Palavras desenhadas

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Ernani Balsa

Palavras

Desenhadas

2014


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Prefácio Não sei se são crónicas, artigos ou simplesmente escritos, o que aqui se segue. Ao longo dos anos tenho escrito, a maioria das vezes para auto satisfação, Não nego que esta timidez de intuitos é muitas vezes uma fuga ou um abrigo para o escritor que não confia totalmente no relevo que as suas palavras têm. Neste caso, estes textos, chamemos-lhe assim, surgiram de um repto de um amigo, para me responsabilizar por uma colaboração regular para o Boletim da APE – Associação (de antigos alunos) dos Pupilos do Exército, escola onde estudei na minha juventude, mas que para além da importância que teve no meu ensino, marca indelevelmente quem por lá passa, passando a constituir-se como uma segunda família, em certos casos, mesmo, primeira, tão fortes são os laços que lá se criam e que extravazam gerações e todos os preconceitos sociais, políticos, religiosos ou de simples consciência, irmanando todos os que por lá passaram com um halo de fraternidade e causa maior comum a todos nós. Aceitei e ao fim de quatro anos estas foram as minhas colaborações com essa publicação. Resolvi agora publicá-las, num âmbito forçosamente restrito, para que possam ler lidas por colegas e amigos e por todos os que aqui conseguirem chegar. Esta é uma recolha inacabada, pois em cada três meses, um novo escrito irá surgindo e assim esta publicação irá ganhando novas páginas, com novas letras desenhadas...



ernani balsa

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Indíce coincidências

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escrever coisa nenhuma

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escrever sobre nós e os outros

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balsa a mil tempos... nos silêncios da memória

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falar de política... sem falar de política...

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tempos de desesperança

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rosa, que é também maria

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pilão no feminino

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viagem no tempo

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histórias sem enrredo

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o síndrome da peste grisalha

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ensaio sobre a vida, que eu da morte nada sei...

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o tudo e o nada do tempo

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liberdade e jogos florais

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sonata de sol em mim

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coincidências

foi no dia do meu aniversário que publiquei um texto no meu Facebook e assim nasceu a ideia de vir a contribuir com crónicas avulso no nosso boletim. o texto chamava-se precisamente “coincidências”, para assinalar o acaso de ter sido nesse dia, em que completava sessenta e um anos, que, para os meus amigos e ex-condiscípulos do pilão, bem assim como outros amigos e conhecidos, abria uma pequena janela do meu mundo mais interior, por onde pudesse deixar passar algumas das minhas inquietações, dos meus sonhos, das minhas reflexões e da minha maneira mais íntima de ver o mundo. nem eu próprio sei se foi coincidência. estas coisas dos acasos acontecem e não vale a pena tentar atribuir-lhes motivos ou justificações. os espaços brancos, sejam eles pautados, quadriculados ou meramente vazios na sua imensa brancura sempre me atraíram para escrever e neles deixar um testemunho do meu pensamento. não é que seja o meu pensamento algo que eu considere essencial para os outros, mas essencial é certamente a necessidade que sinto em mim, de poder desenhar com letras, caracteres, palavras ou imagens as inquietações que me assaltam, porque isso é um sinal inegável de que estou vivo, continuo vivo e quero muito continuar vivo desde muito novo que uso esta ferramenta para expressar aquilo que, se calhar, não tenho a facilidade de testemunhar de outro modo. desde os tempos já longínquos em que estudava no pilão, carinhosa designação que a todos nos abraça, este expediente me persegue e alguns dos meus colegas de então lembrarão talvez a mania quase obsessiva que me perseguia já nesses idos anos da nossa juventude. considero que a palavra é das maiores riquezas que nos é transmitida, porque com ela temos a glória de nos podermos retratar e também debruçarmo-nos sobre aquilo que de mais importante existe à nossa volta, as pessoas e as suas histórias, os seus dramas, as suas capacidades e infortúnios ou apenas os traços que nos deixam gravados no olhar do nosso pensamento… sessenta e um anos não é muito nem pouco. nunca me antevi com esta idade, pois a cronologia das minhas primaveras ficou-se nos quarenta, que eu sempre considerei uma meta plenamente confortável e tangível, uma idade que nos distancia duma juventude ainda imberbe e não menos rebelde e nos dá a segurança dum estado adulto conseguido. por essa razão, a partir daí, a idade deixou de me fazer qualquer impressão e tornou-se irrelevante, porque sempre pude preservar a rebeldia que me faz falta, a inquietação que me impulsiona em cada dia que passa e a vital capacidade de poder pensar por mim mesmo, sem ter qualquer receio de ser incómodo, inoportuno ou excêntrico, desde que tudo o que expresse venha de dentro de mim e

