu bem-estar. Afinal, que diferença há entre submeter-se por amor e sacrificar-se por amor? Por isso, em uma relação madura entre marido e mulher, o que reina é o amor, e não legislações espúrias que querem ganhar a argumentação pela força e pela imposição.
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Conclusão Em uma sociedade como a nossa, altamente marcada pelo machismo e violência contra as mulheres, é imprescindível que a teologia reflita sobre a prática da igreja cristã. Discursos misóginos não podem ser encontrados nos lábios de quem se afirma como servo de Jesus de Nazaré. À igreja, resta posicionar-se radicalmente contra todo preconceito e ódio, sob o risco de, caso não o faça, descaracterizar a si mesma como sinal do reino de Deus. Afinal, se o Mestre foi reconhecido como amigo de mulheres, devolvendo a elas a dignidade ameaçada pela voz da religião, por que agiríamos de outra forma? Por fim, em tudo isso, resta lembrar que a principal característica que move a igreja deve ser aquela que define o próprio Deus: o amor que tudo crê, tudo suporta, tudo espera e que jamais acaba (1ª Co 13).
Marcio Simão de Vasconcellos Doutorando em Teologia Sistemático-Pastoral (PUCRJ); Mestre em Teologia Sistemático-Pastoral (PUC-RJ); Especialista em Ciências da Religião (FATERJ); bacharel em Teologia (UMESP e STBSB). marciosvasc@gmail.com
Referências Bibliográficas BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: a reinvenção da igreja. Rio de Janeiro: Record, 2008. EHRMAN, Bart D. O que Jesus disse? O que Jesus não disse? 2 ed. Rio de Janeiro: Agir, 2015. GESCHÉ, Adolphe. Deus. Coleção Deus para pensar. Volume 3. São Paulo: Paulinas, 2004. HIGUET, Etienne A. et al. Teologia e modernidade. São Paulo: Fonte Editorial, 2005. PAGOLA, José Antonio. Jesus: aproximação histórica. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2011. ROCHA, Alessandro. Espírito Santo: aspectos de uma pneumatologia solidária à condição humana. São Paulo: Vida, 2008.
Religião Cristã no Brasil, Racismo, Discriminação de Gênero e suas Relações
Marcos Porto Freitas da Rocha José Geraldo da Rocha Resumo
Trata-se de um artigo de revisão, parte de uma dissertação de Mestrado em Humanidades Culturas e Artes, defendido em abril de 2016. Nele, discute-se a relação entre racismo, discriminação de gênero e ação institucional das religiões predominantes no Brasil, mais especificamente, o Cristianismo. Nele, as metodologias de pesquisa científica bibliográfica e documental foram utilizadas para apresentar um breve panorama religioso do Brasil, com informações sobre a declaração de pertencimento religioso contidas nos Censos de 1991 a 2010, realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, bem como as definições de racismo e racismo institucional. Em seguida, explicita-se o desenvolvimento da moral sexual cristã no intuito de apresentar as bases para a instituição de uma relação de domínio do masculino sobre o feminino, e ainda, da marginalização da sexualidade diversa do padrão estabelecido pelo Cristianismo. Posteriormente, apresenta-se a opção pelo patriarcado e fortalecimento deste por meio das interpretações do texto sagrado cristão ao longo da história, e ainda, a análise de Foucalt acerca da realização do controle da sexualidade dos fiéis por parte da igreja como mecanismo de dominação. Analisou-se,
inclusive, sob a visão de Rosado-Nunes e Valerio, a capacidade, atribuída por estes à religião, de ser uma modeladora de subjetividades que, no caso do Cristianismo, apresenta o modelo aceitável de feminino na figura da Virgem Maria e o modelo a ser recusado na figura de Eva. Por fim, conclui-se que existiu e continua a existir, dentro da religiosidade cristã, a discriminação de gênero, seja ela individual ou institucional, uma vez que ocorre discriminação sempre que alguém é impedido de exercer um direito, ou então, não pode usufruir as mesmas oportunidades e tratamentos que outras, em função de seu gênero. Palavras-chave: Discriminação de gênero; racismo; discriminação institucional; religiões no Brasil. Introdução Neste artigo, foram utilizadas as metodologias de pesquisa bibliográfica e documental, a partir dos quais se produziu uma breve apresentação do panorama religioso do Brasil, por meio dos Censos de 1991 a 2010 do IBGE. Caminharemos pela relação das religiões cristãs com algumas formas de perpetuação da discriminação de gênero. Uma parcela de nossa argumentação diz respeito à ação da Igreja Católica enquanto instituição, bem como de outras instituições de matriz cristã, e, ainda, a fé cristã em algumas práticas individuais, contudo propagadas institucionalmente, que contribuíram e ainda contribuem para a disseminação e perpetuação da discriminação, intolerância e desigualdade entre gêneros. Assim, concluímos com as considerações que foram possíveis de serem produzidas até o momento sobre discriminação de gênero e sua relação com as religiões predominantes no Brasil.
1. O Panorama Religioso no Brasil O Brasil é um país com ampla adesão cristã, mais especificamente, de maioria católica, conforme o resultado do 24
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censo religioso apresentado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2010 (IBGE, 2010). Tendo adentrado ao Brasil em 1500, por herança da colonização portuguesa, o Catolicismo foi constituído como a religião oficial desde a primeira Constituição em 1824, mantendo-se assim até 1890, quando a liberdade religiosa foi instituída por decreto, e assim mantida pelas constituições brasileiras a partir de 1891. Apesar de ter figurado como a religião oficial do país por quase 400 anos, o Catolicismo continuou sendo a religião mais aceita socialmente, trazendo obstáculos à ascensão social de quem não a professava. O Brasil é considerado, atualmente, o maior país católico do mundo, em número absoluto de fiéis. Religiões1
1991 (%)
2000 (%)
2010 (%)
Católica Apostólica Romana
83,4
73,89
64,63
Evangélicas
9,0
15,4
22,16
Espíritas
1,1
1,3
2,02
Umbanda e Candomblé2
0,4
0,3
0,31
Outras religiosidades
1,4
1,8
2,72
Sem religião
4,7
7,31
8,04
TABELA 1: Distribuição percentual da população residente, por religião – Brasil, 1991/2000. Fonte: IBGE, Censos Demográficos de 1991/2000/2010. 1 Inclusive as pessoas sem declaração de religião. 2 Inclusive outras religiões afro-brasileiras.
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Segundo o Censo do IBGE de 2010, 64,63% dos/as brasileiros/as se declararam católicos; no Censo de 2000, 73,89% se declaram católicos e no Censo de 1991, esse percentual era de 83,4%, indicando que, em menos de duas décadas, houve uma redução de quase 20% no número de católicos no Brasil. Enquanto isso, houve um crescimento de evangélicos/as de 9% para 22,16%; espíritas de 1,1% para 2,02%; de outras religiosidades de 1,4% para 2,72% e de pessoas sem religião de 4,7% para 8,04 %. O número de pessoas que se declaram seguidoras do Candomblé e da Umbanda também diminuiu, em média, 0,1%. Esses dados evidenciam a predominância numérica de adeptos do Catolicismo no Brasil. Se considerarmos a projeção da população brasileira, nos dados do IBGE, conforme a Tabela 1, teríamos hoje, no país, aproximadamente 200 milhões de habitantes. Se tomarmos os dados do Censo de 2010, seriam cerca de 127 milhões de católicos/as brasileiros/as (IBGE, 2010, p.148). Outros dados relevantes são: 92% acreditam que o Espírito Santo existe; 87% creem em milagres; 77% creem que Jesus voltará a Terra no fim dos tempos; e 75% acreditam que o diabo existe. Cerca de 49% das pessoas entrevistadas têm um santo católico de devoção, sendo que, adeptos de outras religiões, como o Espiritismo, Umbanda, Candomblé e até evangélicos (8%), também são devotos de algum(ns) desses santos. Os dados apresentados demonstram que a matriz cristã, mais especificamente a católica, permeia a cultura brasileira como um todo, influenciando nas crenças, até mesmo, de quem não se diz cristão/ã e/ou católico/a (BEGUOCI, 2007).
2. Racismo e Discriminação Existem diferentes definições de racismo, entre elas: racismo individual, ato de desmerecer, depreciar ou desvalorizar um indivíduo em virtude de sua raça ou etnia realizado por e 26
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contra um indivíduo; racismo institucional como ideologia, sendo uma ação direta ou indireta de desvalorização ou cerceamento de direitos de um ou mais indivíduos, organizados ou não como categoria em virtude de sua herança étnica ou racial. Tal interpretação foi realizada pelo governo federal, em 200615. A manifestação de racismo, como uma ideologia que pressupõe a hierarquização dos grupos humanos em função de sua cor, raça ou etnia e a discriminação racial direta, por intermédio de injúrias ou cerceamentos de direitos, acesso ou oportunidades, são considerados crimes no Brasil, desde o final de década de 1980 e são passíveis de ação civil, penal e prisão. Ainda assim, cabe ressaltar que, desde a década de 1950, a Lei Afonso Arinos, Lei 1390/51, já tinha considerado ações discriminatórias como contravenção penal (SANTOS, 2007). Entretanto, a luta na esfera jurídica é um recurso pouco utilizado pela sociedade brasileira e, quando usado, tem obtido resultados, em termos de punição, praticamente inexistentes. Entre as causas apontadas para as dificuldades de aplicação do Direito no campo racial e de gênero figuram: a necessidade de que o acusado comprove a motivação racista ou sexista do 15
O documento Brasil, Gênero e Raça, lançado pelo Ministério do Trabalho, define: Racismo – “a ideologia que postula a existência de hierarquia entre grupos humanos”; Preconceito - Uma indisposição, um julgamento prévio negativo que se faz de pessoas estigmatizadas por estereótipos”; Discriminação – “É o nome que se dá para a conduta (ação ou omissão) que viola direitos das pessoas, com base em critérios injustificados e injustos, tais como: raça, sexo, idade, opção religiosa e outros”. Racismo é crime inafiançável e imprescritível (Art. 5.º, XLII, CF). Segundo a Constituição Federal, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. A carta diz, também, que constituem princípios fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem comum, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação. Disponíveis nos sites: http://www3.mte.gov.br/discriminacao/ProgramaBrasiGeneroracatarde.pdf http://www.dhnet.org.br/w3/ceddhc/bdados/cartilha14.htm
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ato; a dificuldade de recolhimento de provas e testemunhos; e a resistência de policiais e de alguns membros do judiciário em dar encaminhamento a esses inquéritos e processos.
3. A Evolução da Moral Sexual Cristã - Breve Apresentação Existem autores que interpretam a Bíblia de modo a considerar que o Cristianismo atribui ao sexo uma ideia de impureza, devendo ser tolerado por ser necessário à procriação. Ryan (1999, p.45) declara que: Nosso estudo da Escritura revela que boa parte dela foi escrita contra o pano de fundo de uma cultura patriarcal, que via as mulheres e a sexualidade como perigosas e temíveis, embora necessárias para a continuação da vida. De um modo geral, qualquer coisa ligada ao sexo foi alvo de suspeita por parte do cristianismo; até recentemente, negou-se aos cristãos qualquer ideia de sexo como algo a ser celebrado com alegria.
A herança platônica contribui para a criação dos dualismos hierarquizados, tendo como exemplo o celibato em contraposição ao sexo, atribuindo superioridade ao primeiro. Os estoicos gregos consideravam que a expressão de sentimentos e emoções era uma fraqueza a ser abolida (FERNANDES, 2005, p.430). A atividade sexual foi considerada parte da fraqueza humana, e atender a esse desejo seria o mesmo que ceder às emoções. A filosofia gnóstica considerava o casamento e o sexo como intrinsecamente ruins, pois faziam parte da ligação com o mundo material do qual deviam se libertar. Mesmo a “procriação significava a perpetuação do pecado carnal na Terra” (FERNANDES, 2005, p.431). Platão, com seu dualismo alma/corpo, proporcionou outras distinções: homem ligado à razão por sua mente; 28
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mulher ligada ao mundo físico por sua capacidade de parir e sua emocionalidade, logo irracional. Assim, do mesmo modo que o mundo físico deve ser subordinado à razão, a mulher deve ser subordinada ao homem. Os neoplatônicos enxergavam o mundo em conflito cósmico entre a luz e as trevas, o mal e o bem, o espírito e a matéria e influenciaram Agostinho de Hipona em sua análise da sexualidade abordada por Rosado-Nunes. Agostinho escreveu que, depois da queda, Adão e Eva se cobriram porque tiveram vergonha. Também ensinou que todos os atos sexuais são, em certa medida, pecaminosos porque pelo menos, alguma luxúria está virtualmente implicada em cada um deles. Para Agostinho, o pecado de Adão e Eva foi transmitido através das gerações por meio da união sexual (ROSADO-NUNES, 1998, p.131).
Agostinho associou, em definitivo, sexo e pecado original no imaginário cristão entre os séculos IV e V, considerando o amor conjugal um dever a ser cumprido apenas para procriação. E ainda assim, o pecado original de Adão e Eva maculava de pecado o sexo. Logo, “nenhuma tentativa de evitar a concepção seria moralmente aceitável” (ROSADO-NUNES, 1998, p.136). Entre os séculos VII e XI, surgiram os penitenciais católicos, com orientações aos padres para o momento das confissões, relacionando o pecado com sua respectiva punição, do mais banal ao mais grave. Esses guias “cristalizaram a ideia de que o pecado era um ato individual” (DUARTE, 2006, p.16). Essa lista de pecados sexuais era extensa e possuía punições muito severas. Nela, figuravam: fornicação, adultério, masturbação, prostituição, coito interrompido, homossexualidade, sexo com mulher grávida e sexo com mulher que já não pode engravidar (atos de luxúria, já que não tinham finalidade de procriar) (DUARTE, 2006). Esses conceitos conduziram a ideia de que o casamento tinha uma finalidade primária: a concepção, e, consequentemente, Revista Científica - Teologia em Diálogo
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a procriação. Apenas séculos depois é que o bem-estar dos cônjuges e o amor tornaram-se finalidade secundária. O cristianismo se fixa na dualidade feminino/masculino e no controle dos corpos para avaliar a sexualidade. Foucault (2006, p.70) mostra como, após a Contrarreforma, no século XVI, a prática da confissão aos poucos instaura também o controle dos desejos, pensamentos e intenções. A extensão das confissões se amplia, até abarcar da prática ao ato sexual em si. [...] mas todas as insinuações da carne: pensamentos, desejos, imaginações voluptuosas, deleites, movimentos simultâneos da alma e do corpo, tudo isso deve entrar, agora, e em detalhe, no jogo da confissão e da direção espiritual. [...] Tudo deve ser dito. [...] Uma dupla evolução tende a fazer, da carne, a origem de todos os pecados e a deslocar o momento mais importante do ato em si para a inquietação do desejo, tão difícil de perceber e formular; pois que é um mal que atinge todo o homem e sob as mais secretas formas.
A pastoral cristã estabeleceu um imperativo, a precondição para a instauração do dispositivo da sexualidade, que é não apenas confessar o que contraria a moral, mas, sim, tornar todo e qualquer desejo um discurso, submetendo tudo o que diz respeito ao sexo ao crivo da palavra. A pastoral cristã procurava produzir efeitos específicos sobre o desejo, pelo simples fato de colocá-lo integral e aplicadamente em discursos: efeito de domínio e de desinteresse, sem dúvida, mas também efeito de reconversão espiritual, de retorno a Deus, efeito físico de dores bem-aventuradas por sentir no seu corpo as ferroadas da tentação e o amor que lhe resiste. O essencial é bem isso: [...] que, a partir da época clássica, tenha havido uma majoração constante e uma valorização cada vez maior do discurso sobre o sexo; e
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que se tenha esperado desse discurso, efeitos múltiplos de deslocamento, de intensificação, de reorientação, de modificação sobre o próprio desejo (FOUCAULT, 2006, p.80).
Diferente de realizar uma censura expressa sobre o sexo, a pastoral cristã instituiu uma técnica de produção de discursos como efeito de sua própria economia, ultrapassando os limites da espiritualidade cristã e se fazendo, em fins do século XVIII e durante o XIX, essencial aos mecanismos de poder, por meio do dispositivo da sexualidade. Destacamos, entre esses mecanismos, os códigos de conduta que regiam diversos aspectos da vida dos fiéis e contribuíam para a manutenção do domínio da Igreja sobre eles. Até o século XVIII, três grandes códigos regiam as práticas sexuais: o canônico, a pastoral cristã e a lei civil. Todos centravam-se nas relações matrimoniais e prescrições para o sexo dos cônjuges. Com a explosão discursiva já mencionada, ocorreram duas modificações importantes nesse regime discursivo: o casal heterossexual monogâmico adquire direito a uma maior discrição, ainda que incida uma normatização mais rigorosa; a sexualidade da criança, dos loucos, dos que não se relacionam amorosamente com o outro sexo tornam-se alvos de questionamentos (KATZ, 1996). Obrigando a todos a confessar aquilo que são. A sexualidade legítima será questionada a partir dessas sexualidades periféricas. Recaindo sobre as infrações morais ou legais contra o casamento e a família e contra um funcionamento natural as principais condenações. A unidade familiar deu condições para que se desenvolvessem os principais elementos do dispositivo da sexualidade, como a histerização do corpo da mulher, a sexualidade infantil, a regulação da procriação e a tipificação dos perversos como espécie (KATZ, 1996). Foucault (2006) mostra que o papel da família é fixar a sexualidade e funcionar como seu suporte permanente. Em sua consideração, afirma que esta seria primariamente o permutador da sexualidade com a aliança: transporta a lei e Revista Científica - Teologia em Diálogo
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a dimensão do jurídico para o dispositivo da sexualidade; e a economia do prazer e a intensidade das sensações para o regime da aliança.
4. Discriminação de Gênero e Religião Cristã Costuma-se dizer que a religiosidade, na sociedade brasileira, é uma característica feminina, o que pode ser confirmado por dados estatísticos sobre pertencimento religioso (IBGE, 2010). Contudo, essa religiosidade feminina se dá apenas em relação à prática religiosa: [...] as religiões são um campo de investimento masculino por excelência. Historicamente, os homens dominam a produção do que é sagrado nas diversas sociedades. Discursos e práticas religiosas têm a marca dessa dominação. Normas, regras, doutrinas são definidas por homens em praticamente todas as religiões conhecidas (ROSADO-NUNES, 1998, p.140).
As religiões cristãs são fundamentalmente patriarcais, partindo da ideia de um Deus-pai todo poderoso e um filho-homem carismático, que vem salvar a humanidade do pecado original cometido pela incontinência moral de Eva (ROSADO-NUNES, 1998), referida por Fernandes (2005). Os homens responsabilizamse não apenas pela mediação entre o humano e o sagrado, por intermédio do sacerdócio, mas também pelas narrativas oficiais que naturalizaram os padrões sociais que regulam o que é próprio do masculino e do feminino. Os capítulos 2 e 3 do Gênesis apresentam como a humanidade foi expulsa do Paraíso: Deus ordenou ao casal que não comesse o fruto da Árvore do Conhecimento. Eva, criada por Deus a partir de uma costela de Adão, com o propósito de lhe fazer companhia, não resiste à tentação da serpente, desobedece à ordem divina e induz Adão a pecar com ela. 32
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Deus expressa sua ira em maldições para ambos e todos os seus descendentes: desde então, a mulher pariria com dor e sofrimento e seria dominada pelo homem, que teria de trabalhar arduamente para obter o alimento que os sustentaria. Ao responsabilizar a mulher pela queda original e, a partir de então, submetê-la ao homem, essa passagem demonstra não haver equidade entre os gêneros desde a criação do mundo, definindo que a submissão da mulher ocorreu por seu demérito, responsabilizando a Eva por todos os sofrimentos e males da humanidade. Outros estereótipos surgiram dessa convicção, sendo mais fortemente arraigados em sociedades ocidentais, como a mulher não ter disciplina, ser impulsiva e ceder facilmente às tentações, além de possuir o poder de seduzir o homem a ponto de levá-lo à perdição. Trechos bíblicos posteriores conduzem às mesmas conclusões: a proibição de falar que teria feito o apóstolo Paulo às mulheres em Corinto, impedindo-as de se pronunciar em público com autoridade, são os textos que permitiram a exclusão das mulheres na instituição eclesiástica16. A leitura distorcida de tais textos excluiu o sexo feminino da visibilidade institucional, relegando-o ao exercício de papéis subordinados, conforme defende Valerio (2005, p.370). Não é possível afirmar que a inferiorização da mulher e o patriarcado foram criações da religião. Os autores do texto bíblico expressaram algo presente em sua cultura. Seu registro em um livro sagrado propiciou uma legitimação da discriminação das mulheres, comum naquela sociedade, época e contexto, tornando-a uma expressão da vontade divina. Se observarmos que a religião é uma modeladora de subjetividades, o modelo feminino apresentado como exemplar, a Virgem Maria, remete à submissão, à dessexualização, à maternidade como destino, à fragilidade, ao serviço e à desvitalização das mulheres como um ideal a ser alcançado. E o modelo a ser negado e recusado por ter dado causa às desgraças da 16
I Coríntios 14. 34-35.
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humanidade, “Eva, remete à liberdade de escolha, de sexualidade, de tomada de iniciativa, de curiosidade e de vontade de saber. Sendo eles antagônicos e funcionais para o controle dos corpos e da vida das mulheres” (ROSADO-NUNES, 1998, p.145).
5. Conclusão Com a intenção de demonstrar a evolução da moralidade sexual católica e sua relação com a discriminação do sexo feminino e da sexualidade diversa do conceito religioso de normalidade sexual, abordamos a relação entre a discriminação de gênero e a religião cristã, inclusive demonstrando que a discriminação ao sexo feminino e a algumas formas de sexualidade supracitadas existiu no interior da religiosidade cristã, ao longo do tempo. Contudo, nem todos os mecanismos discriminatórios que funcionam em uma sociedade são atos manifestos, explícitos ou declarados. A discriminação também opera de maneira difusa, sendo assim chamada de discriminação indireta ou institucional. O que diferencia de discriminação realizados por indivíduos e orientados de forma pessoal da discriminação institucional, é que esta último ocorre no nível das instituições sociais, dissimulado por meio de procedimentos corriqueiros, e aparentemente protegidos pelo Direito, costumes ou tradição (GOMES apud GUIMARÃES; HUNTLEY, 2000, p.59).
Observando o que Santos (2007, p.100) afirma sobre racismo, e atribuindo à discriminação de gênero, “ocorre discriminação sempre que alguém seja impedido de exercer um direito, ou não poder usufruir as mesmas oportunidades e tratamentos que outras, em função de sua raça, sexo ou idade”. Contra essa discriminação, cabe a sinalização, pelas normas legais, 34
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no sentido de sua incompatibilidade com o Estado democrático de direito, e possibilidade de sua sanção legal. Consideramos que a definição de racismo institucional de Ivair Augusto Alves dos Santos pode servir como definição de discriminação institucional de gênero, quando aplicada à analogia ao gênero, pois afirma que esta ocorre “quando um órgão, entidade, organização ou estrutura social cria um fato social hierárquico – estigma visível, espaços sociais reservados –, mas não reconhece as implicações raciais do processo” (SANTOS, 2013, p.27). O problema não é demonstrar a existência de ideologia e doutrinas que as pessoas utilizam para justificar suas ações, pois, assim como em relação às discriminações étnica e de gênero, “é no funcionamento da sociedade que o racismo se revela como uma propriedade estrutural inscrita nos mecanismos rotineiros, assegurando a dominação e a inferiorização dos negros, sem que haja necessidade de teorizar ou de tentar justificá-las pela ciência” (SANTOS, 2013, p.28). O aprimoramento do sistema jurídico deve ser objeto de demandas e preocupações de toda sociedade. É necessário destacar que, tendo em vista sua maior eficácia, novos caminhos jurídicos vêm sendo utilizados, como a defesa de direitos coletivos (difusos, coletivos e individuais homogêneos), por intermédio de Ações Civis Públicas movidas pelo Ministério Público e de Termos de Ajustamento de Conduta (instrumentos de promoção de comportamentos). Como o enfoque, nesta abordagem, refere-se a uma prática organizacional dentro do âmbito religioso. A discriminação institucional de gênero pode ser definida como o fracasso coletivo das organizações e instituições religiosas em promover um serviço adequado às pessoas, em razão de seu gênero, e que não estimule a discriminação. O enfoque da discriminação institucional étnica e de gênero permite uma nova abordagem analítica e uma nova proposta de ação pública. Tal ação deve ser sustentada em um esquema interpretativo que reconhece a existência de fenômenos Revista Científica - Teologia em Diálogo
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sociais que não se dissociam do indivíduo, e apontar a reprodução de práticas discriminatórias constituídas não apenas em atitudes inspiradas em preconceitos individuais, mas na própria operação das instituições e do sistema social.
Marcos Porto Freitas da Rocha Doutorando em Humanidades Culturas e Artes pelo PPGHCA/ UNIGRANRIO; Mestre em Humanidades, Culturas e Artes pelo PPGHCA/ UNIGRANRIO; especialista em Gestão da Universidade Pública Federal pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e em Ciências da Religião pela Faculdade São Bento do Rio de Janeiro; bacharel em Teologia pelo Instituto Metodista Bennett (2011); graduado em Teologia (Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil). porto.marcos@gmail.com
José Geraldo da Rocha Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1997); Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1993); bacharel em Teologia pela Faculdade Nossa Senhora da Assunção – São Paulo (1990). rochageraldo@hotmail.com
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Racismo Epistêmico Contra as Sagradas Matrizes Africanas no Brasil Jalber Luiz da Silva Resumo Inobstante à grande quantidade de textos acadêmicos acerca das matrizes de religiões afrobrasileiras e o intenso debate que esse tema traz para as discussões em racismo e antirracismo, pouco se tem esclarecido sobre suas origens epistemológicas, perdendo-se muitos autores em uma confusão, na qual apenas uma dentre diversas expressões afrobrasileiras de religiosidade seja propalada nos textos, assim como ocorre no senso comum. Refiro-me, aqui, à projeção de um dos diversos cultos aos ancestrais trazidos para o Brasil pelos escravizados, em detrimento lamentável das outras matrizes. Malgrado à existência de mais de dezoito “modelos” diferentes de candomblé no Brasil, a maioria de nós reconhece apenas o Candomblé Ketu-Nagô da cidade de Salvador, Bahia, como O Candomblé do Brasil. Esse equívoco – de apenas ver o “candomblé de orixás” – causa uma deformação de interpretação que só não é maior que a deformação causada pelo epistemicídio a que essas culturas, conhecimentos e saberes são submetidas sistematicamente desde o advento da diáspora. Este artigo tem o objetivo de contribuir para um melhor esclarecimento sobre essas sagradas matrizes e, em uma perspectiva histórica, apresentar as ontologias de África que aqui aportaram e, até hoje,
são preservadas como práticas de saberes, mesmo sobre forte ataque epistemológico permanente e incessante. Palavras-chave: Epistemicídio; Ontologias Africanas; Sagradas Matrizes Afrobrasileiras.
Introdução As Sagradas Matrizes Africanas e suas Ontologias Estamos tratando de toda a herança religiosa com que contribuíram os contingentes de escravizados que aqui chegaram, desde 1542 até a suspensão efetiva do tráfico de escravos. Contudo, para viabilizar uma análise mais atenta, procuramos, primeiro, fundamentar uma certa homogeneidade advinda daqueles saberes ontológicos que podem ser atribuídos a todas as religiões trazidas nesse período. Atendendo às perspectivas necessárias à construção deste texto, de forma resumida, podemos, assim, apresentar os elementos primordiais ou fundamentais dessas religiões: - O culto à natureza e aos ancestrais, sob um panteão de deidades mágicas ligadas/representadas/ressignificadas e relacionadas ao homem e às forças da natureza; - A relação direta e permanente entre o mundo dos vivos, a realidade imediata e o mundo sobrenatural, onde habitam os ancestrais, guardados pelas deidades cosmogônicas; - A energia primordial do princípio vital que rege todos os seres vivos, na referência dos bantos, ou o axé – na referência da cultura ioruba, ambas de grande contribuição na formação sociocultural do Brasil; - A necessidade, na prática ritualística, de se manter em equilíbrio com a natureza para consecução da prosperidade e felicidade; - O fenômeno do transe e da possessão espiritual como prática de reverência aos ancestrais; - As diversas formas de representação plástica – como a música e as danças ritualísticas (apenas para citar algumas dessas formas). 40
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Por esses princípios, pode-se inferir que as religiões como os diversos candomblés e as umbandas não trabalham nas questões de salvação para outra vida, mas sobre os problemas terrenos, da felicidade dos seres e da preservação das forças da natureza neste mundo. Seriam religiões terrenas, nesse sentido, preocupadas com a ligação entre passado, presente e futuro dos seres da natureza na Terra, em uma interpretação de vida que implica “circularidades como representações das gerações que se sucedem” (CUNHA Jr., 2009, p.100-102).
