Anais do simpecos

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ANAIS SIMPECOS

ERECOM SEROPEDICA 2014


Encontro Regional de Estudantes de Comunicação Simpósio de Pesquisa em Comunicação Social Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

ORGANIZAÇÃO

ENECOS Executiva Nacional de Estudantes de Comunicação Social Coletivo Enecos Bonde do Rio

Seropédica/RJ, Outubro de 2014



O presente material é um compêndio de artigos apresentados durante o Simpósio de Pesquisa em Comunicação Social (Simpecos), realizado dentro da programação do Encontro Regional de Estudantes de Comunicação (Erecom), no dia 10 de outubro de 2014, em Seropédica/RJ. O Simpecos se propõe a ser um espaço de fortificação dos debates promovidos dentro do Erecom, para tanto, os eixos temáticos de submissão dos trabalhos (Cultura, sociedade e resistência; Comunicação e poder; Avanço das tecnologias e novas formas de se comunicar) procuram dialogar com as principais bandeiras da Executiva Nacional de Estudantes de Comunicação Social, na expectativa de que haja tanto o aprofundamento em temas esmiuçados por estudos específicos, quanto o vislumbre de que a academia já é e deve ser cada vez mais um espaço de produção de conhecimento para o benefício social. Delimitando temas, o Simpósio também procura fomentar a produção acadêmica em áreas da comunicação que conhecidamente não possuem espaço em congressos e eventos da área. Assim, espera-se que esse material seja instrumento de divulgação dos horizontes possíveis dentro da perspectiva da valorização do “social da comunicação”. O Simpecos, assim como o Erecom, foi concebido e realizado pela Comissão Organizadora composta por estudantes da graduação de diversos cursos de Comunicação do Rio de Janeiro, e promovido pela Enecos.


SUMÁRIO 6 >>>>>>> AS VOZES NOS GUETOS Igor Otávio Lacerda Sant’Ana 17 >>>>>> DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA NA INTERNET: um olhar do público infantil Mariana Rocha Amarante Corrêa Luisa Medeiros Massarani 30 >>>>>> PRODUÇÃO AUDIOVISUAL EM FAVELAS: Cafuné na laje, novas representações e olhares sobre o Jacarezinho Karla Alessandra Florencio Suarez e Taís Manoel de Amorim 40 >>>>>> VOCÊ NÃO TÁ ME OUVINDO? Juliana Pimenta Nogueira


AS VOZES NOS GUETOS Igor Otávio Lacerda Sant’Ana igorlacerdasa@gmail.com Universidade Veiga de Almeida

Resumo Este artigo analisará, através da criação do periódico O Snob (1950), o motivo da migração dos homossexuais para os centros urbanos e o motivo da criação do gueto. Em seguida, avaliaremos, através da primeira publicação do Lampião da Esquina (1978), o nascimento, a linguagem e o ativismo do primeiro jornal gay partidário e pluralista do Brasil. Por fim, discorreremos sobre a importância da internet para o movimento LGBT e sua luta por igualdade.

Palavras-chave Lampião da Esquina; O Snob; Imprensa Gay; Ativismo Online; Mídia LGBT.

Introdução Antes de desenvolvermos um artigo sobre o sobre o Lampião da Esquina é necessário discorrer sobre os anos de 1950. Neste período, por causa da falta de liberdade nas cidades pequenas, os homossexuais deixavam sua cidade de origem e migravam para os centros urbanos. Mesmo que os LGBTs tenham ocupado os espaços públicos por um tempo, graças à repressão social, eles sentiram a necessidade de viver se escondendo. Inclusive, durante esse momento, eles enxergaram no o gueto uma maneira de sobreviver. Em 1963, surge a primeira publicação abertamente homossexual do Brasil que se intitulou como O Snob. O falava sobre moda, beleza, poesias, dicas para cuidar da pele e fofocas. Além disso, ele era mimeografado e sua distribuição restringiu-se a Cinelândia e a Copacabana. Segundo Péret (2011), esses dois bairros são, desde 1940,

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um dos principais pontos de encontro de homossexuais cariocas. De acordo com Costa (2010), entre os anos 60 e início dos 70, circularam no Rio de Janeiro mais de quinze títulos: Le Femme, Subúrbio à noite, Gente Gay, Aliança de Ativistas Homossexuais, Eros, La Saison, O Centauro, O Vic, O Grupo, Darling, Gay Press Magazine, 20 de Abril, O Centro e O Galo. Todos esses jornais circularam durante o Ato Institucional número cinco, instaurado em 13 de dezembro de 1968, impôs uma censura prévia aos jornais e, sobretudo, a imprensa alternativa que foi o principal alvo da repressão militar. No entanto, vale a pena ressaltar que os autores dos artigos dos jornais alternativos assinavam as publicações com pseudônimos e os jornais eram distribuídos clandestinamente. A mídia alternativa, mesmo sob censura, não era convencional e falava sobre assuntos polêmicos como o racismo, o feminismo e homossexualidade. O estilo de vida da maioria da maioria das pessoas, mesmo após a Revolução de Costume que exposto uma nova perspectiva social que contrariou o comportamento sexual tradicional, era influenciado pela família pela a Igreja. A imprensa alternativa diferenciava-se da imprensa tradicional pela liberdade editorial, pela linguagem irônica e pelas críticas feitas à ditadura e à moral cristã. Após o Ato Institucional nº 5 (AI-5) houve um período de enfraquecimento do Regime Militar que ficou conhecido como abertura política (1974). Neste momento, a repressão à imprensa foi, aos poucos, sendo suspensa. Em 1978, quatro anos após o início da abertura política, nasce o Projeto Lampião e, posteriormente, em 1979, surge o Grupo Somos para marcar o início do movimento homossexual do Brasil. Então, o jornal cria uma nova perspectiva de militância que visa tirar o homossexual da clandestinidade. Por fim, falaremos primeira década do século XXI trouxe a possibilidade da mídia gay divulgar seus ideais e, através da rede, expor sua luta.

1 - O Snob: um jornal informativo para gente entendida. Os homossexuais deixavam sua cidade de origem para viver sua sexualidade livremente nos grandes centros urbanos. Eles buscavam meios de fugir da injúria, da violência e do controle social de suas cidades de origem. Péret (2011) diz que, durante os anos de

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1950, mesmo acostumado a clandestinidade, os gays que migravam para os centros urbanos iniciaram um processo de apropriação de praças, ruas, parques, cafés e cinemas. Apesar do Rio de Janeiro ser o Estado mais tolerante, alguns donos de estabelecimentos proibiu a entrada de lésbicas e gays por medo de perder a clientela heterossexual. Além disso, nesta mesma época, a policia instituiu uma caça a todas as pessoas que estivessem na rua à noite sem portar carteira de trabalho. No meado de 1950, por causa da constante opressão social, os LGBTs criaram “turmas” e promoveram encontros, na residência dos participantes, para produzir festas, concursos teatrais, concursos de moda e outros eventos. De acordo com Costa (2010), o grupo encontrou no anonimato uma estratégia para viver sua sexualidade livremente e construiu um espaço de sociabilidade (o gueto) à parte da sociedade estabelecida. Esses sujeitos, muitas vezes, ficam submetidos a “vida dupla”: de um lado reunindo suas atividades gerais, trabalho, família e moradia e, de outro , o “gueto”. O objetivo principal dessa rede era reunir amigos que não encontravam espaços de sociabilidade “homossexual” na cidade e, desta forma,desfrutar da liberdade sexual sem sofrer perseguição. As reuniões, segundo Aginaldo Guimarães²1 “eram mais para conversar, para encontrar, conversar, rir. Cada um levava algo para comer. Lógico que sempre tinha um bofe. Acho que é importante o prazer visual de ver um bofe bonito”. “Esse relato parece fundamental para entender a construção desses grupos, cujos participantes, vivendo em uma grande cidade, eram agredidos e isolados socialmente em função de seu comportamento sociossexual, que precisavam, na maioria das vezes, manter em segredo. Para superar essa maneira de viver característica dos anos 60, quando não podiam ser “eles mesmos”, procuravam promover agregação social com objetivo de “existir”.” (COSTA, 2010, p.32) Os grupos produzirem festas temáticas, shows, concursos de misses, Os melhores do ano, teatros, jantares e essas festas tornaram-se tão 1 Entrevista de Agildo Guimarães concedida a Rogério Costa. Rio de Janeiro, 29/07/2007.