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respeite o próximo e a sua identidade, independentemente das suas opções políticas, religiosas ou intelectuais e a sua condição social. a dignidade, apenas a dignidade das pessoas me importa e respeitá-la é respeitar-me a mim próprio. é caminhar cada vez mais convicto de que tudo pode ser desenhado com as palavras que vamos alinhando na nossa caminhada por este mundo, sem sequer termos a certeza se outro existe… o passar dos anos não me atormenta pelos sinais exteriores ou pelo peso dessa soma gradual de dias e de meses… de anos, mesmo… o que me pode ainda atormentar é a diferença que isso causa na perspectiva do tempo que ainda nos sobra, quando ainda há tanto para ser feito… tanto para sermos nós e os outros todos a fazê-lo… ainda e sempre… como dizia Séneca, filóso romano, "morremos a cada dia que passa, a cada dia falta uma parte da vida"... acontece que no mesmo ano deste meu aniversário, apenas um apontamento no esquisso da minha vida, se comemora outra efeméride ligada à minha passagem pelo pilão. cinquenta anos desde o dia em que essa casa “tão bela e tão ridente”, me acolheu e a mais cinquenta e seis colegas, num percurso que se prolongou por mais ou menos uma dezena de anos. o tempo e a vivência comum, cimentados pelos princípios e valores que nos foram sendo inculcados, aliados ao conhecimento e experiência transmitida, constituiram as ferramentas que ao longo da nossa vida nos permitiram enfrentar as vicissitudes do mundo que nos rodeia e ao mesmo tempo usufruirmos desta riqueza que é a amizade e camaradagem que nos distingue de muitos outros grupos. à distância de cinquenta anos, ainda nos conseguimos lembrar quase em pormenor dos nossos primeiros passos em s. domingos de benfica, mas também dos nossos receios e saudades da família, das nossas dúvidas, que a pouco e pouco se foram transformando num orgulho enorme em pertencermos à gesta daqueles que desde a fundação do instituto nos precederam e se foram tornando no esteio que todos nós, vivos e ausentes, constituímos como o legado das almas nobres que deram vida à nossa casa, nos anos ainda tenros da república, cujo centenário tambem este ano se comemora... tudo uma questão de coincidências, como se vê... 01. Maio. 2010

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escrever coisa nenhuma

se me permitem, começaria esta minha segunda colaboração no nosso boletim com uma declaração de interesse, que julgo importante confessar e esclarecer. escrever, é essencialmente um exercício de liberdade, porque cada um de nós é, no seu mais profundo ser, um ser livre. só as condicionantes e contingências da vida permitem que cada um de nós, em determinadas circunstâncias, vá ficando refém de maiores ou menores amarras que lhe limitam esse exercício. não é, no actual contexto, o meu caso. o facto de escrever neste nosso boletim não tem que me amarrar a nenhum tema hermeticamente “pilónico”, uma vez que sou de opinião que há necessidade de abrir cada vez mais estes espaços a outras áreas, sem nos fecharmos num rosário de recordações, elegias e reconstrução do passado. não condeno tal prática, que faz também parte daquilo que nos alimenta o ego de filhos duma casa que todos amamos, respeitamos e queremos ver cada vez mais dignificada, mas há espaço para tudo e essa vertente já está por demais servida nestas páginas. deixem-me então dar asas à imaginação, à livre expressão das minhas alegrias e preocupações, das minhas elucubrações sobre o que quer que seja que me atice a inspiração, se a tiver... chego aqui a esta página em branco na véspera da data limite para enviar este meu contributo. para quem escreve, o estigma da página em branco é, mais do que um desafio, por vezes, uma angústia, ou então, o desaguar dum impulso incontrolável que se sublima num enorme alívio. há mesmo quem diga que o também possível terror deste espaço em branco, como que um abismo de ausência que tende a nos intimidar, só se pode resolver indo em frente, sem pensar muito naquilo que vão ser as primeiras letras, as primeiras palavras, a primeira frase, a primeira ideia ainda por construir... como dizia Saramago, e para quem, como eu e muitos outros, hoje em dia substituiram o doce e sensual deslizar do aparo, da esfera ou da ponta do instrumento de escrita, pelo ritmo, também ele inspirador do matraquear dum teclado, o que o chama à escrita, é o incansável e hipnótico piscar do cursor num ecran de computador. há portanto imensas maneiras de ultrapassar esta angústia do vazia e da brancura duma folha sem nada escrito... às vezes, basta um pequeno pormenor para nos arrancar deste estado inerte dos dedos flutuando, ainda sem o derradeiro sinal para atacarmos a construção da escrita por cima do teclado. uma pequena ideia, um acaso, um episódio, na altura sem importância, mas que a maravilha do pensamento nos fez torná-lo num tema que de repente toma conta de nós. no meu caso, tanto posso ter uma ideia já vagamente construída, como partir do vazio absoluto.