1. A Origem das Sagradas Matrizes Africanas É sabido que o tráfico de africanos para o Brasil Colônia seguia o “mapa” dos interesses mercantilistas de então. As escolhas variavam segundo a oportunidade, facilidade de captura e transporte, maior ou menor resistência aos maus tratos e à subjugação, além de especificidades como conhecimentos práticos de agricultura, trabalho coletivo, disciplina, dentre outros. As estratégias do infame comércio e da larga utilização dessa mão de obra no Brasil também seguiu diretrizes que buscavam impedir articulações de revolta ou de resistência, como “misturar” e espalhar, em diferentes pontos do território brasileiro, as diversas etnias, dificultando-lhes a comunicação e a união. Mesmo nessa senda de crueldade, as culturas negras conseguiram atravessar esses tempos difíceis, “negociando” com outras culturas a sua sobrevivência, ainda que essa estratégia tenha deformado seus mais importantes conceitos ontológicos. No início do infame comércio para o Brasil, o enorme contingente de escravizados era quase que essencialmente formado por negros de etnia Banto, predominante em todo o território africano. A partir de 1532, Martin Afonso instala o que viria a ser o primeiro engenho de açúcar na capitania de São Vicente, hoje estado de São Paulo. Para o trabalho, contrata, Revista Científica - Teologia em Diálogo
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com o traficante português Jorge Bixorda, a primeira leva de escravizados africanos. Em 1550, desembarcam, em Salvador, Bahia, os primeiros escravizados destinados ao trabalho nos engenhos do Nordeste, e a estes se sucedem milhões de africanos, em sua maioria da etnia Banto, principalmente dos reinos do Congo, do Dongo e de Benguela (CUNHA Jr., 2009, p.135). Esse contingente traz uma riquíssima e variada contribuição linguística e religiosa, além de práticas de diversas atividades econômicas de grande interesse dos colonizadores17. Não é difícil imaginar a “torre de babel” que se tornaria uma senzala ou uma propriedade rural colonial, com tantas procedências diferentes de África. Podemos, então, acordar que as primeiras epistemes religiosas africanas que aportam no Brasil colonial são de origem Banto. Somente a partir do século XIX, faltando, aproximadamente, dez anos para a suspensão do tráfico [1839] e da perseguição da Coroa Inglesa aos navios tumbeiros no Atlântico [por volta de 1845] é que começam a aportar aqui os contingentes sudaneses de escravizados, distribuídos, em sua maioria, pelo nordeste e norte do território, agora imperial. Trazem consigo uma cosmogonia muito semelhante à dos bantos, estruturada de forma hierarquizada e com uma visão de mundos real e espiritual quase idêntica àqueles. Para compreender valores, símbolos, signos e demais representações religiosas brasileiras herdadas daqueles povos, procuramos encontrar suas raízes no território africano. Qual a visão de mundo e os diversos conhecimentos e práticas religiosas no tempo/espaço africano? Haveria traços culturais e epistêmicos comuns entre essas diversas vertentes? Em um levantamento de documentos e relatos, a historiografia e a antropologia podem contribuir para responder a essas perguntas. 17
Para ter uma noção da variedade étnica banto, listamos os oito grupos linguísticos que aqui chegaram durante o período escravista, cada um com mais de quatro subgrupos linguísticos regionais: Teke, Songo, Ndonga, Suaheli, Konda, Makua e Sotho (LOPES, 1988, p.86).
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Comecemos por conhecer o homem e sua visão de mundo, na África pré-colonial. Por volta de 1438, quando os primeiros portugueses chegaram ao continente, encontraram uma infinidade de reinos e impérios espalhados por toda a África. Com produção agropecuária, mineração, pequenos ofícios e um sofisticado sistema de vendas, trocas e negociações de mercadorias, esses reinos ocupavam toda a extensão fértil ou cultivável, tinham moeda própria e comandavam redes internacionais de tráfego de mercadorias, negociando com os povos do Mediterrâneo, da Península Arábica, China e Índia, dentre outras economias. Os mais significativos desse período são os reinos do Congo, Jaga, Bundo, Mali, N’gola, para citar apenas alguns; no entanto, existiam também aqueles estados livres, independentes de reinos e dinastias banto, nas regiões de Quissama, Libolo, Matamba, dentre outras. Porém, a historiografia desse período, assim como as demais que tratam das culturas africanas, guarda a visão preconceituosa daquele que não compreende ou não se interessa por compreender. Há relatos, entretanto, esclarecedores. Colhemos, em Lopes (1988), narrativas de viajantes, missionários cristãos portugueses e navegantes, que descrevem, segundo seu ponto de vista, como esses africanos interpretam o universo, a vida na terra, a lida com suas deidades, a ancestralidade, o nome fundamental, enfim. Vejamos como esses bantos praticavam suas epistemes sagradas. Sobre os bantos do Reino N’gola [Angola]: Como criador supremo, acreditam em N’Gana Zambi, um deus superior, distante e vago, que parece independente ou indiferente entre os conceitos do Bem e do Mal: um criador que se reconhece, se ama e se respeita – mas que não se teme. De Zambi não vem nem o Bem nem o Mal. Vem a vida dos seres e a criação das coisas. É um autor um pouco indiferente à sua obra. O Bem e o Mal são obras de agentes, nem sempre determinados, mas constantemente activos. (GALVÃO; SELVAGEM apud LOPES, 1988, p.122).
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Essa representação cosmogônica é parte presente no conhecimento religioso afrobrasileiro difundido atualmente no país: um criador supremo [Zambiapongo, na Umbanda, Omolocô; Olodumare, nos candomblés Ketu-Nagô, de tradição Yorubá], que não mais interfere na sua criação, e, por isso é indiferente e independente. Tanto nos rituais de Umbanda quanto nos de Candomblé, reconhece-se a sua importância primordial como deidade, mas não se cultua imagens desse ser supremo; não se canta ou dança em seu louvor nem se oferece festas, comidas sagradas ou quaisquer oferendas, ao contrário de todas as outras entidades mediadoras. Nessa cosmogonia, inexistem a concepção de um juízo final, ou conceitos de bem e mal, culpa, pecado e outros valores arraigados ao judaísmo, herdado pelos cristãos, pois não fazem sentido nessa construção, já que outros princípios regem as forças na Terra entre os homens e a natureza, como veremos em outro relato. Porém, haveriam seres ou agentes, constantemente ativos, em permanente interação com o homem – estes, sim, mediadores entre o homem e o mundo sobrenatural; estes, sim, são julgados pelo autor do texto como responsáveis por ações de bem e mal. Quem seriam esses agentes? Os orixás, voduns ou inquíces18, como passaram a ser chamados aqui no Brasil? Talvez uma das obras de maior importância sobre as epistemes sagradas de africanos bantos seja o livro La Philosophie Bantoue, do missionário belga Padre Placide Tempels (1949, apud LOPES, 1988, p.123). É o relato mais famoso, até hoje, sobre a existência de uma filosofia fundamentada em uma metafísica dinâmica, em um universo de vitalismo que oferece a chave da concepção de mundo entre todos os povos bantos (BALANDIER, 1968, p.64). Ao contrário da filosofia ocidental, que é fundamentada na noção de ser, aqui vemos a noção de força tomar o seu lugar, 18
Respectivamente, a representação atual dos ancestrais primordiais nos candomblés ketu, jêje e angola; a denominação orixá também é usada na cosmogonia da Umbanda de vertente afrobrasileira, em algumas de suas diversas designações.
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passando a orientar toda a cultura banto, com sentido e objetivo de aumentar essa força e resistir contra a sua perda ou diminuição. Para esses bantos, “a realidade última das coisas, representando também o seu valor supremo, é a vida, a força vital” (op. cit.: 123). Esse princípio fundamental transforma todo ser em força, sendo esta a chave que daria acesso à representação de mundo. Assim, todos os seres – espíritos dos ancestrais, pessoas vivas, animais e plantas – são sempre compreendidos como uma força, e não como entidades estáticas. Essa visão ou concepção de existência rege todo o domínio da ação humana. Para os bantos, em qualquer circunstância, deve-se acrescentar, somar, evitando-se diminuir, subtrair. Com esse mesmo objetivo, a invocação ou evocação dos ancestrais tem a finalidade de aumentar essa energia vital, essa força, pois, em contato com seus entes falecidos, haverá uma interação que resulta em revitalização positiva, tanto para o ancestral quanto para o descendente. Os sacerdotes, que também seriam adivinhos, conhecem as palavras que reforçam a vida e ajudam a pôr em movimento as energias de cada ser. Quando se está doente, busca-se com o remédio revitalizar e fortalecer essa energia, para que o paciente se beneficie disso e vença a moléstia. Um dos símbolos dessa energia vital está na fertilidade, tanto masculina quanto feminina, sendo a representação maior da continuidade do povo e sua cultura. A morte, ao contrário, é um estado de diminuição do ser, por isso, rituais são feitos em ajuda aos mortos, para que continuem revitalizados espiritualmente. A ascendência é um fator de sobrevivência sob a visão dessa filosofia, pois morrer sem deixar descendentes significa perder essa ajuda depois de morto. Podemos cotejar novamente essa principiologia com aquelas fundamentadas nas religiões brasileiras de matriz africana, quando analisamos o conceito de Axé [Yorubá], presente em todas as modalidades dessas religiões, como Candomblé, Tambor de Mina, Jurema, Xangô, Tambor de Crioula, Caxambu, Jongo e Umbanda, dentre outras. Na língua Yorubá, axé significa exatamente a força ou energia vital presente em todos os seres vivos. Aumentar o axé é buscar Revista Científica - Teologia em Diálogo
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prosperidade, saúde física e espiritual, equilíbrio, discernimento etc. Perder axé significaria, assim como para os bantos, diminuir essa força, causando malefícios às pessoas e aos demais seres vivos. Outro aspecto importante dessa ontologia é o que diz respeito ao nome das pessoas. Segundo esse fundamento, um indivíduo se define por seu nome. Melhor, ele é o seu nome. O nome é algo interior que não se perde nunca e que difere do segundo nome, recebido em um segundo nascimento – como a circuncisão –, um nome sacerdotal, honorífico de chefe político [ou um batismo iniciático, como se pratica hoje nas religiões brasileiras de origem africana]. Esse nome pessoal, interior, é também o indicativo da individualidade dentro de sua linhagem ancestral, pois, segundo a filosofia banta, ninguém é um ser isolado. Nessa interpretação de universo e de ser humano na sua existência, toda pessoa constitui um elo na cadeia das forças vitais vinculadas e sustentando, acima de si, a sua ancestralidade, de quem herdou o mundo e vinculado, para influir abaixo, pela sua descendência, completando assim a sua linhagem. Perder esse nome ancestral significa perder-se da linhagem, passando a viver em erraticidade, sem o apoio daqueles que o antecederam. Daí, a importância do nome para os bantos.
2. O Resgate do Nome Primordial por Meio da Família de Terreiro É pacífico na literatura pesquisada que, nas religiões de matriz africana praticadas no Brasil, como a Umbanda e o Candomblé, existe na tradição religiosa um “reencontro” com essa linhagem, quando os adeptos iniciados tomam conhecimento de quem são seus orixás, voduns ou inquices “de cabeça”, aqueles ancestrais agora mais próximos, que os ajudarão a atravessar esse período de existência. Uma construção identitária também nasce dessa circunstância, quando o adepto se filia a um terreiro ou casa espiritual, passando a integrar essa nova família de irmãos em 46
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africanidades, independentemente de sua origem, nacionalidade, herança fenotípica ou qualquer outra marca. A iniciação nesses cultos começa exatamente baseada nessa informação sobre o vínculo que liga o adepto à sua ancestralidade ou linhagem. Sem ela, o sacerdote não saberá a quem evocar em nome do adepto. Aqui, aprendemos que nossos inquices ou orixás são realmente ancestrais dos quais descendemos linearmente, por meio dos tempos, que voltaram para nos ajudar nessa travessia. Não são deidades, mas espíritos em uma trajetória de compaixão e atenção com o descendente. Se na cosmogonia dos negros africanos o ser é a força, como se relacionam com a variedade de seres vivos, espíritos, divindades e deidades? Há uma estrutura complexa e lógica em que uma hierarquização demonstra a importância do uso dessa força vital, ou axé (SILVA CUNHA, 1958 apud LOPES, 1988, p.124). De acordo com essa ordem, todos os seres, conforme sua potência, se estruturam em categorias diversas. Em primeiro lugar, estaria o ser supremo - ou Syandya manwa, para os balubas de Angola e Zambiapongo na Umbanda ou Olorum/Olodumare no Candomblé Nagô. O ser supremo tem a força por si mesmo e está na origem de toda a força vital. Depois, vêm os primeiros pais dos homens, fundadores dos diferentes clãs, em uma referência aos primórdios da povoação do homem no planeta – estes são os primeiros orixás, inquices ou voduns; são eles os primeiros intermediários entre os homens e o ser supremo. Depois, vêm os mortos da tribo, por ordem de primogenitura, que são os elos da cadeia que transmite o princípio ou forma vital dos primeiros antepassados para os vivos, assim como os conhecimentos da cosmogonia – aqui, os caboclos da Umbanda, os Pretos Velhos da Cabula –, os encantados do Tambor de Mina e os orixás do Candomblé Ketu/Nagô. Depois das forças humanas, estão as forças animal, mineral e vegetal, também hierarquizadas de acordo com sua energia vital ou axé – para todas as religiões de matriz africana, a relação com a natureza guarda esse princípio. Daí o conhecimento de remédios, alimentos, forças presentes na natureza, como rios, lagos, cachoeiras, praias, montanhas, matas etc. Revista Científica - Teologia em Diálogo
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Todos os seres interagem entre si, em uma interdependência existencial. Precisam alimentar sua energia vital, e o contato uns com os outros favorece esse fortalecimento. Nas religiões aqui ressignificadas, esse contato é guardado nos rituais de purificação, realimentação espiritual ou terapias de preservação do bem-estar ou do axé. Daí, a utilização de vários elementos animados e inanimados, como pedras, plantas, animais, alimentos. Um forte sentimento coletivo permeia toda a comunidade, em um objetivo de renovação e realimentação constritiva constante, inclusive, por meio da comunicação entre vivos e mortos. Em geral, o senso comum para os bantos é de que “o mal é o que prejudica o outro, o que ameaça à paz e a sobrevivência do grupo” (BALANDIER apud LOPES, 1988, p.125). Mas a noção de força vital permeia também objetos e coisas inanimadas. Segundo essa ontologia, pode-se transmitir a força vital para uma embarcação, uma estatueta ou uma máscara, uma ferramenta ou espada. Daí, tem-se a necessidade de preservar árvores sagradas, instalações e objetos transmitidos por gerações a fio, apetrechos de culto que marcam a trajetória de desenvolvimento espiritual do sujeito iniciado, por exemplo. Com base nessa ontologia amplamente divulgada no meio acadêmico, foi construída pelos filósofos e sociólogos africanos uma personalidade africana definida. Ela seria composta de quatro elementos: o corpo ou invólucro corporal; o princípio biológico, que são os órgãos internos e seus sistemas, sintomas etc.; o princípio da vida, o princípio vital e o espírito, propriamente dito (TAY 1984 apud LOPES, 1988, p.126). Essa personalidade está situada “num campo psicológico dinâmico” demarcado por três eixos, que se cruzam: um eixo vertical, que liga a pessoa ao ser supremo, ao seu ancestral fundador e demais seres invisíveis; um eixo horizontal, referente à ordem social, que mantém a pessoa em ligação com a comunidade cultural; e o eixo da existência da própria pessoa, sua trajetória histórica e fisiológica em interação 48
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permanente com os dois outros eixos. A personalidade africana se situaria exatamente no encontro desses três eixos. Assim, o equilíbrio dessa personalidade ou a saúde mental do indivíduo depende do equilíbrio desse universo psicológico. Para o banto, a vida é a existência da comunidade, a sua participação na vida sagrada dos ancestrais, quando toda vida é sagrada. A vida é também uma extensão da vida dos antepassados e uma preparação para que esse sujeito se perpetue na vida dos seus descendentes (LOPES, 1988, p.126). Tanto o professor africano Sulayman S. Nyang (1982, p.30), quanto o sociólogo togolês Amewusika K. Tay (1984, p.13-14) defendem que essa proposta é colocada como a “crença padrão” dos povos africanos. Essa personalidade está baseada na concepção banto de comunidade de sangue, comunidade cultural e de trabalho e comunidade espiritual/ancestral. Para fins desse estudo, considerando que são abordadas, aqui, as duas vertentes principais das sagradas matrizes africanas [Umbanda e Candomblé], é atrativo saber se haveriam grandes diferenças nas ressignificações dessas duas religiões, no que diz respeito a essa epistemologia analisada. Comparando as culturas banto e as de origem sudanesa, ambas contribuintes de nossa formação cultural e religiosa, Lopes (1988, p.127) assevera que “se alguma notável diferença houvesse” entre essas duas concepções, “ela residiria na importância que os povos bantos atribuem à ancestralidade”, pois, aqui, atuariam diretamente interagindo permanentemente com os descendentes, intervindo, inclusive, tanto para ensinar quanto para punir. Mas, o ancestral é, para as duas culturas, um elo de comunicação permanente com o ser primordial ou criador e os ancestrais primordiais, muitas vezes expressos ou “animando” as forças da natureza. A base dessa relação com os antepassados é o culto a essas personalidades preexistentes. Para o africano, em geral, e o banto, em particular, o ancestral é importante por deixar uma herança espiritual compartilhada por todos; uma contribuição para a evolução da comunidade no curso de sua Revista Científica - Teologia em Diálogo
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existência. Essa é a razão de ser venerado, cultuado, por meio do culto, é assegurado o equilíbrio da comunidade com as forças da natureza, com suas próprias forças sociais e políticas, relacionamentos particulares etc. Concluindo esta seção acerca das sagradas epistêmes africanas e o epistemicídio que ocorre contra seus valores e princípios nas relações sociais, poderíamos inferir que o princípio de força ou energia vital presente em todos os seres vivos – que é base da cosmologia africana e cerne das religiões afrobrasileiras – é totalmente ignorado no processo de formação inserido nos conteúdos propostos pela base curricular nacional. Não há nenhuma vinculação, leitura ou interpretação dessas formas de pensar, porque não dizem respeito aos objetivos perpetrados pelas orientações para a vida e para a saúde dos educandos. Lá, verifica-se apenas o que diz respeito aos ditames da Lei Federal 10.69/03, famosa por determinar a inclusão de História e Cultura de África e da diáspora. É importante saber que um indivíduo se define por seu nome – conclui-se ser essa uma das maiores perdas culturais para esses povos, quando do desterro que sofreram ao serem dispersos, separados dos seus parentes, relegados a viverem sem saber o seu nome ancestral. Talvez, a religião africana ressignificada no Brasil tenha servido para recuperar esses nomes perdidos. Contudo, se a principiologia proposta na cosmogonia negra africana é silenciada na escola, o educando praticante dessas formas de saber sofre com a ruptura de paradigmas e epistemes: o que se aprende no terreiro não se fala na escola, pra não virar motivo de chacota ou perseguição. Em terreiros de Umbanda ou Candomblé, o adepto passa a conhecer sua linhagem e sua ancestralidade, inclusive seu nome, mas não pode pronunciá-lo no mundo fora das práticas religiosas. Aqui, todo o sentido da filosofia banto é esvaziado pelo silenciamento e pela negação. Se sua cosmogonia é negada, seus elementos, valores, símbolos, divindades e o ser supremo serão negados. Este, quando admitido, o é na figura do demônio judeu, entidade inexistente nessa cosmogonia, nos mitos e literatura bantos. 50
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Na diáspora19, o ser supremo banto e todo o seu panteão serão demonizados, “paganizados” e “mortos” culturalmente pela afirmação hegemônica de várias religiões praticadas no Brasil durante quatro séculos. Essa exclusão negativa perpassa os conteúdos e “não conteúdos” de currículo, assim como do senso comum. O culto aos ancestrais, os primeiros pais dos homens e fundadores dos diferentes clãs, intermediários entre os homens e o ser supremo é, por conta do preconceito aos fenômenos de transe e possessão, satanizado e negado como expressão religiosa. O mesmo ocorre no que diz respeito aos mortos da tribo20, elos da cadeia que transmite o princípio ou forma vital dos primeiros antepassados e os conhecimentos da cosmogonia para os vivos. O tabu católico de que não se deve comunicar com os mortos ou a demonização que os evangélicos, em geral, propugnam contra essa relação traz para o currículo e para a escola uma tensão que se expressa no silenciamento, na negação e na intolerância. A relação com a natureza contida em currículo é afirmada na ideologia vigente ou nas críticas ambientalistas ou ecologistas. Fazem ignorar a possibilidade de se ver o sujeito afirmando-se como parte da natureza, integrada permanentemente. Como resultado destrutivo, podemos citar a perda ou desaparecimento do conhecimento de remédios africanos, largamente usados até hoje, mas não reconhecidos pela ideologia científica hegemônica como medicamento. Os saberes banto que comunicam valores de comunhão, preservação e equilíbrio na relação desse sujeito com a natureza – equilíbrio esse que ele precisa alcançar nos campos mental 19
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Fase histórica em que o contingente negro africano escravizado é dispersado para as Américas e Caribe, passando a constituir, junto com os colonizadores e indígenas ameríndios, as populações e sociedades desses lugares. No Brasil, a diáspora é constituída por afrodescendentes, também chamados afrobrasileiros. O termo tribo não é usado, aqui, como forma pejorativa e discriminatória, mas tentando uma coerência com a bibliografia pesquisada, em que é mais usado com significado de coletivo originário, ancestral.
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e espiritual – estão guardados nos rituais de purificação, realimentação espiritual ou terapias para essa saúde específica, de bem-estar ou do axé. Sabemos que os conteúdos vinculados à educação ambiental em currículo apontam para um saber ecológico ou biológico enviesado de ideologia – ora anticapitalista, ora contra o consumismo, ora preservacionista – moldados de forma pragmática e segundo as epistemes da ciência ocidental, que apontam para a exclusão de qualquer outro conhecimento não “autorizado” pelos cânones dessa ciência.
3. A Origem do Temor, da Discriminação e da Intolerância Encontramos a necessidade de tentar compreender a origem do medo incutido no imaginário social em face dessas religiões de matriz africana. Ela pode ser localizada na Idade Média europeia, quando da implantação do cristianismo/catolicismo como forma massificante de organização religiosa. Essa implantação é regida também por uma sistemática opressão a todas as seitas e religiões preexistentes e professadas por aqueles povos europeus. Nesse cenário, as religiões “pagãs” sofrem proibição total de suas práticas. A opressão desencadeada levará à conversão em massa de quase todos os contingentes europeus, de diversas origens étnicas. Católicos queimam as bruxas e bruxos, considerados pessoas com poderes mágicos e realizadores do sobrenatural. Muitos desses feiticeiros são temidos realmente pela influência e poder que exercem, mas também pelo temor contra os poderes mágicos a eles atribuídos. Esse episódio religioso marca a trajetória dos povos que posteriormente viriam a escravizar os negros africanos a partir do século XV. A paganização e consequente demonização das crenças e cultos dos negros quando aqui chegavam era uma das “justificativas” para a escravização desses sujeitos. Daí, a cristianização forçada, após sua deportação. A opressão para manter o trabalho forçado também se dá a partir dessa cristianização. 52
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Por outro lado, os conhecimentos práticos dos africanos sobre ervas medicinais, de efeitos entorpecentes e até mortais, foram efetivamente usados para sua defesa, libertação ou como forma de vingança contra o opressor. Do ponto de vista de muitos escravizadores, o uso desse conhecimento pelos africanos é tido como responsável por maus pensamentos, transes hipnóticos ou mesmo a morte, o que contribuiu para aumentar a imagem demonizada dos conhecimentos religiosos dos africanos. Preservados no imaginário social, os conceitos de bruxaria, feitiço ou encantamento são sempre associados ao malfeito, ao fazer o mal, a manipular energias contra a vontade das pessoas etc. A discriminação pretende fazer desacreditarse dos valores ou princípios dessas religiões, impondo clima de desconfiança e medo. Nesses termos, o “racismo procura afastar as pessoas de suas fontes de identidade e da sua cultura original” (LOPES, 1988, p.102). Estaria aqui uma evidência de epistemicídio? É importante investigar se esse afastamento ou inacessibilidade com relação aos saberes e conhecimentos dessas religiões afrobrasileiras produzem o enfraquecimento ou perda da identidade [racial ou cultural, ou ambas?] e tornaria os negros e afrodescendentes “mais vulneráveis à dominação ocidental”. No passado, os terreiros eram atacados pela polícia e pelas autoridades racistas que procuravam destruir a cultura de base africana no Brasil e impor uma europeização das nossas culturas. [...] Na atualidade, a mentalidade racista transforma as vítimas do racismo nos seus próprios algozes. Fazem com que os próprios afrodescendentes trabalhem na divulgação de mitos e ideias absurdas sobre as culturas africanas (LOPES, 1988, p.102).
A população já desenvolve, de forma quase “natural”, um medo do que lhe é desconhecido. A constante propagação de estereótipos racistas que desqualificam as culturas africanas Revista Científica - Teologia em Diálogo
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e afrobrasileiras contribui para a manutenção desse medo. Associada a outras práticas de preconceito e discriminação já arraigados na conduta social e na cultura, essa propagação ganha ares de verdade para o senso comum. Daí, chegarmos ao ponto de encontrarmos indivíduos afrodescendentes, praticantes de algumas religiões de matriz euramericana, que professam um cristianismo de vertente protestante ou evangélica, justificarem e motivarem outros adeptos à prática de perseguição às crenças e cultos de origem africana no Brasil.
4. Conclusão Longe de alcançar o objetivo de esclarecer um conhecimento apenas escrevendo um texto exíguo, pretende-se seriamente contribuir para as discussões em antirracismo, trazendor à luz que: Existem diversas expressões das matrizes religiosas trazidas da África, contribuintes para a nossa formação cultural e religiosa, mas apenas reconhecemos uma Umbanda mal-representada pelos terreiros de São Paulo e Rio de Janeiro, assim como apenas um determinado tipo de Candomblé, predominantemente representado como “candomblé de orixás”, propalado tanto na maioria dos textos acadêmicos quanto nas telenovelas e desfiles de escolas de samba. Há uma ressignificação dos saberes ontológicos das culturas trazidas pelas matrizes religiosas africanas, reconhecível nas práticas e saberes difundidos tanto nos terreiros de Candomblé quanto nos de Umbanda. Há, também, um projeto permanente de epistemicídio contra esses saberes, que perpassa diversos campos de conflito da sociedade, desde a configuração de classes na qual estamos dispostos, passando pelas políticas públicas – como na escolarização, por exemplo –, chegando às interações pessoais, nas diversas formas de discriminação e violência contra adeptos e praticantes da afrorreligiosidade hoje. 54
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Porém, antes do debate sobre os racismos que afligem afrodescendentes no Brasil, outra questão, se debatida profundamente, poderá indicar caminhos desde o cerne do que significa racismo atual no Brasil. Refiro-me à questão da diferença. Esta, sim, está na raiz de um longo debate, no qual outras questões que nos afligem, como sexismo, gênero, homofobia, xenofobia, dentre outros, vão surgir como problema resistente.
Jalber Luiz da Silva Professor MSc em Educação das Relações Etnicorraciais; Doutorando em Humanidades, Educação e Artes pela Universidade do Grande Rio, com bolsa de pesquisa financiada pela FAPERJ. jalbermultimidia@yahoo.com.br
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Sociedade e Religiosidade:
A Influência Cristã em Meio à Pluralidade Erik da Cruz Mendonça
RESUMO Partindo do pressuposto de que o homem religioso do século XXI precisa ter uma relação maior com a sociedade local, refletiremos sobre os conceitos que permeiam essa relação, tais como a ética, a moral e a religião. Para isso, o presente artigo tem por objetivo demonstrar como se definem esses três componentes da sociedade. Essas definições serão necessárias para basear os pontos seguintes que tratarão de como se dá a relação do sagrado com o ser humano. Destacaremos suas limitações, implicações e resposta social à imagem do sagrado nas matrizes e estruturas sociais. Citaremos algumas referências e colaborações que o cristianismo protestante traz para a sociedade quanto à sua ética, moral e relação com o sagrado, sobretudo, por meio do indivíduo que mantém sua experiência com a comunidade de fé. Analisaremos a influência que essa religião teve na formação da sociedade brasileira, contribuições e o que ela pode ainda acrescentar, principalmente pela Igreja Protestante. Política.