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importantes que segundo Péret (2011), em 1963, Agildo Guimarães descontente com o resultado do concurso Miss Traje Típico, realizado pela Turma do OK, decidiu fazer um jornalzinho para protestar contra a escolha do júri. A autora ainda ressalta que a publicação era simples, em folhas de papel ofício, datilografado (frente e verso) e impresso em mimeografo e eram consumidos nos bares e cafés da Cinelândia e de Copacabana. “Com o tempo, o Snob tornou-se conhecido dentro da comunidade gay carioca. Transformou-se numa minirevista, com capa, ilustrações coloridas, pequenos anúncios e mais de trinta páginas. Havia coluna de fofocas, concurso de contos e poesias, matérias sobre moda e beleza, artigos sobre cuidados com a pele, entrevistas, palavras cruzadas e séries de reportagens, como a História do Brasil pelo método confuso” e “Introdução a Psicanálise”. Textos e imagens eram assinados por Pantera Cor de Rosa, Robinetti, Elke Stenssoro, Gigi Brayant e jornalistas que usavam pseudônimos para expressar suas ideias.” (PÉRET, 2011, p.20) Observou-se, através do uso de pseudônimos, que o anonimato era importante e revelava a falta de liberdade dos homossexuais . Porém, apesar da liberdade cerceada, o jornal editado pela Gilka Dantas (nome fictício de Aginaldo Guimarães) conseguiu criar uma significativa rede de distribuição, manter contato com outros grupos e firmar-se como o principal meio de expressão da cultura gay que emergia no país. O periódico continha artigos sobre moda, cultura e utilizava o sarcasmo, a ironia, duplo sentido e o modo de fala próprio dos gays como os principais elementos de linguagem. Portanto, ao dizer que os grupos minoritários, geralmente, usam uma linguagem própria para se autoidentificar e para dificultar a compreensão dos indivíduos que não partilham da mesma cultura, Silva (2005) justifica o uso de gírias nas publicações da imprensa gay dos anos 1960. O jornal exibiu a insubordinação e o descontentamento com as “normas sociais”. Inclusive, o próprio nome, O Snob, é sinal de uma “atitude blasé” em relação às normas criadas pela sociedade heterossexual. O periódico circulou de julho de 1963 a junho de

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1969. Apesar de ter sido elaborado de forma artesanal e não ter tido circulação nacional, ele foi o primeiro jornal do gênero no país. O Snob é importante para a imprensa homossexual porque abordou – o gueto – o mundo das bichas, dos bofes, das bonecas e dos entendidos que viveram durante os anos de 1960.

2 - O Projeto Lampião No final de 1977, o editor chefe da revista Gay Sunshine, editada em São Francisco, Estados Unidos, visitou o Brasil com a intenção de conhecer escritores brasileiros e unir textos para a criação de uma coletânea sobre a literatura homoerótica da América Latina. Graças ao prestigio do jornalista e ao sucesso da revista, a visita tornou-se um acontecimento midiático e a visibilidade dada ao jornalista fez com que ele participasse de várias entrevistas e reuniões com jornalistas e escritores brasileiros. A visita do jornalista americano fez com que, após um encontro marcado pelo advogado João Mascarenhas, nascesse e ideia do Projeto Lampião. Participaram da reunião Adão Costa, Darcy Penteado, Antonio Chrysóstomo, Agnaldo Silva, Clóvis Marques, Francisco Bittencourt, Gasparino Damata, Jean Claude Bernardet, João Antônio Mascarenhas, João Silvério Trevisan e Peter Fry e, posteriormente, eles formaram o Conselho Editorial do Jornal. Com a proposta de criar um jornal plural, nasce, em abril de 1978, o Número Zero (primeira Edição do Jornal Lampião).

2.1 O Número Zero O Número Zero foi uma edição experimental, sua circulação foi restrita e o desejo dos jornalistas foi mostrar aos homossexuais a necessidade de sair da clandestinidade. O primeiro editorial do jornal, “Saindo do Gueto”, mostra as aspirações dos ativistas, desconstrói a imagem do homossexual infeliz que não sabe lidar com os próprios desejos e expressa a necessidade de um veículo de comunicação que trata diretamente da luta de grupos marginais. O que nos interessa é destruir a imagem padrão que se faz do homossexual, segundo a qual ele é um ser que vive nas sombras, que prefere a noite, que encara sua preferência sexual como uma espécie de maldição, que é dada aos demais e que sempre esbarra em qualquer

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tentativa de se realizar mais amplamente enquanto ser humano, neste fator capital: seu sexo não é aquele que se desejaria ter. Para acabar com essa imagem-padrão, LAMPIÃO não pretende soluçar a opressão nossa de cada dia, nem pressionar válvulas de escape. Apenas lembrará que uma parte estatisticamente definível da população brasileira, por carregar nas costas o estigma da não reprodutividade numa sociedade petrificada na mitologia hebraico-cristã, deve ser caracterizada como uma minoria oprimida. E uma minoria, é elementar nos dias de hoje, precisa de voz (LAMPIÃO, abril de 1978:2). Inicialmente, a principal preocupação do Lampião foi garantir a liberdade e a dignidade dos LGBTs que, além de terem seus direitos tolhidos, sofriam com uma intensa violência física e moral. A missão do periódico era lutar para os gays obterem direitos que, apesar de serem garantidos pela Constituição Federal, só foram assegurados na Constituição Social (1988). O Lampião, assim como toda a imprensa alternativa, não se preocupava apenas com os assuntos relacionados aos gays. Suas pautas abordavam a realidade de lésbicas, negros, índios e mulheres e sua intenção era dar voz aos grupos oprimidos e excluídos.

2.3 Momento político, circulação e cisão ideológica Apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelo grupo editorial, o Lampião chegou as bancas de todo o país no dia 25 de maio de 1978. O jornal era distribuído mensalmente; era impresso em duas cores e custava 15 cruzeiros. Os leitores conseguiam as edições do jornal através dos pontos de encontro e, posteriormente, através de algumas boates e bancas de jornal. Por causa do momento político do país, a missão de retirar os homossexuais do submundo fracassou porque eles tinham medo de enfrentar o preconceito e a censura. Como muitos jornaleiros se recusaram a vender o Lampião, os exemplares passaram a ser distribuído no próprio gueto, ou seja, em boates, saunas e cinemas pornôs. O jornal tentou sobreviver financeiramente por meio de assinaturas, mas elas não eram suficientes para pagar as dívidas. Os anúncios, geralmente de saunas e boates, também não mantinha o jornal.

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Então, a alternativa encontrada para amenizar a crise financeira foi a venda de livros com temática LGBT. Segundo Péret (2012), além da crise financeira, o Lampião foi vítima de várias tentativas de sanções por parte dos militares, boicote dos donos de bancas e atentados de grupos paramilitares que explodiam bombas caseiras em locais que vendiam publicações alternativas e consideradas pornográficas. Em agosto de 1978 os jornalistas que formavam o Grupo Editorial foram acusados de atentado à moral e aos bons costumes pelo Ministério da Justiça. A Carta da Polícia dizia que os editores sofriam de “graves problemas comportamentais” e que seriam processados e enquadrados na Lei da Imprensa. De acordo com Péret (2012), anos mais tarde, Travisan descobriu que um dos motivos que levaram à abertura do inquérito foi a matéria sobre Celso Curi, publicada no Número Zero. Trevisan tentou mostrar, através da matéria “Mas qual é o crime deste rapaz?”, a hipocrisia da sociedade brasileira. Em 1979, como a polícia não encontrou provas suficientes para abrir um processo judicial contra o jornal, o inquérito foi arquivado. Pelo histórico de participações políticas, Aguinaldo Silva e Travisian eram responsáveis pela decisão política e editorial do jornal. A partir de 1979, além dos problemas financeiros que prejudicavam o periódico, houve uma divergência entre Travesian e Aguinaldo. Enquanto Travisian queria que o jornal mantivesse as características de contestação e lutar para dar voz aos guetos, Agnaldo propunha uma guinada editorial e um jornal que não fosse totalmente ativista. Em decorrência desta divergência ideológica, Aguinaldo parou de editar o jornal e Travesina propôs seu fim.

3 – Internet: entre a pornografia e o ativismo online O movimento homossexual de 1970 conquistou aceitação e respeito social que, posteriormente, seria abalado com a descoberta da AIDS. Porém, em 1990, após o pânico em torno da doença, a homossexualidade adquire uma nova forma de vivencia e um mercado especificamente gay. “A imprensa, espelho fragmentado e imparcial da realidade, acompanhou o mercado especificamente gay: sites, revistas, agencias de viagem, planos de saúde, cartões de crédito, casas noturnas e eventos culturais –

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um conjunto cada vez maior de produtos voltados para o público homossexual que, atualmente, movimenta bilhões de dólares no mundo todo. Para que se tenha uma ideia do potencial de faturamento desse mercado: a Parada Gay de São Paulo de 2010, considerada o maior evento gay do mundo, fez circular R$ 188 milhões, segundo dados da São Paulo Turismo (SPTuris), empresa de turismo e eventos da cidade de São Paulo.” (PÉRET, 2011, p.83) A internet possibilitou uma grande revolução, pois uniu e conectou pessoas de diferentes culturas, classe social, línguas. Além de democratizar o acesso à informação, a internet garantiu a liberdade dos indivíduos expressassem suas opiniões e dividir seus temores. Em 1950 os homossexuais formavam grupos (redes sociais) e se reuniam para promover encontros, falar sobre a opressão e, dentro da falta de liberdade, viver sua sexualidade. E, em 1990, esses grupos continuaram se reunindo para dividir suas experiências, mas agora o grupo era online. “Partidos, sindicatos, ONGs e até grupos guerrilheiros, ainda que eventualmente separados por estratégias e táticas de ação descobrem no ciberespaço a possibilidades de difundir suas reivindicações. E o que é desconcertante: sobrepujando os filtros ideológicos e as políticas editoriais da chamada grande mídia. Não se tem pretensão de atingir milhões e milhões de pessoas, privilegio dos que detêm o controle dos meios de comunicação tradicionais. O que se busca é promover a disseminação de ideias e o máximo de intercâmbios. Poder interagir com quem quer apoiar, criticar, sugerir ou contestar. Como também driblar o monopólio de divulgação, permitindo que forças contra hegemônicas se expressem com desenvoltura, enquanto atores sociais empenhados em alcançar a plenitude da cidadania e a justiça social.” (MORAES, 2010) A imprensa gay no Brasil, que sempre sofreu com problemas financeiros, descobriu que manter um site era mais barato que manter uma revista nas bancas. Os brasileiros inventaram iniciativas para