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esta urgência de escrever hoje e imperetívelmente até amanhã, ter este desenho de palavras pronto para enviar, empurra-me inexoravelmente para o confronto com o tal abismo de que falava, sendo portanto inadiável tomar a atitude que se impõe... sinto desfilar dentro de mim uma miríade de temas que poderia aqui abordar. hoje, por exemplo, aconteceu uma greve geral e poderia ser interessante ir por aí, sem considerções partidárias, mas apenas pela vertente política e social. poderia ser, mas no entanto, não querendo ferir susceptibilidades de quem quer que seja, num espaço teoricamente isento e apartidário, acho melhor não ir por aí. há quem considere a greve, em si, um tema e uma arma ideológica, no mau sentido, e a própria ideologia uma tomada de partido, quando ela é apenas a ciência da formação de ideias... acho que me resta portanto falar de nada. esse anátema da dissertação, da dialéctica da coisa nenhuma, do discurso do absurdo. falar da ausência ou inexistência daquilo que deveria ser um tema, pode ser um sofisma para disfarçar uma inspiração também ela ausente, mas poderá também não deixar de ser um desafio. porque para aqui se chegar, já eu gastei duas páginas de branco, que ainda há pouco eram nada, o tal abismo em que eu me arriscava a cair e qualquer um pode imaginar o que será despenhar-se num mar de branco, que é a ausência da própria côr... quando existe côr, existe profundidade, dimensão. quando apenas o branco existe, o que existe para além do branco é o desconhecido que não nem dimensão nem volume ou conteúdo. é coisa nenhuma à procura de alguma coisa... por isso, escrever sobre coisa nenhuma não é assim tanto um exercício sobre o nada, mas antes o mergulhar numa procura constante que nunca se consome nem termina. é escrever sobre o nosso eterno desconhecimento, com o conhecimento que em cada momento temos das coisas, das pessoas, do mundo. quão profundo e inspirador é pois o nada ou a coisa nenhuma, meus amigos... 24. Novembro 2011

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escrever sobre nós e os outros...

alguém me perguntou se quando escrevia, era sobre mim que o fazia, mesmo quando me debruçava sobre uma terceira pessoa. não soube responder. tergiversei, tartamudeei, elaborei um discurso redondo e amorfo, sem eu próprio saber a resposta que talvez não quisesse dar. é sempre difícil dissociarmo-nos de nós quando escrevemos, porque a escrita vem de dentro de nós próprios, quiçá da alma, se é que esta figura de estilo existe no desconhecimento que temos do nosso corpo metafísico. tudo o que escrevo provem daquilo que o meu cérebro processa nos mais recônditos lugares da memória, do conhecimento e do racional, mesmo aquele que não nos é deixado antever, senão quando nos perdemos na descoberta daquilo em que nunca antes pensámos. são momentos de comunhão, não projectada, com os temas e as palavras que já se nos afloraram no pensamento, mas sobre as quais nunca trabalhámos com o mistério e as ferramentas da escrita. raramente, quando escrevo, sei do que vou escrever, apenas uma ténue ideia e mais que tudo, um raro e intenso impulso que sinto, que me faz exorcizar os veios de emoção e sensibilidade que todos temos na profunda mina das nossas reflexões. escrever sobre terceiros não deixa de ser um exercício, em que mergulhamos no mais íntimo de nós próprios, ou porque esses outros que queremos incorporar estão infinitamente presentes em nós ou porque as suas histórias nos tocaram de tal maneira, que queremos, duma forma inadiável, transmitir o júbilo e a ansiedade de sermos a voz deles, que eles nunca terão ousado soltar e inscrever nos livros do quotidiano. escrever é sempre um acto de amor próprio e amor pelos outros, mesmo quando os personagens reflectem caracteres diversos dos nossos ideais, e isto porque a vida é feita de diferenças, antagonismos e também de sentimentos de identidade mútua que, tudo junto nos pode aproximar, mesmo no mais profundo desacordo de ideias, propósitos ou projectos de vida. a compreensão do outro, mesmo que não aceite pela nossa própria conduta de vida, é a mais justa aproximação que podemos fazer a um entendimento universal da espécie humana. o reconhecimento que mesmo na diferença mais radical e profunda de princípios e valores, pode residir um ténue elo de ligação que aproxima a bondade da maldade, a justiça da injustiça, a paz da guerra ou a sabedoria da ausência dela. tudo pode ter um equilíbrio e uma remição das duras arestas da ignomínia. escrever é tentar decifrar tudo isto e muito mais. os outros 2010 - 2014


