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A964e AVANCINI, Vitória Luísa Em busca de mim: a jornada da reinserção social de um adicto. / Eduardo Nunes de Siqueira Coelho, Isabelle Francine Silva Santos, Karine Medeiros Cunha, Marcio Eduardo Caetano Luiz, Vitória Luísa Avancini. Sorocaba (SP), 2020. 160 p. Projeto de Graduação ESAMC Comunicação Social com habilitação em Jornalismo - Faculdade Esamc Sorocaba. 1.Adicção 2. Dependência química 3. Drogas 4. Reinserção social CDU 316.77:070 Bibliotecária Responsável: Edna Amaral Résio Cobello CRB 8/8651 Orientadores do projeto: Prof. Dr. Rodrigo Gabrioti Prof. Ms. Quelen Torres
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Aos nossos personagens, que abriram suas histĂłrias, angĂşstias e alegrias e tornaram este livro possĂvel. Aos nossos pais, que nos criaram para acreditar em segundas chances. Aos nossos orientadores por iluminar, todos os dias, o caminho do conhecimento.
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SUMÁRIO PREFÁCIO
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QUANDO ME PERDI DE MIM
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TODA AÇÃO TEM UMA REAÇÃO
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CIÊNCIA & RELIGIÃO
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EXCEÇÕES
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A atração pelas drogas
Os efeitos clínicos, psicológicos e sociais das drogas A incansável busca por tratamento A tão sonhada reinserção social
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PREFÁCIO O Jornalismo é uma prestação de serviços, um labor diário daqueles que desejam informar, relatar e trazer à luz todos os fatos, mazelas e conquistas da sociedade. Mais do que expor as histórias de dependentes químicos recuperados e hoje, mais um dia, limpos1 do vício que os afligem, o intuito deste livro é incitar reflexões sobre a adicção como um problema de saúde pública. Para entender melhor os fatores que influenciam a dependência química por drogas, conceituar o tema se faz necessário. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a toxicodependência, é definida como um estado psíquico e/ou físico que é resultado da interação entre um organismo vivo e um produto tóxico. O que caracteriza o vício e a adicção então, 1 Nome dado popularmente ao adicto que não está mais consumindo nenhum tipo de droga, lícita ou ilícita.
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são as modificações de comportamento, entre outras reações, que se adicionam à compulsão pelo uso de drogas constante para satisfazer efeitos específicos ou evitar a abstinência. A adicção é um problema esquecido por grande parte da sociedade. Os estigmas, preconceitos e préjulgamentos que compõem o tema fazem com que a compreensão da situação e a minimização dos danos causados pelo vício não sejam presentes nem considerados. Porém, de acordo com o último Relatório Mundial sobre Drogas 2020, divulgado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), mais de 35 milhões de pessoas sofrem de transtornos associados ao uso de drogas. Além disso, o consumo de drogas aumentou 30% no mundo entre 2009 e 2018, representando um alto risco no acréscimo de dependentes químicos por todas as partes do globo. No Brasil, ainda de acordo com esse mesmo relatório da UNODC, aproximadamente 2,3 milhões de pessoas apresentaram dependência de álcool e 1,2 milhão de pessoas, entre 12 e 65 anos, se tornaram dependentes de alguma substância, exceto álcool e tabaco, nos 12 meses anteriores à pesquisa. Considerando esse panorama, decidimos analisar e contar as histórias de pessoas que viveram a dependência mostrando seus tropeços e como se reergueram na sociedade para hoje estarem limpos e recuperados.
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Este livro-reportagem aborda, entre outros temas e problemáticas, uma das principais dificuldades dos dependentes químicos: a aceitação social. A forma como a sociedade interpreta as escolhas do próximo pela utilização das drogas é determinante para o processo de reabilitação dos adictos. As dificuldades que essas pessoas encontram pelo caminho vão muito além dos efeitos químicos dos entorpecentes no organismo. Elas também dizem respeito aos núcleos sociais onde estão inseridos em companhia de um entorno com pessoas próximas que apoiam cada tentativa de recuperação. A sociedade identifica o adicto como um desviante, aquele que não segue um padrão, que mostra uma conduta incomum e que sofre como “castigo”a exclusão social. O sociólogo Howard Becker, por exemplo, define que o cenário desses indivíduos ou outsiders, envolve o seguinte: “Regras sociais definem situações e tipos de comportamento a elas apropriados, especificando algumas ações como ‘certas’ e proibindo outras como ‘erradas’. Quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo”. O conceito de outsider é abordado, neste livroreportagem, em uma perspectiva holística, ou seja, mostrando o que essas pessoas viveram e como elas
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reportam suas experiências individuais com o vício e a percepção social disso, afinal, o usuário de drogas é visto como um ser que rompe com a consciência coletiva em prol de suas motivações biológicas e satisfação próprias. É sob essa ótica de desintegração do tecido social, conceitualmente abordada pelo sociólogo Émile Durkheim como anomia social que o adicto provoca uma ruptura com a sociedade, configurando um processo em que suas ações individuais deixam de ser reguladas por normas claras e coercitivas. Além disso, seu comportamento se impõe como uma afronta à estruturação social vigorante que passa a sofrer algum tipo de coerção social ou psicológica, a partir do momento em que é descoberto. Os protagonistas desta história apresentam semelhanças e conexões e durante suas histórias, se abriram para dar forma, cor, intensidade e empatia às páginas desse livro-reportagem, que trilha o caminho do auge da adicção à reinserção social, em depoimentos repletos de medo, anseio, renúncia, reconhecimento e reconstrução de identidade. Este livro traz visões que vão além dos escombros da miséria e dos rastros de destruição deixados pelo abuso de drogas com o propósito de impactar e mudar a forma como olhamos para essas pessoas. A discussão acerca do tema da dependência
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química, que flagela os submersos no mais profundo abismo de dor da adicção e transparece uma sociedade despreparada para compreender e lidar com o problema de modo empático, envolve desconforto, preconceito e um sentimento contraditório entre projeção pessoal e ações. José, nome fictício a um de nossos entrevistados pelo fato de não querer ser identificado. O empreendedor que vive em Tietê, no interior de São Paulo, passou mais de 10 anos envolvido com as drogas que o conduziram à criminalidade. Depois de sete passagens por quatro clínicas de recuperação, está limpo há mais de 2 anos. João, nome fictício de outro entrevistado que preferiu não se identificar, vive em Porto Feliz, vizinha a Tietê. Na sua história, há um período de mais de duas décadas de dependência. Hoje, João está há mais de 6 anos limpo e reinserido na sociedade trocando o vício pelo orgulho de ser um técnico em Logística. Elmo Alexandre de Souza, morador de Votorantim, no interior de São Paulo, também tem no passado, a marca da adicção. Foram mais de duas décadas até ostentar atualmente o presente limpo, exercendo a profissão de bombeiro civil. São mais de 6 anos limpo e um propósito de ajudar ativamente outras pessoas a se recuperarem das drogas. No mesmo caminho, está Marcio Jesus dos Santos, morador de Atibaia, também no interior de São Paulo.
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Aliás, a história dele está ligada à de Elmo. Após mais de uma década e meia de adicção, hoje, já recuperado, Márcio trabalha como coordenador de uma clínica para reabilitação de dependentes em Sorocaba. A recuperação uniu o casal Arlem e Laila Maffra. Enquanto ela usou entorpecentes por 3 anos, o marido esteve imerso no mundo das drogas por duas décadas. Eles se conheceram na reabilitação, se apaixonaram, se casaram, se recuperaram juntos e compartilharam suas histórias de vida, antes e depois da união, em três livros. A proposta de ajudar outras pessoas a superar essa doença os incentivou a criar o projeto Escola sem Drogas. Com uma nova vida, Arlem é pastor, músico e consultor de dependência química do Denarc, Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico do Estado de São Paulo. Laila é teóloga e escritora. Os mistérios, fatos, relatos e dramas dos adictos se encontram ao longo de seis capítulos. No primeiro, “Atração pelas drogas”, o início da história desses dependentes; o desejo pelas drogas; a dificuldade em se libertar do vício. Situações contextualizadas pelas experiências de cada envolvido e a análise de especialistas sobre comportamentos escolhidos e suas consequências. No segundo capítulo, a abordagem passa pelos efeitos clínicos, psicológicos e sociais das drogas com
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questões que envolvem mostrar e refletir sobre como o mundo das drogas alterou a história dos adictos e o que esse caminho provocou nos relacionamentos pessoais e na vida em sociedade. O terceiro capítulo descreve a influência da Fé no tratamento e recuperação dos adictos descrevendo as crenças e contrapondo essa visão à Medicina. Por fim, as histórias de superação desses adictos revelando como a reinserção social se deu e quais são os fatores que auxiliaram e atrapalham essa jornada que tem como um de seus expoentes a recuperação da imagem perante o convívio social. A partir da subjetividade de cada história associada à objetividade de um problema de saúde crônico, esperamos que ao final da leitura, você consiga observar de outra maneira a questão da adicção como uma situação decorrente de nuances, núcleos sociais, desafios e preconceito. Mais do que isso, é também uma forma de pelo menos conhecer por meio deste livroreportagem que há um problema por detrás de cada situação. E dar voz a essas pessoas é a nossa principal contribuição para mostrar a eles e à sociedade que todos podem errar e ter uma segunda chance. Um recomeço sempre é possível!
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QUANDO ME PERDI DE MIM A atração pelas drogas
“Eu achava que eu parava a hora que eu quisesse parar, mas não foi bem assim. As coisas progrediram e eu desencadeei uma doença”. O depoimento é de Marcio Jesus dos Santos, 40 anos, relatando seus 18 anos de dependência química. Assim como ele, outros adictos narram como chegaram ao mais profundo abismo de dor
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em trajetórias repletas de desconforto, preconceito e um sentimento contraditório entre projeção pessoal e ações. Embora seja difícil trilhar uma cronologia para a degradação física e psicológica causada pela adicção, entre as mais diversas motivações e a influência dos mais diferentes núcleos sociais, a sensação inicial de que tinham o controle sobre o uso de drogas, a evolução para outras substâncias, a consequente sensação de que havia uma incontrolável atração pelo químico e o dilema entre estar vivenciando um problema moral ou patológico são relatos comuns. “Boa parte da minha vida, eu convivi com isso de que eu tive um desvio moral muito forte. Nos meus contatos com profissionais da área da ciência da dependência química, eu realmente cheguei à conclusão de que, na minha mente, tinha uma atração pelas drogas diferente de outras mentes”, conta Arlem Maffra. Não há uma resposta simples, um motivo singular ou mesmo um emaranhado de causas delimitadas que transformaram Marcio ou Arlem em adictos cuja única vontade, por muitos anos, era de continuar usando drogas até morrer. Sobre as características que os levaram à degradação completa, eles apontaram um caminho em comum: o discernimento de que havia algo diferente. Ou que sempre houve. “Eu tinha amigos empresários na minha segunda experiência com as drogas que usavam de vez em quando e quando a coisa apertava realmente, eles paravam, mas eu não conseguia. E, daí, eu entendi
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que eu tinha uma patologia de verdade”, conta Arlem. Arlem é marido de Laila Maffra, uma amazonense de 53 anos que passou boa parte de sua vida em um seringal, em Manaus. Ela lembra que indícios da adicção já apareciam na sua infância. “Parecia que eu já era uma criança que tinha alguma conexão com o químico. Minha mãe fumava e eu achava bonito o cigarro, a maneira que ela fumava. Quanto mais ela batia, eu dizia pra mim: ‘eu vou fumar! É gostoso fumar’. O cheiro do cigarro me fazia bem”, relata sobre uma ocasião em que a mãe a pegou fumando escondido. Assim como Laila e Arlem, Elmo Alexandre de Souza, 40 anos, também percebeu que havia algo diferente desde o primeiro contato com as drogas a ponto de alterar a sua conduta. “Eu mentia muito, já enganava meu pai e minha mãe. Já tinha comportamentos assim! Já entrei alcoolizado na escola. Minha mãe foi chamada muitas vezes para falar com a diretora”, lembra. Em geral, a adicção se vale de critérios baseados na apresentação clínica e no histórico do paciente. “Não é nem a quantidade consumida e nem a frequência que determina o diagnóstico. É mais a relação da pessoa com aquilo, o uso nocivo, o uso problemático. Vai diminuir a capacidade de trabalho, vai trazer problemas para a saúde, vai ter uma restrição de repertório, vai deixar
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de fazer as coisas do dia a dia para agir em função da droga ou bebida”, explica Guilherme Trevizan Kortas, médico psiquiatra e voluntário no GREA (Grupo Interdisciplinar de Estudos em Álcool e Drogas), do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, a Universidade de São Paulo. A adicção é uma doença multifacetada que deriva de incontáveis situações, trazendo perturbações mentais e físicas que interferem nas relações sociais. Em seus diferentes contextos, os adictos embarcam no mundo das drogas acreditando que podem ter controle sobre seu uso e com a sensação de que podem evitar o naufrágio, mas quando perdem o controle do uso, elas se colocam em situação de risco e isso, na visão do médico Guilherme Kortas, é a chave para a dependência. Tornar-se dependente envolve uma teia de fatores. Não se trata de um único motivo que caracteriza a adicção. E muitos só percebem que estão “dominados” por essa doença quando deixam de resistir a um copo de bebida alcoólica ou ao consumo das drogas sem controle. Comumente a justificativa de quem adoece está em históricos familiares sendo os mais apontados a desestrutura e o abandono. Também são sinais de entrega à adicção o vazio, a tristeza e a baixa autoestima. Para esses “sintomas” que envolvem o emocional, a fuga está no abuso das drogas.
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As alterações causadas por cada substância psicoativa variam de acordo com as características de cada pessoa. “Há quem faz uso de uma determinada droga para se libertar de suas dores emocionais. Há quem faz uso
como tentativa de resolver seus problemas familiares. Outros fazem usos ritualísticos em determinados grupos religiosos. Outros para se desprender das amarras de uma simples timidez”, explica o psicólogo Julio Cesar Pereira Ramos Filho, pós-graduando em Dependência Química e formado na UNIP, Universidade Paulista, em Sorocaba. As fugas são resultado das mais controversas e inesperadas situações. No caso de Laila, se entregar às drogas está ligado à decepção de ver o pai, seringueiro e pescador, receber uma proposta para integrar o Cartel de Medellín2. Associado a este episódio, ela também se lembra da postura do pai:
“Liderança, bravura,
desenvoltura na linguagem, no falar, no articular e o espanhol ele falava muito bem porque estávamos próximos à fronteira”. Só que esse “desenho” de um líder carregava por trás uma situação muito mais complexa que a menina Laila, desprovida de qualquer malícia, era incapaz de compreender. 2 O Cartel de Medellín é uma rede de traficantes de drogas da cidade de Medellín, na Colômbia, fundada pelo icônico Pablo Escobar, que já foi tema de produções cinematográficas. Entre 1972 e 1993, o cartel ficou ativo operando na Colômbia, Bolívia, Peru, Honduras, Estados Unidos, Canadá, Brasil e também pela Europa.
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Laila não entendia por que o pai viajava tanto e nem porque muitas pessoas frequentavam sua casa, em reuniões regadas a uísque, charutos e relógios caros. “Parecia filme. É como se eu sentisse que tinha alguma coisa fora do normal, era esse pressentimento. Todas as vezes que ele tinha que viajar, parecia que estava em perigo”. O envolvimento com o tráfico de drogas só ficou claro muitos anos depois. “Meu pai começou a dominar toda aquela região amazônica, desde a plantação, desde a produção da cocaína, os laboratórios clandestinos dentro da selva, o transporte para outros países e aquilo dali nos trouxe bastante prosperidade e pouco tempo dentro dessa prosperidade”, explica. A morte do pai, aos 42 anos, e o conhecimento, de fato, de que ele era um traficante de drogas foi um abalo emocional. Além do acidente aéreo, já que seu avião que conduzia 100 quilos de cocaína foi abatido por uma bomba em solo boliviano, seu sepultamento, sem direito a um velório, foi um trauma. Assim, Laila, aos 12 anos, viu seu mundo verde, como se refere à infância na Amazônia, desmoronar. Em meio à angústia que sentiu ao perder o chão, ela não somente viu sua vida estável ser deixada para trás pela janela de um avião, enquanto viajava para a Bolívia, onde o pai foi morto, como também sentiu a necessidade de inundar aquele imenso buraco que tinha no peito pela perda. E a maneira encontrada para isso foi o uso de uma substância forte - como o uísque e o
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ecstasy - o suficiente para amenizar toda a dor. “Ficar sabendo através dos jornais que ele era traficante, eu acho que foi um acúmulo de dor. O tráfico de drogas, a maneira que ele foi sepultado [...], eu acho que foi um acúmulo de dor que eu não consegui processar.” Para Laila, a perda do pai, a quem considerava ser o seu porto seguro, e o afastamento da mãe por um período importante foram fatores contribuintes à sua inserção no mundo das drogas. “Minha mãe teve que viajar, ficar 2 anos em Pontes e Lacerda, no Mato Grosso, cuidando das papeladas e de tudo que ele tinha lá, então eu fiquei órfã de pai e mãe durante 2 anos. Quem cuidava de mim era minha avozinha”, contou emocionada sem esconder as lágrimas. Quando foi inserida no contexto do uso de drogas e apresentada à bebida alcoólica e ao ecstasy, em uma balada durante a adolescência, Laila já tinha o terreno do coração preparado para a semente da destruição, afinal
estava
emocionalmente
desestruturada
e
também acostumada com o abuso de drogas, comum em seu núcleo social familiar. “Somos quatro irmãs. Eu fui a única que fui buscar esse refúgio nas drogas. Desde o começo, eu já senti e reagi diferente, eu assimilei diferente aquela perda [...] eu posso dizer que foram vários fatores: esse trauma, essa orfandade, essa solidão”, conta.
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Laila fez escolhas que a levaram por um caminho ainda mais trágico. Embora tenha normalizado o consumo de bebidas alcoólicas, ela também foi influenciada pelo núcleo social. “Meu pai trazia muito uísque para casa, então, eu sempre tive contato com a bebida”. Depois, em um tipo de processo de socialização como pertencimento, Laila experimentou drogas em seu ciclo de amizades da escola, aos 15 anos. “A gente fazia piquenique de álcool. Cada um levava uma bebida dentro da mochila, saía da escola, ia beber na casa de alguém. O nome da turma que eu andava era Grupo do Uísque”, conta. Ao se apaixonar por um garoto que era usuário de drogas, Laila afunilou ainda mais sua trajetória com alguns charutos de maconha até chegar na cocaína. O descontrole do uso de drogas foi evoluindo e ela se tornou agressiva, causando problemas à família. Dessa forma, a falta de estrutura familiar para lidar com sua adicção há 3 anos, com tentativa de suicídio, overdose, agressões e comportamento psicótico, deixou à mãe de Laila uma única alternativa: aceitar a sentença de internação da filha por um 1 ano e 6 meses, em Brasília. O afastamento completo do núcleo social, não só o familiar, mas principalmente do convívio com os colegas que apresentaram as drogas a ela, foi suficiente para que Laila conseguisse driblar seu
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vício, se recuperar e até mesmo se apaixonar por Arlem Maffra, no centro de tratamento para dependentes químicos Desafio Jovem de Brasília. Ele, da classe média alta de Belo Horizonte, sempre projetou seus sonhos em ídolos do universo da música. Sobre o envolvimento com as drogas, ele acredita que a permissividade do pai contribuiu, em momentos críticos da sua adolescência e um descuido foi suficiente para facilitar o caminho dele ao lado de más escolhas. “Aquele era um momento de prestarem muita atenção a cada sim ou não aos meus pedidos. [...] Os respingos do Woodstock3 , o maior festival de rock e de drogas do mundo, atingiam - em cheio - minha geração. Mega shows, bandas que encantavam milhões de jovens (inclusive eu) com lindas canções, melodias e ritmos no compasso das batidas do coração. Em suas bagagens, porém, muito mais que roupas e instrumentos; em seus cadernos, muito mais que músicas. Desembarcavam em nossas vidas trazendo a ideia e a cultura do uso de drogas”, escreveu em seu livro Mais Forte que o Crack (2014), que traz capítulos alternados entre seu romance com Laila e o dia a dia como morador de rua em São Paulo. 3 O Festival de Rock Woodstock, ocorrido em agosto de 1969, nos EUA, marcou uma geração de jovens ligados aos ideais do movimento hippie e ao rock ‘n roll, em um contexto histórico que representava o auge da bipolaridade geopolítica, a Guerra Fria. A contracultura, que surgiu como uma forma de contestação ao clima de rivalidade, impulsionou o uso de drogas e a música como forma de protesto.
