Teorias da Imagem
Teorias da Imagem Organizador: Patricia Veloso Silas de Paula, ร rico Oliveira e Leila Lopes Iana Soares Osmar Gonรงalves Thiago Braga Pereira Ricardo Henrique Arruda Marcelo Barbalho Prefรกcio: Simonetta Persichetti Posfรกcio: Patricia Veloso
Prefácio Simonetta Persichetti A Imagem em discussão
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Silas de Paula, Érico Oliveira e Leila Lopes Imagens que pensam, gestos que libertam: apontamentos sobre estética e política na fotografia Iana Soares O corpo é a mais real ficção: os pés também são olhos Osmar Gonçalves Estética da Fotografia: um diálogo entre Benjamin e Flusser
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Thiago Braga Pereira Fotografia Cearense Contemporânea: um olhar sobre a obra de Beto Skeef e Fernando Jorge Ricardo Henrique Arruda A imagem e semelhança: a fotopintura entre o chrôma e o crônos Marcelo Barbalho O Elo perdido da (Minha) Fotografia: notas sobre uma experiência com o passado Posfácio Patricia Veloso
Simonetta Jornalista, crĂtica de fotografia Docente do Programa de Mestrado da Faculdade Casper LĂbero
TEORIAS DA IMAGEM
A imagem em discussão
Notas sobre caminhos e processo criativo no projeto A foto que falta
No ano de 2019, comemoramos os 180 anos da fotografia. Neste percurso, bastante curto em termos de história, a fotografia se impôs, mudou o modo de ver, foi considerada a máquina de criar certezas, a expressão do século XX, a narrativa da contemporaneidade. Uma lacuna, porém, sempre existiu: o de pensar e refletir sobre a imagem de forma sistemática. Sim, temos diversos textos, mas sempre muito esparsos. Nunca isso foi tão importante. E neste momento, além dos mais variados pensadores da imagem, é sempre o Walter Benjamin que se faz presente. Talvez, tenha sido ele o primeiro filósofo a compreender o novo invento e sua importância ao falar de fotografia. Os que o seguiram – e são muitos – acabaram sempre por se referenciar a ele. Nos últimos anos, ou melhor dizendo, nas primeiras décadas do século XXI, o fazer e o compreender a imagem passaram por uma grande transformação. O 11 de setembro, a catapultou como nunca no centro do entendimento do mundo. Agora estamos divididos em antes e depois do 11 de setembro. A imagem, que sempre foi polissêmica, se ressignifica; seu valor é questionado, novas formas narrativas surgem.
SIMONETTA
Os debates retornam, como o da reflexão sobre o conceito de representação, realismo e visualidade. Discute-se a expressividade do discurso fotográfico, as consequências das não tão novas tecnologias e as múltiplas possibilidades de circulação das imagens hoje. O aparato técnico versus o aparato mental. A fotografia, que no secúclo XIX, nasce destinada a registar o mundo, começa a interpretá-lo no século XX e segue livre no século XXI. Munidos o tempo todo de um aparelho fotográfico (o celular), mais do que nunca nos tornamos o flanêur tão caro a Walter Benjamin e à modernidade de Baudelaire. A fotografia cotidiana, de rua, invade nossas redes sociais. A filosofia da imagem (re)ssurge. A estética, outro lado da moeda da ética, è questionada. Territórios reconquistados pela imagem e sua representatividade. São estas as questões compreendidas neste volume, em que discussões teóricas são acompanhadas de apresentações de trabalhos práticos. Mas o que permance em evidência é o papel fundante de memória e de construção do nosso entorno. Apesar de a câmera fotográfica querer afirmar-se como testemunha ocular de um tempo, ela acaba funcionando muito mais como ficção, criação daquilo que nós imaginamos e queremos que seja a representação do nosso lugar.
Silas de Paula Jornalista, crítica de fotografia Docente do Programa de Mestrado da Faculdade Casper Líbero
Érico Oliveira Jornalista, crítica de fotografia Docente do Programa de Mestrado da Faculdade Casper Líbero
Leila Lopes Jornalista, crítica de fotografia Docente do Programa de Mestrado da Faculdade Casper Líbero
TEORIAS DA IMAGEM
Imagens que pensam, gestos que libertam: Apontamentos sobre estética e política na fotografia
1. A crise da visão O conceito de representação está sob ataque cerrado, mas o poder da visualidade sobreviveu. Embora a crise da visão seja apontada por vários teóricos e a relação háptica do corpo (HANSEN, 2004) retire dela o papel de sentido mais nobre, a fotografia – seja ela digital ou analógica – ainda exige a visão como sentido fundamental, mesmo que percebamos a imagem com os olhos da mente. Para Marin (2001), existe uma diferença crucial entre ver e olhar. “Olhar” é o ato natural de receber nos olhos a forma e a semelhança. Já “ver” é considerar a imagem e a tentativa de conhecê-la bem, fazendo com que o observador se constitua como sujeito. Martin Jay (1994) fala de uma era essencialmente oculocêntrica, isto é, a visão como o sentido mestre da época moderna. Processo iniciado com o Renascimento e as revoluções científicas – a invenção da impressão, a fotografia, o telescópio, o microscópio, o cinema – que acabou por construir o que podemos denominar como um campo perceptual da visão. A verdade é que, desde o início da filosofia ocidental até o século XIX, a visão imperou sobre os demais sentidos. Partindo de Platão, passando por Descartes e Santo Agostinho, as metáforas visuais serviam como explicação e exemplo para compreender e pensar o mundo: 12
SILAS DE PAULA, ÉRICO OLIVEIRA E LEILA LOPES
[...] O oculocentrismo que serve de base para a nossa tradição filosófica tem sido inegavelmente importante. Seja em termos de especulação, observação ou iluminação reveladora, a filosofia ocidental tende a aceitar a tradicional hierarquia sensual. E se Rorty está certo acerca do ‘espelho da natureza’, os pensadores modernos construíram suas teorias do conhecimento sobre uma fundação visual. (JAY, 1994, p. 151)
Para o cineasta e teórico francês Jean-Louis Comolli (1985), a segunda metade do século XIX viveu um tipo de frenesi do visível. No entanto, a multiplicidade dos instrumentos escópicos que fascinava e gratificava, permitindo milhares de visões, também levou o olho humano à perda de seu privilégio imemorial; o olho mecânico da fotografia passou a ver em seu lugar e, em determinados aspectos, com mais confiança. A fotografia se colocou ao mesmo tempo como o triunfo e a sepultura do olhar. Frenesi que, para Martin Jay (1994, p. 149), “minou a autoconfiança da visão humana”. Jonathan Crary (1990) argumenta que “o visível escapa da eterna ordem imaterial da câmera obscura e se aloja em outro aparato, a instável fisiologia e temporalidade do corpo humano” (CRARY, 1990, p. 70). Ao inverter abordagens tradicionais, ele considerou a questão da “visualidade” através da análise do observador e insiste que os problemas da visão são inseparáveis das operações de poder social. Segundo Crary (1990), por volta de 1820, o observador passou a ser o espaço, ou local, de novas práticas e discursos que [in]corporaram a visão como evento fisiológico. O surgimento da ótica fisiológica possibilitou o desenvolvimento de teorias e modelos de “visão subjetiva”, que permitiram ao observador outro tipo de autonomia e produtividade, e produziram, ao mesmo tempo, novas formas de controle e padronização. Descentrado, em pânico, lançado em uma tremenda confusão pela nova mágica do visível, o olho humano passou a ser afetado por uma série de limites e dúvidas. Para Jay (1994), embora existam muitas evidências demonstrando que o século dezenove levantou importantes e profundas questões sobre o regime escópico da era moderna – aquele denominado de perspectivismo cartesiano – as inovações tecnológicas (principalmente a câmera fotográfica) contribuíram para minar o status 13
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privilegiado da visão humana. Além disso, apesar da estética modernista ter sido construída tradicionalmente como o triunfo da visualidade pura (tendo como um dos expoentes desta posição o crítico americano Clement Greenberg), é possível encontrar o reverso desta postura, por exemplo, em Merleau-Ponty (2004) no seu ensaio “A Dúvida de Cézanne”, em que o filósofo celebra a dimensão corpórea e sensual nos trabalhos do pintor francês. Outros críticos se opuseram a Greenberg e reabriram a questão da pureza do visual no modernismo. Apontando a importância de tendências subvalorizadas, eles revelaram a origem no projeto modernista de um impulso explicitamente [anti]visual, que preparou o caminho para o que passou a ser denominado de pós-modernismo, e questionaram o “fetichismo modernista da visão”1 , enfatizando assim o impulso que restaura o corpo vivo, que era evidente (MERLEAU-PONTY, 2004), tanto no Impressionismo como em Cézanne2. Douglas Crimp direcionou a atenção para outro aspecto do uso fotográfico, na contemporaneidade: a hibridação. O que caracteriza outra divergência em relação às categorias da estética modernista: Ao passo que mixagens heterogêneas de mídias, gêneros, objetos e materiais, violam a purificação do objeto de arte moderna, a incorporação de fotografias o faz de forma particular, ao levar a representação do mundo, seus aspectos tanto de índice como o de ícone para o campo simbólico da arte. (CRIMP apud SOLOMON-GODEAU, 1997, p. 111).
Outro autor mais recente, Mark Hansen (2004) tenta ampliar o trabalho de Henri Bergson, apontando o afeto como ponto central de seu projeto, com ênfase na visão, no tato e no automovimento– corpo e imagem. Ao buscar em Bergson, que vê o corpo como uma imagem entre outras – um tipo especial denominado de “centro de indeterminação” –, e que atua como um filtro selecionando imagens relevantes ao seu interesse, Hansen propõe um tipo de corpo que destrói as noções idealizadas, oculocêntricas da modernidade. Neste sentido, a percepção é sempre uma [in]corporação. O corpo se transforma em um agregador afetivo que seleciona entre (uma plenitude do possível) experiências per14
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ceptuais, deixando o resto de fora. O corpo que pode evocar memórias desta maneira é aquele no qual todos os sentidos são primordiais. Hansen desenvolveu uma nova fenomenologia, elaborada através do diálogo com trabalhos de Walter Benjamin, Henri Bergson e Gilles Deleuze enfatizando o papel da experiência “afetiva”, proprioceptiva e tátil na constituição do espaço e, por extensão, da mídia visual. Para Hansen, a visualidade é moldada por esses elementos corporais e não pelo poder abstrato da visão, e sustenta que o corpo continua a emoldurar a imagem, mesmo no regime digital. (LENOIR, 2004, p.8).
Richard Rushton (2004), por outro lado, acusa Hansen de ter muita fé no corpo e na comunicação: isto é, onde a virtualização do corpo possibilitaria uma troca comunicativa afetiva de informações com a esfera do digital. Para Rushton, é precisamente isto que deveríamos evitar: a redução do corpo a “bits” transmissíveis de informações permutáveis. É necessário ter em mente que a visualidade se multiplica incontrolavelmente; as pessoas são interpeladas imageticamente em todos os instantes, em qualquer lugar. Essas imagens disponibilizadas no sistema consumidor, pela velocidade e alcance da globalização e pelas metáforas visuais das religiões, crenças e instituições, influem decisivamente nas imagens pessoais e mentais. Consequência disso é o declínio que essa visibilidade sofre na contemporaneidade, o de ver conceitualmente. Contraditoriamente, portanto, em um mundo de imagens, a visão parece se atrofiar. E se a fotografia é um processo baseado, não apenas na sinestesia, mas também na seleção – isto é, fotografias são tiradas –, a visão permanece como um sentido nobre, até mesmo para fotógrafos cegos, como Evgen Bavcar, que precisa de outros olhos para dar existência e significado ao seu trabalho. Na realidade, desde a década de 1980, com a emergência do digital, o estatuto da fotografia ficou mais repleto de dúvidas, contradições e constantes mudanças. Construídas por simulações numéricas e sem suporte material, as fotografias estão em todos e em nenhum lugar ao mesmo tempo. É nesse processo que a luz da fotografia analógica é substituída pelo cálculo, e a lógica figurativa da representação é substituída pela 15
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simulação, deixando a todos perplexos diante de um pseudorrealismo, que insiste na potência conflituosa entre criação e documentação. Abigail Solomon-Godeau (1997, p. 87) afirma que a ideia da “fotografia depois da arte da fotografia” aparece como extensão, ao invés de um campo encolhido. Rosalind Krauss (1986, p. 49) utiliza o conceito de “campo estendido”, isto é, um campo sem limites. Para Rubens Fernandes Júnior, “essa produção contemporânea, mais arrojada, livre das amarras da fotografia tradicional é a fotografia expandida, onde a ênfase está no processo de criação e nos procedimentos utilizados [...]” (FERNANDES JUNIOR, 2007, p. 45). E, por isso, grandes fotógrafos são grandes mitólogos, segundo Barthes (1984). Uma fotografia não é considerada subversiva por chocar, mas quando seu significado difere do referente literal e provoca, então, uma reflexão. Assim, se explorarmos as grandes mudanças ocorridas nas formas dominantes da fotografia contemporânea, é possível perceber a passagem de uma antiestética aparente para a escolha de um meio estético: Isto pode ser visto na maneira em que os usos a/não-estéticos da fotografia associados às várias práticas conceituais, protoconceituais, pósconceituais e sua documentação nos anos 1960 e 1970 deram lugar, em 1980, a uma postura antiestética autoconsciente de apropriação pós-moderna vigente, só para ser superada pela grande escala pictórica e, frequentemente, digital da fotografia colorida que domina a arte fotográfica desde os anos 1990 – uma forma de fotografia muito comparada à pintura na gama de efeitos estéticos a que aspira e que tem sido muito bem vista pelos museus, galerias e mercado da arte. (COSTELLO; IVERSEN, 2010, p. 189).
À fotografia já não se exige mais uma fidelidade ao real ou uma reprodução de mundos. Ela libertou-se de orientações prévias, de como relacionar-se com o sensível, e partiu para a invenção de olhares. Tornaram-se, então, potentes, novas forças no gesto de fotografar. A potência da imagem é um jogo entre as configurações pressupostas e aquilo que liberta para outros possíveis, entre o programa e as subversões do fotógrafo, para usarmos os termos de Flusser (1985). Um dos caminhos passa, então, por uma reelaboração da experiência estética – daquilo 16
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que constitui a aisthesise das sensorialidades experimentadas – e por uma reconfiguração no âmbito da poética – entendida como a dimensão produtora dessas sensibilidades, as maneiras de fazer, a poiesis. 2. Entre a poética e a política A fotografia contemporânea não é uma forma unificada. Simplesmente, seus contextos, estilos visuais e motivações são variados. Podemos, por exemplo, conceder à fotografia uma posição mais ou menos estética no mapa da crítica e considerá-la de um ponto de vista puramente formal, totalmente separada de qualquer questão sobre fidelidade documental. Sob este ponto de vista, questões cruciais raramente seriam colocadas: qual sua função como objeto do discurso estético e a quais interesses está servindo? (KRAUSS, 1986). Um leque de forças emocionais políticas, humanistas e estéticas, aponta para a complexidade que a define. Alguns trabalhos fogem das convenções do fotojornalismo, ou enfatizam a mobilização imaginária de uma comunidade. Outros carregam um fascínio antropológico, onde os relacionamentos são explicitados através de conexões espaciais e gestos realizados para a câmara; ou obras ficcionalmente criadas a partir do conflito que pode residir na rejeição social ou alienação, na incompreensão das culturas, na afirmação de estereótipos, na imposição de papéis de gênero ou no recurso à violência armada. São tensões e contradições onipresentes no mundo do século XXI.(VAN GELDER; WESTGEEST, 2008). Portanto, as possibilidades de relacionar estética e política não são simples. Ora, estamos em uma instrumentalização de uma pela outra, ora estamos na constatação de que ambas estão imbricadas, mas talvez ainda faltem sempre algumas complexificações que permitam efetivamente uma entrada no problema. A separação do estético e do político já foi, em certa medida, posta em crise, sobretudo se partirmos das contribuições de Rancière (2005), e dos desdobramentos gerados pelas operações conceituais propostas por ele. É de todo ainda aberta a dimensão de articulação que se pode traçar entre uma política da arte e uma estética da política, entre uma política no campo das sensibilidades e um regime de visibilidade articulado à política – e a própria filo17
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sofia de Rancière nos movimenta justo para sempre questionar e gerar problemas nesses lugares do entre, regiões de incertezas e de risco. Não existem dúvidas de que a poética pode abrir nossos olhos para questões políticas. E que, além disso, precisamos continuar a discutir até que ponto a arte tem de ser política. Isto é: [...] quando a prática fotográfica pretende um debate crítico sobre os trabalhos internos do sistema artístico ou sobre questões mais amplas de problemas sociais, ela está apta a se distinguir de um mero discurso político ou panfleto? O que distingue a arte da política senão a poética e seus componentes metafóricos que a habitam? (VAN GELDER; WESTGEEST, 2008, p. 11).
É preciso colocar-se nesse lugar, enfrentar o desafio que o problema nos coloca. Se estamos no limiar, que possibilidades surgem daí? Tem sido um caminho destacar as misturas de campos antes distintos, os cruzamentos das artes e das linguagens. Falamos na fotografia como arte contemporânea, no cinema que vai aos museus, nas indefinições quanto ao que estaria no campo da performance, da dança, do teatro, nas vizinhanças quanto ao que seria vídeo, fotografia ou cinema. Esses processos de passagens, como bem chamou Bellour (1997), nos retiraram de relações dicotômicas e de simplificações que enquadram e não permitem a comunicação entre os campos. Essas passagens nos demandam a busca por outros olhares teóricos e metodológicos, operações conceituais que, partindo da ideia de que estamos em processos de indiscernibilidade, nos movimentem pelas imagens e pelas potências nelas contidas. É em torno dessas potências que a discussão aqui deve se situar. Junto a essa primeira articulação da estética com a política, entendida em uma dimensão proliferadora de possibilidades, tentaremos trazer também uma segunda maneira estético-política, pela qual o gesto de fotografar pode se inscrever no mundo. Trata-se de uma produção de pensamento, fotografar como maneira de pensar, a imagem como o que pensa lugares, corpos, posturas no mundo. Não se trata de um gesto abstrato de distanciamento e de transcendência. O pensamento aqui é entendido de forma imanente, como maneira de atuar 18
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na vida, produzir variabilidades e fissuras, gerar deslocamentos, fazer problemas. Pensar torna-se, então, parte integrante da imagem, não se coloca como elemento exterior à materialidade. Se é possível fotografar a partir de conceitos anteriores, projetos e cálculos, talvez uma inflexão política e estética fosse um pensamento que se dá no percurso, na abertura ao imponderável do encontro acionado pela fotografia. Ou seja, pensar no ato. As duas proposições centrais aqui são, então, tentativas de se situar no problema do entre, da relação imbricada da estética com a política. As tentativas se orientarão, sobretudo, na operação de conceitos, para mapear alguns arranjos teóricos e metodológicos possíveis, de modo a lançar questões e enfrentar o risco de se situar no limiar. A fotografia contemporânea nos provoca e gera problemas. As imagens perturbam os lugares ordenados, produzem novas formas de sensibilidade. Há aqui uma aposta, a de que indagar sobre o estético e o político implica também tratar de resistência, formular questões sobre a possibilidade das imagens desencadearem roturas estéticas nas configurações do sentir. A fotografia, portanto, é um meio que possibilita o conhecimento pelo sensível, assim como outras formas de arte, unindo estética e política. Estética, que dever ser compreendida como um regime específico de identificação e pensamento das artes: “um modo de articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de pensamento de suas relações, implicando uma determinada ideia de efetividade do pensamento” (RANCIÈRE, 2009, p. 13-14). Diferente do pensamento que rondava os primeiros fotógrafos, que resumiam a estética ao modo de compor a imagem através da luz, enquadramento, cenário e etc. Estética e política não estão separadas na fotografia contemporânea: elas são mutuamente constituintes no impulso comum de tornar visível o que não pode ser visto, fazer ouvir um discurso onde só há lugar para o barulho (RANCIÈRE, 1996, p. 42). Assim, com uma fotografia mais voltada para a subjetividade, “a experiência estética traz consigo a promessa de uma nova arte de viver dos indivíduos e da comunidade, a promessa de uma nova humanidade” (RANCIÈRE, 2007, p. 134). 19
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3. Liberdade: ampliar possíveis O problema da liberdade tem lugar especial quando se trata de pensar as potências das imagens fotográficas. O que elas podem e o que podem os fotógrafos com elas são questões em jogo para tratar de uma política do gesto de fotografar. Na filosofia de Flusser, a centralidade da questão da liberdade se orienta para um estudo sobre a caixa-preta com preocupação nos momentos de subversão daquilo que condiciona o fotografar a certos limites. O aparelho oferece uma virtualidade de operações técnicas, envolvidas em um programa, mas cabe ao fotógrafo promover novos usos, torcer o que estaria como dado e como limitação de atuações, “contrabandear na fotografia elementos estéticos, políticos e epistemológicos não previstos no programa” (FLUSSER, 1985, p. 28). Os aparelhos se ocupam em programar a vida, organizar um campo de possíveis. “O aparelho fotográfico é a fonte da robotização da vida em todos os seus aspectos, desde os gestos exteriorizados ao mais íntimo dos pensamentos, desejos e sentimentos” (FLUSSER, 1985, p. 36). Buscar furar o programa e a ordenação do ver seria uma estratégia dirigida contra o aparelho. É preciso produzir uma imagem que não estava no programa. Essas considerações já bem conhecidas de Flusser sobre a relação do fotógrafo com o aparelho merecem destaque, sobretudo, pelo caráter político que carregam. É esse aspecto que merece ser destacado, já que se trata de um esforço para recolocar o problema da liberdade e tornar central o debate sobre uma práxis que escape à captura e busque brechas. O que Flusser propõe é tanto uma defesa de determinada postura estética e política por parte dos fotógrafos diante do aparelho, quanto uma convocação a uma abordagem teórico-metodológica que proponha saídas às limitações dos programas. Na proposta de Flusser (1985), são os fotógrafos que podem responder às perguntas sobre onde está o espaço para a liberdade na contemporaneidade. “Liberdade é jogar contra o aparelho” (FLUSSER, 1985, p. 41), dirá o autor em passagem já bem consagrada. E a filosofia da fotografia deve conscientizar essa práxis fotográfica, para que sejam apontadas ampliações dos possíveis. A filosofia da fotografia é necessária porque é reflexão sobre as possibilidades de se viver livremente num mundo programado por aparelhos. Reflexão
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sobre o significado que o homem pode dar à vida, onde tudo é acaso estúpido, rumo à morte absurda. Assim vejo a tarefa da filosofia da fotografia: apontar o caminho da liberdade. (FLUSSER, 1985, p. 41).
A postura metodológica da crítica fotográfica é justo indicar quando as intenções humanas conseguem encontrar desvios, quando se vislumbra a vitória do fotógrafo sobre o aparelho. A composição de um mapa de conceitos deve ser também uma operação política, experimento de torção no pensamento. O exercício da liberdade diz respeito ao próprio estar no mundo dos sujeitos, implica uma sensação existencial no contexto das imagens técnicas (FLUSSER, 2008). E assim, se tratamos de fotografia, já não podemos nos dissociar da vida e das implicações que a produção de imagens tem na libertação das formas de viver, dos programas que robotizam a vida, retomando a expressão de Flusser. Rubens Fernandes Júnior (2006), em diálogo com a contribuição flusseriana, destaca a libertação e a resistência viabilizadas pela fotografia contemporânea, que experimenta novas abordagens e expande horizontes sensíveis. A possibilidade de múltiplas intervenções na imagem libertou a fotografia de uma relação imediata com o mundo, de uma reprodução do real. Já não é mais demandada uma veracidade da imagem. As contaminações visuais são potencializadas por procedimentos vários que retiram a fotografia de compactações. Nesse sentido, as experimentações no âmbito do fazer, na poética fotográfica, têm impacto nas sensibilidades geradas, na experiência estética, que imerge, sobretudo, em um estranhamento causado pela visualidade contemporânea. A nova produção imagética deixa de ter relação com o mundo visível imediato, pois não pertence mais à ordem das aparências, mas sugere diferentes possibilidades de suscitar o estranhamento em nossos sentidos. Trata-se de compreender a fotografia a partir de uma reflexão mais geral sobre as relações entre o inteligível e o sensível, encontradas nas suas dimensões estéticas. (FERNANDES JÚNIOR, 2006, p. 17).
