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Instapaper Unread Como Ler Bloomsday e modestos conselhos sobre como ler Ulysses Bloomsday Bloomsday Variações em torno de um raro romance A ferida do exílio Leveza e a ousadia mozartianas em Ulisses Não, não cabe num tuíte Bloomsday, ou o longo caminho do Ulisses de Joyce até seu público Aos 90, Drogadito em Uli... Ops, Ulysses Paulo Coelho: Ulysses, de James Joyce, é Na página 550 de Ulysses Anotações sobre sexo no Ulysses de Joyce (Primeira parte de três, quatro ou mais) Anotações sobre sexo no Ulysses de Joyce (Segunda parte de três ou quatro) [sex, 25 dez 13:29]
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Anotações sobre sexo no Ulysses de Joyce (terceira parte de três) Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): VII – Ulysses, de James Joyce [sex, 25 dez 13:29]
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Os desenhos de Henri Matisse para uma edição do Ulysses de James Joyce em 1935 Comemorando o Bloomsday, o Sul21 fala sobre sexo em Ulysses, de Joyce [sex, 25 dez 13:29]
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Ulisses (Ulysses), de James Joyce - Parte I Ulisses (Ulysses), de James Joyce - Parte II Dossiê James Joyce: um guia para entender Dossiê James Joyce: peças para um retrato do artista (I) Dossiê James Joyce: peças para um retrato do artista (II) Dossiê James Joyce: peças para um retrato do artista (III) Dossiê James Joyce: [sex, 25 dez 13:29]
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Como Ler "Ulisses" pt.wikihow.com Vamos lá! É Ulisses. Considerado por muitos o segundo livro mais difícil escrito em língua inglesa (em especial porque o primeiro da lista requer bons conhecimentos de outros oito idiomas), ler Ulisses é uma tarefa divertida e provocativa. Apesar de sua reputação, esse romance não é penoso de ser lido.
Passos
1. Entenda Ulisses. Antes de aprender como lê-lo, é preciso reconhecer o terreno. Ulisses é composto por 18 episódios (ou capítulos). Cada um destes episódios foi seriado separadamente, sendo particulares e diferentes dos outros. Por exemplo: O episódio 14 é uma paródia dos grandes autores da língua inglesa, de Chaucer a Dickens, e o episódio 18 é um extenso monólogo de cerca de 10.000 palavras que engloba duas imensas orações coordenadas. Cada episódio aparenta pertencer a um livro completamente diferente, e é aí onde reside a beleza da obra. Anúncio
2. Não use um guia de leitura. Ao realizar um estudo acadêmico formal de Ulisses, você precisará comprar um tipo de guia de leitura. Eles têm cerca de 400 páginas e esmiúçam Ulisses. Isso é muito bom, dado que esse romance é repleto de trocadilhos e referências esotéricas, e os guias de leitura explicam tudo. Entretanto, pular de guia em guia é bastante enfadonho. A melhor maneira de ler Ulisses, se a intenção é ter uma leitura agradável, é pular de cabeça, poupando todos os guias de leitura para um curso universitário.
3. Entenda que é um texto engraçado. Não, sério... são 700 páginas hilárias. A ideia central do romance é a de que Joyce pega os heróis épicos de Odisseia e os transforma nos patéticos Dublinenses. O final do episódio 4 destaca uma piada escatológica de 10 páginas na mesma linguagem erudita presente em Odisseia. Compreender que cada frase possui um substrato cômico
implícito, seja uma referência esotérica à literatura ou um trocadilho sutil, transforma Ulisses numa comédia muito inteligente.
4. Você não entenderá tudo. Em especial porque foi assim mesmo que Joyce arquitetou seu livro. Não entender tudo é parte da piada, e há humor nisso. Ria sempre que você não captar algo, pois você acabou de participar de uma das mais brilhantes pegadinhas da literatura.
5. Não tenha pressa com cada capítulo. Dado que cada episódio é escrito de modo diferente, leva algumas páginas até acostumar-se com o ritmo.
6. Conheça o episódio. Visto que eles são divergentes em estilo, saber o que esperar logo de início pode ser de grande valia. Assim sendo, aqui vai uma lista de todos os episódios e seu traço cômico. Episódio 1: Romance normal. Episódio 2: Um catecismo informal. Episódio 3: Monólogo masculino elitista. Episódio 4: Provocações cômicas de grandes heróis do passado. Episódio 5: A natureza hipnótica da religião. Episódio 6: Morte. Episódio 7: Caçoada ao jornalismo (é escrito como um jornal, preste atenção às manchetes). Episódio 8: Trocadilhos com comidas. Tudo pode ser comido e tudo come neste capítulo. Episódio 9: Zombaria a Hamlet e aos elitistas que debatem peças obscuras da literatura (também caçoando de alguns eruditos que posteriormente analisariam Ulisses). Episódio 10: Esse capítulo em nada tem a ver com as personagens principais. É, ao contrário, um monte de contos acerca das personagens secundárias. O humor provém da falta de propósito e de que a maior parte das personagens secundárias fazem graça das principais. Episódio 11: Tudo é um trocadilho musical. Muitas onomatopeias são usadas. Episódio 12: Há dois narradores: um é muitíssimo coloquial, chegando ao ponto de não fazer sentido, e o outro é super científico, também beirando a falta de nexo. A competição entre ambos gera a comédia. Episódio 13: Narrado por uma jovem menina, e tudo é uma piada sexual. Episódio 14: Uma paródia bem elaborada de todos os figurões da literatura inglesa. Episódio 15: Escrito como uma peça alucinógena no distrito da luz vermelha. Episódio 16: Esse capítulo é bastante ambíguo, e a comédia surge da confusão de personagens por outras personagens. Episódio 17: Escrito como um catecismo, o riso é provocado pela questão super científica e a resposta aplicada ao trivial. Episódio 18: Fluxo de consciência da esposa de Bloom.
7. Use um esquema. Joyce escreveu dois organizadores grĂĄficos, chamados de esquemas. Eles podem ser encontrados (em inglĂŞs) aqui: http://en.wikipedia.org/wiki/Linati_schema_for_Ulysses e aqui: http://en.wikipedia.org/wiki/Gilbert_schema_for_Ulysses
8. Leia em voz alta. Muitos trocadilhos fazem mais sentido quando escutados em voz alta.
9. Defina um cronograma. Ler esse romance é difícil, e por isso ter um cronograma planejado ajuda a não desistir da leitura.
10. Leia outras obras de James Joyce antes. Uma boa parte de Ulisses zomba de Dublinenses e Retrato do Artista quando Jovem, portanto lê-los antes lhe permitirá fazer contato com o estilo de Joyce e ter o conhecimento prévio necessário para algumas piadas do autor.
11. Anote. Ao entender uma piada, anote nas margens ou faça notas pelo e-reader. Isso o auxiliará com outras piadas similares.
12. Ria. Essa é uma obra de ficção cômica. Ria alto. Ria de tudo. É divertido.
Dicas Não desanime! Não é tarefa simples, mas é exequível. Forme um grupo de amigos para ler com você. Duas cabeças pensam melhor que uma, em particular na tentativa de desvendar os trocadilhos complexos que James Joyce emprega.
Eu tinha 16 anos quando li Ulisses pela primeira vez. Se um adolescente consegue, você também pode.
Avisos Ao começar a ler Ulisses, você começará a falar sobre Ulisses; ao falar sobre Ulisses, você estará a um passo de perder amigos.
Materiais Necessários Uma cópia de Ulisses (de preferência uma com margens grandes). Tempo. Uma caneta ou e-reader para anotações. pt.wikihow.com This article was downloaded by calibre from /read/670182808
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Bloomsday e modestos conselhos sobre como ler Ulysses miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · June 16, 2015 Lembra o Paulo Timm que hoje é o Bloomsday e eu simplesmente ignorei a data. Tem razão o Timm. Esqueci que hoje é o 16 de junho de 1904, o dia em que se passa o Ulysses de Joyce. Em todo o mundo, é o único feriado – falo da Irlanda — dedicado a um personagem de livro, a uma verdade ficcional, no caso Leopold Bloom. Hoje, em Dublin, há atores e leitores refazendo cenas do livro pelas 16h e 19 ruas onde se passa o romance. Tenho uma boa relação com o livro, que li nas três traduções brasileiras. A melhor disparada é a última, de Caetano Galindo, que saiu pela Penguin. Nos últimos dias, vi que há também uma edição de bolso da mesma editora com o lindíssimo e quente monólogo de Molly Bloom que finaliza o livro (foto abaixo). São mais ou menos 80 páginas de um só parágrafo sem pontuação, um milagre que só o genial Joyce poderia criar e tornar compreensível.
Creio que é ali que Molly conta — entre mil fantasias e recordações — como ela alimentava Bloom no ínicio do namoro, dando-lhe comida já mastigada num boca a boca ao estilo mamãe-pássaro. Pura nojeira poética, uma maravilha do ponto de vista literária. Há inúmeras referências a Joyce e ao Ulysses neste blog, basta clicar aqui. Quase todas elas são sobre Bloom, mulher e amigos. É um romance que, se não muda uma vida, dá-lhe nova perspectiva e sensibilidades para outras realidades artísticas. Não é um livro fácil, mas dou um conselho aos futuros leitores: leiam Ulysses como se ouvissem uma música, procurem não ficar parando a toda hora para pensar no quebra-cabeças de cada frase. A tradução de Galindo é de longe a mais musical. E, gente, pensem que os escritos poéticos são normalmente inapreensíveis em sua totalidade. Como leitor de Ulysses, digo que, após a leitura, lembrei de algumas daquelas partes incompreensíveis dando-lhes significados que podem ser livres-associações, mas que… Por que não?
James Joyce O livro é muito explícito e não surpreende que tenha sido acusado de pornografia. Ele é pornográfico ao mais alto e inacreditável grau. Uma de minhas maiores alegrias foi poder falar em público por duas vezes sobre a originalíssima abordagem de Joyce à sexualidade no romance. Digo mais, digo que boa parte dos jovens de hoje encontrariam nele problemas de incorreção política no livro, pois penso que vivemos dias semelhantes aos que viveu Laurence Sterne enquanto escrevia seu Tristram Shandy. Os jovens são mais conservadores do que os velhos e certamente o fato de Gerty McDowell ser coxa acabaria em problema para a dignidade — altíssima — do concupiscente e por vezes feminino Bloom. Amo este romance e termino este improviso dizendo só mais duas palavras: leiam Ulysses! Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · June 16, 2015 This article was downloaded by calibre from /read/644088434
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Bloomsday miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · June 23, 2009 Sim, claro, eu sei que o Bloomsday já passou há exatamente uma semana. Eu tinha reservado as duas fotos abaixo para publicar no dia 16 de junho, mas me esqueci… Hoje, já que não consegui preparar um post devido às arrumações no blog, publico as duas fotos de Marilyn Monroe lendo Ulysses. Para minha pouca surpresa, vários blogs ingleses fizeram isto na última terça-feira. Até parece que as fotos de Eve Arnold são recentes…
O estranho é que muitos duvidam que Marilyn tenha lido Ulisses. Mais estranho ainda é que Ulisses permaneça com a aura de livro impenetrável, difícil. Há enigmas no romance? Sim, e como! Dizem que leva-se em média 100 anos para compreendê-lo inteiramente… Mas, como escreveu o Idelber:
Não se deixe levar pela fama de “difícil” do livro: poucas vezes escreveu-se coisa tão engraçada, escandalosa, divertida e sexual como Ulisses. Em cada diálogo, cada cena, cada capítulo, mil sentidos. O treco não acaba nunca.
Além do mais, a foto, de 1955, é do ano anterior em que ela casou com o dramaturgo Arthur Miller. Eles já estavam “dating”. Com ou sem Miller, Marilyn poderia ler Ulisses. Porém, como suponho que o casal falasse também de arte, fantasio que Miller tenha sugerido o livro a Marilyn. E depois sou eu o preconceituoso… Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · June 23, 2009 This article was downloaded by calibre from /read/653956464
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Bloomsday miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · June 16, 2010 Além das datas religiosas, não creio haver outro feriado nacional dedicado a um personagem de ficção. O Bloomsday é um feriado comemorado no dia de hoje, na Irlanda, em homenagem ao livro Ulisses, de James Joyce. Atualmente, a amplitude do Bloomsday ultrapassa em muito à esfera de Ulisses. É, em verdade uma data em que se homenageia toda a literatura. Só os joyceanos absolutos — dentre os quais humildemente me incluo — relembram os acontecimentos vividos pelos personagens de Ulisses por dezenove ruas da cidade de Dublin e dezesseis horas no dia 16 de junho de 1904. Para os leitores restantes de todo o mundo, é a data em que se comemora toda a literatura.
Há controvérsias sobre quando o Bloomsday começou. Alguns especialistas indicam 1925, três anos
após o lançamento do livro; outros dizem que foi na década de 1940, depois da morte de James Joyce. A hipótese mais aceita indica é que foi em 1954, na data do quinquagésimo aniversário do dia retratado em Ulisses. Joyce escolheu o dia 16 de junho para ser imortalizado em sua obra porque foi nesse dia que ele teria mantido relações sexuais com sua futura companheira Nora Barnacle, na época uma jovem virgem de vinte anos. Estudiosos afirmam que, na verdade, o casal apenas “caminhou junto” pela primeira vez neste dia. O que sabemos é que, quando da primeira relação sexual, Nora teve medo de completar o coito e o masturbou “com os olhos de uma santa”, como Joyce relatou em carta.
Ao lado dos devotos de Joyce, criou-se uma curiosa seita de tementes (ou hostis) a Joyce. É como se sentissem obrigados àquilo — a tentar entendê-lo totalmente ou repeti-lo. É uma tolice bastante difundida. Ulisses é tão irrepetível quanto a Arte da Fuga de Bach e sua leitura, para o leitor comum, é tão necessária quanto a audição de A Arte para o ouvinte de iPods. Apenas fico desconfiado quando um autor nega-se a conhecer a obra. Porém, como há historiadores que preferem desconhecer largos períodos… Mas tergiverso. Assim como falta-nos tudo para que nossa cultura recrie um Bach, assim como algumas
obras deste são tão impenetráveis e intricadas que alguns dizem terem sido escritas mais para a leitura de eruditos do que para a audição, o livro de Joyce é um complicadíssimo monumento cultural do qual temos a impressão de nos afastar a cada dia. Mas não me digam que não pode ser lido. Tanto quanto ouço A Arte Da Fuga, li o livro de Joyce desde minha pobre perspectiva e diverti-me muito.
Pois o romance é perfeitamente compreensível. Há pontos de inserção para mortais. As minúcias e a complexa teia de referências são importantes, mas podem permanecer semi-entendidas sem esfacelamento de sua essência. Prova de que o ludus nem sempre está associado à compreensão cabal. (Como disse Karen Blixen, não há nenhum problema em não entender inteiramente um escrito poético). A história do livro é simples. Trata-se da vida de pessoas comuns da amada/odiada Dublin de Joyce: o professor secundarista Stephen Dedalus; seu amigo Buck Mulligan; o vendedor Leopoldo Bloom — angustiado com a possível traição de Molly, sua mulher — ; conversas sobre Shakespeare numa biblioteca; a surra que Bloom toma de um antissemita; sua mastubação observando duas mulheres; a mijada no jardim com Stephen; e a chegada em casa, onde deita-se com Molly, a qual finaliza maravilhosamente o romance num monólogo interior prenhe de pornografia. E é isso.
Cada um dos capítulos cobrem aproximadamente uma hora do dia e guarda debochada relação com a Odisséia, de Homero. E aqui tenho de referir os milhares de torcadilhos, paródias — que parece ser a maior arma da arte moderna — , neologismos e arcaísmos. Eu coloquei nele tantos enigmas e quebra-cabeças que ele manterá os professores ocupados durante séculos, disse Joyce. Então, hoje é o dia de comemorar a existência do duro, engraçado, divertido, complicado, pornográfico, sexual e erudito livro de Joyce. Lembremos de Leopold Bloom, de sua mulher Molly, de Stephen Dedalus e de Buck Mulligan!
Obs.: As fotos de Marilyn Monroe lendo Ulysses e outro livro são da autoria de Eve Arnold e são de 1955. Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · June 16, 2010 This article was downloaded by calibre from /read/653956365
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Variações em torno de um raro romance miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · May 13, 2012
Ulysses James Joyce Penguin Por Donaldo Schüler O Estado de S.Paulo Os leitores de James Joyce no Brasil estão em festa. Apareceu uma terceira tradução do Ulisses. O romance de Joyce teve o privilégio de encontrar tradutores qualificados. Antônio Houaiss, além de crítico literário e tradutor, foi um dos melhores conhecedores da língua portuguesa, mérito atestado pelo substancioso dicionário que nos deixou. Bernardina da Silveira Pinheiro é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro com estudos no exterior centrados em Joyce. E agora aparece Caetano W. Galindo – professor de Universidade Federal do Paraná, doutor em Letras – com a tradução de Ulisses. Caetano prefere Ulysses. Uso a tradução de Houaiss desde o momento em que ela apareceu, leio ainda a primeira edição, a de 1966. Interessei-me pela tradução de Bernardina (2005) e agora (2012), para comemorar a tradução de Caetano, sou convidado a me pronunciar sobre todas. As três têm méritos. Tradução literal não há. Tradução, para ser boa, terá que ser criativa. A criatividade muda de tradutor para tradutor. Aplausos merecem os editores e os leitores brasileiros que correspondem positivamente ao desafio de um texto exigente. Grande literatura sem grandes leitores não há. Leitores nossos prestigiaram Vieira, Machado, Euclides, Clarice, Rosa, João Cabral… E agora incorporamos
Joyce, abrasileirado pelas traduções. Caetano, querendo que o romance seja lido como romance, expressa reservas a notas que desviem do texto. Caetano não recusa recursos que facilitem a compreensão. Como usá-los fica por conta das preferências de cada um. Visto que Joyce abala a tradição narrativa inaugurada por Homero, salientar peculiaridades ampara a decisão de enfrentar procedimentos originais. Os que nos aproximamos de Homero, Sófocles, Dante, Shakespeare acolhemos os que apontam caminhos. Textos sobre textos ampliam acessos. Caetano dedicou anos à tradução de Ulisses. Quantas horas lhe consumiram estudos sobre Ulisses? Livros construídos sobre livros erguem o edifício da produção literária. Úteis são as notas que Bernardina oferece depois de concluir a tradução. A editora Penguin decidiu socorrer os leitores brasileiros com uma introdução de mais de 70 páginas, feita por Declan Kiberd. Isso ainda é introdução ou já é um livro que leva a outro livro? Se a editora nos tivesse dado a oportunidade de ver brasileiros nesse espaço, teríamos tido a oportunidade de averiguar a recepção de Joyce no Brasil. Por que não o próprio Caetano? A brevíssima informação a que se limita sobre a composição de palavras fica aquém do cuidado com que aborda invenções joycianas. Kiberd nos dá um Joyce pacifista. Pessoalmente, prefiro o Joyce guerreiro, oswaldianamente antropofágico, o Joyce do Deus-guerra (he war) do Finnegans Wake, o Joyce do conflito de palavras e de ideias, o Joyce que, ao escrever inglês, implode a língua do dominador, a língua do império britânico. Aliás, o primeiro capítulo de Ulisses nos arrasta a uma batalha ferida dentro de uma fortaleza, a Torre Martello, em Dublin, construída em princípios do século 19 para resistir a uma temida invasão napoleônica que nunca se realizou. Combatem três jovens: Buck Mulligan e Stephen Dedalus, dois irlandeses em luta interna, além de Haines, um oxfordiano, representante do imperialismo inglês, armado de carabina no pesadelo de Stephen. Buck Mulligan, brincando com o seu próprio nome, diz: “Tripping and sunny like the buck himself.” Houaiss: “Ágil e ensolarado como um cabrito mesmo.” Bernardina: “Saltitante e radioso como o próprio cervo.” Caetano: “Ágil e radiante como um buque de guerra.” Caetano, afastando-se do significado de buck (macho de homens ou animais) fica mais próximo do jogo de palavras proposto por Joyce. Se ele decidisse, em vez de “buque de guerra”, “bucke de guerra”, teria incorporado o nome da personagem, expediente que nos levaria a muitas associações: macho, bode, sátiro, sacerdote, demônio… Buck Mulligan denuncia o amigo Stephen Dedalus de matricídio, crime dos mais graves para um tragedista como Ésquilo. Buck Mulligan estende um espelho a Stephen. O incriminado, ao contemplar-se, vê a imagem de um dogsbody. Houaiss, para traduzir dogsbody, inventa canicarcaça. Por quê? Dogsbody em inglês é expressão coloquial. Bernardina opta pela tradução literal, corpo de cão. Mas há uma sutileza. Joyce cria atmosfera sagrada. Buck Mulligan – sátiro, sacerdote satânico -, pararodiando a missa, abençoa a paisagem. A missa negra faz alusão ao godsbody, o corpo de Deus em que, no ritual católico, a hóstia consagrada se transforma em corpo de Deus. Ao observar as linhas do seu rosto no espelho, pergunta Stephen: “Quem escolheu esta cara para mim? Este dogsbody, que devo libertar dos vermes? It (o espelho) pergunta-me também.” Stephen conversa com o espelho. O espelho inverte god (deus) em dog (cão). Caetano percebendo o jogo oferece a tradução irmãodasalmas. Lance arguto! A invenção de Caetano evoca o poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, musicado por Chico Buarque de Holanda. Cabral designa “irmão das almas”, cada um dos dois que conduzem Severino ao último repouso. Acontece que as três traduções prendem Stephen na morte. Isso é joyciano? Joyce cultiva concepção circular do universo, passagem da morte para a vida e da vida para a morte. Se não
quisermos recorrer ao gesto humilhante de dizer em nota de pé de página que o inglês tem recursos que faltam ao português, temos que achar outra saída. Enfrentei o problema na tradução de Finnegans Wake, pág. 276. Se eu dissesse, que meu cachorro se chama Sued, ninguém me olharia espantado. Pois sued inverte especularmente deus. Proposta: “Quem escolheu esta cara para mim? Esta cara de suedcão, roída de vermes. Esta é também a pergunta desta coisa.” Momentos depois, numa clara alusão a Shakespeare, aparece a sombra da mãe, Stephen a enfrenta assombrado: “No mother. Let me be and let me live.” Caetano: “Não mãe. Deixe-me estar e deixe-me viver.” Prefiro a tradução de Houaiss: “Não, mãe. Deixa-me ser e deixa-me viver.” Stephen roga o direito permanente de ser (autônomo, inventor, escritor). Bernardina entende que Stephen pede tranquilidade: “Não, mãe! Me deixe em paz me deixe viver.” Traduções nos fazem pensar. No segundo capítulo, Stephen Dedalus, professor de história, termina a aula com uma charada que ele próprio inventou: The cock crew/ The Sky was blue:/ The bells in heaven /Where striking eleven,/ Tis time for this poor soul./ To go to heaven. Tradução de Caetano: “O galo cantou,/ O céu azulou, E os sinos de bronze /Bateram as onze./ É hora do incréu/ Seguir para o céu.” O que teria levado Caetano de “pour soul” a “incréu”? “Incréu” rima com “céu”. Já sabia Drummond que nem sempre rima exprime solução. Ao que se sabe incréus não sobem aos céus, o destino é dantescamente outro. Improvisemos outra proposta: “É tempo dessa pobre alma/ Buscar o céu com calma.” O texto da charada deve corresponder à solução. Caetano: ” – A raposa enterrando a avó embaixo de um azinheiro.” Nossa perplexidade diante da tradução de Caetano é maior do que a dos alunos confrontados com a resposta de Stephen: “The fox burying his grandmother under the holybush.” Ora, tudo leva a crer que Stephen armou a charada com experiências pessoais. Neste caso, a raposa (o intelectual) é ele. Pela altercação do primeiro capítulo, Stephen leva na consciência a morte da mãe. Na charada, grandmother não é avó, grandmother é a grandemãe (Igreja, Inglaterra). Stephen roga que sua mãezinha piedosa e poderosa repouse no céu para que ele possa viver em paz e levar a vida de artista (Dedalus) a bom termo. Stephen empenha-se em enterrar a grande mãe para que suma a sombra que o atormenta. A solução de Stephen a sua própria charada ecoa na resposta dada a Deasy, o diretor da escola, momentos depois: “A história é um pesadelo do qual tento despertar.” A história é a mãe, a grande mãe com a qual Stephen está em conflito do princípio ao fim. Traduzir é difícil. Traduzir Joyce representa dificuldade dobrada. Antes de ousar uma quarta tradução, convém revisar as existentes, inquestionavelmente boas. O que é bom pode ser ainda melhor. Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · May 13, 2012 This article was downloaded by calibre from /read/653956345
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A ferida do exílio miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · May 13, 2012 Por Martim Vasques da Cunha, na Rascunho.
