UN I V E RS I DADE DE SÃO PAULO FAC UL DA D E D E A RQ UIT ET UR A E UR BA NISMO
TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO
ELOISE ZADIG PEREIRA GOMES DE MARTINS ORIENTAÇÃO: PROF. DRA. DANIELA KUTSCHAT HANNS 2015
AGRADECIMENTOS Ao meu pai, pelo imenso carinho e estima em comum pela arte, e que também, pela sua destreza na medicina, talvez sem querer, tenha ajudado a moldar meu interesse sobre a percepção do corpo. À minha mãe, por seu amor profundo, devoção e confiança. Ao meu irmão, pelo afeto, cuidado e sabedoria. Aos amigos da FAU, com os quais compartilhei grande parte desses anos e tantos momentos inesquecíveis, seja sob os domus ou não: Julie, Ray, Caio, Mandi, Camis, Bia, Lete, Flo, Lully, Mechi, Rony, Gabi, Fabi, Có e Thi Cesário. Aos amigos de sempre, especialmente Bia, Julia e Bruna, por dividirem comigo registros que proporcionaram parte desse trabalho. A Wesley Lee e Matheus Leston, pela paciência, habilidade e principalmente gentileza em ajudar a transformar ideias em realidade. À minha orientadora Daniela Hanns, por fomentar a experimentação e acreditar sempre. Aos membros da banca, Agnaldo Farias, pela atenção e incentivo à pesquisa, e Raquel Kogan, por provocar inquietações. E à Louise, pelo pulso que corre, o ar que falta e a pele que acalma.
For me to be utopia, it is enough that I be a body. - Michel Foucault
INTRODUÇÃO Como perceber a si mesmo? O que somos, o que contemos? Como sentir-se, sentindo? O espaço que habitamos. O lugar do corpo. O outro, e o mesmo. Você e eu. Questões universais e incansáveis, que perpassam o pensamento e produção humana, mas que na urgência cotidiana de um tempo construído, muitas vezes nos escapam. A intenção do projeto “III - Do corpo ao espaço” é provocar a instigação em relação ao ancoradouro de toda a percepção: o corpo. Ao buscar entender o corpo como um lugar aberto em seus sentidos e dotado de potências particulares, foram desenvolvidas três experiências práticas. Além de descrever esses experimentos em seus conceitos e tecnicalidades, os escritos aqui tratam de compartilhar as inquietações que levaram ao desenvolvimento do projeto, como as primeiras aproximações com o tema da percepção espacial, a complexidade do campo abordado e as referências conceituais e projetuais que impulsionaram as três experimentações. Denominados Ar, Pulso e Pele, os experimentos proporcionam uma leitura do corpo como um espaço passível de transfiguração e ressignificação. Essa leitura é a chave que embasa todo o projeto: devemos compreender o corpo como potência, de forma a desconstruir seu lugar.
Fica então o convite para desdobrarmos nossa morada constante ao espaço e assim revelarmos seu avesso e permeabilidade, a sua poÊtica latente.
Design Grรกfico: Louise Winkler Freshel
ÍNDICE 14.
O início
28.
O corpo expandido
36.
Ar
46.
Pulso
56.
Pele
74.
Sobre estímulos
92
Registros Práticos
104
Considerações finais: sobre o tempo
110
Bibliografia
13
O INÍCIO
14
Para dar ignição ao presente, e por que não ao futuro, acredito ser necessário dar um passo atrás e dividir o passado que me leva até aqui. Sendo assim, antes de adentrar o projeto e as
1. Sonic Pavilion (2008) de Doug Aitken, Bisected Triangle, Interior Curve (2002) de Dan Graham e Seção Diagonal (2008) de Marcius Galan
experiências desenvolvidas para o TFG, acredito ser importante começar de modo a introduzir como o tema da percepção e da relação entre corpo e espaço surgiu como uma área de “macro interesse” na minha formação na FAU. Denomino-a de “macro” pois entendo que seja um campo complexo que abrange diversos possíveis desdobramentos de investigação, e, portanto, tratarei do tema primeiramente em uma escala pessoal de pesquisa e projeto durante a trajetória na FAU, traçando o percurso conceitual e processual que leva ao projeto apresentado aqui. De todas as experiências que tive, duas foram as ocasiões mais importantes que me envolveram com a linha de pesquisa da percepção e pautaram o caminho para a escolha do tema que aprofundaria no momento do TFG. Posso dizer que o primeiro encontro aconteceu durante a pesquisa de Iniciação Científica que conduzi sob a orientação do Prof. Dr. Agnaldo Farias. No decorrer da pesquisa, um contato fundamental existiu com a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty, o que levou ao exercício de questionamentos da percepção. Para a Iniciação, estudei três obras¹ de artistas contemporâneos sob a lógica da percepção fenomenológica e através dessa leitura, cresceu um interesse pela percepção espacial e a complexidade do corpo sensível. Mas, além disso, revelou-se para mim a possibilidade de entender as relações do mundo, corpo e espaço de forma aberta, permeável e poética, o que foi de fato fundamental para realizar o projeto discutido aqui.
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Conforme compreendi com a pesquisa científica, Merleau-Ponty discute a percepção fenomenológica como uma intricada combinação entre a subjetividade e objetividade no entendimento do mundo. Ao criticar as abordagens dicotômicas do empirismo e intelectualismo que colocavam em campos opostos o sujeito e o objeto na percepção, o filósofo afirma que esse fenômeno se baseia tanto na experiência do corpo físico quanto na subjetividade intelectual, colocando então a importância da questão da percepção encarnada em um corpo situado no espaço:
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(...) pois se é verdade que tenho consciência de meu corpo através do mundo, que ele é, no centro do mundo, o termo nãopercebido para o qual todos os objetos voltam a sua face, é verdade pela mesma razão que meu corpo é o pivô do mundo: sei que os objetos têm várias faces porque eu poderia fazer a volta em torno deles, e neste sentido tenho consciência do mundo por meio de meu corpo².
2. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 122.