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somos nós próprios, investidos em personalidades tão chegadas e tão diversas que nos cativam ou nos chocam, mas das quais podemos sempre extrair uma réstia de esperança para o entendimento comum das coisas e dos seres que cada um de nós interpreta na vida. escrevo porque quero entender-me e entender os outros. escrevo porque a minha história podia ser a história do outro. escrevo porque todos temos coisas a dizer, mesmo quando insistimos no silêncio dos nossos medos e da nossa angústia. o silêncio da nossa ignorância perante a imensidão daquilo que não conhecemos… por exemplo, recordar o passado, reflectir o presente e projectar o futuro, são atitudes que todos nós, de uma ou forma ou de outra, com maior ou menor frequência e com mais ou menos objectividade, sempre vamos fazendo, como método de balanço do nosso espaço temporal de vida. as experiências que nos marcaram e os hiatos do nosso percurso em que nada de verdadeiramente assinalável nos aconteceu, bem como os momentos de excelência que possamos ter vivido, podem-nos servir para criar uma base de conhecimento, para nos ajudar a encontrar razões e explicações para o percurso do nosso presente e assim compreendermos melhor o que se passa connosco neste espaço de tempo relativamente dinâmico que constitui a actualidade das nossas vidas. o presente é aquilo que sentimos agora e o que pensamos poder prever para o amanhã mas ele é tanto ou mais imprevisível como o conjunto das nossas frustrações e sucessos, essas uma quase certeza vivida, misturadas com o nosso estado de espírito em cada dia que começa e ainda as angústias e incógnitas que nos assaltam no passar de cada minuto. é tudo isso, esse emaranhado de certezas, conjecturas e desconhecido, que impulsiona e ao mesmo tempo angustia a nossa existência. o amanhã, o futuro, a nossa projecção nos dias que ainda hão-de vir, tanto podem ser um pesadelo adiado como um sonho estóica e benevolamente alimentado pela nossa vontade de conquistarmos, num tempo ainda inexistente, aquilo que já hoje gostaríamos de estar a viver, antecipando assim o porvir de uma realidade que sempre nos surpreende ou desilude. o tempo é o veículo de toda a nossa existência e raramente respeita horários ou mesmo percursos, paragens e apeadeiros, ou mesmo lugares marcados. tanto viajamos sentados como amalgamados e espremidos no meio de uma multidão imensa de seres igualmente à deriva neste imenso espaço que é a vida. e raramente podemos escolher os parceiros de viagem ou mesmo aqueles com quem entabulamos conversa num qualquer cais do universo. e se ficamos calados, absortos numa solidão a que queremos chamar só nossa, é impossível alhearmo-nos dos sussurros dos outros, mesmo que estes estejam igualmente mudos, de olhares parados e corpos inertes, porque eles estão lá e então nós não somos apenas nós. somos nós e os outros. somos nós e aquilo que vemos nos outros. nós e aquilo que pressentimos nos outros e quando um dos outros se move, somos nós que nos movemos porque a multidão dos outros é a nossa própria e uni-pessoal multidão. os sonhos, os projectos, os anseios, os sucessos, as conquistas, os desaires, as tragédias e as tristezas dos outros, são as nossas próprias, mesmo que as tentemos ignorar. e

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todas estas emoções, certezas ou sensações interferem no desenrolar do nosso próprio sonho. e elas alimentam também o ciclo da nossa vida que é inseparável da vida de todos os outros que connosco interagem, mesmo quando julgamos ser só nós o centro de tudo, somos apenas um centro virtual concêntrico e ao mesmo tempo desconexo com o infinito, de centros que constituem tudo o que nos rodeia. muito especialmente os outros, as pessoas. por isso, quando escrevo, é este universo imenso, indescritível e difuso que me assalta e me guia na viagem misteriosa da escrita... 14. fevereiro. 2012

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balsa a mil tempos... nos silêncios da memória

o meu pai era músico. foi músico durante toda a vida. mesmo quando deixou de tocar, devido às contingências da idade, todo o seu discurso, a sua atitude, o seu sorriso ou tristeza, eram breves e inspiradas melodias de humanismo e bondade. os silêncios, mais constantes na última fase da sua vida, eram também silêncios musicais, compassos de espera, que serenamente aguardavam o sinal dum maestro, talvez imaginário, latente ainda no seu sub-consciente, para atacar a nota e o compasso da sua pauta tantas vezes copiada e seguida à risca, como se exige numa orquestra, agora na vida em direcção à morte... lembro-me da sua aturada tarefa de copiar pautas, para os mais diversos naipes da banda ou da orquestra, tarefa essa que lhe trazia mais alguns dinheiros, que juntava àquilo que ganhava em diversas formações musicais onde pertencia. o seu principal papel era na banda da gnr, para onde havia entrado ainda novo, após uma curta passagem pelas fileiras do exército, seguindo as passadas do seu pai, cabo correeiro, aquele que tratava de arreios e outros artefactos ligados às artes equestres da instituição castrense. devolve-me a memória leves recordações sobre as histórias que me contava desse tempo, em que habitavam dentro das muralhas do castelo de s. jorge e donde, nos tempos conturbados da primeira república, assistiam, numa situação de observadores privilegiados, às escaramuças ou revoltas entre as diversas facções políticas beligerantes que a esse tempo floresciam, numa época em que a república ainda caminhava hesitantemente nos primeiros passos dum regime que finalmente tinha deposto a monarquia. para além da sua principal actividade na banda da gnr, ia tendo outras intervenções musicais, quer em orquestras, como a da antiga emissora nacional, quer noutras de índole mais clássica e também nas pequenas orquestras que se constituíam para os espectáculos de revista no parque mayer. era uma luta constante em busca de novos proventos para fazer face ao custo de vida perante o magro salário militar. foi aliás dentro destes condicionalismos financeiros que se deu a minha entrada para os pupilos, decisão tomada no sentido de aliar um mais baixo custo na minha educação e maiores oportunidade de formação escolar e cívica. acabou a sua carreira militar, já reformado da gnr, como instrumentista na conceituada orquestra filarmónica do teatro de s. carlos, instituição onde finalmente tinha uma área de desenvolvimento da sua arte, à justa medida das suas capacidades e gostos musicais. embora possa não parecer, a ligação destes apontamentos, que me fazem recordar o meu pai, a música e o seu trajecto e importância na vida dele e na minha, tem tudo a ver com uma abordagem que sempre quis fazer à importância dos silêncios.