James Joyce por Robson Vilalba My wound tires me. James Joyce, Exiles (Exilados) Nascido a 2 de fevereiro de 1882 em Dublin, James Joyce sempre foi um jovem inquieto e preocupado com o fato de que a Irlanda o traía constantemente, tratando a nova geração de artistas como “a porca que devora sua prole”. Havia poucas oportunidades: sufocada pela bota inglesa, fossilizada por um catolicismo moralista, a nação era descrita por uma palavra que o próprio não hesitou em colocar na abertura do conto As irmãs: paralisia. Era a paralisia espiritual do nacionalismo pueril das peças mitológicas de W.B. Yeats e John M. Synge que alegravam o público do Abbey Theatre, ponto de encontro dos intelectuais dublinenses. A mente de Joyce, como o próprio dizia aos colegas, lhe parecia ser mais interessante do que o que acontecia no país. Absorvia o melhor de uma civilização ocidental que a Irlanda se recusava em aceitar; prodígio de intelecto e de arrogância, já criava uma teoria estética que se aproveitava de Dante, Aristóteles e Tomás de Aquino; e ficava absolutamente maníaco quando via um fato inusitado no cotidiano de Dublin, não
hesitando em anotá-lo em um caderninho, para depois apelidá-lo carinhosamente de “epifania”. Dirigiase para um lugar ainda inexplorado e a sociedade onde vivia não percebia o que acontecia nela porque estava viciada nas correntes do provincianismo. Segundo T.S. Eliot, ser “provinciano” não significa “não possuir a cultura ou o requinte da capital”, muito menos ser “estreito no pensamento, na cultura e no credo”. É algo além — e mais trágico para a cultura de uma nação que se pretenda saudável. Refere-se “também a uma distorção de valores, à exclusão de alguns, ao exagero de outros, que resulta, não de uma falta de ampla circunscrição geográfica, mas da aplicação de padrões adquiridos dentro de uma área restrita, para a totalidade da experiência humana, que confundem o contingente com o essencial, o efêmero com o permanente. (…) É um provincianismo, não de espaço, mas de tempo (…), a propriedade da qual os mortos não partilham. [Sua ameaça] é que podemos todos, todos os povos do mundo, ser provincianos juntos; e aqueles que não estiverem satisfeitos podem apenas tornar-se eremitas”. Joyce não chegou a se tornar um eremita. Foi além: assumiu a postura do gênio que vai contra qualquer regra da sociedade. Recusou a Igreja, não aceitou o que seus pais lhe ensinaram, muito menos os conselhos dos amigos prudentes. Encaminhava-se para “a completude e a experiência da vida” e não se importava em admitir que havia um abismo separando-o da antiga geração. Sua jornada era tão conscientemente solitária que, ao se encontrar com W.B. Yeats, fez questão de ampliar a lacuna. Conta-se que Joyce respondeu da seguinte forma a Yeats, após os dois terem se encontrado em uma reunião em que os elogios deste não encantaram o primeiro: “Nós nos encontramos tarde demais. O senhor é velho demais para que eu tenha qualquer efeito sobre o senhor”. Joyce era ainda um escritor em formação; escrevera alguns versos, planejava alguma carreira de cantor ou de ator. Precisava de mais algumas experiências para realizar aquilo que acreditava ser a sua missão: “forjar a consciência incriada da sua raça”. Buscava a compreensão da realidade como uma unidade, como a manifestação de um divino que se imiscuía no cotidiano paralisado de Dublin. Apesar de seu Non serviam em relação à Igreja — atitude com a qual Joyce manteve uma relação ambígua por toda a vida —, é nítida a intenção de se mostrar como um artista que procura um Deus que está além do “grito na rua” em que seus compatriotas o transformaram. E ele sabia que, para forjar a tal consciência, teria de aceitar dois fatos extremos: a compreensão da morte como parte integrante da vida e o reconhecimento da condição humana como perpétuo exílio. Espírito torturado Esses fatos seriam o fardo nos ombros de Stephen Dedalus, o anti-herói de Retrato do artista quando jovem, romance autobiográfico que mostra James Joyce exibindo ao mundo o que aprendeu ao aplicar seu espírito às artes desconhecidas. Seu nome é uma união de duas personalidades marcantes do mundo antigo: o primeiro mártir cristão, Estevão, que, conforme nos conta Atos 7:55-60, foi apedrejado pela multidão de Jerusalém ao gritar na rua sobre a ressurreição de Cristo; e o arquiteto Dédalo, criador de construções como o labirinto que aprisionava o Minotauro, e pai de Ícaro, com quem fugiu da sua própria criação ao criar asas de cera, mas viu seu filho morrer afogado no mar por não escutar os conselhos de voar distante do sol. Joyce não escolheu esses nomes ao acaso. Acreditava realmente que era um mártir e que a literatura era a fuga da paralisia dublinense. A figura de Stephen surgiu na adolescência e foi elaborada, em primeiro
lugar, em um romance autobiográfico inacabado, Stephen hero. Ela tinha todas as qualidades e defeitos de Joyce: a petulância, o pedantismo de uma erudição que se preocupa com sua própria mente, a constante intransigência com o país, a família e os amigos. Entretanto, ao transformar Stephen hero em Retrato do artista, Joyce queria aprofundar a objetividade da consciência e, além disso, tornar Stephen mais distante de si próprio — era necessário que se tornasse um personagem e não apenas um alter ego. Retrato do Artista realiza isso com perfeição: o início é um passeio pela consciência infantil do jovem Stephen; conhecemos sua família, sua educação, seus amigos, sempre de forma indireta; pouco a pouco, o estilo se desenvolve para uma exploração de sentimentos e de emoções que se transformam em uma música das sensações. Joyce retrata o crescimento de uma mente que opta pelo exílio dentro do seu país porque a perseguição é a única forma de encontrar um sentido na vida dublinense. Como o próprio Dédalo, Stephen está preso não só no labirinto onde foi jogado, mas também no que ele próprio criou — onde seu espírito está sendo torturado por pensamentos que não consegue apreender corretamente. Esta é uma observação importante porque sem ela não podemos entender Ulysses, e nos permite corrigir um grande erro que rondou a obra de Joyce: a de que ela seria uma apologia do orgulho satânico. Sem dúvida, Stephen é um orgulhoso, e falaremos sobre isso adiante; mas é o orgulho patético do jovem que se sente mais importante do que o país onde vive. Não se trata de revolta contra a realidade ou contra Deus. A citação do nome de Stephen ao primeiro mártir cristão prova isso — apesar do Non serviam contra a Igreja que ecoa nos ouvidos. A prisão mental de Dedalus, sua planejada fuga para o exílio em Paris (que ocorre no final de Retrato) e o encontro com sua vocação artística são apenas os primeiros passos para a verdadeira intenção de Joyce, e que se revelam como uma profunda análise do artista maduro sobre o que move a pessoa determinada em criar um novo mundo dentro dos limites do exílio. Stephen sempre se deparará com a prisão da sua alma — que foi criada justamente pelo orgulho da traição. E o orgulho da traição, se isso for possível, acontece justamente por causa da condição que chamamos de exílio. O poeta russo Joseph Brodsky, um exilado de primeira categoria, escreveu certa vez que o verdadeiro exílio nos ensina três coisas: que a condição humana é um exílio metafísico que nos põe em constante estado de tensão, seja no pensamento ou no espírito; que alguém que vive o exílio sempre será um ser voltado para o passado, para o lugar onde viveu e ao qual não pode mais retornar — como foi o caso do próprio Joyce com Dublin, em que ele dizia que, se a cidade fosse destruída por um incêndio, ela poderia ser reconstruída através de seus livros; que o exílio é, antes de tudo, uma escola de humildade. Humildade é algo que Stephen Dedalus não possui. Durante todo o Retrato, deixa o orgulho tomar conta de suas atitudes, mesmo quando consegue uma aparente libertação após ter uma epifania em Sandycove, ao ver uma moça à beira da praia e sentir o chamado da literatura. Seu lema de sobrevivência explicita isso quando fala sobre sua ars poetica ao amigo Cranly: a de que ele construirá uma obra fundada no “silêncio, exílio e astúcia” (silence, exile and cunning). O que seria essa astúcia? Justamente a falta de humildade que fará de Stephen um mártir de seus próprios pensamentos e ações. Ou pior: o desejo alucinado de ser traído a qualquer custo, seja pelos próximos ou pelo próprio país. Vai para Paris, mas pede antes uma benção do pai, chamando-o de “velho artífice”; como alguém que gosta de esconder pistas, Joyce sugere que nem o próprio Stephen está certo da sua condição de mártir ou de rebelde. É claro que não estava. O motivo é simples: ninguém suporta ser traído ou viver numa constante suspeita de que será traído. Naquela época, nem Joyce, que cometeu o mesmo erro, sabia se estava pensando ou
fazendo a coisa certa. E ele conhecia a razão: tanto Stephen Dedalus como James Joyce voltariam a Dublin para ver a lenta agonia de sua mãe. Acerto de contas Para a criação de um novo mundo, é necessário que o artista entre em comunhão com o mundo real onde vive e aceite as suas imperfeições, suas incertezas e, sobretudo, a sua descrença. Este talvez seja o verdadeiro tema de Ulysses, romance que lançou James Joyce ao topo da literatura mundial e que se passa em um único dia, 16 de junho de 1904, o Bloomsday. É uma continuação de Retrato do artista quando jovem porque, logo no início, nos reencontramos com Stephen Dedalus, que voltou de Paris para justamente acompanhar a morte de sua mãe. Também acompanharemos a peregrinação de Leopold Bloom, vendedor de anúncios de descendência judaica, preocupado com várias coisas, entre elas o funeral de seu amigo Paddy Dignam, o luto mal resolvido por um filho morto prematuramente (Rudy), a sua fixação por uma amante que se comunica somente por correspondência (Martha) e, sobretudo, a possibilidade de que, enquanto anda pelas ruas de Dublin, sua esposa Molly o trai com o garanhão Blazes Boylan. Por que Joyce escolheu o dia 16 de junho de 1904 para ser a data que marca a ação de seu livro? A razão é singela: neste mesmo dia, o jovem James Augustine Joyce saíra com sua futura companheira, Nora Barnacle, que, como o próprio diria anos depois a ela, “fez dele um homem”. Joyce estava na mesma situação de Stephen Dedalus: atormentado por dúvidas, pela culpa de ter visto a mãe agonizante e por não ter cumprido os últimos desejos dela ao se recusar a proferir a oração dos ritos finais. Além disso, o espectro do fracasso o perseguia: de nada adiantava ser um grande talento se não estava plenamente desenvolvido. O encontro com Nora marcou-o como a possibilidade de entrar em contato com o mundo e deixar para trás a solidão que sentia desde a morte da mãe; e, com isso, Joyce acreditou ter encontrado uma companheira para toda a vida, apesar das observações sarcásticas de seu pai, que afirmava que ela jamais largaria o filho, numa referência nada delicada ao seu sobrenome (Barnacle significa “carrapato”). Portanto, Ulysses é uma das maiores cartas de amor já escritas. É também o acerto de contas de Joyce com o seu presente e com o seu passado — representados respectivamente por Leopold Bloom e Stephen Dedalus. Ambos se encontrarão nesse dia para que achem uma maneira de dar rumo a suas vidas — para que o sentido das coisas surja como se fosse algo óbvio e os faça ir para frente, nunca para trás. A presença de Nora Barnacle aparece também na figura de Molly Bloom, a esposa de Leopold, uma mulher que nos parece ser uma aranha devoradora, mas, no fim, é quem fará a unidade na existência destes dois homens dilacerados. O acerto de contas com o passado não se dá apenas na esfera pessoal. Joyce também resolve, em seu romance, o seu próprio lugar na literatura. Para isso, cria uma estrutura romanesca baseada em três pilares: Homero, Dante e Shakespeare. O primeiro é nítido: além do título do romance, cada episódio do livro é inspirado em um canto da Odisséia, épico de Homero que conta o retorno de Ulisses, o famoso guerreiro de Tróia, à sua Ítaca. Dessa forma, Leopold Bloom seria ninguém menos que Ulisses; Stephen Dedalus seria Telêmaco, o filho de Ulisses; e Molly Bloom representaria Penélope, apesar de não ser uma esposa tão fiel assim. Na visão de Joyce, Ulysses não é apenas um romance sobre o exílio, mas um romance sobre a volta para a casa após uma longa temporada no exílio. Bloom e Dedalus são deslocados
em Dublin e ambos procuram uma pátria espiritual; o tema da paternidade é recorrente: os dois buscam pais e filhos desaparecidos em suas vidas e descobrem o que procuravam ao se encontrarem quase por acaso. Entretanto, nada em Joyce é por acaso; ele aproxima a mitologia grega do cotidiano dublinense usando os artifícios mais complicados e, ao mesmo tempo, simples da literatura; usa e abusa de paralelismos no tempo e no espaço, criando uma sensação de sincronicidade em eventos aparentemente desconexos; desenvolve o fluxo de consciência não como ferramenta narrativa, mas como um modo de o leitor entrar nos segredos mais íntimos dos personagens; e, sobretudo, registra minuciosamente cada ato, cada hora, cada sensação, cada fala de qualquer personagem que seja importante em sua estrutura porque quer provar, através de seu livro, que o passado pode ser revivido no presente. O confronto com o passado dentro do presente só será resolvido por meio da influência de Dante. Joyce quis fazer com Ulysses o que o poeta florentino fez com A divina comédia: registrar toda a experiência da civilização ocidental em um único tomo. Daí a referência enciclopédica a obras de literatura, teologia, botânica, história da arte, história universal que estão espalhadas pela narrativa, como se fosse um corpo com vida própria. Contudo, de nada adianta essa síntese se o homem comum, representado por Leopold Bloom, não consegue se confrontar com o fantasma da morte. No episódio “Hades”, inspirado no canto homérico em que Ulisses desce aos infernos para encontrar com o espectro de seu pai, Joyce descreve a descida de Bloom ao reino subterrâneo. Bloom se dirige com alguns amigos (entre eles, o pai de Stephen, Simon Dedalus) para o funeral de Paddy Dignam, um velho conhecido da boemia dublinense. Todos se lembram da morte de algum colega, de algum ente querido; Bloom se lembra da morte de seu pai, que se matou por envenenamento, e de seu filho Rudy. Ao ver o caixão de Dignam ser enterrado, conscientiza-se de que seu destino final não é apenas a morte, mas também o esquecimento. Mesmo qualquer espécie de oração não resolve esse problema. “Será que alguém realmente reza?”, ele se pergunta. Bloom sabe que precisa fazer algo para não cair no olvido. Mas o quê? O inferno é muito grande aos olhos de Bloom; existem muitos mortos, muitos a serem esquecidos. E então percebe que, em breve, se não fizer nada, pode ser um deles: “Quantos, meu Deus! Todos estes aqui andaram certa vez por Dublin. Mortos fiéis. Assim como vocês são agora assim certa vez fomos nós”[1]. O maior pecado de Bloom é não fazer algo da sua vida que valha a pena. O mesmo pode se dizer de Stephen Dedalus. Joyce faz seu alter ego, ocupado por uma mente que elabora os mais complexos teoremas, incapaz de lidar com a vida como ela é, confrontar-se com o espectro de William Shakespeare. É o embate entre a antiga literatura inglesa e a nova literatura — o modo como Stephen encontrou para acordar do pesadelo chamado História. Isso é motivo para uma das cenas mais divertidas de Ulysses, quando Dedalus explica para alguns colegas o que seria sua inusitada teoria de que Shakespeare é, ao mesmo tempo, pai e filho de Hamlet. O teorema é o seguinte: “Hamlet é Hamlet, o filho morto prematuramente do próprio Shakespeare; Shakespeare é o espectro, o marido ultrajado, o rei deposto; Anne Shakespeare, nascida Hathaway, é a rainha culpada”. Stephen faz uma mistura de pseudo-biografia, fofoca literária e delírio hermenêutico para explicar que as peças de Shakespeare não saíram de uma existência imparcial e distanciada da vida, mas sim de uma experiência traumática no conhecimento de sua própria maldade e da maldade dos outros — no caso, o suposto fato de que o jovem Shakespeare foi abusado sexualmente por sua esposa Anne, 15 anos mais velha. A tese choca os colegas de Stephen. “Mas essa intromissão na vida familiar de um
grande homem”, retruca um; para eles, Anne Hathaway foi um detalhe na vida de Shakespeare, uma mulher a quem ele não deu a mínima importância, pois cedeu, em seu testamento, nada mais nada menos que “sua segunda melhor cama”. Um erro, enfim. “Bobagem!, diz Stephen rudemente. Um homem de gênio não comete erros. Seus erros são voluntários e são portais de descoberta.” Esta apresentação é a forma de Stephen lidar com a obsessão pelo exílio e pela traição. Ele se sente culpado por ter traído sua mãe ao não cumprir seus últimos desejos e sente que foi traído pela Irlanda e por seus amigos. Mas, no fundo, também percebe que algo na sua vida saiu errado — e a culpa é exclusivamente sua. A cena na Biblioteca Nacional mostra exatamente isso. Pouco a pouco, Stephen se sente cercado por seus colegas e, quando menos se espera, se rende à imbecilidade coletiva. O clima de incompreensão e de incomunicabilidade cresce cada vez que Dedalus tenta provar sua teoria. Stephen está muito fraco espiritualmente — o orgulho da traição já consumiu suas forças. E então vem um dos momentos mais reveladores de Ulysses, quando alguém afirma o seguinte a Dedalus: — O senhor é uma ilusão — disse sem rodeios John Eglinton a Stephen. — O senhor nos fez percorrer todo esse caminho para nos mostrar um triângulo francês. O senhor acredita em sua própria teoria? — Não — disse prontamente Stephen. É neste instante que Joyce se mostra um verdadeiro Dédalo, muito superior ao seu personagem, despistando o leitor, indicando a verdadeira direção para escapar do labirinto que criou. Vários estudiosos deixam esse trecho de lado e afirmam que o próprio Joyce estava brincando com a teoria de Shakespeare. Para René Girard, este é um erro gigantesco[2]. O “não” de Stephen é o que ele fala em voz alta; contudo, algumas linhas depois, saberemos o que verdadeiramente se passa em sua alma: Eu acredito, Ó Senhor, ajude minha descrença. Isto é, me ajude a crer ou me ajude a descrer? Quem ajuda a crer? Egomen. Quem a descrer? Um outro camarada? A referência é ao evangelho de Marcos, capítulo 9, versículo 24. Como Joyce não brinca em serviço, é bom lermos o episódio bíblico para percebermos o que ele realmente quis dizer. Trata-se da cura do epiléptico endemoninhado em que o pai deste exclama: “Eu creio! Ajuda a minha incredulidade!” — as mesmas palavras que Stephen diz para si mesmo. Ele se reconhece como o representante de uma mente tão paralisada quanto a Dublin que criticava. A divagação sobre Shakespeare não é uma brincadeira: é um diagnóstico do problema que atacava não só a Irlanda, mas também a Europa, como veremos em breve. O espírito da época, o zeitgeist, está mudo e surdo; a descrença de Stephen em suas teorias significa que ele também não acredita em si mesmo — o mesmo problema que ronda Leopold Bloom. E o que podem fazer? A vida fará com que ambos se encontrem no final da tarde, em uma maternidade onde um amigo em comum será pai. Não simpatizam no início; mas, após uma bebedeira (o típico modo irlandês de resolver os problemas) na mesma maternidade, resolvem ir a um bordel. Lá, se deparam com uma vida noturna que desperta os seus maiores pesadelos e suas maiores culpas; Bloom se encontra com o espectro de seu falecido filho, e Dedalus, enfim, enfrenta a sua mãe. O desespero é tamanho que Stephen quebra o candelabro do bordel com sua bengala e provoca uma grande confusão com as prostitutas e a polícia
local; será Bloom quem o salvará afirmando ser seu responsável. Juntos, vão embora, rumo à casa de Bloom, na Eccles Street número 7. Estão bêbados, mas descobrem uma comunhão inusitada. Comem uns sanduíches na cozinha e, logo depois, se despedem. Bloom sobe as escadas e se deita na cama, ao lado de sua esposa. E então ocorre o gran finale do livro: o monólogo de Molly Bloom, mais de 40 páginas sem pontuação, dedicado a uma personagem que parecia ser marginal ao enredo, mas é a única que resume a completude da vida ao aceitar tudo com um vertiginoso “sim!”. O “sim” de Molly é também o “sim” de James Joyce. É ele o Egomen para quem Stephen pede ajuda no seu momento de descrença. Apesar de Molly ser uma adúltera, Joyce coloca na sua boca a fundação de um novo mundo onde a vida é o motor propulsor, nunca a morte. No fim, após uma longa odisséia dentro do exílio, descobre-se que é nele que se encontra a unidade e a completude das coisas. Ulysses pode ser um livro de leitura difícil (e é), mas sua dificuldade esconde as pistas de uma delicadeza humana inegável. O encontro entre Stephen Dedalus, Leopold e Molly Bloom é a prova de que, antes de tudo, para não cairmos no esquecimento, temos de ter consciência do nosso próprio valor. Sem isso, não temos como empreender nossa missão, seja como o casal Bloom, para recuperar um matrimônio perdido, ou como o jovem Stephen que, após o dia 16 de junho de 1904, se transformará em James Joyce e tirará do exílio a lição necessária para escrever Ulysses. Em guerra Contudo, este mesmo exílio deixou uma ferida que não tinha como ser curada. Há um preço muito alto a ser pago quando o homem de gênio se dedica aos seus erros como portais de descoberta. Dezesseis anos depois do lançamento de Ulysses, Joyce lançaria a pedra final de seu novo mundo, Finnegans wake. É um livro que implode e explode a língua inglesa em uma série de trocadilhos que desafia a lógica e se baseia somente no som; não há mais um enredo, mas sim várias histórias que desaguam em uma única História que vive em eterno retorno; o mundo não é apenas composto de epifanias; é, na verdade, uma gigantesca epifania que se transforma em alucinação sobre a qual a mente do seu autor parece não ter mais controle. E não tinha mesmo. Ele escrevia Finnegans wake quando estava no auge de sua força literária e também em um dos seus períodos mais turbulentos, quando a filha favorita, Lucia, foi diagnosticada esquizofrênica. Foi Carl Gustav Jung quem analisou a moça a pedido do pai e este se escandalizou com a avaliação. Acreditava que ela também era um gênio. Jung apenas respondeu: “Vocês nadam no mesmo oceano; contudo, se o senhor nada, ela já se afogou”. O oceano do exílio destruiu as forças do velho Joyce, mas lhe deixou a humildade necessária para saber qual foi o valor da sua empreitada. No final de Ulysses, fez questão de colocar os lugares e as datas em que o livro foi escrito: “Trieste – Zurique – Paris, 1914-1922”. Ele escreveu o seu épico sobre a comunhão humana na mesma época em que a Europa travava a Primeira Guerra Mundial; nunca precisou ir às trincheiras porque tinha a sua própria guerra particular, uma guerra contra não só o provincianismo de sua terra como também contra o provincianismo do ser humano. Estava tão exaurido que podia se dar ao luxo de fazer a seguinte piada, como inventou Tom Stoppard na peça Travesties, quando Joyce se encontra com um soldado veterano da Primeira Guerra: “O que o senhor fez na Grande Guerra, Sr. Joyce?”, pergunta o soldado; e escuta a seguinte resposta: “Eu escrevi Ulysses. E você — o que fez?”. James Joyce morreu no dia 13 de janeiro de 1941, de úlcera perfurada. Sua máscara mortuária, exibida