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Dessa forma, o filósofo constitui uma inter-relação entre o corpo material e o espírito, colocando não o sujeito para o mundo, mas o sujeito no mundo, opondo-se à visão cartesiana de “sobrevoo” onde o sujeito teria uma visão a priori da totalidade das coisas. De acordo com Merleau-Ponty, a percepção se dá em partes, através da consciência e do corpo: “E, finalmente, longe de meu corpo ser para mim apenas um fragmento de espaço, para mim não haveria espaço se eu não tivesse corpo.” 3. Uma parte expressiva da abordagem crítica de MerleauPonty quanto à percepção é a questão da ambiguidade, em relação ao que percebemos ou pensamos perceber, revelando as peculiaridades do hábito ou da nossa “fé perceptiva”, como critica o autor ao dizer que “compreender é experimentar o acordo entre aquilo que visamos e aquilo que é dado, entre a intenção e a efetuação (...)” 4. Na percepção, a compreensão do mundo não se dá racionalmente, ao modo cartesiano, mas sim de forma aberta e subjetiva - parcial, situada. Ou seja, os sentidos e a percepção não atuam no campo da certeza, mas sim no campo da potencialidade ambígua. Essa ambiguidade dá-se também no entendimento da questão temporal na percepção, ao qual não se determina como um fenômeno exclusivo do presente, mas afetado pelo duplo horizonte do passado e futuro:
O presente ainda conserva em suas mãos o passado imediato, sem pô-lo como objeto, e, como este retém da mesma maneira o passado imediato que o precedeu, o tempo escoado é inteiramente retomado e apreendido no presente. O mesmo acontece com o futuro iminente que terá, ele também, seu horizonte de iminência.5
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3. Ibid., p. 149 4. Ibid., p. 200
A temporalidade de horizonte duplo traz à tona a consciência na percepção, retomando a complexa relação entre o corpo “físico” e o corpo “intelectual”, pois o passado, sendo ele uma lembrança, uma memória, pode ser entendido como uma ideia que afeta a percepção atual. O mesmo ocorre com o futuro, que entendido como intenção, projeto, também altera o momento presente da experiência perceptiva. O entendimento que temos sobre o nosso corpo e sobre a própria percepção não escapa ao hábito que acredita compreender a totalidade das coisas. Podemos acreditar que sabemos o que é o nosso corpo, pois ele está lá (aqui), sua existência e realidade não podem ser negadas. A ciência e o estudo analisam a todas suas grandezas e minúcias, suas funcionalidades e engenharias, seus aspectos intelectuais e físicos, suas relações. Mas ao mesmo tempo, sua permeabilidade e latência também não podem ser negadas. A percepção se realiza de modo complexo, no sentido de que não é um fenômeno exato, demonstrando que o corpo opera e se revela em diversos planos do tempo e do espaço, por meio de camadas de potências significativas. O corpo abre-se ao mundo e, desafiando as certezas engessadas, existe em sua poética. Sendo assim, a aproximação com a fenomenologia de MerleauPonty despontou em mim a atenção para a importância do corpo 5. Ibid., p. 371
na relação com o espaço, sua significância na percepção e também a potencialidade do corpo sensorial. Essas questões abordadas na pesquisa científica se desdobraram posteriormente em um segundo momento, dessa vez como uma investigação de cunho mais prático que exercitei ao desenvolver um protótipo para a disciplina “Modernidade Líquida”, ministrada pela Profa. Dra. Daniela Kutschat Hanns.
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Durante essa disciplina, o interesse pela percepção fenomenológica foi de encontro com os valores “líquidos”6 de Zygmunt Bauman. Com Merleau-Ponty, compreendi a correlação permeável entre o espaço e o corpo, e com Bauman, percebi a necessidade da investigação desse corpo perceptivo em sua potencialidade fluida, através de sua pluralidade sensorial. O pensamento sobre a transformação de conceitos engessados e sólidos em dinâmicas infinitas e fluidas impulsionou a busca por uma recodificação do corpo, esse locus dotado de características particulares abertas ao mundo em sua sensorialidade. Ao abordar o corpo através de sua especificidade e buscar trabalhar a sua potência sensorial-perceptiva, desenvolvi para o contexto da disciplina um protótipo que gerasse uma experiência de perceber o espaço a partir da intervenção corporal do outro. Com esse projeto busquei uma ressignificação da percepção, partindo do corpo, justapondo os sentidos da fala, visão e audição por meio de dispositivos que recontextualizassem o sistema perceptivo. Nessa experiência, duas pessoas faziam uso de aparato (denominado simplesmente de “cone”) para intervir na percepção da outra. O sistema contava com dois cones - revestimento ou máscara em formato cônico - , cada um contendo um microfone, uma câmera, um fone de ouvido e uma tela (celular). Cada pessoa também carregava um computador com software de processamento de dados, dentro de uma mochila, possibilitando que a experiência se desse de forma móvel.
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6. Cf. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FALA X VISÃO X AUDIÇÃO - DESCONSTRUÇÃO DA PERCEPÇÃO
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SISTEMA 1
SISTEMA 2
TELA/CELULAR FONE DE OUVIDO
FONE DE OUVIDO
OUTPUT - GLITCH VISUAL
OUTPUT - SOM
OUTPUT - SOM
LAPTOP / SOFTWARE
WEBCAM
WEBCAM
INPUT - IMAGEM
INPUT - IMAGEM
MICROFONE
IMPUT - SOM
MICROFONE
DISPOSITIVO WIFI DE COMPARTILHAMENTO DE TELA
COMPUTADOR/ PROCESSING
FONE DE OUVIDO
SISTEMA 1 WEBCAM
TELA/CELULAR
MICROFONE
SISTEMA 2
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A experiência se dava da seguinte maneira: a princípio, cada pessoa enxergava o seu entorno em tempo real, sem alteração, em uma tela (celular) posicionada dentro do cone. Isso era possível pois a câmera instalada na frente da parte externa do cone filmava em tempo real e passava essas informações para a tela na parte interna do cone, através de um dispositivo de compartilhamento de tela do computador. O microfone do cone de uma pessoa estava ligado ao sistema da outra pessoa. Dessa forma, quando uma pessoa falava, ou seja, emitia um som através do microfone instalado no seu cone, esse input era transmitido para o outro sistema e recodificado pelo Processing no computador da outra pessoa, gerando um output de ruído visual (glitch) na tela da outra pessoa. Em outras palavras, o som do corpo de uma pessoa interferia no modo como a outra pessoa percebia o mundo. A interferência visual causada pela fala pode ser vista na imagem abaixo de print screens do computador durante um teste:
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Acredito que o desenvolvimento desse projeto na disciplina proporcionou um amadurecimento do interesse primeiramente despontado pela Iniciação Científica, além de nutrir investigações sobre o corpo e suas particularidades e, é claro, me aproximar da Profa. Daniela Kutschat Hanns, que orienta esse trabalho de TFG. Entendo esse protótipo como uma das diversas variáveis possíveis dentro do escopo geral da problemática da percepção, que foi significativo para impulsionar ao campo da prática questões que havia previamente abordado na teoria. Tal protótipo pode ser compreendido como uma primeira aproximação de um contexto experimental que então aprofundaria com Ar, Pele e Pulso. Dessa forma, esses dois momentos de investigações, teóricas e práticas, se juntam para pautar o conceito que norteia o projeto discutido aqui: o corpo como lugar potente desdobrado ao espaço.
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Tendo abordado o tema do ponto de vista de um interesse pessoal em um passado recente de projetos anteriores, é importante frisar que compreendo o projeto “III - Do corpo ao espaço” como um momento de investigação contínua, que de forma alguma se caracteriza como conclusivo, mas sim como uma possível abertura para a pluralidade de experiências futuras no prisma da complexidade perceptiva.