O estético é relançado em novas condições de experiência, modificada por uma produção que se abre ao que não estava previsto no programa, 21
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ao que já não estava esquadrinhado e enquadrado como ordenação do ver. Mas não é apenas o estranhamento que opera essas torções: penso que se trata mais das singularidades expressivas, que fogem aos consensos estabelecidos nas sensibilidades. Esse seria um caminho político para pensar a experiência estética, que se coloca no tensionamento com uma configuração policial que estabelece maneiras de fazer, ver, dizer e sentir, no que dialogo com Rancière (1996). As torções estéticas e políticas da fotografia seriam encaminhadas em meio a uma produção de dissenso, à busca por uma política que expõe o dano e o litígio. Há formas de sensibilidade não contadas, percepções do espaço e do tempo que são deixadas de lado por uma operação consensual que estipula o que é apreciável e o que se legitima na fruição. Um regime policial estabelece hierarquias, estipula temas e espaços destinados à experiência. Na política, estamos em outra perspectiva de relação com o sensível, a da rotura. A ampliação de possíveis na experiência estética se coloca como prática política na medida em que faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir o que só era considerado ruído, passa a contar o que era sem-parte (RANCIÈRE, 1996). Novas partilhas do sensível podem ser postas em questão, novas cenas podem ser inventadas na imagem. Nesse caminho, a política não será um socorro prestado à arte, mas uma modalidade mesma de produzir mundos sensíveis. É a tensão de Rancière com Benjamin, em torno da noção de estetização da política. Não faria sentido tratar a relação dos dois campos pelo caminho de submeter um a outro, pois tanto arte quanto política vão se ocupar dos mesmos problemas da vida em comunidade. Trata-se, em ambas, de saber o que se pode fazer com o tempo, como ocupar espaços no mundo, que possibilidades de olhares podem ser produzidos, que cenas podem ser criadas, que palavras podem ser consideradas na constituição do comum. Se a fotografia expande as próprias possibilidades de produção, mistura procedimentos, opera pontes, liberta-se de compromissos que se imaginavam necessários e fundantes, já teríamos aí um encaminhamento político. Quando a produção de imagens nos tira do lugar de conforto, das seguranças e das expectativas, pode-se pensar em reconfigurações de uma cena partilhada. A operação estético-político estaria no âmbito da insubordinação, daquilo que pode instalar querelas e desorganizar o que estava consensualmente distribuído em funções e lugares fixos. Fernan22
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des Júnior (2006) destacava esses procedimentos na articulação de outros processos na produção fotográfica, já não mais comprometida com uma representação fiel da realidade. Diria que é todo um regime de verdade que se coloca em crise, na medida em que não tem mais sentido o problema do verdadeiro e do falso (FLUSSER, 2008, p. 40). Deslocou-se, em certa medida, a referência política de uma fotografia mergulhada em procedimentos documentais, de relação mais íntima com uma ideia de realidade. É já toda a noção de real que se bifurca para atravessar campos e sofrer modulações. Não havendo um real dado a ser trazido para a materialidade imagética, as possibilidades da fotografia vão ser expandidas no âmbito da ficção, que não se confunde com a mentira nem está posta na pura dicotomia com o documental. A ficção, retomando Rancière (2005), não é proposição de engodos, mas elaboração de estruturas inteligíveis. A revolução estética permite uma nova ficcionalidade, já não mais constituinte de um regime representativo, que busca especificidades e separações. Em um regime estético das artes – e, diria, na fotografia contemporânea –, a ficção precisaria ser recolocada a partir da noção de fingire, que não significa fingir, mas, primordialmente, forjar (RANCIÈRE, 2006). “Ficção significa usar os meios de arte para construir um ‘sistema’ de ações representadas, de formas reunidas, e de signos internamente coerentes” (RANCIÈRE, 2006, p. 158). A diferença entre ficcional e documental não estaria no fato do documentário colocar o real contra as invenções da ficção, “é apenas que o documentário, no lugar de tratar o real como um efeito a ser produzido, trata-o como fato a ser entendido” (RANCIÈRE, 2006, p. 158). A operação conceitual de Rancière vai nos levar, em última instância, a compreender a ficção como uma maneira de ser do documental, posto que ambos se deslocam também de enquadramentos rígidos, para se misturar. Uma passagem que implica liberdade de produção e fruição e permite um encontro com o mundo em disponibilidade para entendê-lo e também para inventá-lo. Na ficção, a modificação da paisagem sensível encontraria potências expressivas e novas possibilidades para alterar os regimes de sensação. A ficção não é a criação de um mundo imaginário oposto ao mundo real. É antes o trabalho que opera dissentimentos, que modifica os modos de
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apresentação sensível e as formas de enunciação, alterando os quadros, as escalas ou os ritmos, construindo relações novas entre a aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e sua significação. Este trabalho muda as coordenadas do representável; altera a nossa percepção dos acontecimentos sensíveis, a nossa maneira de os pôr em relação com os sujeitos, o modo segundo o qual o nosso mundo está povoado de acontecimentos e de figuras. (RANCIÈRE, 2010, p. 97, grifos do autor).
Os dissentimentos, como coloca Rancière, estão ligados a modificações em escalas, ritmos e quadros. A fotografia tem potências múltiplas, e apostar nessa proliferação seria uma inflexão política. As tendências pictorialistas, as encenações, os hibridismos possibilitados pelo digital, as tensões com noções mais fixas de real dão liberdade ao gesto de fotografar, como forma de atuar e intervir na apresentação sensível de mundos. O desafio é sempre como se colocar no mundo, como se relacionar com as tendências em jogo e adotar posturas críticas, para que os novos modos de ver não se tornem o instituinte, o elemento ordenador e policial. Desafio recorrente trata-se, sobretudo, de evitar a captura por regimes escópicos constituídos e sistemas de produção e legitimação que se apressam em enquadrar aquilo que tenta escapar. A política é sempre um jogo, tentativa de fazer fugir, traçar linhas que, estando nas bordas, possam perturbar a distribuição sensível dos lugares e das funções. “Em nosso modo de imaginar jaz fundamentalmente uma condição para nosso modo de fazer política. A imaginação é política, eis o que precisa ser levado em consideração” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 60-61). Talvez a imaginação deixe de ser política, quando ela se conforma e se aquieta. E o movimento incontido é desencadeado, se a liberdade continuar como meta constante, se a linha de fuga não deixar de ser traçada e se o pensamento não se deixar conter. É preciso promover formas de “pensabilidade” insubordinadas no gesto de fotografar, na imaginação, nas imagens que resistem. 4. Pensar com imagens: resistir A resistência é colocada aqui como um problema efetivamente imagético. Não se trata de uma modalidade de resistir pela transmissão de mensagens ou de conscientização quanto a maneiras de estar no mundo. 24
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Não se trata de uma relação criada fora da imagem, por processos textuais ou linguísticos, mas uma preensão do objeto estético nos corpos, nos gestos, nas posturas. O próprio gesto de fotografar seria um gesto produtor de pensamento, como modalidade de pensar com imagens, como no diz Flusser (1994), gesto de filosofar: “desde que se inventou a fotografia, é possível filosofar não só por meio das palavras, mas também por meio das fotografias” (FLUSSER, 1994, p. 104). E esse gesto promove, no corpo a corpo com o mundo, interferências e transformações: “A fotografia é o resultado de um olhar para o mundo, e simultaneamente uma mudança do mundo: algo de tipo novo” (FLUSSER, 1994, p. 105). Nesse caso, estamos em processos de complexidade em que olhar e agir já não são instâncias desconectadas, mas se comunicam e interpenetram. A imagem lança modos de ver e cria problemas para o factível, o dizível, o sensível. Olhar o mundo é transformá-lo também. Isso não se dá em direção unívoca e estável. É preciso problematizar as abordagens que pressupõem continuidades entre obra e espectador, já que não há garantias de uma adesão ou de uma concordância de sentidos nesse jogo. Não estamos mais, com o contemporâneo, em um paradigma da conscientização, típico de um regime representativo das artes, nos termos de Rancière (2010). A imagem instala intervalos e suspensões, não encaminha certezas e seguranças. Ela se coloca em um estado indeterminado, momento de abertura para que a tensão seja operada. É justo no esmaecimento das certezas e dos projetos preestabelecidos que a política irrompe, antes para desorganizar que para ordenar, antes para movimentar dúvidas que para orientar objetivos claros e definidos de um projeto. Pela noção de pensatividade da imagem, Rancière (2010) busca discutir a zona de indeterminação que se abre como fenda entre dois tipos de imagens, a imagem como duplo de uma coisa e a imagem como operação de uma arte. Nesse lugar do indefinido, somos colocados a pensar, num movimento, que requer uma saída dos acordos e das convenções, para se abrir ao que ainda não se pode abarcar nem precisar. Estamos numa zona de indeterminação “entre pensamento e não-pensamento, entre atividade e passividade, mas também entre arte e não-arte” (RANCIÈRE, 2010, p. 158). Na fotografia, essa ambivalência seria particularmente potente, singularmente criada por traços que fa25
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zem surgir nós, enlaces que resistem a uma distinção clara do que está em jogo ou do que estaria dado a ver. Se retomarmos Rancière (1996), veremos que a parcela dos sem-parcela, fundante da política e do litígio, não se inscreve na comunidade, como parte incluída, nem deve ser integrada à lógica policial. O povo como parte sem-parte é justo uma minoria que não vai se subordinar à organização já dada, mas vai inventar novas cenas, novos modos de estar junto, para expor o dano da distribuição de lugares e de funções na divisão do sensível posta. Com Didi-Huberman (2011), valeria pensar como os beduínos das fotografias de Shibli (DEMOS, 2008) seriam povos vaga-lumes, que resistem na imagem com uma luz fraca, uma existência precária, porém potente de possíveis e de desejos de transformação, em uma fotografia carregada pela força do extracampo e do que não pode ser completamente apreendido. Assim, a fotografia seria política, quando pensa as novas cenas que formas de vida podem instalar na imagem, mais do que pela maneira como os sujeitos excluídos poderiam ser trazidos para uma esfera de poder e de legitimidade já configurada previamente. Essa nuança parece surgir já ao final da discussão de Demos, sobre o trabalho de Shibli: O ‘reconhecer os não-reconhecidos’ de Shibli significa, então, o reconhecimento primeiro e antes de tudo das lacunas e fissuras dentro da imagem, o que implica a resistência à completa inscrição dos seus sujeitos – não porque a fotografia dela ‘reflita’ o indubitável processo real de apagamento social que tem lugar em Israel, mas antes porque a vida dos beduínos palestinos não pode ser completamente capturada pela fotografia. É a realização crítica da fotografia dela sugerir que há algo além da imagem fotográfica, algo que escapa à representação. (DEMOS, 2008, p.137).
Justo no que escapa, justo no que não pode ser completamente abarcado: a resistência da fotografia poderia ser formulada como esses intervalos e fissuras dentro da imagem, retomando as expressões de Demos. Pois é na impossibilidade de dar conta de um problema social – e no reconhecimento dessa limitação – que a imagem se força a pensar, a se pensar e a fazer pensar. A fotografia abre, assim, a fissura, cria pro26
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blemas e perturba. Ela não vai retratar uma situação de injustiça social e propor ações ou posturas de um espectador no sentido de uma reorganização suposta, mas vai instaurar quebras, sugerir e reconhecer que os povos vaga-lumes escapam. Deixá-los vibrar na imagem, incontidos e inquietos, seria uma operação estético-política do gesto fotográfico, como instância pensante e proliferante de possibilidades para a vida. 5. Considerações para novos começos Desde o seu nascimento, há mais de cento e setenta anos, a fotografia tornou-se parte integrante da nossa cultura e é difícil imaginar a vida sem ela. Os diversos campos da ciência e da arte utilizam o processo fotográfico: os artistas como expressão visual; os repórteres para gravar eventos; os cientistas para reunir dados sobre o universo físico e um incontável número de pessoas a utilizam como representação de momentos memoráveis, pela fidelidade da representação, seu baixo custo e facilidade de uso. Este caminho ressalta tópicos vinculados à mudança social, ao dinamismo da vida, às indústrias da ilusão, à comunicação de massa e semelhantes. É o ponto de partida para temas inseridos na iconosfera ou, segundo outros, paisagem sociovisual. A fotografia nunca foi uma prática unificada, mas um meio bastante diverso em suas funções. O exercício do ver é da ordem de um risco. A produção do que se dá a ver é também mergulhada em incertezas que não permitem afirmações seguras, posturas fixas ou lugares compartimentados. A fotografia joga com a região do entre, quando se permite escapar ao controle e a organizações rígidas, quando sai de esquadrinhamentos que estipulam um modo específico de produção imagética, uma postura ordenada do olhar e do fazer. Ela instala-se em uma área de imponderabilidades, que é, em sua constituição, o espaço da crise e do encontro crítico. Um lugar que, dentro da discussão aqui desenvolvida, permite liberdade e pensamento, instâncias que surgem como acionadoras de deslocamentos estéticos e políticos. Na liberdade, os sujeitos podem caminhar no múltiplo, jogar com as hierarquias, brincar com o aparelho. No pensamento, a experiência estética se coloca em uma zona de indeterminação, em que não se apreende o visível como um conjunto orgânico e entregue a uma interpretação, mas como uma região de probabilidades que se enrolam e 27
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se interpenetram, para formar imagens inquietas situadas menos na perspectiva de soluções e adequações que na perda e na suspensão. A fotografia e o gesto de fotografar operam entre a estética e a política em momentos de rotura. Na perspectiva que se tentou traçar aqui, esses momentos são da ordem de uma resistência. Resistir não como forma de criar dicotomias, opor organizações sensíveis em detrimento de outras, uma modalidade de atuação no mundo contra outra. A resistência é compreendida mais na dimensão de uma fenda ou de uma brecha que se abre, para desordenar o que está posto. Os sujeitos que resistem não vão simplesmente tomar um poder, mas vão instaurar novas relações de espaço e de tempo, outras maneiras mesmas de tornar comum operações singulares e ramificadas, que não se agregam em blocos uniformes, mas são dispersas e intermitentes. A imagem que resiste opera no limiar para fazer fugir e para instaurar dissentimentos, ela é insubordinada e inconstante, metamórfica e pensativa. O gesto de fotografar estético-político é gesto livre de pensamento, que transforma o mundo na própria condição de gesto, sensibilidade que se acrescenta e se espalha. A partir das duas maneiras traçadas aqui para se instalar no problema do limiar entre a estética e a política, as multiplicidades só tendem a aumentar e a gerar bifurcações, conforme as obras e os artistas forem mais colocados em questão, e na medida em que as singularidades de cada fotografia e as instabilidades de cada imagem sejam confrontadas em análises futuras. A movimentação teórica aqui talvez se amplie e gere também liberdade e pensamento para desencadear novas possibilidades de sentir. Como na exigência demandada por Flusser para a filosofia da fotografia, é preciso sempre encontrar o ponto em que o ser humano vence o aparelho e escapa à robotização da vida. Acrescentaria que cabe às articulações teórico-metodológicas inventar conceitos e operações conceituais que arrisquem no limiar para sair das seguranças e experimentar a tensão. Talvez haja aí um caminho para que as separações, dentro de novos paradigmas epistemológicos, sejam esmaecidas e para que o entre se instaure como campo em que se proliferam modos de existência com a imagem e com o sensível.
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1 Ver KRAUSS (1986). 2 Ver, JAY (1994), principalmente o capítulo: “The Crisis of the Ancient Scopic Régime: From the Impressionists to Bergson”. _ BARTHES, Roland. A câmera clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BELLOUR, Raymond. Entre-imagens. Campinas, São Paulo: Papirus, 1997. CHANEY, David C. Contemporary Socioscapes. Books on Visual Culture. Theory, Culture & Society, London, v.17, n.6, p.118, 2000. CRIMP, Douglas. The Photographic Activity of Post-modernism. October, New York, n. 15, p. 91-101, 1980. COMOLLI, Jean-Louis. Machines of the visible In: DE LAURETIS, Tereza; HEATH, Stephen. The Cinematic Apparatus. Hampshire: Palgrave Macmillan, 1985. COSTELLO, Diarmuid.; IVERSEN, Margaret. Photography After Conceptual Art. West Sussex, UK: Wiley-Blackwell, 2010. CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the 19th century. Cambridge: MIT Press, 1990. DE DUVE, Thierry. Kant after Duchamp. Cambridge: The MIT Press, 1997. DEMOS, T. J. Recognizing the unrecognized: as fotografias de AhlamShibli. In: VAN GELDER, Hilde.; WESTGEEST, Helen. Photography between poetry and politics: The critical position of the photographic medium in contemporary art. Leuven: Leuven Univ. Press. 2008. DE PAULA, Silas. Fotografia, álbum de família e regimes escópicos. Boletim do Grupo de Estudos de Arte & Fotografia, São Paulo, MAC USP, n. 2, ano 2, 2007. DIDI-HUBERMAN, Georges. A sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011. ________. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. FERNANDES JUNIOR, Rubens. Processos de criação na fotografia: apontamentos para o entendimento dos vetores e das variáveis da produção fotográfica. FACOM, Salvador, n. 16, jul./dez. 2006. FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985. ________. Los gestos, fenomenologia y comunicación. Barcelona: Herder, 1994. ________. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo, SP: Annablume, 2008. HANSEN, Mark. New Philosophy for new media. Mass. MIT Press, 2004. JAY, Martin. The Visual Turn. Journal of Visual Culture, London, n.1, p. 89-102, 2002. ________. Downcast eyes: the denigration of vision in twentieth-century french thought. Berkeley: University of California Press, 1994. KRAUSS, Rosalind E. The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths.Cambridge: The MIT Press, 1986. LENOIR, Timothy. Foreword.In: HANSEN, Mark. New Philosophy for new media. Mass.
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Iana Soares Jornalista, crĂtica de fotografia Docente do Programa de Mestrado da Faculdade Casper LĂbero
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O corpo é a mais real ficção: os pés também são olhos Notas sobre caminhos e processo criativo no projeto A foto que falta1
“Alguém sempre sabe porque caminha. Para avançar, partir, ir ao encontro e voltar a partir” (Frederic Gros, Andar, uma filosofia, 2014)
Na contemporaneidade, somos bombardeados por imagens e beiramos a overdose do visual. Vivemos entre a saturação e o deslumbre imagéticos. Didi-Huberman (2012) pontua que “nunca a imagem se impôs com tanta força em nosso universo estético, técnico, cotidiano, político, histórico. Nunca mostrou tantas verdades tão cruas; nunca, sem dúvida, nos mentiu tanto solicitando nossa credulidade” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 209). Fontcuberta (2010) afirma que “a história da fotografia é a crônica de um processo de transubstanciação, é o relato de como o documento se faz arte” (FONTCUBERTA, 2010, p.186). Se antes a fotografia tinha apenas um compromisso com a reprodução objetiva da realidade e funcionava, sobretudo, como prova e documento, agora reivindica também o território da expressão. É o tempo da complexidade das imagens e, mais do que explicar, elas confundem, indagam e nos incitam a pensar. Neste sentido, qual seria “a foto que falta” em um mundo já tão saturado de imagens? A partir do título, abro alguns caminhos e espaços de pensamento, vinculados ao processo 32
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de criação. Por um lado, ainda não tenho uma resposta clara para essa pergunta, penso que a consciência do gesto fotográfico e a intenção ao construir um discurso estético são fundamentais. Cada foto desta narrativa é uma pequena resistência e uma forma de investigar a possibilidade de gerar imagens potentes. A foto que falta é um ensaio fotográfico que começou a ser desenvolvido em 2015, durante o mestrado em Criação Artística Contemporânea, na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona. Neste texto, trago uma reflexão acerca de alguns aspectos que guiam o processo criativo e a construção desta narrativa em que, mais do que explicar e amarrar, proponho um passeio na elaboração de sentidos. Um caminho sugerido no título é o aspecto íntimo que está relacionado, de certa forma, com as imagens que temos em nossos álbuns de família. Além das coleções de aniversários, de viagens do verão e das fotografias que marcam a passagem dos anos, todo álbum familiar reúne também ausências. Com o tempo, muitas imagens desaparecem, são arrancadas por diversas mãos que eliminam fragmentos do conjunto inicial da narrativa. Espaços vazios apontam a existência oculta e o fato de que a história, seja coletiva ou pessoal, está construída por múltiplos sujeitos. Se o fotógrafo e o retratado são os autores iniciais das imagens, também é preciso perceber que existem outros que também escolherão o que será visto com o tempo. Em certa medida, este gesto flerta com a atitude iconoclasta literal e a destruição de obras de arte ao longo da história, obviamente com dimensões e consequências diferentes. E ainda, em um processo de edição, muitas imagens importantes para o percurso não estarão no conjunto final. Inicialmente, pensava situar o trabalho final do mestrado no campo da memória. Villém Flusser, filósofo tcheco radicado brasileiro que problematiza o universo das imagens, afirmou certa vez que esquecer é uma função tão importante da memória quanto lembrar. A memória é esse lugar de clarezas e escuridões. Se recordamos para tornar vivo o passado e dar algum sentido ao momento que vivemos, também esquecemos para seguir em frente, ora consciente, ora inconscientemente. Tinha curiosidade de experimentar uma possível reconstrução da memória. Nasci em Fortaleza, no Brasil, em 1986. Na adolescência, en33
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tre 1997 e 2001, morei em Barcelona, enquanto meu pai cursava um doutorado. Voltar a esta cidade era também retornar a um lugar importante dentro da minha trajetória. Entretanto, percebi que estava mais interessada em experimentar certas atmosferas “mágicas” dentro da realidade, nas quais as memórias e as lembranças do passado são apenas uma parte do processo criativo. Neste caminho, li “Os enamoramentos”, de Javier Marías (2011), em que o autor afirma que: O que alguém nos conta sempre se parecerá a ele, porque não conhecemos em primeira mão nem temos a certeza de que tenha acontecido, por muito que nos garantam que a história é verídica, que não foi inventada por ninguém, que aconteceu. De qualquer forma, faz parte do vagaroso universo das narrativas, com seus pontos cegos, contradições, sombras e falhas, circundadas e envolvidas todas na penumbra ou na escuridão, sem que importe o quanto exaustivas e diáfanas pretendam ser, pois nada disso está ao seu alcance, nem o diáfano, nem a exaustão. (MARÍAS, 2011, p. 331-2).
Uma narrativa baseada na memória sempre está vinculada a estratégias de ressignificação que vão além do verdadeiro ou falso para jogar com um quebra-cabeças em que as peças são feitas da própria vida, muitas já perdidas, outras em permanente substituição. Ainda que não seja o fio que conduz este projeto, a memória toca sutilmente estas imagens, inclusive por ser parte fundamental da fotografia a relação com esses fragmentos. Ao pensar na “foto que falta”, invoco também outra ausência: as fotografias que não foram feitas, que nunca existiram e ainda assim dizem muito, latentes. No caso do álbum de família, costumam ser cenas escondidas da narrativa “oficial”. Neste trabalho, implica ter consciência de que esta busca prossegue: as imagens que não estão, que talvez um dia se somem ao percurso ou que talvez nunca sejam feitas, também são importantes para compreender o gesto fotográfico e a edição que dá sentido ao conjunto. Estes aspectos dão relevância ao tema central que é a polissemia da ausência nestas fotos, da presença que permanece além do que não está. Interessa-me o fato de que essas ausências colocam em movimento o processo de investigação. 34
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Caminante no hay camino, se hace el camino al andar2 Durante a disciplina Walking Art, ministrada pelo professor Dr. Pep Mata 3, pude começar a investigar a forte relação entre caminhar e criar imagens. Durante três meses, traçamos percursos de até dezesseis quilômetros por dia ao longo do rio Llobregat. Foram quatro trechos, repetidos pelo menos duas vezes, totalizando um percurso final de aproximadamente 70 quilômetros, desenvolvido durante 3 meses. Caminhávamos por um território híbrido, com paisagens naturais, mas intensamente marcado pela intervenção humana: hortas, indústrias, estradas e trilhos de trem. A experiência resultou no ensaio fotográfico “Tenho que ir”, um conjunto de doze imagens e doze pequenos textos4. Este ensaio, de certo modo, já trazia o embrião estético e a atmosfera que venho buscando em A foto que falta. No texto de apresentação deste trabalho escrevo que: Há um instante suspenso entre outros. Existe um gesto que ainda acontecerá, mas já carrega passado e futuro apenas por decidir não continuar ali. Na inércia aparente, tudo dentro da imagem pulsa e gera tensões. Pelo que foi e ainda será. Por tudo que não poderá ser. Em “Tenho que ir”, investigo a força de um silêncio que não consegue ser ausência. Nesta narrativa, fotógrafa e espectador estão diante de um obstáculo e de um caminho. São lugares de passagem, mas também de permanência, que misturam temporalidades, memórias, dores, esperanças e futuros. De alguma maneira, são também retratos, nos quais o território se transforma em rosto.
Aquelas e estas fotos surgem da deriva: o ato de caminhar instaura um processo criativo. Escolhi um território urbano por sua complexidade social e estética. Francesco Careri (2002), um dos teóricos fundamentais para compreender o walking art, ao se referir ao trabalho de Robert Smithson, “A tour of the monuments of Passaic”5, afirma que este artista: Não foge das contradições da cidade contemporânea, e sim entra nelas a pé, com uma condição existencial na metade do caminho entre a do caçador do paleolítico e a do arqueólogo de futuros abandonados (CARERI, 2002, p. 168).
