EM BUSCA DO
REI THIAGO DE BARROS FONTOURA
CAP I a PRINCESA a Mテウ e o SAPO
E
ra domingo de Páscoa e, como fizera das outras vezes, o menino Estevão parara em frente à porta da casa de sua estimada amiga Dora, com as mãos voltadas para trás, segurando qualquer presente que não fosse ovos de chocolate, “engordam”, lembrou mais uma vez a imagem da amiga resmungando sobre este e outros tipos de doce — Depois ela belisca os meus — falou baixo a si mesmo enquanto dava uma última olhada no presente escolhido deste ano: uma coletânea do David Bowie com os sucessos da fase Ziggy Stardust. Usava a já clássica camiseta azul com a língua dos Rolling Stones, acompanhada de uma calça jeans surrada e justa. O bom e velho par de All Star finalizava o visual moderno do garoto que perdera horas em frente ao espelho bagunçando os cabelos escuros. A porta de madeira se abriu e dela surgiu a figura sonolenta de Dora. Usava ainda as calças do pijama e pantufas nos pés, e a camiseta surrada com a imagem do Jim Morrison não negava uma paixão antiga de préadolescente. Os cabelos pretos amarrados e a franja levemente bagunçada denunciavam que a moça tinha acabado de acordar. — Chegou na hora dos videoclipes, entra — disse ela, ao seu grande amigo fazendo um sinal irreverente com a mão, imitando os mordomos antiquados dos programas de TV. Estevão mal deu seu primeiro passo e logo entregou a Dora seu singelo presente. — Espero realmente que você goste mais disso que chocolates. — Mentira! — exclamou Dora ao ver o CD, original e plastificado. — Você se deu ao trabalho de comprar? A surpresa foi respondida com um forte abraço e um sorriso de fora a fora no rosto da amiga. — Tive sorte! Era o último na loja e estava na promoção — respondeu modesto o garoto.
— Seu presente está com minha mãe, na sala de TV. Vamos lá, disse Dora, já puxando Estevão pelos braços magros, e arrastando-o corredor adentro. Andar pela casa de Dora já não causava estranheza ao jovem rapaz, mas era impossível não recordar da primeira vez que viu os quadros antigos de figuras estranhas, como diplomatas, monarcas e nobres de Sabe-DeusLá-Onde, com roupas engraçadas e expressões risonhas, diferentes dos habituais quadros de realeza que estamos acostumados a ver. “É de um artista maluco que minha mãe conhece, logo você acostuma”, disse Dora naquela época. Chegaram até a sala de TV e encontraram sentados a mãe de Dora,que atendia pelo nome de Diadora e o tio Virgílio.
Diadora era uma bela mulher com um ar sereno. Era morena como a filha, mas seus cabelos não eram lisos como os da jovem, usava um roupão azul marinho e chinelos de dedo. Estava sentada e roendo as unhas, sem conseguir disfarçar certo desconforto ou até mesmo ansiedade. Tio Virgílio era outra figura a que Estevão já estava acostumado. Era baixo e cabeçudo, com os olhos esbugalhados e uma eterna expressão de quem analisa cada movimento de qualquer visita. As roupas espalhafatosas, camisa social desabotoada e desbotada pela ação do tempo. Bermuda, meias e chinelo completavam o visual exótico do tio, que, sempre rabugento, tratou de quebrar o gelo: — Já não era sem tempo, podemos acabar logo com isso? — Oi pra você também, Seu Virgílio — respondeu Estevão com o sorriso e simpatia de sempre. — É melhor sentar-se querido — disse a mãe de Dora. — Uau, quanto mistério, gente! disse Estevão ao perceber que até sua amiga já guardava uma feição diferente no rosto, soava quase como preocupação. Isso só fazia aumentar ainda mais a sua angústia, mas, mesmo assim, Estevão manteve o bom humor, já sabia de cor que aquela família era meio da pá-virada. Dora foi até a estante e pegou uma caixa de papel craft com a tampa pintada de púrpura e uma fita marrom adornada com um selo: Chocolates Real. — Chega de faz-de-conta — disse Dora em voz baixa. O presente foi recebido com beijo no rosto e um forte abraço. Dora não conseguiu conter uma lágrima que escapou pelo rosto. — Abra logo e vamos todos para casa — disse o tio Virgílio. — Tá legal, seu Virgílio— respondeu Estevão ao abrir a caixa e perceber que se tratava de trufas de chocolate. Por cima delas havia uma carta, escrita a mão, aparentemente com caneta-tinteiro que dizia assim:
