Eterno B-BOY: Os velhos e novos desafios do pai do HIP HOP brasileiro
ÉNOIS: Cursos gratuitos de jornalismo
D.I.E.L: As revelações do mano da Banca
PERIFA
Edição nº1 - ano 1 - nº1 25 de novembro de 2016
O QUE É SER JOVEM NA PERIFERIA? Como os manos e minas enxergam a periferia e as expectativas deles sobre as quebradas de São Paulo 1
TROCANDO IDEIA
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ÍNDICE
Editorial
TROCANDO IDEIA
pg. 4
NA QUEBRADA
pg. 8
CULTURA
pg. 12
CAPA
pg. 14
PERFIL
pg. 20
RETRATOS
pg. 26
NO TROMBONE
pg. 29
PARTIU ROLÊ
pg. 30
PERIFA Editor: Joaquim Silva Filho Redatores: Joaquim Silva Filho, Luiz Correia, Tatiane Mello e Vinicius de Souza Fotografia: Luiz Correia, Tatiane Mello e Vinicius de Souza Diagramação: Luiz Correia Supervisão e Orientação: Professor Mestre Flávio Mesquita Agnelli e Professor Mestre Filipe Perez Colaboradores: Leci Brandão Endereço: Av. Dr. Adolpho Pinto, 109 Barra Funda, São Paulo - SP Telefone: 2633-9000
Salve! Chegamos ao primeiro número da Perifa, revista que nasceu, cresceu e se concretizou a partir do sonho de um grupo de estudantes de jornalismo em fazer uma publicação que tivesse a cara da Periferia e que fosse a expressão do jeito, do modo de viver de seus moradores. Finalmente estamos aqui, mas não sozinhos. Muito pelo contrário: chegamos muito bem acompanhados. Juntos conosco chegam também Nelson Triunfo, o Nelsão, nosso eterno b-boy, o mano Diel falando da alegria e do desafio de trabalhar com a rapaziada da perifa, a galera do Énois e seu trabalho inovador e inclusivo, Leci Brandão, nossa querida combatente, exemplo da insistência vencedora, sempre a postos e aguerrida. Todos eles, símbolos da luta e da resistência vitoriosa do povo das quebradas. Gerações de ontem e de hoje que se unem em busca de uma Periferia melhor e possível. Povo que também se faz bem representado na pessoa das Mulheres-mães-guerreiras em uma fotorreportagem feita especialmente pensando nelas, e na matéria de capa que fala sobre quem é e o que pensa a galera jovem das muitas Periferias das várias São Paulo. Integrantes de uma Família que prova, através da luta dos movimentos populares organizados, dos artistas e da ação dos coletivos espalhados em vários bairros e zonas de nossa cidade, que a união ainda faz a força e pode alcançar vitórias valorosas como a Lei de Fomento à Cultura da Periferia. Tudo isso nessa primeira edição grátis e à sua inteira disposição. Feito com carinho, gratidão e pensando em você, porque Você é a razão da gente existir. Tamos juntos e vamos seguir misturados por muitas outras edições. Vida longa pra nóis, afinal de contas Nóis é Nóis. Seja bem-vindo e fique à vontade! Joaquim Silva Filho Editor 3
TROCANDO IDEIA
Diel e o seu trampo com a galera Daniel Bruno, 23 anos, mais conhecido como Diel, com o seu conhecimento da cultura musical, ensina aos jovens da periferia que é possível sonhar Tatiane Mello
POR CAUSA DO HIP HOP, DANIEL, GANHOU O APELIDO DE DIEL NAS QUEBRADAS, E AGORA O UTILIZA COMO NOME ARTÍSTICO
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Quando a Banca surgiu, tinha um espírito de Coletivo Juvenil de rua que queria fazer movimento de Hip Hop. Depois de passar por uma série de processos de mudanças, eles entenderam que não eram ONG e nem empresa. A banca se posiciona como Negócio Social, onde podem acessar editais e podem prestar algum tipo de serviço, como palestras em empresas e escolas particulares.
le é educador na Instituição Social A Banca, no Jardim Ângela, é músico e faz graduação em História. A Instituição é sediada no Distrito do Jardim Ângela e foi formada oficialmente em 2000 com o objetivo de realizar eventos e desenvolver a música e a cultura HIP HOP como ferramentas de inclusão cultural-social-econômica para jovens em situação de vulnerabilidade social. Na Banca, o educador cuida da parte de coordenação de projetos, planejamento de eventos e leciona as atividades dos jovens dentro das escolas da periferia. Em uma entrevista para a nossa revista, Diel conta sobre o seu trabalho e mostra que o aprendizado também está na música. Perifa – Hoje você é educador de jovens de que faixa etária? Diel: Hoje, trabalho especificamente com jovens de Ensino Médio e Ensino Fundamental II, pois, como discutimos muito questões ligado ao empreendorismo, há uma informação do mercado de trabalho, e que rompe como o que é posto para a gente, que o trabalho CLT impõe, que você sempre tem que trabalhar servindo alguém que geralmente você nem conhece. E a gente vem para romper com isso, para mostrar que o sonho e o trabalho podem sim existir na mesma frase. Essa é a real! Então é basicamente isso que a gente conversa com os
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TROCANDO IDEIA jovens, como isso está ligado a uma questão de quem já tem um certo entendimento desse processo do que é o mercado de trabalho com o ensino fundamental II e ensino médio. Mas também venho buscando outras ferramentas para tentar atingir cada vez mais o público mais novo. Esse é um desafio que no decorrer dos anos queremos sanar a demanda. P – Você trabalha apenas na sua periferia, no Jardim Ângela? Diel: Trabalho São Paulo inteiro. Posso Diel em entrevista na banca - Foto: Tatiane Mello até expandir um pouco para fora. Já fiz alguns trabalhos assim, pontuais, em outros estados, E uma das alternativas que tinham eram das mas hoje a gente trabalha mais dentro da ci- pessoas que produziam cultura, os espaços dade de São Paulo, em escolas públicas e par- de militância e a cultura hip hop que estava ticulares. Nas públicas, trabalhamos dentro dos muito forte em São Paulo. Então, a Banca nasextremos mesmo das periferias, então a gente ce daí. O Bola, o DJ Bola, foi o fundador. Na já fez basicamente aqui no Jardim Ângela, ten- década de 90, ele se inspirou nas equipes de tamos trazer os editais para a nossa quebrada sons. Tinha essas equipes de sons que faziam por ter um entendimento que temos que gira o vários eventos, mas nunca se tinha um de hip capital, o capital cultural, hop. Tinha, sei lá, o capital financeiro, mode