Olhares sobre os espaços da cidade

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OLHARES SOBRE OS ESPAÇOS DA CIDADE



TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO DEZEMBRO DE 2012

ÉRIKA AKEMI OZAKO ORIENTAÇÃO: PROF. DR. ARTUR ROZESTRATEN



APRESENTAÇÃO Compreender uma cidade significa colher fragmentos. E lançar entre eles estranhas pontes, por intermédio das quais seja possível encontrar uma pluralidade de significados. (CANEVACCI, 1942, p. 35) Na impossibilidade de abranger o território metropolitano, considera-se que é possível uma aproximação à sua representação pela multiplicação de enfoques - vozes e olhares - com diferentes técnicas interpretativas. Neste trabalho, o tema da relação entre os espaços público e privado guia um estudo de caráter investigativo que promove, por fim, uma reflexão a cerca da apreensão da cidade.



PARÂMETROS INICIAIS Com base em métodos conhecidos, o trabalho foi iniciado por uma pesquisa bibliográfica centrada na relação entre cidade (com atenção aos espaços livres públicos) e sociedade. Em oposição ao estabelecimento de ordem ou hierarquia entre pensar e fazer, desenvolve-se simultaneamente um processo de aproximação ao objeto de investigação. Da sobreposição dos estudos, observa-se certo distanciamento entre teoria e vivência do espaço. O panorama constituído a partir das análises de autores como Richard Sennett e David Harvey aponta para o enfraquecimento dos espaços públicos como lugar político e de sociabilidade, consequência das mudanças no modo de produção, seguidas pela crescente necessidade e velocidade de deslocamento e a introdução de valores de consumo de mercadorias, imagens e cultura que fazem do homem contemporâneo passivo, individualista e intimista. Se esta é a imagem da cidade quando observada em sobrevoo, quando aproxima-se de seus fluxos constantes, é possível encontrar outras relações entre os indivíduos e o espaço. Para além do consumo passivo, há acontecimentos momentâneos que indivíduos estabelecem com o espaço pelo qual circulam e com demais caminhantes, ainda que sejam relações temporárias ou atreladas a eventos. Estudos que abarcam a escala do cotidiano, como o de Michel de Certeau, apresentam um discurso mais próximo à realidade encontrada no bairro.


Assim, quando observadas as relações entre o homem e o espaço em que transita, poderia ser redutor considerar que, pela alta velocidade com que aquele passa por este, teria havido somente um desinteresse pelo espaço. Pois se em parte houve um desinteresse, por outro lado, o movimentar-se pelo espaço seria também uma ação de escrever, constantemente, um texto na cidade que se constitui na experiência temporal entre seus limites, dados entre cheios e vazios. entre tais limites, o homem se aproveita de ocasiões que o espaço lhe oferece para manifestar a sua vontade de uso e apropriação, em manifestações que são individuais e pequenas, mas, no convívio com tantos outros praticantes de espaço, podem tomar grandes dimensões. Embora a cidade contemporânea tenha se afastado das expressões de vida comuns no passado, sua vitalidade não teria se perdido numa visão fatalista de declínio da vida pública. Os espaços livres públicos, onde a vida da sociedade se passa, participam da evolução da cidade no tempo. As transformações formais e funcionais que possam ter sofrido são camadas de tempo que se acumulam e solidificam a ligação afetiva de uma sociedade com sua cidade. Assim, na materialidade dos espaços são depositadas estórias, e a soma dessas constroem um valor emocional particular aos seus usuários.


METODOLOGIA É através das primeiras percepções advindas do processo de aproximação mencionado que passa-se a compreender a deriva enquanto método. Outra proposta à metodologia segura e habitual. Segundo a Teoria da Deriva de Guy Debord, esta é ligada a uma percepção-concepção do espaço urbano enquanto espaço a decifrar e descobrir pela experiência direta. Trata-se de deixar-se ir pelas solicitações do terreno e dos encontros que lhe correspondem. É uma proposição, distinta da metodologia segura e habitual e nas palavras de Massimo Canevacci, encontra-se que é preciso “desorientar-se” para ser receptivo ao novo: inserir a desorientação no interior dos próprios horizontes epistemológicos e emocionais, abandonar-se à perda, usufruir da própria perdição, remapear continuamente o nexo ecológico psique-território. A adoção deste procedimento projetual incerto, tateante, demanda em si a dupla criação na atividade artística do arquiteto pois, para além do projeto em si, faz-se necessário inventar os procedimentos de projeto. Sem a definição de estudos de caso pela cidade ou mesmo de trajetórias pré-definidas, parte-se então para a deriva pelo bairro.