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criar uma mídia gay na internet e, em 1993, nasceu o primeiro portal gay da América Latina intitulado como Mix Brasil. O portal, criado por André Fisher, foi o primeiro site brasileiro que produziu conteúdo para o publico homossexual. Segundo Péret (2011), Fische explica que seu site tem compromisso com a militância e abre espaço para notícias relativas aos direitos dos gays, mas a maioria dos internautas, de fato, acessa o site em busca de conteúdo erótico. “Uma primeira leitura da situação levaria a crer que os sites voltados para o público gay, ao priorizar a pornografia e o conteúdo erótico, criaram um distanciamento em relação às lutas e aos movimentos homossexuais. No entanto, observa-se uma relação paralela de mobilização, de discussão e de debate em torno de polêmicas e assuntos interessados aos homossexuais.” (PÉRET, 2011, p.103) Mas o ciberespaço não é composto apenas por pornografia. Os grupos que lutaram pelos direitos dos LGBTs, por exemplo, também usam a internet para falar sobre as agressões, morais e físicas, que os homossexuais ainda sofrem diariamente. A internet é tão importante na luta por direitos igualitários que diversos grupos de defesa dos direitos civis dos LGBTs criaram sites para recolher assinaturas de pessoas favoráveis à aprovação do Projeto de Lei nº 122 que visa à criminalização da homofobia. Os portais brasileiros para homens homossexuais, como, por exemplo, o , ainda divulgam conteúdo erótico, informações sobre militância, união civil, adoção, saúde comportamento e serviços. Existem sites para mulheres, porém, o número é menor. Os mais acessados são Dykerama e Parada Lésbica que tratam de assuntos relacionados ao comportamento, a cultura e a política. Além dos sites, a internet conta com milhões de blogs onde as pessoas podem se expressar, realizar o intercambio de informações, constituir importantes espaços de discussão e trocar experiência. (PÉRET, 2011, p.104)

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Conclusão Por causa das injurias e da violência, moral e física, que os LGBTs sofriam nas cidades pequenas, eles passaram a migrar para os centros urbanos. Ou seja, por causa do preconceito e da opressão que sofriam em suas cidades de origem, eles foram viver sozinhos nas cidades. A opressão na cidade não foi menor, mas, por estarem longe da família e dos amigos, eles podiam viver livremente. Os LGBTs passaram a ocupar ruas, praças, cafés e cinemas. Mas, logo começaram a ser perseguidos e, por esse motivo, os grupos, divididos por bairros, se reuniam na casa de um dos componentes e realizavam festas, encontros, peças de teatro e concursos. O preconceito fez com que o grupo de isolasse, criasse sua própria linguagem e uma “vida dupla”. De um lado tinha a família, os amigos e o trabalho e, do outro lado, tinha o local onde eles podiam viver a sexualidade livremente – o gueto –. Os LGBTs, neste período, construíram um grupo social que viva à parte da sociedade e usavam o jornal O Snob para promover seus encontros. Em 1978 nasce, dentro da imprensa alternativa, o Lampião da Esquina. No ano seguinte, 1979, nasce o Grupo Somos e marca o início do movimento homossexual do Brasil. Analisamos, através da primeira publicação do jornal, a necessidade de sair do gueto (criado nos anos 50) para lutar por direitos civis igualitários. O jornal desejava destruir a imagem padrão que o Estado e a Igreja fizeram da homossexualidade e dar voz ao grupo feminista, negro e indígena. Os jornalistas, desde o início, queriam garantir a pluralidade do jornal e não abandonaram o humor, ironia e as gírias que também eram utilizadas pelo periódico O Snob. Inclusive, apesar de ter criticado o gueto, foi nele que o Lampião foi divulgado. O conteúdo político, a duração e a ocupação do território nacional é o que diferencia o Lampião da Esquina dos periódicos antecessores. Por fim, através da analise do periódico O Snob e do jornal Lampião da Esquina, podemos chegar à militância LGBT que, atualmente, se apropriou da internet para lutar contra a homofobia, propor diálogo e trocar informações sobre direitos civis. A internet deu voz ao movimento e, assim como o Lampião, “lembrará que uma parte estatisticamente definível da população brasileira, por carregar nas costas o estigma da não reprodutividade numa sociedade petrificada na mitologia hebraico-cristã, deve ser caracterizada como uma minoria oprimida. E uma minoria, é elementar nos dias de hoje, precisa de voz”.

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Referências Grupo Dignidade. Lampião da Esquina. Disponível em <http://www. grupodignidade.org.br/blog/cedoc/jornal-lampiao-da-esquina/> Acesso: 05/05/14 BANDEIRA, Marcio Leopoldo Gomes. Será que ele é?: Sobre quando Lampião da Esquina colocou as Cartas na Mesa. Dissertação (Mestrado em História), São Paulo: PUC/SP, 2006. FERREIRA, Carlos. Imprensa Homossexual: Surge o Lampião da Esquina. Revista Alterjor, São Paulo, v. 01, n. 01, jun. 2001. PÉRET, Flávia. Imprensa Gay no Brasil. São Paulo: PubliFolha, 2012. SILVA,Barbosa. Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2005. MORAES,Denis. Comunicação Social e Cidadania: Movimentos Sociais e Políticos na Internet. (Artigo) Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. COSTA, Rogério da Silva Martins da. Sociabilidade homoerótica masculina no Rio de Janeiro na década de 1960: relatos do jornal O Snob. (Dissertação de Mestrado) CPDOC, FGV, Rio de Janeiro, RJ, 2010.

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DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA NA INTERNET: um olhar do público infantil Mariana Rocha Amarante Corrêa marianarochaemail@gmail.com Universidade Federal Fluminense

Luisa Medeiros Massa

Resumo O objetivo deste trabalho foi investigar crianças com idade entre 8 e 12 anos frente à divulgação científica na internet. Foi realizado um estudo de caso da página eletrônica da revista Ciência Hoje das Crianças (CHC On-line) e foram analisados 350 comentários coletados das 14 notícias mais comentadas no ano de 2013. A metodologia associou as técnicas netnografia e mineração de textos. Os resultados apontam que os leitores fazem comentários positivos sobre os textos de divulgação científica, os textos são usados como apoio ao ensino formal e o público faz comentários utilizando linguagem com elementos comuns à comunicação na internet.

Palavras-chave divulgação científica; internet; público infantil; netnografia.

Introdução A internet e o ensino Em 2012, o estudo TIC Kids Online Brasil, realizado pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (CETIC.br, 2013) em parceria com a Escola de Economia de Londres, mostrou que, das 1.580 crianças e adolescentes brasileiros com idade entre 9 e 16 anos que foram entrevistados, 82% afirmam

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utilizar a internet como fonte de consulta para trabalhos escolares. Com isso, é natural questionar o que essas crianças encontram na rede e como ela ajuda no ensino não formal de diversos conteúdos – entre eles, os de ciências. Partindo desse mote, este trabalho busca compreender como a geração digital lida com a divulgação científica apresentada na rede, a partir da análise dos comentários feitos por leitores no site da Ciência Hoje das Crianças On-line (CHC On-line). Segundo Carletti e Massarani (2009), “compreender a percepção e a compreensão do público sobre temas de ciência ajuda a consolidar estratégias mais eficientes de educação científica” (CARLETTI E MASSARANI, 2009: 206). Tappscott (2009), por sua vez, diz que a geração da internet cresceu e vive em um mundo digital, mas o sistema escolar está ao menos um século atrasado. O autor também compara professores a apresentadores de programas de televisão. Partindo disso, apresenta uma triste realidade: assim como os apresentadores, que perdem a audiência para a internet, os professores também passam pelo mesmo processo, já que sentar em frente a uma TV – ou professor – que transmite conteúdo unidirecional não apetece a geração digital. Com isso, buscar entretenimento ou conhecimento na rede torna-se muito mais dinâmico e interessante, e o internauta passa a fazer parte dessa disseminação de saberes por meio da participação em redes sociais ou, como é o caso de análise do presente trabalho, por comentários em sites de notícias. De acordo com McMillen (2013:1), artigos publicados em veículos de comunicação on-line que incluem comentários interativos conferem ao leitor a oportunidade de ter papel ativo na mídia. Tais comentários podem ser comparados à seção de cartas dos leitores presente em diversos veículos impressos, pois, como elas, os comentários online dão ao internauta a oportunidade de compartilhar sua opinião sobre o que leu.