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Arlem usava do violão para ter plateia garantida. Sempre rodeado de muitos amigos, saber tocar atraiu para perto dele adolescentes com experiências diferentes, incluindo as drogas. Seus pais, com as vidas voltadas ao mundo corporativo e agendas cheias de trabalho não enxergaram a ameaça iminente. Desde a primeira vez que usou, Arlem não conseguia escapar do vício que acarretou para ele uma série de sequelas psicossociais. A tentação das drogas teve como porta de entrada os amigos, um núcleo do qual ele sempre achava que seria influenciado apenas uma vez. “Foi uma festinha de escola na casa de uma colega. Toda minha rede de amizades estava lá e uma das pessoas me apresentou a maconha. [...] Naquele momento, aquilo veio para mim como se fosse só uma experiência, nada de marginal. É só uma experiência, só hoje, é só a festa. Foi assim que eu tive o meu primeiro contato com as drogas. E eu continuei usando por 2 anos”, conta Arlem. Na tentativa de fugir e passar uma borracha naquele episódio, Arlem pediu aos pais para se mudar de Belo Horizonte e iniciar o tratamento em outra cidade. Com essa mudança, ele acreditava que se afastaria daquele núcleo social dos amigos e logo se recuperaria. “Eu pedi para estudar em Brasília porque ficaria fora daquele ciclo de amizades. Eu interrompi e foram longos anos sem nunca mais ter contato com nenhum tipo de droga”, conta.
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Quando já estava casado com Laila - que seguia a vida normalmente “limpa”- Arlem acabou tendo 22 recaídas, situação que chegou a colocá-lo como consumidor de crack e morador de rua na Cracolândia, em São Paulo, por 7 anos, em condição total de entrega ao vício. “Eu era completamente refém da vontade que tinha de fumar uma pedra [de crack]. Laila não podia mais fazer parte da minha vida, ela merecia ser feliz. Eu estava bem vestido, mas a decisão que eu acabara de tomar me levaria para uma realidade bem distante do meu estilo de vida”, descreveu o momento em que abriu mão de sua vida matrimonial, seu emprego e seus filhos e trocou a internação pelas ruas da Cracolândia4. Segundo o médico psiquiatra Guilherme Kortas, o conhecimento dos limites e a compreensão da situação que levou o adicto ao uso novamente são blindagens para que o problema não volte a acontecer. “É importante entender o lapso como um escorregão [...] e tentar entender o que o levou a ter esse lapso. Se foi uma fissura muito forte, se foi se colocar em uma situação de maior risco, se foi em uma festa, no local onde vende a droga ou se saiu com alguma pessoa que usava a droga e acabou não resistindo. É tentar enxergar os gatilhos e evitar as situações de risco. Tudo isso vai trazendo um aprendizado para evitar novas recaídas”, explica.
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Trecho retirado do livro Mais Forte que o Crack (2014).
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Depois do episódio envolvendo uso de drogas na adolescência, Arlem se dedicou à família e abriu seu próprio negócio - uma empresa de casas pré-fabricadas. No entanto, ao passo que suas responsabilidades aumentavam, ele caiu nas armadilhas de seu próprio cérebro, acreditando ter controle sobre sua adicção. “Como a primeira vez eu consegui resolver, eu achava que todas as vezes, eu resolveria. Foi nessa segunda vez, quando a coisa ficou muito séria, que eu comecei a ter consciência de que eu tinha uma patologia, de que aquilo não era moral”, explica. O retorno de Arlem ao abuso de drogas ocorreu quando ele trabalhava como caminhoneiro cruzando as principais vias do país. “Sócio de uma grande empresa de casas pré-fabricadas, eu ansiava vôos mais altos. Começamos a vender cada vez mais; às vezes, havia tantas entregas para fazer que - em situações de emergência - eu e meu sócio pegávamos os caminhões e dirigíamos dias e noites sem parar, inclusive por estradas de outros estados. Por vezes, não conseguíamos parar e dormir direito, pois os prazos de entrega tinham que ser cumpridos. Comecei a sentir muito cansaço e sono”5. Foi em uma noite dessas que Arlem recorreu ao rebite, uma droga derivada da anfetamina e das mais 5
Trecho retirado do livro Mais Forte que o Crack (2014).
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comercializadas ilegalmente nas estradas do Brasil, para se manter acordado. Acreditando ter uma motivação - a dedicação ao trabalho - distinta dessa vez, já que não estava utilizando somente para obter prazer rápido, ele apertou outra vez o gatilho para degradação de sua saúde física e mental. “Eu havia experimentado e me viciado em maconha e cocaína na minha adolescência. Pensava que havia sido somente uma experiência mal vivida, uma página virada da minha vida. Mas não foi isso que eu descobri. Realmente, aquela pseudodroga me manteve acordado, mas também acordou o meu passado. Os sinais de desejo pelo prazer fácil foram reconectados e a fome da abstinência começava a se instalar”6. Com o álibi de que essa nova droga era diferente das que o tinham levado à adicção, aos 16 anos, e também por ser uma pessoa diferente, que apenas estava buscando o trabalho como fonte de oferecer mais conforto à família, Arlem usou do rebite com a desculpa de “salvar sua vida” e não sofrer nenhum acidente na estrada. Ele não dormiu ao volante, mas, disse sim para uma jornada que o levaria à uma drástica colisão. Ao não encontrar os comprimidos no porta-luvas e no console do carro, nem nos postos de gasolina onde costumava comprar o rebite, ele recorreu obstinadamente a uma cota de cocaína, uma droga que, com efeito semelhante, o manteria 6
Escreveu em seu livro Mais Forte que o Crack (2014).
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acordado. Essa decisão, que tomou por uma vontade incontrolável, afetou além dele, as pessoas que amava, resultando assim na quebra de vínculos importantes que o fizeram abandonar tudo e todos. Assim se dava mais uma recaída. Arlem só se deu conta de que a droga que não era a de sua preferência - é assim que os adictos se referem à droga que causou dependência química - causou prejuízos quando ele começou a colher os frutos do que havia plantado. “Eu não tinha noção de que tipo de despertar ia causar quimicamente na minha cabeça se eu usasse uma outra coisa. Eu fiz um recorte da cocaína e da maconha: isso é droga. Isso eu não posso. Então, na verdade, eu manipulei a minha situação em alguma parte sendo muito negligente, claro, mas também em uma outra parte por falta de conhecimento”. O médico Guilherme Kortas explica que a evolução do uso de uma droga para outra é comum, já que a dependência química é fisiológica, ou seja, estimulada pela tolerância e abstinência. “A tolerância é quando precisa de doses cada vez mais altas para ter aquele efeito e a abstinência é quando tira a droga. A pessoa vai sentir falta, então, vai ficar irritada, ter insônia, pode ter tremores, sudorese … Tem as complicações físicas que tem algumas variações de acordo com a droga”. João também teve influência de seu núcleo social,
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especialmente o familiar e de amigos, no uso de drogas. Segundo ele, foi uma forma de se sentir pertencente a algum grupo. “Aproximadamente com 12 anos de idade, quando eu tive esse contato inicial, a droga resolveu os meus problemas porque preencheu um vazio que eu sentia. Esse uso era bem esporádico, aos fins de semana, só para eu me sentir parte de um grupo de pessoas”. Seus pais eram caseiros em um orfanato, em Porto Feliz, onde tomavam conta de aproximadamente 30 crianças. Embora tivessem se desdobrado para educá-las e dedicar tempo e amor a João, ele conta que a sensação de que faltava algo era constante na infância. “Desde criança, eu sempre percebi que tinha algo diferente em mim, eu sempre tive aquela sensação de que estava faltando algo. Mesmo quando eu conseguia alguma coisa que eu queria, por exemplo, um brinquedo, ainda tinha aquele vazio. Eu acreditava que era diferente dos outros”, explica. João não se enturmava com outras crianças porque tinha uma ideia de ser adulto, tanto é que estava sempre cercado por amigos das irmãs mais velhas cujas companhias lhe agradavam. Só que isto fez ele acreditar que para estar inserido naquele grupo de pessoas, era preciso repetir um comportamento: consumir bebida alcóolica. “Eu estava em um churrasco com os amigos do meu cunhado, que tinham entre 18 e 20 anos, e por não conseguir me sentir parte do grupo
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de crianças, eu fui rodear os mais velhos. Como eles estavam bêbados, eu pedi e eles me deram um copo de cerveja. Depois de tomar o primeiro copo, eu não queria mais saber de ser criança”. Com isso, João começou a andar cada vez mais com outros adultos porque sabia que com eles consumiria bebidas alcoólicas, situação comum em seu núcleo social familiar. “Meu cunhado tinha um bar e esses caras eram meus heróis porque eles saíam com garotas, tinham carro e, na minha concepção, eu tinha que fazer o que eles faziam. Chegou a um ponto que não tinha mais como esconder [o consumo de bebida alcoólica] e nem mesmo eles conseguiam controlar. Eu já tinha 15 ou 16 anos”, relata. Os pais dele tentavam de tudo para orientá-lo, mas não conseguiram controlar o desenvolvimento desse vício. Quando ele tinha 14 anos, o pai lhe deu um voto de confiança, que mais uma vez foi quebrado. “No Carnaval eu já tinha tido o primeiro contato com o álcool. Meu pai me disse para não beber. Duas horas depois, eu voltei para casa cambaleando. Foi a última vez que meu pai chegou a me bater. Eu me lembro que ele até mencionou que seria a última vez: ou eu pararia ou eu iria aprender com a vida”. E foi isso que aconteceu: João estava à mercê da vida porque perto dos 14 anos de idade, ele já sabia o gosto da cocaína, uma droga da qual não conseguia se abster.
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À medida que consumia, perdia o controle com consequências drásticas em seus relacionamentos, emprego e condição de saúde. “A droga me levou ao ponto de frequentar lugares que eu não queria estar [ponto de venda de drogas] e conviver com pessoas que eu não queria [como traficantes que, mais tarde, iriam cobrá-lo na porta de casa]”, afirma. Após 20 anos de dependência química, em uma carta escrita durante o tratamento ao pai já falecido, João transformou em palavras o sentimento que deu início ao seu uso: O senhor sempre se orgulhava e enchia a boca pra falar que eu tinha muitos amigos e era mais conhecido até que o senhor. Realmente, eu tinha vários conhecidos, porém, hoje, posso lhe dizer que eu realmente tenho muitos amigos. Não que não tivesse naquela época, é que eu não conseguia me sentir parte de nenhuma turma. Vivia rodeado de pessoas, mas sempre me sentia só. João encontrou, nas drogas, o impulso que precisava para ser uma pessoa diferente. “Eu sempre fui um cara bem tímido. Eu sempre tive dificuldade até pra chegar nas garotas, conversar com as pessoas mesmo. E com o uso tanto do álcool quanto da cocaína, eu perdi essa timidez”, conta. O problema é que o que era esporádico, aos fins de semana, se tornou um hábito progressivo. “De repente, já comecei a usar além do sábado, na sextafeira e na quarta-feira por causa do futebol. E eu percebi que estava atrapalhando a minha vida porque eu tinha
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parado de estudar e eu já estava tendo dificuldade para me manter empregado”, lembra. Mesmo reconhecendo o problema, a busca incessante para contrariar o abuso das substâncias não foi suficiente. “Comecei as tentativas para parar de usar. Fui em psicólogo e psiquiatra. Tentei através da minha religião de escolha. Todos os anos, eu falava que eu ia parar no dia 31 de dezembro. Isso era lei! Todo ano, eu tinha certeza que eu ia parar. Chegava dia 1º, eu acabava usando de novo”, conta. Durante tantos Natais, viradas de anos e tantas outras datas festivas, João não resistia às drogas. Levou tempo mas ele se conscientizou, um dia, de que seu problema não era moral. “Ficou bem claro para mim que era uma força maior do que eu. Eu sabia muito bem o que era certo e o que era errado. Eu fui muito bem educado pelos meus pais [...], porém eu não conseguia mais fazer o certo”, lembra. Também para ele, o uso de drogas se tornou a única escolha que o cérebro era capaz de fazer. “Depois dessas tentativas para parar de usar, eu cheguei no limite da minha dor”. João conta também que a mãe dormia, por dias no sofá da sala. Desgastada pelas olheiras e orando em torno das velas acesas, sempre aguardava o retorno do filho para casa. Vê-la ajoelhada, com um terço nas mãos, sussurrando por misericórdia era dilacerante,
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mas não era capaz de fazê-lo parar. “Eu acabava usando quando gerava dor, quando dava errado ou quando dava muito certo”. No fundo do poço, como é chamado o ápice de quem está entregue à dependência química, João fechava os olhos para dormir desejando que o tempo se acelerasse em 1 semana, 1 mês, 1 ano para que ele saísse do sufoco. “Eu não conseguia trabalhar, não conseguia me relacionar com minha mãe. Traficante ia atrás de mim. Eu morava em uma cidade de 700 mil habitantes e fiquei limitado a três quarteirões”. João lembra que sua adicção estava atrelada a outros hábitos, como o futebol e os jogos de azar. Assim, teve que mudar completamente de vida para se recuperar. “Na reta final, o meu problema não foi só com as drogas. Foi o jogo também [...]. Eu gastava o que eu não tinha”, conta. Outro caso parecido ao de João é o de Elmo Alexandre de Souza que, aos 14 anos, experimentou bebida alcoólica dentro de casa. “Eu achava que não tinha nada demais, que não ia me fazer mal porque os meus tios bebiam. Eu me lembro deles jogarem baralho, [...] tomavam cerveja e falavam: fio, pega uma cerveja na geladeira!”, conta. Esses momentos de descuido foram suficientes para que Elmo despertasse o interesse por substâncias químicas. “Eu ia pegar essa cerveja ou vinho na geladeira e experimentava, tomava escondido. Eu os via fumando
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também, mas eu não podia fumar na frente do meu pai. Eu fumava na escola”, conta. Elmo relata que a ausência do pai e o abuso do álcool, por parte da mãe, o impulsionaram ao uso. “O negócio dele [o pai] era trabalhar para dar do bom e do melhor pra nós. Minha mãe teve envolvimento com outros homens e eu participei disso, eu vi tudo. Foi um argumento para eu poder usar mais, na verdade. [...] Chantageava ela e o meu pai para poderem me dar dinheiro para usar droga”, assume. Assim, seus comportamentos inadequados na escola foram ficando cada vez mais frequentes e o vício começou a atrapalhar sua vida. “A gente guardava o dinheiro da semana toda. Às vezes, meu pai ou minha mãe me davam dinheiro para comprar lanche ou salgadinho na escola e chegava na sexta-feira, a gente matava aula para comprar drogas”, descreve. Elmo passou da bebida alcóolica, que misturava ao refrigerante, e do cigarro para drogas ilícitas. “Eu experimentei a maconha e foi amor à primeira vista”. Na busca de atingir uma sensação com o mesmo pico da primeira vez, o vício o levou a experimentar também a cocaína. “Em 1997, eu fiz 18 anos e já tinha experimentado todas as drogas. Já estava viciado e o uso começou a aumentar. [...] Experimentei a droga que foi a destruição da minha vida”, conta Elmo ao retratar
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uma trajetória que terminou com o uso de crack. Ainda que a maioria tente se libertar, o vínculo criado entre o vício e o viciado é bastante difícil de ser quebrado. Mesmo após uma tentativa de internação em uma comunidade terapêutica, Elmo voltou ao mundo das drogas. “Eu achei que eu tinha controle sobre a droga e continuei a usar. Manipulei meu pai para me emprestar dinheiro mais uma vez. Comprei uma moto maior e me envolvi com o crime para sustentar meu vício”, conta. Assim, durante 24 anos, Elmo seguia ladeira abaixo para a destruição de sonhos, família e vida. No auge de sua dependência, ele também se tornou morador de rua e viveu dias de exclusão social, vergonha e muito sofrimento, chegando a acreditar que sua condição era irreversível. Como em um ciclo vicioso, a droga era o veneno e também um “remédio” para sua dor. Como Elmo, Marcio teve problemas familiares e acabou repetindo os comportamentos adictos do seu ciclo de convivência. Ele seguiu os passos do pai, que não conseguiu manter relacionamentos interpessoais por causa do vício em álcool e se separou de sua mãe quando ele tinha aproximadamente 7 anos de idade. “Na época, meu pai era alcoólatra, bebia muito e usava droga. Vendo tudo aquilo dentro de casa, peguei esse caminho também. Acabei conhecendo a droga aos 12 anos”, conta. Seu primeiro contato ainda estudante foi com a cola.
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Depois, ao crescer na periferia de Guarulhos, conheceu outras drogas e também passou pelo processo de afunilamento do uso, consumindo substâncias cada vez mais fortes. “Na verdade, eu usei bastante droga porque era moda, era normal. [...] A cola já não fazia mais efeito e eu fui para o álcool. Da batida, eu cheguei na maconha e a compulsão só foi aumentando. Durante 18 anos de dependência química, álcool e cocaína foram minhas drogas de preferência”. Após perder o irmão, com quem dividia os anseios e os pinos de cocaína, Marcio ficou cada dia pior e recebeu um ultimato do pai: “Meu pai pediu para eu fazer uma escolha: interromper o uso de drogas ou rua. Ele já não me aceitava mais em casa. Eu também não me aceitava mais. Peguei minhas coisas e fui para a Cracolândia”. E assim abandonou tudo, inclusive, a filha de aproximadamente 10 anos. Embora sua adicção estivesse longe de ser uma questão moral, já que Marcio não podia mais controlar o uso de drogas e seu corpo estava completamente entregue em abstinência pela substância química, ele também chegou a cometer crimes, sendo condenado e preso por 8 anos. “A droga me fez chegar até essa situação: cometer coisas que nem um ser humano normal comete”, arrepende-se. Quando saiu da cadeia, conheceu o crack e desceu
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os últimos degraus rumo ao fundo do poço. “Naquele momento, pensei que eu ia morrer. Na verdade, era o que eu queria. Eu queria morrer nas drogas”. Além da tentativa de driblar questões emocionais, os adictos que estão sendo mostrados neste livro-reportagem também relatam que a busca por prazer e de novas formas de aumentar os benefícios ilusórios das drogas foram o estopim para experimentar bebidas, substâncias e entorpecentes. No caso de José, o vício se desenvolveu a partir de uma história delituosa, ou seja, ele já praticava roubos, furtos e tinha envolvimento com criminosos desde a adolescência, entre 14 e 15 anos, até que a droga foi apresentada para ele como mais uma experiência repleta de adrenalina nesse ciclo de convivência. Em quase 10 anos de vício, José conviveu com momentos de prazer ilusório e depressão profunda. “Enquanto uso, a adrenalina é sem palavras, tanto que alguns estudos dizem que o ápice do crack na mente é comparado ao orgasmo na relação sexual, então, é bom. Só que a hora que acaba, vem a depressão”. O prazer e a satisfação que as substâncias químicas proporcionam foram atrativas para ele, que desde os 12 anos, já bebia e roubava objetos e dinheiro de sua própria família. Esse caminho para o prazer fácil, no entanto, não teve uma via de volta sem dor, remorso e culpa. Assim como os demais, José se deparou com reações fisiológicas que não pode controlar e, no auge de sua dependência
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química, por pouco rompeu com estatísticas sombrias de suícidio. “Existem vários momentos em que você olha e deseja demais que aquilo acabe. O suicídio ocorre porque a pessoa chega ao ponto em que não aguenta mais, fica desesperada, não consegue sair e tirar a vida é a unica solução que vê”. A dependência química não escolhe cor de pele, classe social, religião ou qualquer outra característica que diferencie as pessoas. “O crack me aprisionou. Ele pode aprisionar qualquer um, por mais acadêmico e experimentado na vida que seja”, afirma Arlem. Seja qual for o motivo que as levou a experimentar uma substância psicoativa, se livrar do vício e estar vivo para contar a história é um processo complexo. Assim, segundo a UNODC, mais de 35 milhões de pessoas, algum dia, tomaram essa trágica decisão e sofrem de transtornos associados ao uso de drogas. Suas histórias, no entanto, são trilhadas por diferentes desfechos, nem sempre felizes, às vezes, fatais. Essa condição que leva algumas pessoas ao auge da precariedade física e moral deixa rastros de miséria e destruição como os que serão relatados nas páginas seguintes.
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TODA AÇÃO TEM UMA REAÇÃO
Os efeitos clínicos, psicológicos e sociais das drogas Não importa qual tenha sido a sua influência nem seu núcleo de entrada. O fato é que todas estas pessoas que se envolveram com as drogas e cujas histórias estão sendo contadas aqui, consciente ou inconscientemente acionaram um gatilho que as levou, mais cedo ou mais tarde, a um naufrágio químico. Ter a coragem de resgatar histórias diretamente do fundo do poço é um processo difícil. Afinal, falar sobre qualquer momento da vida de alguém significa reviver emoções e sentimentos, sejam eles positivos ou negativos. Imagine então quando isso representa reviver um estado crítico, como Marcio e Arlem, que têm registrado, em seu passado, dias de alguém largado nas calçadas da Cracolândia, com uma certeza: a de que não haveria formas nem lugares para pedir socorro. Um momento em que o destino parecia ter trazido a punição para um erro irreparável que poderia representar uma trajetória sem opção de final feliz.