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Para este autor, “nestes lugares, e não na falsa natureza arcaica dos desertos, é possível formular, sim, novas perguntas e sondar novas respostas” (CARERI, 2002, p.168). Disso se trata: não tanto representar ou registrar esses territórios, senão atravessá-los e, a partir desse atravessamento, produzir novas imagens, nas quais diversas dimensões temporais e espaciais convivam e explodam dentro das fotografias. São imagens que surgem no encontro, da relação com o exterior, mas criando uma espécie de paisagem interior agora visível. Interessa-me percorrer as ruas com o espírito do flâneur tão bem definido pelo jornalista João do Rio, escritor de a “Alma encantadora das ruas”, livro publicado em 1908 com 37 crônicas sobre o Rio de Janeiro e 36
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seus personagens. Ele se dizia um apaixonado pelas ruas e um defensor incondicional do flâneur, do andarilho, e dialoga com Careri, que analisa e faz um histórico do caminhar na história e das práticas dos dadaístas, dos situacionistas, dos surrealistas, do grupo Stalker e outros artistas que tinham este ato como parte do seu processo estético. Resgato este fragmento de João do Rio, que também me guiou: É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas. Do alto de uma janela como Paul Adam, admira o caleidoscópio da vida no epítome delirante que é a rua; à porta do café, como Poe no Homem das Multidões, dedica-se ao exercício de adivinhar as profissões, as preocupações e até os crimes dos transeuntes. É uma espécie de secreta à maneira de Sherlock Holmes, sem os inconvenientes dos secretas nacionais. Haveis de encontrá-lo numa bela noite numa noite muito feia. Não vos saberá dizer donde vem, que está a fazer, para onde vai. Pensareis decerto estar diante de um sujeito fatal? Coitado! O flâneur é o bonhomme possuidor de uma alma igualitária e risonha, falando aos notáveis e aos humildes com doçura, porque de ambos conhece a face misteriosa e cada vez mais se convence da inutilidade da cólera e da necessidade do perdão (DO RIO, 2008 p.31-32).
O caos urbano está diretamente vinculado ao meu caos interno durante a criação deste projeto. Pensei em escolher um espaço mais natural, sem tanta intervenção humana, mas em vez de fugir, busquei mergulhar na cidade. Interessava-me experimentar um processo de meditação em que tudo parece apontar para o avesso disso. A caminhada está vinculada à reflexão e à criação artística, não deve ser confundida com uma atitude “esportiva”, mas percebida como uma ação que gera pensamento e obra. Frederic Gros (2014), a partir de uma análise de Walter Benjamin sobre o espírito andarilho de Charles Baudelaire, afirma que, nas grandes cidades, “o ato de caminhar do flâneur é mais ambíguo, e ambivalente é a sua resistência à modernidade. (...) O flâneur subverte a solidão, a 37
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velocidade, a especulação e o consumo” (GROS, 2014, p.307). Sobre a criatividade poética do andarilho, escreve que: Esta criatividade poética do flâneur é ambígua: é, como dizia Walter Benjamin, uma ‘fantasmagoria’. Supera a atrocidade das cidades para se apoderar das maravilhas passageiras, explora a poesia do que impacta, mas sem se deter a denunciar a alienação do trabalho e das massas. O flâneur tem coisas melhores que fazer: remitificar a cidade, inventar novas divindades e explorar a superfície poética do espetáculo urbano (GROS, 2014, p.315).
Barcelona é protagonista destas fotografias, mas não é meu objetivo “representá-la” ou contar “sua história”. Aqui me interessa o jogo com o referente. Os lugares e as pessoas que aparecem nestas fotos são singulares, mas poderiam, ao mesmo tempo, estar em qualquer outra cidade do mundo, através de suas complexas tramas. Aquilo que narro não aparece de forma explícita. Cada foto é um pequeno labirinto em que exploro a solidão, certas angústias e reordeno as esperanças. A deriva foi fundamental na construção de uma poética pessoal. Neste sentido, um dos referentes que tenho presente neste caminho é o escritor Ítalo Calvino. Em As cidades invisíveis, já adverte, na primeira linha da nota preliminar, que ali não se encontram cidades reconhecíveis: são todas inventadas e servem como ponto de partida de uma observação válida para qualquer cidade. Mais adiante, o viajante Marco Polo explica ao imperador Kublai Khan que: É uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um medo. As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa (...) As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas. (CALVINO, 2009)
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Durante a realização deste projeto, tal movimento estava presente. Ao ir para Barcelona cursar o mestrado, tinha como objetivo aprofundar a investigação de um olhar próprio para o mundo, entrando em medos, sonhos e desejos. Estive mais de seis anos dedicada profissionalmente ao fotojornalismo e pude contar diversas histórias, de pessoas e contextos dos quais possivelmente não teria me aproximado se não fossem o jornalismo e a fotografia. Há elementos do fotojornalismo que seguem me interessando, principalmente a potência da alteridade e o foco além do “eu”. Em “O Raval e a Esfinge”, um dos ensaios que fiz durante o Mestrado6, relacionei retratos de moradores do Raval com as paisagens do bairro, localizado no centro de Barcelona e conhecido pela diversidade étnica e cultural. Além dos dípticos, nos quais as cores das fotografias são similares, escrevia uma pequena carta para cada um deles. A esfinge, também citada por Calvino, era essa personagem mítica com cabeça de mulher, corpo de leão e asas de águia que protegia a entrada de Tebas com um enigma. Todos os viajantes que chegavam àquele ponto só seguiam em frente se respondessem corretamente à pergunta. Caso contrário, eram devorados por ela. Fotografei pessoas que também haviam deixado suas cidades de origem para se colocar diante dessa 39
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esfinge que são Barcelona e o mundo, respondendo enigmas cotidianos e inventando novas perguntas. Segui com a ideia de deriva. No entanto, queria experimentar cada vez mais outras temporalidades e visualidades que, muitas vezes, a busca pelo instantâneo não deixa espaço. O suposto desejo de objetividade ao transmitir a informação, ponto chave dentro do discurso e das estratégias do fotojornalismo, era algo de que queria certa distância. Sigo profundamente interessada no real, mas agora me aproximo dele por outros caminhos. Andar, neste processo, foi fundamental. Fortaleza, minha cidade de origem, é uma cidade turística do Nordeste do Brasil, com quase três milhões de habitantes. O mar é parte da paisagem, que costuma ser ensolarada e bastante iluminada durante o ano inteiro. É uma das mais belas cidades que conheço e tenho uma relação amorosa. Entretanto, é também uma das cidades mais violentas do mundo7, no que se refere a número de homicídios em lugares onde não há uma guerra declarada. Segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a infância (Unicef), em dados divulgados em 2017, o Ceará foi o estado brasileiro onde mais jovens entre 12 e 18 anos foram mortos. Ainda que o foco não esteja nessa discussão, cabe citar que as causas são diversas e passam pela construção da ideia de nação e por heranças históricas vinculadas à colonização e à escravidão. Perpassam também a manutenção de uma imensa desigualdade social e uma ineficaz atuação do Estado no que se refere à garantia de direitos básicos da população, como saúde e educação de qualidade. As políticas na área de segurança pública investem em repressão e policiamento ostensivo de forma pontual, o que a acaba por reiterar violências e violar direitos. Esta rápida descrição aponta a complexidade dos caminhos da minha cidade de origem, marcada pela violência e pela constante sensação de insegurança e medo em espaços públicos. Sempre fui militante da ocupação urbana: é necessário estar nas ruas para se contrapor a esse cenário. Mas, durante esta pesquisa, o simples fato de caminhar com uma câmera sem o risco de assalto com arma de fogo já proporcionava uma grande sensação de liberdade, inclusive física, para um corpo antes educado a viver em constante alerta.
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Caminhar sem um rumo completamente definido pela cidade, em jornadas que duravam pelo menos seis horas, me trouxe potência vital e fôlego. Sobre esse sentimento, Frederic Gros (2014) escreve: É necessário provocar partidas, transgressões, alimentar a loucura e os sonhos. A decisão de caminhar, partir longe a alguma parte, tentar outra coisa, se entender outra vez como um chamado para aquilo que é selvagem. Na caminhada se descobre o valor imenso das noites estreladas e nossos apetites se adequam: são enormes e nossos corpos ficam saciados. Quando se fecha com força a porta do mundo, nada segura alguém: as calçadas já não grudam na sola do pé. As encruzilhadas tremem como estrelas hesitantes, se redescobre o medo estremecedor de escolher, a vertigem da liberdade” (GROS, 2014, p.14-15).
Minhas noites estreladas, as estrelas hesitantes foram os dias de derivas, de caminhadas errantes por uma cidade que era confusão, mas que também trouxe a possibilidade de sentir a “vertigem da liberdade”. Para a construção deste projeto, foi fundamental a percepção física, estética e transcendental do ato de caminhar, repetindo o gesto de Rimbaud, Nietzsche e tantos outros (GROS, 2014). Reiterar o gesto com frequência te deixa ainda mais atento às possibilidades do acaso e a uma aproximação permanente de momentos de assombro. A intensa experimentação física leva também a um estado de contemplação particular, traz consigo um gesto que possibilita o encanto e também o reencanto do mundo. Diálogos com companheiros de deriva Pego emprestado o conceito de “museu imaginário”, de André Malraux, apresentado por Kátia Lombardi (2007), para compreender outros universos que dialogam com estas imagens. A era da reprodutibilidade técnica foi conceitualizada em 1936 por Walter Benjamin (2010) e segue em forte expansão com o advento da internet e das formas de captação digitais que facilitam e estimulam a reprodução. Para Malraux, a reprodução abriu um vasto território de experiências que ultrapassam as paredes dos museus e são compartilhadas pela humanidade. Além da reprodução ter multiplicado 42
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o acesso às obras de arte, Malraux identifica que isso também levou alguns trabalhos para outro patamar, lançou estilos e, em alguns casos, chegou a inventá-los. Na contemporaneidade, graças à difusão das técnicas de reprodução, é possível que as pessoas montem mentalmente seu próprio “museu imaginário”, eliminando as fronteiras de espaço e de tempo. O museu passa a funcionar como um espaço que habita nosso inconsciente. “Nós, no entanto, temos muito mais grandes trabalhos disponíveis para refrescar nossas memórias do que o que os grandes museus poderiam reunir” (MALRAUX apud LOMBARDI, 2007, p. 64). Sob esta ideia, há muitos 43
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referenciais possíveis para ter presentes nesta reflexão sobre as imagens que venho produzindo. Apontarei alguns que me acompanham na trajetória de forma direta e me ajudam a refletir sobre esta obra. Robert Hausser Quando comecei a fazer as fotos que hoje constituem o projeto e as mostrei para Pep Mata, meu orientador, ele rapidamente perguntou se conhecia Robert Hausser, fotógrafo alemão nascido em 1924 e com uma produção que ganha força depois da Segunda Guerra Mundial. Nunca havia visto suas imagens e me impressionou a imediata conexão visual e o diálogo que havia entre nossas fotografias. A partir disso, fiz um percurso por sua obra e vi que havia utilizado algumas estratégias que estão presentes na sua obra, entre elas o isolamento central de um objeto e a opção pelo preto e branco, com fortes claros e escuros. A atmosfera de solidão e introspecção nas fotografias de Hausser foram importantes para que pudesse entender que, dentro da construção 44
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de uma narrativa que seja forte e coerente, é necessário bastante disciplina para não se distrair pelo caminho. Neste sentido, a repetição do enquadramento foi um dos desafios que tive. Nas imagens de “A foto que falta”, há um elemento central que é deslocado de seu sentido mundano para se converter em símbolo, passando a adquirir novos significados. Um silêncio barulhento se impõe. O espaço é de reflexão e, tal qual a vida, de tensão. Não me interessa romper por completo com o referente, mas fazer com que, a partir dele, surja uma atmosfera particular. Haüsser é um dos grandes fotógrafos alemães do pós-guerra e, enquanto fotografa o país, produz uma série de imagens com forte carga subjetiva e que transcendem o referente. As fotos que faço, em certa medida, são autorretratos e este é outro diálogo que estabeleço com Haüsser. Ainda que meu rosto ou meu corpo não estejam presentes na imagem, tenho a sensação, ao contemplá-las, que cada elemento surge como se estivesse posando para mim e, simultaneamente, fosse eu a que posasse em cada fotografia. Humberto Rivas Quando conheci a obra de Humberto Rivas, imediatamente me surpreendi por ver exposto de maneira explícita algo que percebo em suas imagens e que também busco nas minhas: este jogo entre presenças e ausências, entre temporalidades diversas e a sensação de que algo ocorreu ou ocorrerá em breve na imagem. O fotógrafo nasceu em Buenos Aires, em 1937, e chegou em Barcelona em 1976, fugindo do golpe militar na Argentina. Quase no final da elaboração do trabalho final do mestrado, encontrei um documentário da Televisão Espanhola8, rodado em 1999, em que o definem como um “caçador de ausências”. Outra coincidência que descobri na pesquisa e me trouxe uma alegria boba é a admiração que também teve por Fernando Pessoa, poeta português que conheci aos treze anos. Alberto Caeiro, o guardador de rebanhos, e Álvaro de Campos, o engenheiro metafísico, são dois dos heterônimos que sempre tive presentes ao longo dos anos. Outro aspecto que me aproximou dele é a paixão pelo retrato. Ainda que tenha seguido por outro caminho, uma das coisas que mais me emociona dentro da fotografia é a oportunidade de fotografar pessoas. A 45
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conexão com o argentino foi intensa. Tem uma série de retratos de gente com olhos fechados e, há alguns meses, antes de conhecê-lo, escrevi um texto sobre como me interessa esse gesto em uma imagem: Gosto de olhá-lo enquanto não me vê. Se nesse instante ele é mais dele mesmo que do mundo, gosto de observá-lo dessa forma. Sem moral da história, sem final, sem palavra bonita. O olhar que não enxergo, nem me olha, ajuda a respirar por alguns segundos. Não com fôlego, mas com um sorriso desses simples que a gente desenha no canto da boca, apesar dos cansaços. Tenho a chance de aprender a ver. Enxergar passa a não se definir só pela aptidão fisiológica, mas também através do gesto e do corpo inteiro, sempre tão fragmentado. Para ver, não basta ter olhos. (MEIRELES, 20149).
Miguel Rio Branco10 Filho de um diplomata brasileiro, nasceu em Las Palmas de Gran Canaria, em 1946. É artista visual, pintor, diretor de cinema e fotógrafo. Tem livros intensos que me influenciam, como “Silent Book” (1997), “Você está feliz?” (2012) e “Maldicidades” (2014), com fotos de diversas cidades do mundo, feitas entre 1970 e 2010. Interessa-me a dimensão poética de sua fotografia e a forma como se aproxima de emoções profundas do ser humano, com grande força física e intensidade visual. As relações que constrói através da cor, com seus vermelhos e azuis, também me fascinam. A presença humana na paisagem também é algo que destaco e investigo na obra deste artista. No começo me interessava o caminho da cor para explorar este universo. Como tinha um tempo reduzido para apresentar uma direção, optei pelo preto e branco, posto que a cor necessita mais tempo de pesquisa para que surja como elemento importante no discurso, e não como uma distração que retire potência à imagem. O preto e branco também segue sendo bastante utilizado no documental tradicional, então é uma forma de aproximação e também de subversão. Além disso, esta escolha pode dar mais ênfase ao que diz Marías sobre a penumbra e este “vagaroso universo das narrativas”. Como trabalho com fotografia digital, o processo se relaciona ao de um pintor que vai provando tintas e pinceladas diferentes, a partir de uma possibilidade infinita de materialização formal. 46
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Miguel Rio Branco é uma forte referência de criatividade e singularidade na construção de suas narrativas visuais. A forma como volta aos arquivos para criar novas histórias me interessa. A potência dos seus livros, a forma como estão editados. Será fundamental mergulhar ainda mais em suas publicações quando começar a transformar este projeto em um fotolivro. O realismo mágico de Gabriel García Márquez Neste projeto, busquei também uma aproximação da ideia de “realismo mágico”, termo usado principalmente para identificar um movimento na literatura latino-americana da segunda metade do século XX. O realismo mágico ganhou força em um continente que atravessou violentos processos de colonização e entrou em um período de fortes ditaduras militares. Tinha como uma de suas principais características apresentar episódios fantásticos como algo comum, incorporado ao cotidiano de seus personagens. Gabriel García Márquez, escritor e jornalista, foi um dos principais representantes desta escola literária. 47
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O livro “Cem anos de solidão”, publicado em 1967, é fundamental dentro do realismo mágico. A saga dos Buendía desde a fundação de Macondo, esta cidade mítica da literatura mundial, está cheia de acontecimentos sobrenaturais que, dentro da narrativa, passam a compor o imaginário e surgem entrelaçadas aos dramas, à criatividade e às estratégias de sobrevivência dos personagens. O Aureliano que nasce de olhos abertos e adivinha futuros. Mauricio Babilônia, aquele que seduz a Meme Buendia e espalha borboletas amarelas por onde passa, a centenária Úrsula que passeia pelos anos com lucidez. Melquíades, o cigano que volta da morte e seduz o patriarca sonhador, José Arcadio Buendia, com suas invenções. A peste da insônia, os dezessete Aurelianos com uma cruz de cinzas na testa e tantas outras histórias que misturam os dias banais aos amores e paixões, às guerras. O escritor, em seu discurso para receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982, falou da sua compreensão de América Latina e da relação do continente com a ficção: Eu me atrevo a pensar que é esta realidade descomunal, e não só a sua expressão literária, que este ano mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade que não é a do papel, mas que vive conosco e determina cada instante de nossas incontáveis mortes cotidianas, e que sustenta um manancial de criação insaciável, pleno de desdita e de beleza, e do qual este colombiano errante e nostálgico não passa de uma cifra assinalada pela sorte. Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos nós, criaturas daquela realidade desaforada, tivemos de pedir muito pouco à imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável. Este é, amigos, o nó da nossa solidão. (...) Diante da opressão, do saqueio e do abandono, nossa resposta é a vida. Nem os dilúvios, nem as pestes, nem a fome, nem os cataclismos, nem mesmo as guerras eternas através dos séculos e séculos conseguiram reduzir a vantagem tenaz da vida sobre a morte. (MÁRQUEZ, 2012, p. 9-11)
Investigo atentamente essa “vantagem tenaz da vida sobre a morte”. As fotos são um espaço de resistência. Se há uma tensão, há também 48
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espaço para o poético, para recuperar o fôlego em um gesto que inventa o mundo. Tenho muito presente esse nó citado por Garcia Márquez. Mais do que me fechar “objetivamente” em um tema, busquei perceber e dar forma a um olhar. Para além do tom de denúncia do fotojornalismo, persegui os pequenos vaga-lumes de Didi-Huberman (2011). Gosto de pensar que A foto que falta é um projeto em andamento. Um dia poderá tomar a forma de livro, após outros caminhos e mergulhos. Ainda que não tenha ido à montanha, fui bastante eremita durante alguns meses. Mudar de país foi um exercício parecido com o do geólogo francês Sylvain Tesson (2014), que foi ao inverno da Rússia experimentar a solidão. Sobre a escolha, escreve que “um simples olhar ao horizonte me convence da força da minha escolha: esta cabana, esta vida. Não sei se a beleza salvará o mundo. Salva minha tarde” (TESSON, 2014, p.76). Também não sei se a beleza e a fotografia salvarão o mundo, mas têm salvado meus dias. Um após o outro.
... 1 O texto faz parte de reflexões desenvolvidas na minha dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação Criação Artística Contemporânea, da Faculdade de Belas Artes, da Universidade de Barcelona (ES), em 2015. 2 Famoso verso do poeta espanhol Antonio Machado (1875-1939), publicado no livro Campos de Castilla, de 1912. Tradução da autora: Caminhante, não há caminho. O caminho se faz ao andar. 3 Professor da Universidade de Barcelona e pesquisador do campo de Walking Art. É fotógrafo, montanhista e foi meu orientador durante o mestrado. Para conferir seu trabalho: http://pepmata.com 4 Estas fotos participaram de três exposições coletivas: “Baix.Traç.Walk.2015”, na Masia de Can Comas, dentro do Parque Agrário do Baix Llobregat, e “Mapes Des-Orientats”, no Centro Cívico Cívic Pere Pruna, em Barcelona. As duas exposições tinham como argumento as experiências de deriva... Também foi selecionado para a projeção organizada pelo Olhavê, de Alexandre Belém e Georgia Quintas, no Festival de Fotografia de Tiradentes (2015). 5 Exploração urbana dos subúrbios de Nova Jersey, nos Estados Unidos, em 1967. A primeira exposição foi em Nova York e foi exibido um mapa em negativo, Negative Map Showing Region of Monuments along the Passaic River; além de 24 fotografias em preto e branco que representam os monumentos de Passaic. No entanto, não se trata de uma exposição apenas de fotografia. Na verdade, os monumentos são estranhos objetos tirados de uma paisagem da periferia. O convite era claro: o público deveria alugar um carro e percorrer junto com o autor-descobridor-guia o rio Passaic, com a finalidade de
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explorar “uma terra esquecida pelo tempo” (CARERI, 2002). 6 “El Raval y la Esfinge” foi apresentado na disciplina “Barcelona: a cidade como texto Derivas, mapas sonoros e cartografias sociais”, sob a orientação do professor Dr. Josep Cerdà, que também tinha a deriva como parte do processo criativo. O formato final da apresentação dialogava com a cartografia: tínhamos que montar um mapa dentro de um formato A3, comum a todos os projetos desenvolvidos. 7 Segundo o Conselho Cidadão para a Segurança Pública e a Justiça Penal, organização não governamental com sede no México, Fortaleza registrou 2.541 homicídios em 2014 e obteve uma taxa de 66,55 mortes desse tipo para cada 100 mil habitantes. Disponível em: <http://migre.me/r1cpZ> Acesso em: 01 de ago. 2015. 8 Disponível em: <http://migre.me/r1M6x>. Acceso em: 02 de ago. 2015. 9 MEIRELES, Iana S. C. Para ver sem o olhar. A Pulga, jun. 2014. Disponível em: <http://apulga.com/para-ver-sem-o-olhar/>. Acesso em: 02 ago. 2015. 10 Site da artista com obras, livros e vídeo. Disponível em: <http://www.miguelriobranco.com.br> Acesso em: 05 ago. 2015. _ CALVINO, Í. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. CARERI, F. Walkscapes - El andar como práctica estética. Barcelona: Gustavo Gili, 2002. DIDI-HUBERMAN, G. (2012). Quando as imagens tocam o real. Pós: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes da escola de Belas Artes da UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 204-2019, nov. 2012. DIDI-HUBERMAN, G. A sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010. DO RIO, J. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. FONTCUBERTA, J. La Cámara de Pandora. Barcelona: Gustavo Gili, 2010. FONTCUBERTA, J. El beso de Judas - Fotografía y verdad. Barcelona: Gustavo Gili, 2002. GARCÍA MÁRQUEZ, G. Cem anos de Solidão. Rio de Janeiro: Record, 2012. GROS, F. (2014). Andar, una filosofía. Madrid: Taurus, 2014. LOMBARDI, Kátia H. Documentário imaginário. Novas potencialidades na fotografia documental contemporânea. 2007. 172f. Dissertação. (Mestrado em Comunicação Social) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Belo Horizonte, 2007. MARÍAS, J. Los enamoramientos. Madrid: Alfaguara, 2011.RANCIÈRE, J. . El espectador emancipado. Buenos Aires, Manantial, 2010. RANCIÈRE, J. El reparto de lo sensible - estética y política. Santiago: Lom Ediciones, 2009. RIO BRANCO, M. Você está feliz? São Paulo: Cosac Naify, 2012. RIO BRANCO, M. Silent Book. São Paulo: Cosac Naify, 2012. RIO BRANCO, M. Entre os olhos e o deserto. São Paulo: Cosac Naify, 2001. RIVAS, H. Huellas. Barcelona: Generalitat de Catalunya, 2006. TESSON, S. La vida simple. Madrid: Alfaguara, 2013.