Pragadasa, 17 março 2008 Ilmo. Sr. Estevão, É com incomensurável honra que enviamos a Vossa Senhoria as melhores trufas de Pragadasa, produzidas na fantástica Fábrica Real de Chocolates, tão bem administrada pelo respeitável Senhor Tibério Semprônio. Demais dos chocolates, remetemos a Vossa Senhoria uma de nossas nobres damas, cuja graça é Princesa Dora, que o acompanhará, não só no lugar onde o Senhor ora reside, mas também aqui em Pragadasa, quando Vossa Senhoria nos der o prazer de sua presença. Tome conta da senhorita — ela certamente possui, pelo Senhor, grandiosa afeição —, que eu cuidarei do futuro de vocês dois em meu Reino. Mande também minhas lembranças ao Sapo Virgílio. Atenciosamente, O REI. Assim que leu a carta, Estevão suspirou e não conteve o entusiasmo: — Dora, de todas as coisas malucas que você já escreveu, essa, sem dúvida, é a melhor. Você não pára de me surpreender. — Ah, eu sabia! — rosnou bravo o tio Virgílio — Esse jovem não vai acreditar, Diadora. — Acalme-se Virgílio — respondeu a mãe de Dora, quase como quem diz para si mesma, já que ela mesma já devorara todas as unhas e agora pensava em puxar alguma cigarrilha. Estevão fez uma cara de quem não estava entendendo nada. Por que, afinal, estariam a mãe e o tio de Dora tão preocupados com o mundinho que só pertencia aos adolescentes, repleto de mensagens e poesias psicodélicas? — Já sei! — exclamou Estevão, sorrindo e piscando para a mãe de Dora
— Vocês ajudaram a escrever essa carta — continuou animado, mas logo foi percebendo a expressão de desdenho de tio Virgílio e a estranheza de Diadora. — Desisto. Esse daí só vai acreditar vendo — resmungou tio Virgílio enquanto saía da sala. — Gente, me deixa tentar — disse Dora que até o momento não tinha se manifestado. Estava ocupada demais observando e se divertindo com a reação dos três. Abaixou rente à cadeira em que o amigo estava, pegou sua mão e disse: — Estevão, querido... essa carta não foi escrita por mim. O olhar sereno, sereno como jamais vira no amigo, fez Estevão prestar atenção e cair um pouco na realidade. — Quem escreveu, então? — perguntou o garoto já tomado pela bendita curiosidade. — Meu pai — respondeu Dora. Nesse momento, Estevão quase dá com as costas no chão, tamanha a surpresa de ouvir aquilo. Em todos seus anos de amizade, a amiga jamais falara mais do que cinco palavras sobre o pai. Estevão sabia apenas que era engenheiro e que vivia se mudando de cidade. Sabia também que eles só se viam nas férias escolares. Quando perguntava dos passeios, Estevão sempre recebia respostas frias quase acadêmicas sobre pontos turísticos das cidades que a amiga visitava, como da vez em que a amiga visitou Salvador e falou sobre o Pelourinho — Vimos o Olodum, e meu pai comeu acarajé – palavras simples e básicas para dar por encerrado o assunto e nada mais. Estevão sempre achou estranho o comportamento da amiga nesse sentido, mas a entendia perfeitamente, já que ele próprio não era dos melhores para falar da família. — Meu pai não é engenheiro, Estevão, ele é O Rei - continuou Dora a falar, o que fez Estevão despertar de seus pensamentos. — Sei... acho que entendo — tentou parecer familiarizado com toda aque-
la loucura, mas estava na cara do adolescente que aquilo tudo estava longe de ser compreendido. — Eu avisei que ele só ia acreditar vendo — a voz de tio Virgílio tomou conta da sala, mas Estevão não o encontrou quando o procurou com os olhos. Somente viu uma enorme pedra marrom encostada na penumbra que formava no encontro da sala com o corredor que levava aos quartos. Percebeu, então, que a pedra começara a se mover, parecia viva. Para sua surpresa, ao sair da penumbra, a pedra levantou a cabeça e abriu os olhos, os mesmo olhos esbugalhados do tio Virgílio, revelando o que parecia impossível. Estevão se assustou ao ver que se tratava de um enorme sapoboi, marrom-escuro, inacreditavelmente trajando algo como um uniforme de militar, azul-marinho com detalhes dourados, decorado com medalhas e ombreiras um tanto espalhafatosas. O sapo continuou a encará-lo com o olhar de suspeitas.