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Foto: Flรกvio Torres
Laila com o livro Se nรฃo fosse o crack, te teria outra vez (2012)
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LAILA Escrever foi o remédio de superação da adicção enfrentada por Laila durante anos. “Me envolvi com as drogas de uma maneira inocente achando que seria só uma experiência e depois poderia largar quando quisesse, mas não foi assim. Usei pela primeira vez com meu namorado e, desde então, passei a ter paixão pela droga ao ponto de ir parar no centro de tratamento. O recado que tenho para deixar a vocês é que a droga é uma escolha que tem o poder de mudar suas vidas do dia para a noite e torná-las um verdadeiro inferno, sem caminho de volta”7. Vários episódios trágicos - como a história do pai já contada no capítulo anterior - a tornaram propensa ao consumo excessivo de substâncias químicas. “Nunca tem um fator principal. Sempre são vários fatores. Todos eles vão se juntando e crescendo”, diz. A vida regada a luxo e com muito amor, na adolescência, se transformou graças às drogas e à falsa sensação de poder. Tudo desfeito como um castelo de areia levado pelas águas do mar. “Muitos episódios da minha vida ocorreram nesta cidade [Manaus]. O mais marcante deles aconteceu quando um grande amor foi embora para sempre. Ele entrou em um avião que 7 Trecho retirado do livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012). A autobiografia conta seu envolvimento com as drogas e também sua história com Arlem.
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explodiu em pleno voo fragmentando e sangrando meu coração. É impossível lembrar dele sem lágrimas nos olhos e comoção no peito”, descreve8. Admitir que o pai tinha sido seduzido pelo dinheiro fácil do tráfico do cartel colombiano somado à ausência da mãe enquanto crescia, proporcionaram um abalo emocional que deu o tom de uma história de dor e sofrimento. Laila e suas três irmãs viveram com a avó materna e por mais que houvesse carinho entre elas, Laila se sentiu órfã. Seu porto seguro não existia mais. “Esse foi um fator contribuinte muito forte. Tem muitas crianças órfãs com pai e mãe dentro de casa e essa lacuna, essa orfandade desse adolescente, é um fator muito contribuinte. A gente precisa ter essa figura [masculina], seja um pai, um avô, um tio, alguém tem que ser o porto seguro”, afirma. Laila lembra que o pai, apesar do papel que desempenhava no tráfico internacional de drogas, costumava contar a Lenda do Boto9 como uma forma sutil 8 Trecho retirado de seu livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012). 9 A Lenda do Boto tem origem indígena e faz parte do folclore brasileiro. Surgiu na região amazônica, no Norte do país. A história diz que um boto cor-de-rosa, animal inteligente e semelhante ao golfinho que vive nas águas amazônicas, se transforma em um jovem belo e elegante nas noites de lua cheia. O boto, então como galã conquistador, escolhe a moça solteira mais bonita da festa e leva para o fundo do rio. Lá a engravida e depois a abandona. Na manhã seguinte, ele se transforma em boto novamente.
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de conscientizá-la sobre o abuso de drogas - algo que foi entender mais tarde, quando já tinha sido arrematada por aquele encantamento, e que leva até hoje consigo nas palestras que ministra. A lenda, que ele contava, dizia que o boto aparece em festas e é muito traiçoeiro, pode seduzir moças e levá-las a lugares que ninguém jamais vai imaginar. “Todo aquele pressentimento que ele tinha se tornou verdade. O boto veio. Quando ele chegou, se aproximou e começou toda aquela sedução, a terra do meu coração já estava preparada”, diz sobre seu envolvimento amoroso com um colega da escola que foi quem lhe abriu a porta para as drogas. A mulher que nasceu em meio à Floresta Amazônica, acredita que a inocência tenha sido uma das razões para sua dependência química pela falta de malícia suficiente para compreender os malefícios que a droga poderia trazer. “Uma presa fácil para as drogas, para essa sedução”. As bebidas alcoólicas, que deram início ao seu vício, sempre estavam presentes: em casa, na balada, nas reuniões com amigos. Certa noite, foi esquecida dentro de uma balada pelos amigos e perdeu a carona para voltar para casa. “Não tendo mais como voltar, senteime no chão da calçada gélida e molhada completamente sozinha e destituída de segurança [...] tentando me proteger do frio, abracei meu próprio corpo olhando para as estrelas e pensando em possíveis respostas para a
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minha vida que outrora foi verde”10, narra. Sua paixão adolescente também foi um drama perigoso e quase fatal. Embora a avó de Laila, aflita, escondesse a chave de casa para tentar impedí-la de sair para se encontrar com ele, o tal garoto já havia lhe dado a senha do seu maior prazer: as drogas. “Eu me envolvi com ele [um garoto do colégio] e, no primeiro beijo, fui envenenada pela química da morte. O ‘bom garoto’ não era tão bom assim e, talvez se minha mãe estivesse lá para fazer uma avaliação teria percebido algo estranho”.11 Com o passar do tempo, seu abuso de drogas foi ficando cada vez mais intenso. “Numa das vezes em que me droguei, tive um surto psicótico. Ao olhar para o meu corpo o ‘vi’ todo cortado, eram cortes enormes, profundos, como se alguém tivesse pegado uma faca e retalhado meu corpo, eu fiquei apavorada”12. Nessa ocasião, entre gritos de “Estou ferida! Sangue! Sangue!”, Laila pegou ataduras e enrolou o copo, como uma múmia, para estancar o sangue, que só existia em seu devaneio. 10 Relato retirado das páginas de Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012). 11 Relato retirado das páginas de Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012). 12 Relato retirado das páginas de Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012).
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Com o consumo frequente de substâncias psicoativas, é comum que o usuário não se reconheça como um dependente. Normalmente, o indivíduo acredita que conseguirá interromper o uso quando quiser. “Jamais imaginei que ao me envolver com o garoto errado, entraria para um mundo de destruição e perderia minha liberdade”, conta.13 Assim, o entendimento sobre a sua doença foi acompanhado por tentativas de suicídio: “Eu comecei a ouvir vozes no quarto, comecei a passar mal e foi nesse dia que vi que precisava de ajuda, que eu não estava legal. Eu tentava me ajudar, mas já carregava muito sentimento de culpa, de ser a filha problema, a ovelha negra... a maneira que eu queria me resolver era buscando o suicídio. Sempre buscava uma forma de acabar com tudo para não ser mais esse fardo para minha família”. E essa tentativa colocou sua vida e a das irmãs em risco. Após planejar e tentar matar o próprio cachorro Puff - durante uma reunião familiar, a então adolescente pegou uma arma que era de seu pai e, sob efeito de drogas, imaginou que estava sendo perseguida. “Nunca pensei que um dia, drogada, puxaria uma arma para matar os meus queridos que eu tanto amava. Lembrar de tudo isso dói e me envergonha até hoje. Tentativa de homicídio é 13 Relato também retirado de seu livro, Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012).
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algo muito forte e ter esse episódio em minha ficha ainda é muito doloroso”14. A cena traumatizante fez com que sua mãe, em desespero, chamasse a polícia e pensasse em um plano para salvar a vida dela. “Minha mãe, não vendo resultado com tudo isso, teve um plano. Depois dessas tentativas de suicídio [e homicídio], ela falou que iria me levar em uma consulta com uma psicóloga excelente. Na realidade, não era psicóloga. Eu já estava dentro de um hospital psiquiátrico”, conta com a voz embargada por lágrimas. “Nunca imaginei acabar um dia em um hospício e ser literalmente diagnosticada como uma pessoa portadora de transtorno mental. Era um amontoado de humanos babando, rindo, conversando com as paredes numa cena de total desolação e abandono dos sonhos de uma vida simplesmente normal”, lembra15. Quando Laila revisita seu passado e imagina a força e coragem que a mãe reuniu para ter uma atitude como aquela, é impossível não chorar. “Hoje sou mãe e fico imaginando como ela conseguiu ser forte o suficiente para me deixar lá porque ela me deixou e foi embora”. Esse episódio ainda vem à cabeça de Laila que se recorda da imagem da mãe saindo do hospital com lágrimas nos olhos. 14 Relato também retirado de seu livro, Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012). 15 Relato também retirado de seu livro, Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012).
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Na instituição psiquiátrica, na época localizada na Avenida Constantino Nery, em Manaus, mas que não existe mais atualmente, sozinha, sem amigos e familiares, a jovem refletiu sobre tudo o que estava acontecendo em sua vida. A ficha caiu e a vontade de não usar mais qualquer tipo de droga foi crescendo cada vez mais. Por mais que o desejo pela droga não se esvaísse por muito tempo, a ideia de estar em um hospital psiquiátrico onde os pacientes são vistos como “loucos”, era mais forte do que qualquer outra substância. Em um debate interno e pessoal, Laila decidiu que seu lugar não era ali. “Eu me drogo, eu bebo, mas louca eu não sou, eu tenho sanidade”. A determinação em não ficar mais naquele hospital psiquiátrico gerou um plano de fuga. “Eu tive uma ideia para enganar os médicos e enfermeiros. Vi uma hora que eles não estavam olhando e consegui sair do hospício. Era uma rua de via rápida, bem movimentada e eu olhei para os carros e me joguei em cima”, conta emocionada sobre mais uma de suas tentativas de suicídio. No pensamento dela, era mais suportável morrer em um acidente do que ficar mais um dia entre pacientes com transtornos mentais. Voltando à cena da tentativa de suicídio logo após a fuga planejada, um motorista freou e, enfurecido, não hesitou em gritar. Sem que pudesse
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se defender ou até mesmo explicar seu sofrimento, um guarda municipal apareceu e, supondo que ela estivesse internada no hospital próximo dali, a conteve. Todo aquele imbróglio chamou atenção dos enfermeiros do hospital psiquiátrico que chegaram com uma injeção em mãos. Nem o esperneio e gritos de “me larga, me deixa, me solta! Eu quero morrer!” foram suficientes para evitar que a injeção fosse aplicada e fizesse com que Laila dormisse por três dias ininterruptos. “Depois disso, que foi muito chocante e traumatizante, acho que tanto para mim quanto para a minha mãe, eu fui a mais uma consulta. Dessa vez eu estava meio que atenta”, relembra Laila. Não era nenhuma internação, mas sim, uma visita ao Conselho Tutelar. A juíza não se abalou com a história de Laila, contada previamente pela mãe. “15 anos? Olha aqui sua ficha. Você se droga, tentativa de homicídio, tentativa de suicídio. O que você quer da vida? O que você pensa da vida, garota? Você quer continuar sendo a filha problemática? Você quer mudar sua vida? O que você pensa?”, Laila relembra os questionamentos da juíza. Em meio a tantas perguntas, o silêncio tomou conta daquela sala. A menina abaixou a cabeça e balbuciou, entre lágrimas, seu desejo de voltar à normalidade e ser a garota que era antes de usar drogas.
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Assim, Laila foi julgada pela Vara da Infância em um Tribunal de Justiça e ficou decidido que ela iria receber um tratamento psicológico. “Nunca pensei em ficar presa num quarto escuro como um animal à espera de internação nem estar, um dia, diante de uma juíza recebendo uma sentença: Desafio Jovem de Brasília ou FEBEM [Fundação Casa]16! Para sua casa, você não volta mais17 ”, lembra sobre a decisão tomada e dos momentos em que ficou reclusa antes da internação na capital federal. Com medo de uma possível recaída e que todo aquele esforço fosse jogado fora, a mãe de Laila a mandou para a casa de um tio, uma espécie de “prisão domiciliar”, em um condomínio de segurança máxima - com toda a equipe de segurança orientada para que ela não pudesse sair. Durante sua estadia, ela ficou trancada em um quarto cuja porta só era semiaberta para passar sua alimentação. “Gritava dentro do meu quarto, presa como um animal. Esmurrava e chutava a porta com força pedindo para que levassem uma bebida para eu tomar. 16 O atendimento aos jovens autores de ato infracional sentenciados com medidas socioeducativas de privação e restrição de liberdade, no Estado de São Paulo, é feito pela Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente. O novo nome da antiga Febem/SP (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor de São Paulo) foi alterado pela Lei Estadual nº 12.469/06, sancionada pelo ex-governador Cláudio Lembo. 17 Trecho retirado do livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012).
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Foi quando meu primo João abriu a fechadura da porta lentamente e colocou uma garrafa de vinho e cigarros. Depois, fechou com a chave. Fiquei ouvindo seus passos sumirem no corredor da mansão que ficava na Constantino Nery, em Manaus, um condomínio de luxo no qual passei os últimos momentos da minha vida de drogada”18, conta Laila sobre suas crises de abstinência. Durante vários dias, aprisionada como uma pessoa doente que precisava de tratamento, ela só se alimentava com líquidos. Às vezes, não conseguia chegar ao banheiro e acabava vomitando na própria roupa, uma calça verde, tipo sarja, e uma camiseta branca. “Estava fraca, muito fraca. Saí me arrastando para o banheiro, todavia não consegui chegar e continuei vomitando sem parar. Sem forças, cai por cima do vômito e baixinho dizia: acho que estou morrendo”19. Se a trajetória de Laila como dependente química parece dolorida, ainda houve a segunda parte dessa história, em que ela se viu do outro lado da adicção. Enquanto escrevia o livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012), ela lidou com a incessante busca por Arlem, seu marido, em IML’s, delegacias e hospitais, 18 Trecho retirado do livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012). 19 Trecho retirado do livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012).
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durante 7 anos em que ele ficou desaparecido desde que virou morador de rua, na Cracolândia, em São Paulo. Segurei as pontas para não ter que ver você indo embora Mas no final Você fez o seu caminho por si mesmo20.
20 Trecho retirado do livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012)
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Arlem Maffra.
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Foto: Flรกvio Torres
ARLEM Antes desses 7 anos entregue ao endereço do tráfico, na capital paulista, Arlem viveu em Curitiba, com Laila, e um casal de filhos. “Eu estava limpo das drogas há mais de 10 anos. Eu me sentia feliz e realizado. Mantinha um padrão de vida classe média alta”. Depois da experiência com drogas, na adolescência, e 1 ano de tratamento em uma comunidade terapêutica, Arlem acreditou que tinha sepultado definitivamente essa fase. Além disso, as conquistas que almejava - ser pai, um bom marido, obter sucesso no trabalho - estavam fluindo e ele se sentia
completamente amparado socialmente. Não acreditou que a compulsão por drogas pudesse ser forte o suficiente para tirá-lo dos trilhos. “Havia vencido as drogas uma vez. Sentia-me imune a qualquer outra experiência desse tipo. Eu era livre, porém, jamais poderia ser autônomo, uma vez que o tratamento da dependência química é para a vida toda”, afirma. No auge de sua vida profissional, ao usar rebite e cocaína, Arlem começou a viver uma vida paralela. Todos os dias, ao chegar em casa e ver a esposa e os filhos dormindo com tranquilidade, ele sentia remorso por não estar cumprindo os sonhos e projetos da forma como sua família imaginava. Entre uma viagem e outra, ele usava cocaína. Chegava a ficar dias no quarto de
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hotel, em anonimato, usando drogas. Certa madrugada, Arlem confessou para Laila o que estava passando. Na manhã seguinte, combinaram de ir ao médico fazer desintoxicação, mas ao chegar da autoescola, ela notou que a porta do quarto estava trancada. “Ele estava demorando para abrir, então comecei a olhar pelo buraco da fechadura. Foi quando vi o revólver em cima da cama e um monte de documentos espalhados ao redor dela. Fiquei apavorada”21, descreveu Laila. Suicídio era um pensamento constante na mente de Arlem, como é para vários dependentes químicos. Apesar de não ter concluído a ação naquela manhã, ele estava sempre entre uma linha tênue de acabar com sua própria vida ou viver mais um dia. Mesmo com o apoio de Laila, seu vício foi se intensificando. Entre surtos psicóticos, em que pensava estar sendo perseguido, e momentos de lucidez, quando achava que tudo já tinha sido resolvido, sua dependência química só piorava. Em uma ocasião de paranoia, causada pela cocaína, Arlem achou que sua casa estava sendo atacada pelo que chamou de “inimigos” e colocou a vida do filho, Felippe, em perigo: certo de que ele estava amarrado em cordas, 21 Trecho retirado de seu livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012).
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pegou uma faca. “Foi aí que eu coloquei minhas mãos em cima das suas e juntos cortamos a camisa do pijama do nosso filho simbolizando que estávamos o salvando de invasores. Ele nos olhou aterrorizado e depois o abracei fortemente em meus braços o protegendo e o acalmando”22, conta Laila. Com o passar dos dias, o medo foi tomando conta da esposa, que tentava encontrar uma explicação para uma recaída tão forte de Arlem depois de tanto tempo livre das drogas. “Foi quando tive a ideia de cheirar o bolso do seu terno azul-marinho com o qual ele havia chegado de viagem. Arlem não fumava, e o terno tinha chegado com cheiro forte de cigarro. [...] tive a certeza de que desta vez minha guerra seria travada com um inimigo mais poderoso do que a maconha, do que o êxtase, do que o álcool, do que a cocaína. Agora eu estava lidando cara a cara com a droga mais poderosa do século. O próprio crack”23, lembra Laila. Nem o amor, nem quase 20 internações diferentes foram suficientes. Buscando compreender por que não conseguia se livrar da doença, quando estava em tratamento, ele começou um curso em consultoria em dependência química pelo Departamento Estadual de 22 Trecho retirado de seu livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012). 23 Trecho retirado de seu livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012).
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Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc), em São Paulo. Mas não chegou a terminar, naquele momento, por causa das recaídas. Naquele tumulto de entrar e sair de clínicas, sua dependência química chegou ao conhecimento da família. Mesmo com a dedicação de todos eles em ajudar, Arlem não conseguia ficar mais de 20 ou 30 dias sem uso. Seus sócios descobriram e ele perdeu o negócio. Laila temia pela integridade do Projeto Escola Sem Drogas, já que Arlem, autor das palestras, tinha virado um herói para os adolescentes. Mas já não era mais possível estancar a fissura causada pelo crack e ela teve que assumir seu lugar. Todos os bens que havia conquistado ao longo de sua vida foram se esvaindo em tratamentos caros. Além disso, quando estava fora das clínicas, ele roubava objetos de casa, como o microondas, a câmera digital, o celular, a filmadora, o DVD e até o fogão, para trocar por crack na “boca”. Os amigos foram se afastando um a um. Diante desse dilema, entre várias tentativas para parar e voltar ao uso, Arlem acreditou que assumir sua adicção e partir, sem olhar para trás, era o melhor a fazer para evitar que outras pessoas, em especial, Laila e os filhos, sofressem. “O crack já havia comprometido minha capacidade de decidir o certo”.
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Foi com essa ideia que Arlem mudou os planos de mais uma internação: ele havia se despedido de Laila, em Belo Horizonte, prometendo se internar em Manaus e resolver definitivamente aquela situação, mas desviou a rota com um dilema: se matar de uma vez ou se isolar de tudo e de todos para continuar usando drogas até seu fim. Assim, Arlem fugiu em um avião com destino à São Paulo. “Eu não havia concluído o tratamento. Não me desintoxiquei, não passei pelo processo inicial da quebra da compulsão, da escravidão e do desejo de usar. Meu organismo e minha mente continuavam completamente escravos do crack. Não haveria ninguém me esperando naquele aeroporto”24, refletiu ainda no avião. Ao pousar em Guarulhos, pegou sua bolsa na esteira e, no saguão do aeroporto, teve que tomar a decisão mais dilacerante de todas. O suicídio era a saída mais rápida, mas a hipotese foi descartada por causa de suas crenças cristãs. “Sobrara, àquelas alturas, na minha pobre opinião, somente uma alternativa: desistir de lutar e me entregar definitivamente à vida de um dependente de drogas. Em todos os momentos em que tombei, em minha trágica luta contra o crack, nunca havia perdido a esperança de consertar os estragos e recomeçar. Desta vez, porém, sentia que havia ultrapassado a linha de retorno, a última fronteira.”25 24
Trecho retirado do livro Mais forte que o crack (2014).
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Trecho retirado do livro Mais forte que o crack (2014).
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Arlem não conseguiu enxergar coisas, situações ou alguém ao seu redor que pudesse ser mais forte que o crack. Entorpecido pela desesperança e embaraçado por suas decisões irresponsáveis, o sentimento de que tinha fracassado em conduzir sua família, a própria vida e um casamento feliz se sobressaiam em uma guerra de pensamentos. “Eu tinha algum dinheiro e me instalei sozinho. Aluguei um pequeno quarto e fazia minhas refeições em bares nos arredores. Imediatamente me informei sobre um lugar onde eu poderia comprar uma pedra de crack para aplacar minha abstinência. Por alguns meses, consegui manter o aluguel e comprar a droga de que precisava; mas como estava só gastando, logo, o dinheiro acabou e eu tive que entregar o quarto”,26 contou o processo de como chegou até as ruas. Como
precisava
de
dinheiro
para
continuar
alimentando sua dependência química, Arlem investiu o pouco que tinha em uma carroça para coletar material reciclável. “Depois de trabalhar um mês como ajudante geral numa obra da construção civil, pedi ao encarregado que juntasse, pra mim, o meu salário, até que tivesse o bastante para comprar uma carroça. Juntei o dinheiro nas mãos do encarregado, para não gastar com o crack. Com muito sacrifício e angústia, consegui fazer isso. Continuava me drogando, mas em decorrência do
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Trecho retirado do livro Mais forte que o crack (2014).