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quando falamos, nos expressamos, interpretamos qualquer gesto artístico, em qualquer forma de expressão corporal ou intelectual, os silêncios estão lá. são hiatos do nosso discurso, dos quais precisamos para evidenciar a parte mais visível, audível ou principal do mesmo. sem silêncios, todo o acto discursivo ficaria incompleto e muitas vezes ininteligível. é nos silêncios que apoiamos o desenvolvimento do nosso raciocínio, é deles que nos servimos para dar ênfase a determinadas passagens ou neles nos apoiamos para introduzir um breve, mas rigoroso e indispensável, instante de reflexão ou de dúvida, sem os quais qualquer discurso se tornaria numa linguagem sem alma e efeito emocional. os silêncios são a narrativa duma meditação nunca revelada, mas que marcam definitivamente aquilo que ouvimos, vemos ou sentimos. lembro-me do meu pai quase sempre fardado e uma memória que conservo é do orgulho de o ver em concertos, garboso e aprumado, dissimulando, no entanto, a sua condição de militar, com a mestria com que executava o instrumento, o dominava e nele se sublimava numa arte única de interpretar com sons, as obras mais marcantes da história da música. ainda hoje conservo, em lugar de destaque, na casa que habitámos, um oboé e um corne-inglês, suas ferramentas de arte e de trabalho, espólio a que falta ainda um clarinete, entretanto perdido nas curvas do tempo... e quedo-me por vezes, no silêncio da casa, a olhar aqueles que foram os seus utensílios de trabalho durante toda uma vida. o silêncio ajuda-nos a recordar e a embrulhar numa serena nostalgia os momentos que foram importantes para nós e para aqueles que afectivamente nos rodearam. agora, que posso analisar à distância o percurso que foi o seu, julgo poder concluir que, também ele, viveu toda uma vida militar sem se sentir aprisionado pela teia de incongruências que o espartilho das regras e disciplina militar constituiriam para ele, uma pessoa de cultura autodidacta, de pensamento livre e humanista, que sempre se sentiu tolhido por um regime cinzento e asfixiante, que negava até o sonho que a liberdade nos impele a deixar crescer dentro de nós. tal como ele, o meu percurso militar, iniciado nos pupilos e depois complexa e de certo modo sofredoramente assumido durante toda a minha carreira, foram trinta e seis anos de vida provisória que cumpri quase contra-natura, tempo e vivências de que não me queixo, mas de que me arrependo não ter tido a coragem suficiente para repelir. orgulho-me de ter sabido gerir esse tempo, de sempre ter tido a consciência de o criticar naquilo que me era impossível calar, mas também de ter dado o meu melhor e tentado contribuir para a sua humanização, na apertada teia duma mentalidade que não cabia na minha própria. não se é militar por se exercer a profissão de militar. eu exerci-a sem realmente o ser, porque isso sempre foi incompatível com a minha interioridade, mas tentei ser honesto comigo próprio e com a instituição. sincero e feliz dentro dela, talvez não tenha sido... uma vida assim é também recheada de silêncios, em contraponto com picos de indignação que não conseguimos por vezes reprimir. assumo essa dicotomia plenamente, porque reside também nos consensos, a arte da fuga às contrariedades da vida. e aqui, voltamos de novo à música. a arte da fuga, peça inacabada do compositor alemão Johann Sebastian Bach, com a suas fugas e contrapontos, baseando-se mesmo numa matriz de permutação assente em algoritmos e regras matemáticas, para reger as entradas e saídas dos diversdos naipes de vozes, não é mais do que um rigoroso jogo do gato e do rato entre silêncios e sons que se perseguem consecutivamente, variando apenas nas harmonias que se sucedem e de cada vez que parecem terminar, se

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reinventam até um êxtase de emoções, em que os silêncios morrem e renascem ao mesmo ritmo das notas que se lhes opõem... sem silêncios, nada disto seria possível! cada um de nós é um ser gerador e gestor dos nossos silêncios e quantas vezes não é preferível soltá-los estridentemente contra os argumentos de quem julga que a razão é uma arma sonora que nos cala pelo volume de decibeis com que pretendem inundar a nossa serena e silenciosa razão... se tivesse sido possível, duma forma entendível, este meu escrito de hoje, teria contemplado apenas um profundo silêncio de reflexão e nostalgia de coisas que ainda me fazem acreditar na determinante importância das pessoas e dos afectos. no importante que é podermos dizer, simplesmente, que gostamos de alguém, que partilhamos e que acrescentamos qualidade de vida a nós e aos outros, só pelo facto de sermos aquilo que somos... dizê-lo, mesmo em silêncio... 08. maio. 2012