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Osmar Gonçalves Jornalista, crítica de fotografia Docente do Programa de Mestrado da Faculdade Casper Líbero
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Estética da Fotografia:
Um diálogo entre Benjamin e Flusser1
Em suas teses sobre o conceito de história, Walter Benjamin nos diz que o passado costuma trazer consigo um índice misterioso que o impele à redenção. Mesmo inconscientemente, somos tocados por um sopro de ar que foi respirado antes, por sonhos, ideias, ecos de vozes que já emudeceram. Se assim é, nos adverte o filósofo e teólogo alemão: “existe um encontro secreto marcado entre as gerações” (BENJAMIN, 1996, p. 223). Uma série de ressonâncias, interseções, afinidades eletivas que aproximam épocas e mentalidades distintas. Pois bem. Quando lemos, uma após a outra, as obras de Walter Benjamin e Vilém Flusser é difícil não pensarmos nesse sopro de ar que persiste no tempo, nos ecos que reverberam de um lado ao outro, nos fios invisíveis que os atravessam e aproximam. Do interesse pela tradução – atividade que ambos desenvolveram durante toda a vida – ao estudo da linguagem, do fascínio pela obra de Franz Kafka à análise das imagens técnicas, da crítica da cultura à filosofia da mídia. De fato, são muitas as ressonâncias, os pontos de contato que aproximam os dois pensadores. Tradutores, críticos, ensaístas, Benjamin e Flusser são intelectuais difíceis de enquadrar em campos disciplinares, são teóricos essencialmente nômades, transversais. Am52
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bos operam na fronteira, no interstício e estão sempre em trânsito, estabelecendo pontes entre diferentes línguas e culturas, entre disciplinas e campos do saber os mais diversos. Contudo, nada os aproxima mais do que a aposta que fazem em um modo de escrita e pensamento arriscado, descontínuo, enigmático. Um modo de pensar que desarticula as referências, que subverte os padrões instituídos – as convenções balizadoras do texto acadêmico – investindo na dimensão sensível do conhecimento, apostando no poder de invenção e descoberta tanto da poesia quanto da ficção2. Trata-se, sem dúvida, de um estilo extremamente ousado, original, um modo de pensar que lhes rendeu diversas críticas ao longo dos anos, sendo visto muitas vezes como dispersivo e, até mesmo, carente de método3. Desde o início, entretanto, o que estava em jogo era outra forma de se pensar a escrita e a linguagem filosófica, um modo em que ela não é tomada apenas como instrumento (mero veículo de comunicação), mas em seu caráter essencialmente expressivo e criador. Linguagem como um corpo vivo, portanto, como um órgão que tem seu peso, sua espessura e que pode (e deve) assumir diferentes aspectos, formatos, modulações, dependendo dos objetos e das experiências que procura revelar4. Assim, contra uma concepção instrumental/cartesiana da linguagem, Benjamin e Flusser defendiam um pensamento disruptivo, fragmentário, que aposta na deriva e na errância, que se abre ao jogo do encontro e do acaso, procedendo não como um argumento linear – uma escritura sistemática, hierarquizante – mas como um evento progressivo, uma espécie de meditação peripatética, uma flânerie na qual tudo o que é encontrado por acaso pelo caminho pode tornar-se uma direção potencial para o pensamento em que as imagens, os afetos e as sensações valem tanto quanto os conceitos. Salvar os fenômenos, portanto, manter a riqueza e a singularidade dos objetos: eis uma preocupação fundamental de ambos os filósofos. Neles, é possível identificar, com efeito, uma atenção especial às próprias coisas, um respeito singular aos objetos, algo que Goethe chamou de “delicado empirismo” (GOETHE apud BENJAMIN, 1996, p. 103). Isto é, uma construção de pensamento que se caracteriza pelo cuidado com os detalhes, com os extremos, com as particularidades do objeto. 53
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Trata-se, no fundo, de um pensamento estético, uma escrita que se deixa contaminar a cada vez por seus objetos e que procura permanecer na superfície, rente aos fenômenos, pois não acredita que a “verdade” se encontre por trás das coisas – sob uma espécie de véu de aparências que deveríamos perfurar – mas nas próprias coisas, no detalhe, no universo micrológico. Diante de um conhecimento científico e filosófico que se baseia, na maioria das vezes, na abstração, Benjamin e Flusser procuram preservar um contato mais imediato com os fenômenos, um comportamento mimético que mantenha toda a riqueza e a imediatez da experiência sensível. Segundo Adorno, esse modo de escrita tem um caráter essencialmente aberto, processual e se estrutura de modo ensaístico e/ou experimental. Em sua célebre abordagem O ensaio como forma, o filósofo alemão afirma que a escrita ensaística é indissociável da experiência sensível e subjetiva do autor, e que ela só se produz quando consegue guardar “o peso do aqui agora das sensações” (RODRIGUES, 2003, p. 167). Atento, assim, às particularidades do fenômeno, imerso na desmesura e na desproporção da experiência, o ensaio tende à imanência, aposta no saber sensível, em um modo de escritura que contemple não apenas a tessitura abstrata dos conceitos, mas a matéria heterogênea e palpável dos sentidos. Pensamento imersivo e sensorial, o ensaio é também incompleto, lacunar e se move segundo um impulso de aventura, um impulso não sistemático. Ele é da ordem da deriva e da errância: está mais interessado em se perder e errar sobre o mundo do que em buscar supostas “verdades” ou certezas acerca do mundo. Por isso, Benjamin nos diz, logo no início do prefácio à Origem do drama barroco alemão, que “método é desvio, é caminho indireto” (BENJAMIN, 1984, p. 51)5 e Flusser afirma, nos Writtings, que o mais interessante no processo de conhecimento “não é o resultado, a hipótese confirmada ou refutada. O interessante é o que se mostra ao longo da experiência empreendida” (FLUSSER, 1979, p. 138). São os aspectos insuspeitos, inesperados, os diversos achados que aparecerem ao longo do processo. Neste ponto, gostaríamos de colocar uma questão que, embora paradoxal, nos parece incontornável, fundamental. Trata-se de saber até 54
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que ponto ou em que medida esse pensamento fragmentado e disruptivo, pensamento que se dá “aos solavancos e aos pedaços” (ADORNO, 1986, p. 180), que é atento às próprias coisas, à superfície e à materialidade dos objetos, não seria a expressão mesma de um pensar fotográfico, de uma potência ou uma modulação fotográfica do pensamento? Ou, dito de outro modo, até que ponto a filosofia de Benjamin e Flusser não mimetizou o modus operandi da fotografia, sua potência ou sua qualidade de pensamento? Ora, uma das lições que a Filosofia da técnica nos ensinou – essa rica linhagem inaugurada por pensadores como Georg Simmel, Siegfried Kracauer, o próprio Benjamin e seguida posteriormente por Marshall McLuhan, Flusser, Hans U. Gumbrecht, entre outros – é que existe uma interdependência entre o pensamento e as mídias. Estas últimas não são subordinadas ao mundo conceitual, mas, ao contrário, impõem condições à percepção, ao saber e ao conhecimento. As mídias, sabemos hoje, desencadeiam mutações perceptivas profundas, transformam nossa percepção do tempo e do espaço, mudam radicalmente nosso modo de viver e de pensar. Ao ler as obras de Benjamin e Flusser, a impressão que temos é de que a fotografia exerceu aí sua força, provocou uma dobra, fez-se pensamento. Ou, em modo inverso, o pensamento de ambos se tornou em certo sentido fotográfico. Flusser o percebeu com clareza quando disse que é possível pensar hoje com imagens do mesmo modo com que se pensava e filosofava antes com palavras. “A fotografia é a filosofia de nosso tempo”, afirmou certa vez o pensador tcheco-brasileiro. “El gesto del fotografo es um gesto filosófico; o, dicho de otro modo: desde que se invento la fotografia es posible filosofar no sólo em el medio ambiente de las palabras, sino también en el de las fotografías.” (FLUSSER, 1994, p. 104). De fato, a fotografia inaugura uma nova modalidade discursiva, outra forma de escrita fundada já não mais na palavra, mas em uma sintaxe composta por imagens. Aos olhos de Flusser (1998), o surgimento do aparelho fotográfico teria mesmo um caráter revolucionário comparado apenas à invenção da escrita, pois a fotografia teria a capacidade singular de reunificar o pensamento, de libertar-nos do império do 55
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conceitual, de uma cultura excessivamente textolátrica e logocêntrica, nos ensinando a pensar por imagens. Um pensamento que tem suas próprias qualidades estéticas, ontológicas e que não pode ser recuperado pela linguagem verbal. Talvez por isso Benjamin e Flusser tenham não apenas teorizado sobre a fotografia – investigando sua importância estética, política, epistemológica – mas procurado pôr em prática suas metamorfoses perceptivas, transformando em escrita e pensamento um modo de ser essencialmente fragmentário, disruptivo, imagético II. “O que torna as primeiras fotografias tão incomparáveis talvez seja isto: elas representam a primeira imagem do encontro entre a máquina e o homem”. “Depois de mergulharmos suficientemente fundo em imagens assim, percebemos que também aqui os extremos se tocam: a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá para nós”. Walter Benjamin
Não há dúvida de que a fotografia ocupa um lugar central na arquitetura filosófica de Benjamin e Flusser. Dentre os diversos dispositivos e imagens técnicas sobre os quais escreveram – como o panorama, o estereoscópio, o cinema, a televisão e o vídeo – ela certamente ocupa um lugar de destaque. Talvez porque a fotografia opere um corte fundamental, uma ruptura paradigmática não só no universo das imagens (na ontologia do visual), mas na nossa própria maneira de ser e de estar no mundo. A partir da invenção da fotografia, com efeito, passamos a viver em um mundo povoado cada vez mais por máquinas e dispositivos de ordem simbólica. Esses aparatos se multiplicam e se instalam ao nosso redor formando uma espécie de cultura técnica, uma enorme multitude de sistemas maquínicos que incide sobre todas as formas de produção de imagens, afetos e enunciados. A tal ponto, e com tal intensidade, que hoje é praticamente impossível pensarmos o fenômeno da comunicação e da experiência estética sem a mediação dos dispositivos tecnológicos. A criação artística e nossa própria vida passaram a ser 56
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mediados, de forma sempre mais intensa, pelos aparelhos e instrumentos pós-industriais. Neste ponto, cabe perguntar qual seria o papel da fotografia nesse processo. Ora, o dispositivo fotográfico – tal como o percebeu Benjamin e teorizou posteriormente Flusser – é, sem dúvida nenhuma, o modelo, o protótipo, a mãe de todos os aparelhos, um schema ainda rústico e insipiente dos aparatos simbólicos que surgiriam ao longo do século XX 6. Daí seu lugar de destaque na estética filosófica de ambos os pensadores. Para eles, a máquina fotográfica não era apenas um meio capaz de produzir novos tipos de imagens (mecânicas, reprodutíveis, multiplicáveis), mas um modelo – o mais contundente, o mais original – para o entendimento do mundo contemporâneo, mundo este marcado pela predominância dos aparelhos e que tende, de forma crescente, a viver e se organizar em função deles. Antes de mais nada, porém, é preciso notar que a fotografia aparece aos olhos de ambos como uma imagem meio mágica, uma criação fascinante que nasce envolta em uma aura de magia e mistério. Nas palavras de Benjamin, a fotografia surge na primeira metade do século XIX como uma “grande e misteriosa experiência”, como um fenômeno de novo tipo7. A capacidade que o aparelho fotográfico possui de gerar uma imagem do mundo visível com um “aspecto tão vivo e tão verídico como a própria natureza” a partir de um simples estalar de dedos, de um gesto brusco – um “disparo” na terminologia fotográfica – lhes parecia uma experiência fenomenal. Experiência para a qual o termo caixa-preta de Flusser oferece uma excelente metáfora, na medida em que remete precisamente ao que há de incompreensível e impenetrável nesse processo. Vale lembrar que Susan Sontag (1990), em seus primeiros ensaios, já apontava o aparelho fotográfico como “o mais misterioso de todos os objetos que compõem [...] o ambiente que reconhecemos como moderno” (SONTAG, 1990, p. 03). A fotografia, sabemos, é um tipo de imagem essencialmente nova, uma imagem que nasce de uma conexão física e existencial com o “real”. Trata-se de algo inédito na história da arte. Pois nela, para além do gênio artístico, para além de toda perícia e/ou estilo do fotógrafo, 57
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há sempre algo do real que pulsa, que persiste, provoca nosso olhar. E nós, espectadores, sejamos amantes ou não da fotografia, sejamos técnicos ou artistas, profissionais ou amadores, sentimos [...] a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem. [...] Algo que não pode ser silenciado, que reclama com insistência o nome daquela que viveu ali, que também na foto é real, e que não quer extinguir-se na arte (BENJAMIN, 1996, p. 93-94).
Talvez, por isso, as fotografias sejam tão frequentemente comparadas a espectros ou fantasmas. Ambos são seres limiares, ambos vivem no interstício, na fronteira entre passado e presente, entre vivo e morto – uma existência singular, a meio caminho entre a “coisa” (o real) e a representação8. De fato, as fotografias se apresentam a nós menos como declarações sobre o mundo do que como pedaços do mundo – miniaturas da realidade, na feliz expressão de Sontag. São como vestígios, assombrações ou, como disse certa vez Giorgio Agamben (2007), são “significantes instáveis”, representações em estado puro. Contudo, apesar dessa qualidade única e singular da imagem fotográfica, a fotografia não pode ser reduzida apenas ao seu caráter sígnico, pois trata-se, antes de tudo, de um novo meio, um aparato que põe em jogo uma série de metamorfoses perceptivas, que instaura novos modos de sentir e perceber o mundo, reconfigurando profundamente nossa relação com o visível (e com o invisível que lhe é correlato). Com efeito, a fotografia não para de expandir, de fazer nascer o visível, nos permitindo ver e conhecer mundos até então desconhecidos, inimagináveis. Como percebeu Benjamin, para além dos infinitos debates em torno de seu estatuto artístico ou das questões acerca de sua qualidade representativa, a fotografia deveria ser compreendida em seu valor ontológico, isto é, como um meio que desvela, descobre, “cria” um novo real, uma realidade jamais vista antes, simplesmente, porque é invisível a olho nu. De acordo com Benjamin, isso se deve ao fato de que:
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A natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude, através de seus recursos auxiliares: câmera lenta, ampliação (BENJAMIN, 1996, p. 94).
Com seus inúmeros recursos – suas imersões e emersões, suas interrupções, paradas, efeitos de aceleração e rarefação do tempo – a câmera nos apresenta um campo de experiências visuais que foge ao espectro de uma percepção sensível “normal”. O universo do muito pequeno ou muito rápido, de movimentos imprecisos, improváveis, toda uma vida minúscula que pulsa nas pequenas coisas, nos pequenos gestos, em micro-acontecimentos, a câmera consegue tornar grande e formulável, abrindo nossos olhos para experiências que habitam uma faixa do espectro luminoso muito aquém (ou além) daquelas captadas pelo olho humano. Do infinitamente pequeno ao infinitamente grande, portanto, um novo universo se “cria”, se desvela aos nossos olhos graças à intervenção da máquina fotográfica. Como dizia Paul Klee, agora não se trata mais de “representar o visível, mas tornar visível” (KLEE apud PARENTE, 2001, p. 14). III. “A filosofia da fotografia é necessária porque é uma reflexão sobre as possibilidades de se viver livremente num mundo programado por aparelhos”. Vilém Flusser
Seguindo a linha iniciada por Benjamin, Flusser não se interessa apenas pela imagem, pelo signo fotográfico em si. Na contramão de uma análise semiológica – nos moldes da Ontologia da Imagem Fotográfica, de André Bazin ou da A Câmera Clara, de Roland Barthes, Flusser deseja pensar o dispositivo, a materialidade, a constituição técnica, construtiva e conceitual da fotografia. Quer investigá-la, por assim dizer, por dentro! 59
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Para o filósofo tcheco-brasileiro, a máquina fotográfica é um tipo novo de instrumento, algo que difere radicalmente dos instrumentos tradicionais (como o pincel, o cavalete, os pigmentos...), usados até então no processo de construção das imagens. Trata-se de um instrumento pós-industrial, um aparelho, não apenas uma ferramenta ou utensílio, mas um “brinquedo” complexo e sofisticado criado para simular nosso pensamento, para dar forma material a processos mentais9. Flusser chama esse aparelho de caixa-preta no intuito de remeter às ideias de magia e mistério. Isto porque esses são objetos de rara complexidade, objetos cujo funcionamento escapa aos usuários. Quem os utiliza sabe apenas confusamente o que se passa em seu interior, conhece apenas seu input e output. Sabe muitas vezes como operá-los, como disparar seus comandos, mas não entende o que se passa verdadeiramente ali. Por isso, Flusser vai dizer que a tarefa de todo crítico, artista e/ou filósofo das imagens é promover o branqueamento dessa caixa-preta. É conhecer o que se passa ali dentro, saber desmontar e remontar a imagem, saber desconstruí-la para refazê-la. Trata-se, em outras palavras, de não se tornar refém do aparelho e de seus programas – programas não apenas técnicos como normalmente se pensa, mas também estéticos, éticos, políticos. Trata-se de não ser uma extensão do aparelho ou, na feliz expressão de Flusser, um “fotógrafo do instrumento”10. Deste modo, na era das máquinas, em uma cultura técnica em que a produção artística e a nossa própria vida são cada vez mais mediadas por dispositivos de toda ordem, é essa relação crítica e subversiva com os aparelhos que vai estabelecer para Flusser a diferença entre o verdadeiro criador, de um lado, e o mero “funcionário”, de outro: entre aqueles que desejam restabelecer a questão da liberdade, o lugar do lúdico e do imaginário, e aqueles que simplesmente endossam as normas e a funcionalidade prevista pelos aparelhos. Categoria evidentemente mais difundida, o funcionário é aquele que consegue dar conta dos receituários e das bulas dos fabricantes, que compreende bem os procedimentos, as técnicas, mas que trabalha dentro do programa, nos limites impostos por este, respeitando suas normas e prescrições. Nas palavras de Rubens Fernandes Junior:
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O “funcionário” (…) é aquele que repete à exaustão suas tarefas, com a exatidão prevista tanto pela própria programação das suas tarefas, como pela imposição do sistema. Ele (…) não consegue compreender a finalidade do aparelho, ou seja, não consegue aparelhá-lo, apenas produz ou reproduz as potencialidades inscritas no aparelho, que é grande, mas limitada (FERNANDES JUNIOR, 2006, p. 14).
O “funcionário”, portanto, essa figura emblemática do capitalismo pós-industrial, respeita as regras pré-estabelecidas, faz cumprir o programa – o que conduz, evidentemente, a uma padronização dos resultados, à homogeneidade visual repetida à exaustão. Talvez, por isso, Deleuze (1990) coloque a necessidade de nos perguntarmos hoje se, realmente, vivemos a civilização das imagens ou a civilização dos clichês. Pois estes últimos estão por toda parte, invadem o exterior e o interior dos homens, se multiplicam em enxurrada nas redes telemáticas, ameaçando fazer dos homens meros instrumentos de sua reprodução incessante. Os clichês – as imagens-funcionárias, na terminologia flusseriana – são percepções já prontas, representações programadas, preestabelecidas, conjuntos estáveis, imóveis, que circulam como fantasmas do exterior ao interior dos homens, impedindo-nos de ver o que vem de fora, enrijecendo nossa percepção, produzindo uma espécie de ortopedização do olhar. Todos os dias somos bombardeados pelos jornais, ilustrações, pelas imagens-cinema, imagens-televisão, clichês que se amontam aos nossos pés, tornando cada vez mais difícil, mais dramática a tarefa do verdadeiro criador. Afinal, como extrair hoje uma verdadeira imagem dos clichês? Como nos reconectar novamente com o mundo; restituir a força revelatória e expressiva das imagens? Como desautomatizar a percepção para que possamos ver de novo, com novos olhos, com os olhos ingênuos (ou nem tanto) de uma criança? Esse é o desafio e a tarefa do verdadeiro criador, aquele que não se submete aos programas, que não endossa a produtividade programada pelos aparelhos, que opera nas brechas, nas dobras, subvertendo os códigos, desarticulando as referências, rompendo com os modelos
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instituídos. O criador se lança na aventura do imprevisto, no jogo do acaso, procura produzir imagens novas e inesperadas, imagens que escapem aos automatismos, à funcionalidade, ao perigo de operarmos conforme as normas e os programas de toda ordem. Ao invés de endossar as categorias previstas, portanto, ele inventa seus próprios procedimentos, insere elementos não previstos ao longo do processo, cria novos dispositivos. Em uma palavra, ele joga contra o aparelho. Penetra em seu interior e extrai dali imagens imprevistas– imagens para as quais ele não estava originalmente programado. Ao fazer isso, o criador consegue restabelecer a questão da liberdade – o lugar da invenção e do lúdico, o espaço da imaginação – em um mundo marcado pelo automatismo generalizado, pela repetição cega dos programas, a multiplicação insistente e insidiosa dos clichês. IV. “Nosso desafio não é uma sociedade de deuses ou de artistas inspirados, mas sim uma sociedade de jogadores”. Vilém Flusser
Vem daí a importância do conceito de jogo na estética filosófica de Flusser. O jogo, como sabemos, é uma atividade lúdica que se desenvolve de maneira livre e desinteressada. Trata-se de um ritual “mágico”, um exercício incontrolável cuja principal característica é não ter finalidade, não ter alvo ou meta, além daquela estipulada pelo próprio jogo, pelo prazer livre e desinteressado de interagir com as formas, com o movimento, com o outro e o mundo. Por isso, o poeta e filósofo alemão Friedrich Schiller vai dizer que o jogo é puro movimento, é “a realização do movimento como tal”, um estado de pura liberdade. E acrescenta: jogo é um impulso que “se exerce acima das necessidades naturais da vida e independentemente dos interesses práticos. É uma manifestação de ordem espiritual, que se apresenta, sobretudo, como jogo estético” (SCHILLER apud NUNES, 2002, p. 55). Finalidade sem fim, portanto, pura gratuidade, a atividade lúdica do brincar é realizada pelo simples prazer que proporciona e deve ser compreendida como um estado do homem, uma qualidade definidora 62
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do humano – momento em que este se apresenta de maneira correlata à liberdade, relacionando-se com esta em seu mais alto grau. Pois bem. É no espaço lúdico do jogo, no que ele guarda de atividade livre e desinteressada, no que há nele também de comportamento inventivo e irreverente, que podemos encontrar novamente a experiência do imprevisto, do improvável, a afirmação libertária e criadora do imaginário, a capacidade de invenção em um mundo que se encontra, cada vez mais, “aparelhado”, programado, mundo onde os roteiros, as normas, os automatismos de toda ordem avançam sistematicamente sobre todas as esferas da vida11. E, neste ponto, os dois pensadores novamente se encontram, pois Benjamin via na experiência do jogo, na vivência do lúdico, da brincadeira, a segunda metade da arte. Para o filósofo alemão, toda atividade artística-mimética se encontra cindida entre duas forças, duas tensões que a impulsionam dialeticamente. De um lado, a busca pela forma, a conquista da bela aparência (Schöner Schein), um interesse que prevaleceu em toda arte clássica do belo. De outro, o impulso ao jogo, à experimentação, à bricolagem, à capacidade de brincar, de se perder, de se colocar no lugar do outro. Em uma longa nota da segunda versão da Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica, Benjamin nos diz que: Aquele que imita só faz a coisa na aparência. Também se pode dizer: essa coisa ele a brinca/representa brincando (spielt). Assim se descobre a polaridade que reina na mimesis. Os dois lados da arte: a aparência e o jogo/a brincadeira (Spiel) estão como dormindo dentro da mimesis, estreitamente dobrados um no outro, tais as duas membranas da semente (BENJAMIN apud GAGNEBIN, 2008, p. 125).
Para Benjamin, essa segunda metade da atividade artístico-mimética tende a prevalecer na arte contemporânea. Desde as vanguardas históricas, com efeito, boa parte das práticas artísticas se oferece ao espectador como acontecimento, performance, dispositivo, como uma experiência a meio caminho entre o jogo, a bricolagem e a experimentação, uma criatividade lúdica e dispersiva da qual, nos diz Gagnebin 63
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(2008), “não se pode garantir o caráter revolucionário, mas que desenha uma outra apreensão do estético” (GAGNEBIN, 2008, p. 122). Aqui, já não se trata mais de evocar a nostalgia da bela aparência, de restaurar uma beleza inacessível, uma imagem aurática– o objeto a ser cultuado, contemplado – mas de instaurar bons encontros, de produzir acontecimentos, criar práticas que se apresentem como um exercício coletivo, como uma experiência ao mesmo tempo estética e política, mais ligada às noções de experimentação e de jogo do que aos arcaicos conceitos de contemplação e de beleza. Nas palavras do próprio Benjamin, “nas obras de arte, o que é acarretado pelo murchar da experiência, pelo declínio da aura, é um ganho formidável para o espaço de jogo (Spiel-Raum)” (BENJAMIN apud GAGNEBIN, 2008, p. 125). Essa dimensão lúdica, esse jogar com e contra o aparelho, nos leva atualmente ao encontro de uma série de obras fotográficas que se colocam em um lugar limítrofe, em uma zona de indiscernibilidade entre linguagens, artes e saberes. Trata-se de obras que repensam o fotográfico, que questionam seus limites, suas fronteiras, tomando a fotografia como um processo a ser reaberto. É o caso das obras de Cássio Vasconcelos, Miguel Rio Branco, Mário Cravo Neto, Kenji Otta, Rosângela Rennó, Cao Guimarães, Eustáquio Neves, entre outros. Não é nosso intuito aqui promover a análise dessas obras, mas apenas apontar para o fato de que elas dificilmente podem ser compreendidas a partir de um pensamento de caráter purista ou ontológico. E esse é o grande mérito dos escritos de Benjamin e Flusser sobre a fotografia. Pois nenhum deles estava interessado em um discurso da especificidade, na defesa de uma ontologia fotográfica. Ao contrário, Benjamim e Flusser sempre pensaram a fotografia de modo fenomenológico, ou seja, como uma mídia em movimento, uma forma em devir, em transformação constante. Fotografia como um organismo em expansão, um campo que se reinventa e se reconstrói a cada nova obra. De fato, a questão primordial para Benjamin e Flusser nunca foi o que é a fotografia; se ela constitui ou não uma forma de arte, se é apenas uma técnica industrial a serviço da ciência ou uma ferramenta poética em prol da fantasia e do imaginário. A questão essencial sempre foi: o que pode a fotografia? Quais são suas potencialidades, suas qualidades estéticas, políticas e epistemológicas? 64
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Para ambos os pensadores, a fotografia foi e continua a ser um meio fundamental, não apenas porque amplia e faz nascer o visível, não apenas porque nos ensina a pensar por imagens, instaurando outra modalidade de pensamento, mas porque nos ajuda a compreender o mundo moderno, mundo este marcado como nunca pela predominância dos aparelhos e de seus programas. Segundo Flusser (2002), a fotografia constitui hoje um lugar de resistência, lugar de uma reflexão-em-ato “sobre a possibilidade de se viver livremente num mundo programado por aparelhos”. Assim, num mundo “aparelhado”, hiperprogramado como nosso, o ato fotográfico representaria uma linha de fuga, talvez a “única revolução possível”, na medida em que é capaz de “apontar o caminho da liberdade” no coração mesmo da técnica, no interior do aparelho (FLUSSER, 2002, p. 82-84). Dito de outro modo, a fotografia seria capaz de instaurar novamente o lugar da invenção e do imaginário, reinserir o lúdico e o novo, por meio do próprio aparelho, apesar da força, insistente e insidiosa dos programas, dos roteiros, dos automatismos de toda ordem. Em suas análises, Flusser vai ainda mais longe ao dizer que no jogo entre a máquina fotográfica e o fotógrafo estariam contidas todas as virtualidades do mundo pós-industrial e que “jogar contra o aparelho”, subverter a máquina, talvez seja atualmente o único exercício de liberdade possível– uma prática a que os fotógrafos, mesmo inconscientemente, já se dedicam há quase duzentos anos.