no James Joyce Centre, em Dublin, mostra que não teve uma morte fácil. Foi enterrado em Zurique, de onde escapava dos tumultos da Segunda Guerra Mundial junto com sua família. Seu túmulo, segundo Richard Ellmann, biógrafo do escritor, “é simples e de classe média. Já que Joyce não gostava de flores, colocaram uma folhagem verde. Uma coroa verde no funeral trazia uma lira tramada com o emblema da Irlanda. A Irlanda não teve nenhuma outra participação no funeral”. Já Nora Barnacle Joyce morreria dez anos depois, em 10 de abril de 1951, também em Zurique, num convento. E quanto a Lucia Joyce, talvez tenha sido a única com lucidez ao definir quem era o pai quando soube de sua morte, antes de ela mesma morrer em um sanatório no dia 12 de dezembro de 1984: “O que é que aquele idiota está fazendo debaixo da terra?”, disse ela. “Quando vai se resolver a sair? Ele está nos vigiando o tempo todo.” E talvez esteja mesmo. Joyce sofreu como poucos a ferida do exílio — mas foi também um dos poucos que enfrentou com determinação a paralisia espiritual que quase o vitimou. Há alguma forma de escapar disso? Provavelmente não, uma vez que “a arte é uma mistura de ambíguo e de inefável; seu mistério nunca passa da lápide e é tanto ou mais brutal que ela”. Cumpre a quem fica que reconheça a vigilância de Joyce, crie novos mundos a partir da imperfeição deste e acabe com as elegias que nos paralisam, pois, como diria o poeta, “há um país que é preciso pôr abaixo”. [1] Todas as citações de Ulysses em português vêm da tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro, lançada pela editora Objetiva (depois, Alfaguara) em 2005. [2] Cf. o capítulo “Triângulos franceses” no Shakespeare de James Joyce, págs. 475 – 498, in: Shakespeare — O teatro da inveja, publicado pela Editora É em 2010. Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · May 13, 2012 This article was downloaded by calibre from /read/653956285
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Leveza e a ousadia mozartianas em Ulisses miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · July 20, 2012
São Pedro Claver em ação. Maiores detalhes no link ao lado. Ontem, fiquei comovido com a beleza e a irreverência de uma pequenina cena do Ulisses (ou Ulysses), na terceira tradução de Galindo. Estava no ônibus voltando para casa. É muito simples e está entre as páginas 385 e 388 do livro da Cia. das Letras e Penguin. O padre Conmee caminha pelas ruas de Dublin pensando nas almas dos negros, pardos e amarelos. São milhões de almas humanas criadas por Deus a Sua semelhança e a quem a fé não tinha sido trazida. Um desperdício, ele conclui. Seus pensamentos obviamente vão até a obra de São Pedro Claver e seguimos pelas ruas acompanhando seus pensamentos. A passagem de Dom John Conmee tem reflexos nos passantes. O monólogo interior passa de um a outro com extrema leveza. Uma senhora apática, não tão jovem, o vê. Ela pensa: quem poderia saber a verdade? Quem avaliaria se ela tinha ou não cometido adultério por inteiro? Seu confessor? Ela confessaria pela metade se não tivesse pecado por inteiro. Mas só Deus sabia, além dela e do irmão de seu marido. Depois ele olha uns meninos brincando quando um rapaz surge através de uma fenda que se abre de uma sebe. Bela imagem. Atrás dele vem uma moça com margaridas do campo na mão. Ele põe o boné, ela limpa da saia “com lenta atenção” um graveto que grudou-se ali. O padre abençoa a ambos com gravidade. No final, uma citação em latim: Principes persecuti sunt me gratis: et a verbis tuis formidavit cor meum. Algo como: e os príncipes me perseguiram sem causa, e no temor de tuas palavras o meu coração. John Conmee foi reitor do Clongowes Wood College, quando Joyce era um estudante lá. Ele também aparece no Retrato do Artista Quando Jovem: Stephen Dedalus o procura após ter sido injustamente punido pelo padre Dolan. Joyce trata o Conmee-personagem com carinho. É lindo como o sexo liga os personagens em Ulysses. E era isso. Vou trabalhar. Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!
miltonribeiro.sul21.com.br 路 by Milton Ribeiro 路 July 20, 2012 This article was downloaded by calibre from /read/653956157
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Não, não cabe num tuíte miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · August 28, 2012
Ulysses James Joyce Penguin A lenta e atenta releitura de Ulysses — feita logo após conhecer vários ensaios acerca do livro — tem sido muito prazerosa, tanto que me preocupo por já estar na página 743 do volume da PenguinCompanhia. Desconheço o original, mas por tudo o que sei, creio poder afirmar que a tradução de Caetano Galindo está muito mais próxima de Joyce, inclusive e principalmente pelo fato de ser hilariante. Joyce não era um senhor que tomava sopa de letrinhas em todas as refeições, Joyce era um erudito e homem comum, bem tarado, desses que gostam de falar de mulher e inventar piadas masculinas de gosto duvidoso. Tais características estão no livro. Sim, nada disso simplifica a leitura de Ulysses, apenas dá mais um ingrediente a uma mistura muito boa. Em muitos trechos, o livro justifica plenamente Virginia Woolf, que achou-o vulgar. Noutros trechos, ignorados por Virginia — os ingleses tinham um problema real com o tratamento dado ao inglês pelos irlandeses egressos do gaélico — , Leopold Bloom aparece em clara androginia. No episódio Circe, dentro do bordel, escrito no estilo que Joyce chama de “Alucinação”, Bloom participa de um julgamento após ter prestado juramento com a mão sobre a genitália. Ali, ele ouve várias acusações sobre ser muito feminino. Aqui, o termo correto não é homossexualidade, mas androginia, pois é muito sublinhado que Bloom pensa muito em sexo com mulheres, mas tem um comportamento tão pouco machista para a época
que seus interlocutores sugerem que ele é uma mulher. Na verdade, tenho mil observações sobre o livro, tudo anotado a caneta no meu exemplar, mas me dá uma preguiça de organizar que nem lhes conto. Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · August 28, 2012 This article was downloaded by calibre from /read/653956078
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Bloomsday, ou o longo caminho do Ulisses de Joyce até seu público miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · June 16, 2013
Hoje é domingo, mas se não fosse seria feriadoem Dublin. Mas há comemorações do Bloomsday em muitíssimos lugares do mundo. Uma rápida consulta ao Google comprova que haverá festas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, uma enorme em Brasília com a presença de Augusto de Campos, em Natal, outra tradicional em Santa Maria (RS) — já com dezenove anos — , entre outras. Se em Dublin o feriado existe para que as pessoas possam relembrar os acontecimentos vividos pelos personagens de Ulisses, de James Joyce, pelas dezenove ruas da cidade citadas no livro, em outras locais os admiradores do romance promovem leituras, debates, análises ou apenas diversão. Tudo indica que o Bloomsday seja o único feriado em todo o mundo dedicado a um livro, excetuando-se a Bíblia.
Joyce e a corajosa editora Sylvia Beach, responsável pela primeira edição de Ulisses
Há alguma controvérsia sobre quando começou a ser comemorado. Alguns especialistas indicam que teria sido em 1925, apenas três anos após o lançamento do livro, outros afirmam que foi na década de 1940, logo após a morte de James Joyce, mas a hipótese mais aceita aponta para o ano de 1954, na data do quinquagésimo aniversário do 16 de junho de 1904. Hoje o Bloomsday está inserido no calendário cultural em muitos países. É uma festa que pode acontecer em qualquer lugar onde se leia ou se discuta James Joyce e o Ulisses. E a comemoração deste ano foi especial por marcar os 90 anos da obra e os 130 de seu autor. A ação de Ulisses dá-se num só dia. O motivo da escolha da data deve-se a um acontecimento pessoal na vida de Joyce. Em 16 de junho de 1904, sua futura companheira, Nora Barnacle, na época uma jovem virgem de vinte anos, teve receio de completar aquela que seria sua primeira relação sexual e masturbou Joyce “com os olhos de uma santa”, como o autor relatou em uma carta. E o nome Bloomsday? Ora, a (pouca) ação (exterior) de Ulisses é centrada no personagem Leopold Bloom. Joyce narra minuciosamente um dia da vida de Bloom — um agente publicitário de Dublin, na verdade um anti-herói baseado no Ulisses da Odisseia de Homero. Bloom é casado com Molly Bloom, sua infiel Penélope, antítese da original, e seu amigo Stephen Dedalus, que representa o filho de Ulisses, Telêmaco, é o alter ego de Joyce. Dedalus não é filho de Bloom como Telêmaco era de Ulisses, mas este gostaria que fosse. Esta é apenas um dos irônicos e poéticos paralelos entre as duas obras.
Não parece, mas é uma provocação. Marilyn Monroe lê o final de Ulisses. Justo o longo e “pornográfico” monólogo de Molly Bloom A história do livro, aquilo que ocorre nas aproximadamente 18 horas do Bloomsday, é simples e humano. Pedimos o auxílio de Idelber Avelar para resumir os acontecimentos: “No dia 16 de junho de 1904,
Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia no rio; Leopold Bloom, vendedor, atormentado por uma possível traição de Molly, sua mulher, toma café da manhã, recebe uma carta de amor endereçada ao seu alter ego, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a carta recebida, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando duas garotas, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa; ambos urinam no jardim, Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim da história”. Mas o que faz de Ulisses um livro genial? Certamente não é sua história tão prosaica. O que garante a imortalidade do romance é sua forma. Dentro de um ritmo verbal absolutamente alucinado, que eventualmente inclui a criação de novas formas ortográficas e sintáticas, o romance inaugura e leva ao limite o monólogo interior, o fluxo de consciência. Neste ponto devemos abrir duas camadas de leitura e interpretação.
Primeiramente, a do grande público: Ulisses não precisa ser encarado como um enorme quebra-cabeças literário. Pode ser lido como um livro extremamente bem humorado, engraçado e ousado. Há muito de novidades em Ulisses, romance incrustado no início do século XX e que se projeta sobre nós. Ele foi escrito numa época na qual já havia Freud, convencendo o mundo de que o desejo sexual era a energia motivacional primária da vida humana. Então, além do bom humor, há o fato de ser um pouco escandaloso ao falar em sexo de uma forma clara e inédita para a época, o que até hoje surpreende a alguns. Também a postura não machista de Bloom, há mais de cem anos atrás, rende boas discussões em Bloomdays. Principalmente, ao negar-se à vingança em resposta à infidelidade de Molly: Assassinato nunca, visto que dois erros não tornam um certo. A obra foi levada a julgamento e declarada obscena e pornográfica. Ulisses foi censurado nos EUA e no Reino Unido por pouco mais de uma década. Em 1933, a editora Random House (EUA), tentou importar uma edição francesa, mas as cópias foram apreendidas pela alfândega quando o navio foi descarregado. Porém, em 6 de dezembro de 1933, foi liberado pelo juiz John M. Woolsey, que julgou que o livro poderia ser lido pelos americanos… A qualidade da prosa ousada e poética de Joyce deixavam o senso comum dos anos 20 do século passado sem saber o que pensar: Cada um que entra (na cama) se imagina ser o primeiro a entrar enquanto que ele é sempre o último termo de uma série precedente mesmo se ele for o primeiro de uma série subsequente, cada um se
imaginando ser o primeiro, último, único e sozinho, enquanto não é o primeiro, último, único e sozinho, enquanto não é nem o primeiro nem o último nem o único nem sozinho numa série originada então e repetida ao infinito.
A outra forma de ler Ulisses á a erudita: Joyce foi um dos escritores mais cultos de sua época, falava vinte línguas e tinha sólida cultura clássica. Cada um dos 18 capítulos do romance corresponde a, aproximadamente, uma hora de ação. Cada um deles estabelece um diálogo cheio de ironia com um episódio da Odisseia, de Homero. Em cada um deles está inserido um sistema detalhado de referências a um ramo do conhecimento humano. Mais: cada um simboliza uma parte do corpo humano e, para finalizar, dentro de cada capítulo há intermináveis séries de enigmas, desde simples jogos de palavras, até trocadilhos, onomatopeias, arcaísmos, estrangeirismos e novas palavras. Todo este trabalho de linguagem — e a cuidadosa estrutura onde está inserido — serve notavelmente para apoiar a grande invenção de Ulisses: o monólogo interior. É óbvio que entender tudo isso é extremamente trabalhoso e inalcançável a quem não conhece Homero ou não tem uma cultura comparável a de Joyce. A obra talvez seja melhor fruída se tivermos no cérebro ou à mão, na forma de notas de rodapé, parte do notável arcabouço de referências joyceano, mas a falta dele não anula nem diminui dramaticamente a grandeza de Ulisses, tanto que as novas traduções têm omitido as explicações. Melhor assim, opina este comentarista.
Em comum aos dois estilos de leitura há a profunda humanidade e a apurada riqueza psicológica de um romance que tem ressonâncias não apenas para irlandeses ou literatos. Este ecumenismo no interesse pelo livro ainda não teve o condão de desmistificar Ulisses do mito de sua extrema dificuldade e impenetrabilidade, fazendo com que muitos se aproximem dele como se estivessem diante de um livro destinados antes às estantes e à academia do que ao leitor comum.
As diversas edições da obra têm entre 850 e 1200 páginas. Para ser mais exato — pois o livro foi é mundialmente estudado e os mais incríveis estudos estatísticos e estruturais estão disponíveis — , são aproximadamente 265.000 palavras, com um léxico de 30.030 palavras (incluindo nomes próprios). Apesar de imenso, nada indica que este livro que atrai controvérsia e acusações de obscenidade desde o lançamento e que hoje é modelo de uso perfeito de diversas técnicas narrativas — o fluxo de consciência, a paródia, a alusão, o uso inteligente do trocadilho — , será movido de sua posição central no panteão modernista. A pedra antes rejeitada tornou-se fundamental. Para finalizar, uma ironia desferida por Joyce em entrevista após o lançamento de Ulisses: A única exigência que faço a meu leitor é que dedique a vida inteira à leitura de minhas obras. Se não é para tanto, não podemos negar a boa tentativa de Joyce. Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · June 16, 2013 This article was downloaded by calibre from /read/653955829
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Aos 90, "Ulysses" ganha terceira tradução no país miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · May 13, 2012 Retirado do Conteúdo Livre. .oOo. Obra de Joyce entra em domínio público junto com nova versão de clássico Trabalho de Caetano Galindo revigora mística do romance, tido como o maior do séc. 20, mas considerado “difícil” FABIO VICTOR DE SÃO PAULO Há clássicos literários reverenciados, outros populares. E há os que, embora muito reverenciados, são muito pouco lidos. Este parece ser o caso de “Ulysses”. Apontado em diversas enquetes com críticos como o principal romance do século 20, o livro maior do irlandês James Joyce (1882-1941) é uma provocação ao leitor. É enorme (mais de 800 páginas), experimental e vertiginoso. Surge agora mais uma chance para os brasileiros de enfrentá-lo: a nova tradução ao português de Caetano W. Galindo, com coordenação de Paulo Henriques Britto e edição de André Conti, para o selo PenguinCompanhia, a terceira disponível no país, que acaba de chegar às livrarias. As diferenças para os trabalhos de Antônio Houaiss, de 1966, e de Bernardina da Silveira Pinheiro, de 2005, começam no título. Galindo é o primeiro a adotar a grafia original em latim, “Ulysses”, com “y” no lugar do “i” aportuguesado de Houaiss e Bernardina (leia na pág. E7). O volume traz uma nota do tradutor, na qual ele promete para breve um guia de leitura do romance, e uma introdução do professor irlandês Declan Kiberd. Kiberd relembra como Virginia Woolf -que nasceu e morreu nos mesmos anos de Joyce e cuja obra, como a dele, entra agora em domínio público- rejeitou “Ulysses” à época do lançamento, o definindo como a obra “de um estudante nauseado espremendo suas espinhas”. Kiberd também refaz a trajetória tortuosa do romance, censurado e processado por obscenidade e publicado em Paris, em 1922 (completa 90 anos e seu criador, 130). A obra de Joyce narra um dia na vida de Leopold Bloom -um agente publicitário dublinense, anti-herói baseado no Ulisses da “Odisseia” de Homero, casado com Molly Bloom, sua Penélope infiel-, e de seu amigo Stephen Dedalus, correspondente de Telêmaco e alter ego de Joyce. O ano é 1904, o dia é 16 de junho, o mesmo em que hoje ocorre o Bloomsday, celebração anual do
clássico. Seria prosaico assim, se ao mesmo tempo “Ulysses” não tivesse revolucionado a forma tradicional do romance, criando novas ortografia e sintaxe e imprimindo à narrativa um fluxo verbal alucinado, que leva ao limite o chamado monólogo interior. Convulsionou a literatura a ponto de virar anedota, como relata o escritor Daniel Galera ao lembrar que sua história com o livro começou aos 12 anos, quando o pai dele “apontou para aquele tijolo no alto da estante e disse”: “Tá vendo aquele livro? Tem uma frase de 50 páginas que fica contando o pensamento de uma pessoa”. Referia-se ao monólogo de Molly Bloom, o trecho final de “Ulysses”. Segundo Galera, aquilo instalou nele “um fascínio imediato pelo volume”, que só viria a ler quando adulto. Outra vítima da mística de “Ulysses” foi o escritor Joca Terron, que paquerou por anos uma edição do livro na estante do pai, sem coragem para encará-la. Quando o fez, leu só um terço, até que o pai tomou de volta o exemplar. A jornalista e colunista da Folha Barbara Gancia diz ter lido “Ulysses” “na marra”, porque fazia parte do seu currículo escolar. “Ou melhor, não li. Ninguém ‘lê’ ‘Ulysses’, estuda-se o livro parágrafo por parágrafo. É tão complicado e cheio de referências que talvez seja uma boa ideia usá-lo como aposto na leitura de ‘Retrato do Artista Quando Jovem’, a obra que o precede e é um pouco mais amigável.” Discorda dela o professor e crítico Alcir Pécora, para quem “em termos de prosa inglesa, apenas [Laurence] Sterne e [Joseph] Conrad planam nas mesmas alturas” que o Joyce de “Ulysses”. O escritor e tradutor Daniel Pellizzari, que como Pécora leu e adorou, considera que, mesmo sendo “importantíssimo na história da literatura”, “Ulysses” não é um livro essencial, “do tipo que se diria que ‘todos precisam ler'”. Para quem quer enfrentar, o escritor Nelson de Oliveira sugere: “Esqueça as notas de rodapé [eliminadas na nova tradução] e os mapas de leitura. Entre desarmado no labirinto”. Fã do livro, o artista plástico Nuno Ramos aconselha que “quando ficar chato, pule -quem sabe para voltar depois. Vale a pena”. .oOo. Crítica / Romance Versão resolve mais satisfatoriamente multiplicidade estética do texto joyceano SERÁ ESTA NOSSA TRADUÇÃO DEFINITIVA DE “ULYSSES”? NÃO, ISSO NÃO EXISTE: CADA RECRIAÇÃO É OBRA AUTÔNOMA MARCELO TÁPIA ESPECIAL PARA A FOLHA Jovial, o velho gigante James Joyce ressurge luzente em nosso horizonte literário. Com nova voz, resultante de dez anos de labor, veste-se sóbrio, à imagem da edição da Penguin em língua inglesa: sem
notas e com a densa introdução de Declan Kiberd. Isto, segundo o tradutor Caetano Galindo, para apresentar o “Ulysses” “como o que ele deve sempre ser”: “um romance, talvez o maior romance de todos, e não um quebra-cabeça exemplar”. Um convite à simples leitura desse complexo e divertido livro, desprovido de um sumário de seus capítulos. Conheci trechos da versão de Galindo, lidos, ao longo dos anos, no Bloomsday de São Paulo. E testemunho, com base neles, a busca do tradutor pelo aprimoramento de suas soluções. Se, antes, Cunningham perguntava, na carruagem que conduziria Bloom e companheiros ao enterro de Dignam, “Estamos todos aqui agora?”, ele passa a dizer “Já está todo mundo aqui?”. Tanto faria? Não. Por trás das escolhas, há questões difíceis a resolver, como a grande variedade de registros da prosa joyciana, que transita do tom mais coloquial ao mais “literário” ou ao mais inusitado. Pode-se ver o “Ulysses” como um colossal poema: sua tradução será re-criação do intrincado sistema de relações construído pelo criador do périplo de Bloom. No início do capítulo “Gado do Sol” (relativo ao episódio das vacas do deus Hélio, na “Odisseia”), Galindo mostra ter encontrado (como em muitos outros casos) uma solução plena para “Send us, bright one, light one, Hornhorn, quickening and wombfruit”: “Dai-nos, leve, luzente, Hornhorn, fertilidade e frútero”. Parece fácil? Se sim, esta será uma qualidade do bem resolvido. Nesse capítulo, passado na maternidade -em que Joyce imita estilos literários e esboça a história da língua inglesa-, Galindo colhe um dos frutos mais atraentes de seu esforço, ao valer-se de recursos como o arcaísmo e o tom vulgar para recriar a diversidade linguístico-estilística: “Daquela casa A. Horne é senhor. Setenta litros ele i mantém por que as madres na sua hora delas i venham parir e dar à luz crias sãs como o anjo de Deus a Maria disse”; “Dormiu aonde ontonte? […] Lá onde o Juda perdeu as bota e achou uns trapo véio”… Será esta nossa tradução definitiva de “Ulysses”? Não, isso não existe: cada recriação é obra autônoma, embora interaja com o original e as demais traduções dele. A que ora nos chega tem a vantagem (e a desvantagem) da anterioridade de dois notáveis trabalhos: o de Antônio Houaiss, pioneiro, e o de Bernardina Pinheiro, de 2005. Esta versão resolve mais satisfatoriamente a multiplicidade estética do texto de Joyce: não incorre no criticado “rebuscamento” geral da primeira ou no resultado explicativo e “normalizador” da segunda, que dilui a polifonia joyciana. Mas muitas soluções de Houaiss continuam as mais instigantes, e o texto de Bernardina permanecerá como fonte de leitura mais corrente, associada a notas utilíssimas. Opções que se somam para compor a inesgotável pluralidade de “Ulysses”. MARCELO TÁPIA, poeta, é doutor em teoria literária pela USP, diretor da Casa Guilherme de Almeida e co-organizador do Bloomsday em São Paulo
ULYSSES AUTOR James Joyce TRADUÇÃO Caetano W. Galindo EDITORA Penguin-Companhia QUANTO R$ 47 (1.112 págs.) AVALIAÇÃO ótimo .oOo.