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falar de política… sem falar de política…

como falar de política sem falar de política!?... pensei nesta equação aqui há dias, ao lembrar-me que tinha que escrever este texto. este ou outro. mas, a singularidade da questão, o desafio e o próprio exercício criativo, levou-me a agarrar a ideia… na realidade, estou ciente, que num contexto como o que se aplica a esta minha colaboração, a política deverá estar afastada dos temas a abordar. mas, no entanto, o que é a política (?), pensei… “o termo política é derivado do grego antigo πολιτεία (politeía), que indicava todos os procedimentos relativos à pólis, ou cidade-Estado. por extensão, poderia significar tanto cidade-Estado, quanto sociedade, comunidade, colectividade e outras definições referentes à vida urbana”. é portanto uma coisa que tem a ver com todos os cidadãos e não tem, obrigatoriamente, que implicar ideologia ou partidos. ou melhor ainda, não é imprescindível que se abordem, defendam ou ataquem as opções de cada um, sobre a melhor maneira de a exercer. é um exercício difícil, isso é, mas possível de levar a bom termo, se houver cuidado e respeito por todos… os dias que hoje atravessamos são indissociáveis de preocupações ligadas a este tema, bem assim como à economia mundial e mais agrestemente, ao dinheiro, o seu significado e a utilização que lhe tem sido dada, nomeadamente depois de mudanças importantes no equilíbrio das nações, que todos nós reconhecemos terem acontecido com a queda do bloco de leste e a consequente derrocada dum conceito científico de sociedade ideal, mas também com a inevitável anarquia que tomou posse dum capitalismo, até aí contido e ainda com algumas preocupações deontológicas e sociais, que de repente elegeu aquela figura, hoje quase mítica, dos “mercados”, como uma desculpa, quase obrigação, de tudo na vida das pessoas, na ordem mundial e até no mais íntimo de cada um de nós, passar a ser regulado pela voraz ganância de uns, apoiando-se na cada vez maior dependência dum enorme, dum imenso mar de gente, que passou a ser escravo dessa quase religião duma livre iniciativa selvagem e sem pudor. o dinheiro, passou a ser uma espécie de símbolo dum qualquer eldorado, que já não tinha o objectivo de servir ao jogo equilibrado das transacções, assentes no primado da produção de bens, mas que passou de instrumento a objectivo desenfreado, chegandose ao cúmulo de se produzir riqueza apenas com a sua circulação, sem que qualquer processo produtivo, transformador ou criativo tivesse lugar na sua génese. passou-se a gerar dinheiro do dinheiro, e claro abstraindo-nos do puro acto de fabrico material das notas e moedas, esse sim, o único acto verdadeiramente industrial a ele associado, tudo o resto passou a reger-se pela invenção de processos, mais ou menos fraudulentos ou negativamente engenhosos de fazer o dinheiro crescer, sem que nada

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de realmente produtivo contribuísse para tal, com a agravante de que, por tal processo, só quem tivesse acesso a quantias consideráveis de dinheiro o conseguia fazer multiplicar quase infinitamente… quem tivesse o apenas indispensável para se sustentar, ou pior ainda, aqueles que nem isso tinham, ficaram reféns dos créditos ou, na pior das hipóteses, da miséria absoluta… dir-me-ão, ah! isso é política e com a agravante de conter em si opções ideológicas… eu diria, sim é política, mas o seu conteúdo é meramente tecnocrático e financeiro, usando variáveis e parâmetros adequados à manipulação da realidade das actividades económicas, tornando-as em realidades virtuais à medida da voraz ganância de uns quantos prestidigitadores da alta finança, sem escrúpulos, princípios ou valores. ideologia é coisa que não existe a esse nível. apenas existem desígnios e uma perigosa articulação e manipulação de novas regras, criadas em benefício duma infinita sede de lucros. na verdade as actividades industriais, fabris, as manufacturas, a prospecção e recolha de bens da natureza e mesmo as complementares e paralelas actividades comerciais, deixaram de ser um meio e passaram apenas a ser instrumentos menores que apenas contribuem para uma inimaginável circulação do dinheiro, sem outro fim que não seja inventar mais dinheiro para os mesmos beneficiários. os países, as pessoas, as famílias, endividam-se porque para tudo precisam de dinheiro e os donos do dinheiro acodem às suas dificuldades para receberem os créditos que serviram para lhes pagar outros créditos, num turbilhão de endividamentos que mantêm na escravidão milhões de pessoas e países que antes eram nações independentes e prósperas, tendo-se agora tornado em reféns desta cornucópia duma ambição desmedida… a solidariedade passou a soletrar-se como empréstimo a altos juros. a beneficência, por muito sincera que seja, um mecanismo que atrás de si envolve sempre contrapartidas, que não morais ou espirituais… olho para o nosso mundo, hoje em dia, e fico triste. desolado. enraivecido e indignado. mas ao mesmo tempo, insubmisso e revoltado. sinto que as pessoas acreditaram que o mundo era evolução, quando afinal hoje apenas é transformação. uma cópia fraudulenta e contrafeita do sonho que durante décadas, séculos talvez, nos fizeram acreditar. nada do sonho de ontem pode hoje ser considerado adquirido. a própria esperança prostituiu-se. os nossos filhos já não são nossos filhos, mas enteados da dívida colossal que lhes criámos, porque acreditámos que a política, essa tal, da qual quereria falar sem dela falar, se transformou num negócio em que a economia substituiu as constituições dos países, as regras da boa convivência entre os estados, os programas dos governos, os princípios e valores sociais. a própria economia, como ela era, já não é! a economia é um jogo ardiloso de interesses que se impõem e sobrepõem a tudo e a todos, cavalgando na crista da ganância e do desprezo pelos mais fracos, criando mentes vazias e sem escrúpulos que tudo transformam em números e dividendos. um exército de seres amorfos e insensíveis, carregados de teorias pornograficamente analíticas, apenas, tomou conta do futuro de cada um de nós e candidamente justifica a nossa inevitável escravidão e o derradeiro esforço que nos obriga a viver cada vez pior, na mira, quase inatingível, de que haverá um outro futuro melhor, mas mais duro, que nunca chega, numa escalada que nunca tem fim… e ainda por cima nos faz sentir culpados dos erros que os seus mentores displicentemente foram cometendo para alimentar um progresso que apenas desagua

