A Relíquia

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E莽a de Queir贸s


O meu papá foi nomeado diretor da Alfândega de Viana e logo nesse julho conheceu D. Rosa, gordinha e trigueira, que tocava harpa. Casaram. Eu nasci e a mamã morreu. Depois, numa noite de Entrudo, o papá morreu ao descer a escadaria de pedra da nossa casa. Eu fazia então sete anos. Acordaram-me, numa madrugada. Ao lado da cama um sujeito risonho e gordo faziame cócegas. A Gervásia disse-me que era o Sr. Matias, que me ia levar para muito longe, para casa da tia Patrocínio.


Enfim, num domingo de manhã, estando a chuviscar, chegámos a um casarão. O Sr. Matias disse-me que era Lisboa. -Esta é a titi – disse-me o Sr. Matias.- É necessário gostar muito da titi… É necessário dizer sempre que sim à titi! Eu senti um beijo vago, de uma frialdade de pedra, e logo a titi recuou: -Credo, Vicência! Que horror! Acho que lhe puseram azeite no cabelo! Assustado, com o beicinho já a tremer, murmurei: -Sim, titi. Apenas completei nove anos, a titi colocou-me, como interno, no Colégio. Cada mês a Vicência me vinha buscar para ir passar um domingo com a titi. Aos domingos vinham jantar connosco o padre Casimiro e o padre Pinheiro. A Vicência falava-me da titi. Assim eu fui sabendo que ela tinha sempre muito dinheiro em ouro e o comendador Godinho, tio dela e da minha mamã deixara-lhe prédios, a Quinta do Mosteiro, ao pé de Viana, pratas e louças da Índia… Que rica que era a titi! Era necessário ser bom, agradar sempre à titi.


Um dia eu fui estudar em Coimbra e como a barba me vinha negra, aceitei com orgulho a alcunha de Raposão. Os meses de verão em Lisboa eram depois dolorosos. Não podia sair. Não ousava fumar ou ir ao café.

Aos domingos havia outro comensal, velho amigo do Comendador Godinho, o Margueride. Um dia cheguei a Lisboa com as minhas cartas de doutor metidas num canudo de lata. A titi, satisfeita comigo, decidira comprar-me um cavalo para eu dar honestos passeios por Lisboa e estabelecia-me uma mesada de três moedas.


- Teodorico! – começou ela, cruzando os braços empertigada. – Teodorico! Tenho estado aqui a consultar com o senhor padre Casimiro. E estou decidida a que alguém que me pertença, e que seja do meu sangue, vá fazer por minha intenção uma peregrinação à Terra Santa… A Jerusalém. Cedo, na manhã de domingo, 6 de setembro, deixei o portão de minha tia, em caminho para Jerusalém! Foi num domingo e dia de S. Jerónimo que meus pés pisaram a terra do Oriente. E o meu companheiro, Topsius, doutor alemão pela Universidade de Bona, murmurou: - Egito! Egito! Eu te saúdo, negro Egito! E logo, do canto, um moço magro murmurou: - Em o cavalheiro necessitando alguma coisa, chame pelo Alpedrinha. Era de Trancoso e desgraçado. E ali estava no Hotel das Pirâmides, moço de bagagens e triste. Depois do café, o meu amigo Alpedrinha mostrou-me uma clara praça. Depois indicou-me a Rua das Duas Irmãs. Aí eu veria pendurada sobre a porta de uma lojinha. Entrei. Por trás do balcão ela estava lendo com um gato branco ao colo. - Trago-lhe recadinhos do Alpedrinha. Eu pusera-lhe o nome de Maricoquinhas. Ela era silenciosa: mas o seu simples sorrir saturava o meu coração de alegria. Comecei a pensar que, mal a titi morresse, eu poderia comprar esse doce retiro e viver ao lado da minha luveira. Parei abafado de paixão.


Cedo, amargamente cedo, veio o grego avisar-me que já fumegava na Baía, el paquete, chamado o Caimão, que me devia levar para Israel. Alpedrinha estava acomodando à pressa a roupa suja dentro do saco. Maricoquinhas, sentada, contemplava como se fossem bocados do seu coração atirados para o fundo do saco. - Levas tanta roupa suja, Teodorico! Mas Alpedrinha gritava: - Cavalheiro, ainda há aqui roupa suja! Descobrira uma longa camisa de rendas. Ai! era a camisa de dormir da Mary, quente ainda dos meus abraços! - Dou-ta, Teodorico! Leva-a, Teodorico! Espera, espera ainda, amor! Quero pôrlhe uma dedicatória. “Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozámos!”