... 1 Uma versão anterior deste ensaio foi publicada na revista Flusser Studies, n. 15, em maio de 2013. 2 “É preciso fertilizar a ciência com a poesia”, disse certa vez Flusser. E Benjamin, sabemos, queria transpor para o campo da filosofia e da escritura da história, em particular, os métodos criativos das vanguardas artísticas, especialmente as técnicas da colagem e da montagem. “Método deste projeto: montagem literária. Não preciso dizer nada. Somente exibir”, disse o pensador alemão na introdução ao Trabalho das Passagens (BENJAMIN, 2006). 3 São conhecidas, nesse sentido, as acusações de falta de seriedade científica atribuídas frequentemente a Flusser e as severas críticas que Theodor Adorno dirigiu a Benjamin, tendo como resultado último a rejeição de sua tese de livre docência em Frankfurt, em 1925.
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4 Na Dialética Negativa, Adorno fala sobre a capacidade mimética da linguagem, essa qualidade intrínseca de se transformar, de se assemelhar a algo pela via expressiva, retórica e de como o pensamento e a escrita de Benjamin são um caso muito particular dessa concepção. Adorno afirma, por exemplo, que a escrita de Benjamin “adere e se aferra na coisa, como se quisesse transformar-se num tatear, num cheirar, num saborear”. (ADORNO, 1966, p. 63). 5 E, no belíssimo Rua de mão única, ele diz ainda que “saber orientar-se numa cidade não significa muito”, difícil mesmo é “perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta”, isso requer instrução, aprendizado (BENJAMIN, 2000, p. 39-40). 6 Benjamin dizia, por exemplo, que “se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava contido virtualmente na fotografia”. (BENJAMIN, 1996, p.167). E, de forma mais direta, Flusser afirma que “o aparelho fotográfico pode servir de modelo para todos os aparelhos característicos da atualidade e do futuro imediato. Analisá-lo é método eficaz para captar o essencial de todos os aparelhos, desde os gigantescos (como os administrativos) até os minúsculos (como os chips), que se instalam por toda parte”. (FLUSSER, 2002, p. 19). 7 “Depois de mergulharmos suficientemente fundo em imagens assim”, diz Benjamin sobre uma foto de Dauthendey, “percebemos que também aqui os extremos se tocam: a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá para nós”. (BENJAMIN, 1996, p. 94). 8 Não são exatamente signos, portanto, mas algo que se insinua entre, que habita a fronteira, o limite tênue em que a imagem se confunde com seu objeto, a representação com a presença. 9 Cf. a este respeito, o capítulo “Aparelho” da “Filosofia da caixa-preta” (FLUSSER, 2002) e também o livro de Gilbert Simondon (1969) “Du Mode d’existence des objets techniques.” 10 Segundo Flusser, todo programa, por sua própria natureza técnica e construtiva, é limitador, tende a uma certa repetição, ao automatismo. Na realidade, é exatamente isso que o faz funcionar. 11 Ver a este respeito a perspectiva de Jean-Louis Comolli sobre a roteirização crescente de todas as esferas da vida a partir das mídias, da sociedade do espetáculo (COMOLLI, 2008). _ ADORNO, T. W. Negative Dialektik. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1966. ______________ . O ensaio como forma. In: COHN, Gabriel (Org.). Adorno. São Paulo: Ática, 1986. AGAMBEN, G. Infancy and History. Londres: Verso, 2007. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. ________________ . Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. Vol. I. São Paulo: Brasiliense, 1996. _________________ Rua de Mão Única. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas Vol. II. São Paulo: Brasiliense, 2000.
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Thiago Braga Pereira Jornalista, crĂtica de fotografia Docente do Programa de Mestrado da Faculdade Casper LĂbero
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Fotografia Cearense Contemporânea:
Um olhar Sobre a Obra de Beto Skeff e Fernando Jorge
Nas sociedades ocidentais contemporâneas a experiência visual parece suplantar outras formas de sentir e perceber o mundo. Nota-se a ampliação da imagem como mensagem, pois cotidianamente nossa atenção é solicitada pelas mais diversas manifestações imagéticas, sejam elas estáticas ou em movimento. Esse aumento da produção e consumo de imagens se dá especialmente por meio das várias formas de divulgação na internet. Por ano, mais de 100 bilhões de imagens são compartilhadas nas redes sociais, principalmente no Facebook, no Instagram e no Flickr, que ao nos oferecerem uma experiência estética, influenciam diretamente em nossas percepções e gostos. Por isso, torna-se urgente entender o papel que as mesmas desempenham. Desde o surgimento, no início do século XIX, a fotografia esteve cercada de discussões relativas ao modo como ocorre seu processo de produção. Isso porque trouxe uma maneira nova e singular de retratar fatos e acontecimentos, tanto que Benjamin (1992, p. 83) afirma que a fotografia foi “o primeiro meio de reprodução verdadeiramente revolucionário”. Temas como a relação entre a imagem e o seu referente; entre a fotografia e o real; entre o fotógrafo/aparelho/imagem foram – e ainda são – recorrentemente discutidos em teorias das mais diversas 70
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áreas. Assim sendo, a “insaciabilidade do olhar fotográfico”, característica apontada por Sontag (2004) como típica da modernidade, mais do que apresentar respostas prontas, permite questionar cada vez mais a prática fotográfica. Dentro desse contexto, faz-se necessário discutir as bases de produção da imagem fotográfica, visto que, sem um conhecimento prévio e um contato mínimo com a linguagem imagética, não será possível ter acesso a todas as informações e elementos visuais transmitidos; já que o significado da imagem fotográfica é determinado culturalmente, ou seja, não se impõe como evidência direta da realidade, mas depende de um compartilhamento ou aprendizado dos códigos utilizados por cada cultura. Cabe, inicialmente, refletir sobre o conceito de fotografia contemporânea e suas peculiaridades advindas tanto das transformações e aperfeiçoamentos tecnológicos quanto das experimentações ocorridas no campo das artes como um todo e das artes visuais especificamente. Antes de ser um conceito bem definido e acabado, traz em si uma série de discussões que reverberam em sua prática. Apesar de reconhecer “os contornos escorregadios” deste conceito, Entler (2009) entende a fotografia contemporânea como uma postura, mais do que como um procedimento, uma técnica ou uma tendência estilística, ou seja, um posicionamento consciente e crítico diante do próprio meio. Nas palavras do autor: [...] uma atitude menos mistificadora diante da técnica, a consciência sobre os artifícios que afirmam a fotografia como instrumento da ciência e da memória, uma posição crítica com relação à sua história, e o reconhecimento das virtualidades – os diferentes tempos – que coabitam uma imagem que, até então, parecia se esgotar num dado instante do passado (ENTLER, 2009, p.4).
Para Entler (2009), a fotografia contemporânea abraça uma diversidade de formas de produção das imagens, que vão desde a desmaterialização radical até uma nova aproximação com a fotografia documental, estando diante do que chama de “liberdade de ser livre”, ou seja, a liberdade do fotógrafo de experimentar, mas também de voltar a dialogar com a tradição. 71
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Já para Poivert (2015), a fotografia contemporânea pode ser compreendida a partir do final do século XX, quando no momento de uma história comum à arte e à fotografia, existindo diversos cruzamentos e relações transversais entre as práticas artísticas e fotográficas: “um momento onde a flutuação de valores da fotografia se encontra na sua amplitude máxima e sob vertentes diversas” (POIVERT, 2015, p. 141142). O autor sinaliza elementos importantes neste momento da fotografia, como a primazia de uma arte de ideias ao lado de práticas de instalação e de atitude, a fotografia experimental e as imagens performatizadas e, assim como Entler (2009), cita uma vertente de revalorização da fotografia documental. No entanto, percebe-se uma crescente produção de cunho mais autoral na fotografia contemporânea. De acordo com Entler (2013), a noção de “autoral” evidencia aspectos da fotografia que demonstram seu potencial como arte, afirmando a singularidade do olhar; revelando-se como uma forma de expressão pessoal a partir da criação de uma narrativa visual subjetiva. Outro aspecto a destacar dentro do campo da fotografia contemporânea é a criação imagética acompanhada de um trabalho conceitual, em que se tem privilegiado, muitas vezes, os elementos linguísticos face aos aspectos físicos da obra, em que o discurso é a causa mesma da produção da imagem em si e dos sentidos que esta transmite nas experiências comunicativas. Cabe salientar que, ao mesmo tempo em que cresce a produção de imagens que a priori exijam um texto que as acompanhem, em que a apresentação da ideia adquire, muitas vezes, papel central diante da imagem; surge também um movimento contrário a esse tipo de prática e que tem se manifestado na forma de realização de eventos1, demonstrando a simpatia de fotógrafos e artistas à nova abordagem filosófica do “realismo especulativo” (DE PAULA, 2017) e seus desdobramentos no campo artístico, como o retorno à materialidade e à autonomia da obra e a valorização da imagem por ela mesma. Percebe-se, como afirmou Entler (2013), que a fotografia contemporânea torna-se mais livre, pois, ao mesmo tempo em que pode desmaterializar-se em experiências conceituais e experimentais, também pode “assumir aquilo que reencontrou da tradição enquanto procurava seu futuro” (ENTLER, 2013, p. 31). 72
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A partir disso, analisa-se a fotografia cearense contemporânea sendo perceptível a pluralidade de concepções e criações fotográficas. É só dentro deste contexto que compreendemos as escolhas de produção imagética peculiares a cada fotógrafo. No cenário local, há fotógrafos que vêm transformando esse campo e expandindo suas potencialidades, como Silas de Paula, Iana Soares, Tiago Santana, Beto Skeff e Fernando Jorge, por exemplo. De acordo com Reis Filho (2017), um novo regime de visualidades emerge na produção cearense - transformando as formas de se fazer e pensar a fotografia, renovando relações com as artes e os demais campos culturais – como consequência de uma geração cuja formação decorre de cursos práticos na área, de cursos de graduação e pós-graduação voltados aos estudos da imagem e não tanto das redações jornalísticas, como ocorria anteriormente. A escolha de Beto Skeff2 e Fernando Jorge3 foi uma maneira de destacar dois nomes que são expoentes dessa nova geração de fotógrafos citados por Reis Filho (2017) que, além de se dedicarem a uma produção prática - participando de diversas mostras e exposições locais e nacionais – empenham-se também em pensar a fotografia, promovendo e participando de palestras e eventos, ampliando as discussões sobre o fazer fotográfico. Ressalta-se que ambos são professores de fotografia em cursos na cidade de Fortaleza, o que corrobora com esse exercício constante de (re)pensar a fotografia. Tanto Beto Skeff quanto Fernando Jorge são reconhecidos pelos respectivos trabalhos de âmbito mais autoral e conceitual. Beto Skeff alinha-se a uma vertente da fotografia contemporânea mais ligada às experimentações, ao diálogo com outros campos artísticos e a recorrente utilização de técnicas potencializadas pelo desenvolvimento da tecnologia digital, como a sobreposição de imagens e a longa exposição. Além disso, trabalha com duas categorias conceituais próprias poesia visual e lisergia visual – que dão às suas imagens um tom único e certa continuidade, estando presente a ação, o movimento e o ritmo acelerado das metrópoles. Fernando Jorge também possui uma produção fotográfica conceitual e a utiliza como um modo de expressão, ao criar narrativas imagéticas que não se limitam a um registro momentâneo, mas que partem 73
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da idealização de um projeto, que exige uma pesquisa e conhecimento prévio sobre o assunto escolhido, um processo de pós-produção mais elaborado, sem deixar de lado, obviamente, os valores estéticos. Seus trabalhos mais recentes, Memento Mori - contemplado com o Prêmio Chico Albuquerque de Fotografia - e Cococi partem de temas específicos, existindo uma ligação narrativa por meio dos elementos estéticos (como ponto, linha, superfície, luz e sombra, cor, forma e volume). Fernando Jorge expõe uma abordagem experimental da fotografia documental, mesclando fundamentos da fotografia documental clássica com técnicas mais atuais, como a manipulação de filme fotográfico. Percebe-se, também em suas imagens, a ação do tempo: mais pessoal, intimista e que age sobre o ser humano de forma inevitável. Apesar das especificidades, ambos dirigem o olhar para as múltiplas formas de representação na sociedade contemporânea em suas infinitas complexidades e, dentro do contexto cearense, buscam trabalhar com outras linguagens, atualizando e ampliando as discussões sobre a fotografia como forma de expressão. A maneira particular que possuem de produzir suas imagens, emaranhadas de sentimentos, fugindo da repetição, aliada às experimentações, resultam em imagens de significativa qualidade artística e estética. Acrescenta-se ainda como justificativa pela escolha destes dois fotógrafos – aliados à ideia de Max Weber (1968) de que uma “objetividade” total do conhecimento é uma ilusão - uma admiração pelo trabalho de ambos. Flusser (2011) afirma que uma das mais importantes características da fotografia é a possibilidade de materialização de determinado conceito, ou seja, “transformar conceitos em cenas” (FLUSSER, 2011, p. 45). Como mencionado anteriormente, Beto Skeff produz parte de suas imagens com base em duas ferramentas conceituais específicas: poesia visual e lisergia visual. De acordo com o fotógrafo, o primeiro conceito – poesia visual – parte do pressuposto de que as imagens possuem uma linguagem própria, cheia de significado, sendo, portanto, encarregadas de transmitir os sentidos poéticos e evidenciar a expressividade comunicativa da fotografia. Já o conceito de lisergia visual, ainda de acordo com o mesmo, “tem a ver com o lisérgico do ácido, onde a realidade é distorcida e construída a partir de percepções que 74
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estão guardadas no fundo da alma4”. Estas categorias constituem-se em um discurso criado em torno das imagens, como forma de alicerçar e fomentar a produção – uma “fábula”, nas palavras de Soulages (2010), ou seja, “o dizer” que o artista adota e que “sem essa palavra que ele diz a si mesmo e nos diz, o artista não poderia produzir sua obra da maneira como a produz” (SOULAGES, 2010, p. 264). Nota-se que estes conceitos adquirem uma função prático estética, apresentando-se como uma narrativa construída em torno da produção de imagens e que, como toda narrativa, possuem seus limites, mas também indicam a maneira do fotógrafo representar a realidade ao, buscar dentro do cotidiano caótico da cidade, materializá-la por meio de uma composição harmoniosa. Obviamente que as categorias por si só não garantem o encontro da beleza e da poesia no caos, mas estas se relacionam diretamente, ou mesmo, condicionam as escolhas técnicas, estéticas e ideológicas da sua criação imagética. Aliada a estas duas categorias situa-se a utilização de técnicas fotográficas, como a sobreposição de imagens. Esta, que não é exclusiva
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da fotografia, mas que ganha nela contornos próprios, amplia-se na fotografia contemporânea a partir da intensificação do potencial estético associado às tecnologias digitais. Mais do que influência de sua formação em Design, o recorrente uso deste recurso sinaliza um posicionamento particular diante do contexto social no qual está inserido. Nas palavras do fotógrafo: “as coisas sempre são atropeladas; a cidade é muito cheia e isso reflete como eu represento o mundo, a maneira como eu vejo e transformo isso em imagem5”. Percebe-se que as escolhas estéticas refletem diretamente a forma como Beto Skeff interpreta o mundo e o uso da sobreposição torna-se quase uma regra quando retrata o espaço urbano e suas manifestações cotidianas. O recurso da sobreposição de imagens, que parece confuso e caótico, expressa a dinâmica que caracteriza as metrópoles brasileiras. Assim, o caos da vida diária encontra reflexo nas composições de Beto Skeff ao fotografar ruas e avenidas movimentadas de Fortaleza, especialmente o Centro da cidade e seus personagens anônimos, trazendo à tona, cenas do cotidiano, faces desconhecidas, problemas como a utilização desordenada do espaço urbano e locais onde ocorrem múltiplas formas de interação social. No entanto, o estranhamento inicial dá lugar à fruição estética: os diferentes planos que se apresentam, a captação de áreas e momentos que passariam despercebidos à maioria dos transeuntes. A junção disso, em uma mesma composição, reflete bem a cidade, onde tudo está em constante movimento e transformação. Beto Skeff insere-se no movimento mais recente da fotografia cearense de interesse pelo meio urbano e suas contradições e que, mais do que representar o espaço urbano, pretende problematizar, questionar e intervir na cidade, apontando a dimensão não só estética, mas também política de suas imagens. Reis Filho (2017) menciona que: Boa parte dos ensaios produzidos em Fortaleza, nos últimos cinco anos, levanta um debate sobre as transformações radicais pelas quais passa a capital do estado e se dedica a pensar, no fundo, a forma como o projeto de desenvolvimento urbano vem sendo conduzido no Brasil. [...] Eles não apenas representam, mas intervêm na cidade, tomando parte nas disputas
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e dinâmicas políticas pelo uso e pela configuração do espaço urbano. (REIS FILHOS, 2017, p. 115).
O interesse pelo cotidiano, apesar de já existir na fotografia, cresce exponencialmente na fotografia contemporânea - como nos mostra Rancière (2003) ao afirmar que “na virada dos anos 1920/1930 principalmente, o destino da fotografia ligou-se a sua vocação de registrar qualquer acontecimento insignificante, de conferir a aura da história ao comum da vida e imprimir a marca do cotidiano aos grandes acontecimentos históricos” (RANCIÈRE, 2003). A partir de 1980, diversos fotógrafos passaram a se debruçar mais exaustivamente sobre a representação de cenas usuais da vida diária das grandes cidades, o anônimo, o homem comum que “resgatado de sua banalidade, ganha uma nova significação e pode, eventualmente, tornar-se uma síntese indicativa de uma realidade muito mais complexa” (HUMBERTO, 2000, p.56). Soulages (2010) define como uma “estética do insignificante”, ou seja, diante de fatos corriqueiros, a fotografia faz nascer a poesia na foto e nos olhares do criador e do receptor da imagem. 77
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Outro recurso que representa as escolhas estéticas de Beto Skeff é a longa exposição, usada para retratar situações em que há personagens em constante movimento, deixando nítido o sentido da ação e a velocidade da cena. Dessa forma, o fotógrafo privilegia o registro de acontecimentos enquanto se desenvolvem diante dele, produzindo imagens fugazes, espectrais, sem distinção de rostos e com linhas não totalmente nítidas. A experiência estética proporcionada pela observação das obras de Beto Skeff nos leva à percepção da desconstrução da estrutura espaço-temporal a qual estamos habituados: a linearidade FOTOS BETO SKEFF
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temporal e a rigorosa geometrização do espaço dão lugar a uma composição imagética diferenciada em uma conjunção criativa e não formal de planos, formas, linhas, cores, volumes, texturas, luz e sombras. A mais recente produção fotográfica de Beto Skeff Memória e imagem - Oju Isese: os olhos da tradição retrata as mulheres que comandam terreiros de umbanda em Fortaleza, ressaltando a força feminina nestes espaços6 e, de acordo com o fotógrafo, faz parte de um projeto maior de preservação do patrimônio imaterial afrocearense na capital, que contribui para a diminuição de preconceitos. Beto Skeff também costuma retratar manifestações populares, culturais e religiosas locais, como reisado e maracatu, demonstrando a riqueza dessas expressões. Percebe-se que, além do aspecto artístico e estético, suas imagens adquirem um caráter político. Há uma aproximação entre estética e política na fotografia contemporânea: elas são mutuamente constituintes no impulso comum de fazer ver o que não cabia ser visto, fazer ouvir um discurso onde só tinha lugar o barulho (RANCIÈRE, 1996). De Paula (2013) afirma que a fotografia e o gesto de fotografar operam entre a estética e a política em momentos de ruptura, ou seja, momentos da ordem de uma resistência; esta entendida na dimensão de uma fenda ou de uma brecha que se abre para desordenar o que está posto. Retratar sujeitos sem voz “deixá-los vibrar na imagem, incontidos e inquietos, seria uma operação estético-política do gesto fotográfico, como instância pensante e proliferante de possibilidades para a vida” (DE PAULA; OLIVEIRA; LOPES, 2013, p. 277). Reis Filho (2017) ressalta esse entrelaçamento entre estética e política como mais um aspecto subjacente à nova produção fotográfica no Ceará. Fernando Jorge é outro fotógrafo que se destaca no cenário da fotografia cearense contemporânea e se dedica a uma produção autoral e documental. Sua maneira de manifestar-se sobre e com a fotografia revelam uma forma visceral de lidar com a imagem, definindo-a como um canal de comunicação pessoal e mais, como um modo de viver em que é preciso colocar uma série de questões internas, como um ato de autopreservação: “se não houver esse exercício de buscar me expressar, ocorre um processo de autodestruição que não é nada agradável”7. 79
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Essa afirmação, além de transparecer a certeza de que encontrou uma maneira de ser e estar no mundo, demonstra o potencial criador da fotografia, na qual o fotógrafo concebe uma linguagem pessoal, situando-se no que pode ser chamada de “fotografia-expressão” (ROUILLÉ, 2009). De acordo com Horn (2010) “o trabalho dos fotógrafos-expressivos envolve originalidade e criatividade, situando-se sempre no limite entre a razão e a emoção” (HORN, 2010, p. 04). As escolhas técnicas e estéticas deste fotógrafo indicam uma identificação com a vertente da fotografia contemporânea que se redescobriu nas relações com as formas tradicionais da fotografia - apropriando-se delas e atualizando-as - como a fotografia documental e a utilização de procedimentos associados às práticas analógicas, como a manipulação do negativo. Inclusive, seu primeiro ensaio fotográfico Paisagens corrompidas, realizado em meados de 2009, foi feito com base em intervenções no filme analógico. Com a degradação natural do negativo, o fotógrafo buscou ressaltar a ação do tempo tanto na coisa física em si - no próprio negativo – quanto na paisagem retratada – o seu referente. Soulages (2010) refere-se a uma “estética do inacabado,” haja vista que, a partir de um negativo - ou da digitalização da imagem -, o fotógrafo pode fazer um número infinito de fotos diferentes ao intervir neles de maneira particular. Os trabalhos mais recentes de Fernando Jorge, Memento Mori e Cococi obtiveram repercussão no meio fotográfico cearense pela qualidade estética e artística, e expressam sua forma particular de construção da narrativa imagética. O primeiro deles traz a relação do homem com a morte; enquanto o segundo retrata o processo de “abandono” de uma cidade no interior do Ceará. No entanto, a proposta conceitual que envolve a criação de ambos os ensaios trata esses temas de uma perspectiva diferente. Um olhar óbvio e apressado poderia resumi-los à tristeza, à perda e à ausência, mas Fernando Jorge opta pelo caminho inverso, mostrando ao espectador outras maneiras de lidar com essas temáticas. Para além do resultado final que nos é apresentado, as imagens evidenciam o projeto conceitual envolvido e, consequentemente, a importância de todo o processo de criação: desde a motivação (inquietações e ideias) que lhe deu origem, o contexto em que foi realizada, as escolhas técnicas e estéticas no ato de fotografar e a pós-produção. A 80
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ênfase nos procedimentos utilizados na produção fotográfica contemporânea caracteriza o que Fernandes Júnior (2006) define como “fotografia expandida”; que além de referir-se aos contextos de elaboração e às intervenções antes, durante e após a realização de uma imagem, refere-se também ao espaço aberto pela fotografia contemporânea para que o fotógrafo exerça sua liberdade criativa (em um diálogo direto com Flusser8, 2011). Fernando Jorge dirige sua atenção mais para a mensagem fotográfica do que para as técnicas em si e reconhece que “em nosso processo educacional não aprendemos nada da linguagem visual. A incapacidade de compreensão da leitura da mensagem visual vem da precariedade quanto à pedagogia da imagem”9. Na atualidade, cada vez mais o que temos é a apresentação de uma ideia, de um conceito orquestrando o trabalho do artista, que propõe uma lógica processual para tentar despertar o espectador diante de milhares de imagens que somos expostos diariamente e que exigem dele uma capacidade de leitura diferenciada (FERNANDES JÚNIOR, 2006).