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trabalho, usei menos naquele mês”27. Assim,
recolhendo
materiais
recicláveis
de
ruas, casas e empresas e vendendo para depósitos espalhados na cidade, ele conseguiria os trocados para comprar crack e também se abrigava do relento. “A compra daquela carroça significou muitas coisas pra mim. Decidi que não roubaria e pediria em casos de extrema necessidade. Eu havia estabelecido a máxima naquele mundo das drogas: o que eu faço é problema meu, mas como eu faço passa a ser problema de todo mundo”.28 Na concepção de Arlem, ser carroceiro amenizava a dor de ser um viciado em drogas, uma vez que a sociedade, principalmente a polícia, o via como um trabalhador. Ele também acredita que aquela carroça, talvez, tenha evitado sua loucura, mantendo-o distante de problemas na Justiça. Essa foi sua vida por muito tempo, vagando de um lado para o outro. Quando estava usando, em média, 10 pedras de crack por dia, precisava de mais dinheiro e de um lugar em que a reciclagem fosse mais farta, onde tivesse sucata, plásticos e papelões à disposição. Além disso, nas biqueiras de bairro, quando uma viatura passava próximo ou havia uma incursão específica, a venda ficava suspensa por um ou dois dias. O problema 27
Trecho retirado do livro Mais forte que o crack (2014).
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Trecho retirado do livro Mais forte que o crack (2014).
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é que o vício também estava relacionado ao fornecedor, ou seja, a uma substância produzida sempre do mesmo jeito, com os mesmos ingredientes. Só que a abstinência não tinha dia nem hora para acontecer. “O gosto e o efeito variam de um fornecedor para outro, mesmo em se tratando de um só tipo de droga, no meu caso, o crack”29. Certa vez, em uma dessas crises de abstinência, um amigo carroceiro lhe disse sobre o “universo paralelo das drogas”: a Cracolândia, em São Paulo. Na periferia, ele poderia encontrar várias fábricas e, lá, ele poderia usar à vontade. “À medida que entrava naquele fluxo de pessoas, os espaços iam sendo preenchidos ao meu redor. Fiquei no centro de uma multidão de viciados. Pareciam trapos humanos. Alguns sujos, alguns com feridas enormes, alguns insanos, loucos”30. No entanto, aquele choque não foi suficiente para fazer Arlem voltar atrás e desistir de seu objetivo: encontrar um local onde tivesse droga à disposição para usar até morrer. “Com o passar do tempo, eu me acostumaria com aquela gritaria e com aquele movimento frenético. Quando cheguei à Cracolândia, a primeira impressão que tive foi a de que tudo estava bagunçado e desorganizado. No entanto, à medida que eu ia me relacionando com os moradores daquela sociedade de usuários, percebia 29
Trecho retirado do livro Mais forte que o crack (2014).
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Trecho retirado do livro Mais forte que o crack (2014).
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que tudo tinha um propósito. Aquela multidão tinha liderança. Ali também funcionavam ‘patentes’. Aquela aparente bagunça tinha o propósito de esconder os verdadeiros traficantes e despistar a Polícia”31. Assim, em meio a calçadas imundas, cheirando à urina, fezes, lixo e comida podre, pessoas dormindo pelo chão, Arlem colocava, dia após dia, sua vida em risco por uma pedra de crack. Quer dizer, nem tudo. Por mais dificuldade que passasse, ainda tinha a consciência de que nunca cometeria algum delito ou faria alguma maldade com alguém. “Meu problema é com droga, então, me nego, mesmo na rua, a praticar qualquer outro tipo de crime, a roubar, a assaltar, a fazer mal para as pessoas, a matar ou traficar. Não, eu vou usar até morrer”. Apesar de ter feito alguns amigos, ele estava certo de que tinha que viver tudo aquilo sozinho, sem vínculos. “Na rua, é complicado você ter laços interpessoais. Você se associar e ter vínculos sociais cria também vínculos de responsabilidade com o comportamento do outro. A pessoa vai lá, comete um absurdo contra alguém, como atentado sexual, e você tem um vínculo com essa pessoa. Você dorme na rua. Se tem uma atitude de vingança, uma retaliação, você morre de graça”, analisa. Por mais que a vontade dele fosse não se envolver, 31
Trecho retirado do livro Mais forte que o crack (2014).
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a solidão assolou Arlem, por isso, duas amizades foram criadas. Pessoas com idades e jeitos distintos, mas importantes para dar conhecimento sobre como sobreviver àquele local hostil. E isso foi um pouco de “alegria” para seus dias na Cracolândia. “O Moleque Doido, que era um menino das ruas, era um cara que trazia um pouquinho de alegria, com as palhaçadas dele. E o outro [Mai-Véi] que foi meu tutor na Cracolândia, que é o velhinho que conhecia tudo, que foi com a minha cara e disse: ‘cara, vai por mim, que você vai se dar bem aqui, ou você vai morrer aqui nesse lugar”, relembra Arlem. Mesmo com a ajuda e o apoio desses amigos, o uso contínuo das drogas faz com que a sanidade dos pensamentos fique comprometida. As horas se tornam dias e o adicto se vê em um ciclo vicioso sendo a droga sua única maneira de viver em situações precárias e horríveis proporcionadas pela Cracolândia. Muitas vezes, Arlem não se lembrava quem era e nem o que estava fazendo. “Quando eu estava lá, envolvido com o fluxo da Cracolândia, é que eu vi o grau de insanidade que é aquilo, o grau que a pessoa chega. É muito difícil explicar como uma pessoa consegue sair daquilo ali”, disse. E dentre inúmeras histórias que chocam qualquer um, por mais alucinado que estivesse, Arlem relembra
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com orgulho de um episódio em que pode ter salvado uma vida de um jovem, com idade para ser seu filho. “Eu me lembro de um garoto que perdeu o ônibus na balada e caminhando por uma praça deserta entre os canteiros centrais da Avenida Brás Leme, no bairro da Casa Verde, ele foi abordado por um grupo de pessoas armadas, gente com faca. Eu sabia que iam matar, eu conhecia essas pessoas que assaltavam na madrugada, mas eu me coloquei em risco dizendo que era amigo do rapaz que nem me conhecia. Eu nunca vi o garoto. Eu falei: ‘conheço os pais dele, eles me dão comida quando eu passo lá, não faz isso não e outra, vão vir pra cima de mim, vão acabar achando todo mundo, libera o menino aí. Ele foi embora e eu pensei: puxa vida... poderia ser meu filho”. Para Arlem, a discriminação que dependentes químicos sofrem é natural porque as pessoas que passam por ali têm medo, receio e não sabem como agir naquela situação. É um misto de preconceito e ignorância. Na opinião dele, não se trata de moralidade já que o ser humano não é criado para entender como agir em situações como essa. Mas em alguns casos, Arlem lembra de momentos em que indivíduos que não “moravam” na Cracolândia, passavam por lá para demonstrar todo o sentimento de ódio, indiferença e humilhação. “Policiais me sugestionaram várias vezes que eu me matasse, dizendo e mostrando minha realidade.
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Eu
vi
um
skinheads
32
amigo
morrendo
incendiado
porque
meninos da zona sul, cheios de dinheiro,
de oportunidades. Vivendo no mundo deles, têm razão de ficar chocados com esse mundo, mas, não têm razão em ir lá e botar fogo no corpo de uma pessoa que está vivendo uma miséria daquela”. Com tantos traumas e vivências marcadas em sua vida, Arlem conseguiu deixar a Cracolândia. Mas até isso acontecer, Laila, a mulher dele, lutou muito para tirar o marido daquela situação. Depois de anos vivendo em situação de rua e entrando cada vez mais em um caminho sem volta, sua mulher achou uma instituição que lhe daria refúgio e acompanhamento para conseguir se libertar do vício. A clínica era a Cristolândia33, um dos lugares com 32 Skinhead é um movimento cultural que teve início nos anos 60, no Reino Unido. Considerado por muitos a fusão de duas subculturas, os mods e os rude boys, os seus representantes eram quase exclusivamente pertencentes à classe operária. Nos anos 80, a ideologia sofreu várias alterações e houve uma divisão entre grupos muito diferentes também com ideias e formas de atuação distintas. Foi aí que alguns grupos passaram a adotar influências neonazistas e homofóbicas. 33 A Cristolândia é um projeto social vinculado à Convenção Batista Brasileira. Criado pelos pastores Fernando Brandão e Paulo Eduardo, além de contar com a ajuda do casal Humberto e Soraia Machado, o programa tem o propósito de prevenir e combater o uso indevido de drogas e substâncias psicoativas utilizando a mensagem do Evangelho de Jesus Cristo. Em 2009, quando foi inaugurada, a Cristolândia só contava com uma unidade no meio da Cracolândia, em São Paulo. Atualmente, possui 42 unidades em nove estados brasileiros, incluindo o Distrito Federal.
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os maiores índices de recuperação de usuários de crack no Brasil. Foi nessa instituição que Arlem conseguiu se recuperar e abandonar de vez as substâncias químicas. Até hoje, ele tem ligações com a Cristolândia, inclusive, ajuda na sucursal de Guarulhos, em São Paulo.
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Foto: Flรกvio Torres
Marcio Jesus dos Santos
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MARCIO As ruas repletas de perigos da Cracolândia de São Paulo também foram o destino de Marcio Jesus dos Santos. Seu pai, exausto pelos excessos que o vício causava no filho, lhe deu duas alternativas: sua casa ou as drogas. Assim foi dada a sua saída do seio familiar e sua permanência, que duraria 2 anos, na mais famosa territorialidade de uso de crack do país. Durante os anos de vício, Marcio passou da cola ao álcool, chegou à maconha e, por fim, na cocaína. Essas alterações, segundo ele, se davam porque as drogas anteriores não causavam efeitos suficientes. Por duas décadas, ele ficou refém dessas substâncias. O uso impulsivo e incontrolável das drogas foi acompanhado de suas primeiras grandes perdas. Começando pelo irmão, um de seus companheiros na bebida e na cocaína. Até mesmo para um pai adicto, foi difícil encarar o transtorno de um filho. Talvez uma das cenas mais chocantes de sua trajetória seja ter sido preso em flagrante por latrocínio, o roubo seguido de morte. Pelo crime, Marcio foi condenado a 13 anos de reclusão. Desse tempo, 8 anos foram cumpridos por bom comportamento. Sobre isso, o adicto não culpa apenas os efeitos da droga. Ele reconhece um desvio de conduta, na época, e contra o qual luta, todos os dias, para não ter: “é aquele caráter
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destrutivo de querer ser o outro e de não me aceitar. Hoje nem passa pela minha cabeça cometer um absurdo desses que é tirar a vida dos outros”, lamenta. Ao sair do período de reclusão, ainda mais contaminado pelo submundo das drogas, Marcio foi mais uma vez de encontro ao vício, dessa vez com uma nova substância: “Eu conheci uma das piores drogas que o ser humano pode conhecer nessa terra: o crack. Foi amor à primeira vista. Daí ficou para trás o álcool e a cocaína”, relembra. Todo esse amor e obsessão pelo crack ainda tirou de sua vida os amigos, filhos, esposa, pais e os demais familiares. “Eu deixei tudo para trás. Eu tenho uma filha de 22 anos e, na época, ela tinha cerca de 10 anos. Eu tinha perdido tudo. Praticamente, eu tinha abandonado tudo”, lamenta. Os riscos, os medos e a dificuldade para viver nas ruas são inúmeros. Para conseguir sobreviver a todas essas adversidades, além do vício que corrói a saúde de qualquer indivíduo, Marcio acredita que é necessário aprender a viver novamente, assumindo novos hábitos e costumes que antes não faziam parte do seu dia a dia. Durante o período de dependência química, ele pedia dinheiro em semáforos. Entre o vermelho e o verde que controlavam o fluxo de ruas e avenidas, esmolas
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e humilhações lhe eram destinadas. Cansado do que considerava ser uma grande vergonha, optou por outra ainda maior, mas que lhe dava uma ilusória sensação de poder. Foi assim que começou a praticar pequenos furtos na cidade. “Fizemos um grupo de batedores de carteira que roubava pessoas para poder usar [drogas]. Porque no uso compulsivo e obsessivo, o dependente não mede esforços. Ele não tem medo de nada. É um cara inconsequente. Ele quer saber de satisfazer o ego dele e manter no vício dele”, relata. Um homem forte fisicamente e que sustentava sua casa se via às margens da sociedade e extremamente debilitado já que as drogas o levaram ao peso de apenas 44 quilos. A saudade da família era preenchida, momentaneamente, pelas pedras de crack. Já o desejo de um prato de comida foi substituído por qualquer coisa que encontrasse na rua e que pudesse servir de alimento. “O período mais difícil da minha vida foi quando fui morar na rua. Eu me peguei sem tomar banho, não comia mais direito, não tinha lugar para dormir. Dormia debaixo das pontes, nas calçadas. Me tornei um lixo humano”, lamenta Marcio. E nos momentos de aflição, alguns laços precisaram ser formados entre as pessoas que perambulavam pelas ruas da Cracolândia, não apenas para compartilhar
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um cachimbo de crack, mas para se ajudarem. “Um dia, um amigo meu que usava junto comigo, sumiu. Passaram-se 8 meses e ele retornou onde eu estava e me falou sobre a existência da internação e todas as possibilidades para que eu parasse de sofrer, porque já tinha perdido tudo que um ser humano pode imaginar. Eu estava comendo coisa do lixo para sobreviver”, relembra angustiado. Por mais que aquela conversa fosse uma porta se abrindo para uma nova vida, Marcio ficou furioso. Acreditava que clínica era coisa de “gente doida” e ele, no auge da dependência, argumentava que usava drogas porque gostava da sensação. Seguindo nessa certeza, ignorou de forma grosseira a proposta do amigo que foi obrigado a dar as costas sozinho para aquelas tristes ruas que, durante algum tempo, foram a casa dos dois. Mas a vontade do companheiro sóbrio de salvar seu amigo do uso de drogas não acabou naquele momento. Por conta própria, ele conseguiu descobrir onde Marcio morava e convenceu o pai dele a internálo de forma compulsória. O pai, que foi por muito tempo dependente do álcool, entendeu a necessidade de ajudar o filho e não pensou
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duas vezes antes de enviar uma equipe de remoção34 para encontrá-lo na desordem da Cracolândia. “Eu estava lá no meio da multidão, usando droga e sofrendo. De repente, veio quatro caras que eu não conhecia me pegando, amarrando e jogando dentro de um carro”, narra.
34 O serviço de remoção de dependentes químicos, que consiste no resgate do usuário de um local indicado e transporte para atendimento médico ou terapêutico, existe tanto para internações involuntárias, quando o usuário precisa ser atendido por um profissional ou uma equipe de uma unidade de saúde, quanto para internações voluntárias, quando o usuário se conscientiza por conta própria que precisa urgentemente de atendimento e tratamento médico. A remoção é feita por equipes especializadas com profissionais técnicos preparados para cada tipo de situação de socorro.
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JOÃO Como a maioria das pessoas aqui retratadas, João também foi parar no universo das drogas pelas bebidas alcoólicas. Ainda na infância, aos 12 anos, começou a beber cerveja não só para se enturmar com os amigos mais velhos, mas para preencher o vazio e a solidão que sentia desde criança. O primeiro contato com drogas ilícitas foi pela cocaína que servia para deixar aquele garoto tímido mais solto para conversar com garotas e amigos. Para João, a cocaína e o álcool traziam uma boa sensação de liberdade, aos finais de semana. Com o passar do tempo, as drogas passaram da descontração para compulsão, o que atrapalhou seus planos de vida pessoal, profissional e acadêmica. “Eu gostava de ser desse jeito. Inicialmente, era algo prazeroso e esporádico, que acontecia aos finais de semana. Porém, conforme foi passando o tempo, começou a progredir”. Ele lembra que o uso foi se intensificando nos dias em que ia ao campo, que ficava há dois quarteirões descendo a rua da Igreja Matriz, no centro de Porto Feliz, para assistir futebol, nas quartas e sextas-feiras. Lá acabou se tornando seu “local de ativa”. “Em um domingo, às 7 horas da manhã, eu fui à missa. Quando saí da igreja, eu não voltei para casa. Do jeito que eu entrei no campo [ávido pela droga], até
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hoje eu não sei quem jogou”, conta. Mesmo se esforçando para encontrar amparo na espiritualidade, João não conseguia vencer seu vício. “Eu tinha acabado de sair da igreja, eu estava bem espiritualmente. Quando foi cair a ficha, era três horas da manhã e eu estava em uma casa noturna em Itu. Já tinha virado o dia inteiro, mesmo falando que nunca mais ia usar”. João começou a ter dificuldade para se manter empregado. Ele se lembra de sempre ter se destacado em seus empregos, mas a situação estava mudando para pior. “Devido ao meu uso de drogas eu não conseguia ir trabalhar e faltava. Em algumas situações, quando estava na reta final da minha adicção ativa, cheguei a usar até durante o trabalho mesmo”. Assim, ele acabou ficando desempregado. João conta que muitas vezes frequentou lugares onde convivia com pessoas que não queria [relacionadas ao tráfico de drogas]. Porém, o prazer momentâneo proporcionado pela cocaína e pelo álcool sempre foi mais forte e, mesmo com muitos malefícios a sua saúde física e mental, continuou por esse caminho. “Eu fui parar algumas vezes no hospital para tomar glicose. Dava aquela palpitação, parecia que eu ia infartar”, lembra. Para minimizar a pressão feita pela família e pelo trabalho, se excluir foi a solução encontrada. Afinal,
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neste momento, já apareciam as primeiras humilhações e o perigo quase sem volta das dívidas com traficantes do bairro que cobravam o que ele devia, deixando a mãe em situação inconsolável. “Eu
me
recordo
de
uma
situação
muito
constrangedora em que eu cheguei a defecar na minha própria calça porque não conseguia ir embora para casa, que estava apenas à dois quarteirões. A minha mãe, que acabou ficando do meu lado, foi a pessoa que mais sofreu, além de mim, durante meu uso”, lamenta. Durante uma conversa entre seus companheiros de uso, um deles comentou que se internava em clínicas de reabilitação para receber o auxílio do governo e depois de 1 mês saia para comprar e usar mais drogas com o dinheiro que havia recebido. Foi esse mesmo amigo que, pela primeira vez, sugeriu que João se internasse também. Assim como Marcio, ele nem deu atenção à proposta que lhe parecia completamente descabida. Ele ainda não precisava de dinheiro e, além disso, não se enxergava como um dependente químico. Porém, havia outro conhecido já em uma situação completamente degradante do uso, que morava em um banheiro de lava rápido. João, tentando abrir os olhos do amigo para o problema que ele estava enfrentando, percebeu que também precisava de ajuda. “Você perdeu
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seu emprego e sua família. Você está precisando de uma clínica”, disse ao amigo. “João, você percebeu que também está precisando?”, retrucou o amigo. Por mais dolorido que fosse ouvir aquelas palavras, foi neste momento que João percebeu que estava doente. Ele procurou a família e pediu para ser internado, com o intuito de se livrar somente da cocaína, já que para ele, o álcool não fazia parte de sua adicção. “Na minha percepção, era isso [cocaína] que estava acabando com minha vida. Quando eu cheguei lá, fui descobrir que era portador de uma doença, a adicção, que é incurável, progressiva e pode se tornar fatal”, contou. No decorrer da internação, os profissionais da clínica e outros pacientes aconselhavam que ao sair da instituição, quando recebesse alta, era imprescindível continuar o tratamento, buscar ajuda e se afastar da sua antiga rotina, mas João, acreditando que tinha resolvido sua dependência de uma vez por todas, não deu ouvidos. “Foi enfatizada a importância de evitar hábito, lugares e pessoas da ativa, mas eu saí de lá e fiz totalmente o inverso. Eu fui direto na lanchonete [do amigo com o qual usava], na esquina, fui direto conversar com as mesmas pessoas e falar que eu tinha parado”. Assim, 15 dias depois que saiu da clínica, João havia voltado a usar droga. A primeira recaída durante sua luta contra a
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dependência não aconteceu de forma gradativa. Foi um despencar do topo para o fundo do poço direto, novamente sem nenhuma esperança de resgate. Ele voltou a usar a mesma quantidade exorbitante. “Após essa internação, eu fui tomar uma garrafa de cerveja. Eu mal consegui terminar de tomar o primeiro copo. Abandonei e fui direto buscar a cocaína e assim comecei a usar [novamente]”, detalha. João tinha ficado afastado do trabalho por mais de três meses, pois conseguiu prorrogação para concluir o tratamento. A semana que ia voltar ao trabalho foi a mesma que voltou ao uso de drogas. Ele lembra que a vergonha de não ter conseguido o corroeu. “Minha função era um cargo de confiança, mas a pessoa que me promoveu não me queria mais no setor. Eu tive que voltar ao setor anterior e ficou toda aquela imagem para a empresa e para os colegas de trabalho”. Fazer amizades e conhecer uma pessoa para namorar até passava pela mente dele, mas o prazer pela droga e álcool era mais forte do que qualquer relação afetiva. Aconteceram alguns encontros, mas todas as vezes que ele aceitava sair com alguém, era “prioridade” tomar uma cerveja para perder a timidez. Além disso, o medo de assumir compromisso e consequentemente responsabilidades com uma pessoa não estava no seu plano, afinal isso seria um empecilho ao consumo de drogas.