Depois foi um murmúrio arrebatado de soluços, de beijos, de doçuras… -Mary, anjo querido! - Teodorico, amor!... - Escreve-me para Jerusalém… Topsius gritava, à porta do beliche, alegremente: - Levante-se Raposo! Estamos à vista da Palestina!


Entrei no Hotel Mediterrâneo, afogado em saudades da minha terra risonha. E logo, escrevi à hedionda senhora esta carta terníssima: Querida titi do meu coração. Cada vez me sinto com mais virtude. E atribuo-a ao agrado com que o Senhor está vendo esta minha visita ao Seu santo túmulo. De dia para dia passo o tempo a meditar a Sua divina paixão e a pensar na titi. Saberá que já lhe obtive certas relíquias, uma palhinha do presépio, e uma tabuinha aplainada por São José. Enquanto à grande relíquia, aquela que lhe quero levar para a curar de todos os males e dar a salvação à sua alma e pagar-lhe assim tudo o que lhe devo, essa espero em breve obtê-la. E a titi deite a sua bênção ao seu sobrinho fiel e que muito a venera e está chupadinho de saudades e deseja a sua saúde. Teodorico Fomos ao alvorecer fazer essa romaria. Era então dezembro. Topsius alçou a mão: - Aquele cimo iluminado, D. Raposo, é o Moriah, onde morreu Moisés! Estremeci. Não me contive: - Viva Nosso Senhor Jesus Cristo! Viva toda a corte do Céu! Erguia-se uma árvore repelente. Era um tronco grosso, curto e da sua cabeça rompiam, como longas pernas de aranha, oito galhos pretos, moles, viscosos, armados de espinhos. E logo uma ideia sulcou-me o espírito… Levar à titi um desses galhos, o mais espinhoso, como sendo a relíquia. Topsius declarou que eu não podia levar à minha tia nada mais precioso. Tirou do seu alforge uma fofa nuvem de algodão, envolveu uma folha de papel pardo, fez um embrulho redondo.


- A pé Teodorico! Amanhã é Páscoa! Ao alvorecer devemos chegar às portas de Jerusalém! - Ah Topsius, que cidade! – murmurei maravilhado. Muito tempo segui Topsius através da sua Jerusalém.


Cansado, estirei-me, com as mãos sob a nuca, no colchão de folhas secas. Que doce ar no terraço! E que alegre essa noite de Páscoa em Jerusalém! Só uma colina permanecera em trevas. Nessa hora, por baixo dela, alvejavam dois corpos despedaçados. Outro corpo, precioso de um espírito perfeito, jazia resguardado num túmulo novo, envolto em linho fino, perfumado de canela. Assim eu pensava quando no terraço surgiu uma forma envolta em linhos brancos, espalhando um aroma de canela. - Que a paz esteja convosco! Ah! Que alívio! Era Gad. - Que a paz seja contigo! - A Lua vai nascer… Todas as coisas esperadas se estão cumprindo… Agora dizei…Sentis o coração forte para acompanhar Jesus, e guardálo até ao oásis de Engadi?

Ergui-me, atirando os braços ao ar, num terror!... Ele não jazia pois morto, ligado e perfumado, sob uma pedra?... Vivia! Ao nascer da Lua ia partir para Engadi! Agarrei o ombro de Topsius. O meu amigo parecia enleado numa pesada incerteza. Ainda trémulo ousei: - E Jesus?... Onde está?


- Em casa de José da Ramata. Para que nada suspeitasse a gente do Templo, mesmo na presença deles depositámos o Rabi no túmulo novo, que está no horto de José. Três vezes as mulheres choraram sobre a pedra que, segundo os ritos, como sabeis, não fechava inteiramente o túmulo, deixando uma larga fenda por onde se via o rosto do Rabi. Cada um recolheu à sua morada… Mas apenas anoitecesse, José e outro deviam ir buscar o corpo de Jesus, e com as receitas que vêm no livro de Salomão, fazê-lo reviver do desmaio em que o deixou o vinho narcotizado e o sofrimento… Impressionado, decidido, Topsius traçou a sua capa: e descemos, num silêncio, pela escada. Parámos finalmente diante de um muro. Gad soltou o grito. A um canto um clarão surgiu. O homem pousou devagar a lâmpada sobre a tampa do poço, e disse: - Tudo está consumado. Gad, estremecendo, gritou: - O Rabi… - São coisas mais altas do que podemos entender. Tudo parecia certo. O vinho narcotizado fora bem preparado… E quando rolámos a pedra sobre o túmulo de José da Ramata, o corpo estava quente! Mas calou-se.