A Ciência Hoje das Crianças Criada em 1986, a revista Ciência Hoje das Crianças (CHC) é produzida pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e tem como público alvo crianças com idade entre 8 e 12 anos. Segundo Massarani (1999:2), a revista “tem como objetivo estimular, em jovens leitores, o interesse pela ciência, pela literatura e pelos costumes brasileiros”. Em 2000, a CHC ganhou uma página na internet (CIÊNCIA HOJE DAS CRIANÇAS, 2011), com conteúdo produz-

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ido independentemente da revista impressa. Dividida em seções, a página apresenta as últimas descobertas científicas distribuídas em 13 temas: Arte e cultura, Bichos, Literatura, Matemática, Plantas, Química, Tecnologia, Astronomia, Física, História, Meio ambiente, Pré-história e Saúde. Em 2011, para comemorar os 25 anos da CHC, o site foi reformulado e passou a ter um desenho mais colorido e visual mais moderno, com destaque para o Clube do Rex, primeira rede social brasileira feita para crianças. Semelhante às já conhecidas redes, como Facebook e Orkut, o Clube do Rex conta com grupos abertos pelos próprios usuários. Mas, diferentemente dessas redes sociais, o internauta só pode realizar o cadastro no Clube do Rex se fornecer o e-mail do responsável, que receberá uma mensagem da CHC On-line informando o registro da criança no site e solicitando sua autorização para que o cadastro do leitor seja concluído. Outro pronto importante é a ausência de foto para identificar o usuário, que escolhe um dos avatares representados por desenhos de crianças com diversas características como cor de cabelo, pele e tipos de roupas. No Clube do Rex, os grupos criados pelas crianças permitem que elas sejam autônomas quanto à postagem de conteúdo.

Metodologia Netnografia Para estudar a tríade criança, internet e ciência, unimos a netnografia à mineração de textos. A netnografia é um método inspirado na etnografia, mas que não necessariamente se iguala a ela. Segundo Angrosino (2009:30), a etnografia “é a arte da ciência de descrever um grupo humano – suas instituições, seus comportamentos interpessoais, suas produções materiais e suas crenças”. Ainda que tenha surgido na antropologia, a etnografia teve seu campo de estudo ampliado, principalmente com o aumento do número de ambientes digitais, que se constituíram como observáveis para o trabalho etnográfico (FRAGOSO, RECUERO E AMARAL, 2013:70). Kozinets comenta que “nosso mundo social está tornando-se digital, talvez com milhares de milhões de pessoas interagindo através de diversas comunidades on-line” (Kozinets, 2009:1). E adiciona: “para permanecer atual, nossa metodologia deve fazer o mesmo”. O estudo netnográfico é feito com a ida a campo, seleção, obser-

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vação e documentação de dados (salvando arquivos e mensagens, fazendo printscreens, efetuando download de materiais, etc.). Porém, nem sempre a ida a campo envolve a inserção total do pesquisador na comunidade virtual. Orgadi (2009) descreve a prática do pesquisador silencioso (do inglês lurker, que significa estar à espreita), que atua como mero observador. Tal estratégia foi selecionada para esta pesquisa em razão da faixa etária do público estudado – assim, durante o ano de 2013, a página eletrônica da CHC foi observada sem a inserção do pesquisador. Inicialmente, o site foi analisado por inteiro, observando-se tanto o que era produzido pela equipe do veículo, quanto o que era produzido pelos leitores, como comentários nos textos. Os comentários feitos em todos os textos publicados ao longo do ano foram contabilizados e, considerando apenas comentários feitos até 31 de dezembro de 2013, selecionou-se e a notícia mais comentada de cada um dos 13 temas. Tema

Título

Data

Comentários

Arte e cultura

A história real das bonecas

31/01/2013

14

Astronomia

Como nascem os planetas

27/03/2013

35

Bichos

Revoada de descobertas

24/06/2013

44

Olá, bicharada!

19/11/2013

44

Física

Gira, gira, bambolê

15/08/2013

11

História

Silva, Leão, Oliveira...

29/11/2013

40

Literatura

Saudoso poetinha

14/10/2013

4

Matemática

Ciência e bola no pé

12/06/2013

11

Meio ambiente Lixo das profundezas

07/08/2013

35

Plantas

Alerta verde

25/06/2013

21

Pré-história

Pequeno gigante

04/09/2013

22

Química

Visual versátil

25/07/2013

14

Saúde

Lancheira saudável

22/07/2013

52

Tecnologia

Transmissão de pensamento

30/09/2013

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Tabela 1. Títulos das notícias mais comentadas de cada tema publicadas na CHC On-line em 2013.

O tema Bichos teve duas notícias com o mesmo número de comentários e ambas foram analisadas. Assim, ainda que a CHC On-line tenha 13 temas, foram avaliados comentários de 14 notícias, o que resultou

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num universo de 350 comentários. Consideramos como notícias elegíveis para análise somente aquelas que continham mais do que três comentários (MCMILLEN, 2013).

A mineração de textos Aranha e Passos (2006:1) dizem que a mineração de textos “consiste em extrair regularidades, padrões ou tendências de grandes volumes de textos em linguagem natural, normalmente, para objetivos específicos”. A técnica auxilia na descoberta de informações desconhecidas que estão presentes no texto e permite que o pesquisador descubra padrões, associações e regras e realize análises qualitativas ou quantitativas em documentos de textos. Uma das análises é a categorização dos textos, que funciona de modo similar à catalogação de livros em uma biblioteca. No estudo dos comentários da CHC On-line, as categorias foram definidas com base em estudos semelhantes (MCMILLEN, 2013; BORTON, 2013) e adaptadas a partir de observações feitas durante a netnografia silenciosa. Para codificar os textos, foi utilizado o software Qualitative Data Analyses (QDA Miner), da Provalis Research (LEWIS e MAAS, 2007). Com isso, foram definidas quatro categorias contendo, no total, 11 códigos: Opinião

Positiva Negativa

Interatividade

Interação com outro leitor Interação com autor /veículo / pesquisador

Expressão pessoal

Dúvidas Identidade pessoal Espiritualidade Elaboração Objeção

Ensino formal

Aluno Professor Tabela 2 . Códigos usados para a análise dos textos mais comentados na CHC On-line em 2013.

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Obtivemos, também, informações sobre as estatísticas de acesso do site que serão expostas junto aos resultados. Tais informações foram cedidas pela editora da CHC On-line Catarina Chagas e produzidas pela empresa de comunicação digital Loja Interativa, responsável pela manutenção da página da CHC2.

Resultados Os dados de acesso descrevem o período entre 1° de janeiro de 2013 e 31 de dezembro do mesmo ano, momento em que o site recebeu 1.361.963 visitas, sendo 1.172.533 visitas únicas – número de diferentes internautas que acessaram a página (Google Analytics, 2014). Cada visita teve uma duração média de 2 minutos e 21 segundos e acesso a 2,93 páginas em média. Boa parte das visitas ocorreu no período do ano letivo e o acesso ao site caiu nos meses de janeiro e julho, em que a maioria das crianças estava em férias.

Gráfico 1: Número de acessos ao site da CHC On-line por mês durante o ano de 2013.

Como resultado da netnografia silenciosa, observamos a presença de comentários de cunho religioso. Um exemplo está no texto “O que diz a teoria do ‘Big Bang’”, publicado no Blogue do Rex no dia 25 de julho de 2012 e produzido em resposta à pergunta de uma leitora, que enviou para a revista a dúvida que deu o título ao texto. Ainda que não esteja dentro do recorte temporal escolhido para este trabalho, tal texto exemplifica a influência da religião ou espiritualidade na aprendizagem de ciências: dos 98 comentários presentes no texto e feitos por leitores diferentes, 20 declararam não acreditar na teoria exposta e sim na forma como a Bíblia descreve o surgimento 2 Informações cedidas por e-mail pela editora da CHC On-line Catarina Chagas no dia 11 de fevereiro de 2013

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do universo. Já na análise dos textos de 2013, observamos grande quantidade de erros de português e a limitação de algumas crianças para expressar seus pensamentos por meio da escrita. Muitos ainda estão no início da vida escolar, o que justificaria a dificuldade em escrever corretamente, mas fica claro o quão difícil é o processo de formular uma frase para expor sua opinião, como no comentário a seguir feito no texto “É pau, é pedra”: “Estimado Sofia Moutinho Eu sou Welington E Leandro nós leu o seu Texto que nós” Também identificamos o uso de termos e itens comuns à linguagem usada na internet, como a hashtags, elemento representado pelo sinal tipográfico de cerquilha e inicialmente usado pela rede social Twitter para marcar palavras-chave das postagens. A ideia era transformar essas palavras-chave em hiperlinks dentro da rede, permitindo que fossem indexáveis a mecanismos de buscas para internautas que quisessem ler postagens sobre aquele tema. Entretanto, as hashtags passaram a fazer parte de outras redes e muitas vezes são usadas sem propósito de catalogação da postagem, mas apenas como expressão de sentimentos do internauta. É possível encontrar um exemplo em comentário feito na notícia “Tchau, Sistema Solar!”: “Quero ser astrônoma quando crescer e adoro ver as matérias da CHC sobre ciências e astronomia! #Amei #A #Matéria” De acordo com Androutsopoulos (2007) citado por Androutsopoulos (2011), a linguagem usada na internet pode ser definida como uma língua vernacular, escrita além da educação ou controle de profissionais - como professores, por exemplo. Ela é focada na interação com o outro e é não planejada e espontânea. Porém, é preciso compreender como essa linguagem influencia a forma como as pessoas escrevem fora da rede, principalmente quando tratamos de crianças em idade escolar. Além disso, mesmo que usem a linguagem característica da internet, alguns leitores escrevem em formato de carta do leitor, com data, nome e cidade, como na notícia “Salvem o cachorro-vinagre!”, que conta com diversos comentários semelhantes ao exemplo a seguir:

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“Prezada Camille Dornelles: Li a notícia do cachorro vinagre e gostei de saber que ele preferia morar em árvores. Mas fiquei triste ao saber que este cachorro foi abandonado. Os animais abandonados não tem moradia, comida, tratamento médico quando ficam doentes e acabam sofrendo e tendo que procurar alimento sozinho. Eu aprendi a não maltratar os animais e não abandoná-los. Gostei muito dessa notícia, espero que continuem escrevendo reportagens criativas! Leticia Muraro, 9 Anos, Estudante, Curitiba-PR” Tal prática se repete em diversos comentários da mesma notícia e algumas crianças dizem que estão fazendo um trabalho de carta do leitor para a disciplina de Língua Portuguesa. Ainda que seja uma forma diferente de trabalhar o conteúdo, o hábito pode afastar a criança da linguagem usada na rede. Identificamos, também, outros elementos que mostram que os textos da CHC On-line servem de apoio ao ensino formal. A notícia “Lancheira saudável” recebeu 52 comentários, sendo 20 feitos por alunos do Centro Educacional Sesi 156, em São João da Boa Vista, São Paulo. Os comentários foram feitos no mesmo dia e muitos declararam estar lendo o texto porque estavam realizando um trabalho com a temática Alimente-se bem, além de comentarem que aprenderam a fazer cartas do leitor com a CHC: “Ola pessoal da CHC ! Me chamo Ana Carolina , tenho 11 anos e Estudo na Escola Sesi de São João da Boa Vista – SP , pela primeira vez escrevo aqui , aprendi a escrever Carta – de – leitor na escola, com a revista de voces. Nós fizemos um projeto sobre a Alimentação Saudavel , fizemos uma excurção para Aguas Da Prata , e aprendemos como funciona , as embalagens , se a agua é confiavel etc.. Agora eu queria sugerir para voces publicarem sobre o perigo do Glúten , e como isso poderia acontecer com as pessoas que não podem comer as coisas que contem Glúten , espero a resposta .. Obrigada e abraços …

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Por meio dos dados gerados pelo QDA Miner, observamos que os leitores expressam uma visão positiva dos textos. O código mais presente foi de opinião positiva, sendo o mais frequente em 5 dos 14 textos analisados. Tema

Número de comentários

Código mais frequente

Arte e cultura

14

Positivo (79%)

Astronomia

35

Positivo (77%)

Bichos

44

Elaboração (20%)

44

Interação veículo (45%)

Física

11

Identid. pessoal (73%)

História

40

Positivo e Dúvida (35%)

Literatura

4

Interação veículo (75%)

Matemática

11

Identid. Pessoal (72%)

Meio ambiente

35

Interação veículo (71%)

Plantas

21

Identid. Pessoal (81%)

Pré-história

22

Positivo (82%)

Química

14

Elaboração (57%)

Saúde

52

Interação veículo (96%)

Tecnologia

3

Positivo e Objeção (75%)

Tabela 3. Código mais frequente de cada matéria mais comentada por tema na CHC On-line em 2013.

Ainda que, durante a netnografia silenciosa, tenha sido identificado uma notícia com grande quantidade de comentários marcados por espiritualidade e temática religiosa, não detectou-se a presença do código Espiritualidade nos textos analisados no QDA Miner. É possível que isso ocorra por causa da temática do texto identificado durante a netnografia, que aborda o surgimento do universo e que faz parte da doutrina de diversas religiões – muitas, em divergência com o pensamento científico. Segundo uma pesquisa feita em 2005 pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística e citada por Carletti e Massarani (2011), 89% dos brasileiros acreditam que o criacionismo deveria ser ensinado nas escolas e 75% acham que o ensino da teoria da evolução deveria ser substituído pelo criacionismo. Além disso, 31% acreditam que o homem foi criado por Deus

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em sua forma atual e, dos 63% que acreditam que o homem foi se desenvolvendo ao longo de milhões de anos, apenas 9% acham que não há envolvimento divino em sua criação. Mesmo sendo feita com adultos, a pesquisa reflete o pensamento majoritário da sociedade, o qual influencia o pensamento infantil. Como próximos passos dessa pesquisa, pretendemos realizar uma análise do Clube do Rex, rede social da CHC On-line¸ para verificar se o comportamento das crianças em um ambiente não exposto aos professores e em que têm maior autonomia sobre o conteúdo postado difere ou não da forma como se comportam ao realizar comentários nas matérias.

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PRODUÇÃO AUDIOVISUAL EM FAVELAS: Cafuné na laje, novas representações e olhares sobre o Jacarezinho Karla Alessandra Florencio Suarez kfsuarez@gmail.com Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Taís Manoel de Amorim tais.amorim.tudo@gmail.com Faculdades Integradas Hélio Alonso

Resumo O artigo em questão apresenta o trabalho desenvolvido pelo Cafuné na laje, coletivo de produção audiovisual localizado na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio de Janeiro. A fim de destacar os aspectos ligados a horizontalização do acesso aos meios de produção comunicacional, o trabalho analisa o impacto da atuação do coletivo na ressignificação da representatividade de espaços populares, sob a ótica e narrativa da população local.

Palavras-chave Comunicação comunitária; Representações; Produção audiovisual; Favela; Democratização.

Introdução Ainda que centralizados nos oligopólios comunicacionais, os meios de produção audiovisual vêm passando por um processo – em continuidade e persistência - de horizontalização. O aumento do acesso às ferramentas de produção de conteúdo imagético (smartphones, câmeras digitais) e às plataformas de divulgação e propagação audiovisual (Youtube, Vimeo, redes sociais) são fatores que

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contribuem para que este processo esteja em uma crescente nos espaços populares. Como propõe Milton Santos, “cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente” (Santos, 1996:273). Para o autor, a importância de estudar os lugares reside na possibilidade de captar seus elementos centrais, suas virtudes locacionais de modo a compreender suas possibilidades de interação com as ações solidárias hierárquicas. É no lugar – em nosso caso, na favela do Jacarezinho, na região metropolitana do Rio de janeiro - que a cultura vai ganhar sua dimensão simbólica e material, combinando matrizes globais, nacionais, regionais e locais. Neste contexto, há a possibilidade de reconstrução da representação simbólica nestes/destes espaços e o desenvolvimento de um processo de democratização aos meios de produção cultural e comunicacional através da facilitação do acesso às novas tecnologias. Rodeada de discussões acerca do real poder de democratização da comunicação por conta das dificuldades de acesso ou falta de melhor distribuição e qualidade do acesso pela população, além de questões ligadas a alfabetização sobre o uso das “novas tecnologias”, a internet proporcionou certa mudança nos esquemas clássicos descritivos da comunicação mediada por dispositivos eletrônicos. Para a comunicação comunitária e alternativa, significou o aumento da possibilidade de produção e consumo contra-hegêmonico de informação, proporcionando, dessa forma, a possibilidade da criação de outras narrativas sobre determinados espaços populares. Este trabalho toma como objeto empírico o Coletivo Cafuné na laje, movimento independente de arte-educação atuante no Rio de Janeiro, que lança mão da criação artística, tendo o cinema e a fotografia como principais linguagens para a produção audiovisual, a fim de retratar a realidade da favela do Jacarezinho, local onde está inserido. Através da análise do trabalho desenvolvido pelo Cafuné na laje, pretendemos pesquisar como a produção audiovisual comunitária pode criar novas representações sobre o território e a população local. Entendemos que a partir deste cenário propõem-se a discussão de como a eminente democratização do acesso aos meios de produção audiovisual pode dar possibilidade de construção de

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novas narrativas a partir do olhar dos próprios moradores sobre seu território e suas vivências. Para este artigo, foram analisados os filmes produzidos e publicados pelo grupo, em seu canal no YouTube, entre agosto de 2013 e agosto 2014, além dos cursos, oficinas, debates, e a participação em eventos e mostras de trabalhos para comunidade ocorridos nesse período. Foi levado em consideração o histórico do grupo, sua proposta de trabalho e desenvolvimento coletivo. É necessário que se contextualize neste trabalho o conceito adotado de comunicação comunitária para esta pesquisa, aqui representado pelo trabalho desenvolvido pelo Cafuné na laje. Sabemos que a comunicação comunitária surgiu da necessidade de democratizar a informação, sobre ela a pesquisadora Peruzzo descreve “[...] se caracteriza por processos de comunicação baseados em princípios públicos, tais como não ter fins lucrativos, propiciar a participação ativa da população, ter propriedade coletiva e difundir conteúdos com a finalidade de desenvolver a educação, a cultura e ampliar a cidadania. Engloba os meios tecnológicos e outras modalidades de canais de expressão sob controle dos movimentos e organizações sociais sem fins lucrativos. Em última instância, realiza-se o direito à comunicação na perspectiva do acesso aos canais para se comunicar. Trata-se não apenas do direito do cidadão à informação, enquanto receptor – tão presente quando se fala em grande mídia –, mas do direito ao acesso aos meios de comunicação na condição de emissor e difusor de conteúdos. (PERUZZO, 2006, p.9-10)”.