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O CORPO EXPANDIDO
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A partir do interesse descrito sobre a relação entre o espaço e o corpo, pautado no estudo da percepção no campo teórico e prático, surgiu como foco do projeto o conceito do corpo como lugar, um espaço físico e sensorial/perceptivo. Com o título “III - Do corpo ao espaço”, o trabalho então trata do entendimento do próprio corpo, subjetivamente, como um espaço constante e potente. A problematização da questão se dá de forma a exteriorizar esse espaço, revelar sua potencialidade ao expandir o lugar do corpo para a alteridade por meio dos experimentos Ar, Pulso e Pele. Cada um parte de uma particularidade do corpo para propor situações de engajamento do público em relação a como percebemos o corpo e suas relações sensoriais, buscando quebrar com o hábito engessado da noção que temos de nossos próprios corpos. A intenção é perceber o corpo como espaço sensível e aberto através de suas particularidades e, nesse sentido, o eixo do projeto pode ser entendido como um movimento:
do CORPO para o ESPAÇO de volta ao CORPO.
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O diagrama seguinte representa o núcleo geral do projeto através de uma complexidade de relações possíveis, sendo que os três planos assumem os três momentos distintos da expansão perceptiva: as particularidades do corpo constituem o primeiro plano/o ponto de partida; o desdobramento destas para o espaço constitui o segundo plano; e o retorno perceptivo para o corpo constitui o terceiro plano, sendo esse último correspondente ao sistema de sentidos - tato, audição, visão, olfato7 e paladar. A expansão do corpo que busco aqui se baseia essencialmente na sua abertura através dos sentidos, que como aponta
lado, e exploram os sentidos e a percepção ao propor sinestesias
7. Importante definir que o sentido do olfato não foi especificamente abordado nos três experimentos presentes nesse trabalho, mas não deixa de se inserir no contexto da problemática. Ainda mais, dado o fato da pluralidade do campo experimental da percepção, nada impede que essa particularidade seja também ressignificada em desdobramentos futuros, principalmente pela sua potencialidade com relação à memória.
que desdobrem o corpo-lugar para a percepção do outro,
8. MERLEAU-PONTY, Op. cit., p.303
Merleau-Ponty, apresentam-se intrinsecamente relacionados. A experiência sensorial da percepção não se dá de forma normativa, mas de modo permeável e flexível, pois, nas palavras do filósofo: “(...) os sentidos se comunicam. A música não está no espaço visível, mas ela o mina, o investe, o desloca (...).”8. Os experimentos então são propostos dentro da complexa trama exemplificada ao
expandindo-o de sua formalidade:
o-corpo-no-espaço-sentindo-ocorpo-como-espaço
30
O
RP
CO
O AÇ
ESP
CO
RP
O
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RESPIRAÇÃO
PELE
PULSO
ESCALA
CALOR
LUZ
SOM
IMAGEM
PALADAR
VISÃO
AUDIÇÃO
TATO
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O diagrama ao lado transpõe o escopo geral da complexidade perceptiva especificamente aos três experimentos, demonstrando em cada caso como se relacionam as ressignificações das particularidades corpóreas. Nesse gráfico, as linhas destacadas são representativas dos movimentos inter-relacionais entre esses planos, gerados pelas recodificações dos experimentos. A trama de relações possíveis define a ciclicidade do projeto, onde o corpo desdobrado no espaço é então ressignificado pelo outro. Os experimentos Ar, Pulso e Pele basearam-se na investigação do corpo como estado de “ser”, não limitado em sua formalidade, com seu caráter visual e imagético, mas fundamentalmente no entendimento desse lugar a partir de suas particularidades sensíveis. Estas, de presenças delicadas, frequentemente são negligenciadas pela percepção engessada, mas não deixam de revelar, contudo, a potência de suas essências: como o calor fugaz de cada sopro que vem da boca; o som interno do próprio corpo, praticamente inaudível, mas que invariavelmente orquestra-se em nosso continente; a topografia acidentada da pele que provoca o tato. Um corpo-lugar não somente visível, mas necessariamente sensível e liberto dos limites rígidos de sua materialidade.
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Do campo profundo no qual esse projeto se encontra, é clara a imensidão de experimentações possíveis. Os trabalhos desenvolvidos aqui são três possibilidades que tomaram forma dentro de um contexto de ampla potência, e que, como assim espero, são apenas o começo de investigações futuras.
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A proposição dessa experiência trata da particularidade da respiração como ponto de partida, a singela quentura que nosso corpo deixa escapar a cada fôlego. Mesmo que não nos deixemos dar muita atenção, o calor que nosso corpo produz, sutilmente, revela o compasso de nossa existência. Nesse experimento, em uma etapa anterior de pré-produção, foram captados os sons e as flutuações causadas pela inspiração e expiração de algumas pessoas em situações diversas, e por decorrência, o calor do ar emitido por essas ações do corpo, como arfar, respiração regular, respiração profunda, suspiro, bocejo, respiração ofegante, choro e riso. A captação do pulso respiratório foi feita a partir de gravador de áudio e acelerômetro, de forma a facilitar a interpretação da amplitude do respiro como sua frequência de emissão de calor.
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No momento do experimento em si, essas informações são transpostas para uma lâmpada de aquecimento, que pulsa conforme input (frequência, intensidade), dependendo das situações variadas, que são também reproduzidas em áudio amplificado. A ressignificação do corpo ao espaço através da luz, som e calor dá-se em um ambiente escuro, revelando em sua cadência o caminhar dos outros corpos e a arquitetura do espaço.
RESPIRAÇÃO
CORPO
CALOR
SOM
LUZ
ESPAÇO
TATO
AUDIÇÃO
CORPO
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VISÃO
RESPIRAÇÃO
CALOR
LUZ
SOM
VISÃO
AUDIÇÃO
TATO
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Do ponto de vista técnico, os equipamentos utilizados para essa experiência foram uma lâmpada palito halógena infravermelha de 2000w / 220v (48 cm de comprimento), fita “kapton” (isolante termo-elétrico), circuito customizado para dimmerização da lâmpada (Arduino) controlada através do Processing (software)9, cabos de extensão, caixa de som ativa (amplificada), gravador/ microfone e aplicativo de acelerômetro para aparelho móvel, esses dois últimos utilizados na etapa de coleta de dados.
FONTE DE ENERGIA
CAIXAS DE SOM OUTPUT - DADOS LAPTOP / SOFTWARE INPUT - DAD0S CIRCUITO OUTPUT - LUZ LÂMPADA
9. A consultoria técnica e programação da dimmerização foram gentilmente elaboradas por Wesley Lee, aluno do curso de Design da FAU-USP.
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A disposição espacial do experimento dá-se com a lâmpada10 fixa pelo teto e piso e centralizada no ambiente, que por sua vez não apresenta luz artificial ou entrada de luz natural, proporcionando assim uma imersão onde o pulso que emana da lâmpada pauta o que pode se perceber. O distanciamento vertical é de 1,65cm do piso, mantendo assim a lâmpada elevada ao nível do olhar do público. Os outros equipamentos estão afastados da fruição do experimento, sendo que o público percebe apenas as variações de sons, temperaturas e luminosidades. As diferentes respirações são amplificadas pela seguinte composição: respiração profunda, respiração normal, respiração de suspiro, respiração ofegante, respiração de choro, respiração de bocejo, respiração rápida e respiração de risada. O conjunto se dá em círculos, um looping infinito, abrindo a experiência para ser compreendida a partir de qualquer momento possível, sem um dado começo ou fim. Com Ar, a potência das simples nuances de movimentos da repiração é expandida e o espaço lateja através do calor, da luz e do som, despertando nos corpos o tato, o olhar e a escuta.