caetano galindo “Clássico de Joyce é pura e simples diversão” Caetano Galindo, tradutor da nova versão, rejeita fama de “livro chato” e diz que obra tem “todo tipo de tosqueira” Iniciado há dez anos, o trabalho do professor universitário ressaltou os aspectos lúdicos e coloridos do romance MARCO RODRIGO ALMEIDA DE SÃO PAULO O lançamento da nova versão de “Ulysses” encerra uma jornada iniciada há dez anos por Caetano Galindo, 38, professor da Universidade Federal do Paraná. À Folha, ele explica as escolhas que nortearam a tradução, contesta a fama de o livro ser chato e comenta a dificuldade em achar a “voz” da personagem Molly. Folha – Qual o principal diferencial da sua tradução? Caetano Galindo – O objetivo era tentar liberar mais plenamente o potencial lúdico do “Ulysses”, um livro extremamente colorido, variado, corajoso e descarado. Em que capítulo ou trecho isso fica mais evidente? No “Gado do Sol”, que é todo ele uma série de pastiches de textos de momentos diferentes da história da literatura e da língua inglesa. A nossa tradução é, até onde eu saiba, a primeira a responder na mesma moeda de Joyce, buscando caso a caso as referências e os estilos de dezenas de autores e períodos da história da língua portuguesa. O que você acha das traduções feitas por Antônio Houaiss (1966) e Bernardina da Silveira Pinheiro
(2005)? São dois monumentos da tradução brasileira, mas as nossas entradas são fundamentalmente diferentes. O que me incomodava mais na tradução de Houaiss, que é mais que adequada ao seu momento histórico, era um certo achatamento de diversidades e coloridos. Foi nesse polo oposto que eu mirei desde o início, para tornar o “Ulysses” mais romanesco, mais vário e múltiplo. As duas traduções anteriores grafaram o título como “Ulisses”, com “i”. Por que a sua é com “y”, como em inglês? A gente [André Conti, editor do livro, e eu] simplesmente percebeu que sempre tinha se referido assim ao livro. E, de repente, a gente achou que fazia sentido manter assim. Para marcar uma fidelidade? Para marcar uma diferença? Eu realmente acho que não sei, mas ficou lindão na capa! Muita gente acha o livro chato. É claro que o livro é difícil, é complexo mesmo. Mas, se você estiver disposto a colocar ali o esforço que o livro pede, a recompensa é pura e simples diversão. O livro tem piada de peido, tem todo tipo de imoralidade e tosqueira. Tem bobagem a dar com o pau. Como disse Samuel Johnson [escritor inglês], só acha o “Ulysses” chato quem acha a vida chata. E como foi traduzir o célebre monólogo final de Molly? Molly é um problema na medida em que ela é a maior bênção do livro. A literatura brasileira tem uma dificuldade histórica em lidar com a oralidade de uma maneira não estilizada, não idealizada. É muito foda achar a “voz” da Molly. Hoje estou contente com a minha Molly. Folha de S.Paulo 12/05/2012 Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · May 13, 2012 This article was downloaded by calibre from /read/653956314
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Drogadito em Uli... Ops, Ulysses miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · July 12, 2012
Ulysses James Joyce Penguin O último Bloomsday e a necessidade de falar sobre o livro me fez ler a segunda tradução de Ulisses no Brasil, a de Bernardina da Silveira Pinheiro (888 páginas). E, logo depois do evento, comecei a ler a terceira, a de Caetano Galindo, que chama o livro de Ulysses. Quando li Ulisses pela primeira vez, no final dos anos 70, lembro de ter pensado que era um livro com excesso de personagens homens e da curiosa música da prosa de Joyce por Houaiss. Detestava falar sobre o livro, pois achava que minha leitura era muito inferior do que a requisitada por Joyce. Eu tinha perdido o jogo, simples assim. Perdi o pudor ao ler Bernardina e minha impressão foi a de que havia sexo em tudo, permeando, ligando e afastando personagens. Agora, faço ainda outra leitura: capto muito humor na tradução de Galindo. Isto é causado por mim ou pelos tradutores? E qual é a melhor tradução? Não sei responder. O que sei é que me apaixonei três vezes por Ulysses e que nunca estarei à altura dele, mas que isto não é de todo mau. Trata-se de um romance, de uma obra de arte, não de um quebra-cabeças. Estou bem feliz na página 285. Ao mesmo tempo levo um livro de Eliane Brum e outro sobre o Vaticano na bolsa, só que o desafio de Ulysses torna boba a concorrência e, quando abro o zíper, sempre vou no livrão. Amanhã, no ônibus, vou de novo nele. Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · July 12, 2012 This article was downloaded by calibre from /read/653956177
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Paulo Coelho: Ulysses, de James Joyce, é "prejudicial" para a literatura (bem que eu desconfiava) miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · August 7, 2012 Não posso dizer que lamentei esta matéria. Ao contrário. Por admirar Jorge Luis Borges, Paul Rabbit já escreveu livros com os títulos de O Aleph e O Zahir. Acho que ele jamais escreverá sua versão de Ulysses. Que bom! Traduzido livremente por mim, do The Guardian Escritor brasileiro descarta clássico modernista sobre um dia da vida de Leopold Bloom. Chama-o de “puro estilo”
Paulo Coelho põe no lixo o Ulysses, de James Joyce. "Não há nada lá". Ulysses, de James Joyce, tem vencido enquetes e mais enquetes como o maior romance do século 20, mas, segundo Paulo Coelho, o livro é “uma idiotice”. Antes, porém, falou de si ao jornal brasileiro Folha de S. Paulo. Coelho disse que o motivo de sua popularidade é o de ser “um escritor moderno, apesar do que dizem os críticos”. Isto não significa que seus livros sejam experimentais, acrescentou — sim, “eu sou moderno porque faço o difícil parecer fácil e então eu consigo me comunicar com o mundo inteiro”. Os escritores se dão mal, de acordo com Coelho, quando se concentram na forma e não no conteúdo. “Hoje em dia escritores querem impressionar outros escritores”, ele disse ao jornal. “Um dos livros que causaram maior dano foi Ulysses de James Joyce, que é puro estilo. Não há nada lá. Desmontado, Ulysses é uma idiotice”. Os livros e romances espirituais de Coelho — cujo último, Manuscrito encontrado em Accra, passa-se na Jerusalém de 1099, prestes a ser atacada por cruzados — já venderam mais de 115 milhões de cópias em mais de 160 países. Ulysses, o romance modernista de Joyce, com 265.000 palavras sobre um dia na
vida de Leopold Bloom em Dublin, foi publicado pela primeira vez com uma tiragem de 1.000 exemplares em 1922. Essas primeiras edições pode ser adquiridas hoje ao valor de R$ 320 mil e a existência do livro é comemorada todos os anos e em todo mundo no dia em 16 de Junho, data em que Bloom vagou por Dublin. Embora Ulysses frequentemente encabece listas de melhores livros, não é raro que o critiquem. Coelho não é o primeiro a criticar obra-prima de Joyce. Roddy Doyle disse em 2004 que duvidava que as pessoas que os colocavam no topo tivessem sido realmente tocadas por ele. P.S. — Este post só foi possível porque a Caminhante Diurno — que é também a Caminhando por fora — me indicou a matéria no The Guardian. P.P.S. — Idelber Avelar escreve para mim no twitter, prenhe de razão: há um probleminha de tradução: “stripped down, Ulysses is a twit”. É um TUÏTE, não uma ‘idiotice’. Abraços. Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · August 7, 2012 This article was downloaded by calibre from /read/653956132
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Na página 550 de Ulysses miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · August 9, 2012 Mais uma anotação da terceira tradução e leitura de Ulysses, a MELHOR, sem dúvida. E então mudamos de capítulo e, como ocorre sempre em Ulysses, muda o escritor. Entra um que parece viver em pleno esplendor kitsch: O entardecer estival começara a envolver o mundo em seu misterioso abraço. Longe no Oeste o sol se punha e o último reluzir do dia fugaz brilhava ainda encantador sobre mar e areia, o altivo promontório do nosso querido Howth, vigilante como sempre sobre as águas da baía, as pedras cobertas de algas da praia de Sandymount e, com não menos importância, sobre a tranquila igreja de onde brotava por vezes no silêncio do ar em tornoa voz das preces a ela que em sua pura radiância é um farol para o coração do homem, fustigado pelas tormentas, Maria, estrela do mar. As três amiguinhas estavam sentadas nas pedras, aproveitando o espetáculo do crepúsculo e… Joyce é um baita gozador. Logo depois vem a famosa cena de masturbação de Bloom sob o olhar e a provocação de Gerty MacDowell, uma das três amiguinhas. Não, não cabe num tuíte, Paulo Coelho. E este livro é demais e é muito, mas muito divertido.
... o altivo promontório do nosso querido Howth, vigilante como sempre sobre as águas da baía...
Olhando a foto anterior, o Howth parece ser uma ilha. Não é. Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · August 9, 2012 This article was downloaded by calibre from /read/653956110
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Anotações sobre sexo no Ulysses de Joyce (Primeira parte de três, quatro ou mais) miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · October 2, 2012 Um pouco mais revisado. A única exigência que faço a meu leitor é que dedique a vida inteira à leitura de minhas obras. (The only demand I make of my reader is that he should devote his whole life to reading my works). JAMES JOYCE
Clique para ampliar Esta é uma piada de Joyce, mas tem gente que se assusta muito com ela e mais ainda com aquilo que é dito sobre Ulysses. Se quiséssemos estabelecer uma categoria de livros mais elogiados, citados, incensados e menos lidos, Ulysses, de James Joyce, talvez encabeçasse a lista. Este é um fenômeno que surpreende, pois contrariamente a, por exemplo, O homem sem qualidades, de Musil, Ulysses é um livro escandalosamente colorido, engraçado e divertido. E sexual. Uma leitura desatenta torna certamente o livro uma chatice, uma leitura interessada já basta para torná-lo um grande romance, mesmo que não se queira entrar nos enigmas e quebra-cabeças que manterão os professores ocupados durante séculos, conforme disse o autor. A leitura 100% compreensiva talvez seja inalcançável ao leitor comum, porém, como sublinhou Karen Blixen (Isak Dinesen), não há nenhum problema em não entender inteiramente um escrito poético. Obviamente, Ulysses se beneficia com outras leituras, com a crítica, com consultas e com uma vasta cultura, porém, como assegura o tradutor da última versão brasileira, Caetano Galindo, Ulysses pode ganhar mais se for apresentado sozinho, sem notas explicativas. É importante lembrar que Ulysses é, em primeiro lugar, um romance, um dos maiores de todos, não um quebra-cabeça. Isto não anula de modo algum todo o aparato que costuma cercá-lo, apenas diz que tal parafernália pode estar em outro lugar que não atrapalhando a leitura. O habitual é que as pessoas se aproximem de Ulysses com cuidado. Livro difícil, cheio de armadilhas.
Tudo se passa num só dia, em 16 de junho de 1904. São 18 capítulos, cada um com aproximadamente uma hora de ação; cada um escrito num estilo diferente; cada um deles sendo uma paródia de um episódio da Odisseia de Homero; em cada um, um sistema detalhado de referências a uma ciência ou ramo do conhecimento; em cada um, uma parte do corpo humano é alçada a símbolo; em cada um, uma infinidade de enigmas, jogos de palavras, paródias, trocadilhos, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos e todas as operações com a linguagem que você puder imaginar e mais algumas, como escreveu o ensaísta Idelber Avelar.
Porém, a história não pode ser mais simples e Joyce ufanava-se do fato de seu romance ter quase nada de trama. Naquele dia, hoje conhecido como Bloomsday, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia pelas margens do Liffey; Leopold Bloom, vendedor, efetivamente muito pouco atormentado pelas repetidas traições de Molly, sua mulher, toma café da manhã, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a uma carta recebida, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando Gerty MacDowell tendo por background um ofício religioso, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa; ambos urinam no jardim; Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim.
Não lembro quem utilizou esta imagem, mas ela é bastante eficaz para demonstrar as diferenças de Joyce em relação a um autor muito mais lido, Franz Kafka. Imaginem a literatura moderna dentro de um modelo matemático de abscissas e ordenadas, um modelo plano, simples e, principalmente, redutor. Considerem que a gente deva colocar os autores espacialmente e que a abscissa seria o grau de complexidade narrativa e a ordenada seria a complexidade dos temas. Pois bem, então comparemos Joyce com outro autor canônico, Franz Kafka. Enquanto Joyce cria histórias rotineiras dentro de narrativas complexas, Kafka seria sua antítese, com narrativa mais convencional, porém, com temas e histórias insólitas e — para repetir o termo e dar exatidão matemática (?) à analogia — , complexas. Em nosso modelo, eles estariam bem longe um outro. É claro que estamos desconsiderando uma importante terceira dimensão, o arsenal de referências joyceano e uma quarta, o grau de representação social. Sem esta última, certamente não comemoraríamos o Bloomsday. No Brasil, Ulysses foi traduzido três vezes. A primeira tradução foi a que o filólogo Antônio Houaiss fez em 1966 para a Civilização Brasileira. Foi com ela que conheci o extraordinário romance. Até hoje, foram 21 edições e este Ulysses ainda está no catálogo da editora ao preço de R$ 80. Li o livro aos 22 anos, quando muita gente dizia que era um livro para ser lido apenas aos 40, com maior vivência, maturidade, etc. Para mim, naquela idade, seria absolutamente incompreensível. Não foi, mas o mérito não foi meu. Ulysses não um livro fácil, mas sua inacessibilidade é um mito. Foi com a tal maior vivência que li a segunda tradução, da filósofa, professora emérita e tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro. É uma tradução mais coloquial e menos pudica que o intrincado e envergonhado trabalho de Houaiss. A edição é da Objetiva e custa dez centavos a menos que a da Civilização Brasileira. Em 2012, tivemos a terceira tradução, do professor e doutor em linguística Caetano Galindo para a Penguin / Companhia das Letras. O preço é simpático, apenas R$ 47. Esta última tradução é superior às duas anteriores. Coloca-se entre a Ítaca do coloquialismo de Bernardina e a possível Troia de Houaiss. De bônus, traz um excelente ensaio do crítico irlandês Declan Kiberd, uma das maiores autoridades em Joyce, um sujeito que escreveu um best seller de crítica literária chamado Ulysses and Us.
Ulysses and Us Declan Kiberd Abaixo, a primeira tradução francesa do romance com autógrafo do autor. Aliás, esta tradução foi revisada por Joyce. O livro me foi emprestado por seu dono, o poeta e romancista Fernando Monteiro.
Por Ramiro Furquim - _OAF1691 .oOo. Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes (sempre tão gentis, diria Chico Buarque) que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Seu filho, Telêmaco, aconselhado pela deusa Palas Atena, sai em busca do pai. Em resumo, temos as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria, a fidelidade da mulher ao marido ausente e um filho à procura do pai.
Desenho de Leopold Bloom, de James Joyce (clique para ampliar) Pois então abrimos Ulysses e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, cujo nome de nascimento é Marion Tweedy), não é nada fiel. Stephen Dedalus (Telêmaco), embora insatisfeito com o pai que tem, não está atrás de outro. (Na verdade, Bloom pranteia um filho morto,
Rudy, e deseja que Stephen vá morar com ele e Molly). Bloom é um Ulisses nada heróico, um judeu irlandês de vida comum, que sabe de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue. O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas. Sim, mas e o sexo?
Zurique, 1918. Nora Barnacle Joyce com os filhos Giorgio e Lucia. Joyce refere-se a ele já no primeiro enigma do romance: a escolha da data. Por que 16 de junho de 1904? Ora, porque foi nesse dia que Nora Barnacle fez de Joyce um “homem de verdade”. Alguns críticos consideram que o livro seria uma espécie de declaração de amor que o escritor fazia a sua esposa e amante. No dia 16 de Junho de 1904, o casal saiu para um passeio pela primeira vez. Joyce não levou Nora para os cafés, teatros, nem para o centro de Dublin, mas pelas ruas que vão dar no cais. Foram até a área de Ringsend que, naquela noite, estava deserta. Nora não perdeu tempo. Desabotoou as calças de Joyce e masturbou-o com mestria, “com olhos de santa”. Era a primeira vez que Joyce tinha sexo de graça e o fato revestiu-se de grande importância. Ulysses foi publicado no dia de aniversário de 40 anos de Joyce, em 2 de fevereiro de 1922. Antes, em 1919, alguns capítulos tinham sido publicados na revista The Egoist (Londres). Resultado: impressores e assinantes ameaçaram demitir-se em função da pornografia envolvida… Em 1921, outros capítulos foram publicados em The Little Review (Nova Iorque). Resultado: a edição foi retirada de circulação e suas editoras multadas. Acusação: grossa pornografia.
O cais em Ringsend, subúrbio de Dublin
Porém, conhecendo Joyce, eu apostaria em outro local bem próximo, o das proximidades da igreja de St. Patrick Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca): Se ele tivesse sorrido por que teria sorrido? Para refletir que cada um que entra (na cama) imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só em uma série que se origina e se repete ao infinito. Trad. Caetano Galindo
Este trecho jamais poderia ser admitido a escritor preso aos códigos machistas da sociedade do início do século passado. Seria improvável para um homem comum do começo do século XX chegar à conclusão que Bloom chegou a respeito do adultério de Molly, da qual ele nem cogita separar-se: Assassinato, jamais, pois que dois males não perfaziam um bem. E chegamos gloriosamente ao pensador que Joyce era e, principalmente, a um leitor de Freud. Epígrafe para o próximo texto: Não faço ideia se o meu marido é um gênio ou não; o que sei, com certeza, é que ele tem uma mente bem suja. NORA BARNACLE Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · October 2, 2012 This article was downloaded by calibre from /read/670789194
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Anotações sobre sexo no Ulysses de Joyce (Segunda parte de três ou quatro) miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · October 5, 2012 Um pouco mais revisado. Aliás, revisei o anterior agora, novamente… Não faço ideia se o meu marido é um gênio ou não; o que sei, com certeza, é que ele tem uma mente bem suja. NORA BARNACLE Primeira parte: Anotações sobre sexo no Ulysses de Joyce (primeira parte de três, quatro ou mais)
Hum… Nunca me ofereçam, OK? Em Ulysses, Leopold Bloom é um cidadão irlandês, pai e marido de Molly. Teve dois filhos, Milly e Rudy, sendo que o segundo morreu onze dias após o nascimento e Milly — que está com 15 anos em 16 de junho de 1904 — estuda em outra cidade. Ela aparece no romance apenas nas saudades de Bloom, o qual também lamenta muitíssimo a perda de Rudy. Ele é um bom pai de quase quarenta anos e começa o dia de forma tipicamente irlandesa. A primeira coisa que come são rins de carneiro grelhados, eles exalam um leve e inebriante perfume de urina. Porém, não vim aqui criticar a gastronomia irlandesa e britânica. Faço referência a este quarto capítulo porque nele Bloom aparece servindo sua mulher-ninfa na cama. É importante notar que é ele quem serve o breakfast, não o contrário. Bloom, que foi confessadamente criado por Joyce para ser o homem comum, o everyman, aparece sem heroísmos, com uma dimensão inteiramente humana, sem atitudes épicas.