forró, samba, netário dentro da nossa de várias coisas quebrada. Isso é parte do na região. E aí ele que a gente acredita desfalou: “Não, a gensa geração ainda local. te quer fazer um Quando a gente leva alevento de hip hop! gum projeto para dentro ”- Trazer essa culde uma periferia, a gente tura para cá, que se preocupa em acessar seria um DJ, um a escola dessa quebragrafite, o break e da, pagar os profissioo MC’S, pois tinha nais que estão em volta, uma galera escrecomo por exemplo: um vendo, ele quis grafiteiro que mora perto dar essa oportuniFoto: Luiz Correia da escola. dade, e foi um a coisa bem formal mesmo, era os caras trocando P – E o projeto A Banca existe há quanto as ideias! tempo? O termo A Banca nasceu daí. A banca significa ‘grupo de pessoas’, que hoje normalmente Diel: A Banca existe desde a década de a molecada, assim, mas essa galera do funk, 90. Nessa época, o Jardim Ângela foi consider- fala Bonde, né? Ah, ‘nois’ é do ‘bonde’ e tal! Na ado o bairro mais violento do mundo, conforme época, tinha várias bancas: banca do Nakamua ONU. Geralmente, o que gerava a estatística ra, banca do bairro tal. Sempre tinha A Bando crime em nossa região era o genocídio. Das ca e o nome de algum bairro. Aí, o Bola teve mortes, eram jovens de 15 a 29 anos, sempre a sacada de colocar só A Banca, porque se a do sexo masculino e na sua maioria negros. gente coloca o nome da quebrada, só quem é 5
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Diel no estúdio da Banca - Foto: Luiz Correia
da quebrada vai poder ser da banca. E sendo só A Banca, qualquer um pode colar, e já era! P – Você disse que trabalha com jovens que já entendem um pouco sobre o mercado de trabalho. E como é a sua forma de educar? Diel: Primeiro eu aprendi que temos que vi- ver com a diversidade, e passo isso para eles. Eu sou do hip hop, mas quando entro na escola para fazer o meu trabalho com os jovens, eu não obrigo ninguém a gostar do hip hop. Lá dentro, eu pego um aluno e pergunto: “O que você gosta? ”. Aí ele responde: “Ah de funk. ” Beleza! E é sobre aquilo que vamos falar. Hoje o hip hop é apenas a metodologia de trabalho. Eu não vou chegar na escola falando que vou formar uns MC’S bons, uns DJ’S que vão ‘arregaçar’ no mundo. Tá ligado? Não é essa a ideia. A minha metodologia de ensino é que eu forme um cidadão consciente, crítico, 6
que conheça os seus direitos, conheça os seus deveres e que tenha respeito a diversidade: respeito ao negro, roqueiro, pagodeiro, aos mais velhos, tá ligado? Essa é a ideia!
“O Hip Hop, é uma cultura de base que forma pessoas, que transformam a educação.” – Diel P - Hoje, como a banca se mantém? Diel: Basicamente vivemos através de editais abertos por alguma secretaria, ministério, governamental ou financiamento privado. Já tivemos parceiros que financiaram projetos. Fora os editais, nós temos os serviços que prestamos nas escolas. Então esse foi um outro salto que a gente deu.
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NA QUEBRADA
Énois na Fita Escola de jornalismo contribui com a formação de jovens que moram nas periferias de São Paulo Luiz Correia
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ocê caí da cama cedo e liga logo o 3g pra saber se o mundo acordou bolado. Rola pelo feed do face e vê estampado que quatro manos da quebrada vizinha morreram. Pesquisas sobre o ensino de má qualidade das escolas, tiroteio no morro, o bandido é o da perifa e o bacana que assalta ou trafica é um jovem de classe média, diz os jornais. Embaçado, parça. Diariamente a mídia nos sobrecarrega de notícias, tanto positivas quanto negativas, e infelizmente a segunda ganha uma repercussão maior. E o jovem em amadurecimento e formação? Como ele enxerga esse mundão a fora? Será que ele tem espaço pra se expressar como a mídia? Um passarinho me contou que sim. ”A gente tem feito muita coisa pra imprensa tradicional trazendo esse olhar jovem e periférico pra pautas que ela não consegue cumprir. Temos essa missão de democratizar e diversificar o olhar da imprensa a partir do trabalho que desenvolvemos com esses jovens”, afirma Nina Weingrill, jornalista e uma das fundadoras da Escola de Jornalismo da Énois. Localizada na perifa da Armênia, a Escola de Jornalis8
Redação da Énois - Foto: Tatiane Mello
mo é uma iniciativa da Énois /Inteligência Jovem, agência escola que cuida da formação de jovens da periferia entre 14 e 21 anos e com auxílio deles desenvolvem produtos de comunicação, como sites e revistas para os jovens periféricos. Além disso, produzem pesquisas e ações de engajamento voltadas a esse público. Tudo isso começou graças a uma oficina de jornalismo e comunicação pra jovens realizada na ONG Casa do Zezinho no Capão Redondo, ZS de Sampa. Depois disso, as minas Nina Weingrill e Amanda Rahra foram capacitando mais e mais a molecada. Em 2012 se fixaram na Armênia
para continuar esse trabalho. Escalação do time Todo comecinho de ano a Énois faz um processo seletivo com 10 vagas para o curso, que é gratuito. Nesse ano, uma galera de 160 pessoas participou da seleção. O curso tem duração de 10 meses, divididos em três módulos que duram três meses cada. O último mês é dedicado ao TCC dos alunos. O pessoal também conta com uma bolsa de 500 reais por mês para transporte e outros gastos. As aulas presenciais com profissionais do mercado, acontecem todas as
NA QUEBRADA terças e quintas, das 14h às 17h. Sem foras As aulas não são restritas ao modelo presencial. O pessoal que se cadastrar no site têm acesso a cursos e materiais de aprofundamento em diversos temas. Essa plataforma, criada em 2015 com apoio de financiamento coletivo do site Catarse, é a primeira brasileira que oferece o curso de jornalismo gratuitamente. O diferencial da graduação de 10 meses é que aqui o aluno tem mais liberdade pra acessar quando quiser as vídeos aulas. Ele é responsável pelo seu tempo de aprendizagem e se tiver dúvidas, pode entrar em contato com a equipe da escola. Cursos que compõem a plataforma: Como Se Tornar um Pesquisador, Como Hackear a Cidade e Como Fazer um Vídeodocumentário.