A percepção do espaço urbano é formalizada por meio de anotações, imagens e mapas após o contato sensorial do território. A partir da vivência do espaço e desse conjunto de materiais reunidos, faz-se a reflexão e o entrelaçamento com outras referências bibliográficas que abordam questões inerentes à experiência direta. É o caso de Guy Debord, a respeito da imprevisibilidade e de como as solicitações do terreno influem sobre as escolhas no percurso; Susan Sontag, por apresentar tantas nuances da fotografia e do ato de fotografar (como a câmera permite à distância, atrever-se, atravessar, explorar e sob um aspecto utilitário, de testemunho - a foto que incrimina); Cristiano Mascaro, sobre a inibição de estar em um lugar estranho e o constrangimento de apontar a câmera para pessoas, invadir sua privacidade; e Jane Jacobs, porque os olhos para a rua são reais.


MAPAS O registro do percurso e o testemunho da experiência do andar em mapas requer a representação da flexibilidade espacial e dos acontecimentos urbanos operados em um recorte definido da cidade. Nota-se que, anterior a esta questão, já a representação de um objeto será sempre uma reconstrução aproximativa, mesmo porque o objeto da representação não pode ser a reprodução da própria cidade. E por cidade entende-se, simultaneamente, a presença mutável de uma série de eventos dos quais participa-se como ator ou espectador e o suporte, o espaço em que transcorrem tais eventos. A cidade também se constitui pelo conjunto de recordações que dela emergem assim que o nosso relacionamento com ela é restabelecido, como ao atravessar um espaço já percorrido. Caracteriza-se por sobreposições assim como a dinâmica urbana pode ser entendida como a sobreposição de camadas experimentadas. Para ilustrar essas questões, são feitas experimentações com o recurso da sobreposição de papel e a utlização de linhas e alfinetes.




Nos recortes, são representados as ruas percorridas e o mínimo do entorno que defnine o espaço apreendido pelo olhar. Na imagem acima são localizados lugares de interesse que foram encontrados ao longo das derivas por apresentarem dinâmicas distintas à simples passagem das ruas. O traçado do último percurso apresenta uma interrupção cujos limites são demarcados pelos alfinetes azuis. Neste trecho, não foi possível identificar o percurso realizado. Em um segundo momento, os alfinetes são explorados para acrescer ao mapa a informação da topografia e através da linhas, a representação da sobreposição dos percursos ganha mais expressividade. Neste sentido também são experimetados meios de representar a distinção de trechos, como os percorridos de carro, no terceiro percurso.







FOTOGRAFIA Ao fotografar, relaciona-se com a realidade de modo mais intenso do que a simples observação, distraída pelas incontáveis solicitações periféricas e externas ao objeto de estudo. (MASCARO, 1985, p. 26) Em um primeiro momento, é sobre este viés que a fotografia apresenta-se neste trabalho, complementando a experiência da deriva. A representação dos percursos e da topografia e as noções de distância e presença de elementos que destoam na paisagem através dos mapas é complementada pela fotografia, mesmo que esta seja apenas um fragmento do mundo real, pois é esta que transmite a identidade do lugar. E é justamente porque a fotografia é apenas um recorte de tudo o que o olho apreende e portanto, que ato de fotografar implica em escolhas, que as imagens derivadas do primeiro percurso apresentam-se como instrumento de reflexão. Em um exercício que poderia ser entendido como uma “meta-observação”, isto é, não mais dos espaços, mas do que destes foi capturado, para observar a si mesmo enquanto sujeito que observa o contexto. Questiona-se o que seria fotografar o espaço público. E, no caso de um percurso que permeia uma área residencial, homogênea, fotografar o espaço público significaria então criar imagens da rua?







Através das fotografias, percebe-se que o olhar percorre o espaço público propriamente dito, atravessa a delimitação de propriedade e permeia este espaço, que é privado mas pode ser apropriado pelo olhar. Interessa como se estabelece esta relação entre o espaço público e privado, como esta se alterou com o tempo em função de mudanças da sociedade até chegar a condição contemporânea. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos paráraios, nos mastros das bandeiras... (CALVINO, 1994, p.14-15) E ainda, citando Leonardo Benevolo: “As cidades brasileiras crescem muito rapidamente e, entre elas, São Paulo mais do que outra. A velocidade é tão grande a ponto de apagar, no espaço de uma vida humana, o ambiente de uma geração anterior: os jovens não conhecem a cidade, onde os jovens como eles, viveram os adultos”. Do que deriva o fato paradoxal de que as próprias lembranças sejam mais duradouras - seria possível dizer mais materiais - do que o próprio “cenário construído”. Neste ponto, a fotografia apresenta-se com outra função: a de revelar a história da trama urbana e revivar a memória de uma cidade oculta. Por sua contribuição no registro e documentação da arquitetura, é possível a utilização de imagens para analisar a transformação de arquiteturas e da cidade e interpretar a realidade.


E se a realidade contemporânea, na qual se observa o encerramento do indivíduo no domínio privado e seu retraimento como forma de reação inconsciente (GU, 2012) pode ser ilustrada a partir de imagens de uma casa, o levantamento iconográfico de uma família poderia então narrar de uma certa forma, como as transformações sociais repercutem na arquitetura e na construção da cidade até atingir a configuração atual.