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No ensaio Memento Mori10 , Fernando Jorge retratou o tema inevitável da morte; não de forma trágica, mas como forma de celebração da vida e respeito à existência, quase como um aviso que a vida é passageira e que devemos aproveitá-la ao máximo. A narrativa visual criada parte de uma composição específica - uso exclusivo do preto e branco; contraste entre luz e sombras; foco nos detalhes; uso da granulação - criando uma forma sutil e delicada de tratar o assunto. A “morte” não aparece de forma explícita, mas faz-se presente por meio de símbolos como lápides, velas, coroas de flores, crucifixo e mesmo em personagens que, naquele momento, vivem o luto. A riqueza visual deste trabalho reside na relação entre material e simbólico, visível e invisível. Nota-se que a composição estética - que além dos elementos já citados, ainda conta com a sutileza na retratação dos personagens e o predomínio de planos médios e ângulos frontais, delimitado à altura do olho humano – dá a narrativa uma sensação de proximidade, de inserção no momento retratado; características inerentes à própria fotografia documental. 82
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Já em Cococi11, Fernando Jorge e Rubens Venâncio retrataram a chamada “cidade fantasma”, localizada no sertão cearense, habitada por sete moradores (distribuídos em duas famílias) e onde só restam duas casas e a igreja, entre as várias ruínas da localidade. No entanto, para o fotógrafo, o que interessa não são exatamente as ruínas, mas as histórias e as vidas que podem ser encontradas e narradas nestes locais e reitera: “se você fecha o olho, num instante, você imagina a típica cidade de interior, ainda hoje, com a praça, com as pessoas na calçada, criança correndo, jogando bola, passeando de bicicleta. E, na verdade, isso não existe mais”12. No lugar de apresentar a possível tristeza e abandono do lugar, Fernando Jorge demonstra o oposto disto: “o que nós pensamos muito é nas presenças sugeridas; é nessas reminiscências de presenças, efetivamente. O que ainda fica dessas pessoas. Nós sentimos uma aura muito forte, o peso do local e dos restos que permanecem, ao mesmo tempo, essa coisa festiva13”. As histórias contidas neste cenário de aparente destruição lembram o pensamento de Steyerl (2010) ao tratar das “coisas”, incluindo-se aí também as imagens. Tomando por base o pensamento de Benjamin de que as “coisas são feitas para falar […] Nunca são apenas objetos inertes, itens passivos ou cascas sem vida, mas consistem de tensões, forças, poderes ocultos, todos sendo constantemente trocados” (BENJAMIN apud STEYERL, 2010, p. 04) e de que a história constitui-se em uma pilha de escombros. Steyerl (2010) afirma que “as coisas muitas vezes precisam ser destruídas, dissolvidas em ácido, cortadas ou desmanteladas para contar a história completa” (STEYERL, 2010, p. 04). Ao participar do embate com a história, “as coisas acumulam forças e desejos produtivos, mas também destruição e decadência. E nunca será cheio e glorioso, pois as imagens são machucadas e danificadas, assim como todo o resto da história” (STEYERL, 2010, p. 04). Fernando Jorge afirma que, mesmo nos casos em que retrata a materialidade, cenários e traços, seu trabalho com a imagem está sempre relacionado ao ser humano. Em Memento Mori, apesar do tema central ser a morte, é a vida e suas possibilidades que o fotógrafo busca apresentar. No caso de Cococi, os poucos moradores que ainda restam parecem ser extensão do lugar onde habitam. De acordo com o fotó83
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grafo, o que o fascina e o provoca é a ação do tempo sobre as pessoas e as coisas: “esse desgaste; essa coisa do tempo; da perecibilidade14”; demonstrando seu interesse em destacar a incessante e inevitável mudança por que passam as pessoas e seus mais variados ambientes pelo simples decurso natural do tempo. No caso de Fernando Jorge, a ação do tempo é simbolizada em um ritmo lento e pessoal, de forma natural e espontânea e mostra que, mesmo trazendo grandes transformações e alterações, pode ser representado sem optar pelo caminho da desordem e da agitação. 84
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Como dito anteriormente, Fernando Jorge desenvolve uma fotografia de cunho autoral, em uma abordagem experimental da fotografia documental. No entanto, apesar de manter alguns preceitos tradicionais desse tipo de fotografia, a forma como elabora as imagens – um ato criativo e não mero registro – demonstra que a fotografia documental também se renova no contexto atual, expressando a sociedade contemporânea em suas inúmeras complexidades. Apesar de englobar uma diversidade de propostas éticas e estéticas, abrangendo diferentes modos de representação - seja mais participativo, com temas sociais e políticos; seja descrevendo o cotidiano e retratando as experiências da vida comum, seja documentando algo que está desaparecendo ou mesmo com um enfoque mais intimista - a fotografia documental possui algumas características fundamentais que se mantêm no contexto da fotografia contemporânea, como a pesquisa prévia; o conhecimento e envolvimento com um tema específico - que não se limite apenas ao registro momentâneo sobre determinado assunto - e a proposta de narrar uma história por meio de uma sequência de imagens etc. Vale ressaltar que a fotografia documental também abandonou certos princípios tradicionais que lhe eram característicos, como a crença e a busca da verdade e a objetividade da imagem fotográfica. Por muito tempo, os fotógrafos documentaristas buscaram registros objetivos, “livres do preconceito da imaginação humana. Fotografias cuidadosamente planejadas e construídas foram consumidas como se fossem imagens não mediadas e oferecessem um reflexo neutro do mundo” (PRICE, 1997, p.59). Os questionamentos dos pressupostos realistas da representação fotográfica na contemporaneidade, obviamente, se estenderam ao campo da fotografia documental e não há mais a crença de uma relação direta e objetiva da imagem com o seu referente, nem a ideia da fotografia como “espelho do real” (DUBOIS, 1993). Para Kossoy (2002), “a imagem fotográfica, entendida como documento/ representação, contém em si realidades e ficções” (KOSSOY, 2002, p. 14). Enquanto no modelo clássico da fotografia, os fotógrafos procuravam interferir o mínimo possível na construção da imagem, hoje essa ficção, entendida como todo o processo em si de produção, edição e pós-edição da imagem, é assumida e necessária. 85
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Assim, os fotógrafos utilizam diversas possibilidades de composição e edição para colocar em prática novas formas de representação, criadas a partir de sua criatividade e imaginação. De Paula (2013) argumenta que da fotografia “já não se exige mais uma fidelidade ao real ou uma reprodução de mundos. Ela libertou-se de orientações prévias, de como relacionar-se com o sensível, e partiu para a invenção de olhares” (DE PAULA, OLIVEIRA, LOPES, 2013, p. 267); permitindo construir realidades cada vez mais complexas, sem limites precisos entre real e ficcional. No caso de Fernando Jorge, percebe-se que, por meio da utilização dos recursos tecnológicos e compositivos - como texturas diferenciadas, jogo entre luz e sombras, desfoques, ênfase nos detalhes, uso de simbolismos, - o fotógrafo alia experiências documentais - enquanto processo criativo - com a estética, criando uma linguagem própria de expressão
... A produção de imagens, em geral, e a fotografia, especificamente, são mediações entre o sujeito – seja ele o criador da imagem ou seu receptor – e o mundo. Esta mediação é exclusivamente humana e seu propósito é dar significado ao contexto social no qual está inserido. Sendo assim, a fotografia possui uma linguagem própria: eminentemente visual, que não é nem evidente, nem universal. Faz-se necessário, portanto, ter um contato mínimo com os códigos próprios da fotografia que são compartilhados social e culturalmente. Assim, é dentro de um contexto cultural específico que ela alcança seu sentido último. No caso deste artigo, nos debruçamos especificamente sobre a obra de dois expoentes da fotografia cearense contemporânea e como ocorrem os respectivos processos de criação de imagens. O primeiro ponto destacado é que a fotografia contemporânea deve ser entendida como um campo em que não há limites bem definidos do modus operandi do ato fotográfico. Ao contrário, abarca diversos modos de pensar e fazer a imagem fotográfica, congregando liberdade e resistência. Liberdade no sentido de abertura para o processo criativo, sem amarras e predefinições, abertura para o diálogo com outros campos 86
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e o reconhecimento de intervenções em qualquer fase da criação da imagem. Liberdade também, inclusive, para resistir e se identificar com as formas mais tradicionais da fotografia, renovando-a e entendendo que, mesmo estas, passam por constantes processos de atualização. De acordo com Soulages (2010), uma análise sobre a fotografia e seus elementos estéticos deve ser realizada a partir de obras concretas, levando em consideração as condições de produção das imagens e o contexto sócio histórico específico. Isso porque a forma de produção e recepção das imagens varia de acordo com a época e o lugar. Para tanto, escolheu-se refletir a partir da obra de Beto Skeff e Fernando Jorge, que fazem parte da nova geração de fotógrafos cearenses contemporâneos. As produções fotográficas de ambos são fruto do contexto social e artístico no qual estão inseridos, ao mesmo tempo em que experimentam, reinventam seus processos criativos, ampliando os horizontes estéticos. Como visto no decorrer deste artigo, Beto Skeff realiza um trabalho fotográfico mais experimental, dialogando com outros campos e potencializando a utilização de técnicas, como a sobreposição e a longa exposição; além de pautar sua construção imagética pela elaboração de ferramenta conceitual própria (poesia visual e lisergia visual). O fotógrafo tem como tema constante a retratação da vida das grandes metrópoles, como Fortaleza, e suas múltiplas formas de expressões e manifestações culturais. Suas imagens materializam seu entendimento do cotidiano caótico da cidade, estando sempre presente a sensação de movimento, do ritmo acelerado, além de dar visibilidade e voz a elementos e personagens “invisíveis”, evidenciando o aspecto estético e político de seu trabalho. Já Fernando Jorge se distingue por uma produção de cunho autoral e experimentações no campo da fotografia documental, ao criar narrativas imagéticas que não se limitam a um registro momentâneo, mas que partem de temas específicos que exigem uma elaboração conceitual mais densa e detalhada, além de um processo fotográfico mais duradouro e acurado. Porém, não se restringe aos elementos tradicionais da fotografia documental e afasta-se da necessidade de reprodução direta e fiel da realidade ao utilizar técnicas não convencionais da representa87
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ção documental, como o desfoque, e demonstra que esta se remodela no contexto atual. A ação irremediável do tempo sobre as coisas e, principalmente, sobre as pessoas acaba sendo o tema central de toda a sua obra; um tempo representado em seu decurso de forma espontânea e natural. Além disso, a forma nada óbvia de retratar seus temas, ao buscar no implícito e nos simbolismos as formas de representá-los, evidencia: o que a imagem não nos mostra é tão importante quanto aquilo revelado por ela. Portanto, a imagem não pode ser compreendida separada do trabalho conceitual e do processo de construção que lhe deu origem. No processo criativo fotográfico contemporâneo reestabeleceu-se o lugar da invenção do olhar e o espaço da imaginação, o que reorientou os paradigmas estéticos e ampliou os limites da fotografia enquanto linguagem. A produção de significados é produzida em sua natureza discursiva por meio da estética, um caminho que o fotógrafo revisita o campo da arte e das próprias experiências sensíveis e imaginárias para se reconstruir na contemporaneidade; alicerçado em seu contexto sociocultural e construindo sua própria linguagem visual. Por fim, as imagens, tanto de Beto Skeff quanto de Fernando Jorge, despontam como materialização de seus respectivos modos de existir e pensar, concretizados em processos de produção particulares e realizados em um contexto espaço-temporal específico.
... 1 Como o simpósio internacional intitulado “Especulações sobre Materiais Anônimos” ocorrido no Museu Friderichanum de Kassel e a 32ª Bienal de São Paulo sob o título “Incerteza Viva” (DE PAULA, 2017). 2 Beto Skeff é fotógrafo, educador e professor de fotografia, formado em Design, especialista em Marketing e atual presidente do Instituto da Fotografia do Ceará (Ifoto). Participou do Salão de Abril em 2012, 2013, 2014, 2015, 2016; do Festival de Fotografia de Tiradentes em 2014 e 2016. Foi finalista no Paraty em Foco em 2014, 2015, 2016. Participou de todas as edições da revista Olho de Peixe e do grupo Descoletivo com o qual expôs trabalho no ano de 2013 no Encontro da Imagem, em Portugal. 3 Fernando Jorge é fotógrafo e professor de fotografia, formado em Comunicação Social, especialista em Teorias da Comunicação e da Imagem e mestre em Comunicação e Artes pela Universidade Nova de Lisboa. Já expôs em eventos, como o Encontros de Agosto em 2011, 2012 e 2014; o deVERcidade em 2007, a XIV Unifor Plástica e a expo-
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sição Postais do Ceará. Fez parte do conselho curador dos Encontros de Agosto 2013 e participou das revistas Olho de Peixe #2 e #3. 4 Em entrevista para o autor. Fortaleza, 04 jul. 2017. 5 Em entrevista para o autor. Fortaleza, 04 jul. 2017. 6 Produção fotográfica que faz parte de projeto da pesquisadora Kelma Nunes intitulada Esse terreiro é governado por mulher, iniciada em 2015 com as mulheres de axé-saravá no Ceará e contemplado pelo programa Produção e Publicação em Artes - Instituto Bela Vista/Secultfor. 7 Em entrevista para o autor. Fortaleza, 06 jul. 2017. 8 Como analisou Flusser (2011), vivemos em um contexto repleto de máquinas, de forma que tanto a comunicação quanto a experiência estética são quase impensáveis sem a mediação de dispositivos tecnológicos. Assim, o fotógrafo deve conhecer a fundo o “aparelho” para subvertê-lo e usá-lo ao seu favor, não sendo um mero funcionário do mesmo, mas exercendo sua liberdade criativa. 9 Entrevista concedida ao Quinto Andar, portal de produções dos alunos de comunicação da Faculdade 7 de Setembro (Fa7). 10 Expressão em latim que significa “lembre-se de que você é mortal” e dá título ao livro composto por 58 imagens realizadas entre 2007 e 2013 em cemitérios de Fortaleza, Canindé e Juazeiro do Norte. 11 Realizado junto com o fotógrafo cearense Rubens Venâncio, composto por 28 imagens produzidas entre 2013 e 2015 e que ganhou exposição no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Situada no sertão dos Inhamuns, a localidade de Cococi já foi vila, distrito e cidade, até ser extinta na década de 1960; posteriormente, voltou a ser distrito e hoje está vinculada ao município de Parambu. 12 Em entrevista para o Jornal O Povo. RETRATOS de ausência. Jornal O Povo online, Fortaleza, 10 maio 2016. Disponível em: &lt;https://www20.opovo.com.br/app/ opovo/vidaearte/2016/05/10/noticiasjornalvidaearte,3611854/retratos-de-ausencias. shtml&gt; Acesso em: 06 jul. 2017. 13 Idem, 14 Em entrevista para o autor. Fortaleza, 06 jul. 2017. _ BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: ______ . Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio d`Água, 1992, p. 91-107. DE PAULA, Silas; OLIVEIRA, Araújo; LOPES, Leila. Imagens que pensam, gestos que libertam: apontamentos sobre estética e política na fotografa. In: BRASIL, André; MORETTIN, Eduardo; LISSOVSKY, Maurício (Org.). Visualidades Hoje. Salvador: Edufba, 2013, p. 263-282. DE PAULA, Silas. 人間(Nin-guém). Discursos Fotográficos, Londrina, v.13, n. 22, p.107-127, jan./jul. 2017. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1993. ENTLER, Ronaldo. Um lugar chamado fotografia, uma postura chamada contemporânea. In: INSTITUTO ITAÚ CULTURAL. Catálogo da exposição A invenção de um mundo. Coleção da Maison Européenne de La Photographie/Paris, 2009. Disponível
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Ricardo Henrique Arruda de Paula Jornalista, crĂtica de fotografia Docente do Programa de Mestrado da Faculdade Casper LĂbero
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A imagem e semelhança:
a fotopintura entre o chrôma e o crônos1
La pintura no es fotografia, dicen los pintores. Pero la fotografia tampouco es fotografia (René Crevel (DALI, 2003).
1. Os pincéis de Saturno Diante do computador, logo antes de iniciar este texto, que versará sobre fotopintura, fiquei vagueando em meus pensamentos. Recordei de várias coisas que aconteceram durante a pesquisa que fiz, das entrevistas, das vivências que participei, e quando estava distraído memorando, de súbito uma imagem me tomou, me envolveu, invadiu meus pensamentos como um estalo, “Saturno devorando a su hijo”, a representação dramática de Chronos, para os gregos, ou Saturno, para os romanos, devorando a um de seus filhos2. Essa pintura de Goya está entre as Pinturas Negras que foram usadas originalmente na decoração dos muros da casa do artista na Quinta del Sordo, todas as obras pintadas com a técnica de óleo al secco. O Saturno da pintura, de olhos ressaltados, de enorme dimensão e aparência monstruosa agarra firmemente com mãos cadavéricas um de seus filhos e o morde, fazendo saltar o sangue. A cena se passa na 92
RICARDO HENRIQUE ARRUDA DE PAULA
escuridão e apenas os personagens são iluminados, ressaltados da penumbra. É violento, é incômodo. O tempo, sua fome insaciável e o homem, sem forças para derrotá-lo, à mercê de seu apetite. Sim, o tempo seria uma ótima reflexão para começar. Ele sempre me assustou tanto quanto o Saturno de Goya e, desde cedo, o relaciono com uma série de coisas desagradáveis entre elas com o fim das coisas e das pessoas, que passam, que morrem, que, enfim, se acabam. Estava distraído nesse raciocínio quando olhei para o lado e percebi um antigo retrato empoeirado que repousa desolado na estante junto aos livros. A foto tem tonalidade desbotada, seu papel está deteriorado nas bordas e a imagem do casal, personagens fotografadas em uma época distante, imemorável, está se apagando. Franzi os cenhos para enxergar melhor o casal, pus os óculos, mas mesmo assim era difícil perceber nitidamente os traços. A imagem estava borrada, transfigurada em alguns cantos, fragmentada, os personagens do retrato estavam praticamente irreconhecíveis. Ceguei, concluo, pelo menos para as referências que estavam no papel daquele retrato. O tempo devorou aquela foto. Temi que a houvesse perdido. Lembrei de uma passagem de Borges (2001, p. 168): “Así mi vida es una fuga y todo lo pierdo y todo e del olvido, o del otro”. Um retrato é uma recordação, uma expressão de sentimentos. Em alguns casos, faz referência a um momento o qual nem mesmo presenciamos, um lugar onde não estivemos, mas que suscita um cheiro, um sabor, uma sensação corporal, emoções, um hálito de vida passada no presente. Relembro outra passagem literária, desta feita de “O Tempo Redescoberto”: “uma hora não é apenas uma hora, é um vaso repleto de perfumes, de sons, de projetos e de climas. O que chamamos realidade é uma determinada relação entre sensações e lembranças a nos envolverem simultaneamente” (PROUST, 1989, p. 167). Concluo que o retrato merece ser restaurado, sim, restituído à semelhança de sua forma original ou coisa que o valha. Vejo isso, poeticamente, como uma forma de resistência ao tempo e de forma metafórica como um empreendimento de um mergulho na mais profunda escuridão, lá, onde nada se vê, para resgatar o que se encontra 93
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nos abismos e levar à superfície, à luz aquilo que antes estava no reino da cegueira. Uma arqueologia afetiva da memória a partir de um retrato corroído, como se fosse um espelho quebrado. Mas também de tudo o que o cerca, de todos seus fragmentos, todos os cacos, toda a sua áurea impregnada por histórias de vida, sonhos, enfim, a tentativa de “recompor, com tantos estilhaços dispersos, o espelho quebrado da memória” (MÁRQUEZ, 2003, p. 13). Este texto falará a respeito de fotopintura. Será seu lastro, sua arché, mas também da ação do tempo sobre ela e de barricadas de resistência que alguns dos personagens que a compõem ainda hoje constroem na tentativa de não a deixar sucumbir. É um ensaio que trará muitas histórias, todas me impressionaram, algumas me fizeram rir, outras chorar, mas todas me levaram a escrever, todas me impeliram a isso, a contá-las, a descrever os relatos orais, conversas que podem ser levadas ao vento. E aqui uso as palavras de Calvino (2006) expressando melhor o que sinto: “é para funcionar de novo minha fábrica de palavras que devo extrair novo combustível dos poços do não-escrito” (CALVINO, 2006, p. 142). Saturno continua com suas habilidades e pincéis pintando brumas brancas e poeiras que impedem nossa visão e embotam nossos sentimentos. A fotopintura, por sua vez, continua restaurando, recriando, nos fazendo enxergar e imaginar. Essas duas potências lutam a cada dia, uma pelo esquecimento, a outra pela memória e pelos sonhos. Vamos às histórias, pois, como já me dissera certa vez alguém há muito tempo, “Tempo a gente não conta, o que se contam são histórias”. Então, vamos a elas! 2. O noema3 de Bayard Em 1840, Hippolyte Bayard veiculou o “Autoportrait em noyé”4, com um texto no verso5. Na foto, Bayard aparece sem camisa, de olhos fechados fingindo-se de morto. O noema de Bayard é a demonstração de que há um campo de intervenção artística, de criação, de imaginação, de invenção, enfim, de autoria, que atua sobre o real ou sobre sua versão. Segundo Flores (2011, 94
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p. 146), o noema de Barthes seria “‘isso aconteceu’ (fotografia como documento)”, o noema de Bayard “poderia ser expresso como ‘isso aconteceu porque eu o inventei (fotografia como criação)”. Entre o “isso aconteceu” e o “isso aconteceu porque eu o inventei” seguem a fotografia em geral e a fotopintura em particular. São questões transformadas em tensões que repousam no imaginário popular, entre a fotografia como imagem passiva e objetiva do real - uma reprodução do visível, das aparências, reflexo de um olhar hipoteticamente neutro diante do espelho - e a fotografia como criação, uma fabulação, expressão artística, versão do real ou ainda, simplesmente arte que usa como pano de fundo a realidade, mas que está além ou aquém dela. A fotografia e a fotopintura trazem consigo algo não revelado na emulsão, algo pós-registro técnico, físico-químico ou eletrônico, algo não dito, algo de verossímil, mas também de ficcional, o tempo daquilo reconhecido como realidade e daquilo que é tocado e reconhecido pelos sentidos, um silêncio que muitas vezes só é compreendido no mundo feérico, cenários que relacionam memórias e vislumbres. A pintura, o retoque, a interferência nas cores do retrato, a montagem, o jogo de bricolagem que envolve o recebido e o desejado, enfim, a aparência diversa de uma postulada verdade, a estética sobrepondo-se ao documento na produção de uma realidade expandida, todas essas questões gerando fecundos pontos de reflexão no que diz respeito à fotopintura. A imagem criada e aquela que se crê como semelhante; uma revelação ou um estranhamento? Uma imagem adequada, estranha à semelhança, ambígua e que tem a possibilidade de impor sobre o verificável e radiográfico real, um ponto de vista, uma ilusão, uma manipulação. Eu já peguei pra fazer muitas fotos de falecidos. Geralmente elas são coladas ao lado de fotos de santos. Já peguei também muitas fotos de gente morta que os clientes querem que a gente faça de olhos abertos. Aí eles ficam vivo. Pedido de gente que teve um parente falecido ano passado e aí pede pra gente botar ele vivo com outro parente que também já morreu, só que há mais de vinte anos atrás e os dois vivos abraçados. O último que eu peguei pediu pra fazer uma foto com as duas famílias, dela e do marido dela, só que de vivo só tinha ela e os três filhos, o resto, os pais do marido, o marido, os
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pais dela e um filho dela, mais dois ou três irmãos, num lembro, todo mundo morto e no retrato tava todo mundo lá. Eu só digo ao cliente que ele sonhe que eu transformo sonho em retrato (Vendedor 2).