Palavras-chave: Sociedade. Religião. Cristianismo.
Introdução Não se pode negar a influência que a religião exerce nas sociedades. De modo geral, as nações foram formadas com base nos conceitos éticos e morais. É difícil identificar qual nação não foi influenciada por uma religião desde a sua formação. Tomando como base metodológica levantamentos bibliográficos de textos das ciências políticas e sociologia da religião, relacionando o homem religioso, sobretudo, o religioso cristão de base evangélica protestante, com a sua literatura sagrada – a Bíblia –, temos uma pesquisa bibliográfica com fontes textuais escritas em livros. Descreveremos a influência política correlacionada à religião pelo homem religioso, que, dentre os seus desafios, precisa responder às demandas sociais dentro de seus princípios e, a partir dela, exercer papel formador em que as desigualdades social, de gênero e étnica não sobreponham a valorização da pessoa humana.
1. Ética, Moral e Religião Acreditando na possibilidade e na necessidade da relação religião e sociedade, precisaremos fazer uma leitura da sociedade brasileira, daquilo que vemos e experimentamos, de que forma essa leitura nos leva a pensar nas nossas experiências com o Sagrado21 e, a partir dessa relação, compreender como essa experiência influenciou e influencia a formação ético-social de uma nação colonizada pelo cristianismo. 21
No livro O Sagrado e o Profano, Mircea Eliade (1995) afirma que “O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades ‘naturais’. É certo que a linguagem exprime ingenuamente o tremendum, ou a majestas, ou o mysterium fascinans mediante termos tomados de empréstimo ao domínio natural ou à vida espiritual profana do homem. Mas sabemos que essa terminologia analógica se deve justamente à incapacidade humana de exprimir o ganz andere: a linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos tirados dessa mesma experiência natural”.
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Sociedade e Religiosidade: A influência cristã em meio à pluralidade
A era secular irá acarretar novos desafios não só para os cristãos, convivendo no futuro com pessoas descrentes dotadas de moral e mesmo de espiritualidade, mas também para o próprio Cristianismo, privado de um suporte social que lhe conferia maior credibilidade.22
Sociedade são pessoas, seres humanos, ou um conjunto de seres que convivem de forma organizada. Na origem do termo, o latim cita como societas, que significa associação amistosa com outros. O termo também vem do termo latim socius, que significa seguir ou acompanhar. Edgar Morin afirma que a complexidade humana não poderia ser compreendida dissociada dos elementos que a constituem: todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana.23 Essa relação entre indivíduos geram uma sociedade que produz certa cultura baseada em seus experimentos. Essa sociedade é objeto de estudo da sociologia, a partir do fenômeno social e da Antropologia pela análise do indivíduo. Para ser sociedade diante desse conceito, cabe aos seres que a formam uma convivência ordenada e consciente, de maneira conjunta. Nisso, a afirmativa de Émile Durkhein, que diz que “O social só se explica pelo social”, se aplica de maneira substancial. A qualidade protetora da ordem social se patenteia de modo especial ao se considerar as situações marginais da vida do indivíduo, isto é, as situações em que ele é levado até as proximidades ou para além dos limites da ordem que determina a sua rotina, a 22 23
MIRANDA, Mario de França. Igreja e sociedade. São Paulo: Paulinas, 2009, p.110. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000, p.49.
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existência cotidiana. Essa situações marginais ocorrem comumente nos sonhos e na imaginação.24
Uma sociedade não é formada por um único grupo étnico. Mas esse coletivo de cidadãos está sujeito às mesmas autoridades políticas, às leis, aos direitos e às normas que toda a população de um país está sujeita. Embora suas classes sociais também sejam diferentes, todos partilham de direitos, deveres, interesses e objetivos comuns. Porém, o que foi feito no Brasil séculos atrás e perpetuou para dias atuais foge da condição mínima da dignidade humana, mesmo sendo apoiado por grupos religiosos; não apenas recebeu apoio, mas teve a “bênção” de seus líderes. Como afirma Bittencourt: As formas religiosas e culturais condenadas como idolátricas e/ou demoníacas foram sendo canalizadas para uma realidade camuflada – transformada, por isso mesmo, em instrumento de resistência e de manutenção da identidade ante as violências do opressor – e puderam assim compor um acervo religioso singular. Dito de outro modo, enquanto os indígenas (e africanos) aparentemente aceitavam as práticas sacramentais, mantinham no cotidiano, de maneira velada, condutas transgressoras no que tange às determinações eclesiásticas.25
Nesse sentido, o termo nos aponta para definir sociedade como um sistema ou conjunto de relações que são estabelecidas entre os indivíduos e grupos, com o fim de construir certo tipo de coletividade, estruturada em campos definidos de atuação nos que se regulam os processos
25
BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985, p.93. BITTENCOURT FILHO, José. Matriz religiosa brasileira: religiosidade e mudança social. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Koinonia, 2003, p.57.
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de associação, adaptação, participação, comportamento, burocracia, conflito, autoridade etc.26 Sabemos que, em uma sociedade, a moral e a ética caminham juntas para o bom andamento dos princípios sociológicos. A ética é o ramo da filosofia que nos aponta para os assuntos morais27. Não podemos confundir ética com lei. A lei pode possuir princípios éticos; entretanto, a ética por si só constrói fundamentos e princípios para o bom costume. Essa ciência da conduta humana, aponta para que esse ser humano cumpra esse objetivo. A ética se faz presente em todas as áreas da sociedade. Os códigos de ética profissional, por exemplo, fornecem bases para que o profissional execute a sua função de maneira plena, sem que o outro seja invadido ou violado por algum motivo. Esses são conceitos gerais, universais pelos quais a humanidade se estabelece em uma ordem. A palavra “ética” vem do termo grego ethos, que significa bom costume, costume superior ou portador de caráter. Impulsionado pelo crescimento da filosofia fora da antiga Grécia, o conceito de ethos se proliferou pelas diversas civilizações que mantiveram contato com sua cultura.28 O termo grego, em Roma, foi traduzido como mor-morus, que também significava costume mor ou costume superior. Dessa tradução latina, surgiu a palavra “moral” no português. Assim como a ética e a moral, a religião também está ligada à cultura local. Sua forma de pensar, agir, relacionar e compreender os fenômenos, é singular. Cada rito e crença pertence ao povo de origem. Porém, o que vemos na matriz religiosa brasileira, é uma miscigenação religiosa, em razão de sua pluralidade de colonizadores. 26 27 28
QUE CONCEITO. Conceito de Sociedade. Disponível em: http:// www.queconceito.com.br/sociedade-2. Acesso em: 20 nov. 2015. QUE CONCEITO. Conceito de Moral. Disponível em: http://www. queconceito.com.br/moral. Acesso em: 25 jul. 2016. QUE CONCEITO. Conceito de Ética. Disponível em: http://www. queconceito.com.br/etica. Acesso em: 25 jul. 2016.
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A definição de religião ou re-ligação, como podemos traduzir essa palavra de origem latina, nada mais é que a ligação do homem a uma força superior.29 Peter Berger, baseado nas suas análises em Rudolf Otto e Mircea Eliade, definiu religião como o empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmos sagrado. Ou por outra, a religião é a cosmificação feita de maneira sagrada.30 Diante do desafio da ordem entre a moral e a ética, tensionada e discutida pela religião (pilares citados até aqui), precisa-se pensar no indivíduo que a relaciona e a experimenta. Devemos distinguir a concepção individualista do sujeito, que afirma sua identidade em um eu solitário, da concepção comunitária do sujeito, que afirma sua identidade em um nós, em uma comunidade. O sujeitoindivíduo define-se no “penso, logo existo” (Descartes). O sujeito-comunidade, por sua vez, define-se no “eu sou, se você também for” (Desmond Tutu).31
Essa é a grande tensão e o grande paradigma que deve ser analisado, pois, diante de um todo, as aplicabilidades são individuais, e o homem religioso, de maneira individual exerce a sua cidadania aplicando os conceitos morais e éticos dentro da sua ótica religiosa. Sua cosmo-visão global passa pelo julgamento prévio religioso, que, por vezes, difere do que a ordem social cita. Nesse caso, ampliando a questão para os campos político e econômico, a sociedade caminha para desvalorização do indivíduo, sobrepondo-o à demanda do mercado. Na proposta neoliberal econômica que aplaca a globalização, o indivíduo está 29 30 31
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QUE CONCEITO. Conceito de Religião. Disponível em: http:// www.queconceito.com.br/religiao. Acesso em: 25 jul. 2016. BERGER, op. cit., 1985, p.38. RICHARD, Pablo. Força ética e espiritual da Teologia da Libertação no contexto atual da globalização. São Paulo: Paulinas, 2006, p.98.
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para o negócio e a grande máquina. Até certo ponto, o processo de desumanização é contínuo. A construção social norteia-se para a capacidade de sustento da máquina do estado e até mesmo à manutenção do poder. O homem religioso na experiência protestante evangélica32 tem sua linguagem e raciocínio a respeito das políticas públicas que caminha em paralelo à realidade global. Podemos considerar essa perspectiva de reflexão sociológica e ética sobre o sujeito, como cita Richard (2006, p.99-100): Um outro mundo é possível na medida em que é possível pôr a economia, a ciência e a tecnologia a serviço da vida de todos e da natureza. Essa reorientação de tudo a serviço da vida de todos só é possível se existe um sujeito com uma opção ética radical, tanto prática como teórica, tanto pessoal como social. Uma mudança de sistema exige uma mudança ética radical e exige escutar o grito dos excluídos e excluídas e o grito da terra e da água.
Por isso, cabe à celebração da experiência religiosa entre o sagrado e o homem religioso intermediar o conceito de moral e ética na sociedade em que o ser humano passa a ser o centro da massa.
2. A Construção Dialética da Sociedade Essa construção dialética, segundo Peter Berger, destaca-se pela exteriorização coletiva dos homens com suas atividades comuns. Individualmente, para Berger, essa afirmação é devido à sua peculiaridade biológica na qual é impelido a exteriorizar-se.33 32
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Os termos “protestante” e “evangélico” estão sendo citados juntos para fazer a separação do cristianismo católico neste primeiro momento. Trataremos, posteriormente, o protestantismo como o movimento cristão de missão que surge no Brasil enviado pelos norte-americanos. BERGER, 1985, p.93.
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Quando a reflexão política abraça a sociedade, ela passa pelo cunho e segmento crítico comum e sofre influência de todos os lados, inclusive, religiosos. Quando citamos o protestantismo como ramo da matriz religiosa brasileira, estamos falando de um grupo religioso que tem uma visão particular sobre o tema e tem a sua contribuição direta nessa formação social. Como cita José Bittencourt Filho (2003, p.31-32): Entre os protestantes brasileiros dissemina-se cada vez mais o sonho de um novo começo social, de uma reconstrução sociopolítica, que se expressa numa quase palavra de ordem: “O Brasil será um país diferente quando à sua frente estiver um homem de Deus”. Com isso, vive-se no presente a expectativa de grandes eventos, de uma “intervenção divina” milagrosa, que irá provocar a decomposição da atual ordem histórica e o começo de uma nova era, aqui e agora.
Pensando sobre essa realidade local e a ação do homem religioso, compreendemos que essa revelação se faz na história, e, por estar na vida, cabe compreender como essa fé e discursos serão absorvidos na sua inculturação. Esses destinatários devem entender que Deus se aproxima de uma maneira particular e também plural, dentro de suas limitações culturais. Essa economia da revelação faz-se necessária para o entendimento humano desse símbolo da fé, que dá sentido à experiência religiosa. Mario de França Miranda afirma que: A sociedade moderna se concretiza pela riqueza de setores, pela justaposição de pequenos “mundos”, pela coexistência de situações existenciais diversas, pela convivência de mentalidades diferentes, que demonstram ser a multiculturalidade não só um fenômeno do planeta, mas igualmente de toda grande cidade em nossos dias. Hoje, mais do que nunca, temos de aprender a conviver,
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respeitar e dialogar com o diferente, pois o universo cultural em que vivemos é, queiramos ou não, pluralista.34
Em meio ao pluralismo religioso existente no século XXI, cabe aos portadores da mensagem deixar-se guiar pelo numinoso35. Essa identidade que revela a vocação do ser humano – a saber, a encarnação do Sagrado – nos faz participante de sua missão no mundo. Essa formação e construção dialética da sociedade tem interferência cultural de outras realidades diferentes da local. O que falar do impacto do cristianismo de missão – a saber, a religião protestante – que faz uma leitura do cristianismo diferente da cultura católica que já existia aqui no Brasil com a colonização europeia? Dentro dessa proposta de formação social, essa sociedade, em geral, procura ainda uma forma de ser comunidade, de maneira que os princípios éticos e as virtudes naturais sejam valorizadas para o todo. O processo de interiorização deve sempre ser entendido como apenas um momento da exteriorização e da objetivação. Se isso não é feito, emerge um quadro de determinismo mecanicista, no qual o indivíduo é produzido pela sociedade como o efeito é produzido pela causa na natureza. Tal quadro distorce o fenômeno social. A interiorização não só é uma parte da dialética mais ampla deste último, como a socialização do indivíduo também ocorre de maneira dialética.36
O sagrado se revela a alguém, ou a uma comunidade. Berger, quando se posicionou acerca do sagrado, afirmou que entende-se, aqui, uma qualidade de poder misterioso e temeroso, 34 35 36
MIRANDA, Mario de França. Inculturação da fé: uma abordagem teológica. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p.9. Para aprofundamento do termo, cf: ABUMANSSSUR, Edin Sued. As moradas de Deus. São Paulo: Fonte Editorial, 2004. BERGER, 1985, p.31.
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distinto do homem e todavia relacionado com ele, que se acredita residir em certos objetos da experiência.37 Quando lemos a vida e à interpretamos, notamos a diferença dos momentos em que o ato de ler dá à nossa experiência existencial. “Fazemos a leitura do mundo, do pequeno mundo em que nos movia”.38 Essa análise e leitura do lócus refletirá em uma ação transformadora, na qual a sociedade fará como os seguidores de Jesus fizeram no primeiro século, como registrado na segunda carta de Lucas à Teófilo, o livro Atos dos Apóstolos, em que a Igreja caía na graça do povo. O Logos, Palavra e sentido de paz, é princípio desencadeador de uma existência reconciliadora e transformadora no mundo conflitivo e violento.39 Nota-se que as leituras, tanto da vida como dos textos, não caminham separadas, pois uma auxiliará a outra no momento de reflexão. A relação entre o sagrado – que, na perspectiva protestante, significa apontar para Deus – e o homem religioso precisa dialogar com a sociedade por meio de uma linguagem pública, mas que, antes, passou por uma leitura responsável que tecerá as linhas da vida. Essa noção nos remete de novo à necessidade de pensar a constituição do sujeito a partir da capacidade de se organizar a linguagem. Porque é a linguagem que deve emergir à consciência na contemporaneidade; enquanto não conseguirmos pensar o que falamos, não vamos conseguir pensar o que fazemos.40
A construção dialética de uma sociedade tende a ser 37 38 39
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Ibid. p. 38. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados/Cortez, 1989, p.9. HAMMES, Erico. No princípio era a Palavra e a Palavra estava com Deus, brincava na terra e se alegrava com os seres humanos. In. GASDA, Élio Estanislau (org.). Sobre a Palavra de Deus: hermenêutica bíblica. Petrópolis: Vozes; Goiânia: Editora PUC, 2012, p.52-53. YUNES, Eliana. Pensar a leitura: elementos para uma história da interpretação. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p.102.
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plural pela variedade de experiências. Essa pluralidade é uma característica natural do ser humano que, ao se relacionar, irá propor éticas que permitam o convívio daquele grupo. Sendo assim, quem está debaixo de um princípio ético não pode estabelecê-lo como forma universal. A ética é local e pretende manter o convívio com o meio no qual está inserida. A cultura é imprescindível para o desenvolvimento social dentre as suas diretrizes morais, éticas e religiosas. Essa dinâmica social na qual o indivíduo está inserido determinará o seu ponto de vista nessa construção dialética. A sociedade, em outras palavras, é um produto da atividade humana coletiva. Como tal, e somente como tal, ela confronta-se com o indivíduo como uma realidade objetiva. Esse confronto, embora possa parecer opressivo para o indivíduo, exige deste uma progressiva interiorização daquilo com que ele está se confrontando. Dito de uma maneira mais simples, exige sua cooperação, ou seja, sua participação na atividade coletiva pela qual a realidade da sociedade é progressivamente construída.41
Diante desses conflitos e ajustes, a desigualdade, a injustiça, a paz, a autonomia, a convivência, os saberes, o poder, ou seja, todas as bases estruturais antropológicas ficam expostas. De certo modo, a sociedade é estética e essa maquiagem, por vezes, dissolve rápido diante das questões sociais que brutalmente assolam as comunidades formadas, sobre tudo nas periferias.
3. A Experiência Religiosa e seus Desdobramentos na Contemporaneidade Fiódor Dostoiévski certa vez afirmou que “Existe no homem um vazio do tamanho de Deus”. Se isso é verdade ou 41
BERGER, op. cit., 1985, p.93.
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não, importa-nos pensar que, de fato, o homem busca nessa relação com o sagrado o sentido para sua existência. Mais do que nunca, o pluralismo religioso brasileiro está a exigir um esforço concentrado para ser compreendido. Pretendemos situar e incorporar não a priori da experiência religiosa, mas consoante à natureza sociológica do trabalho, apontar a dimensão apriorística da religiosidade da média dos brasileiros e tomar tal dimensão como uma ferramenta teórica a mais no empenho hermenêutico do panorama religioso em nosso País, sobretudo no passado recente.42
Essa fé, ou crença no sobrenatural é distinta. Cada sociedade a dissipa de maneira distinta, podendo até mesmo ser parecida com outras sociedades locais. No contexto social, a religião sempre desenvolveu importante papel na formação de caráter humano. Com todas as diferenças existentes entre elas, existem também fatores que a ligam como a manifestação simbólica, sentimentos, crenças e ritos. Esses fenômenos religiosos têm influenciado sociedades em todas as suas camadas e estruturas.43 Sabemos que uma sociedade é composta por seres humanos, por isso, ela tem variações. A ética, a moral, a religião ou religiões se complementam e desenvolvem características que fazem do mundo o que ele é hoje. Porém, o que é visto no decorrer da história é a distorção daquilo que é lido nos textos sagrados, de onde geralmente saem os conceitos e princípios éticos que a sociedade, por meio do homem religioso, utiliza para pôr em ordem sua nação. Haja vista algumas guerras que foram sustentadas por interpretações diferentes que causaram destruições em massa no último século. 42 43
BITTENCOURT FILHO, 2003, p.39-40. Para mais informações sobre a influência do fenômeno religioso, cf.: FILOMARO, Giovanni; PRANDI, Carlo. As ciências das religiões. São Paulo: Paulus, 1999. Ó DEA, Thomas F. Sociologia da religião. São Paulo: Pioneiro, 1969.
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Pode-se dizer, portanto, que a religião aparece na história quer como força que sustenta, quer como força que abala o mundo. Nessas duas manifestações, ela tem sido tanto alienante quanto desalienante. É mais comum verificar-se o primeiro caso, devido a características intrínsecas da religião como tal, mas há exemplos importantes do segundo.44
A religião é um dos primeiros pontos a serem analisados em uma cultura. Sua literatura diz muito sobre ela. Aquilo que é revelado ao homem nessa economia divina, nessa revelação simbólica encontra-se em paralelo à cultura humana, que dá sentido à revelação. Certamente Geffré identificou essa realidade na cultura religiosa, sobretudo na cristã, afirmando que: O mundo do texto, o mundo que se desdobra pelo texto, leva o sujeito a atualizar seus possíveis mais próprios, em vista de uma transformação do mundo. Então, segundo a fórmula de Agostinho: “Dizer é fazer”. Por conseguinte, a hermenêutica do sentido ou a hermenêutica dos textos conduz a uma certa prática social e até uma certa prática política.45
Quando se trata da experiência religiosa, afirma-se que esta é pessoal, única e transcendente. É o local onde o ser se encontra com o Criador. Esse sagrado que se revela e encontra na experiência se faz presente na história, na cultura e no chão da vida. Essa captação do inatingível é influenciada por fatores externos que darão sentido e o situará ao conhecimento do numinoso. Esses significados e interpretações pessoais rompem a barreira do conceito e passam a fazer parte da vida. 44 45
BERGER, 1985, p.112. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004, p.55.
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A experiência vivida no chão concreto da existência é a chave privilegiada para compreender o Deus revelado. Até porque, o Deus revelado o é não em um conceito, mas na história, ou melhor, nas histórias de homens e mulheres.46
De fato, essa relação do sagrado com o homem na história já causou muitas más interpretações e significados distintos. O que falar das guerras do último século levantadas e sustentadas por homens em nome de Deus? O que falar das cruzadas e dos holocaustos? Pessoas dando suas vidas para honrar suas religiões com base naquilo que compreenderam em suas leituras e simbologias. Na verdade, o que vimos foram homens sustentados por seus orgulhos, preconceitos e verdades particulares, que, nessas buscas pelo sagrado, sustentaram suas causas na experiência sagrada. As religiões, especialmente o cristianismo, não poderão permanecer imóveis. Elas deverão, necessariamente, ou morrer ou inovar para adaptar a uma realidade sempre movente. Elas precisam, portanto, de um projeto radical de encarnação e aceitar a ideia de que sua organização atual não é imutável. Não se pode ser jovem e velho ao mesmo tempo.47
Assim como um rio que se renova, as linguagens das comunidades de fé devem estar preparadas para as transformações dialogais da sociedade, pois, pensando na natureza da igreja como pneumatológica, conforme visto em Atos, ela não tem como se manter estática. No entanto, ela deve estar aberta à história. Notamos que interpretações bíblicas já levaram homens a assumir poderes, iniciar guerras, destruir nações, rachar igrejas, 46 47
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ROCHA, Alessandro Rodrigues. Experiência e discernimento: recepção da palavra numa cultura pós-moderna. São Paulo: Fonte Editorial, 2010, p.339. DELUMEAU, Jean. A espera da aurora: um cristianismo para o amanhã. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
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destruir casamentos, famílias, mas também já levaram pessoas a viver com justiça, amor, igualdade, liberdade, proposto por Jesus de Nazaré nas narrativas do Novo Testamento. Essa sensibilidade levará a sociedade a responder questões que norteiam suas comunidades, seja ela social ou espiritual, de forma integral. Como comunidade cristã, diferentemente das outras comunidades humanas, a Igreja manifesta sua identidade primeiramente pelo próprio teor de vida de seus membros, que, então, testemunham para a sociedade o que creem, o que lhes é essencial, o que pauta suas vidas. (...) Esse testemunho se concretiza de muitas maneiras, atingindo os mais diversos setores da sociedade, como família, educação, arte, literatura, técnica, política, economia, pelo modo peculiar como os cristãos vivem nessas realidades.48
Todos os caminhos propostos até agora são para que, ao fim desse processo, a prática do discurso religioso esteja encarnado no ser, na cultura, nessa totalidade que a sociedade experimenta. Cada comunidade tem sua particularidade. O meio no qual ela está inserida fará dela algo singular nessa pluralidade cultural em que estamos inseridos. O cristianismo tem todas as ferramentas necessárias para conduzir a sociedade a viver de maneira integral suas diretrizes como direitos e deveres. Alguns políticos utilizam-se dessa proposta de voz de Deus no poder do país e, como diz Alessandro Rocha: Num mundo que só pretende destruir a vida, nossa mensagem precisa ser clara, nosso ministério precisa se revestir do ministério de Cristo. Temos que acabar com o vácuo existencial que criamos entre a conversão e a morte. Nossa mensagem precisa ser para a vida, para a proclamação da justiça e da paz. A salvação anunciada por 48
MIRANDA, 2009, p.194.
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Jesus Cristo já deve começar a ser experimentada aqui, e isso só poderá acontecer à medida que assumirmos nossa missão.49
O cidadão que lê, pensa, sente e faz uso de princípios éticos cristológicos, provavelmente levará o seu meio social a viver de forma humana, encarnada. Para tanto, precisamos pensar, sobretudo, no nosso contexto de América Latina. Aqui, encontramos marginalizados e oprimidos em todas as esquinas, na mesma proporção que encontramos igrejas cristãs em nossas ruas. A religião, o sagrado, o Deus dos cristãos, traz consigo, por essência, essa realidade possível a toda a sociedade.
Conclusão Quando somos limitados a fazer leituras, reflexões e a sentir da forma que alguém quer, nos tornamos escravos de forma bastante disfarçada daquele ou daquela que nos induz a ser. Essa limitação não fica restrita às ações vivenciais eclesiais, mas para a vida. A política é uma maneira de alienar e promover liberdade. Diante dessa diversidade e pluralidade do fenômeno religioso no Brasil, a univocidade proposta por frentes parlamentares não resultará em políticas públicas para toda a nação. Essa proposta não condiz com a ética protestante orientada pelas narrativas sagradas. Para alegria de alguns, desespero de outros e confusão de (quase) todos, estamos construindo nosso Protestantismo Tupiniquim. Não é branco, anglo-saxônico, racionalista, encorpado, estrangeiro, nem sistematizado em compêndios. Mas também não é absolutamente oral, 49
ROCHA, Alessandro Rodrigues. Pequenas doses de teologia e espiritualidade. São Paulo: Reflexão, 2010, p.76.
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festivo, moralista, sensorial, experimentalista e libertário. É ambíguo, pluralista, intermediário, carnavalesco, sincrético. Enfim, nem branco nem preto. Protestantismo Tupiniquim Mulato. Nada Mais.50
A influência que o cristianismo exerce sobre a formação dos componentes de base social brasileira é muito grande. De fato, o exercício e aplicação de sua literatura sagrada – a Bíblia – têm papel orientador por ser norteador dentro do cristianismo protestante em sua matriz doutrinária. Todas as religiões têm a sua forma de olhar o ser humano. Métodos e referências apontam para sua experiência com o sagrado. Em uma sociedade plural, as religiões colaboram uma com as outras e em comum para o avanço social, político, econômico, bem-estar comum, valores éticos e morais. O homem religioso tem muito a acrescentar. Ele também é parte da sociedade. Nesse sentido, o sagrado se revela e se faz sociável.
Erik da Cruz Mendonça
Especialista em Ciências da Religião (UNIGRANRIO); bacharel em Teologia pela Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO). mendoncaerik@gmail.com
50 ALENCAR, Gedeon. Protestantismo tupiniquim: hipóteses da (não) contribuição evangélica à cultura brasileira. São Paulo: Arte Editorial, 2005, p.149-150.
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Fragilidade Humana:
Teologia, Literatura e Sociologia em O Rio e Eu, de Lígia Bojunga Sônia de Almeida Barbosa Grund Idemburgo Frazão Resumo Este artigo debate sobre a fragilidade humana social, profissional e religiosa como consequências de inúmeras dificuldades do ser humano comunicar-se, em seu cotidiano, e, ao mesmo tempo, ver-se vulnerável diante das diferentes situações da modernidade. Para ilustrar essa problemática, é pretensão fazer um diálogo teológico com os estudos do sociólogo Zigmunt Bauman, em Amor Líquido: a fragilidade dos laços humanos, autor que há anos estuda a humanidade; com a escritora literária, Lygia Bojunga, em O Rio e Eu, responsável pela inserção de um narrador, denominado neste trabalho de eu narrativo, em razão de suas expressões e sentimentos, semelhantemente ao eu poético da poesia, que, expõe um ser humano, na personificação do Rio de Janeiro, fragilizado diante das medidas governamentais, da industrialização sem interação com o social. Palavras-chaves: Fragilidade humana; dialogismo; fé.
Introdução No presente artigo, intenta-se debater acerca da fragilidade humana, utilizando as seguintes obras: Amor Líquido:
sobre a fragilidade dos laços humanos, de Bauman; O Rio e Eu, de Bojunga e a Bíblia Sagrada. Nesses escritos, o leitor sente-se convidado a dialogar com os textos lidos e a refletir sobre as dificuldades humanas, no que se refere à convivência harmoniosa, nos âmbitos familiar, profissional e social, diante da chegada do desenvolvimento tecnológico; das medidas governamentais ou do simples agir com o outro: alguém que se encontra às margens sociais, religiosas ou governamentais. Enfim, os livros ditos acima são de relevância para evidenciar vulnerabilidade do ser humano, algo que afeta a si mesmo e a toda comunidade ao seu redor.