— E então, garoto? Não vai começar a gritar? Todo mundo grita quando me vê pela primeira vez — proferiu o sapo com uma voz que, de tão grave, parecia uma trovoada. Para a surpresa do sapo e das outras duas moradoras da casa (que se mostraram bastante acomodadas com o fato de ter um sapo falante vestido de general no pé do sofá), Estevão não soltou um pio. Ficou apenas com os olhos arregalados, como quem quisesse captar o máximo possível daquela visão e fazer sua razão acreditar em tudo o que estava vendo. — A propósito — trovoou mais uma vez o sapo — Eu sou o Sapo Virgílio, Chefe da Guarda Real de Pragadasa e amigo próximo do Rei. Meu pai foi à guerra e nunca mais voltou. Foi assim que herdei esse fardo. Estive esse tempo todo disfarçado de tio Virgílio para cumprir uma missão secreta a qual fui designado: preservar a segurança da princesa, longe dos domínios do reino. Estevão nem saberia por qual pergunta começar. Sapo usando farda é até aceitável, mas como poderia um sapo falar? Que história seria aquela de rei, reino e princesa? O que diabos era Pragadasa? Como um sapo poderia ser amigo próximo de um rei? Guerra? Que guerra? O jovem fitava confuso sua então amiga e agora desconhecida princesa, a mãe e o sapo. Ao ver toda a confusão do rapaz e o atropelo das palavras aos tentarem sair de sua boca, Diadora tomou a palavra. Pediu a Dora que pegasse um álbum antigo de fotografia. A menina foi até um armário que parecia ter algumas centenas de anos, de dentro de umas das portas retirou uma grande caixa de veludo vermelho, também com um emblema parecido com o da caixa de trufas. De dentro da caixa, Dora retirou um álbum de fotografias à moda antiga, e levou até sua mãe. Dora logo entregou o álbum no colo do amigo.
— Vai ver que um sapo falante é fichinha perto de tudo isso aqui, sem ofensas, Virgílio. Já na primeira página, Estevão se depara com um cartão postal. A imagem de um grande palácio, vermelho com enormes vigas brancas, no melhor estilo neoclássico - pelo menos Estevão supunha ser desse período – envolto por um lindo jardim, do tipo que jamais vira na vida, com enormes palmeiras, arbustos muito bem aparados e um belo e enorme lago no centro. Ao fundo, ainda, Estevão percebeu a presença de alguns morros que fazem inveja ao Pão de Açúcar e ao Corcovado do Rio de Janeiro. No canto inferior esquerdo um pequeno texto informando apenas data e local – Pragadasa, setembro de 1992. — Bem, meu querido — falou com uma voz calma e doce, a mãe de Dora — Esse é o palácio Real de Pragadasa. Aqui, Dora nasceu e foi criada até seus 12 anos. Na foto seguinte, uma surpresa. A mãe de Dora um pouco mais nova, com um lindo penteado sutilmente decorado com uma tiara que devia custar mais que sua casa — muito mais — pensou Estevão — talvez dez vezes mais que minha casa — seus olhos desviaram para o vestido longo que usava. Por cima dele um bolero com mangas até a altura do antebraço e ombreiras, de cor parecida com rosa, meio prateada. O garoto não tentou entender como um vestido podia ser rosa e prateado ao mesmo tempo. Ao seu lado estava um homem muito elegante, mas com um ar de deboche. Usava um lindo terno escuro com um colete por baixo. Algo como um lenço no lugar da gravata, um anel enorme no dedo e os cabelos compridos, repicados e tingidos de preto, claro, já que o distinto senhor aparentava ter passado dos 40 havia algum tempo. Mantinha as pernas cruzadas e dava a perceber uma meia laranja em seu pé. Nos braços de Diadora estava um bebê, lindo e tranqüilo, envolto em um
cobertorzinho branco. Só podia ser Dora. — É isso mesmo que está pensando meu querido. A mãe de Dora sabia muito bem como completar os pensamentos das pessoas, ainda mais em uma situação tão inusitada como aquela. — Essa é a Dora nos primeiros dias de vida. Esse do meu lado é o pai dela, o Rei. Foi o acontecimento do ano em Pragadasa, por onde você andava podiam se ver as festas e compartilhar da alegria do povo. E ela era tão linda! Todo mundo queria tirar foto e ver a pequena Dora. Os paparazzi ficavam loucos tentando tirar fotos nossas nos nossos aposentos. — Ta bom, mãe, pára de babar, já tá me deixando sem graça na frente do Estevão — Reclamou cheia de razão a menina. — Que loucura! Então, é verdade mesmo — falou embasbacado o menino Estevão — Mas onde fica esse reino? Nunca ouvi falar. E como pode uma princesa se mudar do reino e tentar levar uma vida normal em um cantinho como o nosso? — Já estou vendo que o seu raciocínio está voltando ao normal — resmungou Virgílio no outro canto. Estava sentado em uma das pontas do sofá e não fez questão de esticar os olhos para compartilhar aquele momento com a família Real. Preferiu ficar de olho em alguma mosca que passeava pela sala. — Com certeza você já ouviu falar de Pragadasa, mas não com esse nome. Vários poetas e escritores, amigos do Rei, escreveram sobre Pragadasa e sempre a descreviam como um paraíso, um lugar digno de uma vida tranqüila, aquilo que todos nós procuramos — disse Diadora, com toda elegância e simpatia, impondo um ar de respeito na sala, Estevão já começava a vê-la como uma rainha ou algo do tipo. - Mas a condição de se escrever ou falar sobre Pragadasa é só uma: jamais se deve usar o verdadeiro nome do reino. Isso fez com que Pragadasa se tornasse um tipo de mito, uma lenda. Graças a isso poucos são os aventureiros que tentam encontrá-