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num auto-genocídio da nossa sociedade… somos todos testemunhas e simultaneamente executores deste suicídio colectivo! o sonho já não existe! o sonho é, hoje em dia, também uma fraude! e nós somos todos os arquitectos deste edifício horrendo e de vãs estruturas… só uma nova ordem mundial, assente no primado da pessoa, do ser humano e do inegável direito à vida, nos poderá ainda salvar, mas para isso, quanto teremos de sofrer?... o que teremos de destruir para reconstruir do nada aquele sonho que nos roubaram!?... seremos hoje os derradeiros derrotados do caos que prenunciará o recomeço?...

4. julho. 2012

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tempos de desesperança…

fiquei a olhar para a folha de papel branco, simulada no meu computador e quedei-me de olhar vazio a pensar no que iria eu hoje escrever… ao fim de uns momentos, senti que também o meu pensamento estava branco, vazio, oco e ao mesmo tempo desfocado e obliterado por uma enorme desesperança que dia a dia cresce em mim. difícil, hoje em dia, é acreditar na esperança, quando tudo se desmorona à nossa volta. o presente e o futuro fundem-se numa nuvem de incertezas, que vai ganhando forma numa indesmentível certeza de que em cada dia que passa, amanhã vamos estar mais cientes de que tudo aquilo que projectámos para o nosso futuro está a ser cirurgicamente destruído por forças que conhecemos, mas contra as quais, nos sentimos impotentes de combater. a nossa própria vontade já não é vontade própria, porque face a ela se opõem inúmeros novos factores, financeiros e não só, que nos decapitam na nossa capacidade de resistência. são novas armas de “destruição maciça”, sem alma, sem princípios, sem valores e sem consciência, que têm apenas como finalidade, multiplicar fortunas e vãs ganâncias. o conceito de pessoa, de ser humano deixou de ter o significado comum da vida, para se converter exclusivamento num instrumento para se atingirem os fins mais lucrativos. a solidariedade, o social, na sua expressão mais humanista, foram reduzidos a alvos a abater. a vida já não significa bem estar, mas apenas transição para a morte… gostaria imenso de poder falar de outras coisas mais agradáveis, coisas que todos nós reconhecemos como fazendo parte dos nossos sonhos e nossos projectos de vida. gostaria de vos poder aqui trazer exemplos de bondade, de exaltação da condição humana, falar-vos da amizade, do companheirismo, das paixões que nos alimentam os sonhos, da beleza e urgência da arte, da importância da música, da magia da fotografia, do deleite de se ler um bom livro, enfim, de tudo o que uma pessoa neste mundo pode almejar como momentos de verdadeiro bem estar e celebração da vida… gostaria de poder transmitir-vos uma luz de esperança, no sentido de que os nossos esforços podem ser recompensados, de que a nossa boa conduta nos asseguraria um lugar ao sol, de que o trabalho ainda é ainda o acto digno de contribuirmos para o bem de todos. nada disto, porém, é hoje em dia tangível ou previsível… na verdade nada vos posso prometer ou agourar de bom, porque o único horizonte que se nos anuncia, é uma noite escura e fria, uma alvorecer carregado de nuvens escuras, um futuro sem horizonte ou um horizonte sem futuro… estou cansado de ouvir e ver noticiários, debates, cimeiras, comentários ou simples entrevistas, a uma panóplia de pessoas que julga, ou quer fazer acreditar, que têm as soluções e que simultâneamente nos exigem maiores e mais atrozes sacrifícios, tentando convencer-nos que só assim alcançaremos o direito a continuarmos vivos e