A primeira página de Ulysses no manuscrito de Joyce Em 1905, Joyce escreveu a seu irmão Stanislaus: Você não acha a busca pelo heroísmo uma tremenda vulgaridade? Tenho certeza de que toda a estrutura do heroísmo é, e sempre foi, uma mentira e que não há substituto para a paixão individual como força motriz de tudo. O amor de Bloom manifesta-se diferentemente, ignorando posturas machistas, nas atitudes e nos pensamentos em relação à família, mas uma das surpresas de Ulysses é como esta rotina é contraposta à sexualidade que aparece no romance. Boa parte do enredo de Ulysses gira em torno do casal Molly e Leopold e de sua inaptidão para sentir prazer físico e emocional um com o outro. Seja através da
narração onisciente, seja por monólogos interiores, o texto documenta minuciosamente as abordagens sexuais inteiramente diversas e as tentativas românticas do casal. E estas ocorrem sempre SEPARADAMENTE. Durante o curso do dia, Molly comete adultério com Blazes Boylan, enquanto Bloom envolve-se com práticas sexuais voyeuristas, masturbatórias e, por que não dizer?, masoquistas. Mesmo que Bloom participe ativamente destes encontros, é curioso como Joyce obtém mantê-lo longe do estereótipo do fauno sedento por sexo e prazer. Bloom é o anti-herói, o low profile, o personagem simpático, agradável, amistoso e apagado. Mesmo o erotismo evidente de certas participações de Bloom, acaba diluído em gentileza e bonomia. Ele é pai e marido, possuidor de qualidades maternas, pacifistas, até femininas. Os limites rígidos que compunham a prática religiosa e as normas sociais na virada do século XX são demasiadamente sufocantes para a expressão de Joyce da individualidade e do desejo carnal. No episódio em que Bloom masturba-se na praia, observando Gerty MacDowell, tendo por fundo um culto religioso, Joyce não apenas justapõe religião e erotismo, mas incorpora uma prática sexual não convencional.
Bloomsday em Dublin. Leopold põe os olhos em Gerty MacDowell.
Bloom (Stephen Rea) na cena da praia Com isto, ele desafia o senso comum do que seria a sexualidade na virada do século XX e utiliza seu romance como um veículo através do qual pode expressar seu desejo de fundamentar sua crença no instinto e no físico — não esqueçam que cada capítulo do Ulysses refere-se também a uma parte do corpo humano. Para Joyce, a sexualidade é um ato de expressão da natureza. Neste sentido, concordava inteiramente com D.H. Lawrence, o qual desejava conceder ao corpo um reconhecimento igual ao que era dado à mente. É claro que tais intenções do romance iam ao encontro das teorias de Freud — o desejo sexual como energia motivacional primária da vida humana –, mas ia contra a moral vigente da virada do século. Os encontros de Bloom com mulheres no livro parecem servir de alívio para a exclusão social e a traição de Molly, são o meio utilizado por ele para adquirir o equilíbrio ou equanimidade entre sua existência e a de Molly.
Sandymount Strand, onde Stephen Dedalus caminha imaginando-se cego e onde Leopold Bloom encontra Gerty McDowell em Ulysses
Ulysses é um texto que procura minar e redefinir as noções de gênero e de hierarquia na sociedade patriarcal da época. O romance não promove a superioridade masculina, mas eleva as mulheres e a feminilidade. Não só Joyce inverte a hierarquia social predominantemente masculina, como confunde e desafia a noção de gênero na dicotomia da criação de um casal formado por um homem delicado e feminino e uma mulher decidida. Nesta combinação, o casal Molly e Leopold, desafia os estereótipos que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada. Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “Comumente o que é pornográfico para uma geração, é clássico para a geração seguinte”. A frase parece ser perfeita para Ulysses: enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos, sendo que um deles era “o homem comum”.
Eu poderia definir a pornografia como a apresentação de cenas destinadas a despertar desejo sexual no observador? Assim como num filme de sexo explícito, Uliyses rastreia movimentos e sensações corporais, realizando (ou escandalizando) o desejo do leitor de observar com precisão a mecânica do corpo. No entanto, Joyce não faz pornografia: aqui, a predição de Rushdie funciona perfeitamente: apesar de possuir elementos pornográficos, Ulysses oferece a transformação da pornografia em uma forma de arte clássica. Tendo lido e estudado psicanalistas como Freud, Joyce nos oferece não apenas uma nova ficção e linguagem, oferece-nos um ponto de vista original para entender o sexo. A atitude perante a sexualidade estava mudando após a virada do século, especialmente na esfera psicanalítica, e Joyce reflete em Ulysses este novo interesse na sexualidade, o crescimento de uma ciência sexual e o desenvolvimento de novos conceitos que rompiam cabalmente a associação entre sexualidade e reprodução. Joyce pertencia ao grupo de grandes pensadores da época, que procuravam entender e redefinir a sexualidade. Declan Kiberd afirma jocosamente que “Ulysses era não apenas um exemplo de um empreendimento comercial de alto risco, mas também um manual muito particular que extrapolava em muito questões literárias”. É importante salientar a relação de Joyce com a tradição inglesa do romance. A Irlanda estava sob o domínio inglês. Os ancestrais de Joyce abandonaram lentamente o gaélico — ainda falado em regiões rurais da Irlanda — pelo inglês. Deste modo, os irlandeses viviam a uma certa distância da literatura inglesa ou ao menos utilizavam a língua com menor respeito, muitas vezes com insolência. Deste modo,
há, além das ideias de Joyce, um aspecto sociológico que torna a quebra da tradição um ato até desejável de afirmação de nacionalidade. Joyce não falava mal de Dublin e da Irlanda, como alguns afirmam, mas era, sim, contra a sentimentalização do passado, revoltava-se contra o provincianismo de achar que o passado — mesmo um inventado, como o dos gaúchos tradicionalistas — ia voltar.
O Rio Liffey e a Ponte Ha’penny Bridge em Dublin, Irlanda (Segue) Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · October 5, 2012 This article was downloaded by calibre from /read/653956040
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Anotações sobre sexo no Ulysses de Joyce (terceira parte de três) miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · October 9, 2012 Com importantes mudanças e uma vontade incrível de ampliar a parte do monólogo de Molly. Mas, por enquanto, deixemos assim. Primeira parte: Anotações sobre sexo no Ulysses de Joyce (Primeira parte de três, quatro ou mais) Segunda parte: Anotações sobre sexo no Ulysses de Joyce (Segunda parte de três ou quatro)
les laureirs Os monólogos interiores de Ulysses ainda eram uma novidade na época do lançamento do livro. Na verdade, o stream of consciousness não foi uma invenção de Joyce e sim do francês Édouard Dujardin, cujo livro Os loureiros estão cortados foi lançado pela editora porto-alegrense Brejo, em 2005, com prefácio explicativo de Donaldo Schüller. O monólogo interior permite ao leitor de Joyce, fazer o contraste entre a riqueza da vida imaginativa de um indivíduo contra o fundo da pobreza de suas relações sociais. Quando comparados com a vida interior dos personagens, os diálogos de Ulysses não são grandemente satisfatórios. Leopold Bloom não perdoa as traições de Molly verbalmente, porém sabemos detalhadamente, por seu íntimo, que ela está perdoada. Os personagens do Ulysses são enorme, imensamente fluentes em seus interiores, mas não são nada articulados verbalmente. Vão embora sem dizer o que têm em mente e é apenas na solidão que alcançam suas verdadeiras vozes. O que dizer do monólogo final de Molly Bloom? Ali ela expõe-se de uma forma muito transgressora — não está sozinha enquanto o marido dorme ao lado? — , tem fantasias que surpreendem mesmo um século depois. Joyce, escrevendo de dentro dos pensamentos do cérebro de Molly, constrói o gozo feminino com primeiro com liberdade e depois com humor, celebrando como nunca antes o desejo da mulher numa época em que a psicanálise ainda não o fazia. Os encontros, como o de Bloom com Gerty MacDowell, são em geral sem palavras, conduzidos pelo corpo. Há muitas frases pela metade. Por exemplo, após masturbar-se na praia, Bloom escreve na areia
“sou um”. O casamento com Molly também serve para ilustrar a falta de articulação. É uma ligação silenciosa de duas pessoas que compartilham uma casa, uma cama, quem sabe amor, mas não uma vida.
Angelina Ball no filme Bloom (2003), de Sean Walsh E Bloom, como dissemos, comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com uma mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: eles dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha com as regras”. Também como talvez uma mulher fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela o veja em seu melhor ângulo. Depois Gerty faz o mesmo. Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o leitor entra nos pensamentos de Molly enquanto ela se encontra na cama ao lado de Bloom, ao final do dia. O monólogo revela a promiscuidade de Molly, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de sua família. Quando lembra da amamentação de Milly, ela fala que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser uma provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil. Nas duas hipóteses, o texto de Joyce subverte a masculinidade.
Em seu ensaio prévio à última edição do Ulysses, Declan Kiberd afirma que na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. No monólogo, Molly exibe suas características masculinas na recapitulação de seu primeiro encontro sexual com Bloom em Howth Head, em consonância com que já sabíamos de Bloom: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca), como se fosse uma mamãe pássaro.
Howth head
Howth Head map Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação com as mulheres de Dublin.
james joyce Em Ulysses, Joyce tenta descrever outras situações da sexualidade humana, ainda não presentes em romances. Joyce não julga nem demonstra desejo de advogar como acertadas, entre aspas, determinadas práticas ou condutas sexuais, mas revela a inconsistência dos comportamentos estereotipados de gênero, ao mesmo tempo que coloca o desejo no centro de muitas, muitíssimas de nossas ações. Além de contradizer a sociedade, Joyce igualmente contradiz a religião. A masturbação de Bloom é justaposta a um serviço religioso, claramente a fim de comentar as restrições que a religião coloca sobre as expressões sexuais pessoais. Descrevendo o Bloom onanista, com o serviço religioso ocorrendo em background, Joyce faz várias citações bíblicas, transformando Gerty num piedoso emblema de uma Virgem Maria de natureza libidinosa, que incita Bloom. Joyce parece fazer piada com a possibilidade da religião dominar o desejo carnal, apresentando a concupiscência como um componente óbvio e intrínseco
a toda a existência humana. E segue desafiando modelos quando Bloom se envolve em encontros voyeuristas durante sua jornada em Dublin.
Joyce conhecia e respeitava Freud, porém Ulysses não necessariamente se encaixa nas obras dos psicanalistas da época. A incorporação da sexualidade pelo Ulysses exemplifica principalmente um nãoconformismo. Durante todo aquele 16 de junho, os protagonistas do Ulysses tiveram que enfrentar muitas coisas. Porém, quando focamos uma lente crítica sobre as representações de sexo no romance, podemos notar como Joyce foi cuidadoso ao construir e apresentar os apetites sexuais de cada personagem. Ao usar o sexo como uma ligação entre seus personagens e leitores, James Joyce foi capaz de criar representações universais formadas por muitas camadas. Notem como o romance é finalizado com o orgásmico “sim” de Molly, algo que é final e evidentemente muito afirmativo. Foi certamente a primeira vez que tivemos acesso a tamanha interioridade. O recurso narrativo do fluxo de consciência, despregado das limitações dialogais, demonstra claramente cada identidade. Segundo Álvaro Lins citado em artigo do escritor Franklin Cunha, Joyce foi “um revelador do caos num mundo em desordem”. Consciência e subconsciência, angelitude e animalidade, idéias e instintos, natureza física e natureza psíquica, é o ser humano sempre por inteiro que Joyce busca apresentar em sua obra. No imenso mar joyceânico nenhuma concepção é ignorada, elas estão no livro e nas mentes dos personagens bem como estão as realidades que as representam. Segundo Edmund Wilson, Joyce, a partir desses eventos,” edificou um quadro espantosamente vivo e fiel do mundo cotidiano, o qual possibilita uma devassa e um acompanhamento das variações e complexidades de tal mundo, como nunca foi feito antes. Estilisticamente pantagruélico, Joyce, em Ulysses, não apenas constrói o romance moderno como o ameaça com um catálogo aparentemente interminável de temas e estilos. E, dentro deste amplo cenário, invoca Eros como metáfora universal da condição humana.
Gostou deste texto? Ent茫o ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br 路 by Milton Ribeiro 路 October 9, 2012 This article was downloaded by calibre from /read/653955965
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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): VII – Ulysses, de James Joyce miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · October 24, 2012
Ulysses James Joyce Penguin Depois de tudo que escrevi sobre Ulysses em 2012 (ver lista de links abaixo), meus sete leitores poderiam prever facilmente sua reaparição nesta lista, não? Bloom acorda. Prepara o café da manhã para sua mulher, Molly. Assiste a um enterro. Visita um editor de um jornal. Almoça. Olha um anúncio de jornal na biblioteca. Responde a uma carta recebida. Janta. Encontra o amigo Dedalus. Vagueia pela praia. Masturba-se olhando uma moça. Reencontra Dedalus. Vão a um puteiro. Encaminham-se para a casa de Bloom. Entabulam uma conversa filosófica. Dedalus vai embora e Bloom retorna ao leito conjugal, onde dormirá enquanto sua mulher tem fantasias quentíssimas. Tudo isso em apenas um dia, 16 de junho de 1904. São 18 capítulos que cobrem aproximadamente 18 horas. Cada capítulo escrito de forma totalmente diferente, cada cena fazendo mil referências, principalmente à Odisseia de Homero. Não é uma epopeia do cotidiano, mas sim uma obra anti-épica, cujo naturalismo não se percebe no nível mais superficial da narrativa. As frequentes transgressões linguísticas, a justaposição de frases ostensivamente poliglotas, a mistura de estilos — épico, lírico, drama, comédia — são os percursos seguidos por Joyce com a finalidade de quebrar os protocolos
estabelecidos do gênero do romance para chegar à essência das coisas e à exploração do inconsciente, escondido pelas aparências. O que mais me fascina são os 18 estilos diferentes, os 18 escritores chamados por Joyce para escreverem o maior romance do século XX. Desde que acorda até voltar à cama — onde sua Penélope-Molly tece enorme teia de fantasias eróticas que nunca serão do conhecimento do marido –, Leopold Bloom protagoniza um monumento de rara sutileza, difícil de penetrar, mas só quem tenta obtém chegar a suas grandes iluminações. O livro foi proibidíssimo e apenas chegou a nós por milagre. Por exemplo, um episódio do livro, entregue a uma datilógrafa, chocou de tal forma seu marido que este o arremessou às chamas. havia outra cópia menos revisada, com Joyce. Durante a Primeira Guerra Mundial, um capítulo inteiro — Sereias — foi interceptado por autoridades militares que desconfiaram que aquilo era uma longa mensagem escrita em código… Algo vital para o inimigo, certamente… Suas características satíricas, viscerais e brutalmente depreciadoras do real, chocaram profundamente a sensibilidade do leitor médio, decepcionado ainda pela fascinação do autor pela linguagem, pelas várias formas narrativas, louca musicalidade e certamente pela descontrolada e incerta potencialidade semântica. O mais extravagante, divertido e sujo dos livros. Mais Ulysses: aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui. Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · October 24, 2012 This article was downloaded by calibre from /read/653955933
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Os desenhos de Henri Matisse para uma edição do Ulysses de James Joyce em 1935 miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · December 18, 2013 Uma delícia para quem, como eu, releu o livro há pouco tempo. É o mais sexual e divertido dos romances.
miltonribeiro.sul21.com.br 路 by Milton Ribeiro 路 December 18, 2013 This article was downloaded by calibre from /read/653955637
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Comemorando o Bloomsday, o Sul21 fala sobre sexo em Ulysses, de Joyce miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · May 2, 2014 Publicado em 16 de junho de 2013 no Sul21 Todo ano é a mesma coisa. Desde o final da década de 20 do século passado, sempre no dia 16 de junho, leitores de James Joyce se reúnem ao redor do mundo para celebrar o autor de Ulysses (1922), obra que se passa integralmente no dia 16 de junho de 1904. O Sul21 une-se às comemorações analisando uma das facetas mais evidentes e importantes de Ulysses: o sexo. .oOo. A única exigência que faço a meu leitor é que dedique a vida inteira à leitura de minhas obras. (The only demand I make of my reader is that he should devote his whole life to reading my works). JAMES JOYCE
Clique para ampliar Esta é uma piada de Joyce, mas tem gente que se assusta muito com ela e mais ainda com aquilo que é dito sobre Ulysses. Se quiséssemos estabelecer uma categoria de livros mais elogiados, citados, incensados e menos lidos, Ulysses, de James Joyce, talvez encabeçasse a lista. Este é um fenômeno que surpreende, pois contrariamente a, por exemplo, O homem sem qualidades, de Musil, Ulysses é um livro escandalosamente colorido, engraçado e divertido. E sexual. Uma leitura desatenta torna certamente o livro uma chatice, uma leitura interessada já basta para torná-lo um grande romance, mesmo que não se queira entrar nos enigmas e quebra-cabeças que manterão os professores ocupados durante séculos, conforme disse o autor. A leitura 100% compreensiva talvez seja inalcançável ao leitor comum, porém, como sublinhou Karen Blixen (Isak Dinesen), não há nenhum problema em não entender inteiramente um escrito poético. Obviamente, Ulysses se beneficia com outras leituras, com a crítica, com consultas e
com uma vasta cultura, porém, como assegura o tradutor da última versão brasileira, Caetano Galindo, Ulysses pode ganhar mais se for apresentado sozinho, sem notas explicativas. É importante lembrar que Ulysses é, em primeiro lugar, um romance, um dos maiores de todos, não um quebra-cabeça. Isto não anula de modo algum todo o aparato que costuma cercá-lo, apenas diz que tal parafernália pode estar em outro lugar que não atrapalhando a leitura. O habitual é que as pessoas se aproximem de Ulysses com cuidado. Livro difícil, cheio de armadilhas. Tudo se passa num só dia, em 16 de junho de 1904. São 18 capítulos, cada um com aproximadamente uma hora de ação; cada um escrito num estilo diferente; cada um deles sendo uma paródia de um episódio da Odisseia de Homero; em cada um, um sistema detalhado de referências a uma ciência ou ramo do conhecimento; em cada um, uma parte do corpo humano é alçada a símbolo; em cada um, uma infinidade de enigmas, jogos de palavras, paródias, trocadilhos, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos e todas as operações com a linguagem que você puder imaginar e mais algumas, como escreveu o ensaísta Idelber Avelar.
Joyce orgulhava-se do fato de Ulysses quase não possuir enredo Porém, a história não pode ser mais simples e Joyce ufanava-se do fato de seu romance ter quase nada de trama. Como escreve Idelber, naquele dia, hoje conhecido como Bloomsday, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia pelas margens do Liffey; Leopold Bloom, vendedor, efetivamente muito pouco atormentado pelas repetidas traições de Molly, sua mulher, toma café da manhã, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a uma carta recebida, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando Gerty MacDowell tendo por background um ofício religioso, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa; ambos urinam no jardim; Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim.
A imagem ao lado pode ser eficaz para demonstrar as diferenças de Joyce em relação a um autor muito mais lido, Franz Kafka. Imaginem a literatura moderna dentro de um modelo matemático de abscissas e ordenadas, um modelo plano, simples e, principalmente, redutor. Considerem que a gente deva colocar os autores espacialmente e que a abscissa seria o grau de complexidade narrativa e a ordenada seria a complexidade dos temas. Pois bem, então comparemos Joyce com outro autor canônico, Franz Kafka. Enquanto Joyce cria histórias rotineiras dentro de narrativas complexas, Kafka seria sua antítese, com narrativa mais convencional, porém, com temas e histórias insólitas e — para repetir o termo e dar exatidão matemática (?) à analogia — , complexas. Em nosso modelo, eles estariam bem longe um outro. É claro que estamos desconsiderando uma importante terceira dimensão, o arsenal de referências joyceano e uma quarta, o grau de representação social. Sem esta última, certamente não comemoraríamos o Bloomsday. No Brasil, Ulysses foi traduzido três vezes. A primeira tradução foi a que o filólogo Antônio Houaiss fez em 1966 para a Civilização Brasileira. A segunda tradução foi a da filósofa, professora emérita e tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro. É uma tradução mais coloquial e menos pudica que o intrincado e envergonhado trabalho de Houaiss. A edição é da Objetiva e custa dez centavos a menos que a da Civilização Brasileira. Em 2012, tivemos a terceira tradução, do professor e doutor em linguística Caetano Galindo para a Penguin / Companhia das Letras. O preço é simpático, apenas R$ 47. Esta última tradução é superior às duas anteriores. Coloca-se entre a Ítaca do coloquialismo de Bernardina e a possível Troia de Houaiss. De bônus, traz um excelente ensaio do crítico irlandês Declan Kiberd, uma das maiores autoridades em Joyce, um sujeito que escreveu um best seller de crítica literária chamado Ulysses and Us.
Ulysses and Us Declan Kiberd .oOo. Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes (sempre tão gentis, diria Chico Buarque) que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Seu filho, Telêmaco, aconselhado pela deusa Palas Atena, sai em busca do pai. Em resumo, temos as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria, a fidelidade da mulher ao marido ausente e um filho à procura do pai.
Desenho de Leopold Bloom, de James Joyce (clique para ampliar) Pois então abrimos Ulysses e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, cujo nome de nascimento é Marion Tweedy), não é nada fiel. Stephen Dedalus (Telêmaco), embora insatisfeito com o pai que tem, não está atrás de outro. (Na verdade, Bloom pranteia um filho morto, Rudy, e deseja que Stephen vá morar com ele e Molly). Bloom é um Ulisses nada heróico, um judeu irlandês de vida comum, que sabe de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue. O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas. Sim, mas e o sexo?
Zurique, 1918. Nora Barnacle Joyce com os filhos Giorgio e Lucia.
Joyce refere-se a ele já no primeiro enigma do romance: a escolha da data. Por que 16 de junho de 1904? Ora, porque foi nesse dia que Nora Barnacle fez de Joyce um “homem de verdade”. Alguns críticos consideram que o livro seria uma espécie de declaração de amor que o escritor fazia a sua esposa e amante. No dia 16 de Junho de 1904, o casal saiu para um passeio pela primeira vez. Joyce não levou Nora para os cafés, teatros, nem para o centro de Dublin, mas pelas ruas que vão dar no cais. Foram até a área de Ringsend que, naquela noite, estava deserta. Nora não perdeu tempo. Desabotoou as calças de Joyce e masturbou-o com mestria, “com olhos de santa”. Era a primeira vez que Joyce tinha sexo de graça e o fato revestiu-se de grande importância. Ulysses foi publicado no dia de aniversário de 40 anos de Joyce, em 2 de fevereiro de 1922. Antes, em 1919, alguns capítulos tinham sido publicados na revista The Egoist (Londres). Resultado: impressores e assinantes ameaçaram demitir-se em função da pornografia envolvida… Em 1921, outros capítulos foram publicados em The Little Review (Nova Iorque). Resultado: a edição foi retirada de circulação e suas editoras multadas. Acusação: grossa pornografia.