CAIXA A partir das reflexões promovidas pelo entrelaçamento da leitura, da experiência da deriva e da produção do conjunto de materiais apresentado, o resultado do trabalho tem sua síntese expressa por meio de um objeto. Conforme a revisão do trabalho para o projeto de uma caixa, um último percurso é feito para costurar os percursos anteriores e o material produzido é então adaptado à caixa e apresenta-se com uma nova forma. A partir da construção de protótipos, define-se uma solução que contempla o partido do projeto, adequa-se a questões técnicas e atende a demanda da reprodução. A caixa visa proporcionar uma experiência análoga a do processo, expõe sua interpretação, ao mesmo passo que fornece a liberdade de experimentar seus elementos como convite para a interpretação do interlocutor.






CONSIDERAÇÕES FINAIS Todas as apreensões possíveis serão sempre parciais, tanto do ponto de vista da percepção quanto do ponto de vista de uma situação temporal e histórica a qual, paradoxalmente, limita-a, e torna-a possível. Os diversos enfoques sobre o mesmo fenômeno sempre apresentarão partes, fragmentos, trechos, recortes, mas nunca o próprio fenômeno em sua totalidade. (ROZESTRATEN, 2009) A transfiguração de uma metrópole - ou de qualquer outro tema - por meio de um número necessariamente limitado de fotos e mapas é sempre um ponto móvel inquieto -entre a interpretação do sujeito-pesquisador e a interpretação feita pelo leitor. De todo modo, não existe a objetividade de São Paulo, mas uma redução da cidade e, na transfiguração do território em um objeto, não haverá somente as categorias conhecidas, mas a subjetividade experimental do pesquisador, desperta por meio deste processo. Ao fim, este estudo promoveu um primeiro contato com áreas do conhecimento e um método até então inexplorados, solicitando múltiplas competências do arquiteto. Aponta para caminhos ainda mais abrangentes, multidisciplinares, e semeia o desejo de aprofundar e prosseguir com novas investigações.


BIBLIOGRAFIA BASSANI, Jorge (org.). PDP: Mapografia: IV Workshop Internacional RED_PUC. São Paulo: FAUUSP, 2012. BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo, Perspectiva, 2001. CARTIER-BRESSON, Henri. O momento decisivo. Rio de Janeiro: Bloch Editores n. 6, p. 19-25. CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 2004. DEBORD, Guy. Teoria da Deriva. Internatonale Situationniste, p.51-55 GU, Cristina Myung Sun. Disforia urbana e os espectros do anonimato na metrópole contemporânea. Trabalho Final de Graduação, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. JACOBS, JANE. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: WMF Martins Fontes Ltda., 2009. MASCARO, Cristiano Alckmin. O uso da imagem fotográfi-


ca na interpretação do espaço urbano e arquitetônico. Tese de Mestrado - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1985. QUEIROGA, Eugênio Fernandes. Espacialidades da esfera pública na urbanização contemporânea: o caso da megalópole do Sudeste. In.KAHTOUNI, S.; MAGNOLI, M.; TOMINAGA, Y. (Orgs.). Discutindo a Paisagem. São Carlos: RiMa, 2006. ROZESTRATEN, Artur. Representação do projeto de arquitetura: uma breve revisão crítica. Revista Pós, São Paulo, v. 6, n. 25, p. 252-270, jun. 2009. SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das letras, 1988. SERPA, Angelo. O espaço público na cidade contemporânea. São Paulo: Contexto, 2007. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 TRAMONTINO, Vania Silva. O espaço livre na vida cotidiana: Usos e apropriações nos espaços livres na cidade de São Paulo, nas áreas do Terminal Intermodal da Barra Funda e do SESC Fábrica Pompéia. Tese de Mestrado - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo: três cidades em um século. São Paulo: Cosac Naify, 2007.



AGRADECIMENTOS a Artur Rozestraten pelo modo como conduziu a orientação deste trabalho, apliando meus horizontes; a Myrna Nascimento e Camila D’Ottaviano pela participação na banca e pelas conversas que contribuíram no desenvolvimento deste estudo; a Emilio por todo o suporte no LAME e a Ricardo pela dedicação inestimável; a Marta Labastida e Cidalia Silva por tornarem a passagem pela EAUM tão rica e inspiradora e aos colegas do Atelier, especialmente a Laura e Catarina, por tornarem essa experiência a melhor possível; aos amigos que encontrei na FAUUSP, por tudo o que foi vivenciado neste percurso; aos que colaboraram especialmente neste trabalho: Miguel Falci, Juliana Henno, Bruno Zaitsu, Rafael Fuzitani, Izumi Gushiken, Pedro Câmara, cada qual a seu modo; a Caio da Quinta, pelo companheirismo e pelas preciosas conversas; a minha família pelo apoio incondicional; a Rodrigo Alves, pelo carinho e pelas palavras certas em cada momento.



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