“Novas tecnologias” e barreiras pela democratização do acesso aos meios de produção comunicacional: novos olhares sobre as favelas O avanço da internet foi um dos responsáveis pelas alterações significativas nas formas de sociabilidade por todo o mundo, porém de fato ainda não dissipou o paradigma entre visibilidade midiática e existência política, que ainda restringe a divulgação de outras narrativas sobre diversos assuntos. A demanda por apropriação do conhecimento sobre as novas tecnologias e o acesso as suas ferramentas, tanto os conhecimentos técnicos como seus instrumentos de organização política específicos, tem sido, pauta frequente para comunidades e movimentos sociais das mais diferentes causas e

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territórios. Visibilizar-se, nesse contexto, não significa apenas saber narrar outras versões dos fatos, mas fazer com que determinados problemas sejam reconhecidos mesmo por aqueles que não os sofrem diretamente e que outras narrativas possíveis sejam verossímeis. Para isso, o uso da internet e das chamadas “novas tecnologias” tem se mostrado essenciais para a comunicação comunitária e suas pautas. A internet tendo como uma das suas características definidoras sua arquitetura descentralizada1, a qual permite a coexistência de múltiplas fontes de emissão, vem se mostrando com um potencial de divulgação e troca de outras narrativas e conhecimentos possíveis sobre o fato. Vem sendo produzidos então novos modelos explicativos e descritivos no âmbito da produção acadêmica recente a respeito da entrada da comunicação alternativa/popular nas redes virtuais, enfatizando o aumento das possibilidades de produção e consumo contra-hegemônicos de informações. Ao mesmo tempo, muitas têm sido as contribuições na reflexão sobre os desafios e limitações desse cenário como, por exemplo, as problemáticas advindas do fato de que o ambiente virtual não está livre dos interesses e influências do grande capital ou a questão do acesso limitado à rede (“exclusão digital”), não apenas do ponto de vista quantitativo, mas também do qualitativo. No Brasil segundo pesquisa realizada pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC-BR) (2012)2 – sobre o uso de tecnologias da informação e comunicação – 60% dos domicílios não contam com internet (exclui-se desse dado o aceso via telefone celular). Nas áreas rurais, esse percentual sobe para 90% e nas urbanas cai para 55%. Ocorre do ponto de vista qualitativo, que paralelamente ao desen1 Outro destaque, com relação ao debate sobre os limites da internet e sua arquitetura descentralizada, é a ascendência de grandes empresas, como Facebok e Google, na gestão da circulação dos fluxos informacionais que estimulam e priorizam – logicamente com base em seus interesses – determinados fluxos em detrimento de outros (tal como acontece na filtragem de conteúdos que recebemos em nossos perfis em redes sociais). 2 O mesmo estudo mostra que tanto o acesso à internet quanto a posse de computador de mesa ou portátil é sempre diretamente proporcional ao nível de renda familiar – somente 3% das famílias com renda de até um salário mínimo tem acesso à internet fixa (embora 12% das famílias com essa faixa de renda tenham declarado utilizar diariamente a rede por meio de telefone celular).

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volvimento da rede, o debate sobre a “exclusão digital” passou a compreender aspectos que não se restringem necessariamente à extensão ou abrangência territorial dos recursos tecnológicos que garantem o acesso. Passam a ter maior peso na discussão também outros tipos de desigualdades como, por exemplo, a relação custo/qualidade de conexão em determinadas regiões; a distribuição desigual de conhecimentos para o manuseio de equipamentos eletrônicos – levando em conta aspectos não só de renda, mas também educacionais e geracionais (MARQUES, 2012, p. 7). De fato, portanto, o advento das novas tecnologias não assegura, por si só, o direito amplo e irrestrito à comunicação. A democratização3 da comunicação exige também uma redistribuição do acesso aos meios. Sabendo que, entretanto, apenas garantir o acesso não basta. Um segundo passo é garantir também a “alfabetização” da população no uso dessa nova mídia. É preciso que a população tenha as competências e faça uso dos instrumentos tecnológicos necessários para produzir conteúdo de qualidade na internet. No entanto, alguns teóricos como Kucinski (2011), em coro com Pinheiro(2006), acreditam que as novas tecnologias - “baratas e livres do controle do grande capital” - permitem que qualquer um possa modificar, questionar e desconstruir os conteúdos veiculados. Sendo assim, a grande novidade está na possibilidade da criação de vários pontos de protagonismo. As chamadas “novas tecnologias” permitem a construção de várias estéticas e formas distintas de representação. Abrem a possibilidade de que se lançando mão de instrumentos (como celulares, computadores) os indivíduos, organizados em grupos ou não, apresentem suas ideias, suas apresentações artísticas, suas versões da realidade e os acontecimentos nos diversos territórios (em escalas maiores ou menores). Neste contexto, a favela4, quase sempre representada5 pelos 3 Como sugere Mouffe (2003, p.14), a característica democrática “pode apenas ser dada pelo fato de que nenhum ator social pode atribuir a si mesmo a representação da totalidade e assim alegar ter o ‘domínio’ deste fundamento”. 4 Como sugere Mouffe (2003, p.14), a característica democrática “pode apenas ser dada pelo fato de que nenhum ator social pode atribuir a si mesmo a representação da totalidade e assim alegar ter o ‘domínio’ deste fundamento”. 5 Sobre a representação Tomaz Tadeu da Silva (2004) escreve que “é, como

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grandes veículos de comunicação como o lugar da violência6 , da desordem, do caos, aquilo que deve ser excluído da cidade e não faz parte da mesma, o que está fora do que é adequado, agora cria outras narrativas e formas de representação para si através de seus veículos de comunicação comunitárias, seus coletivos e grupos organizados ou mesmo da visão individual de um morador que retrata seu dia a dia com seu celular e disponibiliza nas redes sociais e nos mais diversos canais presentes na internet. Essas iniciativas voltadas para efetivação da democratização da comunicação, conscientes ou não, trazem consigo uma série de potencialidades na medida em que permitem a elaboração de repertórios representacionais alternativos aos propostos pela grande mídia. Embora, as grandes corporações ainda controlem em larga medida a produção de representações e discursos sobre a favela. Essa é uma realidade própria do novo século, que a internet trouxe, com grandes modificações e potências ainda não definidas. Esse processo vem alterando de forma profunda a realidade na qual vivemos, em todos os sentidos, ainda que seja um processo ainda em curso e com muito pela frente para acontecer.

Cafuné na laje: novas representações sobre a favela do Jacarezinho O Coletivo Cafuné na laje (2012) é uma facilitadora independente, voltada aos moradores de espaços populares, (favelas, quilombos, assentamentos, áreas ribeirinhas e etc.) crianças, adolescentes e professores da rede de ensino escolar. Sua atuação é realizada através da criação de eventos culturais, oficinas de fotografia, vídeo e produção de filmes de baixo custo, entendendo tais instrumentos como dispositivos de participação e protagonismo da criança e do jovem, na preservação e construção da memória do seu território. O projeto busca contribuir diretamente com a reflexão sobre a educação, o acesso às artes e as novas mídias voltadas aos moradores de espaços populares e a qualquer sistema de significação, uma forma de atribuição de sentido” e como tal “é um sistema linguístico e cultural: arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder”. 6 As clássicas representações midiáticas das favelas nos últimos 30 ou 35 anos estabelecem associações diretas entre estes territórios e o fenômeno da violência nos grandes centros (ASSIS; MINAYO; NJAINE; SOUZA; 1997 apud AMARAL FILHO, 2008, p.81).