O cais em Ringsend, subúrbio de Dublin
Porém, conhecendo Joyce, eu apostaria em outro local bem próximo, o das proximidades da igreja de St. Patrick Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca): Se ele tivesse sorrido por que teria sorrido? Para refletir que cada um que entra (na cama) imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só em uma série que se origina e se repete ao infinito. Trad. Caetano Galindo Este trecho jamais poderia ser admitido a escritor preso aos códigos machistas da sociedade do início do século passado. Seria improvável para um homem comum do começo do século XX chegar à conclusão que Bloom chegou a respeito do adultério de Molly, da qual ele nem cogita separar-se: Assassinato, jamais, pois que dois males não perfaziam um bem. E chegamos gloriosamente ao pensador que Joyce era e, principalmente, a um leitor de Freud. .oOo. Não faço ideia se o meu marido é um gênio ou não; o que sei, com certeza, é que ele tem uma mente bem suja. NORA BARNACLE
Hum… Em Ulysses, Leopold Bloom é um cidadão irlandês, pai e marido de Molly. Teve dois filhos, Milly e Rudy, sendo que o segundo morreu onze dias após o nascimento e Milly — que está com 15 anos em 16 de junho de 1904 — estuda em outra cidade. Ela aparece no romance apenas nas saudades de Bloom, o qual também lamenta muitíssimo a perda de Rudy. Ele é um bom pai de quase quarenta anos e começa o dia de forma tipicamente irlandesa. A primeira coisa que come são rins de carneiro grelhados, eles exalam um leve e inebriante perfume de urina. Porém, não vim aqui criticar a gastronomia irlandesa e britânica. Faço referência a este quarto capítulo porque nele Bloom aparece servindo sua mulher-ninfa na cama. É importante notar que é ele quem serve o breakfast, não o contrário. Bloom, que foi confessadamente criado por Joyce para ser o homem comum, o everyman, aparece sem heroísmos, com uma dimensão inteiramente humana, sem atitudes épicas.
A primeira página de Ulysses no manuscrito de Joyce Em 1905, Joyce escreveu a seu irmão Stanislaus: Você não acha a busca pelo heroísmo uma tremenda vulgaridade? Tenho certeza de que toda a estrutura do heroísmo é, e sempre foi, uma mentira e que não há substituto para a paixão individual como força motriz de tudo. O amor de Bloom manifesta-se diferentemente, ignorando posturas machistas, nas atitudes e nos pensamentos em relação à família, mas uma das surpresas de Ulysses é como esta rotina é contraposta à sexualidade que aparece no romance. Boa parte do enredo de Ulysses gira em torno do casal Molly e Leopold e de sua inaptidão para sentir prazer físico e emocional um com o outro. Seja através da
narração onisciente, seja por monólogos interiores, o texto documenta minuciosamente as abordagens sexuais inteiramente diversas e as tentativas românticas do casal. E estas ocorrem sempre SEPARADAMENTE. Durante o curso do dia, Molly comete adultério com Blazes Boylan, enquanto Bloom envolve-se com práticas sexuais voyeuristas, masturbatórias e, por que não dizer?, masoquistas. Mesmo que Bloom participe ativamente destes encontros, é curioso como Joyce obtém mantê-lo longe do estereótipo do fauno sedento por sexo e prazer. Bloom é o anti-herói, o low profile, o personagem simpático, agradável, amistoso e apagado. Mesmo o erotismo evidente de certas participações de Bloom, acaba diluído em gentileza e bonomia. Ele é pai e marido, possuidor de qualidades maternas, pacifistas, até femininas. Os limites rígidos que compunham a prática religiosa e as normas sociais na virada do século XX são demasiadamente sufocantes para a expressão de Joyce da individualidade e do desejo carnal. No episódio em que Bloom masturba-se na praia, observando Gerty MacDowell, tendo por fundo um culto religioso, Joyce não apenas justapõe religião e erotismo, mas incorpora uma prática sexual não convencional.
Bloomsday em Dublin. Leopold põe os olhos em Gerty MacDowell.
Maão no bolso… No filme Bloom, o ator Stephen Rea na cena da praia Com isto, ele desafia o senso comum do que seria a sexualidade na virada do século XX e utiliza seu romance como um veículo através do qual pode expressar seu desejo de fundamentar sua crença no instinto e no físico — não esqueçam que cada capítulo do Ulysses refere-se também a uma parte do corpo humano. Para Joyce, a sexualidade é um ato de expressão da natureza. Neste sentido, concordava inteiramente com D.H. Lawrence, o qual desejava conceder ao corpo um reconhecimento igual ao que era dado à mente. É claro que tais intenções do romance iam ao encontro das teorias de Freud — o desejo sexual como energia motivacional primária da vida humana –, mas ia contra a moral vigente da virada do século. Os encontros de Bloom com mulheres no livro parecem servir de alívio para a exclusão social e a traição de Molly, são o meio utilizado por ele para adquirir o equilíbrio ou equanimidade entre sua existência e a de Molly.
Sandymount Strand, onde Stephen Dedalus caminha imaginando-se cego e onde Leopold Bloom encontra Gerty McDowell em Ulysses
Ulysses é um texto que procura minar e redefinir as noções de gênero e de hierarquia na sociedade patriarcal da época. O romance não promove a superioridade masculina, mas eleva as mulheres e a feminilidade. Não só Joyce inverte a hierarquia social predominantemente masculina, como confunde e desafia a noção de gênero na dicotomia da criação de um casal formado por um homem delicado e feminino e uma mulher decidida. Nesta combinação, o casal Molly e Leopold, desafia os estereótipos que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada. Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “Comumente o que é pornográfico para uma geração, é clássico para a geração seguinte”. A frase parece ser perfeita para Ulysses: enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos, sendo que um deles era “o homem comum”.
Poderíamos definir a pornografia como a apresentação de cenas destinadas a despertar desejo sexual no observador? Assim como num filme de sexo explícito, Uliyses rastreia movimentos e sensações corporais, realizando (ou escandalizando) o desejo do leitor de observar com precisão a mecânica do corpo. No entanto, Joyce não faz pornografia: aqui, a predição de Rushdie funciona perfeitamente: apesar de possuir elementos pornográficos, Ulysses oferece a transformação da pornografia em uma forma de arte clássica. Tendo lido e estudado psicanalistas como Freud, Joyce nos oferece não apenas uma nova ficção e linguagem, oferece-nos um ponto de vista original para entender o sexo. A atitude perante a sexualidade estava mudando após a virada do século, especialmente na esfera psicanalítica, e Joyce reflete em Ulysses este novo interesse na sexualidade, o crescimento de uma ciência sexual e o desenvolvimento de novos conceitos que rompiam cabalmente a associação entre sexualidade e reprodução. Joyce pertencia ao grupo de grandes pensadores da época, que procuravam entender e redefinir a sexualidade. Declan Kiberd afirma jocosamente que “Ulysses era não apenas um exemplo de um empreendimento comercial de alto risco, mas também um manual muito particular que extrapolava em muito questões literárias”. É importante salientar a relação de Joyce com a tradição inglesa do romance. A Irlanda estava sob o domínio inglês. Os ancestrais de Joyce abandonaram lentamente o gaélico — ainda falado em regiões rurais da Irlanda — pelo inglês. Deste modo, os irlandeses viviam a uma certa distância da literatura inglesa ou ao menos utilizavam a língua com menor respeito, muitas vezes com insolência. Deste modo,
há, além das ideias de Joyce, um aspecto sociológico que torna a quebra da tradição um ato até desejável de afirmação de nacionalidade. Joyce não falava mal de Dublin e da Irlanda, como alguns afirmam, mas era, sim, contra a sentimentalização do passado, revoltava-se contra o provincianismo de achar que o passado — mesmo um inventado, como o dos gaúchos tradicionalistas — ia voltar.
O Rio Liffey e a Ponte Ha’penny Bridge em Dublin, Irlanda .oOo.
les laureirs Os monólogos interiores de Ulysses ainda eram uma novidade na época do lançamento do livro. Na verdade, o stream of consciousness não foi uma invenção de Joyce e sim do francês Édouard Dujardin, cujo livro Os loureiros estão cortados foi lançado pela editora porto-alegrense Brejo, em 2005, com prefácio explicativo de Donaldo Schüller. O monólogo interior permite ao leitor de Joyce, fazer o
contraste entre a riqueza da vida imaginativa de um indivíduo contra o fundo da pobreza de suas relações sociais. Quando comparados com a vida interior dos personagens, os diálogos de Ulysses não são grandemente satisfatórios. Leopold Bloom não perdoa as traições de Molly verbalmente, porém sabemos detalhadamente, por seu íntimo, que ela está perdoada. Os personagens do Ulysses são enorme, imensamente fluentes em seus interiores, mas não são nada articulados verbalmente. Vão embora sem dizer o que têm em mente e é apenas na solidão que alcançam suas verdadeiras vozes. O que dizer do monólogo final de Molly Bloom? Ali ela expõe-se de uma forma muito transgressora — não está sozinha enquanto o marido dorme ao lado? — , tem fantasias que surpreendem mesmo um século depois. Joyce, escrevendo de dentro dos pensamentos do cérebro de Molly, constrói o gozo feminino com primeiro com liberdade e depois com humor, celebrando como nunca antes o desejo da mulher numa época em que a psicanálise ainda não o fazia. Os encontros, como o de Bloom com Gerty MacDowell, são em geral sem palavras, conduzidos pelo corpo. Há muitas frases pela metade. Por exemplo, após masturbar-se na praia, Bloom escreve na areia “sou um”. O casamento com Molly também serve para ilustrar a falta de articulação. É uma ligação silenciosa de duas pessoas que compartilham uma casa, uma cama, quem sabe amor, mas não uma vida.
Angelina Ball no filme Bloom (2003), de Sean Walsh E Bloom, como dissemos, comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com uma mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: eles dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha com as regras”. Também como talvez uma mulher fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela o veja em seu melhor ângulo. Depois Gerty faz o mesmo. Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o leitor entra nos pensamentos de Molly enquanto ela se encontra na cama ao lado de Bloom, ao final do dia. O monólogo revela a promiscuidade de Molly, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de sua família. Quando lembra da amamentação de Milly, ela fala que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do
que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser uma provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil. Nas duas hipóteses, o texto de Joyce subverte a masculinidade.
Em seu ensaio prévio à última edição do Ulysses, Declan Kiberd afirma que na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. No monólogo, Molly exibe suas características masculinas na recapitulação de seu primeiro encontro sexual com Bloom em Howth Head, em consonância com que já sabíamos de Bloom: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca), como se fosse uma mamãe pássaro.
Howth head
Howth Head map Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação com as mulheres de Dublin.
james joyce Em Ulysses, Joyce tenta descrever outras situações da sexualidade humana, ainda não presentes em romances. Joyce não julga nem demonstra desejo de advogar como acertadas, entre aspas, determinadas práticas ou condutas sexuais, mas revela a inconsistência dos comportamentos estereotipados de gênero, ao mesmo tempo que coloca o desejo no centro de muitas, muitíssimas de nossas ações. Além de contradizer a sociedade, Joyce igualmente contradiz a religião. A masturbação de Bloom é justaposta a um serviço religioso, claramente a fim de comentar as restrições que a religião coloca sobre as expressões sexuais pessoais. Descrevendo o Bloom onanista, com o serviço religioso ocorrendo em background, Joyce faz várias citações bíblicas, transformando Gerty num piedoso emblema de uma Virgem Maria de natureza libidinosa, que incita Bloom. Joyce parece fazer piada com a possibilidade da religião dominar o desejo carnal, apresentando a concupiscência como um componente óbvio e intrínseco a toda a existência humana. E segue desafiando modelos quando Bloom se envolve em encontros voyeuristas durante sua jornada em Dublin.
Joyce conhecia e respeitava Freud, porém Ulysses não necessariamente se encaixa nas obras dos
psicanalistas da época. A incorporação da sexualidade pelo Ulysses exemplifica principalmente um nãoconformismo. Durante todo aquele 16 de junho, os protagonistas do Ulysses tiveram que enfrentar muitas coisas. Porém, quando focamos uma lente crítica sobre as representações de sexo no romance, podemos notar como Joyce foi cuidadoso ao construir e apresentar os apetites sexuais de cada personagem. Ao usar o sexo como uma ligação entre seus personagens e leitores, James Joyce foi capaz de criar representações universais formadas por muitas camadas. Notem como o romance é finalizado com o orgásmico “sim” de Molly, algo que é final e evidentemente muito afirmativo. Foi certamente a primeira vez que tivemos acesso a tamanha interioridade. O recurso narrativo do fluxo de consciência, despregado das limitações dialogais, demonstra claramente cada identidade. Segundo Álvaro Lins citado em artigo do escritor Franklin Cunha, Joyce foi “um revelador do caos num mundo em desordem”. Consciência e subconsciência, angelitude e animalidade, idéias e instintos, natureza física e natureza psíquica, é o ser humano sempre por inteiro que Joyce busca apresentar em sua obra. No imenso mar joyceânico nenhuma concepção é ignorada, elas estão no livro e nas mentes dos personagens bem como estão as realidades que as representam. Segundo Edmund Wilson, Joyce, a partir desses eventos,” edificou um quadro espantosamente vivo e fiel do mundo cotidiano, o qual possibilita uma devassa e um acompanhamento das variações e complexidades de tal mundo, como nunca foi feito antes. Estilisticamente pantagruélico, Joyce, em Ulysses, não apenas constrói o romance moderno como o ameaça com um catálogo aparentemente interminável de temas e estilos. E, dentro deste amplo cenário, invoca Eros como metáfora universal da condição humana..
Gostou deste texto? Então ajude a divulgar! miltonribeiro.sul21.com.br · by Milton Ribeiro · May 2, 2014
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Ulisses (Ulysses), de James Joyce - Parte I classicosuniversais.com · June 16, 2011
James Joyce Hoje – 16 de junho – em várias partes do mundo celebra-se o Bloomsday, ou Dia de Bloom. Para comemorar a data veremos aqui um pouco de por que o personagem que lhe deu o nome, Leopold Bloom, e seu criador, James Joyce, serem caros à cultura a ponto de ganharem um feriado só para si. Introdução: Para começo de conversa, recomendo a leitura desta postagem. Sem rodeios, Ulisses foi escrito para ser e se tornou uma revolução literária. Muito do que lemos em matéria de literatura contemporânea deve-se ao trabalho minucioso de Joyce. Logo abaixo esta revolução está separada em três categorias: forma, conteúdo e influência. Antes disso vamos dar uma olhada em quem foi James Joyce e em quais condições ele escreveu sua obra-prima. Ele é o escritor mais irlandês de que se tem notícia, tanto por ter nascido na Ilha Esmeralda quanto por continuar a retratar seus pormenores mesmo quando distante dela. Nascido em Dublin no ano de 1882, permaneceu ligado à cidade através das décadas por meio de seus escritos. Além de irlandês, era inteligentíssimo e talvez, segundo Carl Jung, esquizofrênico. São ou não, tinha um enorme talento para a linguagem e para os idiomas, algo muito útil na tarefa de um escritor. Boa parte de seu aprendizado em línguas veio da necessidade – morou bastante tempo em Trieste, Zurique e Paris – e dos contatos com outras grandes figuras literárias de sua época, como W. B Yeats, Ezra Pound, Italo Svevo e Samuel Beckett. Em 1914 começou Ulysses, que só terminaria de escrever após 7 anos e a mudança entre dois países (Suíça e França). Inicialmente controversa, a obra ganhou o respeito do público e da crítica graças ao empenho de autores da fama de T. S. Eliot e Pound. E quem ousaria criticar um monumento de quase 1000 páginas que revolucionou a escrita literária? Bem, é certo que houve muitas repreensões e opiniões
contrárias – e ainda há. Até pela sua dificuldade de leitura este livro não é para qualquer um, porém nada derrubará seu status de marco. Vejamos por quê. 1. A forma: Melhor seria dizer “as formas”, porque Ulisses é um verdadeiro compêndio de técnicas literárias. São 18 capítulos, cada um escrito de uma maneira diferente e muitas vezes composto de uma confluência de estilos distintos. Poucos livros requerem tanta atenção do leitor, pois as pistas de como se o ler mudam de uma parte para outra. Por isso é importante termos em mãos uma edição farta em notas de esclarecimento, já que precisaremos delas. Aliás, precisaremos ler o texto diversas vezes para entendê-lo, e em cada leitura descobriremos algo novo. Ulisses não é um livro para um final de semana, é para se acompanhar por toda a vida e ser revisitado constantemente. A sua extensão não é o problema, afinal a geração mais recente está acostumada a publicações com 500 ou 600 páginas; a grande dificuldade desta obra está no cuidado excessivo sob o qual foi composta. James Joyce não é J. K. Rowling, aqui todas as palavras foram medidas e costumam ter mais do que um único sentido. Além dessa necessidade constante de atenção, a classificação como “obra impenetrável” afasta muitos possíveis leitores. Em nenhum aspecto esta obra é impenetrável; é difícil como o são todos os bons livros por trazerem algo novo ao nosso entendimento, porém não chega a ser impossível de a compreendermos. Ela é um retrato da vida e é como a vida: quanto mais a vivemos, mais podemos entendê-la. Tomemos o título como ilustração. Ulisses remete a Odisseu, o herói da Odisséia (Odyssey / Odysseia), de Homero. Joyce constrói seu protagonista, Leopold Bloom, em torno desse mito e em um só dia, 16 de junho. Bloom passará por uma releitura de episódios tais a descida ao Hades e a caverna do Ciclope, mas quem desconhece a epopéia grega não perderá a compreensão do que acontece aqui. O conhecimento da Odisséia apenas auxilia, do mesmo modo que a leitura dela é auxiliada por Ulisses. Outra característica importante da obra é a dilatação temporal através do fluxo de pensamento (lembremos que tudo ocorre em um dia). Boa parte da ação se dá dentro da mente dos três personagens de destaque: Leopold, Molly Bloom e Stephen Dedalus. Novamente impõe-se uma dificuldade ao leitor. Já é difícil de acompanharmos os nossos pensamentos, quanto mais os de outra pessoa. No entanto, depois do estranhamento inicial, acostumamo-nos ao processo – em parte facilitado pelo ritmo exclusivo que Joyce emprega para cada personagem. E também há um grande número de estrangeirismos, trocadilhos e formas de linguagem complexas. Para termos idéia, de um total de 265.000 palavras o autor usou um léxico de 30.000 palavras diferentes. E alguns desses vocábulos e algumas dessas expressões são verdadeiros dilemas para os tradutores. Por falar em tradução, vale comentar as duas opções que os brasileiros temos. Há a versão de Antônio Houaiss, da década de 60, e a de Bernardina da Silva Pinheiro, mais atual. Enquanto Houaiss prezou pela musicalidade do texto, empregou um vocabulário bastante erudito e mais complicado de seguir. Já Bernardina se serviu de uma linguagem mais simples, contudo um pouco mais distante da música joyceana. Para os iniciantes a tradução dela, publicada pela Editora Objetiva (selo Alfaguara), e
acompanhada por uma fartura de notas e mapas é uma boa pedida. Continua aqui: Ulisses (Ulysses), de James Joyce – Parte II. classicosuniversais.com · June 16, 2011 This article was downloaded by calibre from /read/670595024
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Ulisses (Ulysses), de James Joyce - Parte II classicosuniversais.com · July 2, 2011 Em continuação à introdução ao Ulisses e apresentação da forma do livro, segue a segunda parte da resenha, agora sobre o conteúdo e as influências ocasionadas na literatura e nos leitores. Primeira parte: Ulisses (Ulysses), de James Joyce – Parte I; Lê também: As batalhas da literatura. 2. O conteúdo: Como descrito, Ulisses acompanha os três personagens principais – e seus encontros com mais de uma centena de secundários – a repetirem os passos de Odisseu, Penélope e Telêmaco, desta vez em uma Dublin do início do século XX. Portanto, é uma paródia no sentido mais amplo da palavra, técnica esta muito usada no modernismo. Paródia vem de para- (contra) –ode (ode, canção), da tradição literária grega, na qual era empregada para transformar o sublime dos poemas em ridículo. Os escritores modernistas aproveitaram-se desse recurso não para ridicularizar, mas para transportar as mesmas histórias para outros contextos; para ir de encontro ao divino, ao sublime, e transformá-lo em humano. Daí surge a caracterização de Leopold Bloom como um anti-herói, posto que simplesmente humano. Apesar de passar pelas mesmas provações, ele não tem as faculdades heróicas de Odisseu nem se serve do auxilio dos deuses e por isso deve enfrentar as adversidades com as próprias forças. E, do mesmo modo que há uma porção de herói em todo ‘anti-herói’, Leopold consegue superar suas limitações e enfrenta várias situações complicadas com uma sabedoria por vezes exemplar. Tem seus defeitos, é claro: demonstra um pouco de gabolice e frouxidão, mas suas qualidades são dignas de se ressaltar, em especial se levarmos em consideração a consciência média de um cidadão de há quase cem anos. Bloom tem um pai suicida, um filho morto, um chefe que não o prestigia e uma esposa que o trai. Contudo, inclusive diante das situações de confronto direto, apresenta uma plácida serenidade. Quando ele se dirige com outros senhores ao enterro de um conhecido, no sexto capítulo, ouve o repúdio de um de seus colegas a respeito do suicídio e nada menciona, por mais que o assunto o doa. E também resiste às diversas indiretas referentes às relações extra-conjugais de sua esposa sem se mostrar por isso enfurecido. No fim do dia ele chega a ponderar: “Assassinato, nunca, visto que dois erros não tornam um certo. Duelo por combate, não. Divórcio, agora não” (na tradução de Bernardina S. Pinheiro, Editora Objetiva). É sensato, até porque tem sua cota de deslizes. E então ele pede a Molly que lhe traga café da cama na manhã seguinte, fato que não ocorria desde a morte de seu filho, há onze anos. Com paciência, com inteligência e com pequenas atitudes ele mantém o controle sobre sua vida e o equilíbrio de sua consciência. Bloom é estóico a ponto de suportar um sabonete no bolso traseiro que o incomoda ao longo do dia.