Os Laços Humanos na Visão de Bauman Em Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, há discussão no que tange ao relacionamento humano, bem como de que forma a humanidade vive as questões associadas ao medo, ao amor e à morte, na modernidade: O principal herói deste livro é o relacionamento humano. Seus personagens centrais são homens e mulheres, nossos contemporâneos, desesperados por terem sido abandonados aos seus próprios sentidos e sentimentos facilmente descartáveis, ansiando pela segurança do convívio e pela mão amiga com quem possa contar num momento de aflição, desesperados por “relacionar-se”. E, no entanto, desconfiados da condição de “estar ligado permanentemente” (BAUMAN, 2004, p.8).
A Bíblia, livro considerado sagrado por pessoas não ateístas, é uma coletânea de diversos livros, compostos por prosa ou por versos (especialmente os Salmos), ela é, por seu turno, um excelente meio para analisar a conduta humana desde a sua criação, o quanto o homem se vê frágil por não saber se resolver com o que lhe é dado, em detrimento dos bens alheios. Para essa reflexão, é pertinente fazer um passeio por Gênesis, Êxodo, Isaías, Lucas e João. 82
Fragilidade Humana: Teologia, Literatura e Sociologia em O Rio e Eu, de Lígia Bojunga
Em todas as falas, inclusive, pelas parábolas de Jesus, fica notória a dificuldade de o ser humano entender o outro, olhar para si mesmo e não se julgar superior ao outro; logo, a inveja e o julgamento precipitado culminam com uma imensa fragilidade do ser humano, que como afirma Isaías: “(...) Iaweh, tu és nosso pai, nós somos a argila e tu és nosso oleiro, todos nós somos obras das tuas mãos”. (Is 64, 7). O homem, pois, é barro confeccionado por Deus, é fraco diante da grandeza de Deus e, por extensão, é fraco diante das injustiças do mundo, seja como autor ou receptor. É o que aconteceu com Caim, ao matar seu irmão, Abel, por inveja; com Adão e Eva, por desrespeitar as regras estabelecidas por Deus. Em outras passagens bíblicas a serem analisadas neste trabalho, a problemática da corrupção, condenada por Isaías, os atos impiedosos para com a mulher adúltera, o filho pródigo, dentre outros seres desfavorecidos de complacência. Por último, para evidenciar a frágil sociedade moderna, serão citados alguns trechos de O Rio e Eu, de Lygia Bojunga: autora gaúcha que, ainda menina, mudou-se para o Rio de Janeiro e encantou-se com a cidade carioca. Em suas narrativas, insere um narrador, que neste trabalho é denominado “eu narrativo”, em razão de, à semelhança de um “eu poético”, na poesia, expressar seus sentimentos e suas emoções. O Rio e Eu é significativo para clarificar o regresso humano, no sentido da falta de perspectivas em relação ao Rio de Janeiro, enquanto cidade que, paradoxalmente, é denominada maravilhosa. É difícil para o carioca se ver na contramão da felicidade. Bojunga personifica o Rio de Janeiro, e com ele, o seu eu narrativo dialoga, em tom de desabafo, diante da crescente ocorrência de violência e da desordem urbana. Apesar da beleza geográfica, o habitante da cidade maravilhosa não se vê representado e, em consequência, decepciona-se. O eu narrativo de O Rio e Eu é, portanto, a representação da fragilidade humana, do medo sem a utopia de dias melhores. (...) Esse teu lado violento, que antes aparecia pouco, foi se mostrando mais e mais. Eu me encolhia (...). Alguns de seus traços fisionômicos (...) espantavam meu olho. Os
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teus morros (...) e quando despiam de tudo que é árvore para se vestir de barraco, testemunhando a injustiça social que não era pra-ser-mas-é, a miséria que não podiaexistir-mas-existe (BOJUNGA, 2010, p.42).
Fragilidade Humana na Visão de Bauman O citado autor apresenta uma análise da sociedade moderna, ilustrando o relacionamento humano como personagem central. Dessa forma, homens e mulheres, apesar de ávidos por interagir com outrem, mostram uma grande fragilidade. É fácil relacionar-se com diferentes pessoas, porém, há dificuldade em manter esse relacionamento, bem como, em algumas situações, o relacionar-se torna-se sinônimo de postar momentos aos outros, como ocorre por meio da internet, especialmente as redes sociais: um e outro partícipe dos contatos abrem uma amizade e a deleta, sem aviso prévio; basta que haja, de uma das partes, algo que lhe seja desagradável. Por esse prisma, relacionar-se confunde-se com conectar-se: do mesmo modo que conecto meu aparelho celular até a sua bateria carregar, desligando-o em seguida, assim a sociedade faz com os seus inúmeros amigos virtuais: a desconexão é imediata, sem nem mesmo pensar em uma conversa para possíveis soluções. As pessoas, portanto, esporadicamente, criam redes, mas, em vez de interagir, apenas se apresentam não exatamente como são, e, sim, como esperam que os outros as vejam, as admirem. Como do outro lado ocorre o mesmo, a rede perde a função de unir, entrelaçar e acaba por desprender-se, o que faz com que as pessoas voltem ao desejo do relacionamento com novos contatos. Eis, por conseguinte, o lado paradoxal do ser humano: aproximar e afastar, ao mesmo tempo. Apreende-se, no texto de Bauman, dentre tantas fragilidades humanas, a de compreender os acontecimentos de amor e da morte. Para o autor, ambos vêm do nada “ab nihilo”, 84
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isto é, o homem possui a certeza de sua ocorrência, no entanto, não sabe quando, onde e como irá morrer. Do mesmo modo, o humano, ciente de sua natureza emotiva, no sentido de amar ou apaixonar-se por alguém, desconhece também o momento e a forma, pelos quais poderá ser aprisionado por um sentimento de amor. Por meio da fala da profetiza Diotima de Mantineia, com respaldo do filósofo Sócrates, em O Banquete de Platão (BAUMAN, 2004, p.21), relembra ao leitor: No Banquete de Platão, a profetisa Diotina de Mantineia ressaltou que Sócrates, com a sincera aprovação deste que “o amor não se dirige ao belo, como você pensa; dirige-se à geração e ao nascimento do belo.” Amar é querer `”gerar e procriar”, e assim o amante busca e se ocupa em encontrar a coisa bela na qual pode gerar.
Nota-se que aquele que espera ou busca por um amor, deseja algo belo, ou seja, a felicidade de um relacionamento é imposta à pessoa do outro como origem da criação de uma vivência esplêndida: trata-se de idealizações pessoais, sem reflexão sobre o ato natural que possa conduzir as vivências interpessoais. Na espera de uma felicidade oriunda das ações de outra pessoa que, nem sempre pode proporcionar a criação do belo esperado, tem-se um amor efêmero: “O belo” planejado inexiste, não se vive, de fato, o amor e, por essa razão, transparece a fragilidade humana. Pela razão descrita acima, evidencia-se que o sentimento de amor, além de repentino, ao chegar, também é passageiro na sua existência: ele passa pelo ser humano. Ao amar, é necessário que se pense no outro, mas não que esse outro seja o executor dos planos de quem ama. Ao ocorrer isso, o ser humano se decepciona, isto é, sua fragilidade torna-se a sua face. E, como afirma Bauman, nessa situação, amor e morte se confundem: Revista Científica - Teologia em Diálogo
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O amor é uma hipoteca baseada num futuro incerto e inescrutável. O amor pode ser, e frequentemente é, tão aterrorizante quanto a morte (...) assim, a tentação de apaixonar-se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar. E o fascínio da procura de uma rosa sem espinhos nunca está muito longe, e é sempre difícil de resistir (BAUMAN, 2004, p.23).
Como o relacionamento acontece no mundo real e no virtual, por meio das redes sociais, dos livros, dentre outros meios, Bauman muito bem expõe o papel dos leitores nessa sociedade fragilizada, especialmente ao citar Charles Baudelaire: Meu caro amigo, estou lhe enviando um pequeno trabalho (...). Suplico-lhe que leve em consideração a conveniência admirável que tal combinação oferece a todos nós – a você, a mim e ao leitor. Podemos abreviar – eu, meus devaneios; você, o texto; o leitor, sua leitura. (BAUMAN, 2004, p. 15).
A exposição supra, como assinala Bauman, consta na apresentação de Le Spleen de Paris a seus leitores. Por meio dela, percebe-se a interação textual entre autor, leitor e texto. Os leitores de Baudelaire, sem dúvida, representam a sociedade humana com suas diferentes nuances. Da mesma forma que o texto inexiste sem o leitor, o autor tem de estar em constante diálogo com ele. Trata-se de uma tríade: autor-texto-leitor, afinal, o ser humano precisa interagir, dialogar com outros e tirar a face narcisista, em que se usa o outro apenas como meio e não um fim. Quando essa interação não ocorre, o outro é sempre descartável: não servindo mais, é deletado ou voltando a Isaías: o barro é desfeito, o homem é frágil. Trata-se, por isso, de uma frequente busca por manter-se conectado, contudo, no real. Não há um autor capaz de unir parte a parte do homem e torná-lo íntegro, 86
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socialmente; logo, esse se coloca novamente na condição de ser fragilizado, cheio de devaneios, de procura de si mesmo. É notório, por conseguinte, o papel preponderante do leitor, na escrita de Bauman. Ele, ao falar do “Espírito dos relacionamentos”, de Guardian Weekend (BAUMAN, 2004, p.38-39), refere-se ao leitor “regular e dedicado”, ou seja, aquele imbuído de bênçãos, capaz de memorizar. Por outro lado, o leitor, na sua condição humana, é a mostra de que habilidades, conhecimentos diversos e concentração devem estar armazenados na mente; se esta falhar de alguma forma, sobressai-se o lado frágil do homem. Em suma, Bauman lembra-se dos leitores de outrora e faz a seguinte observação acerca da conduta humana: Se os jovens de nosso tempo fossem leitores de (...) livros antigos tenderiam a concordar com a amarga e sombria imagem do mundo pintada por Leon Shestov (...) homo homini lúpus é uma das máximas mais inabaláveis da moral eterna. Em cada um de nossos vizinhos, tememos um lobo... somos tão pobres, tão fracos, tão facilmente arruináveis e destrutíveis. Como podemos deixar de ter medo? (BAUMAN, 2004, p.112).
A Fragilidade Humana através dos Personagens Bíblicos A fragilidade humana estudada na atualidade por Bauman é, sem dúvida, uma questão importante desde a criação do mundo. Dialogando com a Bíblia, é possível entender que o humano, em vez de de comunicar-se com Deus, intenciona-se a se colocar no lugar Dele, comete o pecado e, em consequência, vive inúmeras fragilidades. Para a intertextualização bíblica, é conveniente iniciar a discussão por Gênesis, 1º. livro do Antigo Testamento. No citado livro bíblico, o universo ganha a presença do ser humano: Deus fez surgir o homem (Adão) e, em seguida, a Revista Científica - Teologia em Diálogo
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mulher (Eva) para que na terra habitassem, em plena harmonia (Gn 2, 25). O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26). Pelo viés linguístico semântico, cabe ressaltar, por conseguinte, os sentidos dos termos “semelhança” e “imagem”: O primeiro apresenta ideia de “parecido”, “próximo”, uma espécie de mímese do real, mas, lembrando a fala do filósofo Aristóteles, nunca será o real: trata-se de algo ou alguém com o qual se compara, ou seja, o homem é semelhante a Deus, porém, não o próprio Deus. O segundo termo, “imagem”, também merece atenção, visto que remete à possibilidade de “reflexo”, “sombra”. Imagine as figuras de Deus (o Criador) e Adão (a criatura), em uma posição vertical. Assim, além do entendimento de Deus como ser supremo, posição acima, há o Adão (= homem) não só na posição de imagem refletida de Deus, como também de imagem de ser humano sendo olhado, cuidado por Deus, o que mostra a ideia de fragilidade humana, desde o nascimento ou criação, pelo viés teológico. Deus, Pai cuidadoso, não esconde os perigos de suas criaturas (Adão e Eva); com esse zelo, criou um jardim imenso e, em seu centro, uma árvore proibida (Gn 2, 8-17 e Gn 3, 2). Deus adverte ao casal criado sobre a árvore do mal, alertando-o a respeito das devidas prescrições. O ser humano, nas pessoas de Adão e Eva, todavia, desconsidera as recomendações de Deus e se utiliza do “fruto” do mal (Gn 3,6-13). Ao fazer isso, o homem, enquanto criatura, deixa claro o seu papel de desobediente, almejando trapacear Deus, isto é, de se sobrepor ao Criador. Ao agir desse modo, o homem sai de seu estado natural: descobre-se nu, diante de Deus e se envergonha, ele mostra a todos que se despira das recomendações de Iahweh, consequentemente, afetou a natureza, especialmente a natureza, no que tange à ideia de pureza humana, à submissão aos desígnios de Deus. Por fim, Adão e Eva, a princípio, fortes, tornam-se frágeis, incapazes de resistir ao mal. O sentido de paraíso descrito em Gênesis pode ser entendido como estado pleno, abundante, feito por Deus para usufruto do ser humano. Adão, contudo, desarmoniza a natureza, 88
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no que se refere ao modelo de vida justa e correta determinado por Deus e, ao deixar-se levar, juntamente com Eva, pela serpente, o ser tentador, fere a Deus e a si mesmo (Gn 3, 1-6). Outra passagem de Gênesis que evidencia o ser humano transgredindo a natureza, ou seja, o estado natural dado por Deus, é encontrada nas ações de Caim, filho de Adão e Eva, uma vez que, por se sentir preterido por Deus, inveja seu irmão e o mata (Gn 4, 3-8). É notável, nesse acontecimento, a tentativa de usurpar o alheio. Caim, ao se livrar de Abel, aflora o desejo de impedir a realização dos propósitos de Deus. A fragilidade de Caim é não saber aceitar o sucesso alheio e, por inveja, sucumbe-se, evidenciando sua eterna fragilidade. Tanto Caim quanto Adão e Eva buscam interferir na natureza, provocam o caos e sofrem as punições devidas. Está, nessas figuras bíblicas, a mensagem de necessidade de consciência ecológica e dialógica do próprio homem para se ter o paraíso. O homem precisa se conhecer, conhecer Deus e respeitá-lo e obedecê-lo. Essa postura de desrespeito ao interlocutor é a causa do caos que afetou anos antigos e afeta a atualidade, configurando na fragilidade de sentimentos, de condutas de obediências. Em outro livro bíblico, Êxodo, há Moisés, outro homem com quem Deus dialoga, tentando dar paz ao povo. É a busca por uma história da libertação do povo de Israel e não apenas como relatos de afastamento ou fuga de membros de uma comunidade, visto que Deus ouve o clamor dos sofredores escravizados pelos faraós; providencia um líder, Moisés (Ex. 2, 23-25 e Ex 3, 7-10) e o orienta a conduzir todos os hebreus para uma terra livre, organizada, social e administrativamente justa e fiel aos mandamentos de Deus. Por toda a narrativa, é nítida a interferência direta de Deus: desde a salvação de Moisés (por meio da sua adoção pela princesa do faraó, que lhe deu instrução para assumir altos cargos políticos, foi educado por sua mãe biológica, na fé ao Pai sagrado) (Ex 2, 5-10) até a fuga para Madiá, onde, após casado, recebe o chamado de Deus, por meio de uma sarça ardente (Ex 2, 15-22). Revista Científica - Teologia em Diálogo
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A princípio, há uma aparente fragilidade de Moisés para cumprir os desígnios de Deus. Moisés, inicialmente, recusa-se servir a Deus, dizendo-se incapaz por sua péssima dicção (Ex. 4, 10-17). Essa conduta, todavia, não deve ser vista como sinal negativo; é, na verdade, uma marca de humildade, diante da grandeza de Deus e, ao mesmo tempo, uma prova para nós de que Deus quer alguém que seja puro de sentimentos e fiel a Ele. Deus vê essa vocação em Moisés e lhe capacita para que ele cumpra os seus propósitos. Este se manifesta a Moisés: “Eu sou Aquele que é” (Ex 3, 14-15), isto é, deixa claro que não há o que explicar, justificar: Deus é verdade, é existência, é o Senhor de tudo e todos. Trata-se das fases em que Moisés é orientado quanto à forma pela qual deveria proceder diante do povo e do faraó, a fim de provar a existência de Deus soberano e libertar os hebreus da escravidão egípcia (Ex 4, 1-9). Percebe-se o ato de preparação nas passagens em que Deus fala a Moisés para fazer de sua vara uma serpente às vistas do faraó, bem como para com a mesma vara, transformar a água do rio em sangue (Ex. 4, 8). Temos, nessa etapa, o momento em que povo chega à terra prometida; as tarefas são estabelecidas; Moisés, instruído por Deus, torna o povo ciente da instituição do decálogo e evidencia, mais uma vez, a sua vocação para viver a verdade do Senhor Deus (Ex 19, 3-8 e Ex 20, 21). Nessa última etapa, há um Deus que prescreve a respeito da construção dos santuários como locais de adoração eterna a Ele (Ex 20, 22-26 e Ex 25, 8). O que poderia parecer a finalização de uma jornada, em verdade, é o início de uma nova vida plena em graça, ao adquirir templos para celebrar o que Deus disse a Moisés, ao se apresentar “Diga que Eu sou aquele que é” (Ex 3, 14-15). A responsabilidade de todo líder é ter persistência, preocupação com outrem e sabedoria para tomar decisões, mas sempre buscando ouvir aos que possam contribuir com suas experiências, a fim de que os objetivos de todos os liderados sejam alcançados. Moisés é exemplo de líder, pois é escolhido por Deus e, mesmo diante de inúmeras dificuldades, persiste, 90
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preocupa-se com a escravidão de seu povo (Ex 5, 22-23), ouve seu sogro, Jetro, quanto à delegação de funções menores que pudessem ajudar o povo (Ex 18, 19-27), e, em meio a toda dificuldade, clama a Deus, solicitando maneiras para continuar conduzindo o povo à terra prometida. Ser líder, como Moisés, portanto, é ter vocação para ser fiel a Deus, conduzindo o povo para a eternização do Seu nome. A fragilidade humana faz-se pelos relacionamentos presos a uma visão unilateral e, sem dúvida, ao se ter uma visão pessoal e egoísta, muito facilmente, o homem chega às práticas corruptas. Um exemplo dessa constatação pode ser encontrado nos escritos de Isaías: “Ai dos que promulgam leis iníquas, os que elaboram reescritos e opressão para desapossarem os fracos do seu direito e privar de sua justiça os pobres do meu povo, para desposar as viúvas e saquear os órfãos (...)” (Is 10, 1-2). O profeta Isaías, especialmente no capítulo 01, leva o leitor a refletir sobre as constantes práticas de culto sem verdadeira adoração a Deus (Is 1, 10-13). Isaías é contra a idolatria vulgar (Is 2, 18-21); ele profere a necessidade de se crer em um só Deus, Aquele que, de fato, preocupa-se com todos, não deixando de lado órfãos, viúvas e pessoas pobres (Is 1, 17). Muitos homens frequentavam os cultos, entretanto, ao se preocuparem apenas consigo mesmos, nas riquezas próprias, cometiam grandes injustiças sociais, ou seja, fugiam, totalmente das recomendações do Pai celestial. Para o profeta, servir a Deus deve ser sempre o objetivo comum (Is 11,9). Quanto aos dirigentes e legisladores, pessoas que estavam acima do povo, no que tange à economia, é notável uma conduta de atuante corrupção (Is 1, 21-23). Homens públicos que tinham como foco o enriquecimento econômico às custas da pobreza alheia (Is 3.15). Isaías, muito bem relata, ou melhor, denuncia a maldade humana, o egoísmo, a falta de escrúpulos dos dirigentes daquela época, mostrando que o povo simples, sincero e sofrido merece todo o cuidado e justiça (Is 11, 4). Deus não fecha os olhos para a maldade humana e, segundo o profeta, os usurpadores dos direitos do povo sofrerão duras consequências (Is 10, 1-4). Revista Científica - Teologia em Diálogo
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Se os ensinamentos de Isaías tivessem sido assimilados perfeitamente, na atualidade, não haveria tantos atos de corrupção – fato que deixa o ser humano fragilizado, sem caminhos a seguir, pois a corrupção parece, atualmente, ser prática incontestável. Diante desse fato, o país é dividido em dois mundos: os que corrompem e os que são corrompidos. De um lado ou de outro, está a falha, a fragilidade humana, pois nem sempre se comportam como cidadãos, capazes de exercerem e cobrarem seus direitos. A fragilidade humana também perpassa o período cristão. Cristo, na condição de homem, sempre esteve ao lado das pessoas menos favorecidas, doentes, dentre outras. Muitas vezes, para fazer-se entendido, teve de usar de parábolas para aclarar as ideias e tentar amenizar consequências drásticas da fragilidade humana. A título de exemplificação, é lícito citar a parábola do filho pródigo (Lc 15, 11-32). Por meio da incompreensão do irmão trabalhador, diante da festa ofertada ao outro irmão que gastara seu dinheiro pelo mundo, Cristo evidencia a incapacidade humana de enxergar alguém como um todo. Não importa o que fora antes o irmão e nem mesmo o seu arrependimento. O que vale é o erro cometido, ainda que uma só vez. Há, portanto, nessa parábola, a ideia de fortaleza do pai, de arrependimento do filho pródigo e de inveja do outro irmão. Retoma-se, pois, o sentimento de Caim, pois, mesmo não havendo morte, houve a anulação do reconhecimento fraternal. É possível verificar semelhante fragilidade na passagem bíblica em que Maria Madalena é acusada de ser indigna de se aproximar de Cristo, por ser vista como uma prostituta (Jo, 8, 3-11). Cristo, ao dizer a todos, que atirasse a primeira pedra quem não tivesse pecado, torna óbvio que o ser humano é cheio de falhas, mas só vê as falhas alheias. A presença de Madalena, pois, é marcante para que a fragilidade dela, enquanto mulher marginalizada por todos e, também dos demais cidadãos, que, embora ouvindo o desejo de piedade pregado por Cristo, foram impiedosos e mostraram–se enfraquecidos pela falta de misericórdia em seus corações. 92
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Até Cristo, o Filho de Deus, teve seus momentos de fragilidade, porém, como filho de Deus, conduzido por anjos, venceu os obstáculos e se fez ver, naturalmente, como ser forte: primeiro no deserto (Mt 4, 1-11), onde passou as tentações e se superou; posteriormente, mostrou-se frágil em dois momentos em que chegou a chorar: durante a morte de Lázaro (Jo 11, 35), seu amigo, e no momento em que chegara à Jerusalém (Lc 19, 41-44). Cristo, enquanto humano, é forte e frágil, conforme as situações em que vive. Entretanto, mais mentalmente enfraquecidas são as pessoas presentes em seu julgamento. Muitas já conheciam o homem Jesus, sabiam de sua bondade, de seu lado amigo; todavia, movidas por movimentos, talvez, preferiram a soltura de Barrabás, um bandido, à liberdade de Cristo (Mt 27, 11-26). Este, que teve alguns momentos de fragilidades ao pé da Cruz, mesmo tendo perguntado ao Pai por que o havia abandonado (Mt 27, 45-47), ao final, diz “Em tuas mãos, entrego o meu espírito” (Lc 23, 46). Assim fazendo, Cristo mostra-se forte, obediente e cumpridor da aliança com o Pai. Ele não é frágil, porém, frágil é a mente dos que o julgaram e condenaram. A ascensão de Cristo deixa notória a postura fortaleza de quem faz o bem e rejeita o mal.
A Fragilidade Humana Representada pelo Eu Narrativo de Bojunga Em O Rio e Eu, livro de Lygia Bojunga, há momentos impressionantes de verdadeiro encantamento pelo Rio de Janeiro: o eu narrativo, ao se deparar com Copacabana, encanta-se. Descobre que há um paraíso. O mar é lindo, as ruas são tranquilas, tudo é maravilhoso, mas como uma criança que cresce, torna-se adolescente e, depois, adulta; assim aconteceu com o Rio. O eu narrativo de Bojunga notou muitas mudanças e, ao dialogar com a cidade, personificada pela autora, demonstra suas frustrações, suas decepções e sua busca por resposta, a tentativa de redescobrir o antigo Rio. Revista Científica - Teologia em Diálogo
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Desde que eu vim viver contigo, você está se transformando e eu também. Até porque, desde o meu primeiro dia em Copacabana, o barulho da serra elétrica se intrometeu na tua cantiga do mar e, ano atrás de ano, eu vi teus quintais desaparecendo, tuas casas vindo abaixo, cedendo lugar a prédios cada vez mais altos, de uma mesmice inexpressiva, tão contrária a você. (BOJUNGA, 2010, p.41).
Por não o reencontrar, por amá-lo, mesmo assim, por sonhar com uma mudança que, a priori, parece difícil de acontecer, o eu narrativo de Bojunga mostra-se fragilizado. Ele é a representação de todo carioca: onde estão a paz, a tranquilidade e a beleza carioca? O que se pode fazer para mudar essa situação de caos pela qual passa a cidade? Sem respostas, o eu narrativo, assim como todo carioca ou habitante do Rio de Janeiro, vê-se fragilizado, descartado de quaisquer ações políticas e governamentais. Eu pedalei e patinei no teu asfalto. Patinava (...) e pedalava confiante em qualquer rua tua, pequena ou grande (...) meu esforço era impulsionar a perna pra roda rodar, o resto era só curtição (...). Eu te percorria, andava calçada atrás de calçada, num papo bom com uma amiga, pausando num banco, numa mureta, num bar, era tão do meu todo-dia, que andando sozinha numa rua vazia, ou num mais tarde da noite, eu não me lembro de ter me sentido ansiedade (BOJUNGA, 2010, p.39).
Por fim, ver o mundo em transformação, desejar acompanhar a modernidade, preocupar-se com a exagerada corrupção alheia, principalmente de políticos e administradores públicos, detectar a pobreza e nada poder fazer para solucionar tantas questões, vendo o ser humano, por um lado doente, pobre, sem perspectivas e, por outro, corrupto, capaz de pagar quaisquer quantias, principalmente, retiradas de cofres públicos e não poder fazer nada a fim de escapar de um processo administrativo, de 94
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uma bomba caseira ou spray de pimenta ofertados pelos guardas do governo, é tudo isso muito triste, lamentável, exemplo de que, de um lado e outro, há uma grande fragilidade humana. Apesar de toda a fragilidade já mencionada, é fundamental findar este artigo com um trecho de O Rio e Eu, em que o eu narrativo se reconcilia com o Rio: Faz tempo que você vem sofrendo o cerco que se aperta em torno dos superdotados. O cerco de todos que te assolam, que te exploram, que te aviltam, degredam e – quantas vezes! Em nome do encanto que têm por ti. Tem dias que acho que você vai vencer o cerco, neuras, violência, tudo! Outros dias, confesso, acordo menos otimista (...), mas acabo fechando contigo (BOJUNGA, 2010, p.85).
Eis, pois, a fragilidade humana: o homem vê-se cercado de sonhos; em seguida, enxerga a possibilidade de realizações desses sonhos, mas, como nem tudo ocorre do modo sonhado, o homem despenca-se, torna-se líquido, na linguagem de Bauman: dissolve-se nessa sociedade moderna. Tanto em Bojunga quanto em Bauman o discurso de fragilidade humana está associado ao processo de Kénosis, palavra grega que, de uma maneira simples, pode ser traduzida como “esvaziamento”. Se o homem é frágil diante da fortaleza do outro ou da falta de fortalecimento próprio, cabe trabalhar sua mente com o sentido Deus kenótico, e que Deus não é Deus sem o Filho e vice-versa. Veja o que ensina a esse respeito: É o Pai que se esvazia de sua condição de Pai para se encontrar no Filho, sem deixar de ser Pai; o Pai só é Pai em relação ao Filho, e o Filho que se esvazia de sua condição de Filho para se encontrar no Pai, sem deixar de ser Filho; o Filho só é Filho em relação ao Pai, e o Espírito Santo que é o próprio amor kenótico e a relação; o Espírito se dissimula do seu ser pessoa para ser a relação
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de amor entre o Pai e o Filho; ele é o movimento, a dinâmica, sem deixar de ser hipóstase (pessoa); é Pessoadom-que-se-dá. Fica abscôndito, como que dissimulado na relação e no amor entre o Pai e o Filho. O Pai é o amor que se doa, é o AMANTE; o Filho é o amor que recebe, o AMADO, e o Espírito é o próprio AMOR. 2 – Na Trindade econômica, no Deus que se revela na história da salvação e na nossa história, é a kénosis na nossa história. É o projeto de amor do Pai que se inicia na criação e na história do povo eleito, se plenifica no Filho por meio do Espírito até nossos dias.