10. O experimento apresenta certa liberdade, pois caso preferível, pode apresentar uma lâmpada ou mais. Caso o número de lâmpadas seja plural, busca-se uma adequação ao espaço a partir de uma disposição em perímetro equidistante. Conforme teste realizado, estima-se que uma lâmpada abrange uma área de aproximadamente 4 m², portanto define-se essa metragem como espaço mínimo.
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A poética do corpo nessa experiência apresenta certa empatia entre os corpos: o ar quente na pele. O calor do outro, quando sentido, evoca a proximidade, a permeabilidade afetiva de um corpo ao seu semelhante. O corpo no corpo. E ao mesmo tempo, o corpo no mundo: o ar quente no espaço. Quando respiramos, abertos, tomamos parte do mundo, o absorvemos, incorporamos, e em troca, deixamos um rastro efêmero de nossas profundezas.
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Nesse experimento, a intenção foi de expandir os corposlugares particulares em um espaço sonoro coletivo, investigando nesse caso a delicadeza de um som que é praticamente inaudível no dia-a-dia, mas que está, inevitavelmente, sempre presente: a batida de um coração. Os ritmos gerados pelo batimento cardíaco são o ponto de partida para essa experiência. Internas, constantes e latentes, as pulsações pautam de forma sutil o tempo de nossos corpos, estes que, desdobrados da escala pessoal para o âmbito coletivo, alcançam uma enorme potência ao ressoarem em conjunto. Tal como comenta José Miguel Wisnik em seu livro O som e o sentido (2002):
(...) há sempre som dentro do silêncio: mesmo quando não ouvimos os barulhos do mundo, fechados numa cabine à prova de som, ouvimos o barulhismo do nosso próprio corpo produtor/receptor de ruídos.11
Nessa observação, Wisnik faz um paralelo ao experimentalismo do teórico e artista John Cage, que afirmava que mesmo isolados de todo ruído externo, poderíamos escutar ao menos o grave som do pulso sanguíneo e o agudo do sistema nervoso. Particularidade praticamente esquecida pelo nosso hábito perceptivo do dia-a-dia, o batimento do coração é talvez o som do corpo que mais carrega uma significância sentimental e afetiva, revelando uma forte potencialidade relacional entre todos nós.
11. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. 2a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.18-19
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O experimento só se torna possível através do corpo do público, em tempo real e em dois momentos: primeiramente, a captação dos batimentos cardíacos é feita por um estetoscópio digital e transposto para o computador, que processa o looping do áudio . Em um segundo momento, o respectivo trecho do pulso captado de cada pessoa será amplificado em looping, por meio de caixa de som ativa que fica distante do local de captação.
PULSOS PARTICULARES
CORPO
AMPLIFICAÇÃO CONJUNTA
ESPAÇO
AUDIÇÃO
CORPO
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PULSO
ESCALA
SOM
AUDIÇÃO
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O sistema de acumulação sonora funciona como uma soma que depende do número de pessoas participantes: primeiro uma pessoa capta seu pulso e em seguida escuta sua batida em looping contínuo na área de amplificação, sendo que quando uma segunda pessoa passa pela captação, essa outra batida é adicionada ao som da primeira pessoa, contribuindo para o experimento sonoro. Uma terceira pessoa soma seu corpo ao experimento e compõe mais um ritmo, e assim por diante, construindo uma totalidade rítmica imprevisível e participativa. Quanto mais pessoas, mais pulsações diferentes, e mais relações criadas a partir da sonoridade do acaso desses corpos-lugares, orquestrando assim uma grande musicalidade corpórea.
FONTE DE ENERGIA
CAIXAS DE SOM OUTPUT - SOM LAPTOP / SOFTWARE LOOP INPUT - DADOS ESTETOSCÓPIO DIGITAL
9. A programação, consultoria técnica e cessão do estetoscópio digital foram gentilmente proporcionadas por Matheus Leston.
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A disposição espacial desse experimento requer certo distanciamento entre a área de captação e a área de amplificação, de modo que os sons reproduzidos não interfiram nos pulsos que estão sendo simultaneamente captados. Do ponto de vista prático, o manuseio do estetoscópio digital é mediado, pois esse cuidado é necessário para que a assimilação dos graves seja eficiente.
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É então do diálogo aberto e complexo dos pulsos que são compostos os tons dos corpos, a partir da contingência de suas semelhanças e diferenças, surgem a harmonia e o ruído, em uma experiência onde ritmos particulares convergem em um só tempo: o tempo do corpo.
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De forma a abordar a percepção do corpo-lugar a partir de suas particularidades e a relação de seus sentidos com o espaço, o experimento descrito aqui se baseou no conceito de hapticidade. No entanto, antes de chegar ao experimento em si, foi preciso aprofundar o entendimento sobre a imagem háptica para poder então fruir de sua poética. Importante destacar a princípio a pesquisa do arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa, mais especificamente o livro The eyes of the skin – architecture and the senses (1996) para o desenvolvimento desse experimento. Em sua análise, Pallasmaa busca quebrar com a hegemonia da visão no entendimento do espaço e no pensamento arquitetônico, dando ênfase ao sentido háptico, ou seja, à evocação do tato. Assim como na fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty, a compreensão de Pallasmaa quanto à percepção abrange não somente a visão, mas todos os sentidos, sendo que o arquiteto ressalta a importância do toque relacionado aos outros sentidos na experiência perceptiva de reconhecimento do próprio corpo e do mundo:
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Touch is the sensory mode that integrates our experience of the world with that of ourselves. Even visual perceptions are fused and integrated into the haptic continuum of the self; my body remembers who I am and where I am located in the world. My body is truly the navel of my world, not in the sense of the viewing point of the central perspective, but as the very locus of reference, memory, imagination and integration.13
13. “O tato é o modo sensorial que integra a nossa experiência do mundo com a de nós mesmos. Mesmo as percepções visuais são fundidas e integradas ao contínuo háptico do ser; meu corpo lembra quem eu sou e onde estou situado no mundo. Meu corpo é verdadeiramente o centro do meu mundo, não no sentido do ponto de visão da perspectiva central, mas como o próprio locus de referência, memória, imaginação e integração.” PALLASMAA, Juhani. The eyes of the skin. Wiley, 1996, p.11. Tradução nossa.