Alexandre Ribeiro, aluno da Énois - Foto:Tatiane Mello
Missão “Não tenho muita conexão com o jornalismo institucionalmente. As notícias que circulavam perto de mim eram coisas muito tristes. Só falava de gente que já morreu, de alguma criança que foi abandonada e coisas do tipo”, conta Alexandre Ribeiro, 18 anos, e estudante da Énois que trabalha como produtor de rap na Inquérito. “Eu sou um moleque que mora na periferia da zona sul, Diadema, que é bem violenta. Já foi uma das cidades mais perigosas do estado de São Paulo nos anos 90. A violência sempre teve em volta de mim e achava isso normal. Quando vim pra cá entendi que podemos ter uma voz diferente dessa violência. É muito importante a gente ter nossa voz em vários espaços e que no jornalismo infelizmente é o que mais falta”, ressalta. Ele que também estuda Políticas Públicas na federal do ABC, explica a relevância das práticas do seu trampo para a sua quebrada. “É contra isso que resistimos lá e aos poucos colocarmos nossas vozes em evidência, pois o que está evidente pra gente são os crimes e líderes que a gente não quer ser. Só temos referência do que não queremos. ” ”O legal de você trazer pra sua comunidade referências de que os manos e manas podem seguir o caminho deles, serem eles mesmos, serem reconhecidos pelos seus potenciais que trabalham na sua vida. Acho que o maior papel
A fundadora Nina Weingrill Foto: Tatiane Mello
que a gente tem é de voltar pra quebrada com a cabeça erguida e falar: tenho orgulho de ser eu, sabe. De poder fazer as coisas que eu falo”, finaliza o mano Ribeiro. Parte punk da história Financiamento é a maior dificuldade da Énois. A escola que tem dois CNPJ, um de empresa e outro de ONG, enfrenta essa barra por possuir um site, uma escola de jornalismo online que já formou mais de 4.000 pessoas, tudo de forma gratuita. “A gente precisa que quem dá o recurso entenda como é o mecanismo desse percurso que fazemos aqui dentro, que tipo de engrenagem ele faz girar aqui. Basicamente, o principal desafio é fazer com que o mercado entenda o valor que a gente tá gerando quando formamos esse jovem de volta para ele”, conta Nina. Para virar assinante da Énois basta contribuir a partir de 10 reais no cartão de crédito mensalmente por meio da Unlock. Dessa forma, quem 9
NA QUEBRADA assina ajuda a financiar as bolsas de estudo e a estrutura da escola de jornalismo. Como prêmio, acaba tento acesso antecipado aos primeiros conteúdos produzidos. O amanhã As fundadoras criaram a Énois com intuito de que ela pudesse ser um veículo, ferramenta ou espaço dos jovens que estão nela e dos que ainda virão. Quando pergunto sobre o futuro, Nina diz com bom humor, que espera que os jovens tomem conta da agência escola, pois esse ambiente foi desenvolvido para eles. “Em cinco anos, eu quero que eles tomem isso aqui de assalto. Eu falei pra Amanda que eu tô cansada, que eu não sou mais jovem”, diz Nina. Nina também fala do espaço e relevância que a iniciativa ganhou para ser usada como meio da juventude se expressar e acredita que a Énois seja um passo para outras oportunidades. “Acredito que o fato de conseguirmos construir uma coisa que tá estruturada, tem fundamento e base, é exatamente pra que ela possa ser um trampolim a outras coisas. A ideia é que a Énois seja esse trampolim”, encerra a fundadora.
Nanobolsas Outra iniciativa lançada a pouco tempo e com o intuito de ampliar as reportagens sobre temas da atualidade, visões diferentes e inovadoras dos jovens é a Nanobolsa. Oferecidas aos jovens entre 15 e 21 anos, a bolsa de 500 reais financia as produção de uma reportagem independente dos garotos durante um mês, adquiridos por meio de financiamento coletivo. A escolha da pauta e do tema é feito pela escola. A partir daí o parça ou a galera têm um mês pra produzir todo o trampo, que pode ser feita em vídeo, texto, foto. Quem for selecionado é acompanhado pela escola e ao final do trampo, tem divulgado a sua produção pela Énois e parceiros nos seus canais de comunicação. “Dê primeira achei interessante, mas não cheguei a mandar. A segunda Nanobolsa divulgada em setembro, com tema de eleições, precisava falar sobre jovem e política. Me inscrevi e sugeri uma pauta de como os jovens estão ocupando a política institucional. Eu queria falar quem são os candidatos a ve-
Lucas Alves, bolsista da Énois Foto: Tatiane Mello
reador”, relata Lucas Alves, 21 anos, escolhido pela Nanobolsa. “Aí eu mandei, passei e fiquei super feliz porque era uma agência que eu queria trabalhar muito, até por essa admiração que eu tinha de ficar acompanhando ela pela internet”, ressalta Alves, que também estuda na Universidade Metodista em São Bernardo. “Teve uma ampla divulgação do trabalho que a gente faz aqui e depois disso eu acabei entrando. Eles me chamaram novamente pois gostaram do meu trabalho. Assim participei do projeto do “Jogo da Política”, voltado para a educação política dos jovens do último ano do ensino fundamental e de todo o ensino médio”, conclui. Financiamento coletivo faz parte dessa iniciativa. Por meio da plataforma Unlock, o usuário pode contribuir mensalmente com qualquer valor, que é debitado do seu cartão de crédito.
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CULTURA
Movimento Cultural das Periferias - Foto: Periferia em Movimento
DEMORÔ, AGORA É LEI! Artistas, agentes culturais e movimentos organizados conseguem vitória inédita e cultura da Periferia vai ser finalmente valorizada Joaquim Silva Filho
O
povo e os artistas da Periferia conquistaram uma vitória importante pela democratização do acesso à cultura na cidade de São Paulo. Foi aprovado e já está em andamento o projeto de Fomento à Cultura da Periferia. Fazia a mó cara que a galera também queria ter acesso a uma grana que financiasse projetos culturais que mostrassem a verdadeira cara da Perifa e que valorizassem os coletivos, os artistas locais e seus trabalhos em teatro, música, dança e poesia. Mas o dim dim não veio fácil. Foi preciso muita insistência e os movimentos populares foram essenciais na conquista desse direito, mesmo o projeto não tendo sido totalamente 12
aprovado do jeito que eles queriam. Os artistas e os agentes de cultura pediram R$ 20 milhões, mas só conseguiram conquistar R$ 9 milhões, grana que, segundo o mano Thiago Borges, do Periferia em Movimento, coletivo de comunicação que divulga os acontecimentos e fatos relacionados às Perifas de São Paulo, representa apenas 9% do orçamento destinado aos eventos do Teatro Municipal de São Paulo e que esse ano foi R$ 100 milhões. “Ainda existem muitas coisas a serem mellhoradas e os R$ 20 milhões eram muito pouco, considerando o que foi destinado ao Teatro Municipal. Quem é que o Teatro Municipal consegue inserir lá dentro, quem consegue acessar o que é apresentado lá?”, questiona o mano Thiago.