la, disse Diadora. Estevão ia folheando as páginas do álbum e acompanhando atentamente cada detalhe, pois aquele reino e sua nobreza não pareciam nada com o que estava habituado. Era tudo muito colorido, desde as roupas até as decorações, até mesmo as cores dos campos, dos lagos e do céu pareciam mais vivas e transmitiam uma alegria exorbitante. Era comum ver os homens usando cor-de-rosa ou amarelo nas roupas. O próprio rei usava uma camisa rosa com bolinhas brancas, uma calça verde e sapatos de couro de cobra enquanto segurava a jovem Dora nos braços. O mais intrigante disso tudo é que nem por um breve momento Estevão achou aquelas pessoas bregas ou estranhas, pelo contrário, achou todos em Pragadasa muito elegantes, principalmente o Rei. Virgílio aparecia em uma foto ou outra sempre ao lado de seu amigo. Em uma delas, ele aparece ao lado de Dora já com seus quatro ou cinco anos. A menina realmente parecia uma princesa, andava sempre muito arrumada e, se alguém olhasse de relance ou sem muita atenção, podia passar muito bem por uma boneca. — Dora, você era a coisa mais linda, e pelo visto é de criança que você tem esse hábito de cuidar detalhadamente do que vestir — Disse Estevão a sua amiga. — Nossa! Fazia tempo que não via essa foto, ê! ê! Você nunca gostou de brincar comigo Virgílio. — Isso porque, em suas brincadeiras, sempre sobrava para mim majestade. Ora tendo que encher a piscina, ora tendo que pular o máximo que eu podia com você em minhas costas, me chamando de cavalinho... — sorriu o sapo, revelando um lado que até então Estevão desconhecia. — Pragadasa é linda mesmo, Estevão. Mas é capaz de deixar qualquer um louco — continuou Dora — Justamente pelo fato de crescer isolada do mundo, Pragadasa se tornou um lugar onde tudo pode acontecer, na
maioria das vezes coisas incríveis. Mas um pouco de realidade sempre fez falta na minha vida. — E na minha vida também, Estevão — complementou Diadora. — Na verdade, não sou de Pragadasa, sou carioca e conheci o Rei em uma de suas andanças pelo mundo. Apaixonamo-nos e ele me levou pra lá, para viver um verdadeiro conto de fadas. Já falei que em Pragadasa existem fadas? Pois bem, existem. Estevão nem questionou, depois de ver um sapo falando. Ele acreditava em cada palavra da mãe de Dora. — O povo me recebeu muito bem e eu me sentia muito benquista naquele reino, mas as constantes viagens e maluquices do pai de Dora foram transformando demais a nossa relação e eu comecei a me sentir sufocada. Chegamos a ponto de nos separar, e com o consentimento de todos, eu trouxe Dora comigo para criá-la como uma menina normal e conseguir separar bem as coisas reais das coisas que só vemos em Pragadasa. — Pensa o tamanho de minha tristeza ao tentar dialogar com um sapo assim que cheguei e perceber que os sapos daqui não falavam... — disse Dora. O menino Estevão deu uma risada gostosa ao comentário da amiga, tentou realmente imaginá-la perdida em um mundo “real”, e pensou também que o mundo onde eles vivem também poderia deixar qualquer um louco, senão, não existiria tanta gente falando em se mudar ou ir embora para um lugar mais tranqüilo. — E desde então você passa suas féria em Pragadasa, com o seu pai? — concluiu Estevão se dirigindo à amiga. — Isso. — respondeu Dora — Espero que você entenda o porquê de nunca ter falado muito sobre meu pai a você. — Tá tranqüilo — sorriu o garoto, aparentemente com a simpatia revigorada — mas vou falar uma coisa, tia — Estevão cultivava a mania irritante dos adolescentes dessa época de chamar os pais de seus amigos de tio e
tia — Você é muito mais nova que o pai de Dora, como foi acontecer esse encontro? Digo... Ainda bem que aconteceu não é mesmo? Afinal a Dora não teria nascido. Diadora sorriu desconcertada, levantou-se e foi até o armário centenário e pegou mais um pequeno álbum, desses comuns, parecia ter mais de 20 anos. Nele, algumas fotos que datavam os anos de 1980, datados no canto inferior de cada foto, como também pelas roupas e cabelos. Na maioria das fotos, via-se uma Diadora no auge de sua beleza aos vinte e poucos anos, sempre abraçada e sorridente ao lado do Rei, em cruzeiros, expedições ou eventos de gala. O rei, por muitas vezes, aparentava um pouco mais velho do que nas fotos mais recentes, os cabelos estavam mais grisalhos, mas era visível