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Pensar a hapticidade é uma possibilidade de adentrar o 14. FOUCAULT, Michel. Utopian body In ‘Sensorium’, edited By Caroline A. Jones. Cambridge, The MIT Press, 2006, p.229 – 234. O conceito utópico do corpo e a importância dele para o projeto será discutido a frente no texto. 15. PALLASMAA, Juhani. Op. cit., p. 26. Tradução nossa. 16. Ibid. p.41. Tradução nossa.
emaranhado sinestésico do ser, onde é possível, utopicamente14, ver com a pele e tocar com os olhos. Como afirma Pallasmaa sobre a sensibilidade háptica, “o olho convida e estimula sensações musculares e táteis.”15. Ao pensar o espaço, o corpo e suas relações, é necessário pensar o sistema sensorial como um todo, como o tecido complexo de conexões que se desdobra no mundo, assim como o mundo nele. De acordo com o arquiteto, esse pensamento envolve não somente a visão, e os cinco sentidos clássicos, mas diversas esferas da experiência sensorial que interagem e se fundem com elas mesmas16.
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Tratando da questão de sinestesia visual-tátil-palatável e uma escala amplificada, o experimento Pele tem como mote a projeção de imagens hápticas em movimento sobre superfície arquitetônica, de forma a evocar no corpo público aproximações sensoriais. A espontaneidade de ter essas imagens projetadas em escala ampliada em um espaço de passagem, ou seja, de fluxo de pessoas, e não necessariamente em um lugar pré-determinado para isso (telas internas, sala de projeção, “caixa preta”, etc.), torna a intenção do experimento mais relevante quanto ao engajamento háptico amplificado, levando a expansão do corpo-lugar para uma escala mais próxima ao âmbito público.
PELE
CORPO
IMAGEM HÁPTICA ESCALA AMPLIFICADA
ESPAÇO
TATO
PALADAR
CORPO
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VISÃO
PELE
ESCALA
IMAGEM
PALADAR
VISテグ
TATO
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A escolha de fazer esse experimento através do vídeo surge na medida em que a imagem em movimento constrói uma relação direta entre o engajamento do público e a representação do corpo, revelando na linguagem do filme a percepção “incorporada”17. Para isso, vale comentar a pesquisa da crítica e teórica Vivian Sobchack, que discute a fenomenologia e a percepção sensorial no âmbito do vídeo e argumenta que “mais do que qualquer outro meio da comunicação humana, a imagem em movimento manifesta-se sensorialmente e sensivelmente como a expressão da experiência através da experiência. (...) o filme é um ato de ver que se revela visto, um ato de escutar que se faz ouvir, um ato de movimento físico e reflexivo que se faz reflexivamente sentido e compreendido.”18. A visualidade háptica que ensaio com o experimento Pele busca exercitar a noção fundamental do projeto, de que o nosso lugar do corpo é aberto, que nossos sentidos são permeáveis, que a nossa “visão nunca é apenas visão - ela vê o que meu ouvido pode escutar, o que minha mão pode tocar, o que meu nariz pode cheirar, e o que minha língua pode degustar.”19.
17. O uso da palavra “incorporada” deve ser compreendido como uma tradução do conceito de “embodiment” em inglês, difundida entre MerleauPonty e tantos outros estudiosos da percepção e da fenomenologia. 18. SOBCHACK, Vivian. The address of the eye: A phenomenology of film experience, 1992, p.3. Tradução nossa. 19. Ibid., p. 78
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Em conjunto com Sobchack, a artista e crítica Laura U. Marks também investiga a hapticidade no vídeo como uma experiência corpórea, afirmando que enquanto a visualidade óptica opõe o sujeito e objeto ao distanciar o observador da imagem, a percepção háptica retoma fenomenologicamente e “sinestésicamente” o corpo em questão, gerando uma inter-relação de como experimentamos o toque dentro e fora de nosso corpo. Segundo Marks, “na visualidade háptica, os olhos em si operam como órgãos de tato”20. Mais do que isso, conforme colocado anteriormente, as imagens hápticas não carregam apenas o tato, mas evocam outros sentidos e “convidam o observador a responder à imagem de forma íntima, incorporada, e assim facilitando a experiência de outras impressões sensoriais.”21. Em Pele, as imagens projetadas são imagens hápticas de estímulos sensoriais-táteis e palatáveis, registros de exploração da pele filmados em macro, em enquadramentos aproximados que mostram a topografia da superfície corpórea.
20. MARKS, Laura. The skin of the film: Intercultural film, embodiment, and the senses, 2000, p.162. 21. Ibid., p.2
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Reações da pele a toques, encontros de papilas da língua com elementos do corpo, marcas e cortes, manchas, poros, a cútis seca, o suor pingando, rugas e pelos, a pressão das unhas e dentes, o saltar das veias, o tendão enrijecido, a tez maleável, o salivar da boca, as camadas do tempo, o corpo no corpo.
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Tais registros são editados em tempo real através de uma programação customizada22 que estabelece um recorte fragmentado, espontâneo e singular. Assim é formada uma leitura orgânica, onde o corpo é explorado sem uma pré-determinação narrativa e a relação com o espaço se dá por texturas únicas. Os equipamentos utilizados na etapa da captação de imagens hápticas foram: tripé, câmera e lente macro.
OUTPUT - IMAGENS
FONTE DE ENERGIA
PROJETOR PROGRAMAÇÃO CUSTOMIZADA LAPTOP / SOFTWARE
22. Programação feita por Matheus Leston.
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A área de projeção pode ser adaptada para diversos locais, sendo que sua forma é passível de adequação ao espaço determinado. Para a ocasião da apresentação desse experimento durante o TFG, a projeção ampliada contará com um projetor de brilho adequado e será feita no interior do edifício da FAU-USP, em uma área de circulação. No entanto, fica aberta a possibilidade de levar esse projeto para a escala urbana através de uma projeção em grande escala, que tenho intenção de experimentar em um futuro próximo.
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O corpo, se não o único espaço constante e pivotal de cada trajetória pessoal, é percebido também como abrigo, como casa, como lugar. O continente particular. No desdobramento dessa experiência, o construído e o orgânico friccionam-se, formando uma relação sensorial e perceptiva entre a parede, a “membrana” da arquitetura, e a pele, a “superfície” do corpo.
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SOBRE ESTÍMULOS
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Além do percurso pessoal que compartilhei primeiramente no início, a qual revelou-se como um preâmbulo que nutriu as pesquisas da percepção e da potência corpórea que propus ampliar com Ar, Pulso e Pele, de forma a aprofundar a problematização do lugar do corpo, outras referências me estimularam a compreender melhor o campo investigativo. Tais referências, do âmbito teórico e prático, surgem aqui não como um embasamento histórico, pois não é a intenção do presente trabalho traçar um panorama dos diversos pensamentos e produções que exploram a percepção sensorial e o corpo, mas devem sim ser entendidas como influências que incentivaram o desenvolvimento do projeto em si e dos experimentos abordados anteriormente. De forma a compreender e definir o lugar do corpo explorado nas experiências, foi importante o estudo de aspectos basilares sobre a percepção do corpo, valendo-se principalmente da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty conforme mencionado anteriormente, como também das importantes discussões de Michel Foucault quanto ao “corpo utópico” e suas “heterotopias”. Ao buscar referências projetuais paralelamente, fui também instigada pela enorme potencialidade das ressignificações perceptivas apresentadas por produções e pesquisas artísticas, que me impulsionaram a seguir de fato o caminho experimental da prática. Em busca de situar a problemática do tema em questão, o “corpo utópico” de Foucault foi significativo para o projeto uma vez que trata de definir o corpo efetivamente como um lugar, como estabelece o autor no começo do ensaio:
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The only thing is this: I cannot move without it. I cannot leave it there where it is, so that, myself, may go elsewhere. (…) It will always be there. Where I am. (…) It [the body] is the absolute place, the little fragment of space where I am, literally, embodied [faire corps].23
23. “A única questão é essa: eu não posso me mexer sem ele. Eu não posso deixá-lo onde ele está, para que assim, eu possa ir para outro lugar. (...) Ele sempre estará lá. Onde estou. (...) [O corpo] é o lugar absoluto, o pequeno fragmento de espaço onde eu estou, literalmente, incorporado.”. FOUCAULT, Michel. Op. cit., p.229. Tradução nossa.