CULTURA De acordo com Thiagão, agora com o novo prefeito a pressão para que a grana do programa seja aumentada deve continuar. Ele não acredita que o que foi conquistado corre o risco de ser cancelado porque é lei e, se o prefeito não cumprir, pode ser prejudicado. “O valor e o respeito que o prefeito eleito vai dar ao programa vão depender da pressão e do diálogo dos artistas, dos movimentos, dos agentes de cultura e dos coletivos. Os últimos quatro anos não foram fáceis, mesmo a gente tendo uma administração que teoricamente seria favorável à Periferia. A nova gestão é de um partido em que a relação sempre foi mais complicada, sempre foi de negação, mas acho que os agentes culturais estão bastante fortalecidos para seguir dialogando e cobrando”, afirma. Para o vereador Nabil Bonduki (PT), o projeto é uma maneira de direcionar para a periferia recursos para o desenvolvimento de projetos.
Isso porque a periferia tem sido excluída de editais de fomento às artes e porque as regiões mais centrais acabam reunindo grupos mais consolidados. Dessa maneira, sempre foi mais difícil um grupo da periferia receber algum recurso ou apoio. O Programa de Fomento à Cultura da Periferia vai atender as quebradas onde a renda por morador é de até meio salário mínimo e destinar entre R$ 100 e R$ 300 mil aos grupos que já estão organizados há mais tempo. Esses grupos terão até dois anos para utilizarem os recursos em projetos culturais e ações que beneficiem os povos das perifas. Apesar dessa grande vitória, a luta continua e as próximas conquistas que a galera pretende alcançar são melhorias em saúde, educação, acessibilidade, renda, emprego e o fim do genocídio da juventude e do povo negro das perifas.
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CAPA
OS Jovens da periferia de SAO PAULO QUEM SAO? COMO VIVEM? Vinicius de souza
S
Capão Redondo - Foto: Vinicius de Souza
ão Paulo, cidade com muitas culturas e única no Brasil. Centro cultural, gastronômico, esportivo e do mercado econômico do país. O que resta compreender dessa
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cidade, ou melhor, das pessoas que habitam essa cidade? Melhor ainda: o que resta compreender sobre o que os jovens dessa cidade pensam? A música Não é Sério, da banda Charlie Brown Jr diz que o jovem do Brasil não
CAPA é levado a sério. Será? Nossa equipe de reportagem pegou o metrô, trem e o “buso” para desbravar essa cidade, que segundo o IBGE possui aproximadamente 12 milhões de habitantes para saber quem é o jovem da periferia de hoje. O que eles pensam e querem para suas vidas.
ITAQUERA: O CORAÇÃO DA ZL Caminhando pelo terminal rodoviário de Itaquera, na ZL, avistamos uma menina jovem, morena, de óculos de grau digitando ao celular com uma mochila em cima da mesa. Ao nos aproximarmos, se assustou, e de maneira sutil, recolheu seus pertences. Essa reação é fruto dos três assaltos que a jovem Isabela Melo vivenciou ao longo de seus 14 anos de vida. Isa enxerga a periferia com muita sujeira, poluição e violência, que são os maiores problemas de Itaquera, bairro onde mora. Acredita que o governo poderia investir mais em atividades culturais. Até tem, mas falta muito mais. Afinal, foi a mina que disse, ok? Se pudesse, a jovem mudaria de bairro, mas para um bairro da ZL mesmo: Penha, local onde já morou e gostou. Isabela não apenas falou dos pontos negativos de morar num bairro populoso e periférico como Itaquera, falou também da Obra Social Dom Bosco, entidade que frequenta há três anos. Segundo o site da organização, a Instituição tem como objetivo Promover a formação integral da criança, do adolescente, do jovem, do adulto, do idoso e das famílias, buscando a educação à fé e à cidadania. Como adora esporte e música, lá ela faz ginástica rítmica e fanfarra. *O que é Fanfarra? Segundo o pai dos burros, - o dicionário digital aulete - é: banda de música formada especialmente por instrumentos de sopro, de metal e bateria. A pequena Isabela estuda de manhã e no período da tarde - até às 17h - segue para a ginástica. Seu maior sonho é estudar para ser aeromoça ou comissária de bordo como o povo chique fala, né parça? Isabela Melo - Foto: Vinicius de Souza
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CAPA NO PICO DO CAPÃO Agora é hora de ir para a ZS (zona sul) para conversar com outro jovem. Quem será que está à nossa espera? O destino é o CEU (Centro Educacional Unificado) Capão Redondo. Extremo sul dessa selva de pedra. Como se quiséssemos apenas tirar uma informação, nos aproximamos de três jovens que estavam brincando com bola, mas apenas João Marcos (17), estudante do nono ano que se interessou em nos ouvir. João, como prefere ser chamado, acredita que o governo tem obrigação e pode dar condições para que os jovens possam melhorar de vida, mas para isso os governantes precisam parar de roubar. Pelo o seu relato, a vida à beira do córrego – local onde parte dos moradores do Capão moram - não é vida para nenhum ser humano. Ninguém merece isso. A todo momento diz suas insatisfações e faz questão de dizer que já fez muita coisa errada na vida para ajudar sua mãe, que trabalha como cabelereira em casa, pois não pode trabalhar fora por um certo motivo: cuida do irmão de João, um filho com deficiência. Segundo João, se ela trabalhar fora, o irmão perde o benefício do governo. Acho muito injusto isso. Que diferença faz ela trabalhar fora, questiona ele. Um outro problema na vida desse jovem é a ausência do pai, que não conhece e conversou apenas uma vez por telefone. Foi em uma tentativa de reconciliação que João disse não querer vêlo nunca. Para João, se pudesse até mataria