A fotopintura não atua como um raio X que atravessa a pele e os músculos para revelar o esqueleto, ela traz consigo o visível e o invisível, o objetivo e o subjetivo. O invisível, o que não é superficial, o que está contido no íntimo, entranhado nas relações sociais, é isso que vem à tona, sobe das profundezas, até o retrato. Utilizando-me do argumento de Fontcuberta (2010) em relação à fotografia, a fotopintura pertence ao “âmbito da ficção muito mais que ao das evidências” (FONTCUBERTA, 2010, p. 112). Eu chego no cliente com um mostruário [...] de fotopinturas, um catálogo com uns retratos bem feitos, de gente bonita, bem feitos mesmo, de gente famosa, cantor, ator e de gente comum. Aí eu bato palma, se a casa num tiver campainha, e pergunto se a pessoa quer fazer um retrato igual aquele, [...] digo que a pessoa vai ficar mais bonita, mais nova [...] e aí tem gente que quer logo de cara, mas tem outros que não, aí nestes a gente trabalha mais [...] Um dia uma cliente disse que queria ter o cabelo loiro e os olhos verdes como de uma atriz da Globo, aí eu disse, pois vai ficar. Outra disse que queria os dentes brancos, que deixasse ela magra, elegante, e ela era bem gordinha. Teve um rapaz que pediu um corpo igual do Bruce Lee, que ele era fã e foi atendido, e ele era baixinho, barrigudo, mas ficou que nem o Bruce Lee (Vendedor 2).
A fotopintura permite construir, tal qual a fotografia, um “espelho mágico” (TISSERON, 1996, p. 83), que reflete imagens, mas, acima de tudo, imagens de imagens, uma dimensão visual ampliada. 3. O vendedor: casimira, estampas, retratos e sonhos A figura do vendedor sempre foi uma das mais importantes no universo da fotopintura, Mestre Júlio dos Santos6 , a maior referência viva da fotopintura, corrobora essa afirmação dando seu testemunho: “O que justifica a fotopintura existir hoje? O vendedor” 96
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Além de elo entre o estúdio de fotopintura e o cliente, o vendedor, conforme defendeu o Mestre, induz 7 o cliente a fazer a fotopintura, a fim de modificar as condições originais da imagem retratada. Eu não trabalho para o consumidor final, eu trabalho para o vendedor. “Bom dia, a senhora queria fazer um retrato assim, do seu filho, do seu pai, de alguém que seja querido na sua família? A gente pega a senhora, põe um vestido assim, põe um cordão, brincos, põe um paletó no seu marido”. Indução pura. A pessoa (cliente) nunca chega aqui, quem chega aqui é o pessoal de classe média e classe média alta (Mestre Júlio dos Santos).
Ao referir-se ao “pessoal de classe média e classe média alta”, Júlio exemplificou com uma fotopintura que ele havia feito de um casal de fotógrafos que representava, na sua concepção, uma das classes sociais mencionadas por ele. Consoante o depoimento dos entrevistados, antigamente a fotopintura era procurada por integrantes de camadas sociais economicamente abastadas, no entanto, hoje em dia, o que vemos é, ao contrário de épocas passadas, que o vendedor procura clientes nas periferias e nos locais com maior vulnerabilidade social:
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O vendedor, ele não tem coragem de vender a quem tem (dinheiro). Por que você não vai encontrar esse trabalho na classe média? Porque eles (vendedores) nem têm coragem, até porque eles vão ter dificuldades de entrar na casa, porque as pessoas nem vão querer atender, porque têm medo, vivem com medo. Na classe mais alta nem se fala (Mestre Júlio dos Santos).
Reconstituindo historicamente a origem do vendedor atual, o Mestre argumentou que ele, o vendedor, é herdeiro do antigo “mascate” ou “galego”8, personagens que faziam antigamente a comercialização de diversas mercadorias, entre elas tecidos. Os tecidos vendidos por eles geralmente era a casimira de cores azul ou cinza, que eles ofereciam aos homens para a confecção de paletós, e os tecidos estampados ou de cores lisas, eram oferecidos às mulheres para elaboração de vestidos9. Por isso, argumentou o Mestre, na fotopintura tradicional o homem era retratado usando um paletó azul e a mulher um vestido estampado. Uma “influência”, conforme Júlio, dos vendedores que induziam no passado as pessoas a serem retratadas com as mesmas cores dos tecidos os quais eles comercializavam. Para exemplificar a sua “teoria da indução”, o Mestre sempre rememorava diversas histórias de vendedores que ele ouvira ao longo de seu extenso itinerário no mundo da fotopintura: “eu sou um vendedor de sonhos”; “se você deixar um retrato você será reconhecido. Se Deus num tivesse deixado o retrato dele...”: Tinha cara como ele que ia numa casa entregar um retrato que tinha ficado muito bom, sabe o que ele fazia? Ele sabia que a casa do cliente era 1779, ele batia na 1781: “seu retrato” aí ele botava do lado de fora e mostrava. Ai a pessoa dizia: “não, num era eu não, era aí do vizinho”. Aí ele dizia: “pois depois eu venho aqui”. Ele tava induzindo a pessoa a esperar. Isso eu tô falando o que o vendedor dizia pra mim, que todo vizinho tem inveja do outro. Então ele quer ter o que o outro tem (Mestre Júlio dos Santos).
Quando o vendedor obtém êxito em sua comercialização e, portanto, tem uma fotopintura encomendada, o primeiro passo dele é colocar 98
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a foto do cliente - que pode ser tanto uma fotografia de tamanho 3x4, uma foto original, uma cópia ou um retrato em estado deteriorado dentro de um envelope simples de carta e fazer as observações que forem necessárias no verso desse envelope. As observações são os pedidos que os clientes fazem ao vendedor, aquilo que eles querem que seja efetuado na foto original, por exemplo: “Encomenda: cabelo arrumado e roupa social”; “Palitó e blezer (paletó e blazer)”; “Um G3, 20 por 28 cm, só os 3 que estão marcados10 ”. As considerações feitas pelos vendedores revelavam os desejos dos clientes e também traços, peculiaridades de suas vidas, como a religião: Você pega um envelope antigo, todo envelope dizia o seguinte: cor dos olhos, cor do cabelo, tez ou cútis e embaixo tinha escrito observação: cordão e brinco, cordão e crucifixo [...] aquilo já falava da religião da
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pessoa. Alguns diziam: não botar joias, é crente, ou não quer joia (Mestre Júlio dos Santos).
São numerosos os exemplos de fotopinturas em que a imagem do retratado ficou bem diferente daquilo que fora imaginado pelo cliente: Tinha retocador que era ótimo em fazer retrato de criança, ele pegava um do adulto e transformava em criança, quando você pegava um retocador que era acostumado com adulto ele fazia o inverso, ele deixava a pessoa mais envelhecida. [...] então o retocador aprendia no primeiro retrato adulto, quando ele pegava de uma criança ele queria traçar do mesmo jeito (Mestre Júlio dos Santos).
Existem fotopinturas, sobretudo as confeccionadas atualmente, em que os retratados têm a aparência de um desenho ou de um “boneco”. A estranha forma de “boneco”, de acordo com o Mestre, originou o termo “bonequeiro11”, em referência aos “vendedores de boneco”12 . É importante também ressaltar a figura do cliente no processo da fotopintura, pois ele assume, em determinadas ocasiões, um papel ativo na elaboração do retrato. A interferência do cliente na fabricação da imagem se dá quando ele confessa ao vendedor suas insatisfações em relação à foto original e seus anseios para com a imagem idealizada e objetivamente diz o que quer que seja feita na fotopintura: peguei muitos clientes que sabiam o que queriam, isso tanto antigamente quanto hoje. ‘Quero tirar esse chapéu e botar paletó’, ele queria sair no retrato sem o chapéu de vaqueiro, sem a roupa de vaqueiro, sem o cabelo desarrumado e ficar todo de paletó, gravata, cabelo penteado (Vendedor 2).
Pode-se, desse modo, inferir que a fotopintura entregue ao cliente é o resultado tanto da indução provocada pelo vendedor, como de alterações concebidas pelo cliente. Ou seja, da fotopintura não sai uma imagem semelhante ao retrato original, mas, sim, uma espécie de “imaginação fotográfica” (MARTINS, 2008), uma imagem semelhante ao imaginado, ao desejado. 100
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4. Papéis sociais estetizados Aqui cabe uma breve análise a respeito de alguns paradigmas que envolvem a fotopintura, sobretudo a tradicional, aquela feita baseada na estética antiga, onde geralmente observa-se uma composição do retrato, homem posicionado atrás da mulher e roupas e adereços aparecendo de forma repetitiva, entre eles: o paletó e a gravata para os homens e as joias e brincos para as mulheres, conforme já foi mencionado neste texto. A esse respeito foram formuladas várias explicações, como por exemplo, para Ferreira (2015), de forma ampla: Podemos dizer que os fotopintores surgiram como mediadores do sonho brasileiro ao concretizar em imagem o delírio de ascensão social dos nordestinos, garantido por roupas caras e joias a que os modelos dos retratos pintados jamais teriam acesso (FERREIRA, 2015, p. 32).
Já Kusma (2016), analisando o mesmo aspecto, menciona “distinção social” o fato da figura dos retratados no processo de fotopintura tradicional serem aparamentadas com paletó, gravata, brincos etc. Júlio, no entanto, falou de “dignidade”: Um homem do campo, por exemplo, não vai querer deixar de legado para seus descendentes uma imagem sua com uma enxada na mão, ele vai querer ser lembrado de paletó, de uma maneira mais arrumada. Então meu trabalho também envolve uma questão de dignidade (Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, Fortaleza-Ceará, 26/04/2000).
O Mestre tornou a explicar essa particularidade em outra entrevista, na qual ele invoca mais uma vez a figura do vendedor a fim de tratar das roupas e adereços: No interior, se você faz uma foto da pessoa do jeito que ela é, ela não compra. O pessoal dá mais importância à elegância, mesmo que na foto original não tenha todos os elementos. Neste caso, a figura do vendedor é importantíssima porque nos diz como as pessoas gostariam de ser retratadas.
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Colocamos ternos, colares e brincos porque estas pessoas querem se ver melhores do que são na realidade (Jornal Diário do Nordeste, FortalezaCeará, 10/05/1997).
O que se pode deduzir é que, contra uma história posta, cercada de obviedades e objetividades, que porta uma espécie de destino social do retratado, a fotopintura (a fotografia, a pintura, em suma, a arte) transfigura aquilo que se entende como uma lógica do “real”, expande-a ao adicionar-lhe subjetividades, sonhos, enfim, escolhas estéticas que não necessariamente refletem uma imagem e semelhança da classe social do retratado. Simmel (1986), ao tratar da questão dos “adornos”, atribui-os como símbolos que “ampliam ou intensificam a auréola que rodeia a personalidade” de cada indivíduo. O adorno, diz Simmel, é uma “ampliação do eu” (SIMMEL, 1986, p. 387-393). Interpretando uma foto de August Sander em que três jovens camponeses estavam indo a um baile vestidos de ternos, Berger (2003), lembra que o terno “foi desenvolvido na Europa como traje profissional da classe dominante” (BERGER, 2003, p. 35-42), portanto, diferente das roupas camponesas que eram utilizadas para o trabalho ou cerimônias, estas respeitavam os corpos que vestiam. ACERVO MESTRE JÚLIO DOS SANTOS. FOTO RICARDO ARRUDA
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Berger (2003) deduz que os aldeões e os operários das cidades “foram persuadidos a escolher ternos”, quer seja pela publicidade, por fotos, pelos vendedores, meios de comunicação, enfim, camponeses e operários aceitavam serem regidos por padrões que nada tinham a ver com seus mundos individuais, e que aqueles trajes, na verdade, ao invés de representar uma simbólica ascensão social, denunciavam aqueles indivíduos, as suas condições sociais. As roupas e adereços presentes na fotopintura podem sinalizar que ali não estão indivíduos em suas singularidades, mas papéis sociais estetizados (BOURDIEU; BOURDIEU, 2006). Por fim, outra característica observada na fotopintura, mormente a de casal, é a sua composição, nela pode-se ver que a figura da mulher sempre vem posicionada na frente da do homem. Existem pelo menos duas explicações a respeito, uma seria a questão da proteção masculina, por esse motivo a figura do homem vem atrás da mulher, transmitindo segurança. Para Walter Ney 13 , essa composição tradicional implicaria numa questão de respeito, “primeiro as damas”. 5. Um Mestre da contemporaneidade: Júlio dos Santos em tela O primeiro contato que tive com Mestre Júlio foi durante um workshop de fotopintura promovido pelo Museu da Fotografia do Ceará, em julho de 2017. Durante aquele evento ele dividiu seu percurso de vida em dois tempos: no passado, quando trabalhou com a fotopintura tradicional, com tintas e pincéis e o tempo presente, quando recorreu ao editor de imagens Photoshop a fim de dar continuidade ao seu trabalho de fotopintor. Impressionou a todos a destreza de Júlio dos Santos com o editor de imagens, em poucos minutos ele transformou digitalmente uma foto com uma série de problemas em um retrato sem as antigas imperfeições. Mestre Júlio, já naquele momento, me chamou atenção, sacava histórias de dentro de suas experiências pessoais, fazia da sua história de vida uma “forma artesanal” (BENJAMIN, 1996, p. 205) de conduzir a narrativa. Ao término do evento, ele facultou aos presentes seu número de telefone e disse que fazia questão que cada um de nós fosse conhe103
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cer o Aureo Studio. Dias após aquele encontro mantive contato com ele e falei-lhe a respeito da pesquisa que gostaria de realizar e que resultaria em uma publicação e pedi-lhe que me ajudasse, o que ele prontamente atendeu. O Aureo Studio funciona na própria casa do Mestre - um local que também abriga dois centros religiosos: um espírita e um de umbanda14 - e que, por coincidência fica nas proximidades de minha residência. O estúdio é um ambiente muito simples, composto de dois computadores, diversos aparelhos fotográficos analógicos, câmeras caixote confeccionadas artesanalmente pelo pai do Mestre Júlio, fotos do antigo estúdio com seus artesãos, livros e fotos espalhados por todos os lugares e um antigo cavalete com uma tela. Nesse cenário, Mestre Júlio trabalha em um dos computadores durante várias horas do dia, iniciando desde cedo da manhã e finalizando suas atividades no final da tarde. 104
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Júlio dos Santos é vegetariano, entende e discorre a respeito dos mais variados temas, mormente, sobre fotopintura, logicamente, e acerca de assuntos que envolvam religiões. Em nossas interlocuções, ele sempre enaltecia o glamour e o processo de trabalho dos antigos estúdios de fotopintura. No que diz respeito ao processo, o Mestre sempre destacava que todos os estúdios do passado trabalhavam com uma linha de produção, na qual cada um dos artistas desempenhava uma tarefa específica. Conforme Júlio, o Amirel, que foi um dos maiores estúdios no estado do Ceará e que esteve em funcionamento de 1930 até 1946, era composto por 70 artistas trabalhando no regime de linha de produção. Também no antigo Aureo Studio, o Mestre e os demais artistas produziam a partir de uma clara linha de produção15, obedecendo a uma sequência hierárquica fracionada de funções, em que havia uma especialização de tarefas distintas na produção da fotopintura. Devido à especificidade da função laboral de cada artista, que desempenhava apenas uma tarefa dentro do processo total, então isso resultou que nenhum deles dominava o trabalho do outro. Nesse sentido, Júlio contou que pintar um cabelo de loiro era função de um dos artistas, porque somente aquele artista particularmente dominava essa técnica, se passasse para outro da mesma equipe de trabalho AUREO STUDIO. FOTO RICARDO ARRUDA AUREO STUDIO. FOTO RICARDO ARRUDA
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o outro não fazia, justamente por não haver o domínio técnico que o companheiro dele tinha. A especialização de tarefas também resultou, de acordo com o Mestre, na falta de interesse do profissional em aprender a função de outro artista participante do processo. Cada um, por conseguinte, se debruçava sobre uma atribuição específica, resultando que ninguém detinha o conhecimento prático de todo o processo, somente o próprio Júlio se interessou, aprendeu e tinha a visão de todo o processo de produção. Em nossos encontros, o Mestre teceu algumas ponderações a respeito de alguns importantes pontos: primeiro ponto, segundo ele, o termo correto seria fotopintura e não retrato pintado e nem mesmo fotoretrato. Ele garantiu que, desde o princípio, o termo que sempre escutou foi fotopintura. O retrato pintado é um retrato que você pintou. Já uma fotopintura você parte de uma informação e aí faz a colorização dela e as interferências que a pessoa exige: bote um paletó, um cordão, brincos, cabelo assim. Ou eu mudo os olhos, o nariz, a boca, de acordo com a minha percepção de melhorar aquilo. Então, por isso e sempre eu aprendi ouvindo o nome fotopintura. Não era retrato pintado. Retrato pintado era outra coisa (Mestre Júlio dos Santos).
Segundo ponto, ele sustentou que termo “restauração” é algo próprio da contemporaneidade. E, por último, esclareceu que as paisagens no fundo do retrato, muito comuns nos dias de hoje, são uma característica do “mundo digital”, pois antigamente isso também não existia. Mestre Júlio começou a trabalhar com fotopintura aos 12 anos, quando deixou de lado sua vida de clausura no interior de Pernambuco, onde se tornaria um monge beneditino, e foi trabalhar no Aureo Studio, de propriedade de seu pai - que era o administrador, mas não fazia fotopinturas -, e do sócio do seu pai, Antenor Medeiros16. Eu teria frustrado a família não sendo monge beneditino, mas eu ia ser um monge da fotopintura. E hoje eu tenho orgulho de dizer, não com o orgulho simples que as pessoas põem aí como um pecado, mas eu digo pra todo
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mundo, eu digo pra todas as pessoas, eu não conheço ninguém que ame, alguém que se apaixone, que tenha feito o que eu fiz pela fotopintura, e não conheço alguém que tenha pegado um retrato e tenha feito melhor do que eu faço. Eu digo isso pra todo mundo. Porque a minha vida toda foi fazendo isso que você tá fazendo agora, estudando sobre fotopintura (Mestre Júlio dos Santos).
Júlio aprendeu todas as etapas pela qual passava a fotopintura e com apenas 16 anos ele consertava o trabalho de outros artistas: Aprendi a revelar, aprendi a ampliar, a reproduzir, a colorir, e aí vocêvem trazendo todo aquele processo da fotopintura que era retocar, fazer roupa, afinar, e tudo e eu muito cedo terminei por aprender. Todas as etapas. Com dezesseis anos [...] o repassador olhava e dizia assim: “esse não presta (esse retrato)”, olhava e dizia: “rapaz essa roupa tá muito mal feita”, aí vinha para o meu cavalete para eu consertar. Cada duas dessas eu ganhava uma do cara que tinha feito. Cada pessoa tinha uma ficha, no fim do dia você tinha feito tantas roupas, ou tantos retoques, ou tantas afinações. No meu caso, eu ficava consertando o trabalho dos outros. Pra você ver o nível que eu já tinha alcançado ainda jovem. Eu tava consertando trabalhos de artistas pra ganhar dinheiro deles (Mestre Júlio dos Santos).
Com pouco tempo, narrou Júlio, ele havia se tornado um profissional bastante requisitado dentro do estúdio e todo chamado de “retrato osso” que chegava ao estúdio era repassado a ele, a fim de ser retocado. Antigamente, em torno de cinco por cento dentro do estúdio era osso, o resto era 3x4. Todo mundo batia 3x4, todo documento, então não existia retrato ruim. Se você olhar todas as pessoas estão de frente. Aí, quando chegava um retrato que foi quebrado e que a pessoa tinha morrido e tinha deixado, aí vinha quebrado, era um osso, o retocador tinha mais trabalho e eu aprendi em cima do osso, exatamente para eu puder me diferenciar (Mestre Júlio dos Santos).
Na década de 1970, quando o estúdio do seu pai passou por sérias dificuldades financeiras, Júlio foi até ao centro da cidade de Fortaleza, ao Foto 107
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Paris, em busca de serviço, “Foi a única vez que eu saí atrás de serviço”. “Você sabe fazer o que?” Eu disse “Tudo”! Ele: “em retrato?” Eu respondi que sim. “Homem vem aqui”! Aí eu arrodeei, entrei pela portinha, ele disse “Se sente, vamos conversar. Você sabe fazer o que?”, “Roupa, retoque, afinação, câmara escura, retoque de chapa”, ele disse “Num posso acreditar...” [...] “Faça esse retrato aqui pra mim ver”. Aí pegou um retrato [...] e era tipo de retrato tido como osso [...] aí ele pegou uma ruma de retrato [...] pra encurtar a história eu fiquei indo pra lá e fiquei trabalhando aqui (no Aureo Studio). Quando foi um dia meu pai disse assim: “rapaz, me diga uma coisa, você tá alimentando meu concorrente?” Aí eu disse: “não pai, eu tô tentando sobreviver, porque eu cansei de tá na favela, num dá mais”. Ele disse assim: “então você vai ter que escolher entre aqui e lá”, eu disse: “lá”. Seis meses depois eu era dono de duas salas lá no Foto Paris. Dois anos e meio depois meu pai fecha aqui (Aureo Studio). Aí eu volto pra cá, abandono tudo lá, que era minha vida de ascensão (Mestre Júlio dos Santos).
Ao iniciar as interlocuções com Júlio, uma das primeiras coisas que tive curiosidade de lhe indagar foi a respeito do título de Mestre. Ele contou que esse título surgiu em 1997, quando a apresentadora da Rede Globo Regina Casé esteve em Fortaleza para entrevistá-lo e uma pessoa da produção o chamou por “Mestre”. Nessa época, ele já estava tendo dificuldades para conseguir o material utilizado na fotopintura e, por conseguinte, também enfrentava problemas para continuar o seu serviço: “Mestre, mestre”, e eu incomodado, aí eu digo: “rapaz, cara, tu para com isso, negócio de mestre pra cá”, aí ele foi e disse: “mestre, eu vou lhe dizer uma coisa, se você não fosse mestre você não teria direito a um programa na Rede Globo” [...] Mas aquilo me incomodou, mas o diabo é que eles foram embora e ficou isso, aí todo mundo “Mestre”, “Mestre”, “Mestre”. Então eu terminei por assumir isso. (Mestre Júlio dos Santos).
Ou seja, o título de mestre chega-lhe no período de crise da fotopintura, de forma geral e, particularmente, no âmbito do Aureo Stu108
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dio. Além do mais, foi algo, como ele mesmo recorda, que se fixou em seu ser como uma identidade, um atributo, um adereço de distinção social que teve historicamente seu rito de passagem a partir de um programa de televisão. Júlio sempre enfatizou que a fotopintura teve dois momentos distintos, a fase de esplendor seguida pela da degradação. O Mestre contou que um dia ele não tinha mais meios de comprar o material para a produção de fotopintura. Teve que dissolver o estúdio e, após um período em que ele ficou sem saber o que faria de sua vida profissional, recomeçou uma nova trajetória rumo ao que ele intitulou de “fotopintura digital”, utilizando-se do Photoshop a fim de retomar seu trabalho de fotopintor. Eu me rendi ao computador, porque eu dizia “Que negócio de computador! Tenho medo de coisa de programa! Isso não me afeta”. Eu dizia isso, aí quando os materiais começaram a sair, isso foi horrível, eu senti que tava falido. Os estúdios foram acabando e eu num tinha mais condições, apanhei umas coisas que eu tinha, botei o pessoal (os trabalhadores artesãos) ali dentro, indenizei, num indenizei, mas eu dei o que eu tinha, e disse: “Rapaz, vocês vão cuidar da vida de vocês que agora eu vou tentar cuidar da minha” (Mestre Júlio dos Santos).