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possibilidade da utilização dessas ferramentas no ensino educacional. Os integrantes do Cafuné na Laje entendem a educação como um processo inacabável, atemporal, possível e viável de ser realizado em qualquer ambiente, desde que sejam respeitados todos os desejos, histórias, medos, anseios, acasos e incertezas existentes em todos os indivíduos e processos sociais. Mais do que um Coletivo, o Cafuné na laje é uma ideia a ser seguida, reinventada por qualquer um. O espaço é aberto para aqueles que se identificam com a proposta. São desenvolvidas duas mostras de filmes no mês – sem data fixa – As exibições são feitas numa laje cedida por algum morador parceiro e em algum local público (quadras, praças e ruas). Das exibições realizadas nas lajes, as crianças escolhem um filme, além da exibição dos curtas Cafuné na Laje. Jacarezinho, Honório Gurgel, Fumacê, Macacos, Bandeira 1 e Manguinhos foram as favelas onde os curtas Cafuné na Laje foram exibidos, até o momento. Quando convidados a ir aos espaços, o coletivo realiza oficinas de cinema de baixo custo, que chamam de “cinema brincante”. As pessoas do local são estimuladas a realizarem um roteiro a partir de brincadeiras e palavras chaves, logo em seguida, inicia-se a gravação do filme. Como o tempo de pós-produção é mais longo, a exibição não ocorre no mesmo dia, porém, esse se torna um dos estímulos para a volta ao local, que de certa forma, apresenta uma forma de convivência voltada a partir da afetividade, da vida pelo encontro e do retorno. Para sustentar a iniciativa, o coletivo opta por prestar serviços a partir da temática educacional, como: produção de filmes que contribuam para a temática educacional; realização de eventos culturais - nos espaços populares e instituições de ensino - voltados ao entretenimento educativo e reflexivo; criação de oficinas de foto e vídeo em escolas, universidades, instituições e coletivos; editais públicos; construção de grupos de estudos e pesquisa sobre o fenômeno educacional e a utilização de novas mídias estimuladoras neste processo. Léo Lima, idealizador do projeto e fotógrafo do Imagens do Povo7 , participa de diversos eventos que debatem temas como produção

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7 O Programa Imagens do Povo é um centro de documentação, pesquisa, formação e inserção de fotógrafos populares no mercado de trabalho. Criado pelo Observatório de Favelas alia a técnica fotográfica às questões sociais, registrando o cotidiano das favelas através de uma percepção crítica, que leve em conta o respeito aos direitos humanos e à cultura local.


audiovisual comunitária e em favelas, pedagogia, arte-educação e democratização da comunicação, como o 1º Seminário Internacional de Psicopolítica e Consciência, realizado na Escola de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). As produções feitas pelo Cafuné na laje são criações coletivas. Seus cenários são sempre as ruas e casas da favela e seus personagens são sempre interpretados pelos moradores locais. Não usam figurinos e nem contam histórias que não poderiam estar inseridas em seu cotidiano mesmo nos filmes com fábulas e personagens imaginários como heróis e monstros. A trilha sonora também está ligada ao cotidiano local com músicas de cantores como Criolo, Emicida, sambas e funks. A descrição dos filmes também fazem sempre referências aos locais na favela. Os filmes, em geral, tratam de temas do cotidiano, como o futebol, presente em curtas como Eu não vou para Copa, A festa e É o Mengão, filme roteirizado pelas próprias crianças que o protagonizam, gravado com um celular e editado em um programa não profissional, o Videopad. Os nomes dos personagens também são daqueles presentes no território como Kethlen, Ingrid, Sebastião, Douglas e Michel. Propostas de roteiro também são extraídas do dialeto das crianças moradoras do Jacarezinho, como em O Plano, roteiro que teve como disparador central as palavras bola, Dona Maria, pique pega e queimado. Mesmo em curtas onde são abordados a ludicidade e imaginação do universo infantil, como nos filmes O Super Preguiçoso e Beco sem saída, as ruas, os moradores e as imagens reais estão presentes. Estão presentes as lajes, os becos, as vielas, o sofá, a vizinhança, os gatos e cachorros, os canos aparentes, as brincadeiras, as músicas. Suas produções, com forte ligação territorial e afetiva com o espaço onde são desenvolvidas, demonstram a possibilidade de criação de novas narrativas sobre o território e novos olhares possíveis sobre o cotidiano e as histórias existentes nas favelas e espaços populares. Torna-se possível assim a produção de novas representividades que, em sua maioria, caminham de encontro ao que é produzido pela grande mídia e pelo fluxo hegemônico de informação.

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Considerações finais Analisando caso como os do Coletivo Cafuné na laje podemos perceber como a crescente, ainda que com muitas controvérsias e batalhas a serem travadas pela frente, democratização do acesso aos meios de produção comunicacional tem proporcionado a criação e divulgação de novas falas possíveis sobre determinados temas. Sobretudo o avanços das chamadas “novas tecnologias” vem abrindo possibilidade que, até então, não era possíveis da criação de outras representividades e narrativas para além dos grandes veículos e mídias. De fato muito ainda temos que caminhar para uma real e efetiva democracia comunicacional e horizontalização do acesso aos meios de comunicação, porém um caminho já foi aberto e a discussão e os desafios estão postos. Projetos como o objeto analisado neste trabalho são fatores determinantes para os avanços que devemos promover. Através das suas produções, da divulgação de seu produto final e do papel que exerce em colocar crianças e jovens como protagonistas de suas próprias histórias e criações, o Coletivo Cafuné na laje promove a possibilidade de construção de novas narrativas e representações sobre a favela do Jacarezinho, ao expor e resignificar, segundo a vivência territorial dos produtores, os aspectos culturais presentes na realidade de espaços populares, em contramão à representação corriqueira feita pela grande mídia.

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VOCÊ NÃO TÁ ME OUVINDO? Uma pesquisa sobre o ensino destinado aos deficientes auditivos Juliana Pimenta Nogueira julianapnog@gmail.com Universidade Federal Fluminense

Resumo A matéria trata dos desafios da educação para deficientes auditivos. A partir de dados da Prefeitura do Rio de Janeiro, da Organização Mundial da Saúde e do Censo Demográfico de 2000 foi evidenciada o quão crítica é a inclusão de surdos no cotidiano escolar. Além disso, a própria inclusão foi debatida. É necessário incluí-los em escolas regulares ou o progresso escolar é mais eficiente, nesse caso, se houver um tipo de educação especializada? Duas deficientes auditivas, uma professora de LIBRAS(Linguagem Brasileira de Sinais), uma professora da rede pública de ensino e um dos diretores do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) foram entrevistados e expressaram suas diferentes opiniões sobre o tema.

Palavras-chave Educação; surdos; LIBRAS; inclusão.

Introdução Os debates sobre a educação no Rio de Janeiro não se esgotam. Manifestações recentes estouraram nos principais pontos da cidade. No entanto, pouco se fala sobre a educação especial. Só a rede municipal de ensino do Rio de Janeiro abriga 11.840 alunos com deficiência, segundo análise divulgada pela Prefeitura em outubro do ano passado. Os surdos/deficientes auditivos estão incluídos nessa parcela. A surdez ou hipoacusia é um termo que serve para definir a perda

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auditiva. Essa deficiência pode vir desde o nascimento, ou pode ser desenvolvida ao longo dos anos. No Brasil, segundo censo realizado pelo IBGE em 2012, existem 9,7 milhões de surdos. Já a OMS (Organização Mundial de Saúde) divulgou em março que há uma estimativa de que, no mundo, 360 milhões de pessoas sofram com perda auditiva incapacitante. As desigualdades que envolvem o aprendizado dos deficientes auditivos são retratadas nos números do Censo Demográfico de 2000, o qual revelou que apenas 3% dos surdos completam o ensino médio no país e aproximadamente 800 mil estão excluídos do sistema escolar. Diante desses dados, como proceder?

Educação básica Jaqueline Melo, de 25 anos, é surda desde o nascimento e frequentou uma escola de surdos em São Paulo, onde aprendeu a Libras e se formou no Ensino Médio. Ela diz que os principais problemas encontrados no dia-a-dia são causados pela dificuldade de se comunicar. – Para mim, é muito complexa a leitura do português, já que poucas coisas são sinalizadas em Libras. As relações sociais também são mais complicadas, já que pouca gente consegue conversar pela língua de sinais – afirma. Denise Gonçalves, de 44 anos, também nasceu surda e quando chegou à idade escolar seus pais a colocaram em um Ciep (Centro Integrado de Educação Pública), colégio da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro. Ela tinha aula com crianças ouvintes e, por ser uma escola regular, Denise apresentava muitas dificuldades em entender o conteúdo repassado. – Quando entrei para quarta série, saí do colégio porque eu não estava conseguindo aprender nada, nem o português. Até os 19 anos, Denise continuava sem saber português e não conhecia a língua de sinais. Durante esse intervalo de tempo, ela ficara com sua comunicação comprometida e suas relações se davam, basicamente, através de mímicas.

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Língua de Sinais O caso dela é muito comum, como aponta a Federação Mundial de Surdos (WFD). Apenas cerca de 1% a 2% dos surdos obtêm a educação em língua de sinais que, especialmente para os surdos de nascença, é a principal forma de comunicação. Márcia Cirlene é professora de Libras e Ensino Bíblico no Ministério Apascentar de Nova Iguaçu e decidiu dar aula de Libras para facilitar a comunicação dos surdos com os ouvintes e para que eles pudessem aprender sobre a Bíblia. Márcia atribui à má divulgação o pouco conhecimento que a sociedade tem da Libras. – Tanto o governo quanto os cursos e escolas de Libras falham na divulgação das aulas e até mesmo na divulgação da língua, o que intensifica a exclusão dos surdos – critica Márcia. A importância da Língua de Sinais para os surdos é descrita no artigo 2 do Capítulo 1 do Decreto nº 5.626 da Constituição: “considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais - Libras”. O idioma pode variar de país para país. No Brasil, o sistema é a Libras (Língua Brasileira de Sinais), que surgiu da mistura da Língua de Sinais Francesa – trazida por Huet, fundador da primeira escola de surdos no Brasil, hoje Ines (Instituto Nacional da Educação de Surdos) – com a língua de sinais brasileira antiga, já usada pelos surdos das várias regiões do país. Cada língua de sinais faz parte do patrimônio cultural de um país. Para preservar esse patrimônio são necessários o respeito e o reconhecimento da língua Em 24 de abril de 2002, foi promulgada a Lei 10.436, que estabelece a Libras como segunda língua oficial do Brasil. Doze anos depois da promulgação e da regulamentação da profissão de Intérprete de Libras, não há profissionais suficientes no mercado e pouco vem sendo feito para a divulgação da língua em âmbito nacional.