Capão Redondo - Foto: Vinícuis de Souza
seu pai. Em grande parte de nossa entrevista, o jovem do Capão Redondo demonstrou semblante marcado pela tristeza e pela revolta das desigualdades sociais, mas quando perguntado sobre os esportes que ele gosta de praticar ou as músicas que gosta de ouvir, seu rosto muda de figura. A aparência de um menino cheio de amarguras da vida dá espaço para que João Marcos possa sorrir. Foram raros os momentos em que ele sorriu,
Capão Redondo - Foto: Vinícuis de Souza
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CAPA mas quando sorria era com muita intensidade. Ao final de nosso encontro João diz que se tivesse muito dinheiro, ajudaria os mendigos, mas não com dinheiro e sim ajudando no que eles precisam, pois com dinheiro eles podem fazer coisa errada. Sobre um sonho? Ter dinheiro para dar um salão de cabelereiro para sua mãe. A (IN) QUIETAÇÃO DO JAGUARÉ Estação Villa-Lobos/Jaguaré, Z.O. da cidade. A caminhada não parece ser longa até chegarmos à estação final. Ainda tem o busão que nos levará até o bairro do Jaguaré. Em menos de 20 minutos chegamos lá. Entramos na comunidade com certa timidez e cautela. Afinal, estamos entrando na casa de outras pessoas desconhecidas. Percorremos uma rua comprida até que encontramos duas pessoas sentadas na porta de uma mercearia. Nos apresentamos a Edilson Soares (35), auxiliar administrativo em um escritório de advocacia na Vila Olímpia. Morador do bairro desde que nasceu e logo de cara aponta o principal problema daquela região: moradia. Apesar de lá habitar pessoas com poder aquisitivo ou não, a questão da moradia deve ser revista, afirma. Edilson diz que o Jaguaré já foi violento. Atualmente o bairro não tem indícios de criminalidade. Afinal, seria muito difícil viver em um local inseguro com uma filha de sete anos. Talvez pelo seu orgulho ao bairro de nascença, Edilson diz que praticamente o bairro não tem problemas severos e que não há nada que possa ser melhorado... Já sofri preconceito por ser da periferia. Lembro que na minha primeira entrevista de emprego, quando me perguntaram de onde eu era e eu disse Jaguaré a pessoa torceu o nariz. As pessoas têm uma má recepção quando falo que sou do Jaguaré. Pensam que periferia é favela, drogas, violência, somente coisa ruim. Hoje a periferia está muito organizada. Isso é falta de informação, afirma. Edilson compara a periferia com a área nobre da cidade. Sempre há gente perigosa nos dois extremos, seja na cobertura milionária, seja na periferia. Sobre as futuras gerações do jaguaré: não
Jaguaré - Foto: Vinícuis de Souza
podemos falar por elas (crianças), mas apesar do Jaguaré ser bom, há lugar melhor. Queremos que elas levantem voo. Se periferia é ruim, imagina lá fora, alerta. 17
CAPA gamentos como “olha o bailarino”, bambi e outros apelidos ofensivos. Se recorda que isso acontecia com muita frequência na escola, Tarde nublada de um domingo quente. A principal ambiente de convívio com outras criequipe de reportagem tem como destino o imor- anças. As pessoas têm o direito de não gostar talizado bairro por Adoniran Barbosa, Jaçanã. de gays, mas desde que não ofenda. Deve ter O jovem do bairro a ser entrevistado é Jhona- respeito. Estuda à noite e trabalha durante o dia. Pretan Souza (16), que atualmente é estudante e trabalha como garçom. Jhonatan, apesar de tendo fazer faculdade de teatro e de robótica e ser muito jovem, tem postura que aparenta ser mecatrônica. Perguntado de como se vê daqui madura pela sua idade. Ele acredita que sim, o há dez anos, disse que se vê bem de vida e jovem quando diz que é da periferia é sempre com possibilidade de dar mais conforto para visto como suspeito e sofre preconceitos da so- sua família. Eu acredito que ficaria aqui – disse Jhonatan ao ser questionado se mudaria de bairro. MORO EM JAÇANÃ. SE EU PERDER ESSE TREM...
É SÉRIO De norte a sul, de leste a oeste. Os jovens da periferia têm vozes e identidades. Eles buscam melhoria de vida para si e todos que vivem ao seu redor. Os jovens do Brasil não sei, mas de São Paulo são levados a sério sim.
Jaçanã - Foto: Luiz Correia
ciedade, que os (pré)julgam antes de conhecer. As comunidades se ajudam. Quando as pessoas estão em dificuldade, os próprios moradores das comunidades se movimentam para ajudar outras pessoas. Até mesmo de outras comunidades de SP. O tratamento da PM também foi relatado pelo Jhonatan. Acusa a PM de ser truculenta nos enquadramentos. “A PM disse para eu falar que eu estava com drogas, para ser preso” – desabafou o jovem. Jhonatan é gay assumido e não se envergonha disso. Tem como paixão o amor ao teatro e a dança. Acredita que o governo poderia contribuir mais com a cultura, seja com a dança, música e outras áreas. Se vê como uma pessoa perdida, se não fosse pelo teatro e dança. Teria mais dificuldades no mundo de hoje. Não teria foco, muito provavelmente estaria na rua. O teatro mudou tudo em minha vida, mas ao mesmo tempo já viu preconceito por parte do público em uma cena que ocorreu um beijo entre pessoas do mesmo sexo e por ser bailarino. Já ouviu xin18
CEU Jaçanã - Foto: Vinícuis de Souza
PERFIL
Sr. Periferia Lenda viva da Cultura Black, pai do Hip Hop no Brasil e símbolo da resistência do povo da Periferia, Nelson Triunfo, o Nelsão, continua firme e forte. Escrevendo um livro e investindo em outras paradas sem perder a alegria, a criatividade, a consciência política e o vigor de sua eterna juventude, ele segue construindo e reconstruindo sua história.