sua energia e vigor. — Eu era uma menina ainda, ávida por conhecer o mundo, e cheia de idéias na cabeça. A bem da verdade é que sempre fui muito ligada às artes, e conheci por acaso o Rei em uma exposição de um artista, que, mais tarde fui saber, era de Pragadasa e seu grande amigo. Em uma conversa profunda sobre os valores essenciais de sua obra, bem como as obras de arte em geral, eu e o pai de Dora nos perdemos por horas a fio, e ele, sempre com uma simpatia que era simplesmente impossível descrever, me intrigava cada vez mais. Acho que o mistério e o charme dele eram um prato cheio para as minhas vontades da época. Os encontros continuaram e em cada um eu tinha mais e mais surpresas, até que, finalmente, ele abriu o jogo e pediu minha mão em casamento. Dora prestava atenção nos detalhes, como quem quisesse aprender mais sobre quem eram seus pais, a maneira como agiam e pensavam. Em momento algum interrompeu a mãe, pois sabia que a história chegaria em um ponto especialmente delicado. — É claro que o Rei, pela diferença de idade, já fora casado. — continuou Diadora.
— Não brinca! – Disse Estevão. A cada palavra, Diadora prendia mais sua atenção. — A primeira esposa chamava-se Janaína, Tinha algum parentesco distante com Joana, a Louca, de fato devia ter mesmo já que ela própria enlouqueceu. Hoje em dia ninguém em Pragadasa sabe onde ela mora, talvez só mesmo o Rei. Mas nunca em nossa época de casados eu perguntei sobre o assunto. — Nossa que triste — suspirou Estevão que, ao olhar para a amiga Dora, reparou que o assunto passara de sensacional para melancólico e triste. — Na verdade é um pouco mais triste meu querido. Com Janaína, o Rei teve seu primeiro filho: Theo. E, por um tempo, até onde eu sei, eles foram muito felizes. Mas o Rei era jovem, bonito, moderno e atraente. Manter-se fiel era difícil para ele. Com as traições começaram as brigas e o primeiro divórcio não demorou a sair. Ao contrário do que aconteceu comigo e Dora, Theo ficou ao lado do pai, para ser criado como sucessor do trono. O povo de Pragadasa adorava o menino, que parecia ter nascido para aquela vida. Aos cinco anos ele acompanhava o pai no dia-a-dia do palácio, nas reuniões com os ministros e nos encontros com os súditos. — Puxa vida! Então, você tem um meio irmão, Dora. Essa realmente é nova pra mim! — falou admirado com o desenrolar de uma trama que parecia não ter fim. — Na verdade, Estevão, eu nunca falei, porque quase não cheguei a conhecê-lo — lamentou Dora. Estevão então percebeu o porquê da tristeza no olhar das pessoas, reparou ainda em Virgílio, e percebeu que, embora silencioso, o sapo deixava escapar uma lágrima pela pele escamosa. — Dora viu muito pouco o irmão, que ia visitá-la entre uma aventura e outra, já em sua fase adulta - disse Diadora — ele puxou muito ao pai nesse sentido. Tinha uma vontade incrível de desbravar o mundo e fazer
a sua própria rede de amigos, e já estava ficando tão famoso quanto pai. Nada dava mais orgulho ao Rei do que ver o filho voando sozinho. A mãe de Theo já era tida como louca, e vez ou outra dava o ar de seus ataques, falando coisas descabidas e sem a menor conexão entre as palavras. — Eu me lembro muito pouco dessa época, mãe — disse Dora que aparentemente era a menos abatida pela história, pois obviamente deveria ser muito nova para vivenciar aquelas coisas. — Você era praticamente um bebê, Dora, devia ter uns quatro ou cinco anos. Deixe-me ver —como quem estivesse puxando algo da lembrança. Diadora pegou o álbum grande da família Real e o folheou até encontrar uma foto da pequenina Dora, sorridente e feliz ao lado do irmão. O jovem rapaz puxara os traços do pai, os cabelos pretos e repicados e os olhos expressivos não negavam. Mas na maneira de se vestir, o rapaz era mais comedido, preferia calça jeans e camiseta, usava um tênis new balance que devia estar na moda naquela época. Parecia realmente feliz em estar ao lado da irmã pequena, era uma foto bonita, e conseqüentemente fez por arrancar algumas lágrimas da mãe de Dora. — Não muito depois disso, o jovem Theo começou a discutir muito com o pai sobre o que fazer com a mãe. O rei estava construindo um tipo de asilo para tratá-la. Theo não concordava, insistia dizendo que a mãe não era louca, algo incabível de se aceitar. E e a vontade e a paixão com que dizia aquilo nos fazia, por alguns momentos, acreditar em suas palavras. Depois de uma briga feia, Theo partiu em mais uma de suas aventuras e nunca mais foi visto. Desde então o então futuro Rei virou mais uma das lendas de Pragadasa. Alguns dizem que ele foi tomado pela loucura da mãe; outros acham que ele está escondido. O fato é que o Rei passou a procurá-lo, insistentemente, ausentando-se cada vez mais de seu reino. Eu o amava demais para vê-lo se desgastar daquela maneira, foi um dos motivos para nos separar.