A inversão, então, do divino em humano é completa: Molly não tem a fidelidade de Penélope, mas seu marido opta por impor-se através de pequenas palavras, ao invés de vingar-se com sangue; Leopold não tem é um herói como Odisseu, mas tem a tenacidade e a sabedoria suficientes para enfrentar os obstáculos da vida; Stephen não mais um Telêmaco à procura de um pai, mas é visto com afeição paternal por Bloom. E ao redor deles orbitam constelações de outros personagens, cada um com uma história própria, com personalidades diferentes e graus de familiaridade distintos. Eles reprisam fielmente a vida orgânica de uma cidade em todos os seus detalhes. Quem gosta do seriado Os Simpsons (The Simpsons), no ar há mais de vinte anos, verá que boa parte de sua estrutura e de sua capacidade de criar novos fatos por tão longo período se deve a Ulisses e a seu amplo universo de caracteres. Nos romances citadinos o homem nunca é só, ele é definido por sua relação com os demais. Por último, um conselho de como abordar este livro: com atenção, porém não tão seriamente. Um dos maiores riscos de saber a importância de uma obra é que, ao lê-la, pode-se perder a graça e o carisma da leitura. Mesmo os melhores livros podem se tornar aborrecidos se os encaramos com demasiada seriedade. Lembremo-nos de que o humor é parte natural da vida e, portanto, está também em Ulisses. Leiamos por prazer. 3. As influências: James Joyce era muito consciente como artista. Desde a escritura de sua obra-prima ele soube da importância que esta teria em uma nova literatura. Em conversa com Arthur Power a ela se refere assim: “Quanto ao classicismo romântico que você tanto admira, Ulisses mudou tudo isso, pois nele eu abri um novo caminho e você vai ver que ele será seguido cada vez mais. De fato, a partir dele você pode datar uma nova orientação na literatura – o novo realismo, pois embora você critique Ulisses, contudo a única coisa que você tem que admitir que eu fiz foi liberar a literatura de seus grilhões antiquados. Você é evidentemente um tradicionalista intransigente, mas deve perceber que uma maneira nova de pensar e de escrever foi iniciada, e aqueles que não concordarem com ela serão deixados para trás” (tradução de B. S. P.). Pareceria pedante, se não soubéssemos que é a verdade. De fato, Ulisses não provocou apenas um sem fim de adaptações, imitações, estudos, análises, comentários e até outras paródias – ele mudou a cara da literatura. Como exemplo, basta que pensemos em quantos livros lançados nos últimos 50 anos têm a narrativa desenvolvida na mente do personagem, ou a ela sujeita, e quantos não têm. E vejamos a questão da fragmentação temporal: quantos livros atuais se passam em um dia, uma noite, uma hora? Antes de Joyce, isso seria visto como um disparate, uma afronta à estética e ao leitor. E se hoje isso é visto mesmo como um lugar comum na literatura, é porque Joyce provou que um único segundo na vida de um personagem pode ser interessante. Escreveu Schopenhauer a respeito disso em seu ensaio Sobre a erudição e os eruditos: “Como podemos supor, um bom cozinheiro pode dar gosto até a uma velha sola de sapato; da mesma maneira, um bom escritor pode tornar interessante mesmo o assunto mais árido” (traduzido por Pedro Süssekind, L&PM). Ainda há o respaldo de grandes escritores, os quais em algum momento confessaram sua devoção a esta obra. T. S. Eliot, autor de A Terra Desolada (The Waste Land), que parodia poemas clássicos tal a
Divina Comédia (Divine Comedy / Divina Commedia), de Dante Alighieri, pronunciou-se da seguinte maneira sobre Ulisses: “Este é um livro do qual todos somos devedores, e do qual nenhum de nós pode escapar.” Já vimos os modos como James Joyce influenciou a literatura e os escritores, agora só nos falta vermos a forma com que ele mais influenciou a nós, os leitores. Dentre todas as inovações e aprofundamentos no ato de ler que Joyce nos imprimiu, a maior delas se refere ao fluxo de consciência. Percebemos enfim que existem muitos meios de compreensão além da frase tradicional; custa um pouco mais a nos habituarmos, é certo, mas nos permite leituras muito mais íntimas e complexas. Quando mergulhamos da mente de Leopold, Molly e Stephen, aprofundamo-nos igualmente em nosso modo de pensar, ou seja, através da consciência dos personagens nos tornamos mais conscientes de nosso processo de pensar. De fato, Joyce é tão importante para a Psicologia – e talvez tão eficaz – quanto Freud. Este fez com que nos revelássemos a outro para que nos interpretasse, aquele fez com que interpretássemos a outro para que nos auto-revelássemos. Para concluir, tenhamos em mente que nenhuma resenha literária será completa, especialmente neste caso. Nas palavras de Ítalo Calvino, em Por que ler os clássicos: “Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente a repele para longe” (tradução de Nilson Moulin para a Companhia das Letras). Cada leitor descobrirá novas características, novas passagens marcantes, novos significados, em suma, criará um novo livro para si. Essa foi uma das grandes contribuições de Joyce, compreender e divulgar que uma obra se faz metade pelo trabalho árduo do escritor, e metade pelo entendimento do leitor. Sugestão: Ulisses, Editora Objetiva, 2007, Tradução e Introdução de Bernardina da Silveira Pinheiro, 908 pág. classicosuniversais.com · July 2, 2011 This article was downloaded by calibre from /read/670595125
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Dossiê James Joyce: um guia para entender "Ulysses" letrasinversoreverso.blogspot.com · July 16, 2008
capa da 1ª edição de Ulysses Ulisses tem lá suas dificuldades, claro. Isso significa que o leitor que não estiver preparado para enfrentá-las corre o risco de se decepcionar. É preciso conhecer o caminho a se trilhar, sob pena de se perder. A sinopse a seguir abre uma picada na densa floresta literária de Joyce. Conduz o leitor, capítulo a capítulo, à essência do enredo e das técnicas narrativas. Joyce é parcimonioso na indicação de pistas. A única referência que serve mais ou menos de guia é o título do livro: o nome latinizado do herói da Odisséia, de Homero. A leitura de Homero seria enriquecedora, embora não obrigatória, porque os paralelos com a epopéia grega servem sobretudo de base estrutural, funcionam como metáfora profunda estabelecida com ironia, humor e seriedade - do heróico no homem comum na era moderna. A idéia de um guia não era estranha ao próprio Joyce. Reconhecendo a complexidade do livro, ele elaborou um diagrama explicativo "para uso doméstico". No diagrama, Joyce adotou a divisão da Odisséia: "Telemaquia" (parte I, episódios 1 - 3), "Odisséia" (parte II, episódios 4 - 15) e "Nostos" (parte III, episódios 16 - 18). A cada episódio, que no diagrama tem o título , corresponde uma denominação grega, um cena, um órgão do corpo, uma arte, uma cor, um símbolo e uma técnica narrativa. A ação se passa num único dia: 16 de junho de 1904. OS QUATRO PERSONAGENS PRINCIPAIS Leopold Bloom, 38 anos, filho de pai judeu imigrante, o húngaro Rudof Virag (que ao chegar à Irlanda mudara o nome para Rudolph Bloom) e Ellen Higgins, não judia. Corretor de anúncios de jornal. Casado com Molly Bloom. Pai de Milly Bloom. O casal teve um filho, Rudy, que viveu apenas onze dias, de 29 de dezembro de 1893 a 9 de janeiro de 1894. Bloom, homem comum, sente-se deslocado na comunidade xenofóbica de Dublin. Quando o encontramos, ele relembra o suicídio do pai e a ausência do filho,
preocupa-se com a filha adolescente e remói a suspeita de uma traição de Molly. Molly Bloom, 34 anos, mulher de Leopold, mãe de Milly. Cantora soprano. Nascida em Gibraltar no dia 8 de setembro de 1870, com o nome de Marion Tweedy, mudou-se para Dublin aos 16 anos, com o pai, o major Brian Tweedy. A mãe, Lunita Laredo, talvez espanhola e de família judia, teria morrido ou abandonado a família quando Molly era nova. Molly é vista por outras personagens como mulher sensual, voluptuosa e até prostituta. Só aparece substancialmente no fim da narrativa, enquanto o marido dorme, no extraordinário monólogo. Stephen Dedalus, único personagem em Ulisses que aparece no romance anterior de Joyce, Um retrato do artista quando jovem. Neste, Stephen é enfocado desde a infância até à juventude, dos primeiros estudos à universidade, da complexa formação de um artista inconformado até a recusa do provincianismo cultural e político, à sociedade católica coercitiva, e a inevitável partida para Paris. Em Ulisses, Stephen retorna à Irlanda devido à morte da mãe. Por falta de dinheiro e indecisões, permanece em Dublin, onde mora com Mulligan no litoral num antigo forte circular, a torre do Martello, do tempo das guerras napoleônicas. Leciona numa escola para adolescentes e continua a pregar a estética em que acredita. Malachi "Buck" Mulligan, estudante de medicina e escritor que, sem se importar de fazer concessões em relação à arte, começa a se integrar ao círculo literário de Dublin. Mora na torre do Martello com Stephen Dedalus, de quem é amigo e rival. DUBLIN, O CENÁRIO 1 – a torre do Martello 2 – a escola onde Stephen leciona 3 – Cervejaria Guinness 4 – Eccles street, onde moram Leopold e Molly Bloom 5 – Sede do Freeman’s Journal 6 – Pub David Byrne, onde os personagens se reúnem 7 – Biblioteca Nacional 8 – Praia de Sandymount A ODISSÉIA 1 Telemachus Oito horas da manhã na torre do Martello, à beira-mar, onde Stephen Dedalus mora com Mulligan. O inglês Haines, amigo de Mulligan, é hóspede. Mulligan e Stephen discutem arte: Stephen preza a arte íntegra e despreza a concessão para obter reconhecimento, que é a posição de Mulligan. A tensão subliminar entre os dois é aumentada por Haines, que pretende estudar o renascimento da Literatura
Irlandesa e admira o folclore. Revela-se anti-semita. Stephen vê em Haines um representante do colonizador, opressor da Irlanda. Tomam café da manhã e saem. Mulligan vai se banhar. Dois homens procuram o corpo de um afogado. Stephen sente que não há mais lugar para ele na torre. Entrega as chaves a Mulligan e parte, sem intenção de voltar. Stephen Dedalus é apresentado como artista. Mulligan e Haines equivalem aos pretendentes de Pénelope (da Odisséia) e a partida de Stephen simboliza a busca de um pai (no caso, espiritual).Stephen, que já havia deixado a casa dos pais, começa o dia assediado pelo espectro da mãe; remói a culpa de não ter rezado por ela no leito de morte um ano antes. A narração combina realismo com o monólogo interior (a técnica narrativa é juvenil). 2 Nestor Stephen vai para a escola onde leciona, a poucos quilômetros as torre, no sudeste de Dublin. Os alunos comportam-se mal e Stephen não consegue controlá-los. Terminada a aula, fica na classe para orientar o garoto Cyril Sargent, atrasado em matemática. Stephen se identifica com Cyril quando menino. Imagina-o protegido dos males do mundo pela mãe. Libera-o para jogar hóquei e procura o diretor da escola, Garrett Deasy, para receber o pagamento. Deasy discursa sobre economia, aconselha Stephen a controlar as finanças, defende o unionismo como se fosse inglês, explica mal as relações entre Inglaterra (o dominador) e Irlanda (a dominada), revela-se anti-semita, tal como Haines (“a Irlanda nunca perseguiu judeus porque nunca os deixou entrar”). Deasy escreveu uma carta de alerta para os perigos de epidemia de febre aftosa e entrega-a a Stephen para, por meio de sua influência, publicá-la em jornal. O episódio enfatiza a situação histórica da Irlanda (a arte aqui é história) e ressalta o deslocamento de Stephen, tanto físico como psicológico. Por meio do menino Cyril, é introduzido o tema do amor materno, associado sutilmente ao espectro da mãe de Stephen. O monólogo interior é utilizado durante todo o episódio, mais intensamente no início e no fim. 3 Proteus Depois de sair da escola, Stephen anda pela praia a caminho do centro de Dublin. Reflete sobre filosofia e estética, evocando o filósofo grego Aristóteles e o poeta inglês Willian Blake, entre outros. Passa pela casa dos tios e imagina uma visita que não faz. Reflete sobre o que aspirou, realizou e não realizou, sobre os anos em paris como estudante de medicina auto-exilado. Imagina a vida pregressa de duas pessoas que vê na praia. Num pedaço de papel que arranca da carta de Deasy, anota os versos de abertura de um poema simbolista. Stephen reflete sobre o visível e o invisível, o mundo objetivo como sinais que exigem interpretação, a transformação de tudo no tempo e no espaço, na própria mente. O grande significado aqui é a matéria primordial, a água e o símbolo a evolução e a metamorfose. Correm subliminarmente os temas da mãe, da mulher e da fertilidade. Monólogo, interior intenso (masculino). 4 Calypso Oito horas da manhã, casa número 7 da rua Eccles, noroeste de Dublin. Leopold Bloom prepara o café da manhã para si, para a mulher e para o gato. Resolve comer rim de porco, vai ao açougue comprar. Vê
uma mulher que lhe desperta devaneios. Volta para casa, recolhe a correspondência. Uma carta da filha Milly, outra de Blazes Boylan endereçada a Molly. Blazes organizou uma turnê de concertos que inclui Molly, mas Bloom desconfia que mulher o trai com Blazes. Bloom come rim tostado, vai ao banheiro, fora de casa, com um jornal. Prepara-se para ir ao enterro de um amigo, Paddy Dignam. Este capítulo apresenta o personagem que se pode interpretar como a encarnação de Odisseu, o pai espiritual de Stephen. O monólogo interior prevalece, mas diferente, porque Bloom é um homem comum. O devaneio ocupa-lhe a mente, sugerindo temas que vão e voltam ao longo do romance, como sionismo e erotismo (os símbolos aqui são Israel, família, vagina). 5 The Lotus Eaters Bloom sai de casa e anda pelas ruas de Dublin. Pensa em anúncios, ciência. Carrega uma carta que recebeu endereçada a Henry Flower (seu pseudônimo), enviada por Martha Clifford, que nunca conheceu, mas que sempre lhe escreve. Vai à Igreja, à Farmácia. Reflete sobre remédios, produtos químicos. Um conhecido pede-lhe o jornal emprestado, para verificar informações sobre corrida de cavalos. O tema da sensualidade e da sexualidade vai se formando, com as fantasias sobre Martha. Os jogos de palavras também se estabelecem: o nome Henry Flower e Bloom remetem a florescência, o desejo sexual que aflora (a correspondência direta com Homero é lotófagos); o nome do cavalo que o amigo vai apostar é Thorowaway (jogar fora). O significado aqui é sedução e lealdade. 6 Hades Bloom vai ao enterro de Dignam com amigos. No cemitério, conhece pessoas, entre elas o jamais identificado homem “de capa impermeável”. Reflete sobre nascimento, morte transitoriedade, o filho Rudy, o pai suicida. Participa de conversas sobre a morte que desembocam na situação da Irlanda após a morte do líder do Partido Nacionalista Irlandês, Charles Stewart Parnell. A correspondência com Homero é o episódio da Circe, a deusa-feiticeira que aconselha Odisseu a descer aos infernos e consultar os mortos para tentar encontrar um rumo. As pessoas que Bloom conhece representam esses mortos. O significado é a descida ao nada e os símbolos o homem desconhecido e o inconsciente. Joyce denomina a técnica “incubismo”. 7 Aeolus Bloom vai à redação dos jornais onde trabalha, Freeman’s Journal e Evening Telegraph, para fechar o contrato de um anúncio. Stephen aparece para entregar a carta do diretor da escola. Um vento forte sopra quando as portas se abrem, fazendo voar papéis. Histórias ligadas ao jornalismo, discursos e política (Grã-Bretanha comparada com Roma, Israel com Irlanda), exílio. Stephen e outros vão para o bar, Bloom vai para a Biblioteca Nacional pesquisar o layout para um anúncio. Joyce substitui o monólogo interior pela linguagem do jornalismo, com o uso abundante de manchetes. O vento representa a retórica pseudo-objetiva, transparece uma espécie de consciência coletiva. Joyce recorre à retórica, cuja origem é grega e romana. A narrativa é impessoal.
8 The Laestrygonians Bloom continua a andar por Dublin, pensando no passado: Molly, amores de Molly, nascimento e família. Avista a irmã de Stephen da rua, alimenta aves, pensa em publicidade. Encontra uma conhecida, ex-amor passageiro, que lhe conta que a Senhora Purefoy está internada na maternidade. Bloom, com fome, entra no bar David Byrne. Sai do bar, ajuda um cego a atravessar a rua. Joyce retoma o monólogo interior para retratar Bloom como homem bondoso e solidário. O pensamento que corre quase imperceptível, como se reprimido, é a suspeita de traição de Molly com Blazes Boylan, que ele receia encontrar. O significado aqui é a melancolia. Joyce constrói o capítulo com associações de idéias. 9 Scylla and Charybdis Stephen discute Shakespeare com um grupo de intelectuais, entre eles A. E., na Biblioteca Nacional. Stephen expõe sua teoria da criação literária utilizando o idealismo defendido por Mulligan para mostrar que a arte e a vida interagem. Com base na teologia, filosofia e literatura, defende que Hamlet seria o fruto de uma relação verdadeira, assim como o filho de Shakespeare, Hamnet, teria sido fruto de uma relação adúltera de Ann Hatthaeay. Mulligan aparece na biblioteca, ridiculariza da teoria de Stephen. Bloom chega e parte. Mulligan ridiculariza Bloom por ser judeu e afirma que Bloom deseja Stephen. Saem todos da biblioteca. A narrativa adota o estilo Stephen das três primeiras partes. A ênfase na teoria de Hamlet de certa forma mina a teoria estética de Stephen em Hamlet, o príncipe teme a traição materna, mas aqui Stephen remói a traição em relação à própria mãe. Joyce parece enfatizar a função criadora da mulher, com seu amor físico e seu amor materno, o que aparece em todo o romance através do símbolo da água. Joyce sugere também a relação entre ele mesmo, como autor, e a criação de Stephen, seu alter ego, tendo do outro lado a relação pai-filho espiritual de Stephen-Bloom. A arte aqui é a literatura, a técnica a dialética, os símbolos, a juventude e a maturidade. 10 The Wandering Rocks Abundância de personagens, entre eles o padre Conmee, as imãs de Stephen e Blazes Boylan. Os acontecimentos são praticamente impossíveis de recontar com brevidade. O episódio consiste em dezoito narrativas breves, desconectadas e sem seqüência temporal. Vários motivos se repetem, como se a narrativa principal não tivesse rumo a tomar. É a interpretação de Joyce do episódio Circe, na Odisséia de Homero, em que ela sugere a Odisseu que não tome determinado rumo. O significado é ambiente hostil, a técnica labiríntica, os símbolos homônimos, sincronizações e semelhanças. Note-se que o romance tem dezoito episódios sobre as errâncias (internas e externas) dos personagens num único dia. 11 The Sirens Bloom compra jornal, vê o carro de Blazes Boylan estacionado em frente ao hotel Ormond e desconfia que ele está lá dentro. Entra com o amigo oRitchie Goulding. Boylan flerta com as garçonetes e vai embora. Simon Dedalus, pai de Stephen, toca ao piano e canta, Ben Dollard canta uma balada sobre a
revolta irlandesa. Atmosfera de nacionalismo. Bloom, alheio, pensa em Molly, escreve uma resposta à carta de Martha Cardiff. Depois sai. O episódio compõe-se de inúmeros fragmentos que se relacionam como uma fuga. A técnica adequada às sereias é a música; daí está repleto de canto e música. Falas e associações também são arranjadas como música, algumas palavras fragmentadas a ponto de se tornarem puros sons. A narrativa lógica se dilui e a música é uma espécie de voz narradora. Resta a mente de Bloom, de novo desconfiado de que Boylan foi visitar Molly. 12 The Cyclops Bloom dirige-se para o bar de Barney Kiernant, Tavern, onde pretende reunir com Martin Cunningham para conversar sobre assuntos da família Dignam. Lá está o personagem Cidadão, nacionalista ferrenho. Bloom entra. O Cidadão fala de pena de morte. Bloom tenta conversar com ele com jeito. O Cidadão desdenha Bloom, afirmando que a Irlanda está cheia de estrangeiros, discursa sobre a história irlandesa. Bloom fala de amor e compreensão, ciente de sua descendência judia, depois sai. Lenehan acha que o cavalo em que Bloom teria apostado (Throwaway) foi o vencedor. O cidadão se enfurece. Bloom volta e o Cidadão, violento, força Bloom a deixar o bar. Um dos capítulos mais complexos, a narrativa é interrompida por inúmeras passagens paródicas voltadas para si mesmas, indo do discurso jurídico e lendas irlandesas, eventos sociais e religiosos a desastres da natureza. Há um narrador não identificável e outro que é o Cidadão. No paralelo com Homero, o Cidadão é o Ciclope, que vê tudo segundo um único ponto de vista, sobretudo a ordem estabelecida. Os símbolos são a nação, o estado, o fanatismo; a técnica é o gigantismo. 13 Nausicäa Novos dublinenses aparecem na praia de Sandymount, onde Stephen caminhou às oito da manhã (agora são oito da noite): Gerty MacDowell, Edy Boardmanm e Cissy Caffrey e os irmãos desta. Gerty irrita-se com a algazarra dos meninos. Devaneia, pensa no homem que a rejeitou e em coisas religiosas. Bloom está na praia, um pouco distante. Gerty pensa nele romanticamente. Começa a queima de fogos de artifício. As amigas saem correndo, Gerty fica, insinuando-se levemente e deixando que Bloom lhe entreveja as pernas. Quando ela se vai, Bloom percebe que manca. Antes disso, Bloom já havia se masturbado. Pensa nos filhos, pensa em Gerty. Os estilos aqui variam conforme as personagens. O de Gerty é tirado de um romance romântico. O romantismo possibilita a Joyce “revelar” o impulso sexual subjacente e o erotismo discreto. Os fogos de artifício estouram no exato momento do orgasmo de Bloom. Com a partida de Gerty, o ponto de vista narrativo volta para Bloom. A traição de Molly retorna com o canto de um cuco. O significado é a ilusão projetada; os símbolos o onanismo, a mulher, a hipocrisia; a técnica, tumescência, detumescência. 14 The Oxen of the Sun Na maternidade do hospital de Dublin, a senhora Purefoy está em trabalho de parto. Bloom a visita. Stephen, Lenenhan, Lynch e Mulligan festejam ruidosamente. Discutem a técnica da medicina em relação ao parto malsucedido e à prevenção da gravidez. Bloom pensa no filho morto. Stephen discorre sobre