Joaquim Silva Filho
S
ão 18:55. Pego o metrô lotado na praça da Sé e começo minha viagem. É a primeira condução que vai me levar ao meu destino final. Vou a pampa na batida do rap. Emicida tocando nos ouvidos, as ideias borbulhando na caixola. Morador afastado da periferia, acredito que a viagem vai demorar. Desço na Penha pra pegar um busão, mas, quando o visor do celular aponta 19:40 e a perua me deixa na Tiquatira, Zona Leste de São Paulo, percebo que a corrida não foi tão demorada como eu pensava, me dando a sensação de que sei muito pouco sobre a perifa ou não conheço quase nada sobre a verdadeira realidade das quebradas. Expectativa, ansiedade, curiosidade, são sensações que juntas e misturadas vão ficando cada vez mais fortes. A caminhada até à Rua Doutor Renato Maia também é rápida e tranquila. Chego, bato palmas e os cachorros me sorriem latindo. A luz acende. Alguém desce para me receber. Será que é ele com sua cabeleira intacta 20
e invicta há mais de trinta anos? Me pergunto animado, mas logo percebo que não. Quem vem me receber é Jean Batista, o Mc Jean B, filho mais velho do meu ilustre entrevistado e que manda tão bem nas rimas como o pai. Me recebe receptivo e sorridente com um “e aí, beleza? ”. Subimos os degraus e logo estamos dentro da casa, a Chácara Urbana, nome pelo qual o Senhor Hip Hop, personagem que está à minha espera, costuma chamar seu reduto 100% periferia, o mesmo de muitos anos atrás quando se instalou ali e não mais saiu. Eis que finalmente ele entra sala adentro. Dou um boa noite meio tenso e já solto a primeira: - Quer dizer então que você que é o Nelsão? - Dizem que sou, responde ele, meio tímido, meio desconfiado e com o olhar fixo no celular. Sinto a ausência de sua cabeleira Black Power, um dos símbolos de sua famosa resistência. Ela também está ali, mas bem guardada debaixo de
uma touca estilo Bob Marley. É quando percebo que quem me recebeu foi o Nelson Gonçalves Campos Filho, nome de batismo do cidadão onde habita aquele que é um dos mitos da Cultura Black Hip Hop brasileira. Ontem, hoje e sempre Nelsão Me apresento, digo o que faço e porque estou ali, mas o Nelson Filho insiste em não querer ir embora. Só quando pergunto como ele está vivendo seu momento atual e o que anda fazendo é que o Nelson Triunfo, aos poucos, vai chegando. Não demora muito e pah: Nelsão chegou. A partir daí começa o show e, definitivamente, me convenço de que o man que fui conhecer e entrevistar já se faz presente. Como no começo da carreira, Nelsão está a todo vapor. Na ativa, ao longo dos seus 1,90 e 62 anos completados em outubro, ele continua inquieto e produzindo rimas, versos, prosa e poesia. Segue influenciando antigas gerações,
PERFIL
Nelson Triunfo relembra momentos marcantes em sua carreira Foto:Vinicius de Souza
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PERFIL iniciando outras tantas. Pai do Hip Hop brasileiro, ele é pura mistura. Resultado da junção de Luiz Gonzaga com James Brown, xote com blues, maracatu com forró, repente com baião, ainda carrega dentro e fora de si a África, o Nordeste e a Europa. Na alma, na pele, no sotaque. Nelsão não para e nem consegue ser parado. Prossegue fazendo da música e da dança sua livre expressão sem perder o orgulho pelo trabalho pioneiro que construiu. - Na verdade eu sou Triunfo em show de James Brown em São Paulo - Foto: Penna Prearo aquele cara que construiu o verdadeiro underground em troca da exclusividade do tela do cinema. Da lembrança no Brasil. Talvez eu seja o úni- canto deles. Junto com o livro dos tempos de moleque quanco brasileiro que conseguiu também virá um musical. O do colocava vagalumes dentro viver mais de 40 e poucos musical do Ó, baseado nos lu- de uma garrafa transparente anos artísticos sem depender gares e costumes do nordeste. para servir de lanterna porque da mídia. Ou melhor, sem ser Mas essas não são as úni- não havia outra forma de ilumicontratado por ela, mas parti- cas correrias de momento. Pra nação na cidade onde morava, cipando por fora. Correndo não deixar morrer os velhos passando pelas correrias que pela tangente. tempos, Nelsão também está vivenciou, até chegar ao cara preparando um show para no- que livrou muitos jovens do Novas lutas, eternos vembro em que revive a fase crime e da morte prematura, desafios em que ele era o b-boy que o autor de letras e rimas como quebrava tudo, fechando a “Eu versus eu”, fica emocionaO cara que curte brincar de esquina da 24 de maio com a do. Relembra de Triunfo, sua fazer aniversários com coisas Dom José de Barros, no cen- terra natal, sente saudade. tipo tênis e celular, só pra viver tro de São Paulo. - Eu tenho saudade da inomomentos de lazer com os cência, cara. Você vai vendo manos, me conta que ago- Saudade e gratidão que na inocência, em alguns ra anda investindo em outras momentos, você vive mais paradas: está escrevendo um O papo vai avançando feliz porque vê o mundo de livro para a molecada infan- noite a dentro e aos poucos uma outra forma. Vê um munto-juvenil em que vai falar so- as memórias dele vão vindo do mais simples, um mundo bre prisão de aves, vítimas da à tona. É quando o Nelson sem muita maldade. Sem se maldade e do egoísmo do ser Gonçalves Campos Filho, jun- preocupar se aquele ar que humano. No livro, os pássaros ta-se ao Nelsão e, por alguns você tá cheirando tá cheio serão MC’s que cantam e con- minutos, os dois passam a se de carbono. Então eu sinto tam sua luta pela liberdade. A um só. As palavras cheias de um pouco de saudade disso. ideia é passar a mensagem de imagens vão saltando da boca Daquele cheiro de orvalho que nós podemos ter os pás- deles da mesma forma que as quando eu saia na roça. saros sem precisar prendê-los cenas de um filme saltam na Também vem à memória o 22
PERFIL tempo em que dava a maior canseira nos gambés porque se recusava a pagar de banzo e confessa que muitas vezes andou de barcona, mas logo estava de volta. Mais ousado e mais ligado nos 220. - Era uma coisa muito difícil porque, além de eu ser nordestino, ainda tinha muito sotaque naquela época, tinha um cabelão Black Power. E os caras doidos pra cortar meu cabelo, pra me engravatar e eu doido pra ser mais doido ainda. Quer dizer, eu fazia a minha arte, mas eu era um vadio pra eles. Eu tinha que me calar porque era ditadura sim e não podia falar. Ali, apanhando as vezes na rua da polícia, indo preso porque eles queriam carteira assinada e eu não tinha. Até que foi mudando as ideias. Eu fui tendo o respeito de toda uma população que começou a ver que, na verdade, eu era um resistente do caramba. É para essa população que que ainda vive na periferia que Nelsão continua atuando e é por ela que pretende continuar atuando através da pegada do hip hop, árvore que há alguns anos era pequena e hoje é tão grande como um cajueiro que fica em Natal/RN e que ocupa um quarteirão inteiro. Movimento Cultural que pro povo da perifa se tornou sinônimo de resistência e que não fica devendo nada pros outros movimentos hip hop do mundo em termos de produção e criatividade. - A grande maioria dos moleques que entendem de computador tão produzindo pra caramba. São ninja, mano! Nunca vi uma moda durar
mais de que um ano. No caso nosso, nós temos que entrar no Guiness Book, não é verdade? Passamos de 30 anos. Isso é mais uma das etapas daquelas que eu falei pra você. A desconstrução política. Porque o hip hop é político. E eu só tô falando isso pra você saber onde é que se encaixa. É isso que eu me preocupo no momento. É com esse trabalho social, de não parar, de fazer as pessoas entender que o barato é loco, que poxa, nós estamos vendo acontecer aqui uma coisa de uma forma que nos outros lugares do mundo ninguém vê. Presente e futuro É com esse olhar de quem vê longe que Nelsão reconhece que ele e o mundo mudaram. Enxerga atitude e grandeza na rapaziada da periferia que atua no movimento hip hop. – Mano, eu acho que eles me enxergam do jeito que eu me mostrei de uma certa forma pra eles. Alguns mais espertos, mais ligeiros, mais concentrados, eles me veem como um cara grande. Como um ídolo. Outros veem apenas como uma pessoa que
jogou num time ou uma coisa assim. Porque, na verdade, eles cresceram muito e hoje eles que acham que eles são os grandes mesmos e eu acho isso aí natural. Que bom que eles cresceram. Pai, mestre, aprendiz, gênio, símbolo, ícone, Nelsão é tudo isso, mas diz que não quer ser mais, nem menos do que já é. De sorriso sincero, alma e roupas coloridas, ele também é um arco-íris em forma de gente, farol que ainda ilumina novos caminhos pra novas gerações passarem. A história desse cara já foi contada em livro e já virou filme, mas é sempre melhor ser ouvida quando é contada e cantada por ele mesmo através de seus versos, sua prosa, suas rimas afiadas como navalha sempre pronta pra cortar preconceitos, orgulhos e acabar com toda forma de exclusão e caretice. Pá daqui pá de lá, seguimos nossa prosa, mas, quando nos damos conta, vimos que o tempo voou e já é quase meia noite. Tenho de partir. A caminhada é longa, mas sei que vou pegar minha reta satisfeito e com muita história pra contar.