Sônia de Almeida Barbosa Grund
Doutoranda em Humanidades, Culturas e Artes (UNIGRANRIO); Mestre em Língua Portuguesa (UERJ); especialista em Língua Latina (UERJ); graduada com Licenciatura Plena em Língua e Literaturas Portuguesas (UERJ).
Idemburgo Frazão
Prof. Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes (Mestrado e Doutorado) da Unigranrio; Bolsista de Produtividade – Funadesp/ Unigranrio; Líder do Grupo de Pesquisa CNPq – Margens da Literatura; Doutor em Literatura Comparada (UFRJ); Mestre em Literatura Brasileira (UERJ).
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Referências Bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido sobre as fragilidades dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. BINGEMER, Maria Clara. Revelação. Rio de Janeiro: PUC, 2012. BOJUNGA, Lygia. O Rio e eu. 3 ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2010. BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. 2 ed. Rio de Janeiro: Paulus, 2015. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 3 ed. São Paulo: Edusp, 2000. PEREIRA, José Carlos. Os sete dons do Espírito Santo e os dons da fé. Rio de Janeiro: PUC, 2013; São Paulo: Santuário, 2010. XAVIER, José Eduardo dos Santos Donizete. A descida do Deus Trindade – A Kénosis da trindade. Revista de Cultura Teológica - v. 16 - n. 62 - jan/março, 2008.
Inclusão e Humanidade
Breve Relato Sobre Deficiência Auditiva na EaD e no Evangelho de Cristo Roberta Andréa dos Santos Colombo Resumo A educação foi se desenvolvendo ao longo dos anos pela inserção de tecnologias digitais, o que permitiu uma maior possibilidade de ensino a distância. Por meio das tecnologias, a educação a distância ficou mais difundida e (re)conhecida no Brasil, ganhando mais confiança de pessoas que, antes, talvez por falta de conhecimento da história da evolução da EaD, não tenham se atentado para a qualidade dos cursos ofertados por grande parte das Instituições, como a Unigranrio, no estado do Rio de Janeiro. Trabalhando com a graduação a distância, obtive a possibilidade de ver como, de fato, a educação pode “abraçar” e incluir pessoas com deficiência, situação, claro, que também depende do professor e da vontade do aluno em querer desenvolver seus potenciais já adquiridos. Os desafios das escolas e dos professores é saber utilizar as novas tecnologias a favor dos alunos com deficiência para que, de fato, a tecnologia venha a ser inclusiva. Por isso, é necessário, também, o professor buscar conhecer seus alunos mesmo estando em uma sala de aula virtual, cujo horário e local são distintos. Este artigo trata sobre inclusão de pessoas com deficiência – com especificidades para a deficiência auditiva – no âmbito da educação, e como o Evangelho de Marcos aborda a deficiência em uma época que
as pessoas deficientes eram totalmente excluídas da sociedade. Como referenciais teóricos, utilizamos uma bibliografia voltada aos estudos sobre a educação a distância e deficiência auditiva, com destaque, respectivamente, para Pierre Lévy e Maria Cecília de Góes, bem como o livro de Marcos citado na Bíblia, que nos fornece importantes elementos para a compreensão do Evangelho acerca da relação de Cristo com as pessoas deficientes. Palavras-chave: Inclusão. Humanidade. Educação a Distância. Deficiência auditiva. Evangelho.
1. A Educação a Distância x Deficiência Auditiva A inserção de novas tecnologias na educação se apresenta cada vez mais no cenário brasileiro, permitindo que fatores que antes impediam a pessoa de estudar – e, assim, agregar mais aprendizagem em seus conhecimentos já apreendidos –, tais como a falta de tempo ou de campus universitário no local, falta de acessibilidade nos meios de transportes e até mesmo dentro de universidades, não venham ser mais um empecilho na busca por desenvolvimento pessoal e profissional. No que diz respeito ao desenvolvimento tecnológico e utilização desses recursos, Saviani (2007, p.10) menciona que a tecnologia utilizada na educação iniciou-se no contexto tecnicista. Nesse momento, retoma-se a pedagogia tecnicista por ser este, historicamente, o primeiro momento em que a tecnologia é inserida na educação. Nesse período, estendia-se uma visão negativa em torno da tecnologia, pois a mesma foi introduzida excessivamente na escola, transformando professores e alunos em meros executores e receptores de projetos elaborados de forma autoritária, distante do contexto social dos alunos.
Cury (2002) manifesta, ainda, que a ênfase dada à tecnologia na escola tecnicista favorecia o esvaziamento das 100
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salas de aula , em razão do modo descompromissado do uso da tecnologia em favor da educação e do mundo do mercado. O advento da tecnologia propiciou mudanças nas formas de registro e pensamento sobre a educação, a qual perpassou por diferentes desenvolvimentos culturais e sociais que permitiram a mudança desse cenário. Essa difusão expansiva fez com que o número de procura aos cursos ofertados fosse cada vez mais crescente, e muitas pessoas que, antes, não poderiam frequentar uma universidade por causa da falta de flexibilidade que a modalidade presencial contempla, hoje, podem desfrutar da tecnologia em seu favor na EaD, graças aos meios digitais utilizados, os quais englobam todos que podem se conectar à internet. Ao longo dos últimos anos, professores e profissionais da educação têm se apropriado cada vez mais de diversos recursos como meio de favorecer a aprendizagem. A educação a distância, que iniciou de forma oral e escrita, e, após, analógica, agora é digital. Segundo Pierre Lévy (1993), o conhecimento existente nas sociedades pode ser definido em oral, escrito e digital. Dentre os conhecimentos existentes nas tecnologias digitais utilizadas para a Educação a Distância, destaca-se a importância do computador e da internet para favorecer a mediação das aulas pelo Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), cuja sala de aula virtual possui recursos multimídias na forma escrita, oral, visual e auditiva. Essa evolução no cenário educacional pelo uso das tecnologias representa a possibilidade de interação efetiva entre pessoas de diferentes culturas e experiências. É nesse cenário diversificado que a EaD pode ser um canal de inclusão para pessoas com deficiência, uma vez que as tecnologias dispõem de ferramentas e recursos para que a educação seja disseminada e mediada pelo professor. Por meio dos Ambientes Virtuais de Aprendizagens (AVAs), professor e aluno trocam conhecimentos e experiências, gerando uma aprendizagem colaborativa no espaço on-line. Por essa interação, é possível o professor reconhecer uma deficiência do aluno pelas atividades ministradas ou pelo próprio aluno, Revista Científica - Teologia em Diálogo
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quando este informa ao docente. Sabemos que, no cotidiano, em função do grande número de alunos em uma sala de aula virtual, é difícil o professor saber se o seu aluno requer uma atenção mais cautelosa em razão de alguma deficiência, o que não implica dizer que esse aluno ficará isento de fazer as avaliações ou de outras atividades. Contudo, enquanto docentes, podemos utilizar a tecnologia a favor da educação, e, especificamente na EaD, em que professor e aluno estão separados fisicamente, é necessário ter uma atenção no material de aula que está disponibilizado no AVA. Retomando os conceitos estudados nas obras de Vigotski (1983), reflete-se sobre o papel da interação e da mediação no processo de ensino-aprendizagem. Ao disponibilizar um vídeo para servir como reflexão com base em um texto da aula, atentei-me para verificar o som e a imagem do conteúdo para verificar se atendia às necessidades propostas. Verifiquei, pois, que o vídeo possuía legenda, o que me chamou atenção, visto que o áudio do vídeo era em português e a legenda também. Um simples vídeo para uma aula neste semestre de 2017.2 na Unigranrio, que serviria para os alunos refletirem sobre a importância do “aprender a aprender”, serviu para minha própria reflexão: e se esse vídeo não tivesse legenda, será que ele atenderia a todos os meus alunos? A resposta para essa reflexão surgiu no fórum, quando uma aluna afirmou que não conseguia ouvir o áudio do vídeo porque era deficiente auditiva, perguntando se o texto que estava na legenda era o mesmo que estava transmitido na voz dos personagens do áudio. Uma colega de classe gentilmente respondeu à aluna que sim, que a legenda correspondia ao som, e eu ratifiquei a resposta dela e a agradeci por colaborar com a colega. Esse simples, mas não menos importante acontecimento, veio ao encontro do que chamamos de inclusão na educação, pois será que, de fato, estamos incluindo, ou afastando, os nossos alunos? Foi muito prazeroso verificar que a aluna aproveitou a aula e obteve, inclusive, nota máxima na avaliação (que foi 102
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o fórum avaliativo), mas, talvez, poderia ter sido o contrário. Precisamente, o estudo do uso de novas tecnologias na educação de surdos fomenta o conhecimento a respeito das pesquisas teóricas que tratam o tema, como também o destaque dado à questão. Mediante currículo, conteúdos escolares, próprios PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), o professor pode criar videoaulas, chats, fóruns de dúvidas ou fóruns avaliativos etc., ou seja, diferentes possibilidades de metodologias para se trabalhar em uma sala de aula, seja ela presencial ou virtual, pois podemos contar com os recursos tecnológicos e com a criatividade, gerando, assim, uma aula mais inclusiva, pois atenderá ao conhecimento sensorial do aluno. Entretanto, a educação inclusiva incita mudanças no cenário escolar e no modo de organizar o currículo. Quadros (2004, p.57) afirma que: [...] o currículo deveria estar organizado partindo de uma perspectiva visual/espacial para garantir o acesso a todos os conteúdos escolares na própria língua da criança, pois a língua oficial da escola precisaria ser, desde o princípio, a língua de sinais brasileira. É a proposição da inversão, assim se está reconhecendo a diferença. A base de todo processo educacional é consolidada por interações sociais. A língua passa a ser, então, o instrumento que traduz todas as relações e intenções do processo [...] o discurso utilizado na língua de sinais utiliza uma dimensão visual que não é captada por uma língua oral-auditiva.
Por muitos anos, as pessoas surdas passaram por diversos tratamentos, com a finalidade de aprenderem a oralidade. Com a função de “desenvolver” a audição e a possível linguagem oral, muitas crianças passavam por dolorosas seções para aprenderem a língua materna, pois desconsiderava-se o uso de uma língua não verbal para as pessoas que possuíssem algum grau de deficiência auditiva (JANUZZI, 2004, p.6). Revista Científica - Teologia em Diálogo
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A inclusão assumiu um espaço significativo em 1990, sendo considerada como um avanço em relação à anterior proposta de Integração de pessoas com deficiência à rede regular. Antes, não era o colégio que precisava se adaptar para receber as pessoas com alguma deficiência, mas, sim, as próprias pessoas deficientes precisavam se integrar, adaptarse àquele meio cujo espaço, até mesmo físico, não estava apto para atender às necessidades pessoais e acadêmicas. A Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) assegura que a educação de pessoas com deficiência seja parte integrante do sistema educacional. A Declaração remete a apontamentos da Declaração de Direitos Humanos, fazendo com que a educação especial seja vista como parte integrante da educação, assegurando o direito da educação em uma rede regular de ensino . Na Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), é garantido o oferecimento da educação especial como uma modalidade de ensino, preferencialmente na rede regular – incluindo, assim, o estudante na educação e na interação com seus colegas – disponível desde a educação infantil até a educação superior. Em 2002, foi homologada a Lei federal nº 10.436 51, que 51
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Art. 1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados. Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil. Art. 2o Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e empresas concessionárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais - Libras como meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil. Art. 3o As instituições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos de assistência à saúde devem garantir atendimento e tratamento adequado aos portadores de deficiência auditiva, de acordo com as normas legais em vigor. Art. 4o O sistema educacional federal e os sistemas educacionais
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reconhece a Língua Brasileira de Sinais como língua oficial das comunidades surdas, o que culminou em um crescimento social acerca das questões das pessoas surdas e possibilitou a abertura de oportunidades respaldadas pela lei, até mesmo, no mundo mercado. Posteriormente, em dezembro de 2005, a Lei de Libras foi regulamentada pelo decreto 5.626, apresentando orientações acerca da viabilização de propostas educacionais bilíngues. De maneira mais específica, o ensino de português como segunda língua para o sujeito surdo ocorre nas escolas de nosso país, principalmente entre os surdos mais jovens que, em decorrência das mídias, estão instigados a uma nova forma de interagir com a língua na modalidade escrita. Diante do que foi exposto, observa-se a necessidade de se aprimorar aos novos modos das tecnologias para surdos no cenário acadêmico, a fim de que a inclusão não seja somente no espaço acadêmico, mas em uma questão universal de humanidade.
2. Mais que uma Inclusão, um Exemplo de Humanidade A questão das pessoas com deficiências (sejam auditiva, visual, física, mental etc.) era tratada, antigamente, de forma brutal e sem igualdade no que diz respeito aos direitos de cidadania. Não havia lei que assegurasse os direitos das pessoas, quiçá, uma inclusão no meio acadêmico, uma vez que as pessoas com deficiência eram excluídas da própria sociedade e, às vezes, do próprio convívio familiar. Por muitos anos, na história, até
estaduais, municipais e do Distrito Federal devem garantir a inclusão nos cursos de formação de Educação Especial, de Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio e superior, do ensino da Língua Brasileira de Sinais - Libras, como parte integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs, conforme legislação vigente. Parágrafo único. A Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa. Art. 5o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 24 de abril de 2002; 181o da Independência e 114o da República.
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mesmo nos relatos bíblicos, as pessoas com algum tipo de deficiência eram vistas como alguém sem perspectiva de vida, e até mesmo como seres amaldiçoados, pois acreditava-se que, se eram daquele jeito (ou seja, deficiente), é porque eles ou algum ancestral havia cometido algum pecado, e, por isso, estavam sendo punidos; ou que possuíam essa deficiência porque foram amaldiçoados por alguém ou pelo próprio Deus. Como nas religiões, na sociedade em geral, as pessoas com deficiência ficaram por muito tempo escondidas do convívio social muitas vezes dentro de instituições especializadas. Nos anos 1970 e 1980, vivemos o conceito de integração social. Surgiram, por exemplo, entidades, centros de reabilitação, clubes sociais especiais, associações desportivas, todas dedicadas a essas pessoas com deficiências. A intenção principal era preparar essas pessoas para ingressar e conviver em sociedade com todos nós. Só que, nos últimos vinte anos, um novo conceito surgiu: a inclusão social, tomando forma e espaço na sociedade, focando a equiparação de igualdades como tema do milênio. (FIGUEIRA, 2015, p.170)
Porém, no Novo Testamento, vemos a questão da deficiência tratada em livros do Evangelho52, o qual nos mostra a relação que o próprio Jesus tinha para com as pessoas com deficiência. Segundo Emílio Figueira (2015, p.106), “a vinda de Jesus foi o início de uma mudança geral de mentalidade pautada pela inclusão dos menos favorecidos ao Cristianismo”. Nos três anos de ministério, Jesus teve uma atenção toda particular para com aqueles que, seja pelo tipo de doença ou deficiência, seja por sua condição social, eram os mais abandonados, excluídos do convívio social e da 52
Quatro livros da Bíblia são chamados Evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e João.
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participação no culto. Ele mesmo foi um excluído desde o primeiro dia de sua vida, quando seus pais não puderam encontrar lugar decente para seu nascimento (Lucas 2:7): “E deu à luz a seu filho primogênito, e envolveu-o em panos, e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem.” (Lc 2:7). Em seguida, teve de refugiar-se no Egito: “E, levantando-se, o expulsaram da cidade, e o levaram até ao cume do monte em que a cidade deles estava edificada, para dali o precipitarem.” (Lucas 4:29). (FIGUEIRA, 2015, p.110)
Cristo já promovia a inclusão, ensinando, por meio de palavra e exemplo, que é preciso cuidar e amar as pessoas “como a si mesmo”. Em uma sociedade que excluía os doentes e as pessoas com deficiência, Jesus aproximava-se deles e, com isso, uma multidão O seguia em busca de um milagre, de uma cura. O Evangelho de Marcos relata a aproximação e a relação de Jesus com pessoas deficientes, e atentaremos, aqui, para um homem surdo-mudo que foi levado até Jesus: A seguir Jesus saiu dos arredores de Tiro e atravessou Sidom, até o mar da Galileia e a região de Decápolis. Ali, algumas pessoas lhe trouxeram um homem que era surdo e mal podia falar, suplicando que lhe impusesse as mãos. Depois de levá-lo à parte, longe da multidão, Jesus colocou os dedos nos ouvidos dele. Em seguida, cuspiu e tocou na língua do homem. Então voltou os olhos para os céus e, com um profundo suspiro, disse-lhe: “Efatá!”, que significa: Abra-se. Com isso, os ouvidos do homem se abriram, sua língua ficou livre e ele começou a falar corretamente. Jesus ordenou-lhes que não o contassem a ninguém. Contudo, quanto mais ele os proibia, mais eles falavam. O povo ficava simplesmente maravilhado e dizia: “Ele faz tudo
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muito bem. Faz até o surdo ouvir e o mudo falar”. (MARCOS 7:31-37)
Como homem social, Jesus poderia simplesmente nem andar no meio das pessoas menos favorecidas ou dar algum tipo de atenção, uma vez que era comum à época não dar atenção aos excluídos, mas Jesus não somente parou para ver quem lhe foi trazido, como declarou a cura ao homem. Ele não fez para ganhar dinheiro ou para “aparecer” para os demais, pelo contrário, pediu que não contasse a ninguém, mas, como vimos, o povo maravilhado dizia ““Ele faz tudo muito bem. Faz até o surdo ouvir e o mudo falar” (MC 7:37). A humanidade de Jesus nos ensina que devemos nos aproximar das pessoas, e que há pessoas mais ou menos favorecidas, sendo que algumas necessitam de mais direitos para terem as mesmas condições de oportunidades, como no caso das pessoas com deficiência, que precisam ter os seus direitos reservados e respeitados, assim como os demais cidadãos. Antes, pessoas com deficiências eram habilitadas ou reabilitadas para fazer todas as coisas que as demais e, através da integração social, passavam a conviver em sociedade. Agora, na inclusão social, as iniciativas são da sociedade, que passou a se preparar, criando caminhos e permitindo que eles venham conviver com todos. Por esse motivo, cada vez mais estamos vendo crianças e pessoas com necessidades especiais em nossas escolas, no lazer e em todos os lugares da vida diária. E devemos estar preparados para essa convivência, aceitando as diferenças e a individualidade de cada pessoa, uma vez que o conceito de inclusão mantém este lema: Todas as pessoas têm o mesmo valor. (FIGUEIRA, 2015, p.170-171)
Aprendemos que o legado a nós deixado por Cristo é amar ao próximo, e, se amamos, não segregamos, pelo contrário, queremos unir, incluir. A educação a distância estreita essa 108
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relação de respeito que devemos ter com o nosso próximo, seja ele um colega de trabalho, um aluno etc. Nos relacionar com uma educação que permite ir além da sala de aula é fazer parte de um cenário social que visa aprendizagem, relacionamento. É preciso fomentar cada vez mais pesquisas no âmbito do desenvolvimento das pessoas surdas, para que estas possam ser, de fato, incluídas nos mais diversos setores da sociedade, e não somente na esfera religiosa, familiar ou educacional. Uma inclusão de verdade é global, universal. A perspectiva, nesse momento histórico da vida de Jesus relatada no Evangelho de Marcos, no Novo Testamento, considerando que todos nós possuímos diferenças que devem ser respeitadas e acolhidas, é mais que uma inclusão, é um exemplo de humanidade.
Conclusão As pessoas com deficiência, ao longo da história da humanidade, têm passado por diferentes tratamentos para integrar-se à sociedade, ou seja, elas precisavam se adaptar ao convívio social; vale dizer que as pessoas com deficiência podiam participar dos atos da vida civil, desde que se esforçassem. Como exemplo, o cidadão surdo precisava falar fluentemente. Somente nos anos 1990, o termo “inclusão social” ganhou força, e a promoção do direito à igualdade foi difundida na sociedade. No entanto, muito antes do termo “inclusão” existir, Jesus nos ensina, por meio do Evangelho de Marcos, que todas as pessoas possuem os mesmos direitos, até mesmo direito a uma cura e um milagre. Jesus não se limitava em estar com pessoas ditas como as mais favorecidas, pelo contrário, via as pessoas com igualdade, não fazia separação de pessoas deficientes ou doentes das demais pessoas, e difundia seus conhecimentos e sua Palavra para todos desejassem. Nos anos 1990, a educação a distância também era pouco conhecida no Brasil, mas, com a inserção das novas tecnologias que iam surgindo, a educação também começou a ganhar destaque para Revista Científica - Teologia em Diálogo
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uma modalidade que, até então, era analógica. Com a chegada da internet, os estudos a distância, geralmente por correspondência e/ou televisionados, foram ganhando espaços virtuais. Muitas pessoas que queriam estudar e obter um desenvolvimento pessoal e profissional, mas não conseguiam essa oportunidade por não terem tempo hábil de estar presencialmente em uma sala de aula, começaram a investigar na Educação a Distância, e, hoje, além de cursos de graduação, também há cursos de especialização e mestrado a distância. Com esse crescimento educacional tecnológico, barreiras que antes também impediam uma pessoa com deficiência de estudar, atualmente, não impedem na mesma proporção; a inserção de pessoas no âmbito acadêmico tornou-se mais viável com o auxílio da tecnologia, pois, hoje, é possível estudar de casa, por exemplo, ou uma pessoa surda, que não tenha a língua de sinais em sua sala de aula para lhe direcionar o conteúdo, pode ter, em uma sala de aula virtual, recursos que a ajudarão a participar efetivamente das aulas no espaço on-line. É nesse momento, que nós, professores, e a equipe multidisciplinar que há “por detrás” do espaço on-line devemos ter o cuidado no momento de inserir materiais de estudo que possam dialogar com todas as pessoas. Podemos verificar, por exemplo, se o vídeo inserido contém não apenas som e imagem, mas, também, legenda. É preciso, no entanto – para que essa inclusão seja realidade no âmbito nacional, e não apenas para pessoas com deficiência que possuam uma renda financeira mais estável ou alta –, de políticas públicas que promovam a customização das tecnologias que são utilizadas em favor da educação, pois, com maior acesso a essas tecnologias e à internet de banda larga com preço customizado, a pessoa não será apenas incluída no meio digital, mas também na área acadêmica, cuja área necessita da utilização de computador e internet para existir de modo abrangente. Por meio dessas tecnologias, a EaD é um caminho que possibilita a inclusão social, desenvolvendo pessoas não somente em suas conquistas pessoais, mas também profissionais. 110
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Para que essa inclusão seja eficiente, profissionais da área da educação precisam estar em contínuo desenvolvimento acerca das tecnologias inseridas no ambiente virtual de aprendizagem para poder dar suporte aos alunos e às demandas proporcionadas pelo crescimento da educação a distância. É certo que a EaD vem crescendo no cenário brasileiro, talvez não em passos largos, mas certamente em qualidade de ensino, inclusão e amor por quem trabalha com educação.
Roberta Andréa dos Santos Colombo
Graduada em Letras-Português/Literatura pela Universidade Estácio de Sá (2010); especialista em Literatura Portuguesa pela UERJ (2012); Mestre em Literatura Portuguesa (UERJ). robertas.colombo@unigranrio.edu.br
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Teologia e Ciência: Diálogo Possível? Uma Perspectiva Interdisciplinar Marcio Simão de Vasconcellos Resumo A proposta deste artigo é abordar a relação entre teologia e ciência, buscando identificar suas especificidades e seus pontos de contato. Teologia e ciência constituem duas áreas da vida humana que são profundamente necessárias à compreensão do mundo e da própria identidade de homens e mulheres. Nesse sentido, é necessário possuir uma perspectiva interdisciplinar, capaz de sustentar o diálogo entre essas dimensões do conhecimento. A teologia e a ciência saem enriquecidas desse diálogo: por um lado, ambas reconhecem seus espaços de reflexão; por outro lado, uma aprende com a outra novos enfoques metodológicos para refletir sobre a vida e a experiência religiosa. Nessa reflexão, a teologia de Teilhard de Chardin recebe especial importância, cujo pensamento tem ecoado novas maneiras de pensar o universo. Palavras-chave: Teologia; ciência; interdisciplinaridade; Teilhard de Chardin.
Introdução A relação entre fé e ciência, sobretudo as ciências naturais, é, historicamente, muito conturbada. De rejeições
mútuas – e mesmo violentas 53 – a tentativas frágeis de gerar concordismo entre elas, essas duas dimensões da vida humana caracterizam-se pela tensão, nem sempre produtiva, que gerou uma visão dualista (quase maniqueísta) da vida. A abertura ao diálogo, articulando coragem e discernimento – que foi marca da prática teológica da época patrística e medieval 54 –, foi sendo paulatinamente substituída, no decorrer da história cristã, por uma teologia feita em trincheiras, que recusava se abrir aos novos paradigmas formados. Tal resistência teológica a novos horizontes ficou bastante evidenciada na Modernidade, especialmente (mas não unicamente) por parte da teologia católica. Assim, a partir dessa perspectiva, ciência e fé tornam-se inimigas irreconciliáveis, cada uma lutando para resguardar seu espaço dos avanços da outra. Tal postura criou seus estereótipos: em múltiplas ocasiões, o cientista é visto pelo teólogo como o inimigo da fé (caracterizado, muitas vezes, injustamente, como o cético ateu), enquanto este é encarado pelo cientista como retrógrado e limitado em sua visão pré-moderna de mundo. Assim, se, por um lado, há o fundamentalismo teológico como um claro empecilho a uma compreensão de mundo mais integral e cientificamente sustentada, por outro lado, subsiste uma espécie de fundamentalismo científico, uma visão fechada da vida, que gera um subproduto da ciência: o cientificismo, cuja compreensão reduz drasticamente a vida humana a uma racionalidade considerada supostamente objetiva55. 53 54
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É possível lembrar o conflito entre a Igreja Medieval e Galileu Galilei, no século XVI, cujos desdobramentos, até recentemente, foram sentidos pela teologia em sua relação com a ciência evolutiva. Cf. RUBIO, Alfonso Garcia. A teologia da criação desafiada pela visão evolucionista da vida e do cosmo. In: AMADO, Joel Portella; RUBIO, Alfonso Garcia (orgs.). Fé cristã e pensamento evolucionista: aproximações teológico-pastorais a um tema desafiador. São Paulo: Paulinas, 2012, p.18. Cf., a respeito, a excelente análise feita por John F. Haught, especialmente em sua obra: HAUGHT, John F. Cristianismo e ciência: para uma teologia da natureza. São Paulo: Paulinas, 2009.
Teologia e Ciência: Diálogo Possível?
Em outras palavras, essa crise leva tanto a teologia como a ciência a perderem sua relevância para o ser humano e para a construção de uma sociedade mais justa e harmoniosa. Nesse sentido, portanto, cabe a necessidade de repensá-las a partir de um viés mais integrador. É o que veremos a seguir.
A Necessidade da Interdisciplinaridade O diálogo entre teologia e ciência exige, por sua própria natureza, uma perspectiva interdisciplinar. Essa abertura epistemológica, capaz de gerar diálogo entre essas dimensões do saber humano, só pode surgir em um ambiente desvinculado de uma visão de mundo positivista, característica do século XIX e início do XX. Assim, aquela espécie de saber totalitário (enciclopédico), marca dos séculos XIX e XX, seria abarcada por uma visão mais integradora. Os saberes “recortados” desse período seriam reunidos, em uma perspectiva de interdisciplinaridade, respeitando suas respectivas áreas, mas em mútua e constante relação, em uma verdadeira teia de relações. Assim, “fé e ciência devem ser domínios separados, mas devem trabalhar levando-se em conta”56. Tal relação de complementaridade só pode ocorrer quando a arrogância científica e/ou teológica cede lugar à humildade de quem se percebe como detentor de uma verdade não absoluta, mas parcial, ou quando percebe-se que ambas querem dar conta das questões que envolvem a existência humana, embora sempre de perspectivas diferentes. Para tanto, também é necessário que a teologia não se afaste do mundo, sob pretexto de salvaguardar a própria mensagem; caso o faça, ela poderá negligenciar a criação como espaço de vida e atuação divina e humana, gerando uma hermenêutica teológica reprodutora de uma divisão entre mundo 56
ARAGÃO, Gilbraz. Do transdisciplinar ao transreligioso. In: TEPEDINO, Ana Maria; ROCHA, Alessandro (orgs.). A teia do conhecimento. São Paulo: Paulinas, 2009, p.134.