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Ao invés do que se pode pensar a princípio em relação a uma simples e pessimista finitude desse fragmento de espaço, Foucault descreve que o corpo não é estritamente limitado, mas sim aberto em sua utopia. É justamente a partir dessa abertura do corpo, que também discutia Merleau-Ponty, que se desenvolveram os experimentos tratados aqui. É da permeabilidade do corpo para o mundo que parte a expansão desse lugar - que na verdade não é apenas um, mas vários lugares. Foucault afirma que ao contrário de um aprisionamento encarnado, do corpo como uma “prisão”, predomina a ideia do corpo utópico – um espaço aberto, de camadas infinitas, passível de transfiguração e ressignificação. Na utopia de Foucault, o lugar do corpo não é extinto - não devemos “apagar o corpo” (“utopia made for erasing bodies”24), mas sim tomar a sua potência. A utopia, que etimológicamente define-se como “não lugar”, não é a negação do corpo em si, mas justamente o revés. O autor aborda também o corpo em sua complexidade, e como decorrência, em sua ambiguidade, assim traçando um paralelo com a ambiguidade perceptiva presente na fenomenologia de Merleau-Ponty, comentada previamente. O corpo, conforme escreve Foucault, possui um lugar e, ao mesmo tempo, diversos outros lugares e não-lugares:
But to tell the truth, my body will not be so easily reduced. It has, after all, itself, its own phantasmagoric resources. It, too, possesses some placeless places, and places more profound (…).25
24. Ibid. 25. “Mas para dizer a verdade, meu corpo não será tão facilmente reduzido. Ele possui, afinal de contas, ele mesmo, seus próprios recursos fantasmagóricos. Ele também possui alguns lugares sem lugar, e lugares mais profundos (...)” Ibid., p.230. Tradução nossa.
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O corpo sempre está aqui, e também, não está; dá-se como ausente e presente simultaneamente, compreende-se visivelmente, fisicamente, como também em outras esferas do espaço, como assim pretendem revelar os experimentos Ar, Pulso e Pele. O corpo está também nas profundezas da mente, na memória carregada, na intenção do gesto, nas relações com o outro, nas ínfimas escalas, nos sons inaudíveis, no calor dos rastros, nas marcas do tempo. E é precisamente a partir dessa ambiguidade que o corpo demonstra-se como uma utopia, ao mesmo tempo penetrável e opaco, fechado e aberto, visível e invisível26. Essa utopia do corpo que constitui as particularidades desse lugar, suas ambiguidades, potências e sutilezas, é esse lugar-utópico que interessa nas experiências propostas no projeto “III - Do corpo ao espaço”. Tal como Merleau-Ponty notavelmente assegura que “não haveria espaço, se não houvesse corpo”, Foucault parte da mesma complexidade da relação do corpo com o mundo:
26. Ibid., p. 231
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My body, in fact, is always elsewhere. It is tied to all the elsewheres of the world. And to tell the truth, it is around it that things are arranged. It is in relation to it – and in relation to it as if in relation to a sovereign – that there is a below, an above, a right, a left, a forward and a backward, a near and a far. The body is the zero point of the world.27
27. “Meu corpo está, de fato, sempre em outro lugar, ligado a todos os lugares do mundo e, na verdade, está em outro lugar que não o mundo. Pois, é em torno dele que as coisas estão dispostas, é em relação a ele - e em relação a ele como em relação a um soberano que há um acima, um abaixo, uma direita, uma esquerda, um diante, um atrás, um próximo, um longínquo. O corpo é o ponto zero do mundo”. Ibid., 233. Tradução disponível em <http://www.redehumanizasus.net/>. Último acesso em 10/11/2015.
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Sobre a compreensão desse lugar do corpo, Foucault define a relação com o espelho28 como o momento em que o corpo é realmente “incorporado” pelo ser, quando entendemos, a partir da imagem, a formalidade e unidade do corpo. O filósofo observa que é através do espelho que o corpo ocupa um lugar – mas é importante entender que essa formalidade não distingue um corpo-espacial (físico) de um corpo-utópico (metafísico), mas sim compreende o corpo necessariamente e paradoxalmente, ao mesmo tempo, como lugar e utopia. Dessa forma, podemos retomar uma questão que Foucault aborda em outro ensaio e entender que o corpo, respaldado em sua ambiguidade, é acima de tudo uma heterotopia (hetero – outro; topia – espaço), um espaço múltiplo, pois, apesar de ser possível localizar seu ponto referencial na realidade, possui uma pluralidade de camadas de significação e relações entre si e outros lugares29. A potência do corpo – sendo essa abertura mais precisamente definida por Foucault como sua utopia -, é o ponto de partida de inúmeras investigações perceptivas, que não apenas atémse ao estudo científico e filosófico, mas desdobram-se também nas práticas da criação humana. Como afirma Lucia Santaella, desde o século XX o corpo foi sendo explorado e questionado tanto na ciência quanto na cultura, provocando uma quebra das “tradicionais ilusões sobre a estabilidade de nossos limites corporais e de sua identidade unitária”30.
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28. Não poderia deixar de fazer referência à importância do conceito do “estádio do espelho” por Lacan, ou seja, o momento de reconhecimento do sujeito quanto ao seu corpo, sua identidade e ao ambiente em seu redor ao observar seu reflexo no espelho. Cf. LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos revela a experiência psicanalítica In ‘Escritos’, pp. 93 – 103. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1998 29. FOUCAULT, Michel. Heterotopias In ‘Of Other Spaces, Heterotopias’. Architecture, Mouvement, Continuité , 1984, 46-49 30. SANTAELLA, Lucia. O Corpo Biocibernético In ‘Corpo’: catálogo / Fernando Cocchiarale e Viviane Matesco (curadores). São Paulo: Itaú Cultural, 2005, p.130.
Madeline Schwartzman, arquiteta, artista e pesquisadora, é autora de See Yourself Sensing: Redefining Human Perception (2011), uma espécie de catálogo que compila produções contemporâneas nos campos da arte, design e arquitetura que lidam com a complexidade da percepção humana sob a lógica da experimentação poética e tecnológica. Nesse livro, Schwartzman ilustra a reestruturação da nossa própria concepção do “ser” ao elencar criações de campos diversos, e traz a tona o que Foucault discutia décadas atrás sobre a abertura do corpo, ao afirmar que a ciência descobriu que os
31. SCHWARTZMAN, Madeline. See Yourself Sensing: Redefining Human Perception. London, UK: Black Dog Publishing, 2011, p.12. Tradução Nossa.
nossos sentidos não estão necessariamente confinados em nossos corpos: “Somos capazes de experimentar sensações através do outro (...)”31.