Nelsão e o grupo Os Invertebrados - Foto: Arquivo pessoal
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PERFIL Viajando na viagem Eu e o man que tem a mania maluca de ir pra cidade só pra ver gente passar e se alegrar com a descoberta da existência de outras pessoas que como ele também habitam o mesmo planeta, mas que até então ele não conhecia, descemos a escadas de sua chácara urbana cheia de animais, plantas e frutas e tomamos a rua ao som de assobios, sem que a música larga dele nem ele dela um minuto sequer. Ainda impressionado com o que vi e o que ouvi por mais de cinco horas, aproveito pra fazer a última pergunta antes de dar linha na pipa
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e sair fora: - Mas afinal de contas, quem é Nelsão? Será apenas o Pai do Hip Hop brasileiro, o eterno B-boy ou o Homem Árvore, como disse certa vez Tony Tornado? - Eu só sou um cara que curto, adoro o que faço, mano. E, por gosta de fazer o que eu faço, sou a viagem da minha própria viagem. É isso aí que eu sou, man: A VIAGEM DE MINHA PRÓPRIA VIAGEM! São 23:45, o busão chega. Pego a minha reta e sigo viajando nessa viagem maravilhosa que é o Nelsão. E que viagem, mano!
TROCANDO IDEIA
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RETRATOS
A FALTA DE TRAMPO PARA AS MINAS DAS QUEBRADAS Texto e Fotos -Tatiane Mello
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oje, a periferia tem 71% dos sem emprego só na cidade de São Paulo. Em alguns bairros, como Guaianazes e Parelheiros, um em cada cinco moradores ativos não tem emprego. Ao buscar informações sobre a natureza do emprego e do desemprego com dados sobre renda familiar, instrução, sexo e faixa etária, o estudo revelou números impressionantes. No extremo leste, há 20,7% de desempregados contra 16,6 em outras áreas de periferias em São Paulo. A maioria das mulheres da periferia que conseguem um emprego acabam trabalhando como doméstica, auxiliar de limpeza em loja, restaurante e afins. PRECONCEITO - Conforme pesquisa feita em Recife em agosto de 2016, a vaga de emprego é mais difícil para mulheres que vivem na periferia
MULHERES FORTES - A pesquisa revelou que muheres são as que procuram mais empregos de segunda a sexta, principalmente no centro da cidade
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DEPRESSÃO - Algumas mulheres procuram emprego para não ficarem em casa e serem tratadas como escravas do lar pelo companheiro. “...não quero ficar presa ao meu marido...” - P.A, Santo Amaro
RETRATOS
APENAS VIVENDO – Muitas mulheres entrevistadas pela reportagem não gostariam de trabalhar fora. Apenas desejam ficam em casa cuidando dos filhos. Em geral, nunca se identificam com os seus trabalhos e estão ali por necessidade financeira. - “...apenas vivendo...” Ana Maria Ferreira Sousa com sua filha de 7 anos
REALIDADE - E essa realidade piora com o abandono dos pais, já que a mulher tem que assumir todas as funções de ‘chefe de família’, deixado muitas vezes de ver seus filhos crescerem para ir atrás de um emprego bom
PELOS MEUS FILHOS - P.A, de Santo Amaro, diz que sai todos os dias para procurar emprego, pois o marido está desempregado e, como ele bebe muito, não consegue mais arrumar nada. Para piorar, bate nos filhos quando não tem dinheiro para beber. Por isso, ela vende cosméticos e procura emprego para seus filhos não apanharem mais
SACRIFÍCIOS - “A mulher que sai para trabalhar deixa seus filhos abandonados. Tenho dois filhos, de 5 e 6 anos...minha vizinha que vigia. Eles ficam sozinhos o dia todo. “ - Carla Soares, Guaianazes
IGUALDADE? - Alguns homens que foram escutados durante a pesquisa feita, falaram que não gostam que suas mulheres trabalham fora de casa. “...mulher casada que trabalha fora, não presta, quer liberdade...” – Carlos (não quis passar sobrenome) - Campo Belo. Ângela Melo, operaria em uma fábrica em Itaquera
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RETRATOS
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VIDA SOFRIDA - Ficam em filas para conseguir uma chance de pagar o aluguel, comprar o leite, a fralda e outras coisas para a casa. “...uma vida corrida e sofrida ser mãe solteira, mas que esqueço assim que vejo o sorriso da minha filha ao chegar em casa. ” - Kátia de 25 anos, Cachoeirinha - Fila para entrevista no sábado, 17 de setembro, em agência na Zona Leste
MEDO - Entrevistando as mulheres da periferia, no centro de São Paulo, muitas falaram que abandonaram seu trabalho quando se casaram, e que não voltaram ao mercado, pois tinham medo de deixar seus filhos abandonados, como fazem muitas mães. Porém, agora que estão maiores, podem voltar a procurar uma vaga boa
LIBERDADE - “Eu não falava, não olhava as pessoas, não achava que minhas opiniões eram importantes. Mas, trabalhando, aprendi que sou uma peça importante de um quebra-cabeça, que posso pensar, posso fazer, e que as minhas opiniões são importantes, sim. “ – Elaine de Jesus, Vila Calu
VAMOS à LUTA – E, assim, milhares de mulheres da periferia acordam cedo, deixando filhos e netos dormindo, com medo da violência que podem sofrer na rua, no metrô e até nas entrevistas, pois a violência verbal também existe. Mas, mesmo assim, vão à procura de uma oportunidade, não só de emprego, mas de sobrevivência e empoderamento. - Estação Sé, Linha vermelha
NO TROMBONE
O Poder da Periferia
A