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natural e sobrenatural que, aliás, tem se mantido atuante desde o início do cristianismo. Nas palavras de Alfonso Garcia Rubio (in MÜLLER, 2003): Não se pode negar que essa teologia tem orientado um tipo de existência que separa o mundo da salvação, a realidade da graça, a missão da igreja, o sentido dos sacramentos, a vida eterna, a oração, o mundo do sagrado etc., do mundo das realidades temporais, isto é, o mundo da economia, da política, do comércio, das finanças, da educação, da ecologia e assim por diante.57
Ao enxergar a criação com essa lente dualista, o cristão sente-se possibilitado a participar da liturgia da igreja, levantando mãos para adorar ao Deus criador, ao mesmo tempo em que, no “mundo natural” desvinculado de sua profissão de fé, vive alheio à ética do reino de Deus. Liturgia vazia torna-se companheira da manipulação, da dominação e da exploração do próximo e da criação, práticas dissociadas da fé por uma ruptura desastrosa entre criação e salvação. Mas como tornar realidade essa prática dialógica entre ciência e fé? Como superar visões redutoras, de ambos os lados, a fim de produzir um ambiente onde se possa “escutar e dizer, compreender e avançar, permanecer e mudar”58? Vale lembrar que, para a fé cristã – e, consequentemente, para a teologia que surge a partir dela –, não se relacionar com a cultura na qual está inserida significa trair seu próprio caráter, isto é, implica em não fazer a 57 58
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RUBIO, Alfonso García. Superação do dualismo entre criação e salvação. In MÜLLER, Ivo (org.). Perspectivas para uma nova teologia da criação. Rio de Janeiro: Vozes, 2003, p.217. AMADO, Joel Portella. Entre Deus e Darwin: contenda ou envolvimento? A respeito dos desafios que o pensamento evolucionista apresenta para a compreensão de Deus e vice-versa. In: AMADO, Joel Portella; RUBIO, Alfonso Garcia (orgs.). Fé cristã e pensamento evolucionista: aproximações teológico-pastorais a um tema desafiador. São Paulo: Paulinas, 2012, p.83.
Teologia e Ciência: Diálogo Possível?
inculturação necessária para afirmar as Boas Novas de Jesus. Aliás, essa relação entre fé e cultura, delineada pela expressão inculturação da fé, é ponto essencial para o cristianismo, pois a fé nele proclamada nunca é pura; antes, “toda fé é necessariamente fé inculturada”59. De fato, cada contexto cultural reinterpreta a palavra original da fé cristã a partir de suas próprias necessidades e características. Tudo isso porque é experiência humana; a experiência da fé, do encontro salvífico com Deus, sempre é previamente interpretada. Se negligenciarmos essa necessidade de refletir sobre a inculturação da fé, e de dialogar com a cultura que vivemos, perdemos o elemento essencial à própria fé cristã. A fé que surge do evangelho não é mera representação, morta e estéril, mas, sim, ação, práxis, que se insere no cotidiano das pessoas. Portanto, novas visões de mundo exigem novas formulações da fé e criativas maneiras de expressá-la. Sendo assim, a teologia também precisa ser considerada por um novo ponto de vista. Para tanto, podemos propor duas abordagens diferentes e complementares que se constituem em dois caminhos possíveis para essa reelaboração. Nessa jornada, exige-se uma perspectiva interdisciplinar, que una, em diálogo, ciência, teologia e cultura. Trata-se de rever conceitos da teologia e da pastoral, objetivando um caminhar mais integrador entre as múltiplas dimensões da vida humana. Do ponto de vista da fé cristã, quais caminhos podem ser traçados aqui?
Caminhos Teológicos e Pastorais para o Diálogo Teologia-Ciência O primeiro caminho impele a teologia a repensar sua imagem de Deus. Fazer isso implica, antes de tudo, manter a perspectiva do Mistério em suas afirmações sobre Deus. Nesse sentido, a teologia deve lembrar que toda linguagem religiosa é simbólica; remete a algo transcendente que só é percebido 59
MIRANDA, Mario de França. Inculturação da fé: uma abordagem teológica. São Paulo: Paulinas, 2009, p.63.
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porque se revelou, antes, na história humana. Daí o fato de poder afirmar, também, que a impossibilidade da linguagem em apresentar Deus – como um ser engaiolado definido/confinado – não é mera questão linguística. De fato, todas as falas humanas sobre Deus fracassam em defini-lo. Esse fracasso, contudo, não é indicativo de uma impossibilidade de se relacionar com Deus; pelo contrário: esse Deus – que é Mistério – escolheu se revelar, em uma proposta amorosa e graciosamente relacional, aos seres humanos. Por isso, tanto o conteúdo como a forma dessa revelação são essenciais para a teologia em seu diálogo com a ciência moderna, pois muito da rejeição por parte de cientistas à religião cristã surge do tipo de imagem que a teologia constrói de Deus. Essa questão é extremamente séria e atual. De uma perspectiva cristã, imagens de Deus, inteiramente dissociadas da vida humana e da própria revelação neotestamentária a respeito de Deus, revelado em Jesus, podem servir de máscara para uma certa arrogância teológico-eclesiástica de quem quer se apresentar como porta-voz da vontade absoluta da divindade. Normalmente, quando isso ocorre, vincula-se uma imagem incorreta de Deus a um pensar incoerente sobre Deus, causando muitos prejuízos à vida dos crentes e vários questionamentos aos não crentes60. O conteúdo da revelação de Deus é Jesus Cristo. Isso 60
Adolphe Gesché nos lembra que a pergunta sobre Deus é parte integrante da história humana. “A palavra Deus existe. Sem dúvida, é a única certeza que consegue obter unanimidade. Com exceção disso, há a contenda para saber se essa palavra tem um correspondente ou não e o que significa. [...] Com efeito, uma coisa é certa: ‘um dia, em algum lugar’, homens forjaram essa palavra (e outros continuam recorrendo a ela). Ao menos uma vez (de fato, incontáveis vezes), essa palavra fez sentido para o homem. Ora, nada daquilo que teve (e tem) significado para o homem pode ser escamoteado. Portanto, para qualquer um, a questão de Deus se torna, sob essa forma e por esse viés, uma questão indiscutível e primeira: qual é essa experiência de linguagem? O que ela reveste? Qual realidade se dá a ver, a ler, a decifrar?” (GESCHÉ, 2004, p.5-28). No restante de seu livro, Gesché apresenta vários caminhos para identificar os traços bíblicos do Deus que se revela no Judaísmo e no Cristianismo. Cf., especialmente, o capítulo 3 desse livro.
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quer dizer, primeiramente, que Deus se revela no humano, no Logos que se faz fraqueza humana, que se esvazia de si mesmo em serviço (cf. Fl 2.5-8)61. Em outros termos, é a encarnação que nos permite conhecer a Deus. Negligenciar essa imagem de Deus dada em Jesus resulta em uma prática teológica agressiva, fundamentalista e fanática que, em nome desse Deus criado pelo encontro da filosofia com a sede de poder do ser humano, mata, destrói, esmaga e exclui muitas pessoas. Essa revelação de Deus em Jesus implica, também, refletirmos sobre a forma pela qual ela ocorre. A revelação surge do encontro entre o desejo de Deus de relacionar-se com a criação (o Deus Trindade e a kênosis, esvaziamento), que ele realiza ao cumprir esse intento; é esse desejo de alteridade divina, de se relacionar com o outro criado, que faz nascer a teologia como proposta de reflexão sobre o criador. Parece estranho, e é por isso que, atualmente, a teologia queira se desvencilhar dessas propostas. Ora, um Deus relacional implica em uma teologia igualmente relacional: um Deus que se esvazia de si mesmo para, em Cristo, reconciliar consigo mesmo toda a criação (2ª Co 5.19), requer uma teologia que faça o mesmo em prol do outro. Por isso, é incompreensível uma teologia que se negue a apresentar-se, humilde, ao diálogo com a ciência e a cultura. Por seu próprio caráter, a revelação diz respeito ao que se passa no universo, mas trata de uma dimensão da realidade que passa, necessariamente, despercebida pela ciência. E uma teologia da natureza, sem negar o valor e a importância da ciência, propõe níveis de profundidade na natureza que a ciência simplesmente não pode atingir. Assim, teologia e ciência têm seu espaço necessário na compreensão do universo. 61
O termo grego usado pelo apóstolo Paulo para se referir a Jesus, nessa passagem da Carta aos Filipenses, é kênosis. Esse termo significa “esvaziamento” e faz referência direta à encarnação de Deus em Jesus de Nazaré, isto é, à afirmação da fé cristã de que Jesus é a expressa imagem do ser de Deus (cf. Hb 1. 3). Lido nessa perspectiva, a kênosis representa um dos mais importantes temas teológicos contemporâneos.
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A revelação cristã aponta para um Deus que se revela por meio do mundo observável (tanto pela teologia como pela ciência); por isso, como diz Haught (2009, p.61), “em virtude da encarnação, todo drama da natureza que se desdobra ao longo de bilhões de anos é também a revelação de Deus”62, e, além disso, “o universo como um todo, em virtude da encarnação, encontra-se indissociavelmente conexo com a revelação de Deus em Cristo”63. Por isso, revelação é muito mais do que um conjunto de informações sobre Deus. Antes, revelação é “dom do próprio ser e individualidade de Deus para e por meio de todo o universo”, e seu conteúdo é “o infinito mistério do próprio ser de Deus.”64. Por isso, a imagem de Deus que surge da fé cristã é construída sobre dois fundamentos: a autoabnegação humilde de Deus, eterno gesto de rebaixamento que possibilita a existência da criação, isto é, a kénosis divina; e a promessa de Deus, que abre espaço à afirmação do futuro, isto é, a esperança escatológica. Dessa forma, a humildade e a promessa divinas são expressões do amor incondicional que constitui a essência de Deus: porque ama, Deus se revela e, ao se revelar, se compromete com sua criação. Essa imagem revelada de Deus encontra sua plenitude em Jesus, em quem a kénosis assume carne, suor e sangue. Nesse sentido, Jesus revela um Deus “vulnerável, sofredor”, que, em razão de seu amor pela criação, se esvazia de sua condição de Deus “todo-poderoso” para se entregar ao universo. De igual modo, o Deus que se revela possibilita um futuro sempre novo. Um segundo caminho possível para a teologia nesse diálogo com a ciência conduz na direção de repensar sua imagem acerca do ser humano e do cosmos. Nesse sentido, vale ressaltar que o desejo pelo Mistério, que caracteriza o ser humano, é revelacional. Assim, o mistério como condição antropológica é anterior a todas
63 64
HAUGHT, John F. Cristianismo e ciência: para uma teologia da natureza. São Paulo: Paulinas, 2009, p.61. Ibidem. Ibid., p.63-64.
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as coisas. Nesse voltar-se ao Mistério, a teologia encontra seu papel de responder às questões-limite: sofrimento, dor, angústia existencial e morte. Aliás, essa experiência é vivida por Jesus. Na cruz, diante de uma experiência-limite (a morte precedida pelo sofrimento injusto (Lc 23.41)), Jesus faz uma questão-limite: “Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27.46). Mas, diante desse mistério, Jesus se lança com esperança nos braços do Pai: “Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito” (Lc 23.46). Entre essas duas frases, há palavra de perdão aos que não souberam perceber um Deus que ama em sua kênosis na cruz; entre essas duas frases, também subsiste o abismo do desespero e da perda de sentido que uma visão fundamentalista da vida (seja ela religiosa ou científica) pode produzir. Esse mistério de Deus permeia a criação inteira, gerando vínculos de relação intersubjetiva entre os seres criados. Nesse sentido, toda a criação participa do mesmo mistério de Deus, não em uma perspectiva panteísta (Deus não se dissolve na criação), mas, sim, em uma leitura panenteísta, isto é, a presença de Deus ilumina toda a realidade, sem se confundir com as coisas criadas. Isso confere uma dimensão mística à existência humana e ao cosmos. É nesse ponto que as reflexões propostas por Teilhard de Chardin revelam-se necessárias ao tema. Para ele, o universo conta com uma noosfera, isto é, a esfera da mente: uma “camada de pensamento da história da Terra, uma rede formada de pessoas, sociedades e criações culturais e tecnológicas.” (HAUGHT, 2009, p.113)65. Segundo Teilhard, a noosfera é um dos mais interessantes desenvolvimentos da história do universo. O empirismo mais lato de Teilhard, que restitui a dimensão do pensamento a seu domínio próprio na natureza, coloca em xeque a metafísica materialista do naturalismo científico subjacente ao moderno reconhecimento de que o universo carece de propósito. 65
Ibid., p.113
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Ao mesmo tempo, a recusa de Teilhard a separar a subjetividade ou o pensamento da natureza como um todo, proporciona à teologia um meio de tornar inteligível a crença cristã, segundo a qual Deus atua na natureza de maneira muito íntima e efetiva, ainda que sempre misteriosa.66 (HAUGHT, 2009, p.113-114)
Dessa forma, um reino de matéria desprovido de mente nunca existiu, já que a matéria já estava impregnada na mente e no espírito desde o início do universo. Além disso, não mais se enxerga a vida pela lente dualista do corpo versus espírito, pois, para Teilhard, matéria e espírito “são rótulos de duas tendências polares na evolução da natureza, e não dois tipos isolados de substância. (...) Além disso, é o espírito, e não a matéria, que imprime solidez e consistência ao cosmo”67. Além da dimensão mística (fundamentalmente necessária para o fazer e o refletir teológico em nosso tempo), essa perspectiva resgata uma compreensão salvífica do cosmos. “A criação já é o começo da salvação. Na criação, encontramos já o movimento kenótico em Deus” (AMADO; RUBIO, 2012, p.38)68. E mais: o universo inteiro é ressignificado como espaço litúrgico para celebrar a Deus, rompendo toda a ótica dualista. O universo é visto como espaço de vida, e não de morte. Aliás, sob a perspectiva da teologia da criação, Deus não criou ou criará; Deus cria. O sábado do descanso divino não é ausência do ato criativo de Deus, mas, sim, convite à criação (celebrando, criando) desse ato. Metaforicamente, o convite para dar nome aos animais (cf. Gn 2) ainda permanece sendo ofertado aos seres humanos contemporâneos. Aceitar tal convite consiste em reconhecer 66 67 68
Ibid., p.113-114 Ibid., p.114 RUBIO, Alfonso Garcia. A teologia da criação desafiada pela visão evolucionista da vida e do cosmo. In: AMADO, Joel Portella; RUBIO, Alfonso Garcia (orgs.). Fé cristã e pensamento evolucionista: aproximações teológico-pastorais a um tema desafiador. São Paulo: Paulinas, 2012, p.38
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a própria responsabilidade na construção do mundo e no seu cuidado. Graças à vida exuberante que surge de Deus, como dom à sua criação, o sol levanta-se todas as manhãs, de forma regular, “por nunca se cansar de levantar-se”; ou, ainda: Talvez Deus seja forte o suficiente para exultar na monotonia. É possível que Deus, todas as manhãs, diga ao sol: “Vamos de novo”; e, todas as noites, à lua: “Vamos de novo”. Talvez não seja uma necessidade automática que torna todas as margaridas iguais; pode ser que Deus crie todas as margaridas separadamente, mas nunca se canse de criá-las. Pode ser que ele tenha um eterno apetite de criança; pois nós pecamos e ficamos velhos, e nosso Pai é mais jovem do que nós. A repetição na natureza pode não ser mera recorrência; pode ser um BIS teatral.69
Reafirma-se, portanto, a atuação relacional de Deus com sua criação, como resultado de sua kênosis, que o leva, em nome de seu amor, a dar espaço para que o outro seja, bem como a esperança cristã de que toda essa criação está conectada com o ser humano e será, também, integralmente redimida por Deus-Criador-Salvador (cf. Rm 8.19-23). Tal percepção, profundamente teológica, auxilia-nos a desenvolver uma teologia da criação mais integral e integradora.
Conclusão A relação entre teologia e ciência ainda precisa ser desenvolvida de forma mais plena e dialogal. Essa abordagem interdisciplinar, longe de descaracterizá-las enquanto disciplinas independentes, auxilia no enriquecimento tanto da teologia como 69
CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p.100.
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da ciência. Se a teologia afirma a criação como espaço onde Deus se faz presente, animando todas as coisas com a força de sua Ruah, a ciência cria novas e interessantes lentes de análise para enxergar tal criação de um viés mais meticuloso. Tal abordagem também propicia análises sobre as questões ecológicas, vistas tanto sob o ponto de vista da ciência como da teologia. Exemplo recente dessa proposta, aliás, é a Carta Encíclica Laudato Si, elaborada pelo Papa Francisco, em 2015. Esse documento da Igreja mereceria maiores estudos, sobretudo de grupos protestantes no Brasil. É nesse sentido que, do ponto de vista cristão, é possível tratar do tema da entropia, isto é, a destinação do universo para sua destruição. Com base nessa nova imagem de Deus, do ser humano e do cosmos, inter-relacionados mutuamente, não se compreende a entropia como palavra definitiva para o futuro do ser humano; pelo contrário: a entropia anuncia, paradoxalmente, um novo momento criacional. O caos é combustível da evolução do mundo rumo ao seu pleno desenvolvimento. Em termos teológicos, poderíamos dizer que a morte de Cristo na cruz foi um momento entrópico – a entropia faz parte do universo em evolução –, pois dela surge o novo. Nesse sentido, a ressurreição de Cristo anuncia o fim da entropia, cujo clímax é a nova criação. Só quando se vê a ressurreição como anúncio do fim da entropia, pode-se pensar em um tempo (eternidade) em que não haverá mais entropia, quando Deus “lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram” (Ap 21.4). Dessa forma, quando Deus for tudo em todos (I Co 15.28) e “quando este corpo corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal se revestir de imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: tragada foi a morte pela vitória.” (I Co 15.54), então a morte (entropia) será vencida; por isso, a entropia não tem a última palavra: ela é necessária para o processo evolutivo, maneira que Deus escolheu para conduzir sua criação, havendo o momento de seu fim. O futuro é sempre melhor, pois é futuro do criador. Todo pecado entrópico, isto é, toda destruição da alteridade do 126
Teologia e Ciência: Diálogo Possível?
outro será revertida na afirmação da individualidade de cada ser humano, reconhecida e valorizada por Deus, que dá a cada um “uma pedrinha branca e sobre ela um nome novo que somente quem o recebe conhece” (Ap 2.17). Pensar na teologia com base nessa esperança é a maneira de se relacionar com a ciência e com a cultura que nos cerca.
Marcio Simão de Vasconcellos
Doutorando em Teologia Sistemático-Pastoral (PUCRJ); Mestre em Teologia Sistemático-Pastoral (PUC-RJ); Especialista em Ciências da Religião (FATERJ); Bacharel em Teologia (UMESP e STBSB).
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Referências Bibliográficas AMADO, Joel Portella; RUBIO, Alfonso Garcia (orgs.). Fé cristã e pensamento evolucionista: aproximações teológicopastorais a um tema desafiador. São Paulo: Paulinas, 2012. CARDENAL, Ernesto. Vida en el amor. Buenos Aires: Carlos Lohlé, 1972. CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008. GESCHÉ, Adolphe. O sentido. São Paulo: Paulinas, 2005. HAUGHT, John F. Cristianismo e ciência: para uma teologia da natureza. São Paulo: Paulinas, 2009. MIRANDA, Mario de França. Inculturação da fé: uma abordagem teológica. São Paulo: Loyola, 2001. MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida: uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 2010. MÜLLER, Ivo (org.). Perspectivas para uma nova teologia da criação. Petrópolis: Vozes, 2003. SCHILLEBEECKX, Edward. História humana: revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994. TEPEDINO, Ana Maria; ROCHA, Alessandro (orgs.). A teia do conhecimento: fé, ciência e transdisciplinaridade. São Paulo: Paulinas, 2009.
Martinho Lutero
Um Cristão que Buscou Responder às Questões do seu Tempo Antonio Lucio Avellar Santos Resumo Este artigo busca apresentar a importância do conceito de sola scriptura (somente as Escrituras), uma das cinco solas desenvolvidas pelo reformador Martinho Lutero. Buscase, portanto, especificamente nela, a pluralidade de possíveis interpretações das Escrituras e sua reserva de sentido, a fim de que possam responder às perguntas de homens e mulheres em seus presentes histórico-culturais. Lutero, como homem do seu tempo, vivia constantemente angustiado, ora pela terrível situação da condição humana no seu momento histórico, ora pelo silêncio de sua igreja em reformular o seu discurso religioso, que apresentava um Deus estranho, que não respondia e nem agia por intermédio de sua igreja diante daquele contexto social trágico. A livre interpretação das Escrituras (centralizaremos, aqui, nos Evangelhos), foi o exercício hermenêutico que possibilitou a Lutero criticar a tradição de sua igreja. As mudanças sugestionadas por Lutero a partir das análises das Escrituras não surtiram o efeito desejado; no entanto, possibilitaram a ele uma nova experiência fenomenológica com a Palavra. Assim, o conceito de sola scriptura, ontem e hoje, propõe uma abertura das Escrituras aos novos horizontes culturais, porém, à luz de Jesus Cristo revelado nos Evangelhos, buscando respostas às situações
de crise de todo e qualquer presente histórico-cultural, em que se faz necessário um novo agir da igreja cristã. Palavras-chave: Cultura; Idade Média; Martinho Lutero; Reforma Protestante; Sola Scriptura.
Introdução O atual contexto funesto da sociedade brasileira impulsiona a igreja cristã a traçar metas a fim de responder às inúmeras crises de nossa sociedade. Ainda que tais crises sejam constantes na história do Brasil, hoje, observamos um agravamento em todas as áreas que compõem nossa realidade. Os indicadores sociais relacionados a desemprego, violência, saúde, educação etc. são alarmantes. Em grande medida, tais indicadores sofreram alterações em razão da corrupção da classe política, o que envolve, também e infelizmente, a participação de boa parte dos chamados representantes do povo evangélico: a bancada evangélica. Nesse sentido, compreendemos o papel das igrejas cristãs como denunciadora de tais injustiças, as quais afetam principalmente os mais sofridos em nossa sociedade. Jesus de Nazaré da Galileia, o Cristo, é o centro de toda teologia produzida, e é por meio das Escrituras, principalmente nos Evangelhos, que podemos traçar nossas metas para respondermos as crises presentes em nosso contexto de vida. Para que isso seja possível, precisamos compreender minimamente o que é cultura. Esse é o primeiro ponto desenvolvido em nosso artigo, pois cada horizonte cultural possui padrões de comportamento definidos. Após um breve apanhado sobre cultura, abrimos a segunda parte dessa comunicação buscando compreender a situação europeia ao longo da Idade Média, mas centrando nossos esforços em seu momento tardio, correspondente ao surgimento da Reforma Protestante em 1517. Aqui, podemos 130
Martinho Lutero
observar as inúmeras crises nesse momento histórico: fome, miséria, doenças, junto a um discurso religioso obtuso em meio a um clero corrupto. Na terceira parte, desenvolvemos brevemente alguns aspectos da vida do monge agostiniano alemão Martinho Lutero (1483-1546), identificando que todo o contexto social e religioso de sua época afetava-o existencialmente, bem como a vida da população nas grandes cidades e nos campos daquela Europa no fim da Idade Média. Ainda em Lutero, observamos o seu conceito da livre interpretação das Escrituras (sola scriptura), fundamento reformador importante que permitiu contrapor a imagem de Deus produzida por sua igreja, com a realidade viva de Jesus de Nazaré nas narrativas dos Evangelhos. Por fim, aventamos a necessidade das igrejas cristãs brasileiras retornarem ao princípio reformador de análise das Escrituras, a fim de responder às crises de nosso tempo, à luz da vida do Crucificado. Tal padrão hermenêutico está fundamentado na centralidade de toda produção teológica cristã na história, isto é, partindo das palavras e gestos do próprio Senhor, conforme apresentado pelos Evangelhos.
Breve Conceito de Cultura Antes de compreendermos melhor os atos de Martinho Lutero e seus fundamentos teológicos reformadores, precisamos conceituar, minimamente, o termo cultura. Ainda que o conceito sobre aquilo que seria cultura não fosse analiticamente possível nos tempos da Reforma, podemos retroprojetar os conceitos modernos da pesquisa, a fim de trazer luz para o momento reformador. Nesse sentido, cultura é “todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”.70 70
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 16 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.14.
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Ou seja, tudo aquilo que homens e mulheres produzem em uma dada sociedade, dentro de sua história, é cultura. A citação abaixo mostra, em uma linguagem prática, algumas formas de comportamento cultural em meio aos povos. Esta comparação pode começar pelo sentido do trânsito na Inglaterra, que segue a mão esquerda; [...] [Na França] rãs e escargots (capazes de causar repulsa a muitos povos) são considerados como iguarias [...] [No Japão] o harakiri (suicídio ritual) sempre foi considerado como uma forma de heroísmo [...].71 (LARAIA, 2003, p.15)
Nesse sentido, alguns comportamentos citados acima, que podem nos causar espanto e preconceito, são classificados, principalmente pela ciência antropológica, como patrimônio ou bens culturais de uma sociedade ou povo específico. Para que certos hábitos ou costumes sejam identificáveis em meio aos povos pelos antropólogos, é necessário que esses grupos tenham legitimado tais comportamentos. Quando observamos o harakiri, o suicídio ritual em meio aos japoneses, um ato de violência contra a própria vida, nos espantamos que isso seja classificado como um ato cultural. Porém, no Japão, em determinadas situações da vida social, o atentado contra a própria vida é aceitável e, até mesmo, necessário, pois, a fim de corrigir uma ruptura moral, é fundamental limpar a honra. “A ação agressiva mais extensa empreendida por um japonês moderno contra si mesmo é o suicídio. O suicídio, adequadamente executado, de acordo com seus princípios, limpa o nome e reabilita a memória” (BENEDICT, 2002, p.142).72 71 72
Ibidem, p.15. BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada: padrões da cultura japonesa. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2002, p.142.
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Nas informações acima, ao intencionar o suicídio, buscando honrar o seu nome ou de sua família, por exemplo, o executor precisa fazê-lo adequadamente. Portanto, a autodestruição nos padrões da cultura japonesa não se desenvolve de qualquer forma. Por ser cultural, a ação suicida no Japão, à época da pesquisa de Benedict73, conecta-se aos padrões culturais estabelecidos. O devedor omisso no dia de Ano Novo, o oficial que se mata para comprovar que assume responsabilidade de alguma lamentável ocorrência, os amantes que selam o seu amor impossível num duplo suicídio, o patriota que protesta a protelação por parte do governo da guerra com a China, estão todos, assim como o menino que é reprovado no exame ou o soldado fugindo à captura, voltando contra si mesmos uma violência definitiva. 74
Portanto, os padrões culturais são determinantes para a conduta moral de um povo em particular. No Japão, à época das pesquisas de Benedict, conforme os exemplos acima, temos uma série de condutas comportamentais, que nos apresentam negativamente, o que não deve ser feito no Japão. Romper, de forma consciente, com tais padrões culturais estabelecidos no Japão, aponta para uma única alternativa, a fim de limpar a honra - a autodestruição - e, mesmo assim, um ato que, como em todo ritual, necessita ser executado conforme as regras já fixadas, preestabelecidas. No Brasil, as questões culturais também revelam aquilo que somos. Possuímos hábitos e costumes que são condicionados, 73
74
Nas palavras da própria Ruth Benedict, “Em junho de 1944, recebi o encargo de estudar o Japão. Pediram-me que utilizasse todas as técnicas que pudesse, como antropóloga cultural, a fim de decifrar como seriam os japoneses.” (BENEDICT, 2002, p.11) Ibidem, p.142.
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segundo a maioria das pessoas, nas regiões geográficas que compõem o Brasil. Nossos costumes alimentares são um pequeno exemplo de nossa variedade cultural. Iguarias como feijoada, baião de dois, tutu de feijão, churrasco, buchada de bode, polenta, assim como tantos outros pratos da culinária brasileira, definem quem somos perante a nós mesmos, quando consideramos a imensa territorialidade brasileira; mas também nos define perante ao estrangeiro que deseja conhecer nossas maravilhas. A identidade se constrói duplamente. Por meio dos dados quantitativos, onde somos sempre uma coletividade que deixa a desejar; e por meio de dados sensíveis e qualitativos, onde podemos ver a nós mesmos como algo que vale a pena. Brasil não é mais a vergonha do regime ou a inflação galopante e “sem vergonha”, mas, sim, a comida deliciosa, a música envolvente, a saudade que humaniza o tempo e a morte, e os amigos que permitem resistir a tudo.75
As Crises e o Discurso Religioso no Contexto Europeu Acima, buscamos conhecer, ainda que de maneira superficial, o que seria cultura, em seus padrões configurados e determinados pela própria dinâmica da vida social na diversidade de povos e nações. Partindo disso, buscaremos compreender a Reforma Protestante, em meio a um fundamento particular: a valorização das Escrituras, centrada nos Evangelhos, revelando, assim, um padrão de comportamento para a igreja cristã a partir de Jesus de Nazaré. 75
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 2001, p.19.