Estevão nem sabia o que dizer depois daquela extrema prova de confiança, pois aquele deixara de ser somente um momento de descobrimento, passara a ser um momento de troca, de doação. Uma família inteira abrira suas feridas para o mais novo membro. Não era qualquer família, enfim percebera, era a família Real de Pragadasa. O garoto estava ao mesmo tempo lisonjeado, preocupado e tomado pela vontade de conhecer cada vez mais sobre o Rei. Diante de tudo, Estevão nada mais poderia fazer além de oferecer um sincero abraço à mãe de Dora. Dora ao presenciar a cena, sorriu sem parar e se lembrou porque o jovem rapaz era seu amigo. Suas atitudes simples e a maneira como exprimia o máximo de sentimento em um punhadinho de palavras ou gestos sempre a deixaram encantada, e daquela vez não era diferente. Dora se juntou ao abraço caloroso, uma maneira de dar boas-vindas, ao mais novo membro da família Real. — Não seja bobo, Virgílio, trate de vir aqui e dar um abraço na gente — convidou feliz a princesa, o seu amigo sapo, que olhava tudo muito emocionado. — Sou velho demais para essas coisas, princesa Dora — resmungou o sapo, engolindo a emoção e tentando permanecer na imagem de sapo rabugento e durão que criara, para assustar os “inimigos”. — Deixe disso, Virgílio — retrucou Estevão — venha cá e me dê um abraço de sapo. Virgílio não conseguiu correr a tempo, pois o menino Estevão saiu em disparada em sua direção e o abraçou como um bom amigo. Aos berros e soluços, disse: — Sou o capitão da guarda Real, não posso ser humilhado dessa maneira. Você me paga sua peste. O Sapo Virgílio arrancava gargalhadas das donas da casa e encerrava com alegria o que
antes era uma desconfortável reunião de Páscoa. No dia seguinte combinaram de se encontrar no final da aula, da mesma maneira que faziam todas as segundas e quartas-feiras, já que nos outros dias seus horários não “batiam”. Estevão sentava no banquinho de sempre, lendo alguma história em quadrinhos de sua preferência. O escolhido do dia era a clássica Crise nas Infinitas Terras, fechou a encadernação quando percebeu um chiado grave que fez com que o bando desse uma leve estremecida. — É o Sapo Virgílio – pensou o garoto ao ver encostado à beira do banco um enorme sapo-boi, bem parecido em cor e formato, com o guarda-costas da princesa. — Você acha mesmo que eu me daria ao trabalho de sair de casa pelado, para pegar a pequena Dora? — A voz inconfundível do “tio” de Dora fez Estevão recuar o olhar e perceber que o sapo que estava no chão era um sapo como outro qualquer. — Ainda bem que você não tentou puxar assunto... As pessoas iriam pensar mal de você, meu rapaz — disse o tio de Dora com certo ar de deboche. Usava as roupas espalhafatosas de sempre, para piorar, um chapéu para se proteger do sol. — Tenho que confessar que ainda estou me acostumando com a idéia, seu Virgílio — concordou entusiasmado o garoto. Depois de ontem comecei a desconfiar de tudo o que vejo. Ao ver a figura do tio de Dora, parado com a expressão severa de sempre, Estevão se recordou que nem sempre, nesses últimos anos, ele estivera ali para pegar a “sobrinha”. Assim foi fácil para o menino pensar que provavelmente ele poderia estar ao lado dos dois, acompanhando-os e vigiando como um sapo. Poderia ter descoberto que os dois mataram a última aula, para entrar na loja de CDs de que tanto gostavam.