Apesar de valer-se do Photoshop, Mestre Júlio assegurou e demonstrou que o uso que faz das ferramentas desse programa vai além do modo convencional para o qual elas foram criadas. Ou seja, ele usa o programa para fazer retoques, para “pintar”, em suma, criar uma imagem à semelhança dos sonhos, das fantasias, dos desejos e dos tempos áureos em que existiam cavaletes e pincéis. Ali, no Aureo Studio, o passado e o presente coexistem em situações comunicacionais. Memória e esquecimento caminham lado a lado recuperando ou apagando trajetos, vestígios que o tempo deixou naquele espaço. Sente-se que ali é o tempo do cultivo de provas, testemunhos, um tempo perdido que se recria a cada história, através de cada imagem, de recordações e de esquecimentos. Nossa memória não se apoia na história aprendida, mas na história vivida (HALBWACHS, 1990, p. 60). E no Aureo Studio brotam experi109
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ências de vida, reconstituições, fatos, recriações com profundidade de campo e texturas. Toda a vida ali está impregnada de imagens e lembranças e Mestre Júlio é o esteio dessa comunicação mnemônica. “A veracidade do narrador não nos preocupou [...] Nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuar-se na história de sua vida” (BOSI, 2003, p. 37). Em cada uma de nossas interlocuções eu percebia a formação de uma vasta renda de acontecimentos históricos sendo habilidosamente tecida pelo Mestre. Fio a fio, ele entrelaçava imagens, recordações, passado e presente. A história da fotopintura com seus personagens era rigorosamente urdida em um imenso e profundo rendilhado. Nesse momento, ele se tornava um tecelão das palavras. Ali, diante de mim, estavam fotos muito antigas, guardadas como relicários, feitas ao modo clássico - geralmente um casal, o homem de paletó e gravata e a mulher com vestido, brincos e colar e o fundo da foto de cor neutra -, por estúdios que já não existem, a não ser no tempo da memória. “Em 1899, já tem fotopintura. Eu tenho fotopintura de 1905”, disse Júlio dos Santos. Acompanhadas de trabalhos antigos, também presenciei fotopinturas atuais. Parte, trabalhos que haviam sido recentemente produzidos pelo Mestre, outra partefotopinturas que chegavam ao Aureo Studio a fim de serem restauradas. Eram retratos visivelmente mal elaborados, com diversas falhas estético-anatômicas, e que se amontoavam, uns sobre os outros, em mesas e gavetas do ateliê. O Mestre é a sua própria memória, é tempo e narrativa, se faz presente em cada uma de suas fórmulas alquímicas de tratamento fotográfico, em suas fotopinturas, nos seus sonhos e nos seus desapontamentos, um ser que perfaz um universo de cores desbotadas, cores restituídas, tudo transbordando de sentimentos em narrativas. 6. Afinação: repasse para concluir As cores fortes empregadas na fotopintura sofreram a ação do tempo, não de forma visível, mas como uma ausência de cor da grisalha, um “coloris de descoloração” (DIDI-HUBERMAN, 2014a) que intervém sobre todas as coisas, pessoas e processos. A época da fotopintura tradicional passou. Os grandes estúdios fe110
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charam as suas portas e, hoje em dia, aqueles artistas-artesãos estão em outras atividades. “Para eles acabou”, resumiu Mestre Júlio. Restou um mestre, alguém “intempestivo”, que “não tem lugar simplesmente no tempo cronológico” (AGAMBEN, 2009), um mestre contemporâneo que luta contra o tempo e seus efeitos com mãos talentosas que se habituaram com os novos tempos, com novas ferramentas, modos técnicos de driblar a ação devoradora de chrônos. Júlio incorpora o título no momento de declínio da fotopintura, quando a grisalha do tempo opera profundas ações no ciclo de vida da fotopintura. Se “os grandes retratistas são grandes mitólogos” (BARTHES, 1984, p. 58), então vivemos ainda esse tempo, que apesar de corrosivo, é um tempo mítico, de produções de desejos, fantasias e imaginações. A fotopintura segue seu percurso sendo reinventada, se não mais com pincéis e tintas, agora com novas tecnologias. Ela é filha de seu tempo e mostra os sinais de vida de quem sobreviveu diante das crises que atravessou. Uma imagem e semelhança e mais que isso um jogo de memórias em que as cores foram, em parte, dissipadas, modificadas, mas que, também, ressignificadas.
... 1 Para este trabalho foram entrevistados um fotopintor atuante há mais de cinquenta anos no ramo, dois vendedores de fotopintura, que os denominei neste texto por Vendedor 1 e Vendedor 2 e, por fim, também dois fotógrafos, ambos com relevantes trabalhos prestados no campo da fotopintura, tendo sido um deles, inclusive, fotopintor na década de 1970. 2 Ovídio, nas Metamorfoses (2017), exalta essa característica do tempo, como devorador das coisas. De acordo com Panovski (1967), essa representação é uma expressão extemporânea. 3 Noema, segundo o dicionário de filosofia de José Ferrater Mora (1990), significa pensamento como objeto do pensar. O Noema, na fenomenologia do filósofo Edmund Hursserl, é o componente não real ou intencional. Husserl chama de noese o ter consciência e de noema aquilo de que se tem consciência. Barthes, (1984), se refere a noema como “isso foi”. 4 Em tradução livre: Autoretrato de um afogado. 5 “Este cadáver que os senhores veem é do senhor Bayard, inventor do procedimento que acabam de presenciar, ou cujos maravilhosos resultados logo presenciarão. Segundo eu soube, este engenhoso e incansável pesquisador trabalhou durante uns 3 anos para aperfeiçoar seu invento. [...] Isso lhe trouxe grande honra, mas não lhe
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rendeu nenhum centavo. O governo, que deu mais ao senhor Daguerre, declarou que nada podia fazer pelo senhor Bayard e o infeliz resolveu se afogar. [...] será melhor se os senhores passarem longe para não ofender seu olfato, pois, como podem observar, o rosto e as mãos do cavalheiro começam a se decompor. Texto escrito no verso de o afogado, Hippolyte Bayard, 1840” (FLORES, 2011, p. 145). 6 Júlio dos Santos, nascido em 1944, dedicou-se desde os doze anos de idade até hoje à produção e à divulgação da fotopintura, tornando-se conhecido como Mestre da fotopintura. Foi o principal e mais importante interlocutor que tive neste trabalho. 7 Todos os dias em que estive no seu ateliê, o Mestre sempre fez questão de enfatizar a sua teoria da “indução”, “influência” do vendedor sobre o processo de venda da fotopintura e, sobretudo na escolha das modificações a serem feitas no retrato original. 8 Mestre Júlio se referia precisamente aos mascates que existiam entre os anos de 1925 e 1960, lapso temporal este em que, conforme ele, os antigos vendedores trabalhavam de terno. O Mestre garantiu que os vendedores do passado eram “pessoas preparadas, eles tinham cultura [...] eram pessoas fugidas da Segunda Guerra Mundial e que aportavam por aqui (no estado do Ceará). Eram imigrantes, o galego, o homem que vem de fora, falando outro idioma”. 9 Hoje em dia, alguns vendedores exercem seu métier em locais fixos, recebendo os clientes na comodidade de seus espaços de trabalho. Pude constatar também que existem vendedores que exercem outros ofícios concomitantemente à profissão de venda de fotopinturas, sendo a principal ocupação atual a de fotógrafo. No entanto, o que ainda predomina no presente é a figura do vendedor ambulante de fotopintura. 10 Até hoje os vendedores usam algumas das mesmas expressões no envelope de encomenda que utilizavam no passado, por exemplo, um “G2” significa um grupo de duas pessoas no retrato, um “G3”, um grupo de 3 pessoas. Uma única pessoa, “B”, que significa busto. E no caso do exemplo acima, havia o pedido de supressão de algumas pessoas que estavam na fotografia original, algo corriqueiro no cotidiano do Aureo Studio. 11 Sobre a expressão “bonequeiro”, ver: Riedl (2002), Ferreira, (2015) e Kusma (2016). 12 Mestre Júlio argumentou que o termo “bonequeiro” representaria historicamente a realidade de determinada região do Estado do Ceará e, portanto, não deveria ser generalizado. 13 Walter Ney é fotógrafo e atuou como fotopintor até os anos 1970. 14 Tanto o centro espírita quanto o de umbanda são heranças do pai de Mestre Júlio, Francisco Antônio dos Santos, mais conhecido como Mestre Didi, que era pai de santo e conduzia os trabalhos espirituais tanto no espiritismo quanto na umbanda. A pedido do seu pai, Mestre Júlio mantém essas duas atividades em funcionamento até hoje. 15 As antigas etapas da fotopintura eram de acordo com o depoimento de Mestre Júlio dos Santos: 1.Loteamento- registro do lote - uma série de encomendas que chegavam ao estúdio – e ainda chegam – vêm em envelopes de correspondência comum, branco, com as observações feitas pelo vendedor (o pedido) ou do organizador, com: nome do dono do retrato, localidade e anotações. Os lotes eram numerados de acordo com a ordem em que davam entrada e eram loteados em conjunto com o número de retratos pedidos, por exemplo, 50/20, lote de número 50 que conta com 20 encomendas de retratos; 2. Repasse - quando os lotes chegavam ao repassador, este profis-
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sional fazia o controle do encaminhamento dos lotes e também regulava a quantidade de fotopinturas que eram feitas; 3. Reprodução - o encarregado da reprodução fazia a cópia da imagem original que chegava ao estúdio, conforme etapa 1, em envelopes. No processo antigo, quando a fotopintura era realizada com tintas, a maioria dos retratos originais que chegavam ao estúdio era em fotos 3x4; 4. Contorno - fazia-se o recorte, ou contorno, do rosto no negativo, com tinta opaca, em que os cabelos, ombros, roupas e fundo ficavam apagados; 5. Ampliação - o laboratorista pegava os negativos e fazia uma cópia em positivo do negativo reproduzido, ampliado em papel fotográfico; 6.Lavagem - a lavagem do papel tinha como finalidade retirar resíduos químicos; 7. Colagem - após a secagem, vem a colagem de cada retrato ampliado em um cartão. Este processo era feito com cola comum e tinha como princípio deixar a fotografia mais firme; 8. Convexagem - depois que o retrato era lavado e colado ao suporte, passava por uma máquina, uma prensa de convexagem para que ele tomasse a forma oval; 9. Colorir - eram coloridas as partes referentes à pele do rosto, também os olhos e sobrancelhas; 10. Retoque - uma das etapas mais significativas de todo o processo. Nesta etapa, eram traçados os formatos dos olhos, da boca, eram feitos trabalhos no rosto e pescoço do retratado, retiradas rugas de expressão, cicatrizes etc. O retocador era o profissional mais bem pago dentro dessa estrutura laboral; 11. Roupeiro - após o rosto do retrato ter sido trabalhado, era a vez da roupa. O roupeiro era o profissional encarregado de desenhar e pintar os trajes do retrato, conforme o pedido e observação feitos no rosto do envelope, escritos pelo vendedor, sendo os mais comuns: colocar um paletó (geralmente da cor azul), gravata, vestido, brincos, colares, em suma, por na fotopintura adereços e roupas que não estavam na foto original; 12. Afinação - nesta etapa, o profissional procurava retirar imperfeições, como manchas. Eram usados lápis e estilete; 13. Repasse - para concluir todo o processo, era realizada uma revisão detalhada do trabalho realizado nas etapas anteriores; 14. Esbater - o esbatedor era a figura que dava o colorido do fundo da fotopintura. Este trabalho era feito com uma pistola de pintar carro. 16 Antenor foi o artista que mais influenciou Júlio na arte da fotopintura, “Meu pai administrava, Antenor retocava, afinava e era um cara magnífico no retoque” (Mestre Júlio dos Santos). _ AGEMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. ______ . O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. ______ . A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas, São Paulo: Brasiliense, 1996. BERGER, John. O traje e a fotografia. In: BERGER, John. Sobre o olhar. Espanha: Editorial Gili, 2003. BORGES, Jorge Luis. Borges y yo. In: Antología Personal, El Hacedor. Barcelona: Editorial Sol 90, 2001. BOURDIEU, Pierre; BOURDIEU, Marie-Claire. O camponês e a fotografia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 26, p. 31-9, 2006. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: Schwarcz, 2003. CALVINO, Ítalo. A palavra escrita e a não-escrita. In: FERREIRA, Marieta de Moraes,
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Marcelo Barbalho Jornalista, crĂtica de fotografia Docente do Programa de Mestrado da Faculdade Casper LĂbero
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O elo perdido da (minha) fotografia: Notas sobre uma experiência com o passado
1. A foto como meio de rememorar o passado Durante dez anos (1999-2009), a fotografia testemunhou intensamente minha relação com meus filhos, Iara e Emiliano. Eu era levado por uma motivação intuitiva e natural, comum a qualquer pai com filhos pequenos, que procura um meio para recordar e documentar a vida familiar. Estava dentro daquele pequeno universo, inserido na intimidade daquelas pessoas, incluindo Marina, minha ex-mulher. Havia uma ligação afetiva muito forte entre nós e também um acordo implícito: não era preciso dizer nada para que aceitassem minha presença com uma câmera. Eu não tinha um método de trabalho estruturado, uma lista de temas ou situações para serem registradas. A tônica das fotos estava na informalidade. Elas foram feitas no interior do apartamento onde morávamos; na escola das crianças; durante viagens e passeios, como idas à praia e a parques de diversão; no supermercado; em aviões; carros etc. Ao mesmo tempo não há retratos com tratamento cerimonioso de casamentos, comunhões ou batizados produzidos com a intenção de ressaltar o estereótipo de dignidade e sobriedade socialmente adequado ao núcleo familiar. Minhas fotos da vida doméstica eram feitas simplesmente para celebrar laços familiares, como uma festa de aniversário; para serem com116
MARCELO BARBALHO
partilhadas com pessoas próximas (pais, avós, irmãos, tios e amigos); guardadas e revisitadas no futuro como um modo de rememorar acontecimentos passados. A exemplo de um fotógrafo amador, eu evitava registrar momentos de tristeza, conflito ou sofrimento. Raramente assumia algum tipo de risco ao expor minha própria vulnerabilidade e/ou a de meus retratados. Não registrava a dor de ninguém – pelo menos não explicitamente – ou pequenos dramas domésticos, como a ida de Emiliano ao hospital para levar pontos na cabeça após cair da mesa da cozinha. Mas também não tornava glamorosa a vida privada. Minhas fotos mostram a banalidade do cotidiano, sem nada de extraordinário. Também não as considero um meio de autoafirmação pessoal ou familiar – algumas imagens, inclusive, denotam angústia, melancolia, inquietação ou irritação. Fotografar minha família tampouco foi um ato artístico, no sentido de buscar reconhecimento como um fotógrafo que expõe em galerias e museus – embora hoje pense que essas imagens privadas possam vir 117
MARCELO BARBALHO. EMILIANO, FORTALEZA, 2002 MARCELO BARBALHO. IARA, FORTALEZA, 2003
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MARCELO BARBALHO. EMILIANO, BELFORD ROXO, 2002 MARCELO BARBALHO. IARA, SEROPÉDICA, 2005
a se tornarem públicas, mostradas num livro ou numa exposição. Mas, mesmo sem a pretensão de ser um fotógrafo-artista, a fotografia representava para mim não apenas um meio de registro, mas de expressão. No aspecto plástico, minhas fotos diferem de uma produção amadora, muitas vezes marcada pelo enquadramento pouco apurado e personagens com “olhos vermelhos”. Elas estão de acordo com uma certa “visão fotográfica”, um pouco ingênua talvez, pretensamente inspirada na tradi118
MARCELO BARBALHO
ção da fotografia documental humanista – o uso do preto e branco, porém, era circunstancial: eu trabalhava como professor de fotografia numa faculdade de jornalismo e tinha acesso livre a um laboratório químico. Eu estava sob influência das ideia e parâmetros estéticos dos fotógrafos que admirava, como o “estilo documental” de Walker Evans. Na fotografia da vida íntima, Luís Humberto, fotógrafo e ex-professor da Universidade de Brasília (UnB), com sua “poética do banal”, era minha principal – e única – referência. Só mais tarde iria descobrir que esse tipo de fotografia é um filão reconhecido no campo fotográfico. Está presente na obra de nomes como Larry Sultan, Nan Goldin, Nicholas Nixon e Eugene Richards. Eles não atuam conforme a convenção social, notada na maioria dos registros amadores, de construção de uma narrativa que realça tudo o que é positivo e agradável no ambiente familiar – Richards, por exemplo, fotografou o processo devastador de um câncer que levou à morte sua amiga Dorothea Lynch. Enfim, enquanto buscava aprimorar minha linguagem fotográfica, usava a fotografia para fixar fatos ordinários do dia a dia e preservar a imagem dos rostos, dos lugares e das coisas ao meu redor. A fotografia era percebida, sobretudo, como um espelho dotado de memória. Eu não tinha consciência de que a fotografia, ao preservar um instante no tempo, aponta não só para uma memória que lhe é intrínseca, mas também evoca uma memória que lhe é externa, a memória do espectador, que aqui se mistura à memória do próprio autor. Assim, a imagem fotográfica, ao congelar a fluidez do tempo, leva o espectador-autor a confrontar-se com o isso-foi indicado pela fotografia e o aqui-agora no qual está situado (BARTHES, 1984), e o induz a transpor essa descontinuidade por meio da construção de um conjunto de significados. A fotografia, obviamente, não guarda impressões, situações e emoções – estas se situam no nível do invisível, além da superfície da imagem A imagem fotográfica tem múltiplas faces e realidades. A primeira é a evidente, visível. É exatamente o que está ali, imóvel no documento (ou na imagem petrificada do espelho), na aparência do referente, isto é, sua realidade exterior, o testemunho, o conteúdo da imagem fotográfica (passível de identificação) [...]. As demais faces são as que não podemos ver, permanecem
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ocultas, invisíveis, não se explicitam, mas que podemos intuir; é o outro lado do espelho e do documento (KOSSOY, 2005, p. 40).
MARCELO BARBALHO. MARINA, BEBERIBE, 2004 MARCELO BARBALHO. MARINA, FORTALEZA, 2005
2. Imagem latente: campo fértil para a mágica fotográfica Dois mil e sete foi um ano decisivo no relacionamento entre mim e as pessoas que retratava na intimidade. O fim de meu casamento com Marina fez desaparecer boa parte do ânimo para continuar minha crônica familiar. Sem sua presença, o número de fotografias diminuiu, o que hoje me parece um sinal subjacente da crise na minha vida familiar. Mas é no ano seguinte, quando fui morar sozinho em Salvador, que minha produção fotográfica caiu drasticamente. Há apenas algumas imagens digitais, quase todas tomadas por amigos que registraram passagens de Iara e Emiliano pela Bahia. Essas fotos, ou a ausência delas, também revelam um subtexto dos meus instantâneos de família. No verão de 2009, o espírito que imperava nos anos anteriores foi ressuscitado, ainda que 120
MARCELO BARBALHO
brevemente, durante uma viagem de carro com meus filhos, que viviam em Fortaleza. Nosso ponto de encontro foi Salvador, dali seguimos para o Rio de Janeiro pela BR-101 (via litoral) e voltamos para a capital baiana pela BR-116 (via sertão). A viagem durou cerca de um mês – até hoje a mais longa que fizemos juntos. Eu praticamente não fotografava desde minha saída do Ceará, onde havia passado oito anos – nesse período constituí um arquivo familiar de mais de doze mil negativos, slides e polaroides. No entanto, conservava uma câmera fotográfica e quis documentar a viagem. Comprei uma lata de filme preto e branco, que rendeu vinte rolos com 36 chapas cada um, o equivalente a 720 imagens. Fotografei nossa passagem por lugares como Ilhéus, Guarapari, Ouro Preto e Vitória da Conquista. Iara e Emiliano, que tinham nove e sete anos de idade, lembram pouco dessas férias. Iara se lembra de ter assistido novela na casa de uma vendedora de cachorro-quente em Itacaré; Emiliano recorda dos “seis dedos” numa das mãos de um morador de Cumuruxatiba. Também tenho dificuldade para trazer à memória as situações vividas durante a viagem. Boa parte das impressões e sensações se tornaram etéreas, nubladas, longínquas. Talvez porque os filmes nunca tenham sido revelados. Eles ficaram guardados na casa de Marina até 2016, quando os recuperei. Desde então tenho alimentado a vontade de revelá-los (ou de transformá-los num objeto artístico e/ou de estudo sobre a ilusão mágica da fotografia?) e de ver as fotos com Iara e Emiliano. A expectativa não é simplesmente resgatar a memória visual da viagem que eu e meus filhos fizemos juntos quando eles eram crianças. Mas ressuscitar lembranças que estão além dos instantes registrados nas imagens e ser apanhado pelos sentimentos provocados pela via de mão dupla entre passado e presente. Ao escrever sobre a obra de Marcel Proust, Walter Benjamin (1985) considera que “um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois” (BENJAMIN, 1985, p. 37). De fato, coisas que vieram antes e depois daquela viagem podem manifestar-se por meio das fotos. Algumas podem ser previstas neste momento, outras não. As imagens podem fazer lembrar, por exemplo, 121
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do espírito conturbado pelo fim de meu casamento; da figura de Marina, ausente das fotos, mas diretamente ligada ao contexto emocional que envolveu a viagem; e de uma fugaz sensação de liberdade na estrada. Para Iara e Emiliano, hoje jovens no início da idade adulta, as fotos podem estimular lembranças que preservaram de seu pai naquela época. A fotografia, com toda a sua carga de subjetividade, de vida psíquica, como modo de recordar o passado, pode se transformar no estopim de um processo capaz de trazer à tona questionamentos, frustrações e ressentimentos – afinal, como diz Mauricio Lissovsky, “a fotografia não é indolor”.1 Nada impede, portanto, que um acontecimento fixado após o disparo do obturador extrapole a imagem e se expanda numa direção não indicada pelo seu conteúdo visível. Isso é notável no documentário “Conversações em Vermont” (1969), de Robert Frank, uma de suas obras mais pessoais. O curta-metragem é uma tentativa de o fotógrafo suíço-americano examinar a relação que mantém com seus filhos que, em vez de morarem com os pais em Nova Iorque, habitam numa área rural dos Estados Unidos. O filme se desenvolve em torno do encontro de Frank com Pablo e Andréa, na época, recém-saídos da adolescência. O trio recorda o passado, quase sempre com auxílio de fotos e cópias-contato levadas pelo próprio autor para a fazenda da família, em Vermont. A conversa por vezes é difícil, dura e dolorosa, apesar de não ser totalmente triste. O filme é o primeiro de uma trilogia de Frank sobre si mesmo e os vínculos com sua família. Meus filmes expostos e guardados há dez anos à espera de serem revelados, e que representam uma espécie de elo perdido da minha fotografia, podem ainda contribuir para uma reflexão sobre a supressão, proporcionada pela fotografia digital, do intervalo entre o momento do clique e a visualização da imagem – é preciso deixar claro que o lapso de tempo notado aqui não é totalmente proposital, como o percebido na obra de artistas como Gabriel Mario Vélez, Isidoro Valcárcel Medina e Óscar Molina. Muito menos se trata de um intervalo ocasionado por uma fatalidade, como a morte do fotógrafo Garry Winogrand, em 1984.2 Joan Fontcuberta afirma que a latência da imagem fotográfica, além de uma dimensão mágica e poética, representa uma “aposta”. “A presença da imagem latente como mediação entre a experiência visual e a imagem 122
MARCELO BARBALHO
consumada nos fala de esperança e desejo: das esperanças e desejos que depositamos em um ato de expressão cujo resultado permanece no terreno da incerteza” (FONTCUBERTA, 2012, p. 39-40). Isso desaparece com as novas tecnologias. Hoje, qualquer pessoa pode tomar uma fotografia e visualizá-la imediatamente, além de propagá-la para outras pessoas via redes sociais, contribuindo assim para um enorme fluxo de imagens online. 3. Dois caminhos para um retorno ao passado As ideias esboçadas aqui se desdobram, portanto, em dois caminhos: o arquivo fotográfico e os filmes não revelados, que se cruzam e se complementam num processo que possibilita refazer percursos, acalmar ou alimentar saudades da minha relação com Iara, Emiliano e Marina. Implicam um retorno ao passado, a um tempo e a um espaço que não existem mais, àquilo que foi e nunca mais será. Ao mesmo tem123
MARCELO BARBALHO. FILMES NÃO REVELADOS, FORTALEZA, 2018
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po, minhas fotos compõem um projeto autobiográfico que pressupõe um exercício de autoanálise, visando discutir a memória a partir do “álbum de família”. Ainda há um trabalho a ser feito, um trabalho de busca e garimpagem em envelopes e caixas com negativos e cópias-contato. Um pouco, talvez, como Roland Barthes à procura da fotografia de sua mãe – a foto do jardim de inverno. Além de um passado retratado em imagens de arquivo, a fotografia que está lá, invisível, em estado latente, à espera da hora de despertar, de voltar à luz, abriga uma dimensão potencialmente mágica e onírica. Além de demonstrarem que o tempo passou, o que essas imagens podem suscitar em mim, meus filhos e Marina quando tornarem-se visíveis? O que elas podem nos dizer? O que elas podem vir a ser importa mais do que o que foi registrado nas imagens? Mauricio Lissovsky (2014), ao tratar sobre arquivo fotográfico, acredita que “há um futuro oculto no passado”; “e todo documento de arquivo, na possibilidade de sua redenção poética, cintila” (LYSSOVSKY, 2014, p. 134). É preciso ressaltar, porém, que a esperança de reviver por meio da fotografia uma viagem cada vez mais distante no tempo comporta o risco de não se concretizar como está sendo vislumbrada aqui e se desdobrar numa outra coisa. E se, após uma década na geladeira, não houver mais nenhuma imagem nos negativos?
... 1 Mauricio Lissovsky, professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), disse essa frase numa das aulas do curso “Fotografia e espaço público”, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ, no segundo semestre de 2011. 2 Garry Winogrand deixou centenas de rolos de filmes sem revelar. Quatro anos depois, por conta de uma exposição póstuma em homenagem a Winogrand, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MOMA) mandou revelar os filmes e fazer cópias-contato de todo o material. John Szarkowski, diretor do departamento de fotografia do museu, selecionou algumas imagens que foram ampliadas e expostas com as cópias-contato (FONTCUBERTA, 2012, p. 46). _ BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte
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