Livro de Madeline Schwartzman Imagem: Madeline Schwartzman. Disponível em www.barnard.edu [último acesso 10/11/2015]
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A sinestesia dos corpos, essa inter-relação potencial entre nós e o mundo, foi ponto fundamental nos experimentos do Ar, Pulso e Pele, que buscaram ampliar a percepção do próprio corpo e provocar interações: do corpo ao espaço, ao corpo do outro. Nossas pequenas utopias, essa permeabilidade de nós mesmos foi o que me lançou em busca de proporcionar esses exercícios de ressignificação perceptiva que saíram do papel e que, de fato, só têm sentido pela experiência. Como colocado anteriormente, além dos conceitos teorizados e partindo dessa pluralidade fecunda das práticas, vale mencionar algumas referências projetuais específicas que influenciaram o desenvolvimento dos três experimentos. Talvez um dos trabalhos que mais me incentivaram a realizar experiências sensoriais e, de fato, “incorporadas”, foi a instalação XYZ (2011), da artista multimídia Raquel Kogan. Não apenas por ser um trabalho que parte do corpo como ponto inicial, mas também por certa relação pessoal: em 2012, tive a oportunidade de realmente experimentar a instalação na III Mostra 3M de Arte Digital, com curadoria de Giselle Beiguelman e exposta no Instituto Tomie Ohtake. XYZ desdobra o corpo em escalas de sons ao utilizar especificidades corpóreas como conjunto de dados: o corpo é assimilado, desconstruído e então ressignificado de modo sonoro em tempo real. Cada variável do corpo produz elementos sonoros diferentes, sendo que assim, cada corpo que participa da instalação produz sua música singular, que pode ser tocada simultaneamente aos sons dos outros corpos. Como explica Kogan: “XYZ é uma instalação sonora-espacial-temporal que segue regras variáveis coletadas através de dados dos interatores: altura, peso e frequência cardíaca.”32. O lugar do corpo, com suas variáveis e particularidades, abre-se em poéticas, revelando a percepção ressignificada do que é ser um corpo.
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32. KOGAN, Raquel. Disponível em: <http://www.raquelkogan.com/>. Último acesso em 10/11/2015
Ter experimentado naquele tempo, eu, meu corpo, ser mais do que isso, ser transformado em som e vibração no espaço, foi um momento fundamental que viria por germinar junto a outras reflexões o caminho que levaria às principais questões tratadas no presente projeto desenvolvido aqui. A proximidade com o trabalho de Raquel Kogan e contato com tais reflexões e outras referências multimídias de interatividade, expansão do corpo, inter-relação sensorial e ampliação perceptiva, viriam por pautar então o campo de experimentação possível dentro da problemática da percepção corpórea investigada no projeto “III - Do corpo ao espaço”.
XYZ de Raquel Kogan Foto: Disponível no site da artista
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A produção do artista mexicano-canadense Rafael LozanoHemmer também incentivou o desenrolar do projeto ao lidar com desdobramentos do corpo ao espaço, através de instalações
33. Cf. < http://www.lozano-hemmer. com/projects.php>. Último acesso em 10/11/2015
interativas em escala ambiental33. A série denominada Relational Architecture parte do corpo do público como forma de intervenção em espaços urbanos. Um dos trabalhos desse grupo, Pulse Front (2007), ou Relational Architecture 12, propõe uma matriz de feixes de luz que desenha os pulsos de transeuntes sobre o céu da cidade de Toronto, Canadá. As luzes variam conforme o bater dos corpos, assim expandindoos de suas individualidades e compartilhando a potência do próprio corpo para ser percebido em uma escala ampliada.
Pulse Front de Rafael Lozano-Hemmer Fotos: Antimodular Research. Disponíveis no site do artista
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People on People de Rafael LozanoHemmer, instalada no Museu de Arte Contemporânea de Sidney, Austrália, em 2011 Foto: Alex Davies. Disponível em: www.news.bbc.co.uk [último acesso 10/11/2015]
Outro trabalho de Lozano-Hemmer que lida com a 34. Ibid.
corporeidade em escala ampliada é a instalação People on People (2010). A obra trata da sobreposição do espaço e tempo dos corpos, ao criar “uma plataforma para incorporação e interpenetração”34. Em um mesmo ambiente, o artista faz uso de projetores no piso, que geram sombras do público em tempo real, e projetores no teto, que mostram imagens gravadas de outros visitantes. A justaposição se dá na medida em que as imagens dos corpos passados surgem dentro do contorno das sombras dos corpos do presente. O contato com a produção desse artista apontou principalmente para a transposição da ressignificação do corpo individual para o corpo público. O impulso aqui foi dado no sentido de buscar uma experimentação compartilhada e em escala ampliada, e, mesmo que isso tenha implicado em algumas dificuldades técnicas, foi uma questão significativa no projeto, como fora descrito sobre os três experimentos Ar, Pulso e Pele anteriormente. 85
Importante também mencionar a mostra O Corpo na Arte Contemporânea, realizada no Itaú Cultural em 2005 e com curadoria de Fernando Cocchiarale e Viviane Matesco, da qual se destacam como influências o trabalho de Paulo Bruscky e a obra Haptic Wall (2004), de Daniela Kutschat e Rejane Cantoni. Com Registros /O Meu Cérebro Desenha Assim (1979), Bruscky investigou a força poética da ciência, da tecnologia e do corpo humano através de experimentos artísticos com eletroencefalogramas, radiografias e eletrocardiogramas. Segundo o artista, a intenção era “trabalhar direto do cérebro para o papel, sem usar a mão como intermediária”35. Transfigurando o pensamento diretamente em desenho, sem necessidade do gesto, Bruscky investe no corpo uma autonomia do controle, abrindo um caminho que subverte o sistema científico de análise de dados em uma ressignificação de linhas do acaso, quase como uma certa pureza perceptiva, a libertação de uma poética latente.
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35. Corpo: catálogo / Fernando Cocchiarale e Viviane Matesco (curadores). São Paulo: Itaú Cultural, 2005, p.50.
Stills de vídeo do trabalho Registros /O Meu Cérebro Desenha Assim de Paulo Bruscky Imagens: Disponíveis em www.artsy.com [ último acesso 10/11/2015]
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Tal como Kogan e Lozano-Hemmer e tantos outros investigadores da interface artística-tecnológica-humana, décadas antes, Bruscky já adotava a disrupção de paradigmas normativos e de sistemas supostamente funcionais, através do exercício artístico que revela uma abertura não apenas da percepção do corpo, mas também da possibilidade de manipulação de modelos pré-definidos. Já Haptic Wall trata de uma interface sonora/tátil em que microfones dispostos no espaço transmitem inputs para uma parede revestida de látex, com textura semelhante à da pele humana. Os sons eram transpostos na parede como vibrações, que eram distribuídas na superfície em sete áreas distintas e então sentidas pelas pessoas através do toque. Transformando som em tato, as artistas recodificavam o sistema perceptivo, justapondo os corpos do público diretamente ao ambiente em que estavam situados.