o receber o convite para escrever esse artigo, me senti extremamente desafiada, pois, falar do poder da periferia nos é muito caro e não há como fugir das contradições que este tema aponta. Se é difícil entender as implicações quando se fala do poder político da periferia, é impossível, por outro lado, não ver a força da cultura periférica. Portanto, faço minhas considerações a partir do lugar em que sempre estive: o de uma cantora popular, nascida e criada na periferia. Ou seja, posso dizer que o meu olhar sobre a periferia não é estrangeiro, de quem é de fora, mas sim de pertencimento. Basta observar com um pouco de atenção as manifestações e expressões da cultura brasileira para percebermos que todas elas nasceram nas periferias. Tanto na geográfica, determinada pela falta de acesso aos serviços e políticas públicas, quanto na periferia simbólica, aquela que é determinada pelos padrões hegemônicos de comportamento, estética e valores. A periferia é um lugar físico, geográfico, econômico, político e, sobretudo, simbólico. Portanto, a cultura da periferia pode estar lá nas favelas dos bairros mais distantes ou na telinha do celular, através das redes sociais. O que importa saber é que a cultura ou expressão da periferia é reflexo do conflito entre o que é considerado padrão e o que é excluído. Não saberia explicar o por que de toda essa tensão resultar em manifestações que acabam por dominar a expressão do que podemos chamar de nossa “brasilidade”. Essa tarefa deixo para os cientistas sociais. Mas o fato é que o samba, o choro, o forró e todos os gêneros musicais que traduzem a alma brasileira nasceram do povo, da periferia. Isso se ficarmos apenas na seara musical. Se focarmos nosso olhar para anos mais
Leci Brandão
recentes, uma profusão de estilos musicais e de expressões vêm brotando nas periferias de nossas cidades, frutos da inquietação da juventude, principalmente da juventude negra, coincidentemente a que mais tem sido vítima do descaso e da violência. A cultura hip hop e o funk são os maiores exemplos disso. Sempre costumo falar da música porque é através dela que mais me expresso, mas é fundamental citar também outras manifestações e linguagens artísticas e culturais como o teatro, a dança, a poesia, a literatura e o audiovisual. Além disso, não podemos deixar de falar que nas periferias têm nascido movimentos políticos que lançam mão da estética para falar das injustiças e para questionar os padrões. Um deles é o que envolve a questão do cabelo crespo. Sim: falar de cabelo e da estética dos corpos negros é um ato político. Além de tomarem para si as suas próprias narrativas, as periferias também têm sido protagonistas em apontar novos modos de fazer e de difundir suas expressões. A produção colaborativa, os coletivos artísticos e os saraus periféricos são alguns exemplos disso. O poder da periferia, principalmente da população negra, é latente. Os que estão nos espaços de poder político e econômico sabem disso. Resta à própria periferia tomar consciência dessa força. Na década de 1970 compus a música “Zé do Caroço”, que fala das questões sociais e de um líder comunitário que realmente existiu. Essa música fala também da esperança de que o povo desperte para a força que tem. Passado todo esse tempo, eu ainda acredito que estão nascendo muitos outros líderes nos vários morros do Pau da Bandeira que existem em nosso país. *Leci Brandão é cantora, compositora e Deputada Estadual por São Paulo 29
PARTIU ROLÊ O movimento cultural segue a todo vapor, embalado pela pegada Hip Hop e pelo agito da galera das quebradas de sampa. Música, Teatro, Dança, Sarau e tudo mais o que rola na Perifa, o que acontece aqui e acolá, você confere agora e já. Firma ae e escolhe a tua diversão, opção não falta não. Aqui é assim, tudo junto, misturado e rimado, tá ligado? Bora pra cima então, porque nóis é nóis!
HIP HOP Engrenagem Urbana Os manos do Engrenagem Urbana lançam o EP “Mil histórias de uma cidade para mil e um corações”. São 11 faixas inéditas, sendo oito músicas e três poemas da hora e com participação de uma galera pra lá de top show: Rincon Sapiência, Apelidado Xis e Tássia Reis. Engrenagem Urbana, 06/11 (Domingão)18h Centro Cultural Vergueiro Rua Vergueiro, 1000 - Paraíso (Coladinho com o metrô Vergueiro) R$ 10,00 com direito a uma EP incluso Informações (11) 984160628
LITERATURA 11ª Balada Literária
Essa edição da balada reúne os bambas da música e a nata literária de vários cantos do país. Ney Matogrosso, Moraes Moreira, Marcelino Freire, Rogéria, Marina Lima, só pra citar alguns. O encontro acontece de 23 a 27/11 e a ainda vai ter a presença internacional de Ernesto Dabó, do Guiné-Bissau. O poeta Caio Fernando Abreu, morto há 20 anos, é o homenageado desse ano. Os eventos aconte30
cem Itaú Cultural e na Biblioteca Alceu Amoroso Lima. Confira a programação completa através do site www.baladaliteraria.com.br
TEATRO Grajaú conta Dandaras, Grajaú conta Zumbis A peça nasceu da parceria entre a Cia. Humbalada e outros grupos e artista da ZS de São Paulo. O espetáculo tem como partida o território para poder escapar, poder ir além do que está posto, para dar outros entendimentos para as condições. Sextas-feiras, 20h e sábados, 21h. Até dia 03/12. Espaço Cultural Humbalada. Avenida Grande São Paulo, 282. Grajaú, Zona Sul. Entrada: Pague quanto puder ciahumbaladadeteatro@gmail.com (11) 98331-3438
OFICINAS Realezas: Mulheres negras e o poder O evento apresentará personalidades que ocupam diferentes papéis sociais e promover uma reflexão crítica sobre a representatividade da mulher negra. Bate papo, contação de histórias, muita música e dança aquecem a programação. De 03/11 a 26/11 Sesc Campo Limpo Rua Nossa Senhora do Bom Conselho, 120.Campo Limpo, Zona Sul Entrada franca (11) 5510-2700
TROCANDO IDEIA
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