- Ao anoitecer – segredou o homem por fim – voltámos ao túmulo. Levantámos a pedra, tirámos o corpo. Parecia adormecido, tão belo como divino, nos panos que o envolviam… Demos-lhe de beber, chamámo-lo, esperámos, orámos…Mas ai! Sentíamos, sob as nossas mãos, arrefecer-lhe o corpo!...Um instante abriu lentamente os olhos. Depois estremeceu: um pouco de sangue apareceu-lhe ao canto da boca… E ficou morto! Topsius deteve-o com avidez: - Escuta! Preciso de toda a verdade. Que fizestes depois? - Era necessário, para bem da Terra, que se cumprissem as profecias! Depois enterrámos o Rabi numa caverna.

- Escuta ainda! E o outro túmulo, onde as mulheres de Galileia o deixaram, ligado e envolto em panos, com aloés e com nardo? O homem, sem parar, murmurou: - Lá ficou aberto, lá ficou vazio!... Então Topsius arrastou-me pelo braço.


- Teodorico, a noite termina, vamos partir de Jerusalém!... A nossa jornada ao passado acabou. Depois de amanhã as mulheres de Galileia voltarão ao sepulcro onde deixaram Jesus sepultado… E encontram-no aberto, encontram-no vazio!... “Desapareceu, não está aqui!...” Então, Maria de Magdala, crente e apaixonada, irá gritar por Jerusalém: “Ressuscitou, ressuscitou!” E assim o amor de uma mulher muda a face do mundo e dá uma religião mais à humanidade! Montámos e eu agarrava-me às crinas, tonto, como se rolasse entre nuvens… Ao outro dia levantámos e começámos a romagem de Galileia. Quando chegámos a Nazaré nem me interessaram as lindas judias. Subitamente, saudades do passado, cinzas que me cobriam a alma, foram varridas… - Não quero! – gritei – Estou farto!... Irra! E aqui lho declaro, Topsius: de hoje em diante não torno a ver nem mais um pedregulho, nem mais um sítio de religião… Irra! Tenho a minha dose!


Nessa semana ocupei-me em documentar e empacotar as relíquias menores que destinava à tia Patrocínio. Eu levava-lhe uma tabuinha aplainada por S. José, duas palhinhas do curral onde nasceu o senhor; um bocadinho do cântaro com que a Virgem ia à fonte; uma ferradura do burrinho em que fugiu a Santa Família para a terra do Egito; e um prego torto e ferrugento… Mas cuidei da relíquia maior, a coroa de espinhos. Durante esta atarefada semana, o embrulho da coroa de espinhos permanecera na cómoda. Foi só na véspera de deixarmos Jerusalém que o encaixotei com carinho. Já chegávamos à Porta de Damasco quando um grito soou: - Doutor, cavalheiros!... Um embrulho! Esqueceu um embrulho… Era o negro do hotel, agitando um embrulho que logo reconheci. A camisinha de dormir da Mary. - Adeus para sempre, terra da Palestina! Eu acenei com o capacete. - Adeusinho coisas de religião. Nessa mesma tarde soube que um vapor partia de madrugada para as terras de Portugal. De manhã o fiel Topsius veio acompanhar-me. - Adeus, companheiro, adeus. Então, posso dizer à titi que a coroazinha de espinhos é a mesma… - Pode dizer-lhe em meu nome que foi a mesmíssima, espinho por espinho. Os negros remaram. Eu levava, pousado sobre os joelhos, o caixote da suprema relíquia. Duas semanas depois avistei entre as árvores sem folhas o portão negro da titi! O deleite de rever a minha Lisboa. Ao fundo do pátio, triste, vi a Sr.ª D. Patrocínio das Neves. - Oh, titi! - Oh, menino! - Titi, trago-lhe muitas saudades do Senhor… - Dá-mas todas, dá-mas todas!... - Aqui está ela, titi! Aqui a tem, a sua divina relíquia, que pertenceu ao Senhor!