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Com o aumento do uso, as dívidas com traficantes do bairro também ficavam cada vez maiores. As cobranças e ameaças contra ele aumentavam na mesma medida. O consumo compulsório de drogas químicas tirou o livre arbítrio de João, que só conseguia ficar pelas redondezas da sua casa, mesmo morando em uma cidade considerada grande para o interior de São Paulo, como é Sorocaba. “Eu não conseguia mais trabalhar e nem me relacionar com a minha mãe. Tinham traficantes atrás de mim. Eu fiquei limitado à três quarteirões: ia da minha casa para um bar que frequentava e só. Nem buscar droga eu ia porque tinha medo. Ligava para uma pessoa trazer para mim quando eu tinha dinheiro. Esse foi o meu fundo do poço”, conta.
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Foto: Flรกvio Torres
Elmo com o filho Alan, 7.
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ELMO E por falar em sofrimento, foram 24 anos de muita angústia e dor que Elmo, sua família, ex-namoradas e atual esposa tiveram que passar por causa do seu uso abusivo de drogas. Desde a infância, Elmo cometia pequenos furtos dentro da sua própria casa e até na escola. Qualquer dinheiro ou objeto de valor à mostra, ele pegava. Mas foi aos 14 anos, durante uma festa em família, enquanto os tios jogavam baralho, que ele experimentou a primeira cerveja. “Eu me lembro que eu ia pegar essa cerveja na geladeira e experimentava. Tomava escondido”, relembra. Com o passar do tempo, a cerveja não saciava mais sua vontade e o cigarro trouxe euforia para sua vida. Fumar também foi um ato escondido dos seus pais, por isso, o consumo acontecia na escola, com os amigos da época. Foi em uma dessas ocasiões, também com os colegas de escola, que Elmo fumou o primeiro cigarro de maconha. “A sensação e o efeito que ela causava fizeram com que eu me apaixonasse”, descreve. A vida aconteceu e, não muito diferente das demais histórias, Elmo conheceu a cocaína e a situação foi, aos poucos, ficando cada vez mais grave.
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A paixão pelas drogas não impediu que ele encontrasse Cláudia, sua primeira namorada e, mais tarde, noiva. Durante 10 anos, o casal viveu momentos turbulentos que colocaram o relacionamento à prova. A companheira não era conivente com o estilo de vida que ele levava e, por isso, nunca hesitou de em tentar tirá-lo, de todas as formas, do caminho das drogas. “Ela suportou todos esses 10 anos junto comigo, todo o meu vício. Ela procurava grupo de apoio e ia me buscar junto com o meu pai em biqueira, sabe? Ela foi uma pessoa muito boa na minha vida, um anjo. Na verdade, eu não sabia o que era amor, eu não me amava e também não pude amar ela”, lamenta. Quando
completou
18
anos,
Elmo
já
tinha
experimentado todas as drogas e estava obviamente viciado. A frequência de uso só aumentava. Abandonou a escola, conseguiu um emprego, tirou carteira de motorista e, com a ajuda do pai, teve sua primeira moto. Sem a escola, Elmo tinha apenas seu trabalho como responsabilidade. O salário que recebia era completamente gasto com álcool e drogas e a culpa por não conseguir ser um companheiro presente para Cláudia assolava sua consciência, mas não era suficiente para fazê-lo mudar de atitude: “Sempre tinha uma desculpa. Eu tinha dinheiro para tomar cerveja, para usar droga, mas não tinha dinheiro
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para levá-la ao cinema, comprar um presente ou algo desse tipo”, explica. Em 2004, Elmo já tinha conhecido a droga que arruinaria sua vida por muitos anos: o crack. Ainda tinha receio da droga e tinha outras substâncias de preferência. Neste mesmo ano ele foi internado pela primeira vez, permanecendo 30 dias em uma clínica. Junto com a internação, veio a primeira perda. Ao sair da clínica, Elmo descobriu que Cláudia estava se relacionando com outro rapaz. Agora, passado anos disso, ele não guarda mágoa dela, afinal, ela passou por muitas coisas resultantes do vício dele como ter o próprio celular roubado pelo namorado para trocar por droga e também chegar a buscá-lo em biqueiras. Mas naquele tempo, sensível e tendo acabado de sair de um longo período de abstinência, saber que a então namorada já tinha outro namorado fez Elmo tomar uma atitude que poderia ter custado a vida de um inocente e até mesmo de sua ex-namorada. “O dia que eu peguei ela com outro foi terrível! Eu bati nesse cara, briguei e até quebrei o carro dele. A Cláudia tentou entrar no meio e, sem querer, também dei um soco nela. [...] O cara foi parar no hospital”, conta ele, exasperado. Elmo encara esse período como uma das piores fases
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que passou, afinal, a chance de ser efetivado em uma empresa multinacional, em Sorocaba, e ter Cláudia como um grande amor foi desperdiçada por causa da sua compulsão pelas drogas. Depois desse episódio, ele já não queria mais trabalhar como um cidadão comum. Seu pensamento estava completamente focado em ficar “famoso” que significava ser conhecido no mundo do crime - e conquistar outra namorada para provar para a Cláudia que estava tudo ótimo sem ela. A vontade de ser tornar “famoso” era tão grande que Elmo, de fato, abriu mão de procurar emprego para se enturmar com pessoas ligadas ao Primeiro Comando da Capital (PCC)35 e também se envolver com o tráfico de drogas. Dessa forma, a “tão sonhada fama” chegou porque ele traficava, andava com pessoas erradas e por conta de ter acabado de sair da clínica, não usava nenhum tipo de droga. Isto, dentro desse contexto, o tornou “respeitado” no meio do crime, o que rendeu a ele comprar uma moto de 600 cilindradas e ser rodeado por mulheres. Ele conta que chegou a ter duas namoradas ao mesmo tempo. 35 Primeiro Comando da Capital é uma organização criminosa do Brasil. O grupo comanda rebeliões, assaltos, sequestros, assassinatos e narcotráfico. A facção atua principalmente em São Paulo, mas também está presente em 22 dos 27 estados brasileiros, além de países próximos, como Bolívia, Paraguai e Colômbia.
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Toda essa “notoriedade”, segundo ele, chamou a atenção dos policiais. Elmo foi preso por tráfico de drogas. “Onde todo mundo te conhece, sempre tem alguém que passa informação para a Polícia e eles começaram a me procurar. Várias viaturas tentaram me parar com essa moto [de 600 cilindradas]. Eu sempre fugia”, relata. Porém, a caça não durou muito tempo. Elmo foi buscar sua namorada, que trabalhava no shopping e, chegando na casa dele, foi enquadrado. “Os policiais forjaram o crime, colocaram droga em mim. Me levaram para delegacia e fui preso”, explica-se. Nesse primeiro período de cumprimento de pena, Elmo foi levado ao Centro de Detenção Provisória (CDP) de Sorocaba. Ao chegar, foi colocado em uma ala ocupada pela facção adversária do PCC. O medo de sofrer algum tipo de represália não durou muito, pois, um dos amigos que era integrante da facção também estava no pavilhão e conseguiu que um funcionário transferisse o rapaz para a “ala A favorável”, nome que o Primeiro Comando da Capital usa nos espaços de seu domínio dentro do cárcere. Depois de 3 meses preso em Sorocaba, Elmo acabou transferido para Hortolândia. Na época, ele acreditava que o diretor da instituição não gostava dele por associação ao PCC e pediu sua mudança de cidade.
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Nesse período preso, entre 2005 e 2006, ele passou por rebeliões dentro do cárcere. Esse movimento dentro da cadeia não aconteceu apenas em Sorocaba, mas em todo o estado de São Paulo. É que, em maio de 2006, o PCC liderou uma série de ataques pelas ruas, tendo como alvo principal, os policiais. O terror alardeado pela facção criminosa fez muitas empresas liberarem seus funcionários mais cedo. Ruas e avenidas ficaram desertas, carros e ônibus foram queimados, bases policiais e dos bombeiros atacadas. Segundo a Ouvidoria da Polícia, 493 pessoas morreram durante o ataque. Depois de cumprir sua pena, Elmo não tinha namorada nem tanta fama no mundo do crime e isso fez com que ele aumentasse o consumo de drogas. A solidão gritava dentro do seu coração e as dívidas com traficantes ficavam cada vez maiores. E a solução para o pagamento disso foi assaltar à mão armada na companhia do irmão e um amigo. “Chegou um ponto que eu estava devendo tanto dinheiro para traficante que meu pai não tinha mais dinheiro para pagar as minhas dívidas. E meu irmão me falou um dia: ‘ah, vamos roubar!’ E eu fui fazer um assalto com ele, em outubro de 2006, no centro de Sorocaba. E a gente foi preso nesse assalto. Eu, meu irmão e mais um rapaz”, lamenta. A volta para a cadeia representou mais 3 anos atrás das grades. Elmo cumpriu pena nos presídios
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de Piracicaba e Itapetininga, ambos no interior de São Paulo. Cumprida essa nova sentença, em 2009, Elmo se livrou do cárcere mas não das drogas. Os pais, que nunca o abandonaram e nem desistiram de ver o filho sóbrio, o levaram para mais uma internação no ano seguinte de sua saída da cadeia. Elmo foi internado na Guadalupe, uma já extinta comunidade terapêutica localizada no bairro Capoavinha, em Votorantim, no interior de São Paulo. No sexto mês de internação, o pai da Viviane, atual esposa de Elmo, chegou para se tornar o novo paciente da Guadalupe graças ao seu alcoolismo. “Depois de 9 meses, a gente já se falava muito por telefone. [...] Quando eu saí da clínica a primeira vez, também encontrei com ela pela primeira vez. Aí rolou uma química, como ela diz, que é o nosso filho Alan”, conta emocionado, ao lado da esposa. Viviane tomou para si, a partir do momento que se apaixonou por Elmo, uma tarefa árdua, pois, os comportamentos dele continuavam regidos pelas drogas. O adicto conta que chegaram a guardar dinheiro para comprar um automóvel que seria usado para o trabalho deles, mas aquele valor foi diretamente para as mãos de traficantes. Ele usou para comprar drogas: “Era 4 mil reais. A minha mulher tentou resgatar alguma coisa, mas não conseguiu e eu a
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ameaçava. Eu a fiz sofrer muito”. Tomado pela vergonha que sentia, principalmente da família, Elmo decidiu abandonar sua casa e viver nas ruas de Sorocaba. Neste período, ele deixou de acompanhar boa parte da gravidez da esposa, algo que o magoa até hoje. Além disso, o atual bombeiro civil passou por momentos onde se viu buscando alimentos em contêineres de lixo: “Eu cheguei a comer uma pizza estragada que estava lá. Esse foi o último ano do meu uso e foi também o mais sofrido. A Viviane deu à luz ao Alan, no dia 11 de maio e eu fui internado pela última vez, em 27 de fevereiro de 2014”, relata emocionado. Para Elmo, esse foi o ápice de sofrimento de toda sua vida porque sobre ele se concentraram dor, impotência, vergonha e solidão. Não era apenas comer uma pizza estragada do lixo. Aí se trata da falta de dignidade de um homem casado, com um filho recém-nascido que se via distante da família e próximo de um drama muito grande materializado pela humilhação em dormir sobre um papelão, ficar quatro dias sem banho, barba por fazer e as pontas dos dedos queimadas pelo isqueiro que acendia o cachimbo do crack. E para enfrentar tudo isso, apenas as drogas. “Morar na rua foi uma escolha minha porque eu não passei tanto tempo lá. Eu fiquei um bom tempo dentro da casa do meu amigo Douglas, que era uma casa em que a gente só fumava crack. Depois que saí, fiquei um tempo no bairro Laranjeiras,
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em uma mini Cracolândia em que a gente dormia fumando e acordava fumando. Sempre tinha alguém para dar um trago. Quando eu estava com fome, pedia ou fuçava o lixo da padaria”, detalha. Nesta fase, Elmo relembra que o pai não deixava que ele se aproximasse das redondezas de sua casa. Com isso, a opção era apenas pegar uma marmita pelo portão, a única coisa que não lhe foi negada. Mas dormir era no meio do mato. Mesmo com um cenário amplamente desfavorável, Elmo diz que nunca se sentiu excluído pela sociedade porque estar nas ruas foi uma escolha. Durante todo o período em que ele usou drogas, algumas decisões tomadas sob efeito da química, foram tão fortes a ponto de Elmo deixá-las restritas às suas conversas com Marcio, seu padrinho no Narcóticos Anônimos: “Ele sabe de muita coisa que eu fiz de errado e aprontei no assalto à mão armada. Eu sequestrei uma família inteira, apontei arma para muita mãe e pai de família, trafiquei para pessoas e humilhei outras também”, conta ele enquanto leva as mãos à cabeça, nervoso com as lembranças.
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JOSÉ Assim como Elmo, José sofreu pelas consequências de seus atos durante o período de adicção ativa: “Por causa do vício, eu fiz algumas coisas erradas e poderia não estar andando por aí. Poderia estar morto agora”, relata. Esse é um relato que ilustra a vida de muitos dependentes químicos. Em pouco mais de 8 anos, José passou por diversas clínicas, tratamentos, mas a compulsão pela droga era tamanha que as recaídas foram suas más companhias durante todo o processo. Com isso, cicatrizes na alma se formam no adicto
que luta incansavelmente para largar da dependência
química. Marcas que também ficam notórias nas
pessoas à sua volta. José detalha de forma emocionada e até com um tom de arrependimento sobre a relação
com os irmãos, estremecida pelo vício. Até mesmo estando há um longo período limpo, o perdão é um dos processos mais difíceis, sendo que em muitas vezes, não acontece.
“Quando a gente está nessa vida, a gente erra
demais e faz muitas pessoas sofrerem. E para perdoar,
não é para qualquer um. Não é qualquer pessoa que
consegue chegar em você e falar ‘eu te perdoo pelo que você fez e tá tranquilo’. Fica uma coisa complicada.
Meus irmãos mesmo é só ‘oi’ e ‘tchau’ porque eles viram
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que, na minha adicção, minha mãe sofreu demais”. Tanto que as visitas à sua cidade natal, Santa Isabel, na Região Metropolitana de São Paulo, são apenas para rever a mãe. Aparentemente, em suas palavras, o passado ainda atormenta e a alternativa, ou como mesmo gosta de nomear, a “estratégia”, para que tudo isso não volte é a exclusão. “Fico na casa dela e de lá me despeço porque me traz muita situação a qual eu passei um processo bem difícil. Eu achei uma estratégia: evitar lugares e pessoas que me levaram à adicção”. Para José, a auto exclusão acaba se tornando frequente durante o uso da droga. “O que acontece é um abandono, por nossa parte, porque no momento em que você está usando droga com seu ciclo de amizade, automaticamente está se excluindo porque a droga é tão obscura que as pessoas andam cabisbaixas pelas ruas”. Ou seja, além da sociedade que pode tratar a adicção como algo marginalizado, os próprios adictos se resguardam em núcleos para não ficarem expostos a possíveis julgamentos. Segundo ele, o vício em drogas ilícitas não se compara com álcool, cigarro, prostituição e nem os jogos de azar. A sensação de domínio é semelhante, mas a cocaína e o crack se introduziram pelo seu organismo. “É algo que domina, até lembra vício em jogo, cigarro,
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prostituição, mas a droga é pior porque ela age direto no sangue e altera sua rotina, você não tem mais hora para dormir ou acordar”, explica. Em alguns casos, o adicto recorre ao crime como forma de conseguir dinheiro para continuar consumindo drogas. E com José, não foi diferente, mas ele fez o caminho inverso, pois, antes de se tornar um viciado, já vivia no mundo do crime. E sua facilidade de interagir com o público foi uma peça fundamental para conseguir se relacionar com o crime, primeiramente, entrando em contato com criminosos de seu bairro e posteriormente, utilizando desta habilidade para roubar com seus amigos. “Eu sempre fui envolvido com o crime e com coisas erradas. Roubava, andava com pessoas erradas”. O crime foi algo prazeroso para ele durante algum tempo. Devido ao núcleo de amizade, andar com uma arma na cintura, receber o título de ladrão, ganhar respeito entre as pessoas era o que movia sua vida. “Isso chama atenção de um adolescente, faz você se sentir reverenciado”, sintetiza. Porém a dependência química não demorou muito para atrapalhar a sua vida. No pico do consumo, uma das formas encontradas para acabar com aquele sofrimento era o suicídio. “Existem vários momentos no qual você olha e deseja demais que aquilo acabe. A
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pessoa chega num ponto onde não aguenta mais aquilo ali, fica desesperada, não consegue sair. Aí vê a solução em tirar a própria vida e pronto acabou”, explica. Quando o consumo de drogas se torna um problema grave para o próprio usuário ou para seus familiares, seja no seu local de trabalho, nas instituições de saúde, nos organismos religiosos que frequenta ou até mesmo nas instituições legais, com danos físicos ou emocionais, a situação começa a causar sofrimento tanto para o dependente quanto para o seu núcleo social. É nesse momento, normalmente, que o pedido de ajuda acontece.
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CIÊNCIA & RELIGIÃO
A incansável busca por tratamento Definida como doença psicossocial pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a dependência química precisa ser levada em consideração como resultado de fatores biológicos, psicológicos e sociais. O psicólogo Julio Cesar Pereira Ramos Filho, pós-graduando em Dependência Química e formado na UNIP, Universidade Paulista,
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em Sorocaba, explica que a Classificação Internacional de Doenças (CID-10) reconhece a adicção como um transtorno mental com sintomas específicos decorrentes do uso abusivo de droga lícitas ou ilícitas: “A tolerância do organismo, a necessidade de aumentar as doses da substância para atingir o efeito provocado pela primeira dose, a dificuldade em manter o controle sobre o consumo e os danos causados na vida da pessoa, incluindo o abandono de outras atividades como trabalho, estudos etc... são sinais e sintomas suficientes para o diagnóstico da dependência química”. Mesmo com o tratamento garantido pela nova Política Nacional de Drogas (Pnad), decretada em 201936, o psicólogo explica que o Estado falha gravemente em prevenir, tratar e reabilitar os dependentes químicos. “Enquanto
não
existirem
políticas
públicas
que
promovam planos estratégicos de tratamento e reinserção, mapeando o núcleo social ao qual o usuário pertencia, há uma probabilidade do dependente químico se manter abstinente quando o seu contexto é inserido num plano de acolhimento e tratamento de forma contínua”. 36 Em 11 de abril de 2019, o decreto 9.761 estabeleceu a nova Política Nacional Sobre Drogas, no governo do presidente Jair Bolsonaro. A política anterior de redução de danos foi deixada de lado, enquanto há enfoque na abstinência. Segundo publicação no Diário Oficial da União, o artigo 3.18, deste Decreto, visa “Promover a estratégia de busca de abstinência de drogas lícitas e ilícitas como um dos fatores de redução dos problemas sociais, econômicos e de saúde decorrentes do uso, do uso indevido e da dependência das drogas lícitas e ilícitas.”
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Uma vez identificada, à doença existe tratamento. No Brasil, as instituições que dão assistência aos usuários de drogas são, essencialmente, as Unidades de Saúde Mental como, por exemplo, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), além dos hospitais, das comunidades terapêuticas37 e dos grupos de apoio em geral. Todas as histórias contadas, neste livro, vão chegar a um resultado de superação porque seus personagens contaram com a ajuda dessas instituições e da fé para mudarem radicalmente seus estilos de vida.
A INTERNAÇÃO Quem vê o tipo físico atual de Elmo, que se destaca com seu 1,80m de altura e porte robusto, sequer imagina o quão debilitado ele chegou na Comunidade Terapêutica Liberty, em Pinhalzinho, no interior de São Paulo, em 27 de fevereiro de 2014. Nesta que foi sua última internação, o peso era de 60kg. O resultado de 1 ano vivido nas ruas à base, principalmente, de crack, foi entregue à clínica para 37 As comunidades terapêuticas são uma modalidade de intervenção clínica voltada para dependentes químicos. No Brasil, elas estão muito ligadas a movimentos religiosos, principalmente, em iniciativas privadas vinculadas à fé católica ou evangélica. Por isso, em muitas delas, a adicção é compreendida como uma enfermidade da alma, da moral e do corpo e o tratamento está ligado à crença.