Libras nas escolas Renata Monsanto é professora há 32 anos e dá aulas no Colégio Cruzeiro Centro e na Escola Municipal São Tomás de Aquino. Renata

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não tem conhecimento da Libras e nem do decreto que prevê a obrigatoriedade do conhecimento da língua de sinais para professores da rede pública. O artigo 3 do decreto nº 5.626 afirma que “a Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. – Os alunos com comprometimento auditivo já são normalmente direcionados para escolas especiais. Nas escolas onde trabalho, não há a necessidade do uso dessa linguagem – explica Renata. Ela comenta a experiência com uma aluna alfabetizada em português e com apenas parte da audição comprometida. – Nunca tive aluno surdo. A única vez em que presenciei comprometimento auditivo na sala de aula foi de uma aluna que tem perda de parte da audição. A menina leva uma espécie de aparelho sem fio, preso na minha blusa e um receptor, que fica preso nos óculos dela. O aparelho é uma espécie de microfone que amplifica a minha voz para a aluna. Alexandre Xavier, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, faz parte da direção geral do Ines. Ele destaca que, nesse mesmo decreto, existe a prioridade de ter professores surdos ensinando Libras, inclusive nos cursos de formação de professores. Como no Brasil existem poucas pessoas surdas com formação superior, ainda há dificuldades de encontrar pessoas habilitadas para isso. – A legislação prevê que a Libras seja disciplina em cursos superiores, em especial na formação de profissionais de educação. Mas ela poderia ser ofertada, assim como existem experiências positivas de oferta, em algumas redes estaduais e municipais, de cursos gratuitos de idiomas (inglês, espanhol) para alunos da educação básica. Outro agravante, segundo o especialista, é que os cursos de Libras para professores em exercício ainda não existem em todos os municípios brasileiros. Mas ele afirma que o Ines colabora para a solução do problema produzindo vídeos, em Libras, que são encaminhados às escolas brasileiras e mantendo uma web TV em

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Libras (no endereço www.tvines.com.br). Além disso, todo semestre, o Ines oferta cerca de 500 vagas em curso presencial de Libras, realizado em sua sede, no bairro de Laranjeiras, na Zona Sul do Rio de Janeiro. – O reconhecimento dessa língua gestual promove a maior participação das pessoas surdas na sociedade. As principais barreiras residem na falta de informação acessível e na falta de intérpretes. Além disso, é necessária a existência de órgãos que ensinem essa língua aos deficientes auditivos – diz o especialista. As dificuldades do dia a dia Denise Gonçalves começou a aprender o básico da linguagem de sinais aos 19 anos. E, um tempo depois, começou a frequentar um curso para surdos. Sobre esse período, tem uma reclamação: – Nas aulas e nos cursos para surdos, a única disciplina que se aprende é a Libras. Eu não tive a oportunidade de aprender matemática, português ou história. Por um lado, ela não conseguia acompanhar as aulas nas escolas regulares e, por outro, as aulas para alunos surdos não tinham nenhum conteúdo além da Libras. – O que falta na educação de surdos são professores que saibam a linguagem de sinais. Assim eles poderiam passar um conteúdo relevante de modo que os surdos pudessem compreender – enfatiza Denise. Ela ainda comenta que as avaliações para os surdos deveriam ser feitas de modo diferente. – As provas que eu fazia na escola de surdos vinham com o enunciado em português e não em Libras, mas, em português, eu sou analfabeta. Os surdos alfabetizados somente em Libras costumam apresentar dificuldades para entender o português. Sendo assim, tarefas diárias como pegar ônibus, ir ao supermercado ou ao banco são atividades que exigem muito empenho. Talvez por isso, poucas empresas privadas mantêm programas de contratação de surdos para o mercado de trabalho. Jaqueline afirma que uma solução para esse

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problema é investir em escolas mais inclusivas: – Estudei em uma escola só de surdos onde não tive integração com ouvintes. Mas também ressaltou que, nas escolas regulares, não há a preocupação com a integração dos surdos. Amiga de pessoas ouvintes, ela pondera que os amigos têm que estar juntos na sala de aula para o aprendizado tanto da Libras quanto do português. Alexandre Xavier afirma que quanto mais gente aprender a Libras, mais chance os surdos terão de ser compreendidos, respeitados e bem atendidos nos serviços públicos. A convivência com quem fala línguas diferentes, destaca ele, é positiva para todos, surdos e ouvintes.

Classes mistas Quanto às aulas, a professora Márcia Cirlene considera impossível para um professor dar uma aula de qualquer disciplina para uma turma mesclada com ouvintes e surdos. Ela diz que o ideal seria promover aulas em dois turnos. – No primeiro turno, os alunos surdos e ouvintes assistiriam à aula com um professor e um intérprete para traduzir do português para Libras. No segundo momento, os surdos teriam um tempo para assimilar o que aprenderam e tirar dúvidas com o professor. A sugestão dada por Márcia já está prevista no artigo 22 do decreto nº5.626: “Os alunos têm o direito à escolarização em um turno diferenciado ao do atendimento educacional especializado para o desenvolvimento de complementação curricular, com utilização de equipamentos e tecnologias de informação”. Márcia exemplifica essa impossibilidade falando que também não há como um professor dar uma aula de geografia, por exemplo, em português e em inglês ao mesmo tempo. – Pensa-se em uma língua de cada vez – explica. Sendo assim, os alunos surdos precisam de um intérprete, já que a compreensão que eles têm da Libras é muito maior do que a do português. É a língua na qual eles foram alfabetizados.

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Em relação às instituições inclusivas, a professora Renata diz que, na escola do município em que trabalha, existem as classes especiais, com número menor de alunos. – No caso lá da escola são seis alunos por turma, e o ensino é individualizado. Na classe, estão presentes alunos com síndrome de down, autismo e outras deficiências. – Se na escola tivesse algum aluno surdo, ele seria dirigido para essa classe. Ela acrescenta que o deficiente auditivo só seria encaminhado para essa turma se, na escola, encontrasse alguém que soubesse a linguagem de sinais. Caso contrário, o aluno seria transferido para outro colégio. A professora ressalta que, em uma turma regular com 28 alunos, por exemplo, cada um apresenta dificuldades e níveis de compreensão diversificados. Incluir surdos nessas classes aumentaria ainda mais a disparidade, segundo ela, mesmo com a presença de intérprete. Ainda a esse respeito, Renata diz que, durante as aulas, a interpretação do português para a Libras pode até funcionar, mas o fato de os intérpretes não poderem passar o resto do dia com o aluno pode representar um problema. – Os alunos ficariam todos juntos na aula, mas na hora do recreio e em momentos de lazer eles não teriam integração com o resto da turma – argumenta.

Inclusão cuidadosa Alexandre Xavier diz que, em todos os modelos de ensino, é importante ter atenção à singularidade do surdo e à desejável convivência intercultural. – Um surdo numa classe de ouvintes em que apenas o intérprete sabe sua língua não está de fato incluído. Um surdo que se fecha em sua língua apenas com outros surdos também terá dificuldades de se socializar e de ser um cidadão pleno – explica. Ele afirma que o ideal é disseminar a língua de sinais para surdos e ouvintes, fazer com que os professores em geral aprendam língua

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de sinais em sua formação e criar espaços de convivência de surdos e ouvintes. Xavier também destaca que o Ines colabora muito na educação dos surdos. Ele ressalta que a antiga Escola de Surdos, “a partir de 1996, como órgão do Ministério da Educação, passou a ser considerada ‘centro de referência nacional na área da surdez’”. O Ines oferece desde escolarização básica (ensino infantil, fundamental e médio) até o ensino superior para surdos e ouvintes. Além disso, o instituto realiza atendimento em Audiologia (diagnóstico de perda auditiva) aberto à comunidade, explica Xavier. Na opinião dele, as políticas educacionais do Brasil deixam claro que a educação deve ser aberta a diferentes condições associadas à perda auditiva. Para ele, as escolas comuns devem ser abertas e acessíveis, com intérpretes, apoio pedagógico, professores capacitados na linguagem para deficientes auditivos e conscientes sobre a singularidade dos surdos. Ele acredita que essas escolas regulares estão aptas a receber bem alunos com aparelho auditivo e também surdos usuários de Libras que prefiram nelas estudar. No entanto, ele ressalta a importância da escola bilíngue, na qual Libras seja a língua de instrução para alunos com surdez severa e profunda.

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