- Filho, seria bom que eu soubesse que relíquia é … - Logo se verá. À noite é que se desencaixotam as relíquias. - Teodorico, filho, ouve! Tem-me estado a lembrar… Parece-me que para destapar a relíquia é melhor que estejam só pessoas da Igreja…

Foi-me doce ao penetrar na sala, encontrar os amigos alargando para mim os braços extremosos. A titi pousava no sofá. E ao lado um padre muito magro. Era o Negrão. - Aqui nos sentamos todos, fazemos roda, e o nosso Teodorico conta por ordem todas as maravilhas que viu! Porque saibam os meus amigos – anunciou ela – que o meu Teodorico trouxe-me uma santa relíquia. Então o Negrão babujou: - Resta saber, cavalheiros, de que relíquia se trata. Tossi, cerrei os olhos. - É a coroa de espinhos! Rapidamente, ajoelhei à beira do caixote, alcei o martelo em triunfo… Uma camada de algodão. Surgiu o embrulho em papel pardo. - Ai que perfume! Ai! Ai, que eu morro! – suspirou a titi.


- É à minha querida titi, só a ela, que compete, pela sua muita virtude, desembrulhar o pacotinho!... A titi segurou-a nas pontas dos dedos, repuxou-a bruscamente – e aos pés da cruz, espalhou-se, com laços e rendas, a camisa de dormir da Mary! E pregado nela por um alfinete, o cartão: “Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozámos!” A camisa de dormir da Mary!

Percebi a titi caminhando para mim, lenta, lívida, medonha… Estacou.


E através dos dentes cerrados cuspiu esta palavra: - Porcalhão! E saiu. E a Vicência surgiu diante de mim: - Menino! Menino! A senhora manda dizer que saia imediatamente para o meio da rua, que o não quer mais nem um instante em casa… Despedido! Estava só na rua e na vida! E então descobri que a caixa, apanhada tontamente entre as malas, era a das relíquias menores. Marchei. Havia uma semana que farejava Lisboa à busca de pão incerto, quando uma manhã o André da Pomba de Ouro me trouxe uma carta que lá fora deixada. Abri.

“Meu querido amigo. É meu dever participar-lhe que sua respeitável tia sucumbiu. Do testamento consta que deixa a seu sobrinho Teodorico o óculo que se acha pendurado na sala de jantar…” Eu – o óculo. Para ver o resto de longe. Ao outro dia entrei no jardim de S. Pedro de Alcântara. E mal dera alguns passos encontrei o meu amigo Crispim, filho de Teles, Crispim & Cª. Era


este o louro Crispim, que outrora no Colégio me dava beijos no corredor e me escrevia bilhetinhos. Crispim velho morrera e este meu Crispim era agora a firma. Parámos num banco e aí, no silêncio narrei a camisa de Mary, a relíquia no seu embrulho, o óculo e o meu quarto miserável na Travessa da Palha. - De modo, Crispinzinho da minha alma, que aqui me encontro sem pão! - Ora o queijo dou-to eu, meu velho! Ora tu tinhas uma boa letra. Uma conta de somar sempre saberás fazer… Com duas lágrimas a tremerem-me nas pestanas, abracei a firma. Ora num sábado de agosto, à tarde, quando eu ia fechar o Livro de Caixa, parou diante da minha carteira, risonho: - Ouve lá, ó Raposão, tu a que missa costumas ir? Amanhã vou com a minha irmã à outra banda. Estou com vontade que conheças a minha irmã!...

- Olha, Crispim, eu nunca vou à missa… Tudo isso são patranhas… Eu não posso acreditar que o corpo de Deus esteja todos os domingos num pedaço de hóstia feita de farinha.


- Pois olha, Raposo, calha-me essa franqueza! Não tens religião mas tens cavalheirismo. Assim eu conheci a irmã da firma. Chamava-se D. Jesuína, tinha 32 anos e era zarolha. Sabia geografia e todos os rios da China, sabia história e todos os reis de França.

Na véspera de Natal, Crispim & C.ª chegou à minha carteira: -Ora diga lá o Sr. Raposo. Há aí dentro desse peito amor verdadeiro à mana Jesuína? - Amor, amor, não… Mas acho-a um belo mulherão; e havia de ser um bom marido. - Dá cá essa mão honrada!- gritou a firma. Casei, sou pai. Tenho carruagem e a consideração do meu bairro. Agora, pai, comendador, proprietário, eu tinha uma compreensão mais positiva da vida.


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