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Sendo Lutero um homem do seu tempo, é necessário saber o que acontecia não somente na sua terra natal (Alemanha) do século XVI, mas no contexto da Europa ao longo da Idade Média. A Reforma Protestante, em 1517, revelou questões que estavam muito além das crises internas daquele país. A partir do contexto alemão, na leitura da própria vida de Martinho Lutero, é possível um vislumbre das trágicas condições de vida no continente europeu. Tal realidade já vinha sendo sentida por toda Idade Média. A fala de Jean Meschinot76, já próxima ao fim do século XV, na Europa, apresentava um sentimento comum às pessoas que viveram naquele tempo de desespero. Ó vida miserável e tão triste! (...) Sofremos com a guerra, a morte e a fome; o frio e o calor, o dia e a noite esgotam nossas forças; as pulgas, a sarna e tantos outros vermes fazem guerra contra nós. Tem, portanto, piedade de nós Senhor, de nossas pessoas perversas que cuja vida é tão curta.77
As palavras de Meschinot revelam um momento histórico de desespero e melancolia diante das mazelas que a vida apresentava naquele período; tempos de incertezas em relação ao futuro do povo Europeu. A palavra “crise” ecoava por toda a Europa, portanto, nessa Idade Média tardia, quem poderia deter a fúria de Deus? Os homens sabiam que a fúria do Senhor estava diretamente relacionada às más ações de seus servos nas igrejas; assim era a “mentalidade medievaltardia”. 78
76 77 78
Poeta bretão que escrevia em francês. Viveu na Bretanha, França, entre 1420-1491. LINDBERG, Carter. As reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001, p.34. Ibidem, p.39.
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No entanto, em tempos de crise, alguns homens também viam oportunidades para um novo começo. Nesse sentido, é em meio às desgraças e incertezas do amanhã que se pode refletir a possibilidade e necessidade de um novo fazer. As crises estão relacionadas a toda história da humanidade e, portanto, não é uma exclusividade da Idade Média. O período medieval apresentava uma forte presença do simbolismo religioso, conforme interpretado pela Igreja Católica. Seu discurso, à época, buscava ordenar às sociedades nos contextos em que a igreja estava mais presente. O discurso, portanto, apresentava certa imagem de Deus, conforme estipulado pelos padrões da igreja mãe, o que em nada amenizou a angústia dos mais sofridos; na verdade, recrudesceu o desespero humano naquele momento histórico. As catástrofes naturais foram comuns naquele período, ocasionando, por inúmeras vezes, a perda da colheita. Com o aumento da população e a crise na safra agrícola, milhares de pessoas morriam de fome. O Imperador Carlos IV escreveu a respeito do fato de ter sido despertado uma manhã por um cavaleiro, que lhe teria dito as seguintes palavras: “Levanta-te, senhor! O Juízo Final está aqui, pois o mundo inteiro está cheio de gafanhotos.” Carlos saiu montado a cavalo para medir a extensão dos enxames. Após um dia inteiro de cavalgada, cerca de 25 quilômetros, ele ainda não tinha chegado ao fim do enxame, que devorava toda a vegetação encontrada em seu caminho.79
Em razão do fenômeno da urbanização, a salvação era buscada nas cidades. No entanto, tal migração, a partir do campo, foi uma grande decepção, pois as cidades não possuíam os recursos necessários, para acolher todos aqueles que fugiam da miséria. 79
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Ibidem, p.41.
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Movimentos culturais, como o Renascimento80, entre os séculos XV e XVI, que incentivavam o individualismo, dificultaram o amparo aos miseráveis. Os sucessivos escândalos dentro do papado e o discurso religioso praticamente sem sentido, não respondiam diretamente às angústias de milhares de pessoas, obscurecendo a imagem do Cristo apresentada nos Evangelhos. Ainda nesse contexto de sucessivas calamidades naturais (interpretadas como a fúria do Senhor naqueles tempos medievais), citamos, por fim, a mais temida delas, a Peste, que não se apresentava apenas de uma única forma. “Fraca e malnutrida, a população foi atingida por surtos de febre tifoide e, em seguida, pela terrível Morte Negra em suas várias formas de peste: bubônica, pneumônica e septicêmica”.81 Em virtude do crescimento das cidades em um processo desordenado, as condições de vida eram insalubres, tanto nas ruas como dentro das casas, facilitando o contágio e disseminação de diversas doenças. “A expansão da peste por toda a Europa foi facilitada pelos avanços nas frotas mercantes italianas, que possibilitaram a seus barcos transportar rapidamente sua carga clandestina e mortífera de ratos carregados de pulgas infestadas pela peste”.82 A história não nos trouxe os números precisos da Morte Negra, porém, estima-se que 30% da população europeia tenha 80
81 82
O Renascimento foi o movimento marcado pela ascensão da burguesia em detrimento do comportamento da sociedade medieval. Agora, o que imperava era um novo comportamento, determinado pelas máscaras sociais. O centro da vida nesse momento já não era mais o Divino, mas, sim, o Humano. O individualismo pode ser observado a partir do modelo econômico mercantilista, a partir da zona urbana. Obras de arte e outras questões de cunho cultural vão tomando a ordem da vida; contudo, questões apreciáveis somente para uma determinada classe, a burguesia emergente. Para saber mais sobre o assunto, acesse: SANTANA, Ana Lucia. Renascimento. Disponível em: https://www. infoescola.com/movimentos-culturais/renascimento. Acesso em: 01 nov. 2017. LINDBERG, 2001, p.41. Ibidem, p.41.
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sucumbido às diversas modalidades da peste ao longo da Idade Média tardia. Caso ainda não seja possível imaginar tamanha angústia humana causada, principalmente, pela Morte Negra, deixamos aqui mais um registro dos danos causados por essa praga aos europeus83 daquele tempo, lembrando que a possibilidade de ser curado era nula. A natureza terrível dessa doença aumentava seu horror: furúnculos grandes e dolorosos (o termo “bubônica” vem de buba, palavra latina que designava a virilha, local em que os gânglios linfáticos eram frequentemente os primeiros a inchar, já que muitas das mordidas das pulgas ocorriam nas pernas), acompanhados de manchas ou pústulas negras em decorrência do sangramento sob a pele, eram o prelúdio para o estágio final de violentas tossidelas de puro sangue.84
O que se segue é um relato do senso comum à época sobre os danos causados pela Morte Negra à condição física das pessoas; portanto, as palavras abaixo revelam mais diretamente, em toda sua crueldade, o problema da praga. Toda substância que exsudava 85 de seus corpos exalava um mau cheiro insuportável; o suor, os excrementos, os escarros e o bafo eram tão fétidos que chegavam a ser prostadores: a urina ficava turva, espessa, negra ou vermelha. 86
83 84 85 86
Dentro da estimativa de que 30% da população europeia foi atingida pela Morte Negra, afirma-se que algumas regiões ficaram livres da praga, enquanto outras tantas localidades foram totalmente aniquiladas. LINDBERG, 2001, p.42. Exsudar significa sair em forma de suor ou gotejando. LINDBERG, 2001, p.42.
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De forma resumida, procuramos ventilar os principais fatos sociais que abriram caminho para a Reforma Protestante; afinal, os trágicos eventos apresentados naquela realidade precisavam de respostas. Tanto ontem como hoje, há uma urgência, de responsabilidade cristã, como filhos e filhas da Reforma, em responder às crises de nosso tempo histórico, não apenas teorizando, mas agindo.
Martinho Lutero: um Religioso do Seu Tempo e Sua Relação com as Escrituras Lutero, sem dúvida, foi um homem do seu tempo. Isso significa afirmar que ele participou de todas as angústias causadas por aquele contexto de desespero e por aquela imagem formada por sua igreja a respeito de Deus. Portanto, todo o contexto de vida europeu estava permeado pelas crises e influenciado pelos padrões do discurso religioso à sua época. Nesse sentido, a espiritualidade da família Lutero acompanhava o sentimento de toda uma geração. A piedade na casa paterna também não destoava da piedade reinante: submissão à Igreja e crítica aos maus costumes de monges e do clero secular. O mundo dos demônios e dos duendes era respeitado, razão pela qual Margaretha Luder providenciou a colocação de ervas apropriadas junto ao trempe [arco de ferro com três pés para pôr panelas], a fim de evitar, assim, maiores males para o seu lar. O Cristo apresentado era o do juiz, assentado sobre o arco-íris com espada de dois gumes na boca e olhos flamejantes. Ai de quem fosse encontrado despreparado quando ele chamasse!87 87
DREHER, Martin N. A crise e a renovação da igreja no período da Reforma. Coleção História da Igreja. Vol. 3. 2 ed. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p.23.
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O pensamento religioso ao longo da Idade Média – no caso de Lutero, em sua forma tardia – não buscou corresponder, de maneira minimamente satisfatória, às angústias humanas, principalmente em possíveis atitudes práticas por parte da igreja, a fim de amenizar o sofrimento daquela gente. Nesse sentido, buscando, em suas reflexões, respostas para os escândalos da igreja do seu tempo e para as sucessivas crises sociais que vitimavam milhares de pessoas, o monge agostiniano Martinho Lutero resolveu apelar às Escrituras. Simplesmente ensinei, preguei, escrevi a Palavra de Deus; não fiz mais nada. E, então, enquanto eu dormia, ou bebia cerveja em Wittenberg com meu Filipe e meu Amsdorf, a Palavra enfraqueceu tão intensamente o papado que nenhum príncipe ou imperador jamais fez estrago assim. Não fiz nada. A Palavra fez tudo.88
Quão reveladoras são as palavras de Lutero em toda sua potencialidade de transformação da realidade, principalmente os Evangelhos, que nos revelam quem foi esse homem de Nazaré da Galileia, que, em seu próprio contexto, (a Palestina do I século) procurou responder e agir em conformidade com os princípios do Reino de Deus revelados ao longo de sua própria vida. As crises estão a todo tempo fazendo parte da vida. Os infortúnios, portanto, são constantes na história social humana, porém, a forma como os cristãos podem, em conjunto, responder e agir diante deles é o que revela nossa identidade cristã. Portanto, deve-se ensinar, pregar e escrever, sobretudo a partir da Palavra de Deus – pois é ela que nos apresenta quem foi Jesus de Nazaré, o Cristo –, com ênfase nos Evangelhos – pois são eles que nos revelam a história do Senhor. A chave hermenêutica para toda a vida, inclusive a fim de responder e agir em tempos de crise, está nos Evangelhos, 88
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Ibidem, p.23.
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que nos mostram claramente as opções de Jesus, seus gestos e palavras. Esse é o sentido da Sola Escriptura (somente as Escrituras). Embora Lutero fizesse menção às Escrituras, toda sua fundamentação teológica está na vida do Senhor. Nele, Lutero encontrou definitivamente a liberdade apresentada pelos Evangelhos. Lutero foi de encontro a toda representação religiosa formulada por uma cúria corrupta, em que apresentava como metodologia de controle às vidas, o símbolo do Deus juiz, somado ao imaginário popular, temeroso sobre as atividades de demônios e duendes a fim de prejudicar as vidas já tão sofridas. O resultado das análises das Escrituras só poderia ser libertador, ainda que certamente doloroso, posto que Lutero esteve uma vida inteira a ser conduzido por uma representação simbólica de Deus, que não condizia com a imagem de Jesus nos Evangelhos. As perguntas sobre como seria a vida após a morte e o motivo pelo qual o cristão sofre tanto nessa vida, junto a outras questões pertinentes daquele momento, agora possuíam respostas concretas, à luz da livre interpretação da Palavra de Deus. A livre interpretação das Escrituras, segundo as análises de Lutero, estava diretamente relacionada às crises que assolavam a vida. Portanto, na busca de respostas às perguntas que eram feitas no seu tempo de angústia, Lutero procurou relacionar a interpretação das Escrituras com as questões do cotidiano.
Uma Leitura dos Evangelhos para Hoje A livre análise das Escrituras, sobretudo com responsabilidade ética aos padrões do Reino de Deus atestados na vida de Jesus, foi uma das grandes realizações de Martinho Lutero. Inclusive as hipóteses deste artigo somente podem ser sustentadas a partir dela. Revista Científica - Teologia em Diálogo
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Com Lutero, aprendemos que as Escrituras nos revelam quem é Deus por meio da imagem do Jesus histórico apresentado pelos evangelistas. Tal exercício hermenêutico possibilitou a ele responder aos anseios e crises do seu tempo. Todo discurso teológico tem um núcleo gerador de sentido, a partir do qual é possível qualquer dinâmica hermenêutica. Esse núcleo é a experiência de fé tornada compreensível. Por experiência de fé tornada compreensível entende-se o processo em três movimentos que se põe na origem de toda a teologia: experiência de fé, mediação cultural e discurso sistemático.89
Portanto, o tripé que une experiência(s) de fé, mediação cultural e discurso sistemático (a leitura das Escrituras é uma dimensão dessa experiência de fé) deve formar um bloco teológico que busque responder às crises de um determinado tempo, situado em um horizonte cultural concreto. No entanto, tal bloco teológico possui sua vida limitada e, justamente em função das complexidades e dinamismos da vida social, as sociedades estão constantemente apresentando novas crises, impulsionando teólogos e teólogas a novas interpretações de sentido nos mais variados contextos. Quando as possíveis análises hermenêuticas das Escrituras já não correspondem ao momento históricocultural, em suas crises, são necessárias novas experiências com as Escrituras e, portanto, com o Cristo, a fim de respondermos aos problemas atuais. A coragem para enfrentar uma tradição poderosa, mas que não procurou responder às crises de sua época, somente foi possível a Lutero por meio da ousadia de analisar as Santas Escrituras, repensando o Jesus da Bíblia a dar respostas às necessidades do seu tempo. 89
ROCHA, Alessandro Rodrigues. Teologia sistemática no horizonte pós-moderno: um novo lugar para linguagem teológica. São Paulo: Vida, 2007, p.108.
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Lutero rompeu com uma tradição que estava engessada em certos aspectos, ainda que possuísse muitos valores teológicos formulados por séculos. No entanto, os sucessivos escândalos da cúria e a não ação prática voltada aos sofridos do seu tempo foi, como se diz na cultura popular brasileira, a gota d’água, o basta! Portanto, estamos vivendo em um tempo em que a igreja pode se reerguer, mas dignamente, em conformidade aos Evangelhos que assinalam a coerência na forma de vida do Senhor diante das crises do seu tempo. A leitura da realidade deve ser na medida da experiência de fé digna do cristianismo, no encontro com o Jesus Cristo vivo das Escrituras. Nesse sentido, a experiência de fé é o ato primeiro de um encontro com o Cristo, conforme apresentado pelos Evangelhos, ainda que necessariamente mediado pela cultura. O elemento cultural aqui tão necessário à experiência humana não pode apagar o símbolo de Deus, ou seja, a vida de Jesus por inteiro, dando margem e liberdade a especulações ou construções culturais distantes da fundamentação de toda teologia cristã, que é o próprio homem de Nazaré das Escrituras. Os desafios apresentados pelos movimentos históricoculturais à igreja cristã, no sentido exposto ao longo do artigo, nas constantes crises da vida social, merecem ser aprofundados pelas análises hermenêuticas das Escrituras/Evangelhos. Havendo chegado até este ponto, deve ficar firmemente estabelecido que a exploração do sentido de um texto não se reduz a um trabalho crítico, puramente literário e acadêmico. Existe, também, uma práxis, do crítico ou do seu contexto sócio-histórico, que indica o parâmetro da leitura. Não se “sai” do texto (ex-egese, do grego ago, “conduzir/guiar”) trazendo um sentido puro nele recolhido, como um mergulhador traz um coral à superfície do mar ou como se tira um objeto de um cofre. Antes, a partir de um horizonte vivencial novo que repercute significamente na produção de sentido que é a leitura, “entra-se” no texto (eis-egese) com perguntas que
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nem sempre são as de seu autor. Já estudamos porque toda leitura é “releitura” do sentido de um texto.90
Nesse sentido, toda tradição, mesmo a religiosa, surge a partir de um horizonte cultural específico. Jesus, o Cristo de Deus, também foi um homem do seu tempo: interpretou a Lei e a tradição do seu povo para as questões apresentadas na sua realidade de vida. Quando sua tradição, a Lei de Moisés, não foi suficiente para atender às vidas angustiadas daquela Palestina, reinterpretou-a com o objetivo de responder às inúmeras necessidades de sua gente.
Conclusão Nosso horizonte cultural brasileiro é o objeto de estudo a ser interpretado à luz dos Evangelhos. São eles que nos possibilitarão ter respostas justas à nossa realidade, relendo o Cristo em suas palavras e ações para nosso contexto de vida. Tal contexto de vida, relido à luz de Jesus Cristo nos Evangelhos, deve trazer significado aos homens e mulheres em seus presentes históricos. Sendo assim, a hermenêutica bíblica, aplicada às narrativas dos Evangelhos, deve trazer sentido às pessoas, principalmente diante das crises apresentadas. Resta, portanto, analisar a vida de Jesus de Nazaré da Galileia, o símbolo de Deus, com a diversidade dos movimentos culturais, cristãos e não cristãos, em nossa atualidade, além de, sinceramente, nas análises, observar se tais ondas culturais, principalmente as evangélicas, estão alinhadas com as narrativas dos Evangelhos que nos informam o modelo de vida do Senhor.
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CROATTO, José Severino. Hermenêutica bíblica: para uma teoria da leitura como produção de significado. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulinas, 1986, p.59.
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Antonio Lucio Avellar Santos
Professor da Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO); Graduado em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil (STBSB) e pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP); Especialista em Ciências da Religião pela Faculdade Teológica Evangélica do Rio de Janeiro (FATERJ); Especialista em Políticas Sociais pela Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO). allavelar@yahoo.com.br
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Referências Bibliográficas ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 2004. ______. Hermenêutica bíblica: para uma teoria da leitura como produção de significado. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulinas, 1986. BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada: padrões da cultura japonesa. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 1995. DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. DREHER, Martin N. A crise e a renovação da igreja no período da Reforma. Coleção História da Igreja. Vol. 3. 2 ed. São Leopoldo: Sinodal, 1996. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Nova Vida, 1993. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 16 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LINDBERG, Carter. As reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001. ROCHA, Alessandro Rodrigues. Teologia sistemática no horizonte pós-moderno: um novo lugar para linguagem teológica. São Paulo: Vida, 2007. WALKER, Wiliston. História da igreja cristã. 3 ed. São Paulo: ASTE, 2006. ZABATIERO, Júlio. Manual de exegese. São Paulo: Hagnos, 2007.
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O Estudante Adulto Maduro na EaD
Um Olhar Sobre o Perfil do Aluno do Curso de Teologia Mônica Campos Santos Mendes Cleuza Santos Faustino Resumo As transformações no cenário educacional ocorridas no Brasil e no mundo têm como um dos pilares a Educação a Distância – EaD. Ao abordar esse tema, é imperioso reconhecer o crescimento exponencial e os avanços tecnológicos e metodológicos inerentes a essa modalidade de ensino-aprendizagem. Uma dessas mudanças diz respeito ao público, cada vez mais diversificado. Este artigo traz um olhar sobre o perfil do cursista que se lança aos desafios dessa modalidade de ensino, especificamente adultos maduros, com idade superior aos 50 anos. A partir da nossa experiência docente em Ambientes Virtuais de Aprendizagem, observamos a recorrência desse sujeito que apresenta necessidades específicas às quais as instituições deveriam se atentar. Embora o fato ocorra em outras graduações, aqui trataremos exclusivamente do curso de Teologia da Unigranrio. São muitas perguntas e, com este trabalho, buscamos lançar luz sobre o tema para que novos debates surjam e resultem em metodologias que sejam adequadas a esse público tão específico e rico de possibilidades.
Palavras-chave: Educação a distância; aprendizagem do adulto maduro.
Introdução O crescimento exponencial da Educação a Distância (EaD) no Brasil e no mundo é uma realidade que não podemos mais ignorar. Há um número significativo de ofertas de cursos e programas que impulsionam as inovações tecnológicas e metodológicas no campo educacional, em um ritmo significativamente mais acelerado do que ocorre no ensino tradicional. Dessa forma, a oferta crescente de cursos na modalidade a distância (EaD) tem facilitado o ingresso – ou o retorno aos bancos escolares – de pessoas até então excluídas do processo educacional superior, por diferentes motivos, entre os quais podemos citar: dificuldade de acesso geográfico, por residirem longe dos campi das universidades; indisponibilidade de tempo para cumprir os horários fixos nos cursos presenciais; e valores elevados das mensalidades dos cursos presenciais. É importante ressaltar que, nos últimos Censos EaD organizados pela ABED – Associação Brasileira de Educação a Distância, inclusive sua última edição em 2016, ainda não constam dados estatísticos acerca desse público; o recorte acontece na faixa etária de “maiores de 45 anos”. Ainda conforme o referido Censo, “Os percentuais de alunos com mais de 40 anos na educação a distância são inferiores a 5%” (CENSO, 2016, p.38). Embora em número ainda pouco expressivo, compreendemos ser importante lançar um olhar atento sobre eles, especialmente pela sua constatada dificuldade em utilizar as tecnologias que envolvem a educação a distância. Afinal, são imigrantes digitais, fato que eles costumam relatar nos e-mails e fóruns. 150
O Estudante Adulto Maduro na EaD
Esse movimento ocorre em um momento histórico, em que a longevidade é uma constatação, ou seja, há uma demanda por novos produtos e serviços para atender a esse sujeito que, conforme as estatísticas, está vivendo mais (BRASIL, 2016). Pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registra que “de 1940 a 2015, a esperança de vida no Brasil para ambos os sexos passou de 45,5 anos para 75,5 anos, um aumento de 30 anos” (BRASIL, 2016). Se estão vivendo mais, surgem novos projetos, e o estudo é um deles, o que tem revelado, também, esse movimento de inserção do adulto maduro na educação a distância. Esse fato, por sua vez, gera demandas para essa modalidade de ensino, em todos os seus aspectos, desde a captação e condução desse sujeito ao longo do curso, até a conclusão. A psicologia tem se debruçado sobre este tema e podemos encontrar várias publicações sobre o comportamento e as necessidades deste sujeito. É importante mencionar que o “Adulto Maduro” refere-se a “etapa de vida, cujos sinais iniciam aos 40 anos” (BALBINOTTI, 2012, p.21). No entanto, para este trabalho, o recorte foi feito a partir dos 50 anos, por considerar o aumento da longevidade, e compreender que este recorte deve ser reestudado, reavaliado, principalmente se considerarmos os dados estatísticos divulgados pelo IBGE. Gadotti, em seu livro Educação de Adultos como Direito Humano, cujo foco é na AJA - Alfabetização de Jovens e Adultos e EJA – Educação de Jovens e Adultos, apresenta importantes contribuições para este trabalho. “A educação de adultos é o espaço da diversidade e de múltiplas vivências, de relações intergeracionais, de diálogo entre saberes e culturas” (GADOTTI, 2009, p.26). Portanto, é importante compreender como o docente conduzirá a relação entre as gerações que estão em uma mesma turma em seu Ambiente Virtual de Aprendizagem – AVA, considerando as especificidades de cada uma e promovendo a integração entre elas. Revista Científica - Teologia em Diálogo
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Ensino-aprendizagem do Adulto Maduro A pessoa adulta volta a estudar por diversos motivos, sendo o mais comum a necessidade imposta pela competição no mercado de trabalho. Nesse sentido, as universidades têm recebido alunos de faixas etárias cada vez mais amplas, embora a universidade ainda seja um ambiente com predominância de jovens. Hoje, porém, observamos a presença crescente de adultos maduros nos campi, especialmente nos cursos noturnos. Essa crescente demanda do adulto pelo ensino superior pode ser constatada, também, pelo crescimento do número de alunos desta faixa etária nos cursos oferecidos na modalidade de Educação a Distância – EaD. Ao buscar estatísticas sobre essa demanda, alguns dados foram encontrados, contudo, entende-se que uma atenção especial deve ser dispensada para que as informações sejam mais amplas e específicas. Tem-se a informação que “os cursos regulamentados totalmente a distância têm uma alta incidência de alunos nas faixas etárias de 26 a 30 anos (295) e 31 a 40 anos (37%)” (CENSO, 2016, p.38). Ainda que não correspondam ao recorte deste artigo, contudo, essas estatísticas servem de parâmetro quando comparadas aos dados do IBGE, sobre a longevidade, apresentados acima. Observamos que essa modalidade ainda tem potencial para crescer entre alunos de faixa etárias mais avançadas, seja por um desejo desses alunos de mudar de carreira, seja por seus interesses pessoais (CENSO, 2016, p.38).
Como já mencionado, o referido Censo não apresenta dados específicos para a faixa etária acima dos 50 anos, o que consideramos uma lacuna que muito em breve deve ser preenchida, pois as práticas em salas de aulas virtuais demonstram que eles estão cada vez mais presentes, 152
O Estudante Adulto Maduro na EaD
em diversas carreiras, não apenas em Teologia – curso que é objeto de estudo deste artigo. Não acreditamos que o estudante acima de 50 anos se torne maioria em um futuro muito próximo, porém, consideramos um público que merece uma atenção específica, pois demanda uma estratégia de ensino-aprendizagem diferenciada. Trata-se de uma questão de cidadania e inclusão. Uma divulgação de cursos voltada a esse público, por certo, promoveria uma adesão maior. É uma demanda que está posta; faltam iniciativas nesse sentido. Ao pesquisar sobre o tema, percebe-se que há lacunas e pouca pesquisa. Grande parte das publicações aborda a EJA – Educação de Jovens e Adultos, que não é o propósito deste trabalho. Trataremos exclusivamente da educação do adulto maduro. A Declaração de Hamburgo apresenta pontos relevantes sobre a educação de adultos que merecem destaque: Engloba todo o processo de aprendizagem, formal ou informal, onde pessoas consideradas “adultas” pela sociedade desenvolvem suas habilidades, enriquecem seu conhecimento e aperfeiçoam suas qualificações técnicas e profissionais, direcionando-as para a satisfação de suas necessidades e as de sua sociedade (UNESCO, 1999, p.19).
Há, também, questões físicas inerentes a essa faixa etária que podem influenciar na aprendizagem. Portanto, é importante conhecer quem é este sujeito e as possíveis limitações impostas pela idade, para que possam ser melhor conduzidos em seu processo de aprendizagem. Um fator importante é a memória, uma vez que “a partir dos 40 anos, progressivamente, as memórias antigas estão mais presentes que as recentes” (BALBINOTTI, 2012, p.37). Segundo a autora, as causas que influenciam a memória são variadas, contudo, é um fator que influencia diretamente nas práticas Revista Científica - Teologia em Diálogo
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de ensino e mediação, pois o docente deverá levar em consideração esta e outras limitações, imposta pelo passar dos anos.
Quem é Esse Adulto Maduro Que vem Surgindo na EaD? Com base em nossas experiências, temos notado que, cada vez mais, encontramos alunos com idades a partir dos 50 anos em nossas turmas, e o curso de Teologia, conforme discutido no tópico anterior, também faz parte do rol de cursos escolhidos. Portanto, surgem os primeiros questionamentos: Quem é esse aluno? Como mediar o ensino de forma adequada? Quais as expectativas desse indivíduo? Entender a personalidade do Adulto Maduro é ter que considerar muitos aspectos, entre eles de ser a passagem dos anos, para a maioria das pessoas, um bom aliado que acrescenta e oportuniza a evolução (BALBINOTTI, 2012, p.19).
A importância deste aspecto está diretamente relacionada com a iniciativa deste sujeito em buscar uma nova formação. No entanto, outra questão surge: O que leva um imigrante digital a buscar na educação a distância a concretização de seus objetivos? Esta é uma questão que demanda uma pesquisa mais detalhada e aprofundada. É importante, entretanto, entender que: Da mesma forma que a criança, o Adulto Maduro necessita de estímulos externos, caso contrário poderá, além de inibir o processo evolutivo e de aprendizagem principalmente a emocional, regredir e perder funções importantes como a memória. (BALBINOTTI, 2012, p.19).