— Seu Virgílio, não me leve a mal. Gostaria muito de te perguntar... — Pois pergunte, meu jovem — completou Virgílio. — Você sempre esteve aqui para levar a Dora pra casa, não é? Digo.... como sapo... — Sempre vi o que vocês aprontavam garoto, se é isso o que você quer saber- sorriu o tio de Dora. Por isso, eu confio em você. Sei que você nunca fez e provavelmente nunca fará mal à princesa. Foi bom para Estevão ouvir aquilo do sapo Virgílio. O sorriso não demorou muito para aparecer. A amiga também não demorou. Logo os dois puderam ver a princesa Dora vestida como uma estudante qualquer, calças jeans, tênis e a camiseta do uniforme. Ao contrário do dia anterior, os cabelos estavam soltos e brilhantes, talvez estivessem menos brilhantes que seus olhos, que a essa altura irradiavam o ambiente com a alegria em ver os amigos. — Nossa! que chique!vou ser escoltada por dois guarda-costas dessa vez. — É sempre um prazer poder levar você para casa, Majestade. — disse o tio Virgílio entusiasmado. Mas sua mãe disse que hoje estaria deveras ocupada com assuntos de interesse Real, e não poderia preparar o almoço hoje... Ela me deu alguns trocados para que pudéssemos almoçar na rua, em algum restaurante que fosse de seu agrado. — Ah, mas pra isso tudo não precisa preocupação — exaltou-se o menino Estevão. — a comida que mais agrada minha amiga Dora é a que minha mãe faz. De fato, era verdade que a mãe de Estevão sempre tivera o cuidado de agradar a pequena Dora, principalmente quando descobriu que a moça era vegetariana. A cada dia que aparecia em casa, Dora era surpreendida com algum prato diferente, aprovado com antecedência pelo cuidadoso amigo. — Se não se importa, Virgílio, eu gostaria de almoçar na casa de Estevão
essa tarde — podia falar que era de tarde, pois, nas segundas e quartasfeiras os adolescentes tinham as aulas extras ou sexto tempo, como era costume dizer. — Claro, majestade — aceitou bem o “sapo” — nada seria melhor que uma bela comida caseira, nesse momento. — Nem preciso dizer que o senhor está convidado, seu Virgílio. — Sinto em desapontar, menino Estevão — recusou com toda a fineza que um sapo podia apresentar — Mas eu tenho minha própria dieta, regada de vários tipos de insetos. — Ah, seu Virgílio! Por que não me disse que gostava de uma comidinha chinesa... Estevão cultivava uma irritante mania de fazer piadinhas rápidas, quase sem pensar, sobre assuntos ou comentários últimos das pessoas com quem estava junto. Para sua alegria, todos reagiram bem a essa brincadeira leve. Virgílio os deixou uma quadra antes de chegarem à casa do menino Estevão. O restante do trajeto Dora e seu amigo fizeram por conta própria. O tempo foi suficiente para Estevão comentar o quão deliciosas estavam as trufas. Nunca havia provado nada tão delicioso como aquilo, um sabor que transcendia o paladar, provocava verdadeiras sensações agradáveis no corpo todo, desde os pés até principalmente a cabeça. Dora concordou com o menino e disse que se lembrava muito bem da delícia que eram os bombons do senhor Tibério Semprônio, e que sua fórmula permanece um mistério até os dias de hoje. Estevão só lamentou serem poucos os exemplares, já que sua mãe, uma chocólatra incurável, fizera o favor de acabar com toda a caixa em uma só noite.
Tocaram o interfone da pequena casa, localizada no meio da quadra, com seu portão branco, paredes amarelas e o modesto jardim da entrada, que o pai de Estevão cultivava com tanto carinho. — Oi — Atendeu com uma voz rouca a mãe de Estevão. — Mãe, sou eu — disse Estevão. — Trouxe a Dora pra comer com a gente. Entraram e foram recebidos com quase a mesma festa das outras vezes. A mãe de Estevão deu um grande abraço em Dora, mas a menina atentou para o fato que daquela vez o abraço não fora tão caloroso como o de costume. Estevão também percebeu que algo estava levemente diferente em sua mãe. Ao dar uma volta até o seu quarto para guardar as coisas da escola, Estevão notou que sua cama estava arrumada, mas de uma maneira um tanto quanto curiosa: o edredom estava dobrado no canto inferior da cama, deixando o lençol e os travesseiros à vista. — Uai, mãe — resmungou o garoto. — Arrumou de um jeito engraçado o meu quarto hoje. — Estava tentando simplificar, Estevão. Afinal, eu nunca venço. — Disse a mãe do rapaz — Eu arrumo a cama para logo à noite você se deitar e desarrumar tudo novamente. É um ciclo vicioso, e a única prejudicada sou eu. Por um lado aquele raciocínio até fez sentido, mas estava longe de combinar com a imagem alegre e entusiasmada que fazia com que sua mãe fosse conhecida como uma mulher que adorava manter as coisas em ordem para ter o prazer de chamar pessoas para pequenas reuniões em sua casa. Com Dora as percepções foram piores. Assim que reparou a cozinha limpa sem nenhum sinal de comida ou panelas no fogão, tampouco a mesa posta na sala de jantar, a princesa chamou o amigo e fez a pergunta simples que cabia muito bem na situação. — Estevão querido, o que vamos comer?