Haptic Wall de Daniela Kutschat e Rejane Cantoni Foto acima: Disponível em www.seer.ufrgs.br. Foto ao lado: Disponível em www.ramona.org.ar. [ último acesso 10/11/2015]
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Além de serem referências significativas no que tange a exploração da percepção sensorial e a poética do corpo, essas produções revelaram para mim uma liberdade constante quanto aos seus “meios”. Com isso, fui incentivada cada vez mais a alcançar uma experimentação que não se detivesse em especificidades técnicas, mas sim que pudesse essencialmente tornar perceptíveis as particularidades sensíveis em questão. Uma lâmpada industrial, uma superfície, um projetor, um estetoscópio, algumas caixas de som e cabos, computadores, ou o que for: objetos que ao serem em si ressignificados, ressignificaram. 89
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E assim, com a incansável colaboração e consultoria de amigos e pessoas queridas, sem as quais esse projeto não teria se concretizado, foi possível então colocar em prática os três experimentos de forma a provocar uma reflexão sobre o que quer que seja, enfim, habitar o nosso corpo-lugar.
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REGISTROS PRÁTICOS
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CONSIDERAÇÕES FINAIS:
SOBRE O TEMPO
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Através da abertura do corpo-lugar, ampliada nas sinestesias dos experimentos tratados aqui, acredito ser possível - para além das ideias discutidas previamente -, uma leitura paralela, a qual revela uma reconsideração do tempo do corpo: voltando assim o pensamento para um tempo antes do tempo, um tempo do lugar do corpo. Essa reflexão coloca-se aqui ainda embrionária, mas, contudo, esboça, quem sabe, um anseio por uma continuidade do porvir. As nuances quentes de Ar, os ritmos fortuitos de Pulso, os vestígios vividos em Pele. A princípio não intencionalmente, no entanto não menos presente, o tempo perpassa essas investigações do espaço fecundo que é o corpo. O tempo corporal que coloca em ritmo nossa existência, no entanto, não é o tempo que regra nossa vivência, pois esse é o tempo fragmentado, construído pela história e que regula nossa sociedade. Vale comentar brevemente o trabalho do historiador Jacques Le Goff sobre a construção do tempo pautado pelo trabalho. Segundo o autor:
(...) uma das principais necessidades que, no século XIV, levaram a sociedade a modificar a medida do tempo, quer dizer, o próprio tempo: a necessidade de adaptar-se à evolução econômica, mais precisamente às condições do trabalho urbano.36
36. LE GOFF, Jacques. O tempo de trabalho na crise do Século XIV: do tempo medieval ao tempo moderno In “Para um novo conceito de idade média” , Lisboa: Ed. Estampa, 1980, pg. 62
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O tempo construído pela dinâmica do trabalho atravessa os séculos e na contemporaneidade líquida apresenta transformações em relação ao espaço. Zygmunt Bauman aponta para um descolamento entre o espaço e o tempo atualmente, onde a virtualização tecnológica modifica a presença espacial e as relações do corpo com o tempo e espaço. Nas palavras do autor: “a quase-instantaneidade do tempo do software anuncia a desvalorização do espaço. (...) ‘Instantaneidade’ significa realização imediata, ‘no ato’ – mas também exaustão e desaparecimento do interesse”37. Os dispositivos do nosso cotidiano e as tecnologias disponíveis possibilitam a expansão do nosso alcance sem que tenhamos que efetivamente nos deslocarmos. Mas, paradoxalmente, da mesma forma que esse alcance é ampliado, o hábito desinteressante do instantâneo acaba por nos exaurir e apresenta, assim, um desvio da nossa atenção ao espaço corporal, e consequentemente, ao tempo do corpo. Por podermos estar cada vez mais longe mais rápido e sem esforço, estarmos em outro lugar sem sair do lugar, mas ainda sim regulados por um tempo sistematizado, negligenciamos nosso próprio espaço e tempo – as potências de nós mesmos. No entanto, ao pensarmos a percepção e a relação sensorial do corpo, mergulhamos na abertura de si e do outro e revelamos o avesso, o que temos latente, existindo então certo resgate ao corpo como um tempo fora do tempo, espaço fora do espaço. O corpo, físico e metafísico, fisiológico e imaginário, com seu próprio tempo e espaço.
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37. BAUMAN, Zygmunt. Op. cit., p.137
Aqui se torna propício retomar O som e o sentido de Wisnik, que coloca em comparação o tempo construído ao tempo corporal ao analisar as propriedades do som. O autor comenta o uso do corpo como referencial de tempo oposto à construção do tempo mecânico:
Os indianos usam o batimento do coração ou o piscar do olho como referência, esse último já próximo de uma medida mais abstrata, como aquela que certos teóricos chamam ‘duração de presença’ (a maior unidade de tempo que conseguimos contar mentalmente sem subdividí-la). Essa seria uma unidade mental, relativamente variável de pessoas para pessoa e que, como lembram bem os defensores da música in natura, é mais importante do que o tempo mecanizado do metrônomo e a cronometria do segundo.38
38. WISNIK, José Miguel. Op. cit., p. 19-20
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Focando a atenção para a escala do corpo como uma leitura do tempo, Wisnik comenta que “temos principalmente o pulso sanguíneo e certas disposições musculares (que se relacionam, sobretudo com o andar e suas velocidades), além da respiração.”39. A frequência de nossos ritmos, que variam de acordo com o modo como o nosso sensório se relaciona com os outros e com o mundo, revela o tempo do corpo não como um tempo regrado, mas justamente o tempo afetivo: antes dos segundos, temos o tempo do lugar aberto do corpo, a permeabilidade dos nossos espaços e tempos. É importante lembrar que essa leitura que se refere à modificação do tempo, à construção do tempo na contemporaneidade, as implicações disso na relação espaçotempo e a volta ao tempo corporal, surgem aqui apenas na tangente da superfície, como uma fagulha de uma reflexão. A complexidade dessas questões não cabe no momento deste trabalho, mas ainda sim surgem como uma possível abertura para outras inquietações a serem percorridas no futuro.
39. Ibid., p.19
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Podemos estar “fixos” em nossa corporeidade, mas, abertamente, estamos em outro “lugar” e em outro “tempo” - a alteridade é constante em nós. E é justamente na intenção de mostrar o “outro” em si, de revelar outras camadas de percepção do corpo, que os experimentos do projeto “III – Do corpo ao espaço” se constroem. Apontando o que está latente em nós, em busca da poética de si e do outro, nos debruçamos enfim sobre o prisma infinito do corpo.
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Sites: Rafael Lozano-Hemmer: Raquel Kogan:
www.lozano-hemmer.com www.raquelkogan.com
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