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reabilitação de dependentes químicos como um último esforço da esposa Viviane que, em um apelo desesperado, convenceu os pais dele a ajudá-lo mais uma vez. Já era seu quarto período de reclusão para tratamento da dependência de drogas e dessa vez, Elmo afirmava com toda segurança que só sairia dali quando Deus falasse que era a hora. Dez anos antes de tomar a decisão definitiva da mudança do estilo de vida, em 2004, Elmo era internado pela primeira vez, também pelos próprios pais, em um espaço chamado Centrado, no bairro Aparecidinha, em Sorocaba. A comunidade já não existe mais e naquela época, a família do adicto doava uma cesta básica quando podia, já que todo o trabalho feito na instituição era voluntário. Durante o mês que passou lá, Elmo tentou reconquistar a confiança do pai porque o vício - como já descrevemos - fazia com que ele mentisse e roubasse a própria família. Entre os furtos frequentes, roupas e um celular da ex-namorada foram vendidos. Nessa primeira internação, ele conheceu o Programa de 12 Passos, um método de recuperação que ele só daria valor quando decidisse parar de usar drogas, uma realidade que levou tempo para acontecer. O psicólogo Julio Cesar diz que a internação é uma escolha da pessoa e não uma imposição. Uma premissa que pode ser comprovada na história de Elmo porque
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mesmo depois de várias internações compulsórias, ele só conseguiu se manter limpo após várias recaídas. A rotina durante a internação para tratamento da dependência química é extremamente diferente do dia a dia que um usuário de drogas está acostumado e, por isso, os adictos em tratamento veem suas vidas serem viradas de cabeça para baixo. É a mudança que os obriga a encontrar novamente o caminho certo. E a isto só se chega com muita disciplina, dedicação, responsabilidade e, sobretudo, força de vontade. Um dia em uma clínica dessas se anuncia quando os primeiros raios de sol são vistos através da janela. Praticamente um despertador natural que sinaliza a todos de um quarto compartilhado entre quatro ou cinco pacientes a hora de acordar. Um sinal também para Elmo estar a postos para a primeira tarefa do dia: arrumar cama, esticar lençóis e dobrar sua própria roupa. Ainda sonolento, escovava os dentes, colocava uma roupa qualquer e ia para a oração do café da manhã - um momento de espiritualidade, reflexão e agradecimento antes da primeira refeição do dia. O guia utilizado para essas reflexões diárias era o Programa de 12 Passos. Cada dia, um passo diferente era escolhido. Após a leitura, quem se sentisse à vontade, poderia partilhar com os demais algo sobre sua vida e, em seguida, os monitores (adictos internados há mais tempo) e o
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coordenador da comunidade definiam a função de cada um: alguns lavavam os banheiros, outros eram designados para a cozinha, alguns cuidavam do jardim e outros cortavam lenha para o fogão. O trabalho braçal não serve apenas para que os pacientes se mantenham ocupados durante a internação. “Quando o dependente químico é retirado de seu convívio social, há os critérios que cada instituição que irá acolhê-lo estabelece como período de desintoxicação. Nestas instituições, a fissura é trabalhada mantendo o dependente químico realizando atividades laborais, fazendo uso de medicamentos psiquiátricos, atividades lúdicas etc...”, explica o psicólogo. Como se trata de uma comunidade voluntária e que sobrevive da doação das famílias dos adictos, a alimentação era simples e geralmente o cardápio era com verduras e legumes. Após o almoço, havia um curto período de descanso seguido por reuniões obrigatórias, novamente guiadas pelo Programa de 12 Passos. Às vezes, vinha um terapeuta de fora ou um adicto em recuperação para fazer palestras. Às 18h, todos os dias, havia o momento de fé com louvores pelo grupo de internos e o estudo da Bíblia. Apesar da obrigatoriedade desse momento, Elmo conta que participar das orações era muito bom.
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Em seguida, havia o jantar e um horário livre para cada um aproveitar como quisesse. Alguns faziam academia, outros iam dormir e aos sábados e domingos, o lazer era liberado após o meio dia com direito à piscina e aproveitar a chácara onde a comunidade funcionava. Uma vez, a cada 30 dias, havia a visita de parentes ou amigos. Todos esperavam ansiosamente pelo segundo domingo de cada mês. Uma data que fazia a instituição transbordar em felicidade. Em uma dessas ocasiões, os pacientes da clínica se uniram para preparar um bolo para esperar as visitas daquele dia. A motivação era o primeiro aniversário do Alan, o filho mais velho do Elmo que foi levado até a comunidade pela mãe, Viviane, para que a família, apesar dos momentos de extrema dificuldade, pudesse comemorar unida.
...
João, assim como Elmo, conta que, após anos de uso de drogas, só procurou sua família para pedir ajuda e ser internado quando não aguentava mais: “apertou de uma vez mesmo, chegou no limite da dor”, relembra entristecido.
Ele foi internado em uma comunidade
terapêutica simples e não foi fácil se adaptar a essa nova rotina: “Você perde totalmente sua privacidade e o conforto da sua casa… coisas simples mesmo, como abrir a geladeira. Não tem essa! Até o quarto é coletivo.
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Realmente não tinha regalia. Até mesmo a alimentação: eu nunca fui de comer muito legume e vegetal e lá era só abobrinha, beterraba... então eu tive que me adaptar.”
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Laila, aos 15 anos, teve que optar, na Vara da Infância, entre a Febem (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor) ou o tratamento no DJB38 (Desafio Jovem de Brasília), depois que o responsável pelo julgamento exibiu, sem papas na língua, o rumo que sua vida tinha tomado: “Eu tive muita sorte. Em primeiro lugar pela juíza e a maneira como ela me enviou para essa instituição. Era um programa de ponta, um programa de primeira, funcional mesmo e com muito resultado”, conta. Ainda assim, com tudo que era oferecido no DJB, Laila não reagia ao tratamento e, apesar de estar retida e longe das drogas, não conseguia abandonar sua antiga maneira de viver. “Os primeiros meses foram difíceis. Eu tinha pesadelos constantemente, mas graças a Deus, estava vencendo cada situação que surgia. Meu tratamento era acompanhado pela minha família. Eu 38 É uma instituição privada sem fins lucrativos, fundada em 30 de setembro de 1972 na cidade de Brasília/DF pelo Pr. Galdino Moreira Filho. Tem como objetivo subsidiar o processo de reorganização biopsicossocial, oferecendo suporte para o processo de recuperação e reinserção social para adultos usuários de substâncias psicoativas, garantindo os direitos individuais e coletivos. É a primeira comunidade terapêutica do Distrito Federal e a terceira do Brasil.
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sabia que eles estavam torcendo por mim e não podia mais decepcioná-los”39, relembra. Foi só depois de 3 meses, na clínica, que houve um despertar, principalmente espiritual, para a decisão de mudar radicalmente sua história. Depois desse episódio, o tratamento total durou 1 ano e meio.
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Arlem, marido de Laila, também foi internado no DJB como sentença judicial após ter sido flagrado pela polícia com um grupo de jovens que traficava drogas. Os advogados de seu pai conseguiram reverter a pena em tratamento. “Foi um lugar muito bom para mim, para refazer a minha cabeça, retomar. [...] Lá em Brasília, o choque de realidade para mim foi tão forte que eu interrompi o uso e me acostumei a ter uma vida normal sem usar drogas”, relata. Mas a história de Arlem com as drogas não foi encerrada tão cedo. Depois da primeira internação, no DJB, outras 21 vieram em diversas instituições. “No meu reencontro com as drogas, eu já era casado, já era independente, tinha a minha empresa, minha família, eu tinha recursos para bancar aquilo. E como a primeira vez eu consegui resolver, eu achava que, todas as vezes, conseguiria”, explica. 39
Trecho do livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012).
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Apesar de pensar que cada internação o ajudou trabalhando uma área que estava adormecida em si, provocando uma reflexão diferente, nem todas foram positivas: “eu tive internações terríveis! Fiquei internado em uma clínica caríssima em São Paulo, na ala psiquiátrica. Era tratado só com medicação mesmo. Eu não reconhecia ninguém, eu chamava a Laila de enfermeira. Que tipo de tratamento é esse? Ele desliga o seu cérebro. Você não tem mais compulsão por drogas, mas também não tem mais energia para nada… Foi um tempo muito difícil, de muita angústia na minha vida. Tentei suicídio algumas vezes”, lembra. Em uma de suas várias internações, a esposa Laila relembra que o telefone tocou por volta de meia-noite: “O terapeuta dizia que Arlem tinha passado por uma crise muito forte de abstinência, seguida de um descontrole emocional. [...] Diante do ocorrido, eles liberaram o paciente, permitindo que ele saísse no meio da noite em busca da droga [o crack]”40. O despreparo da instituição chocou Laila e seus familiares que imediatamente fizeram uma busca e encontraram Arlem, completamente debilitado, embaixo de um viaduto. Sem pensar duas vezes, o enviaram para outra clínica.
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Trecho do livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012).
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“A maioria das clínicas e comunidades terapêuticas em nosso país usa a lucratividade, fazendo dessa doença [a dependência química] uma indústria para enriquecimento próprio. São poucas as vagas sociais. O dependente químico é assolado financeiramente pelo traficante e pelo dono da clínica, que muitas vezes divulga sua metodologia de tratamento, mas que no fundo, não passa de propagandas indecentes e enganosas, oferecendo ao paciente um tratamento completamente inadequado e desprezível”41, desabafa Laila. Em outra ocasião, movido pelo desespero da abstinência quando já estava limpo há 15 dias durante uma das internações, Arlem implorou ao médico de plantão, mesmo na frente de sua esposa, que lhe desse uma combinação de medicações para que dormisse por 1 semana, evitando assim, que se drogasse. O médico ficou surpreso com o pedido, mas cedeu após explicar os riscos - que incluía até a morte por parada cardíaca. A condição era de que a medicação, que deveria ser aplicada na veia, fosse tomada em sua casa e ministrada por uma enfermeira da clínica que iria acompanhá-lo. Já em casa, mas ainda tomado pelo desespero da abstinência, Arlem fez uma última prece antes que a medicação fosse aplicada: “Oh, Deus! Aproveita este momento e me leva!
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Trecho do livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012).
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Não quero mais viver!”42, suplicava. Àquela altura, Arlem estava ciente que tinha a mulher de seus sonhos e que tinha tido, com ela, três lindos filhos. Porém, o vício em cocaína e crack havia arruinado a sua vida e feito todos sofrerem. Ainda assim, Laila segurou fortemente suas mãos enquanto a enfermeira penetrava levemente a agulha em sua veia com a medicação que poderia fazê-lo dormir, segundo ela, por uma semana ou para sempre. A medicação não terminou com sua vida mas o resultado não foi positivo: ele dormiu por apenas alguns minutos e acordou eufórico. Ainda cambaleando, pegou sua moto e foi ao encontro, mais uma vez, do crack. E assim se instalava mais uma recaída. Arlem considera sua última internação uma vitória porque ele se encontrou completamente cercado pela própria família em um ambiente acolhedor. E é justamente a esses dois fatores que ele atribui o êxito no tempo necessário da desintoxicação. Por isso, ele defende arduamente que, enquanto um dependente químico quiser se tratar, seu núcleo social, seja a família ou mesmo os amigos, deve dar oportunidade: “Eu tive 22 internações, passei por várias clínicas… Então, as oportunidades de tratamento devem ser dadas. Não podemos esperar que se você deu uma oportunidade, 42
Trecho do livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012).
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o usuário é obrigado a corresponder. Ele é um doente. Ele vai passar por várias fases dessa doença. Mas a expectativa é de que, se eu tenho condições, então, eu vou ajudá-lo quanto ele quiser”, argumenta. Limpo há mais de uma década, Arlem considera que a parte mais importante do tratamento é conseguir esperar o tempo necessário para que aconteça a desintoxicação do corpo sem usar droga alguma. “Se você usar, sabota tudo. Começa tudo do zero”, afirma. Seguindo a mesma linha de pensamento, João conta sobre a analogia da vela, muito conhecida entre os adictos. A comparação, basicamente, relaciona o vício em drogas à queima do objeto: “quando você para de usar, apaga a vela. Mas se voltar ao uso, ela volta a queimar de onde havia parado, não como era no início. É uma doença progressiva. Ela não regride”, detalha ele.
...
Assim como Arlem, José passou por várias internações. Em uma conta mais exata, sete em quatro instituições diferentes. O relato é cheio de angústia: “eu não queria mudança. Eu estava passando um tempo, esperando a poeira baixar e pronto”. Foi só no seu sétimo período de reclusão, após idas e vindas de recaída em recaída, em uma discussão com o pastor presidente da comunidade, vista por ele como um
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“chacoalhão” necessário, que a decisão de mudar de vida foi tomada: “eu fui humilhado em palavras e aquilo foi o ápice. Foi ali que eu decidi que não queria mais porque um homem não pode escutar as coisas que eu escutei. É fora do comum, é desumano”. Mas nem sempre é preciso uma sequência de tentativas para que a volta por cima seja possível. Marcio foi internado pela primeira e única vez, em 6 de maio de 2010, e desde então, nunca mais foi dominado pela compulsão. Com a ajuda de um conhecido, seu pai entrou em contato com uma equipe de remoção que conseguiu localizá-lo na Cracolândia, em São Paulo. Esse grupo especializado entregou o então dependente nas mãos de uma comunidade terapêutica onde passou 6 meses em tratamento. Nos primeiros dias, a raiva do pai pela internação forçada ocupava o seu pensamento: “Eu só queria usar drogas porque a compulsão e obsessão do dependente químico é muito grande. É uma situação que o ser humano chega e não dá para acreditar!”. Os dias foram passando e Marcio começou a se identificar com o tratamento, principalmente, com os relatos dos companheiros de internação. Além disso, havia muita ajuda terapêutica e, dessa forma, ele conseguiu perceber que, de fato, precisava de ajuda. Quando a data final do tratamento na comunidade
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estava se aproximando, a psicóloga Camila fez uma reunião com todos os adictos. Ela os questionou sobre uma motivação real para continuarem limpos quando saíssem para as ruas. Alguns responderam que era pelos pais, outros pela esposa e Marcio, ainda receoso se, de fato, conseguiria, respondeu: “olha, Dra. Camila, se fosse por mim mesmo, eu não conseguiria ficar limpo porque é muito tempo usando droga para pouco tempo de tratamento. Mas eu acredito que vou conseguir por causa dos meus filhos.” No final do momento compartilhado, a psicóloga explicou que, se eles de fato acreditavam naquilo, deveriam seguir em frente e lutar pela sobriedade. Marcio mal sabia, naquele momento, que seguiria em frente limpo por 10 anos. A fim de manter uma vida saudável, ele saiu da comunidade, mas nunca abandonou o tratamento. Ingressou no Narcóticos Anônimos e fez da recuperação de dependentes químicos, inclusive no âmbito profissional, sua grande forma de mudar a vida dele e dos outros.
O PROGRAMA DE 12 PASSOS O Programa de 12 Passos consiste em uma espécie de guia para a recuperação da identidade do indivíduo dependente. Geralmente é utilizado por associações terapêuticas, como o Narcóticos Anônimos, durante o
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tratamento da adicção. O objetivo é oferecer aos adictos, condições para alcançar a sobriedade, compreender e exercer um novo estilo de vida, reformulando a forma como enxergam suas próprias vivências e incentivando uma atitude de reintegração. Em síntese, trata-se de uma gestão da identidade pessoal em um processo que tem início assim que o indivíduo se assume como um dependente químico e integra o grupo. A partir daí, ocorrem algumas situações: o estigma é compreendido; há uma aproximação da fé; a adicção, sob a ótica de deficiência moral, é desmistificada; o adicto toma consciência sobre seu estado de doença; é estimulado a trocar experiências e auxiliar outros adictos na dinâmica da reabilitação. Não há um consenso sobre a origem dessa metodologia. Segundo o que John E. Burns escreveu em seu livro O caminho dos doze passos (2002), há referências de que os princípios tenham surgido com o corretor da Bolsa de Nova York William Griffith Wilson, conhecido como Bill Wilson, e o médico cirurgião Dr. Bob Smith, a partir da constituição dos Alcoólicos Anônimos (AA), após ambos terem a vida controlada pelo álcool. Os 12 Passos, descritos a seguir, se tornaram, então, normas amplamente utilizadas na reabilitação de adictos, sendo aprimoradas pelos centros de tratamento, ao passar dos anos, com literatura traduzida e publicada
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em diversos idiomas e países. Trata-se de um guia para pessoas com problemas de adicção, independentemente do gênero ou classe social. 1º. Admitimos que éramos impotentes perante a nossa adicção, (sic) que nossas vidas tinham se tornado incontroláveis. 2º. Viemos a acreditar que um Poder maior do que nós poderia devolver-nos à sanidade. 3º. Decidimos entregar nossa vontade e nossas vidas aos cuidados de Deus, da maneira como nós O compreendemos. 4º. Fizemos um profundo e destemido inventário moral de nós mesmos. 5º. Admitimos a Deus, a nós mesmos e a outro ser humano a natureza exata das nossas falhas. 6º. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter. 7º. Humildemente pedimos a Ele que removesse nossos defeitos. 8º. Fizemos uma lista de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a fazer reparações a todas elas. 9º. Fizemos reparações diretas a tais pessoas, sempre que possível, exceto quando fazê-lo pudesse prejudicá-las ou a outras. 10º. Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitimos prontamente. 11º. Procuramos, através de prece e meditação, melhorar o nosso contato consciente com Deus, da maneira como nós O compreendemos, rogando apenas o
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conhecimento da Sua vontade em relação a nós e o poder de realizar essa vontade. 12º. Tendo experimentado um despertar espiritual, como resultado destes passos, procuramos levar esta mensagem a outros adictos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.
Para João, seguir essa lista foi uma forma de falar com mais tranquilidade sobre o seu envolvimento com as drogas. “O programa me ajuda a fazer as pazes com o meu passado e viver um dia de cada vez”. O contato com o guia de recuperação veio logo em sua primeira internação, já que a instituição em que estava, baseava sua forma de realizar o tratamento dos dependentes no livro azul do Narcóticos Anônimos43. A identificação com a leitura foi grande e imediata. João começou a frequentar as reuniões do NA, aprendeu a evitar hábitos, pessoas e lugares e frequentar o maior número de encontros possível para se manter limpo. “Com a ajuda de um companheiro que me incentivava no processo de recuperação, eu tracei um cronograma para não me perder. Segunda-feira, eu ia no grupo de apoio da instituição onde eu havia ficado internado, em Sorocaba. Posava na casa da minha irmã e, no outro 43 O livro azul, como é conhecido, contém o texto básico de recuperação para adicto que explica os princípios de Narcóticos Anônimos e inclui as experiências pessoais dos membros em encontrar o NA e viver limpo.
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dia de manhã, acordava cedo e voltava para Porto Feliz para trabalhar. Na terça-feira, eu ia para a Pastoral da Sobriedade, que é um grupo de apoio que também utiliza os 12 Passos, mas é da Igreja Católica. Na quarta-feira, eu ficava em casa, descansava e assistia futebol. Na quinta-feira, eu participava de um momento de espiritualidade na minha religião de escolha. Na sexta-feira, eu pegava o ônibus, ia para Sorocaba e intensificava minha frequência em reuniões do NA: participava de duas na sexta, posava lá, ia em mais duas ou três. No sábado e domingo, a mesma coisa”. Durante cerca de 7 meses, ele praticamente não ficou um fim de semana em casa, já que na sua cidade, Porto Feliz, não tinha um grupo de NA. Então, ele se deslocava praticamente todos os dias até Sorocaba. “Quanto mais eu consegui me envolver com os grupos de apoio, mais eu comecei a criar um novo ciclo de amizades. Comecei a substituir os amigos que estavam na adicção ativa por pessoas que já tinham usado drogas, mas tinham o mesmo ponto de vista que eu. Quanto mais eu fui me envolvendo, mais fui ficando blindado contra as minhas vontades porque até hoje eu tenho vontade”, confessa. Depois de frequentar o NA, João sempre se perguntava se não existiam adictos em recuperação em sua cidade até que, um dia, encontrou um conhecido que já estava há 7 anos limpo e procurava alguém para abrir
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um grupo, em Porto Feliz. 15 dias após o encontro, já havia um local e as reuniões começaram. Para ele, o oitavo passo, que sugere que o adicto em recuperação faça uma lista de todas as pessoas que prejudicou e se disponha a reparar os danos, foi um dos mais marcantes. João nos conta que, quando chegou a esse passo, fez algumas reparações emocionais, pedindo desculpas mesmo. Outras foram reparações financeiras. Mas seu pai havia falecido, em 2006, e ele só ficou limpo 7 anos depois. A carta, que lhe deixa emocionado sempre que lê, é um registro que guarda até hoje:
A bênção, pai! Tudo bem com o senhor? Espero que sim. Estou aqui para trocar uma ideia com o senhor. Primeiramente, para pedir desculpas por todas as decepções que lhe causei. Sempre menciono em minhas partilhas que eu fui muito bem educado pelo senhor, porém, a partir do momento que comecei a usar drogas, não consegui praticar os princípios que o senhor me ensinou. Me lembro bem do dia que eu saí para pular Carnaval e o senhor me pediu para não beber. Eu era uma criança, praticamente, ainda. Mesmo assim, aproximadamente 3 horas depois, eu voltei todo sujo e drogado e a casa estava cheia de visitas. Acredito que o senhor ficou com muita vergonha e decepcionado. O senhor tomava conta
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de 30 crianças órfãs e seu filho não conseguia seguir regras e normas. Mas isso foi apenas o começo. Também lembro da última vez que o senhor deu uma surra em mim porque eu cheguei bêbado novamente. O senhor mencionou que seria a última vez que iria me bater. Dali em diante, eu teria que aprender com a vida. Caramba, pai! Como foi dolorido aprender. Passei por situações muito constrangedoras, perigosas e senti imensa dor e impotência, sempre movido pela compulsão de usar mais uma vez. Graças a Deus eu encontrei ajuda, pai. Conheci uma galera daora. O senhor sempre se orgulhava e enchia a boca para falar que eu tinha vários amigos e que era até mais conhecido que o senhor. Realmente, eu tinha vários conhecidos, mas hoje posso te dizer que eu realmente tenho muitos amigos. Não que não tivesse naquela época, mas é que eu não conseguia me sentir parte de nenhuma turma. Vivia rodeado de pessoas, mas sempre me sentia só. Hoje tenho amigos em todas as cidades da região. Eu me sinto parte dessa galera. Essa galera me ajudou a me tornar uma pessoa melhor. Onde o senhor estiver, tenho plena convicção que tem o maior orgulho do filho que estou me tornando, pois, hoje, venho me esforçando e conseguindo, na maioria das vezes, seguir seus ensinamentos. Sinto muita saudade. Eu gostaria muito que o senhor estivesse aqui para ir em uma reunião aberta comigo e conhecer meus novos amigos. Te amo, pai! Fica com Deus.