Ao ver que realmente havia alguma coisa estranha em sua casa, Estevão não tardou questionar a mãe que estava no outro quarto, arrumando da mesma maneira peculiar a cama de casal. — Mãe, não fez comida hoje? — Eu não faço comida meu querido, ela já nasce feita, eu não faço a carne. É a carne que vem junto com o boi, outros homens matam o boi, eu só compro no supermercado, jogo alguns condimentos, que também já nascem prontos, e frito ou cozinho dependendo que queremos comer... — resmungou a mãe. Nem tudo o que ela disse chegou aos ouvidos de Estevão. Tudo o que você precisa está na geladeira e no armário. Outra resposta que atordoou os sentidos do garoto que achou melhor não dar muita bola para os propósitos filosóficos de sua mãe e tratou de preparar com sua amiga o almoço, pois já estavam os dois morrendo de fome. — A propósito, Dora, diga a seu pai que as trufas estavam deliciosas e que espero um dia ter a honra de conhecê-lo. — disse a mãe de Estevão, voltando para a cozinha e mostrando aquele sorriso que outrora parecia esquecido. O almoço correu bem, sem maiores dificuldades: macarrão, omelete e salada. Qualquer jovem inteligente como os dois poderia fazer. Para poupar a mãe de Estevão do trabalho, os dois ainda se propuseram a lavar, secar e guardar a louça. Logo em seguida, um pouco depois de descansarem ao som dos Beatles, Estevão gravou um DVD com o último filme que havia baixado em seu computador: Laranja Mecânica. Os dois amigos trataram logo de rumar para a casa de Dora antes que o tio Virgílio pudesse dar conta das horas. Nas semanas que se sucederam, Estevão, cada vez mais familiarizado com as situações que só uma família Real de Pragadasa poderia apresentar, já
se sentia bem à vontade com a visita de sapos, as aparições coloridas de figuras ilustres que dia sim dia não davam as caras para um jantar. Até as fadas citadas outro dia pela mãe de Dora apareciam para saber notícias da princesa. Alguns funcionários da Fábrica Real de Chocolates traziam em primeira mão os lançamentos daquele respectivo mês, como os chocolates com sabores e nutrientes encontrados nas frutas, verduras e legumes, idéia retirada de algum filme clássico de cinema, que provavelmente batera no ilustríssimo senhor Tibério Semprônio aquela famosa sensação de “Por que não pensei nisso antes?”. Apareciam, ainda, algumas costureiras e alfaiates da Corte, para provas e mais provas de novos modelos. A princesa Dora quase sempre achava aquilo um tanto quanto ridículo, já acostumada com as marcas e o estilos sofisticados apresentado aqui no “Mundo Real” como ela mesma dizia. Estevão assistia a tudo aquilo e apreciava com muita alegria, e a cada dia se surpreendia mais, ora com algum personagem de Pragadasa, ora com um fato inusitado ou ainda uma notícia do Reino, que muitas vezes se fazia confundir com lendas já conhecidas. “Fiquei sabendo que os pererês voltaram a tocar o terror nas florestas, próximas do reino dos antropófagos. Os fazendeiros da região ficaram sem seus ovos e a colheita do milho, para as corridas de jegue, tiveram grandes prejuízos.” — Ouviu Estevão certa vez da boca de um Visconde de Alguma Coisa. Estevão já sabia que as corridas de jegue, assim como o campeonato nacional de cipó, eram as grandes atrações esportivas de Pragadasa. Os pererês, ele veio descobrir depois que eram um tipo de saci desmistificado e sem a imagem tradicional daquele menino negro, que pula em uma perna só fumando um cachimbo e um gorro na cabeça, pareciam mais com curumins, nem sempre pernetas, e tinham os cabelos avermelhados. Estevão ficava ao mesmo tempo temeroso com o que poderia acontecer a ele se um dia encontrasse algo parecido em sua frente, e ansioso para um
dia conhecer essa terra tão absurda e cheia de aventuras. Porém, nenhuma notícia causaria tamanho alvoroço, ou, melhor dizendo, tamanha perplexidade, tanto em Estevão como em toadas as pessoas que moravam naquela casa, como aquela que carregava o embaixador de Pragadasa, senhor Hermeto Alegre, exatos três meses depois daquele domingo de Páscoa em que o menino Estevão descobrira que a sua amiga Dora era uma princesa.