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Com base na afirmação da autora e, do olhar atento ao comportamento destes alunos no AVA – Ambiente Virtual de Aprendizagem, bem como de seus relatos feitos em fóruns de apresentação e dúvidas, pode-se considerar que há uma significativa insegurança de alguns, pois eles acreditam que a dificuldade com a tecnologia que envolve esta modalidade de ensino e os anos afastados do estudo, tornam-se obstáculos intransponíveis à conclusão do curso.
O Perfil do Aluno do Curso de Teologia Segundo levantamento feito em um fórum de apresentação no curso de Teologia da Unigranrio, os alunos buscam oportunidade de atuar de forma mais efetiva em suas comunidades de fé, exercendo seus ministérios com mais qualidade e segurança. A maioria já exerce algum tipo de liderança em projetos ou ações, mas, em algumas instituições, é exigido que os ministros tenham formação religiosa, que pode ser obtida pelo estudo em seminários mantidos pela própria instituição ou em um curso de graduação oferecido por instituições reconhecidas pelo MEC. Além da vocação ministerial, outro fator que atrai o estudante para o curso de Teologia é a simples vontade de voltar a estudar. Essa motivação é relatada pelo público adulto maduro, na faixa acima dos 50 anos. Nesse sentido, vale destacar a perspectiva bíblica sobre a maturidade e a velhice, segundo a qual a disposição para viver não é um privilégio exclusivo dos jovens. O justo florescerá como a palmeira, crescerá como o cedro no Líbano. Plantados na casa do Senhor, florescerão nos átrios do nosso Deus. Na velhice darão ainda frutos, serão cheios de seiva e de verdor. (Sl 92:12-14). Como resultado da análise de duas turmas, uma do primeiro período e outra do quinto, constatou-se que a faixa etária mais representativa é de 31 a 40 anos. Em Revista Científica - Teologia em Diálogo
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seguida, destaca-se de 41 a 50, que já engloba a faixa etária do adulto maduro, conforme Balbinotti. O recorte proposto neste trabalho lança um olhar para os que estão acima dos 50 anos, que representam uma minoria, conforme podemos observar nos gráficos abaixo. Mesmo diante deste resultado, compreende-se a importância deste sujeito no contexto da Educação a Distância.
Gráfico 1: Alunos por idade nas turmas analisadas. Fonte: Do autor.
Na turma de Hermenêutica, no primeiro período, eles representam 11% do total de alunos. Já o quinto período na Unidade Curricular Contextos Socioantropológicos e Filosóficos, é possível verificar que há uma significativa redução, representando apenas 4% do total de alunos da turma. Isso mostra que ocorreu uma redução de 7%, suscitando alguns questionamentos. Será uma evasão natural já identificada nos cursos dessa modalidade de ensino, ou uma condição inerente a essa etapa da vida? Tal redução é fruto da dificuldade em se adaptar à modalidade e às tecnologias que estão a serviço da educação? 156
O Estudante Adulto Maduro na EaD
Gráfico 2: Quantitativo de alunos por idade na turma de Hermenêutica. Fonte: Do autor.
Gráfico 3: Quantitativo de alunos por idade na turma de Contextos Socioantropológicos e Filosóficos. Fonte: Do autor.
Ao considerar o recorte feito por Balbinotti, o adulto maduro, a partir dos 40 anos, citado acima, e reunindo o total de alunos nas duas Unidades Curriculares analisadas, temos o seguinte resultado: Revista Científica - Teologia em Diálogo
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Gráfico 4: Alunos por idade- acima dos 40 anos. Fonte: Do autor.
É incontestável a significativa presença do “adulto maduro” nos cursos de graduação na modalidade a distância, portanto, é imperioso uma especial atenção a esse sujeito que marca presença significativamente.
Conclusão Diversas instituições têm se mobilizado no sentido de criar oportunidades e condições favoráveis para o ingresso ou retorno do aluno adulto aos estudos. Esse fato é certamente positivo para a sociedade como um todo, pois aponta para uma população que se prepara, mesmo na maturidade, para chegar à idade avançada com vigor e capacidade produtiva. Neste estudo, identificamos que os estudantes do curso de Teologia da Unigranrio, especificamente os que estão na idade madura, demonstram responsabilidade, disciplina e autonomia na condução das suas atividades acadêmicas. No entanto, ao mesmo tempo, eles relatam com frequência a dificuldade de adaptação aos meios tecnológicos, o que pode gerar desmotivação e até mesmo evasão (PEREIRA, 2015). O 158
O Estudante Adulto Maduro na EaD
aluno acostumado com o ensino presencial enfrenta diversos desafios no cotidiano desse novo ambiente e não pode contar com o apoio de um colega mais familiarizado com a tecnologia. Então, diante de uma determinada dificuldade, ele é instruído a se dirigir ao polo para buscar ajuda de um tutor presencial. Assim, ele consegue vencer os desafios do novo. Vale reiterar que a necessidade de novas adaptações, em geral, representa mais um desafio para esse público. É necessário, portanto, refletir sobre o perfil desse público, que apresenta necessidades e expectativas peculiares, e sobre as formas de atender adequadamente às suas demandas. Ainda que, atualmente, represente um percentual pouco significativo, acredita-se que, considerando a expectativa de vida do ser humano, esse percentual será elevado. É relevante ressaltar que, mesmo que eles façam parte de uma mesma faixa etária e pertençam a uma mesma geração, sua história de vida e suas experiências não os tornam iguais em suas necessidades. Há a singularidade natural do ser humano que também deve ser considerada e respeitada. Há os que trilharam uma carreira e se adaptaram às novas tecnologias e há aqueles que, pela primeira vez, estão diante destes incríveis recursos. Que este trabalho desperte o interesse de docentes e dirigentes de Instituições de Ensino a promover ações, debates e iniciativas que incluam o “adulto maduro” em suas práticas, pois eles estão aí, cheios de energia e disposição, abertos a novas experiências e desafios.
Mônica Campos Santos Mendes
Bacharel em Administração, com registro no Conselho Regional - CRA-RJ; Tecnóloga em Recursos Humanos; Especialista em Gestão de Educação a Distância – PIGEAD LANTE/UFF; em EaD – Uniseb; Docência do Ensino Superior – Unicesumar; Design Instrucional – UNIFEI; Pedagogia Empresarial e Educação Corporativa – UNINTER; Gestão de Recursos Humanos - Estácio UNISEB; Neuroeducação – UNOPAR. Revista Científica - Teologia em Diálogo
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Cleuza Santos Faustino
Mestre em Ensino em Biociências e Saúde pela Fiocruz; Especialista em Informática Educativa pela UERJ e em Desenho Instrucional para WEB pela UNIFEI; Licenciatura plena em Letras - Português-Inglês pelo Centro Universitário da Cidade, com extensão em língua portuguesa e didática do ensino.
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O Estudante Adulto Maduro na EaD
Referências Bibliográficas
ABED. Censo Educação a Distância: relatório analítico da aprendizagem a distância no Brasil 2016. São Paulo: Manole Educação, 2016. BALBINOTTI, Helena. A Personalidade do Adulto Maduro: reflexões da clínica Psicológica. Editora Conceito: São Borja, 2012. BÍBLIA. Bíblia Sagrada. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2 ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2011. BRASIL. Expectativa de vida no Brasil sobe para 75,5 anos em 2015. Disponível em < http://www.brasil.gov.br/ governo/2016/12/expectativa-de-vida-no-brasil-sobe-para-755-anos-em-2015 >. Acesso 27 out. 17. GADOTTI, Moacir. Educação de Adultos como Direito Humano. ELIPF: São Paulo, 2009. PEREIRA, G. O estudante da EaD (Educação a Distância): Um estudo de perfil e interação geracional. Disponível em: http:// tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1470/2/GeizaBogado. pdf. Acesso em: 29 out. 2017. SESI/UNESCO. Declaração de Hamburgo: Agenda para o futuro no 1. CONFINTEA. Brasília, 1999. Disponível em: <file:///C:/Users/Unigranrio/Downloads/129773porb.pdf>. Acesso 24 out. 2017.
Resenha
O Dossel Sagrado Marcio Simão de Vasconcellos
Dossel Sagrado é uma análise, feita com maestria e profundidade, das complexas relações existentes entre a religião e a sociedade. O livro foi escrito pelo sociólogo norte-americano Peter L. Berger (1929-2017). Berger foi professor de Sociologia na Faculdade da New School for Social Research, editor da revista Social Research da mesma faculdade e autor de diversas obras. Seu livro é elaborado com uma linguagem clara, o que, nem por isso, torna-o simplório. Ao contrário, pode ser considerada uma obra importantíssima para a elaboração de uma Sociologia da Religião. O livro é dividido em duas partes. Na primeira (que corresponde aos cinco capítulos iniciais), Berger analisa os elementos sistemáticos de sua argumentação. O capítulo 1 trata da construção da sociedade humana e do papel fundamental que a religião possui nesse processo. Em uma relação simultaneamente dialética e dialógica, o ser humano cria a sociedade, porém, ao mesmo tempo, é dela dependente. Essa relação se dá por meio de três momentos: a exteriorização, a objetivação e a interiorização. A exteriorização diz respeito à ação do homem sobre o mundo que o cerca, fruto da própria biologia humana. Por não possuir o determinismo instintivo dos demais animais, o mundo do homem é “aberto” (BERGER, 1985, p.18), isto é, passível de ser transformado pela ação humana; trata-se da formação da cultura, elemento indispensável e inevitável da vida. Contudo,
essa criação humana – a sociedade e suas estruturas – torna-se, pelo processo da objetivação, algo exterior e “superior” ao próprio homem, no sentido de que passa a existir fora da subjetividade do indivíduo. Aspectos materiais e imateriais da cultura (como a linguagem, por exemplo) assumem papéis dominadores na sociedade que, embora construída pelo homem, torna-se quem “dita as regras”. Tais objetos culturais podem ser compartilhados com os outros, sendo por todos reconhecidos como verdadeiros; é essa capacidade de se impor como realidade para o ser humano que eleva determinada construção humana ao nível de fenômeno social. Mesmo assim, vale ressaltar: todas as instituições sociais são de fabricação humana e não sobrevivem em si mesmas, ou seja, são resultados da produção do homem, e não a-históricas. A interiorização, por sua vez, é a parte do processo pelo qual o homem se apropria do nomos (lei, ordem) construído e vive os papéis sociais que nele lhe são destinados. Essa atividade de transformar a facticidade objetiva do mundo social em uma facticidade subjetiva é contínua, gerada pelos relacionamentos e conversações que um indivíduo mantém com outros que lhe sejam significativos. Esse processo se dá sempre de forma dialética; em outras palavras, o homem não é formado pela sociedade como se fosse um mero objeto: antes, é participante ativo do processo. Dessa forma, o ser humano nunca deixa de ser coprodutor de seu próprio mundo. Para Berger, é essa interiorização do nomos o que produz sentido para a vida – até mesmo o próprio passado, aliás, é reinterpretado à luz desse nomos – e qualquer anomia constitui uma séria ameaça ao indivíduo. Nesse sentido, o nomos socialmente construído pelo homem serve como escudo contra o terror de perder o sentido. Por isso, existem procedimentos impostos pela sociedade no sentido de reafirmar os valores propostos pelo nomos estabelecido. Aqui, corre-se novamente o risco de se naturalizar as estruturas humanas socialmente construídas. E é aqui, também, que a religião cumpre um papel fundamental: o de sacralizar o nomos, garantindo a ausência da anomia. No capítulo 2, Berger apresenta a religião em sua função de mantenedora do mundo construído. O primeiro 166
Resenha - O Dossel Sagrado
mecanismo para manter a realidade social são as legitimações (isto é, as explicações e justificativas para a ordem social), por meio das quais reforça-se o nomos e justifica-se quaisquer ações, com o intuito de preservá-lo. Para Berger (1985, p.45), “a religião foi historicamente o instrumento mais amplo e efetivo de legitimação”. Isso ocorre porque a religião justifica a realidade com argumentos advindos de uma realidade suprema, a qual não se pode contrariar. Por meio desse processo, negase a historicidade da realidade social; em outras palavras, o nomos é elevado à categoria de transcendente e a-histórico, superior ao próprio homem que o construiu. Nas palavras de Berger (1985, p.48), “a legitimação religiosa pretende relacionar a realidade humanamente definida com a realidade última, universal e sagrada”. No capítulo 3, o autor trata da questão das teodiceias, isto é, das explicações para o sofrimento e o mal nas sociedades a partir de uma ótica religiosa. A teodiceia busca produzir significado na dor, na morte e no sofrimento. Esse sentido que guarda o nomos, mesmo em meio à anomia, é fundamentalmente importante para o ser humano. Assim, se for preciso enfrentar a morte, isto será feito com a certeza de que se está cumprindo um papel necessário no mundo. Berger apresenta alguns tipos de teodiceia, relacionandoas em uma linha entre a racionalidade e a irracionalidade. No polo irracional, por exemplo, ele cita a transcendência simples do eu, pela qual o indivíduo se identifica completamente com a sociedade; no outro extremo, o da racionalidade, está o complexo jarmasansara, proveniente do pensamento religioso indiano; entre as duas, Berger apresenta outras possibilidades. O capítulo 4 apresenta a alienação que pode ser produzida pela religião. A alienação é o processo pelo qual o homem deixa de perceber que é participante ativo na construção de seu próprio mundo. Em outras palavras, sua consciência não é mais dialética, tornando-se uma “falsa consciência” (BERGER, 1985, p.97). A alienação impede que haja críticas ao mundo humano, porque não mais se enxerga este como elaboração do próprio homem. Para Berger, a religião possui um papel Revista Científica - Teologia em Diálogo
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importante nesse processo de alienação, pois ela pode produzir a percepção que a realidade já está dada, ou seja, repousa em um a priori divino. As explicações do mundo retiram da equação a participação humana em sua elaboração; antes, são as forças cósmicas, ou o Destino, ou Deus quem estabeleceu o mundo dessa maneira. Se é assim, então, tal mundo não pode ser questionado; deve ser aceito como realidade última, imposta pela divindade. Na segunda parte de seu livro – correspondente aos capítulos 5, 6 e 7 –, Berger usa toda sua argumentação até esse ponto como instrumento de análise de alguns fatores socioculturais específicos. No capítulo 5, Berger trata do processo de secularização. O autor vincula a origem desse processo ao protestantismo que, em um certo sentido, retirou o mistério do culto. Não há mais grandes aparatos sacramentais; a liturgia do culto assume ares mais racionalistas. Além disso, o crente protestante está “sozinho no mundo”: ao ser separado da Igreja católica, e tendo a si mesmo como único sacerdote necessário na relação com Deus, ele perdeu o contato com seu próprio grupo. Sendo assim, por todos esses fatores, o protestantismo pode ser apontado como gerador do processo de secularização. Esse processo, em maior ou menor grau (e até com alguns retrocessos em determinados períodos históricos e áreas específicas da sociedade), também se fez presente na história da igreja cristã. O cristianismo latino do Ocidente, por exemplo, manteve sua visão historicista do mundo. Por todas essas razões, Berger afirma que a origem do fenômeno da secularização “deve ser buscada, pelo menos em parte, nas raízes de sua tradição religiosa” (BERGER, 1985, p.137). No capítulo 6, Berger analisa uma das consequências produzidas pela secularização: a crise da plausibilidade no discurso religioso. Ironicamente, a origem do processo surgiu dentro do próprio cristianismo: suas confissões e argumentações originadas da tradição bíblica podem ser apontadas como uma das causas formadoras da sociedade moderna secularizada. Esse processo de secularização, que se iniciou na área econômica, logo se espalhou para as demais áreas da sociedade, tornando a religião uma 168
Resenha - O Dossel Sagrado
experiência polarizada – viva e atuante dentro de casa (Família), porém distante e ignorada pelo setor econômico da sociedade e, também, pelo próprio Estado, que, por sua vez, não pode mais ordenar determinada instituição religiosa como dominante. Sendo assim, a religião não pode mais desempenhar sua tarefa clássica: “construir um mundo comum no âmbito do qual toda a vida social recebe um significado último que obriga a todos” (BERGER, 1985, p.145). Antes, limita-se ao ambiente que lhe foi poupado: o privado. Por meio da secularização, a voz da religião perde espaço na formação da mentalidade do ser humano; perde sua capacidade de ordenadora do mundo. O sagrado, portanto, é posto de lado e só lembrado quando é útil a alguma área da vida. Outra consequência da secularização é a pluralização, isto é, o fim do monopólio das tradições religiosas em troca da possibilidade de escolha, o que afeta radicalmente os diferentes grupos religiosos, os quais passam a sobreviver sob a ótica do mercado. Berger realiza uma excelente análise sobre o impacto que a pluralização produz sobre a religião: os resultados mercadológicos tornam-se o foco dos grupos religiosos; a burocracia aumenta nas instituições religiosas; passa a existir uma necessidade exponencial de capital, a fim de realizar novos investimentos no mercado (aliás, como a fonte de renda desses grupos é incerta, isto é, depende da voluntariedade de seus colaboradores, é cada vez mais constante o uso de argumentações sócio-teológicas espúrias, que garantam uma renda fixa); a preferência do consumidor religioso é o que dita as novas regras para a eclesiologia e até mesmo para o pensar teológico; enfim, a secularização e a pluralização dela decorrente têm transformado, de maneira radical, a religião ocidental moderna. Diante disso, segundo Berger, as instituições religiosas podem adequar-se às demandas da modernidade secularizada, ou fechar-se em si mesmas, a fim de tentar manter o mundo secularizado do lado de fora. Ambas as possibilidades possuem riscos e dificuldades. É disso, aliás, de que trata o sétimo e último capítulos do livro. Neles, Berger analisa a crise da teologia que caracteriza a situação religiosa contemporânea. Para tanto, o Revista Científica - Teologia em Diálogo
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autor apresenta um breve retrospecto histórico do cristianismo – considerado como o ensaio geral do declínio da religião –, retornando ao protestantismo dos reformadores e da ortodoxia protestante, e analisando o pietismo e o racionalismo iluminista (ambos produzindo crises na ortodoxia protestante), bem como a neo-ortodoxia de Karl Barth (que reafirmou a objetividade da tradição e a exterioridade da mensagem cristã), a teologia de Bultmann, a de Paul Tillich, e, por fim, o neoliberalismo. Dossel Sagrado traz à tona assuntos essenciais à compreensão da dialética existente entre a religião e a sociedade moderna. Um dos pontos principais do livro é a clareza com que Berger desmascara quaisquer tentativas de se elevar a um nível a-histórico construções sociais humanas. É importante considerar esse fato, pois a teologia cristã (especialmente a sistemática) é marcadamente influenciada por esse tipo de discurso. Tendo como ponto de partida a metafísica da filosofia grega, produz-se um modo específico – um único caminho – para se construir argumentos teológicos. Assim, a verdade não se encontra na multiplicidade de discursos, mas na autoridade cósmica que é evocada para enfatizar a validade do discurso. Como diz Berger (1985, p.49), “os nomoi humanamente construídos ganham um status cósmico”. Sendo assim, o discurso teológico não surge localmente, mas é imposto, atemporalmente, sobre quaisquer realidades. Esse único caminho se traduz em uma maneira unívoca de dizer as coisas, que, por sua vez, revela modos de ser e de fazer que se refletem diretamente na eclesiologia e nas práticas litúrgicas e disciplinares das comunidades cristãs. Trata-se do controle do discurso, que julga toda voz alheia como herética. É bom lembrar a importância de se devolver à história o discurso teológico. Recusar-se a fazer isso é negar a pluralidade da fé do povo, esmagando sua experiência pessoal com o Sagrado. Além disso, elevar uma mediação cultural específica a um nível de atemporalidade, significa, necessariamente, ignorar toda e qualquer mediação cultural diferente. Quando isso ocorre, o discurso sistematizado é supervalorizado; a experiência de fé local deixa de ter sua importância; a mensagem do evangelho não pode mais ser transmitida ou compreendida pelo outro; e, além 170
Resenha - O Dossel Sagrado
de tudo, qualquer pensamento diferente e questionador é encarado como anormalidade subversiva de quem está a serviço do reino das trevas. O diferente desafia a ortodoxia e a consequência é o exercício de formas de controle que buscam impedir o surgimento de vozes destoantes ou questionadoras nas comunidades de fé. Na verdade, as estruturas religiosas são, por vezes, sustentadas por um “status ontológico de validade suprema” (BERGER, 1985, p.46), isto é, não podem ser questionadas, como também não devem ser. Fazê-lo significaria se levantar contra a Divindade que, afirma-se legítima àquela estrutura. O próprio Deus teria estabelecido as coisas como elas são. Buscase, com isso, camuflar construções históricas com o apelo do sobrenatural; naturalizam-se estruturas sociais com afirmações que as ligam diretamente com o início dos tempos. Nesse sentido, criticar tais estruturas é sinônimo de criticar a “realidade última”, estabelecida desde o princípio pelo próprio Deus. Ainda nas palavras de Berger (1985, p.52), “ir contra a ordem da sociedade como é legitimada religiosamente é, todavia, aliar-se às forças primevas da escuridão”. Para os que ousarem realizar essa crítica, existem inúmeros mecanismos de controle social que procuram “conter as resistências individuais ou de grupo dentro de limites toleráveis” (BERGER, 1985, p.42). Essa tentativa de pensar a respeito das dogmatizações teológicas, fechadas em si mesmas, constitui uma tarefa árdua, porém intensamente necessária. Não se render aos sistemas fechados de pensamento, elaborados em épocas inteiramente distintas, nem deixar de enxergar as construções históricas (elaboradas em um tempo determinado) é algo que precisa ser feito. Nesse sentido, o livro de Berger é fundamental.
Marcio Simão de Vasconcellos
Doutorando em Teologia Sistemático-Pastoral (PUCRJ); Mestre em Teologia Sistemático-Pastoral (PUC-RJ); Especialista em Ciências da Religião (FATERJ); Bacharel em Teologia (UMESP e STBSB). Revista Científica - Teologia em Diálogo
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Referências bibliográficas BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985.
Resenha
O Silêncio – Shusaku Endo Uma Atormentada Busca Pela Voz de Deus Cleuza Faustino
“Senhor, por que estais calado?” É com essa pergunta que o personagem, um padre europeu em terras nipônicas, se debate ao longo do romance O Silêncio, a perturbadora e instigante obra-prima do escritor japonês Shusaku Endo. O cenário é o Japão do século XVII, um período de grande perseguição aos cristãos no Oriente, semelhante ao que ocorreu nos primeiros séculos na Europa. Dois padres portugueses viajam ao Japão com o propósito de evangelizar, além de fortalecer a fé dos cristãos daquela região. A motivação missionária veio das notícias de que muitos cristãos, inclusive padres, estavam apostatando (abandonando) a fé. Os religiosos, então, se lançam em uma missão considerada, na perspectiva do padre Sebastião Rodrigues, “salvadora” – salvação idealizada e concretizada por ele mesmo. É uma obra magnífica, porque faz essa pergunta ecoar como um trovão no leitor, ainda que estejamos, obviamente, em um contexto totalmente diverso ao retratado. Inevitável confrontar os silêncios retratados ali com palavras da Bíblia como: “Se me buscarem de todo o coração, me encontrarão” (Jeremias 29:13); “Deus é nosso refúgio e nossa força, sempre pronto a nos socorrer em tempos de aflição” (Salmos 46:1); Eu estarei com vocês até o fim dos tempos (Mateus 28:20) e tantas outras. Mas esse não é um livro com intenções teológicas; não é
uma obra cristológica, sequer cita trechos da Bíblia. No entanto, tem o poder de suscitar reflexões sobre Deus, fé, cristianismo, catolicismo e inculturação. Os personagens são simples, mas tão marcantes a ponto de torcermos por eles, sofrermos com eles, amá-los e odiá-los. Há os mártires – descritos em cenas emocionantes –, os carrascos, o juiz e até um traidor, lembrando a figura de Judas Iscariotes. Segundo o padre Adelino Ascenso (2017), estudioso da obra de Shusaku Endo, “o silêncio não é a ausência de palavras ou da mensagem de Deus em face do sofrimento. O sentido é, sim, que dentro do ‘silêncio’ existe uma voz escondida que devemos aprender a escutar, sinais ocultos que devemos aprender a decifrar. Isso é o murmúrio de Deus por detrás do silêncio.” No caso específico dessa obra, no entanto, não há sinais ocultos a decifrar. O que há é muito orgulho, como evidencia este trecho: “Num deserto de que se tinham expulsado os sacerdotes e missionários, o único que poderia dar a água da vida a essa ilha seria, naquela noite, eu.” Nesse trecho, padre Rodrigues se coloca claramente na mesma posição de Jesus, como quem dá a água da vida. Em outro trecho, percebemos a soberba demonstrada por quem se julga detentor da verdade. Mas, ao mesmo tempo, frustrado por não ter conseguido impor sua fé àquele povo – “os japoneses nunca tiveram o conceito de Deus”. Orgulho? É, se os japoneses acreditassem no Deus que ensinávamos. Mas, nas igrejas que construímos por todo este país, eles não estavam rezando ao Deus cristão. Distorceram Deus para a maneira de pensar deles, e o fizeram de um modo que nunca conseguiriam imaginar. (...) Eles não acreditavam no Deus cristão.
Com magistral habilidade, Shusaku Endo consegue, nessa obra, fazer com que nós, leitores, nos indaguemos também. E, junto com os personagens, nos angustiamos com o (suposto) 174
Resenha - O Silêncio – Shusaku Endo
silêncio de Deus diante de um cenário hostil, no qual um sonho aparentemente altruísta seria realizado. Não seria o calar de quem está ao lado escutando o outro falar?
Cleuza Faustino
Mestre em Ensino em Biociências e Saúde pela Fiocruz; Especialista em Informática Educativa pela UERJ e em Desenho Instrucional para WEB pela UNIFEI; Licenciatura plena em Letras – Português-Inglês pelo Centro Universitário da Cidade, com extensão em Língua Portuguesa e Didática do Ensino.
Revista Científica - Teologia em Diálogo
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Referências Bibliográficas AGÊNCIA ECCLESIA. Entrevista ao Padre Adelino Ascenso. 2017. Disponível em: http://www.missionarios.boanova.pt/ noticias/222-entrevista-ao-padre-adelino-ascenso. Acesso em: 29 out. 2017. BÍBLIA SAGRADA: Nova Versão Transformadora. São Paulo: Mundo Cristão, 2016. D’AVILLEZ, F. Shusaku Endo, escritor de “Silêncio”. O cristão japonês a quem assentava mal “o fato ocidental”. 2017. Disponível em: http://rr.sapo.pt/noticia/73739/shusaku_endo_ escritor_de_silencio_o_cristao_japones_a_quem_assentava_ mal_o_fato_ocidental. Acesso em: 29 out. 2017.
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Livro
Alguns exemplos básicos de referências bibliográficas:
BETTENSON, H. Documentos da igreja cristã. 4 ed. São Paulo: Aste, 2001.
Obra organizada
YUNES, Eliana (org.). Pensar a leitura: complexidade. São Paulo: Edições Loyola, 2002. Artigo de periódico
BARCELLOS, José Carlos, Literatura e teologia: perspectivas teórico-metodológicas no pensamento católico contemporâneo. in Numem: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 3, n. 2, p. 23. Verbete de dicionário
COURT, J. M. “Millenarianism”. In: R. J. Coggins – J. L. Houlden (ed.), A Dictionary of Biblical Interpretation. SCM Press, London, 1990, p.459-461. Artigo de jornal
BERTONE, T. O Pai-Nosso dever ressoar na vida do cristão. L’Osservatore Romano, Roma, p.1, 31 de julho de 2010. Citação eletrônica
BERTONE, T. O Pai-Nosso dever ressoar na vida do cristão. L’Osservatore Romano, Roma, 31 de julho de 2010. Disponível em: <http://www.vatican.va/news_services/or/or_ por/text.html#1>. Acesso em: 02 out. 2017. Conteúdo, correção linguístico-ortográfica, forma e estilo dos textos submetidos são de total e inteira responsabilidade dos seus autores e de suas autoras, ficando a revista isenta de quaisquer encargos ou ônus a esse respeito. Encaminhe o artigo, a comunicação ou a resenha para o e-mail teologiaemdialogo@unigranrio.edu.br, fornecendo, inclusive, um número de telefone para contato e o endereço completo. Os autores e as autoras serão notificados quanto à aprovação ou não do texto submetido. Sendo aprovado, os direitos autorais são cedidos à Teologia em Diálogo e, igualmente, fica autorizada a publicação do artigo, da comunicação ou da resenha em formato impresso e digital.
SOBRE O LIVRO Formato: 14 x 21 cm Mancha: 10,5 x 17,5 cm Tipologia: Junecode 12/13,85 1ª edição: 2017
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