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O último passo, para ele, também é visto como fundamental, já que “quando eu começo a me doar para outras pessoas, eu deixo de potencializar as minhas faltas”, explica. João ainda reforça que não é porque terminou o ciclo dos 12 Passos uma vez que as coisas podem começar a mudar: “estou para concluir o primeiro ciclo. Assim que terminar, vou voltar para o primeiro passo de novo porque eu acredito muito nesse guia. Ele me impulsiona para continuar voltando nas reuniões e acreditar que posso me tornar melhor”. Assim como João, Laila é uma praticante assídua dos 12 Passos e para manter sua sobriedade, tem uma alimentação saudável e pratica exercícios físicos. Em uma de suas internações vistas como positivas, Arlem conheceu o Programa de 12 Passos do NA: “Eu vi que, puxa vida, era uma filosofia muito legal para a vida, independentemente de usar drogas ou não. Se você aplicar nos seus relacionamentos, na sua carreira profissional, na sua vida, são valores fantásticos, sabe? Nas relações, por exemplo, é importante que você admita culpa, erros, se render a algumas situações em que você não consegue pedir ajuda”. Elmo conta sobre a relação de extrema confiança
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que há com um padrinho44 dentro do NA e, como essa relação, que muitas vezes se torna uma forte amizade, é importante para a realização do quarto passo, que é primordial até hoje em sua vida: “Eu escrevo tudo aquilo que aconteceu na minha vida para que eu possa partilhar com uma pessoa de confiança que vai esquecer os meus segredos e me dar um retorno. O padrinho é isso: ele vai me orientar no Programa, vai dividir a vida dele. Se ele não puder ajudar, não vai atrapalhar. Só ouvir”. Ele tem uma pessoa próxima que, após 10 anos de sobriedade, voltou ao uso de drogas. Questionado sobre como isso afetava sua sobriedade, a resposta foi direta: “Não me abala, não. Hoje eu estou bem ciente que o meu primeiro passo é muito bem feito em relação ao álcool e às drogas. Eu sou impotente diante dessas substâncias”, confirma.
44 O apadrinhamento é uma relação pessoal e privada que significa coisas diferentes para pessoas diferentes. Para o NA, o padrinho é um membro de Narcóticos Anônimos que está vivendo o programa de recuperação e está disposto a construir uma relação especial, de apoio, com o grupo. A maioria dos membros vê o padrinho, antes de mais nada, como alguém que pode ajudar a trabalhar os Passos de NA e, às vezes, as Doze Tradições e os Doze Conceitos. Um padrinho não é necessariamente um amigo, mas, pode ser alguém em quem se confia. É possível partilhar com o padrinho coisas que não nos sentiríamos à vontade de partilhar em uma reunião.
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A FÉ Quando uma pessoa está no caminho da dependência química, é natural que sua vida esteja em um estado de disfuncionalidade: seus relacionamentos familiar, social e até profissional estão abalados, além da relação consigo mesmo. Em qualquer um desses casos ou em todos eles, o adicto se encontra descrente de si, do mundo à sua volta e de uma força espiritual que age sobre a existência de todos nós. Nesses momentos, as drogas passam a ser uma válvula de escape, uma razão para continuar vivendo e um corredor estreito para encontrar um resquício de prazer que a vida ainda pode oferecer. A fé em uma entidade superior que exprime amor e cuidado abre a mente do indivíduo para que ele primeiro aceite as transformações em sua vida e depois tenha confiança para superar todos os problemas provocados pelas drogas. Essa rendição à vontade de uma entidade divina diminui o medo e aumenta a fé do adicto, que, gradualmente, recupera a sua vida e a esperança em um futuro melhor. Não
há
como
negar
que
o
tratamento
da
dependência química é cercado por episódios de grandes enfrentamentos que geram dor e sofrimento para o usuário, desde a distância da família até a abstinência, a ansiedade e o medo. Nesse momento, a fé em um poder
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superior devolve ao paciente a sensação de segurança e de controle, já que sua vida pertence não somente a ele, mas também a uma força onipotente. A partir da experiência com os pacientes que acompanha, o psicólogo Julio Cesar explica que os grupos de autoajuda e a busca da espiritualidade colaboram com o tratamento: “a fé é um fenômeno humano e a espiritualidade pode ser um dos caminhos que compõem o todo num tratamento para a dependência química. Em meus acompanhamentos, reforço a importância da participação em grupos de autoajuda como Narcóticos Anônimos, a importância de se buscar uma espiritualidade para si, independente da religião na qual se pertença ou busque pertencer. Minha ênfase no acompanhamento não segue um critério único de tratamento apresentando uma cartilha formada pelo ‘ABC’ da dependência química, mas garantindo os direitos fundamentais de cada pessoa auxiliando no desenvolvimento da autonomia, da autoestima, autoimagem, questões que são distorcidas pelo uso abusivo de drogas, mas que podem ser fatores que levam uma pessoa a desenvolver a dependência”. Mas nem sempre é fácil compreender a relação com essa entidade divina. Elmo, por exemplo, acreditava em um “Deus destrutivo”. Quando estava vivendo nas ruas, sedento pela próxima droga e sem dinheiro para comprá-la, acreditava que Deus iria enviar, de alguma
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forma, pelo menos 10 reais para trocar por alguma substância. Mas a história hoje é bem diferente: “o Deus que eu conheci lá na clínica, depois que eu passei pelo tratamento, é um Deus bondoso, um Deus amoroso. Eu sei que o meu Deus é Jesus Cristo e que ele nunca me abandonou por mais que eu estivesse usando droga e, às vezes, pedia para um outro Deus destrutivo fazer com que eu conseguisse dinheiro para usar, Jesus Cristo estava sempre do meu lado. Ele só queria que eu me arrependesse e estendesse a mão para Ele”. Para Elmo, foi exatamente isso que aconteceu, em 2014, durante sua última internação. Quando ele, de fato, se rendeu ao tratamento e pediu ajuda para ficar limpo, Deus estava lá como amparo e força: “hoje já faz 6 anos, 4 meses e alguns dias que eu continuo acreditando que Ele tem o melhor para mim. Deus é muito bom! Ele é lindo, maravilhoso! O imperfeito sou eu”. A história de João não é muito diferente. Aprendeu, desde pequeno, com os ensinamentos de sua família, um conceito de fé que, segundo ele, é muito distorcido: “a fé que eu tinha era na punição, no castigo e na ida para o inferno”. Mas com o tratamento houve uma completa mudança de perspectivas: “eu tinha plena convicção que tudo aquilo que eu fazia e as dores que eu sentia era Deus me punindo. Hoje, através do programa, eu
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acredito que Deus continua o mesmo, porém, Ele nunca me puniu, Ele nunca me castigou. Tudo que aconteceu comigo foram consequências dos meus atos, já que eu sempre tive livre arbítrio”. Todos os dias, desde que está limpo, João acorda, dobra os joelhos e faz uma oração lembrando da sua adicção e pedindo discernimento para conseguir praticar os princípios aprendidos até ali. Pede sempre para ter a mente aberta, boa vontade, compaixão e para conseguir sempre focar no dia de hoje. Desde seu despertar, na primeira internação, no DJB, Laila tem uma conexão muito forte com a fé: “eu acho que só estou de pé por causa da espiritualidade até porque eu sei dos meus limites. Mesmo passando muita dor, tanto na minha história quanto na história do Arlem, foi tudo muito carregado de conflitos… se não fosse Deus…”. No dia 26 de janeiro de 1984, Laila assinava seu nome em um dos documentos mais importantes de sua vida: aquele papel indicava que ela acabava de completar um ano de tratamento. Extasiada de alegria, ela se conteve e, na capela em um momento de reflexão, fez uma prece de agradecimento a Deus por tê-la ajudado a completar o programa de reabilitação: Querido Pai Invisível, sou grata a Ti por me fazer vencedora. Sinto-me como se estivesse no pódio ganhando uma medalha de ouro. No dia em que cheguei aqui, vieram muitas outras garotas, mas somente a Selma [amiga do período de internação] e eu permanecemos. Obrigada por ter sido meu terapeuta maior. Agora deixo
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esta linda chácara que me amparou no momento mais difícil da minha vida. Aqui fui realmente transformada por meio dos recursos usados pela equipe de tratamento. Eles são verdadeiros anjos disfarçados de terapeutas ajudando a salvar vidas destruídas pelas drogas. Recompense-os muito, principalmente, o presidente da instituição, Galdino Moreira. Vou sentir saudade da minha segunda casa, do pomar, do bosque, da quadra, do lago com patinhos, das meninas, até mesmo do chiqueiro, pois foi lá que vi o quanto fui pródiga. Vou levar comigo lembranças de cada acontecimento que serviram de subsídio para a construção desta nova Laila. Sinceramente, acho que é muito pouco dizer à clínica um “adeus e obrigada pelo grande milagre que operaram em minha vida”. Quero poder agradecer mais. Faço um voto com o Senhor neste último dia do meu tratamento. Escreva em Seu diário para que possa, mais tarde, recordar-se e cobrar-me: prometo que ao sair daqui, vou escrever um livro para que outros jovens não tenham esta história para contar. Quero que essa obra possa ajudar muitos e prometo não só escrevê-la, mas ir ao encontro desses jovens por todo o Brasil e mundo. Obrigada para sempre!45
Essa crença tão grande em uma entidade superior, além de fazer bem para o casal, também os torna bons 45
Trecho do livro Se não fosse o crack, te teria outra vez (2012).
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pastores. Ambos se dedicam a trabalhos sociais na Primeira Igreja Batista, em São Paulo. Assim como João, Marcio encontra, na oração diária, a força para manter a sobriedade: “eu levanto de manhã, dobro meu joelho no chão e peço a Deus força. Peço que Ele me oriente, me guie e me fortaleça para que eu possa vencer mais um dia. Por isso, no NA, nós falamos ‘Só por hoje!’ e, nesse ‘só por hoje’, um dia de cada vez, já se
Foto: Flávio Torres
passaram 10 anos, 2 meses e 29 dias”.
Marcio exibe sua tatuagem com os dizeres “Blindado por Deus”.
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A relação de José com a fé foi construída ao longo dos anos e de cada internação em comunidades terapêuticas que seguiam a doutrina evangélica: “A melhor coisa que aconteceu dentro delas [das intituições] foi conhecer Jesus e a palavra de Deus”, explica. Além disso, o rapaz, que está há mais de 2 anos limpo, considera que tudo de positivo que vem acontecendo em sua vida tem um “empurrãozinho” de pai que só Deus poderia lhe dar. Apesar disso, deixa como ensinamento que o primeiro passo sempre deve ser dado por quem está clamando por ajuda: “Deus vai te ajudar, vai te dar forças e te ajudar a prosseguir. Mas se quer viver uma vida de luxo, tem que levantar cedo e trabalhar. Se quer viver uma vida diferente dos outros, tem que estudar, fazer uma faculdade e tudo mais”. Foi com a força de vontade incansável da família, o auxílio da área da Saúde no tratamento, a fé inabalável em um poder superior e o suporte dos grupos de apoio que cada uma dessas seis vidas se encaminhou, gradativamente, à volta por cima.
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EXCEÇÕES
A tão sonhada reinserção social João, Arlem, Laila, José, Elmo e Marcio. No que concerne ao período de drogadição, essas seis pessoas possuem muitos pontos em comum, ou seja, todas tiveram suas vidas transformadas pelo consumo abusivo de drogas, afastando-se do convívio social de amigos e familiares, perdendo oportunidades de trabalho e privando-se da felicidade. Mas entre tantos
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obstáculos, derrotas e sofrimento, suas histórias também
compartilham
momentos
importantes
e
significativos: a recuperação e a chance de estarem reinseridos socialmente. Antes de abordar como e quando eles foram inseridos novamente na comunidade, é necessário compreender o que significa, de fato, a reinserção social. Segundo o Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas, a reintegração consiste na reconstrução e no amparo das necessidades essenciais ao indivíduo, como incentivo à educação, atuação no mercado de trabalho e aumento da autoestima e autonomia. O processo é imprescindível porque as consequências físicas, psíquicas e sociais que o uso de narcóticos provoca na vida do adicto podem comprometer profundamente suas relações interpessoais. Por causa disso, seus direitos como cidadão não são reconhecidos resultando em exclusão social. Dessa maneira, é necessário reintegrálo para que ele consiga se libertar do isolamento e voltar a ter perspectivas e oportunidades. Durante a adicção, todos perderam a esperança e deixaram de sonhar; alguns até desejaram não existir mais. Por anos, os momentos de alegria, o sorriso no rosto, a vontade de estar em companhia, de querer e de ser desapareceram. Aos poucos, a luz que iluminava a vida de cada um foi se apagando, deixando um
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buraco que só se preenchia com a breve sensação de prazer, relaxamento e bem-estar, proporcionada pelas substâncias químicas. Atualmente, essas sensações continuam presentes em suas vidas, porém, o estímulo delas é completamente diferente. Pequenas tarefas cotidianas, como limpar a casa, trocar uma lâmpada ou até mesmo dormir cedo, podem trazer felicidade, além de significarem um grande avanço na recuperação do dependente, que, agora, consegue realizar todas as atividades do dia a dia sem alimentar seu vício. É o caso do João que está encontrando prazer em ocasiões habituais. Um exemplo disso foi quando ele trocou um soquete da lâmpada de sua casa. Apesar de já ter trabalhado em obras, não foi apenas o fato de completar esse serviço doméstico que o alegrou. Na verdade, foi o gesto de poder fazer algo produtivo que proporcionou sua satisfação e bem-estar. Para ele, essa nova oportunidade de viver é encontrar prazer nas coisas comuns da vida. “O simples fato de eu conseguir, hoje, me manter empregado; o simples fato de eu ter uma casa confortável. Eu tenho uma vida muito simples, mas, para mim, hoje, o simples se tornou extraordinário”. No período de dependência química, João estava acostumado a passar as noites em claro, procurando seus contatos para comprar cocaína. Hoje em dia,
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aos sábados, ele já está deitado para dormir às 21 horas. Essas pequenas atitudes, que podem parecer corriqueiras e insignificantes para algumas pessoas, possuem imenso valor para um adicto. “Hoje, eu não estou mais de ressaca, eu não virei a noite, eu não torrei todo o meu dinheiro, eu não prejudiquei mais ninguém. Então, são situações assim que me fazem bem”, conta. Saber que a dependência não pode tirar mais
seu autocontrole é o que o faz valorizar cada hora e minuto de seu dia. Suas escolhas, tanto nas esferas pessoal e profissional, são motivadas exclusivamente por pensamentos sadios, sonhos e esperança. “Essa
paz que eu venho encontrando hoje, de poder encostar a cabeça no travesseiro e dormir. É essa liberdade o
real significado de livre arbítrio. Começar a encontrar prazer nas coisas simples da vida. Isso que está sendo prazeroso pra mim.”
Marcio também preza pela simplicidade. A sensação
de construir um bom relacionamento com a família e amigos e de ser respeitado pela sociedade por quem ele realmente é hoje, é muito melhor e gratificante do
que qualquer sensação que a droga já lhe trouxe. “Não tem vida melhor para mim do que a vida limpa, do que
a vida digna. Eu posso andar de cabeça erguida. Hoje,
eu consigo ser um bom pai. Hoje, eu consigo ser um bom marido para a minha esposa. Hoje, eu consigo ser
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um bom avô para a minha netinha. É uma luta que eu venho vivendo e lutando dia após dia”. E assim ele se encontra há mais de 10 anos. Com essas práticas e pensamentos positivos, as seis pessoas alcançaram grandes conquistas, principalmente nos âmbitos educacional e profissional. Elmo, por exemplo, que está há mais de 6 anos limpo, é bombeiro civil e trabalha em uma escola de treinamento, em Votorantim. “Trabalho na empresa dos meus sonhos. Eu amo trabalhar lá, amo o que eu faço. Volto para casa todos os dias como prometi para a minha esposa e também para os meus filhos”, comenta.
Foto: Flávio Torres
Elmo com o filho Alan, 7, e a enteada Ana Julia, 12.
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No final de 2020, concluiu o curso de Técnico em Segurança do Trabalho. Essa vitória, porém, não foi da noite para o dia. Depois de meses procurando emprego, em março de 2015, entre os 10 mil currículos enviados para uma empresa especializada em treinamentos corporativos, o seu foi um dos dez escolhidos. Começou a trabalhar, então, como ajudante geral em uma companhia de bebidas, em Sorocaba. O salário era pouco, mas sua gratidão pela chance e sua eficiência no serviço garantiram a ele a promoção para eletricista. Contudo, foi dispensado meses depois porque a empresa não estava indo bem financeiramente. “Eu recebi três meses de seguro desemprego. Quando eu ia receber, em janeiro de 2016, a última parcela, a empresa me chamou de volta e aumentou meu salário”, conta. A empresa, por fim, não conseguiu ir adiante, mas o bombeiro, naquela época, já tinha conquistado a confiança de todos com quem trabalhava, incluindo seu supervisor e diretor. “Quando eu contei para o diretor a minha história, ele estalou os olhos, mas viu que tudo o que pedia para mim, eu fazia com excelência e demonstrava confiança. Aí quando a empresa realmente fechou, ele falou assim: ‘Eu não vou mandar você embora. Eu vou transferir você para outra empresa e vou te dar um curso de bombeiro civil’”. Elmo também é tesoureiro do Narcóticos Anônimos
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de Votorantim e sócio de uma instituição de resgate de dependentes químicos. Como já tinha experiência em remoção desde quando terminou o tratamento, em 2014, ele abriu uma empresa que, além de informar à família sobre o processo de recuperação, resgata o adicto dentro de sua casa ou em áreas de situação de risco, voluntária ou involuntariamente. José, limpo há 2 anos, começou sua vida sóbrio como comerciante de rua em Tietê, interior de São Paulo. Atualmente, possui duas pequenas mercearias na cidade com enfoque no comércio de ovos, laranja, melancia e banana e já conta com a ajuda de mais uma pessoa para as vendas. Por conta da demanda, passou a buscar mais os alimentos do que vender. Enquanto isso, Marcio reuniu o seu conhecimento
Foto: Flávio Torres
no universo das drogas para ajudar no tratamento e
Marcio, no centro, cercado pelos pacientes da comunidade terapêutica onde trabalha
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na recuperação de outros usuários e de seus familiares. Há quase uma década, ele é terapeuta especialista em Dependência Química em uma clínica de reabilitação, em Sorocaba. Além disso, trabalhou, por 3 anos, em um projeto social na Cracolândia, também em São Paulo. O profissional enfatiza que não trabalha, mas sim se diverte, sobretudo, quando se identifica com os adictos que chegam na clínica. “Quando estou de folga, os meninos [internos] ligam para mim falando para eu voltar porque estão com saudade, pois, eu sou um espelho para eles, uma referência que eles querem seguir. Isso é muito gratificante porque antes eu não era importante para ninguém. A sociedade me enxergava como escória”, relata. Mesmo exercendo a profissão que tanto queria, suas aspirações, entretanto, não acabaram. Seu grande sonho é abrir uma comunidade terapêutica para amparar dependentes químicos em situação de rua que não conseguem arcar com as despesas de instituições particulares. Arlem e Laila também escolheram profissões que ajudam o próximo. Ele se encarrega de projetos sociais de uma igreja em que é pastor, na capital paulistana. Seu escritório está localizado em um prédio a dois quarteirões da Cracolândia, onde morou entre 2004 e 2011. Já Laila lidera o projeto educacional Escola Sem
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Drogas. Há 10 anos com esse programa, ela explica que dar voz aos problemas relacionados às drogas é uma das melhores formas de prevenção. O casal já viajou o Brasil inteiro realizando palestras em escolas públicas e particulares, além de clínicas de reabilitação. Os dois também já publicaram diversos livros contando sobre a tragédia que viveram e como superaram os obstáculos ocasionados pelas substâncias
Foto: Flávio Torres
químicas. “Hoje, nossa literatura, tanto nas escolas
Casal Arlem e Laila Maffra.