literatura. Cai um temporal, que Bloom explica cientificamente. A enfermeira pede-lhes silêncio duas vezes. O menino nasce. O grupo vai embora. Stephen e Lynch vão para a zona de prostituição. Outro episódio complexo: aos nove meses de gravidez correspondem várias vozes, estilos de literatura inglesa, linguagem simbólica, disparates, gíria e discurso religioso. A linguagem vai do primitivo à modernidade. De acordo com a visão corpórea do romance, Joyce põe na linguagem a mediação da realidade física. A técnica, como ele informou, é o “desenvolvimento embriônico”; os símbolos são a fecundação e a partogênese; a arte a medicina. 15 Circe Meia-noite, bordel de Bella Cohen. Stephen e Lynch entram, bêbados. Bloom chega. Alucina, acossado pelas visões de Gerty, Molly, do pai e da mãe. Preso por desordem, é submetido a um julgamento, durante o qual o chamam por vários nomes. Uma prostituta lhe diz que Stephen está na sala de música. Bloom transforma-se no avô de Stephen; Stephen transforma-se num cardeal ao discutir teologia. A dona do bordel, Cohen, troca de sexo com Bloom e o submete a castigos. O espectro da mãe de Stephen aparece, ele destrói um candelabro e, com Bloom, é expulso do bordel. Na rua, soldados rasos espancam Stephen por ter ofendido o rei e o largam inconsciente na calçada. A polícia chega. Bloom resolve a situação. O filho Rudy aparece em visões. Um episódio em que a objetividade e a subjetividade se interpõem, a alucinação substitui o realismo. Joyce chama a zona de prostituição de “cidade da noite”, uma metáfora do inconsciente, lugar propício para fantasias, pesadelos e realizações de desejos. Densamente metafórico, na diluição de fronteiras concretiza-se o encontro mais profundo de Bloom e Dedalus. A arte é a magia; os símbolos são zoologia, personificação. 16 Eumaeus Bloom leva Stephen para o abrigo de motoristas de praça, não longe da cidade da noite. Stephen encontra um amigo desempregado e recomenda procurar emprego na escola de Deasy, de onde resolveu se demitir. No abrigo, bebem café e conversam com um marinheiro, W. B. Murphy. Bloom sonha em viajar. Bloom fala do encontro com o Cidadão, mas Stephen não lhe presta atenção. Mostra a fotografia de Molly. Os dois saem do abrigo. A narração é convencional, mas com vários estilos. Novas personagens parecem ser simuladas, como se ocultassem a identidade. O mesmo aplica-se a Stephen e Bloom. Vaguidão e incoerência permeiam o episódio. A arte é a navegação; o símbolo são marinheiros; a narrativa é senil. 17 Ithaca Bloom leva Stephen para casa, o mesmo número 7 da rua Eccles. Como Stephen, está sem a chave da porta da frente (perdeu-a), pula a grade para entrar pela porta dos fundos, não querendo acordar Molly. Prepara um chocolate e os dois rememoram tempos passados. Arte, no caso de Stephen; ciência, no caso de Bloom. Bloom convida-o a morar com ele e Molly. Stephen entoa uma cantiga sobre uma menina judia. Bloom convida Stephen para passar a noite. Stephen recusa. Vão para o jardim e urinam, enquanto no céu passa uma estrela cadente. Stephen vai embora. Bloom volta a entrar. Guarda a carta que escreveu
para Martha Cardiff numa gaveta, depara-se com coisas que lhe trazem lembranças. Repassa o dia que findou. Vai para o quarto. Sente na cama a presença de Boylan. Deita-se com a cabeça voltada para os pés de Molly, posição fetal, e dorme. Próximo do fim, o romance parece carecer de armação. É um episódio com a técnica do catecismo (impessoal), em forma de perguntas e respostas. As respostas muito precisas e científicas (por exemplo, a reflexão sobre o complexo sistema que leva a água à torneira da cozinha de Bloom). O “fim” é o encontro de Bloom e Stephen como pai e filho espirituais (Joyce usa as composições “Stoom e Blephen”), mas também a separação um do outro, ao menos neste dia. E é um distanciamento também de Homero. O símbolo são cometas. 18 Penelope Na cama, Molly reflete sobre o marido, o encontro com Boylan, o passado, as esperanças. Suspeita que Bloom tenha uma amante, pensa nos próprios amantes idos. Aspira um grande futuro. Pensa em Gibraltar, na filha. É interrompida duas vezes, uma por um apito de trem, outra pelo início da menstruação. Pensa no médico, Stephen, no filho morto e em Bloom. O relógio toca. Lembra-se de quando fez sexo com Bloom pela primeira vez. Este longo e último episodio, sem pontuação gráfica, é um monólogo interior fragmentado, com frase ligadas ininterruptamente por associações. Há o infinito, a intemporalidade, a ausência de identificação. Segundo o próprio Joyce as oito frases de Molly começam e terminam com “sim” porque são a afirmação do “eterno feminino”: “Mulher, sou a carne que sempre afirma”. Ligações a esta post: Acesse a primeira parte do Dossiê James Joyce, aqui. A segunda parte, aqui. E a terceira parte, aqui. * O texto na íntegra é da Revista Entrelivros, ano I, n. 2, p. 40-44. letrasinversoreverso.blogspot.com · July 16, 2008 This article was downloaded by calibre from /read/670638458
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Dossiê James Joyce: peças para um retrato do artista (I) letrasinversoreverso.blogspot.com · July 8, 2008
Quando a obra clássica de Joyce chega ao Brasil é por volta de 1966, por iniciativa de Enio Silveira. Trata-se da edição traduzida pelo filólogo, escritor e acadêmico Antonio Houaiss. Em 2005, chega a tradução feita por Bernardina Pinheiro, uma iniciativa sua, que se dedicou a essa tarefa ao longo de mais de sete anos, tudo para atingir um objetivo que ao seu modo de ver não se via na edição do Houaiss: recuperar o tom da linguagem coloquial do romance, uma de suas principais características. A tradutora concordava que a versão de Houaiss era bastante rebuscada. Bem, se este objetivo foi ou não logrado, isso é outra história porque a verdade é que Ulysses, tal como um Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa,apresenta dificuldades até para os leitores na sua língua original. James Joyce nasceu em 1882, numa Irlanda que se debatia com as consqüências de uma longa história de domínio inglês, fortalecido a partir do século XVI. Além do camalhaço de divisões políticas outras se marcavam presentes por essa época, as divisões religiosas entre católicos e protestantes. Era o primeiro filho de John Joyce Stanislaus, numa família constituída de seis filhos e quatro filhas. Casa-se em 1880 com Mary Jane. Herdou alguns imóveis, os quais foram sendo vendidos pouco a pouco, perdendo a vida confortável; basta que comecemos por Joyce numa residência de classe média no subúrbio de Dublin para depois encontrá-lo, mais adiante, fixado num bairro pobre no nordeste da cidade para entender do que estamos falando. O escritor iniciou seus estudos numa escola de padres jesuítas ainda com seis anos; estudos estes que viriam a ser interrompidos mais tarde por falta de dinheiro, levando-o a peregrinar por outras instituições de ensino também religiosas, mas gratuitas. Ainda adolescente se mostrava nas suas decisões radicais, com suas críticas ao catolicismo e às instituições políticas e sociais; posição que se fortalece quando entra para a Universidade de Dublin. É dessa época que apresenta sua sagacidade em torno da língua e da literatura. Aos vinte anos, Joyce já possuía sólida formação intelectual e foi por essa época que começou a publicar
seus primeiros textos. Cite-se a leitura de seu ensaio sobre o escritor norueguês Henrik Ibsen, seu dramaturgo preferido, quando da reunião da Sociedade Literária e Histórica da Universidade de Dublin, realizada em 1900. É desse ano também sua análise da peça Quando nós mortais despertamos, também do dramaturgo norueguês. Na mesma linha, volta-se Joyce para o teatro irlandês e, no ano seguinte, apresenta sua crítica ao Irish Literary Theatre, fundado e dirigido pelo poeta e dramaturgo William Butler Yeats. Esse ensaio foi recusado pelo periódico da universidade, o que faz o escritor imprimi-lo e distribui-lo de seu próprio punho. No ensaio, Joyce criticava o que estava, na sua concepção, por trás da grandeza de Yeats, a grandeza política nacionalista e o folclore didático. Em 1902, já formado em línguas modernas, muda-se para Paris a fim de estudar Medicina; fluente em irlandês, latim, francês, italiano e alemão, o interesse pela área médica soa meio dissonante no território biográfico desse autor. Com a doença da mãe, Joyce volta imediatamente para Dublin, em 1903. No mesmo ano ficava viúvo de Mary Jane. Permanece, então em Dublin e aí dá os primeiros passos para a composição de sua obra. Ligações a esta post: Leia todo o dossiê aqui. * Anotações tomadas a partir do texto da Revista Entrelivros, ano I, n. 2. letrasinversoreverso.blogspot.com · July 8, 2008 This article was downloaded by calibre from /read/670638556
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Dossiê James Joyce: peças para um retrato do artista (II) letrasinversoreverso.blogspot.com · July 10, 2008 Viúvo a quase um ano, Joyce, por puro acaso, conheceu uma moça de vinte anos, filha de um pedreiro beberrão separado da mulher, que se mudara para Dublin. Nora Barnacle estava longe de Joyce em termos de formação, abandonara os estudos ainda aos treze anos. Ainda assim, nasce entre os dois um relacionamento que duraria para todo o resto da vida. Três meses depois de se conhecerem, ambos decidiram sair da Irlanda, fixaram-se em Pola (Croácia hoje) e depois em Trieste (Itália hoje), cidades estas que faziam parte da Áustria-Hungria.
James Joyce e Nora Barnacle. Instalados em Trieste, Joyce passa a trabalhar numa escola como professor de inglês. Já por aí, Nora engravidara. Perdida, por está num país em que não tinha noção nenhuma do idioma e ainda com o hábito de beberrão de Joyce, Nora teve de se resignar. Estado que alivia quando da chegada de George Joyce, em 1905, que apesar das alegrias, trouxe mais complicações financeiras. Na esperança de arranjar alguma estabilidade, o casal inicia a uma verdadeira peregrinação pelo continente europeu e a primeira parada foi em Roma, em 1906, onde Joyce trabalhou num banco por nove meses. No ano seguinte voltaria a Trieste. Por essa mesma época, Nora engravidara de novo. Nasce Lucia Joyce.
Nora e os dois filhos. Dobram-se as necessidades e Joyce passa a lecionar para um número maior de alunos, ao mesmo tempo em que procura brechas de tempo para escrever; em 1907 publica o livro de poemas Música de câmara e, só depois, conclui a reunião de contos sobre a qual nos referimos na parte 1 deste dossiê: Dublinenses. Em seguida começou a escrever Stephen Hero, transformado mais tarde em Um Retrato... Em 1913, Joyce recebe uma carta inesperada. Esta carta seria a que lhe abriria muitas portas para um homem que pretendia viver da literatura. Era a carta do poeta estadunidense Ezra Pound que estava em Londres e pedia a Joyce autorização para publicar um poema de Música de Câmara numa antologia de poetas imagistas. Nessa época Pound era líder de um grupo de poetas que professava um poesia de imagens cristalinas com base numa linguagem cotidiana. Joyce, parecia já buscar, ainda que vagamente, algo semelhante, autorizou.
Da esquerda para a direita: James Joyce, Ezra Pound, Ford Maddox Ford e John Quinn. Foto: Pound's Paris studio, 1924 Dessa autorização nascia o incentivo e a proteção de Pound que era bastante influente, obtendo, inclusive, em 1914, do governo britânico um subsídio anual para Joyce, que mais tarde chegou a admitir que o poeta o tirara da sarjeta. Assim Joyce conseguiu concluir Um Retrato... e Pound o publica sob forma de folhetim no periódico londrino The Egoist entre 1914 e 1915. É esta a obra de importância para literatura joyciana, não apenas por ser o primeiro romance do escritor, mas porque antecipa uma gama de elementos que comporiam mais tarde a obra-prima Ulysses. Um retrato do artista quando jovem relata a evolução da vida do artista Stephen Dedalus, da infância aos anos de estudos e formação universitária até a partida inevitável da Irlanda. Uma história aparentemente banal se não se espelhasse na vida do próprio escritor. Em cinco capítulos, equilibra uma narrativa convencional naturalista com episódios sem seqüências reunidos de maneira clara permitindo ao leitor o "acesso" ao imaginário de Stephen, resultando numa revelação do processo mental pelo qual o personagem aspira se desvencilhar das restrições impostas pela família católica e pelo movimento político nacionalista. São estes temas - o da religião e da política - que Joyce usa para tingir sua escrita, usando de todas as suas experiências pessoais para demolir, ao menos no interior de Stephen, as instituições. Ressaltem-se os personagens, o bondoso padre Conmee e o sadista padre Dolan, como uma crítica bem ponderada ao jesuitismo. Acompanhando a libertação do artista, Joyce cuida de construir sua própria estética. Na conclusão sobre as três principais formas literárias - a lírica, a dramática e a épica -, Stephen afirma que todas elas se inter-relacionam e no fim o artista, "como o Deus da criação, permanece dentro, atrás, além ou acima de
sua obra, invisível, refinado, fora da existência, indiferente, aparando as unhas". Ou como Stephen diz, "bem-vinda, ó vida!", antes de partir para Paris a fim de "moldar a forja de minha alma a incriada consciência de minha raça". Ligações a esta post: Para acessar a primeira parte do Dossiê James Joyce, clique aqui. letrasinversoreverso.blogspot.com · July 10, 2008 This article was downloaded by calibre from /read/670638605
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Dossiê James Joyce: peças para um retrato do artista (III) letrasinversoreverso.blogspot.com · July 14, 2008
Enquanto prosseguia a seriação do livro Um retrato... o escritor começa a escrever o romance Ulysses. Por esta época, 1914, foram muitos os reveses - basta lembrar que então eclodia a Primeira Guerra Mundial. E é por causa da guerra que Joyce sai de Trieste (apesar de pretender continuar por lá) e vai para Zurique - Suíça -, onde fica até 1919. Depois de quatro rejeições pelas editoras do seu livro Um retrato... Joyce o tem publicado pela conhecida editora Harriet Shaw Weaver, a mesma responsável pelo The Egoist. Com o fim da guerra, em outubro de 1919, Joyce volta para Trieste, agora território italiano em sua boa parte. Mas, ao encontrar a cidade como um caos, o escritor volta novamente para Paris, onde residiria por longos vinte anos. Adquirindo uma certa estabilidade, Ulysses nasce nesse momento, em 1921, depois de trabalhar nele desde seus vinte oito anos de idade, quando ainda escrevia o conjunto de contos de Dublinenses. Originalmente teria o romance 22 capítulos, mas ao longo de seus sete anos de criação passou o texto por muitas transformações. Também foi publicado sob forma de fascículos (catorze ao todo), também a pedido do amigo Ezra Pound. Essa publicação data de 1918 e 1919, pela The little review (revista da terra natal do poeta) e pela The egoist (revista inglesa); nesta última em apenas algumas partes. O romance, ao final, em quase nada mais corresponde a estes originais, visto que aparece mais expandido, com segmentos em sua estrutura totalmente modificados e detalhes estilísticos eliminados e/ou acrescentados.
James Joyce e Sylvia Beach, sua editora, na Livraria Shakespeare and Company, 1922. O romance segue a trilha do personagem Stephen Dedalus de Um retrato do artista quando jovem. Agora a personagem está de volta a Dublin, vindo de Paris, remoendo a culpa por se negar a rezar pela alma da mãe agonizante. A personagem, no entanto, encontra-se num segundo plano porque quem marca o trajeto da narrativa em primeiro plano é o Leopold Bloom. E será por através de Bloom que Dublin se nos apresenta. O romance joyciano em questão adquire uma sólida estrutura homérica, a começar pelo título que reitera o herói grego da Odisseia. O que marcará esse romance, no entanto, não será grandes feitos de grandes personagens, mas o cotidiano mais simples e a odisseia do novo herói é ensaiada no constante monólogo interior. "O fato de Stephen entregar a chave da torre Martello a Buck Mulling tem um paralelo no fato de Leopold Bloom estar sem a chave da porta de número 7 da rua Eccles. Bloom consegue entrar e voltar para o lar, em que Molly o espera. Stephen, depois de recusar o convite para ficar, não tem um lugar aonde ir. O encontro entre o pai e o filho espirituais se deu, a separação é física. Mas não há 'resolução'. Carecemos da síntese, que pode, talvez, ser encontrada no monólogo afirmativo de Molly Bloom. Joyce parece nos dizer 'bem-vinda ó vida!', saudando a literatura em evolução, inextricavelmente na realidade mutável. Stephen e Bloom urinam, passa uma estrela cadente. Ulisses é também um cíclico tecer e destecer." (José Antônio Arantes In Revista Entrelivros, n 2, p. 37) Acerca dessa cena dos dois a urinar, muitas outras cenas como as que Joyce fala abertamente do defecar e masturbar do Bloom, é algo que choca aos leitores desavisados da época; é realista demais a ponto de se classificar como ofensivo. Tanto que em 1920, o correio estadunidense confisca quatro edições da publicação, sendo o episódio Nausícaa motivo de processo contra a publicação pela Sociedade de Combate ao Vício de Nova York. Na Inglaterra, a obra só seria aceita para publicação em 1936, graças à
ação de intelectuais e escritores influentes como o poeta T. S, Eliot junto ao Ministério do Interior britânico.
James Joyce e Clovis Monnier, pai de Adrienne Monnier, quem o traduziu para o francês. Em 1923, com o destino de Ulysses ainda resumido a uma incógnita, Joyce inicia um novo romance, Finnegans Wake, sendo este concluído apenas em 1939. Desde quando publicado este foi classificado como um romance dos mais ilegíveis da literatura universal. "Mais radical do que Ulysses, irredutível a um mero resumo, pode ser visto com uma versão do romance anterior, um sonho de uma noite apresentado por uma linguagem apropriadamente onírica, distorcida em limites até então inéditos." (idem) O texto se apresenta novamente intercalado por um linguagem enciclopédica e retrata uma família irlandesa. Por aqui dá-se início a último período da vida do escritor, este um dos mais infelizes para a família. Joyce começou a ficar cego por causa da catarata, doença que levaria o escritor a submeter-se nove cirurgias. Além disso, a filha Lucia apresentava os primeiros sinais de demência. Preocupados com a família Joyce e Nora voltam a Londres, em 1931, a fim de se casarem e resolver as questões legais em relação a herança dos filhos. É em dezembro desse ano que o pai morre. Meses depois, eclode a Segunda Guerra Mundial. Em 10 de janeiro de 1940, Joyce é submetido a uma cirurgia para tratar-se de uma úlcera. Três dias depois vem a óbito antes de completar os 59 anos. O último livro chega a ser publicado em 1939, mas o próprio amigo Pound o renega. Começa, então desprezo a obra do escritor.
Ligações a esta post: Acesse a primeira parte do Dossiê James Joyce, aqui. E a segunda parte, aqui. Ou leia todo o dossiê aqui. * As informações, bem como as notas ou citações desse texto são todas de Jose Antônio Arantes coletadas na Revista Entrelivros, n. 2, p. 28-39. As partes I e II deste Dossiê também. José Antonio Arantes é tradutor. Entre os livros que traduziu estão Histórias e poemas para crianças extremamente inteligentes de Harold Bloom; Giacomo Joyce de James Joyce entre outros. letrasinversoreverso.blogspot.com · July 14, 2008 This article was downloaded by calibre from /read/670638696
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Dossiê James Joyce: "Ulisses", histórias de uma história letrasinversoreverso.blogspot.com · July 23, 2008
O que geralmente se apresenta como a primeira edição do Ulisses. A história da publicação de Ulisses é em si mesma uma aventura fascinante. Depois de demorar sete anos para escrevê-lo, Joyce enfrentou complicação no processo que vai da edição à distribuição. Em parte, houve as circunstâncias que lhe escaparam do controle, mas em parte ele se entregou à compulsão de reescrever até o último instante antes da impressão; não resistiu ao convite da limpeza tipográfica das provas, que revelava o romance com um distanciamento que o manuscrito não proporcionava. A caligrafia de Joyce nem sempre era clara, a linguagem literária sem dúvida era incompreensível para os tipógrafos, e no vaivém o resultado foi uma edição com erros tipográficos. Os erros permaneceram nas edições subseqüentes. Só foram corrigidas na quarta edição da editora Odyssey Press, em 1932, com a ajuda de Stuart Gilbert, estudioso, tradutor e amigo de Joyce. Esta edição foi tida por muito tempo como a melhor. Em 1977, porém, o neto e herdeiro de Joyce, Stephen Joyce, decidiu corrigir erros que julgava ainda existirem, inclusive erros textuais, e publicar o romance exatamente como Joyce o concebeu. Para essa tarefa (que qualquer um concluiria ser impossível), convidou o acadêmico alemão chamado Hans Walter Gabler. Stephen Joyce teve a sensatez de formar um conselho de especialistas para acompanhar o trabalho, entre eles o mais importante biógrafo de Joyce, o acadêmico norte-americano Richard Ellmann. O conselho se mostrou duvidoso quanto à escolha de Gabler. Primeiro porque, sendo alemão, não conhecia o inglês a fundo (e Joyce era, claro, mais do que proficiente no idioma). Segundo, porque o método que ele adotara parecia inadequado. Mas Gabler continuou a restaurar o romance. Entre 1981 e 1983, serviu-se da mais avançada tecnologia da informática, criou um gigantesco banco de dados e se
debruçou no cotejo de manuscritos, textos datilografados, provas tipográficas e várias edições do romance. Ao fim e ao cabo do dispendioso trabalho, Gabler apresentou cerca de cinco mil alterações ao texto que o próprio Joyce se empenhara para corrigir e não vira publicado. Boa parte das correções se refere a pontuação, mas implica também na substituição de palavras e mudança de nomes de pessoas reais. Os membros do conselho se negaram a endossar o resultado do trabalho que também foi criticado por outros acadêmicos. Stephen Joyce, porém, dessa vez não se mostrou sensato. Transformou o projeto em livro, lançado em 1986 com divulgação internacional estrondosa. As relações foram de forte resistência. Em 1988, o especialista norte-americano John Kidd publicou no New York Review of Books uma das críticas mais fundamentais, denunciando as incorreções de Gabler e defendendo as edições anteriores. Gabler ignorou todo mundo. Há quem afirme que essa história editorial tenha apenas uma justificativa plausível. O objetivo de Stephen Joyce era, na posição de herdeiro, manter os olhos nos lucros gerados pelo que se passou a se chamar de indústria de Joyce. O estudioso inglês Bruce Arnold demonstrou no início da década de 90 (inclusive com um documentário chamado The scandal of Ulysses) que Stephen Joyce consentiu em publicar a edição “correta” de Gabler, ainda que “incorreta” academicamente, com o objetivo de estender os direitos autorais sobre o romance. Estes expirariam (como expiraram) a partir de janeiro de 1992, com o que a obra cairia em domínio público. Em termos legais, só uma edição radicalmente “diferente” das anteriores justificaria a renovação dos direitos. Pode-se ver a mão de Gabler, e de Stephen Joyce, em outras edições das obras-primas de Joyce. Mas hoje o leitor tem, ao menos a opção de encontrar no mercado as edições que o próprio Joyce viu publicadas. Ligações a esta post: A vida e a obra de James Joyce; acesse a primeira parte do dossiê sobre o escritor aqui. A segunda parte, aqui. E a terceira parte, aqui. Um guia para entender Ulysses, aqui. * O texto é da Revista Entrelivros, ano 1, n. 2, p. 38 letrasinversoreverso.blogspot.com · July 23, 2008 This article was downloaded by calibre from /read/670639474
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