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quanto nas clínicas, são livros guias. Isso conforta muito o nosso coração, que a nossa dor, a nossa vergonha, hoje é remédio para essa área”, relata Laila. Ao iniciar seu tratamento, João permaneceu 30 dias desempregado. Depois, ficou 4 anos trabalhando como ajudante de pedreiro, uma função que não lhe agradava nem um pouco. “Eu ia lá um dia de cada vez. Procurava fazer o melhor que eu podia e consegui me manter durante esses anos até aparecer essa oportunidade [de trabalho].” Assim, ele continuou mandando currículo para exercer sua profissão de técnico em Logística até conseguir uma vaga em uma empresa. Essa é uma imensa conquista para o profissional que dos 14 registros na carteira de trabalho, se demitiu ou foi demitido de 11, em função das drogas. “Só de ter essa oportunidade, eu sou privilegiado. Eu fiz de tudo para dar errado na minha vida. Tudo para dar errado e, mesmo assim, Deus vem sendo tão bondoso que está dando tudo certo”, agradece. Transmitir a mensagem de que todo mundo pode parar e perder o desejo de consumir narcóticos, assim como encontrar novas chances, ambições e perspectivas, é outra forma de estar bem consigo mesmo. Conversar sobre o assunto com familiares, amigos e, principalmente, adictos que ainda estão alimentando o vício, é uma atitude que beneficia tanto quem ouve quanto quem fala.
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De acordo com o psiquiatra Guilherme Kortas, dialogar com pessoas que vivenciaram as mesmas experiências, no mundo das drogas, pode ser muito recompensador, visto que elas podem falar e expor abertamente o problema. “A questão do grupo ajuda muito porque é uma outra autoridade. Não é uma autoridade do médico, do psicólogo, do estudo. É da vivência. Então são pessoas que passaram por esse problema, contando aqui com o depoimento de vida”, elucida. Em suas conversas com crianças e adolescentes, Laila esclarece que é necessário “falar sobre a drogadição, falar sobre as coisas escuras, esse passado tenebroso que a droga traz, o mundo de quem vive. Então é muito necessário, é dolorido, é vergonhoso, mas é necessário a gente falar. Esse é o caminho e quanto mais a gente falar sobre isso, mais prevenção.” Para Arlem, expor tudo o que aconteceu nos tempos mais sombrios pode ajudar desde a criança que não consumiu drogas até a família que está sofrendo por ver um parente entrar nesse mundo perigoso. Mesmo depois de tantos anos, eles mantêm contato com familiares e professores que participaram das palestras. “A vida de um adolescente, de um jovem é muito dinâmica. Vem faculdade, vem namoro, vem um monte de coisa e ele até esquece daquilo, mas os pais ficam conosco por mais tempo. Os professores ficam conosco. A gente acaba atendendo pessoas dessas famílias”, comenta.
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Apesar de ser enriquecedor, contar para o público sobre sua vida pessoal e revelar suas falhas não é um processo simples. “Não é fácil você abrir a sua vida, abrir sua intimidade e falar dos seus erros. A gente quer sempre falar que fez coisas bonitas. Quando a gente faz um bolo, a gente quer mostrar para todo mundo que o bolo deu certo. A gente só quer passar as coisas positivas”, explica Laila. Marcio também frisa a importância de ter um diálogo voltado à adicção com os usuários e seus parentes para poder dar assistência e conselhos aos mais afetados por esse transtorno mental. Na clínica onde trabalha, ele recebe, cotidianamente, diversas perguntas sobre como ajudar quem já realizou o tratamento, mas está apresentando comportamento de recaída. “Quando eu conto as minhas histórias para as famílias, elas não acreditam. Eu levo esperança para aquela família, para aquele pai que está como a minha família estava alguns anos atrás: desesperada e sem saber o que fazer”, orgulha-se. O terapeuta explica que não há pagamento melhor do que auxiliar esses adictos e mostrar que existe vida sem precisar consumir drogas. “É muito bom você poder falar da sua história para as famílias que estão desesperadas, sem saber o que fazer com os filhos, e você poder dar uma palavra, poder abraçar um companheiro, falar um pouco da sua história e ele
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sentir desejo de viver a mesma vida que eu vivo”. No caso de João, é no Narcóticos Anônimos, que ele se sente à vontade para conversar sobre tudo que viveu. O grupo é tão importante em sua vida que ele até ajudou a implantar uma unidade em Porto Feliz. “Eu tenho toda a convicção de que estou vivendo o melhor momento da minha vida. E há 1 ano, eu já estava nesse melhor momento. Há 2, eu já estava nesse melhor momento. Ou seja, eu continuo voltando às reuniões, continuo me envolvendo com a essa irmandade. A minha vida só vem melhorando”. O diálogo, segundo ele, é importante porque, independentemente se o outro usuário vai seguir ou não os conselhos, quem realmente colhe os benefícios é ele próprio. “O maior beneficiado de tudo isso acaba sendo eu porque quanto mais eu me doo pelo outro, mais benefício eu colho. Mas o benefício não é nem material, e sim, espiritual. Essa sensação de bem-estar que eu sinto hoje porque o bem-estar em estar limpo e em recuperação droga nenhuma me deu”, relata. Ter uma relação saudável com familiares e amigos é essencial para a reintegração de um adicto na sociedade. A família, principalmente, desempenha o papel de revelar informações pessoais do dependente ao profissional da área da saúde. Infelizmente, durante a drogadição, as pessoas retratadas neste livro se afastaram de quem
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mais queria seu bem. Mas, com o início do tratamento, puderam se desculpar e se aproximar novamente de seus entes queridos, amigos e conhecidos. Assim, novos laços afetivos foram formados e outros, modificados. Duas mil, quinhentas e cinquenta e cinco noites. Esse foi o tempo que Arlem ficou nas ruas da Cracolândia, sem contato algum com pessoas que eram de sua convivência, incluindo os três filhos e a mulher. Na época, sua rotina era simples, mas extremamente fatal: de dia, com a ajuda de uma carroça, procurava material reciclável, na região, como sucatas, plásticos e papelões para vender e conseguir dinheiro para comprar as substâncias. À noite, escondia-se em algum lugar para que pudesse consumir sem correr risco de ser flagrado por outros usuários ou pela polícia. Tudo mudou quando, em uma terça-feira do final do mês de fevereiro de 2011, ele foi encontrado pela esposa, filha e genro, perambulando por uma rotatória que dá acesso ao bairro Pompéia, em São Paulo. Sua aparência evidenciava o tempo de sofrimento: ele estava magro, mal vestido e com os cabelos e barba compridos. Naquela noite, horas antes, Laila recebeu um telefonema inesperado de um amigo, que afirmou que tinha avistado Arlem andando por uma das vias da cidade. Mesmo na incerteza de não conseguir encontrálo, ela não perdeu a fé. “São Paulo tem mais de 10
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milhões de habitantes. Contando com as cidades do entorno, totaliza quase 20 milhões. Como poderíamos encontrar o Arlem nessa multidão? Era uma missão quase impossível. Eu estava disposta a continuar com a missão de achar o homem da minha vida, o pai dos meus filhos”46. Quando Arlem reencontrou a mulher, a esperança de retornar para a família aumentou cada vez mais. Para ele, foi Laila quem o reinseriu na sociedade. “Eu não me importava se todo mundo me rejeitasse, se ninguém me quisesse, se meus filhos, se meus parentes, nem se meus pais não quisessem. Mas se ela quisesse, eu ia lutar agora na minha vida por aquele amor”, conta. Em 2018, José conheceu a atual esposa enquanto estava em uma clínica de reabilitação. Sua ajuda e companheirismo foram fundamentais para que ele continuasse no tratamento. “Foi nesse período de 7 anos, entre idas e vindas até 2018, onde eu estava dentro da última clínica, trabalhava lá. Aí eu conheci a minha esposa e vi que não era mais aquilo que eu queria [consumir drogas] e, graças a Deus, estou bem hoje”. Para João, o primeiro namoro foi aos 35 anos de idade, quando ele já estava limpo há 1 ano. O medo do comprometimento e da responsabilidade eram fatores 46
Trecho retirado do livro Mais forte que o crack (2014).
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que o deixaram afastado das relações afetivas. Como o primeiro relacionamento não deu certo, alguns anos depois, ele se mudou de bairro e foi morar em frente à casa de sua mulher. Eles namoraram por 3 anos e estão casados há mais de 2 anos. Os encontros, no Narcóticos Anônimos, não só ajudaram na recuperação de Elmo, mas também trouxeram muitos amigos que presenciaram grandes momentos de sua vida, até mesmo o aniversário de 1 ano do filho. Passaram-se 6 anos desde essa comemoração, mas as amizades formadas no grupo, continuaram e se fortaleceram pelo tempo. Foi na Irmandade também que Marcio encontrou pessoas que contribuíram para sua permanência no caminho longe das drogas. Inclusive, Elmo é seu padrinho, desde 2016. “A gente tem uma luta junto, então, conversamos muito sobre isso. É muito gratificante”, comenta. Todas
as
pessoas
apresentadas,
neste
livro,
percorreram as mesmas etapas para se afastarem do vício. Até chegarem onde estão atualmente, elas enfrentaram e superaram muitos problemas provocados pelos efeitos nocivos das drogas. Algumas dessas dificuldades foram deixadas, no passado, como é o caso das amizades com outros usuários. Somente a experiência e o aprendizado são lembrados cotidianamente. Porém, ainda existe um
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desafio, talvez o maior e mais perigoso de todos, que é confrontado dia após dia, hora após hora: a vontade de consumir as substâncias novamente. Para Arlem, o único tratamento que realmente funciona para um dependente químico é não usar mais drogas. Há mais de uma década limpo, o pastor aprendeu a sentir prazer em todos os âmbitos de sua vida sem precisar utilizar qualquer tipo de narcótico. Entretanto, se por um simples descuido, ele “acordar” aquele desejo sombrio, inicia-se mais uma vez o processo de uso compulsivo que só uma pessoa adicta encara. “O meu cérebro convive normalmente com as coisas, sentindo prazer, mas se eu acordar esse ‘bichinho’ que está dormindo, ele vai novamente dar o start nesse processo compulsivo”. Quando está viajando ao redor do Brasil a trabalho, Laila, certas vezes, dorme sozinha em hotéis. Ao abrir o frigobar para comer ou beber algo, sempre tem uma cerveja gelada ou uma garrafa de vinho. “Às vezes, bate aquela vontade de tomar cerveja, vinho e aí, de repente, eu falo ‘não posso!’”, conta. A palestrante, que está há mais de 30 anos limpa, relata que as tentações em relação às bebidas alcoólicas estão presentes e, por isso, é preciso se controlar. “De vez em quando, vem aquela conexão. Você olha para a cerveja e aí você tem o resgate da vitória, do que
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aconteceu, mas passa, graças a Deus”, agradece Laila. Elmo também consegue conter essa mesma tentação. Ele relembra de uma viagem a Florianópolis, para a casa da cunhada. Ao ir a um mercado, ele se deparou com uma grande geladeira, lotada de cervejas de todos os tipos bem geladas, amarelinhas e suadas, do jeito que ele mais gostava. O forte desejo de beber apenas uma garrafa lhe deu até tremedeira. Era, na verdade, a fissura que estava sendo desencadeada e causando sensações físicas. Ao perceber isso, Elmo correu até a geladeira de refrigerantes e bebeu um grande gole de energético e a vontade passou instantaneamente. “Aquele dia, eu falei assim: ‘Nunca mais você me pega!’. E nunca mais a cerveja ou essa vontade me pegou. Eu até tenho vontade, mas, eu sei driblar ela”. A vontade, entretanto, não significa necessidade. É o que explica José, que quando consumia cocaína, crack e mesclado47 sentia, além do desejo, a forte obrigação de usar. “Quando a gente está na ativa, a gente sente vontade e necessidade. Hoje, eu estou vivendo. Tenho fragmentos de vontade, sim, mas não tenho necessidade. É onde está a diferença entre um e outro”. O vendedor diz que tem fragmentos porque hoje está tão ocupado 47 Uma das formas mais comuns e perigosas de consumir crack, o mesclado ou melado é a mistura de crack e maconha. Para os dependentes químicos, essa combinação diminui os efeitos da droga estimulante, permitindo seu retorno para as atividades cotidianas.
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com o trabalho, a família e a recuperação que não tem tempo para pensar nisso. É claro que é fundamental monitorar-se a todo momento. Comparando sua situação com a de um chocólatra, José exemplifica um momento comum: quem come compulsivamente chocolate não pode, em hipótese alguma, passar em frente a uma doceria, porque, ao ver o doce, a vontade voltará repentinamente. Sendo assim, é preciso desviar do que te faz mal. “É você distante de você. Onde você não vai lembrar mais que aquilo existe. Sua cabeça vai estar focada em outras situações que vão apagar a lembrança do vício”, elucida. Se antes Marcio realizava todos os seus impulsos, independentemente de quão nocivos eles pudessem ser, hoje em dia, a situação é o oposto. A necessidade de não usar mais drogas e estar limpo é muito mais importante do que seus desejos pessoais. “A minha necessidade é que eu fique limpo, é que eu consiga manter a minha vida, manter a minha família, não deixar meu pai preocupado, a minha mãe também preocupada por causa de um uso de substância”. Estar focado no tratamento é uma das principais barreiras para não ter recaídas. O terapeuta enfatiza que os encontros com a Irmandade são necessários para que ele entenda que, na vida, é completamente normal surgirem dificuldades e decepções. O grande problema
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é quando o dependente transforma essas barreiras em justificativas a fim de consumir novamente. “Para o adicto, tudo é motivo para usar droga. Se ele está feliz, usa droga. Se ele está triste, usa ainda mais droga. Hoje eu não tenho argumento para usar. Hoje eu tenho um argumento para ficar bem”, conta Marcio. Segundo João, é natural que um usuário sinta vontade de consumir narcóticos. É necessário, então, não alimentar essa força interior para não voltar a esse mundo nocivo. “Até hoje, eu tenho vontade. Às vezes, sonho que eu usei. Eu acordo e, mesmo assim, ainda demoram alguns segundos para eu perceber que realmente foi só um sonho”. Foi nas reuniões de Narcóticos Anônimos e realizando os 12 Passos que ele se sentiu protegido contra essa tentação. Seu verdadeiro inimigo é a adicção e não as substâncias químicas. Qualquer ação que lhe cause prazer precisa ser em grande quantidade, justamente por causa de sua compulsividade. “A droga apenas potencializou, então, o meu problema sempre foi a adicção. Eu parei de usar droga. Agora tenho que tratar da adicção”, explicou. A luta para a recuperação do adicto é exaustiva, dolorosa e eterna. O desejo de usar, mesmo após anos de abstinência, está presente ao acordar e vai até a hora de dormir. Por isso, é essencial que ele tenha motivações
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duradouras a fim de continuar longe das drogas. José, por exemplo, sempre relembra os momentos de sofrimento, angústia e solidão de quando consumia as substâncias. De acordo com o vendedor, os poucos minutos de euforia e prazer não compensam os períodos de tristeza, dor e arrependimento que duravam semanas e meses. “O momento de dor é maior. O momento de sofrimento é maior. Aquele sentimento horrível é muito maior do que o prazer. Então essa memória que está no meu subconsciente me dá força para não voltar a usar todos os dias”. A prioridade de João é seu envolvimento com a Irmandade que lhe ajuda a seguir no caminho de recuperação. Hoje, ele consegue sentir que faz parte de um grupo social,
que é uma pessoa importante
e que tem o seu valor. Anos atrás, esse sentimento era completamente oposto, já que nem com sua mãe e irmãs conseguia se relacionar. Por meio da metodologia dos 12 Passos e das amizades feitas, no Narcóticos Anônimos, ele está amadurecendo emocionalmente e vivendo a vida, procurando melhorar, dia após dia, sem se preocupar com a opinião alheia. “Quando eu consigo viver a minha vida, eu começo a deixar de me preocupar com o que o outro está achando ou deixando de achar. Eu não vou conseguir mudar ninguém, então, eu procuro olhar para
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mim. O importante é quem eu sou hoje. Isso aí é até o programa que vem me lapidando”, conta. Além disso, seu maior orgulho é ser quem ele realmente é agora. “Hoje, eu não fico mais me martirizando por quem eu era, eu não consigo mudar quem eu era. Eu sou responsável por tudo que fiz. Agora, eu procuro ser grato por quem eu estou conseguindo me
Foto: Flávio Torres
tornar”, reflete.
Elmo com seu certificado de conclusão de 6 meses de tratamento terapêutico.
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Já Elmo conta que voltar para casa depois de um longo dia de trabalho ou atender o telefone quando é sua esposa ou mãe ligando, são atitudes que provam que ele está vencendo essa batalha contra os narcóticos. Viver um momento de cada vez é uma grande recompensa tanto para ele quanto para a sua família. “O dia mais importante é o dia de hoje porque eu não usei e voltei para casa”. Laila e Arlem passaram por diversas situações prejudiciais que colocaram à prova o relacionamento
Foto: Flávio Torres
Casal Laila e Arlem Maffra.
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deles. Antes, os dois conheceram as drogas ainda na adolescência; depois, enfrentaram juntos a drogadição, dessa vez, mais experientes. Mas os votos de casamento, recitados em 6 de julho de 1985, foram mais do que apenas palavras proferidas por dois jovens muito apaixonados. O compromisso entre eles durou décadas, mesmo afastados 7 anos um do outro. Aliás, sobre o período separados, Arlem conta que, no fim, valeu a pena. “É uma história de amor que foi muito atacada, muito resistida e esse amor venceu. Está vencendo. Eu estou aqui, no meu apartamento, com ela, depois de tantos anos e vivendo essa mesma intensidade”. E é esse amor que os ampara a cada minuto. “Às vezes, eu até agradeço a Deus por ter usado droga”, revela Marcio. A frase pode soar um tanto incomum, mas o terapeuta explica que foi somente depois de enfrentar as consequências físicas, psicológicas e sociais das substâncias químicas que ele aprendeu a dar valor a sua família, aos amigos e ao emprego. “Hoje, eu sou uma pessoa muito melhor porque eu valorizo mais as coisas. Valorizo meu trabalho e valorizo meu pai e minha mãe”. A recuperação de Marcio e de todos os outros adictos apresentados, neste livro, não é um processo simples e frequente. De acordo com o Relatório Mundial
sobre
Drogas
2020,
divulgado
pelo
Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes
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(UNODC), dos aproximadamente 35 milhões de usuários que sofrem problemas relacionados ao uso abusivo de substâncias químicas, apenas um em cada sete recebe o devido tratamento. Se, no passado, as drogas eram um ponto em comum nos relatos aqui contados, hoje é certo dizer que a reinserção social é um fator que transformou, para melhor, as vidas de João, Laila, Arlem, Elmo, Marcio e José. Eles deixaram de ser estatísticas para se transformar em exceções. Exceções porque eles possuem um futuro sem a presença de drogas; porque voltaram a estabelecer vínculos com suas famílias e seus amigos; porque conseguem vencer o preconceito e a exclusão sendo reintegrados na sociedade como sopros de esperança, fé e determinação.
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“Cadeia, caixão ou casa de recuperação”. A declaração que dá início ao livro-reportagem é de José, nome fictício de um dos entrevistados, que preferiu não ter seu nome revelado. Em busca de mim retrata as dificuldades, provações, dramas e conquistas de adictos que foram dependentes de drogas por muitos anos e travaram uma luta em busca da tão sonhada reinserção social. O simples fato do anonimato presente em dois dos seis personagens desta história já ilustra as mazelas que essas pessoas enfrentaram e combatem diariamente. O pior destino exposto na frase de José, felizmente, não encontrou a vida desses adictos, que neste livro, abrem as portas de histórias, relacionamentos, escolhas e decisões que os levaram a conquistar a sobriedade. Os relatos trazem visões que vão além dos escombros da miséria e dos rastros de destruição deixados pelo abuso de drogas com o propósito de impactar e mudar a forma como olhamos para os usuários. A discussão acerca do tema da dependência química, que vai ao encontro do mais profundo abismo de dor da adicção e transparece uma sociedade despreparada para compreender e lidar com o problema de modo empático, envolve desconforto, preconceito e um sentimento contraditório entre projeção pessoal e ações. Ao final da leitura, esperamos que você entenda a adicção como um problema de saúde pública, formado por diversas nuances, núcleos sociais, desafios e imagens controversas. Desejamos que este livro-reportagem possa trazer conscientização sobre a dependência química, informação sobre a recuperação e reinserção social que os adictos passam, bem como possa ser também a voz de cada um soando como um pedido de ajuda que resultou em vitória!
Orientadores: Profº. Dr. Rodrigo Gabrioti Profª. Ms. Quelen Torres
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