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mesmo assim talvez ainda infelizes, sendo que nada, no entanto, está assegurado… apenas a promessa, que hoje em dia se transformou num redondo vocábulo, que de tanto rolar, já perdeu o seu verdadeiro significado… nestes dias de enevoada felicidade, choca-me o ruído pseudo-político das decalarações mais vãs e hipócritas de que há memória, mas já nada disso é sequer política, na verdadeira acepção da palavr, porque a política submergiu à economia, e pior ainda, à voraz praga das finanças, dos negócios e de todo um conjunto de sacrossantas novas entidade, de onde sobressai essa tenebrosa e indefenida figura dos “mercados”, que tudo parece regular e dirigir, quando na verdade, deveriam ser eles a ser regulados pela política, pelas instituições oficiais, no fundo, pela sociedade… e a sociedade é o conjunto de pessoas, de cidadãos, organizados em estados… este ruído que tem por fim entorpecer os cidadãos e mantê-los em permanente ansiedade, uma ansiedade temerosa e ameaçadora, ignora arrogantemente os dramas de cada um. amachuca os seus sonhos e anseios. despreza os seus gritos de socorro e indignação. é assim uma ditadura das próprias consciências, uma opressão dos direitos mais básicos da pessoa humana, uma permanente censura à inteligência… nestes dias tristes, sem futuro e sem direito ao sonho, muitas coisas vão acontecendo e os arautos da desgraça institucionalizada que aí vem, arredam-se de todos os alertas de perigo para a sociedade em geral e arredam de si a inconveniência de se terem de confrontar com os pequenos desastres de cada um, coisa que eles consideram inevitável para a marcha triunfal em direcção à derrocada inevitável de todos os princípios e valores… valores, apenas aqueles que são cotados em bolsa e dão lucro, porque os outros, aqueles que até aqui regulavam a vida em família e sociedade, esses são cada vez mais desprezíveis, porque atrapalham o rufar dos tambores da tomada do poder sobre todos, pela ganância e insensibilidade de alguns… atolado por toda esta infame devassa dos meus direitos, pelo calado assalto à minha própria liberdade, permito-me ainda uns momentos de reflexão e atenção às pessoas que me rodeiam, aos amigos que ainda me sobram desta guerra de guerrilha indecente contra as minhas próprias opções e crenças e fico-me a recordar o amigo que há pouco faleceu, a amiga que há dias tentou o suicídio, os amigos que perderam o emprego e não encontram trabalho, mesmo aqueles que não conheço, mas dos quais é-me impossível qualquer alheamento, porque a miséria das suas vidas entra-me pelos olhos dentro, pelo corpo dentro, por todos os sentidos que ainda não me conseguiram adormecer. resisto violentamente a ser anestesiado pela turba de arautos dum progresso adiado, quiçá mesmo anulado, em nome de números, indicadores económicos, ratings, flutuações, estatísticas, discursos, programas de salvação, troikas, merkels, sarkozys e outros, governos maioritários, de salvação nacional, projecções a dez, a vinte, a trinta anos, de panoramas indescritíveis de reformados sem reformas, de doentes sem serviços de saúde, de jovens sem educação, de idosos sem horizonte de velhice, de pessoas honestas a terem de se tornar criminosos para sobreviver, de culpados que toda a gente conhece, a serem intocáveis porque sim, de compadrios que se multiplicam, de presidentes que não presidem, de políticos que nem sabem o que isso é, de responsáveis partidários que não conseguem sobreviver e muito menos vencer sem mentir e não sentem a menor das culpas na consciência, de tribunais que não julgam, de justiça que não a aplica, de… de… de… sinto que até o ar já me falta…

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parafraseando um prestigiado cantautor português, num grito de desespero, nos idos de 1979, aquando da primeira intervenção do FMI no nosso país em 1978/1979, só me ocorre também gritar, “quero ser feliz porra, quero ser feliz!...” 22. novembro. 2012

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rosa, que é também maria

os tempos que correm fazem-nos por vezes ficar agarrados a factos e a situações que julgamos serem o fim de tudo ou o princípio de um outro tempo que nunca nos devolverá as recordações dum passado em que nos julgávamos a caminho dum bem estar sempre crescente. a sensação de que a vida era um caminho progressivo de felicidade e progresso, de que o simples facto de existirmos e assistirmos a esse progresso, era a certeza de que amanhã viveríamos ainda melhor e deixaríamos às gerações vindouras um mundo repleto de oportunidades e justiça social, mesmo que não soubéssemos ao certo qual a via para lá chegar, fazía-nos sentir um conforto existencial assente na fé de que nada iria parar esta espiral dum futuro bem resolvido e óbvio… andámos anos e anos inebriados por nós próprios e como que hipnotizados por uma evolução que acontecia quase que por magia… era assim e pronto!... estamos agora a chegar à conclusão, mesmo que ainda incrédulos, que afinal tudo não passou daquilo a que se pode chamar um sonho bonito… a vida real está agora aí, em toda a plenitude da sua crueldade e dureza… mas não era realmente disto que eu vos queria hoje falar… vocês todos, que me lêem, dirão, lá vem ele outra vez com aquela dose de revolta e angústia…. e têm razão… ela existe, persiste e desenvolve-se, mas é certo que podemos escrever o mesmo duma outra forma que nos leve a pensar, a reflectir e a questionarmo-nos sobre o porquê de toda esta antecâmara de caos que se prenuncia… prefiro hoje falar-vos de pessoas, do elemento mais crucial, a seguir à natureza que nos suporta e envolve, porque determinante nas atitudes e acções que podem definir o futuro e repensar o passado. o que é na realidade uma pessoa?... nascemos dum milagre da natureza, para o qual ainda não encontrámos explicação, crescemos, evoluímos e tentamos, cada um à sua maneira, contribuir para o bem comum, mas muitos de nós temos ideias muito próprias do que é esse valor do bem comunitário, uma vez que a noção de comunidade não é um valor absoluto e único. cada um ou cada grupo considera a comunidade aos olhos e sentimentos do meio que o envolve e lhe determinou o crescimento. a existência de classes sociais é inegável e sê-lo-á para um sempre, para o qual ainda não temos noção do limite. são factos, que embora possam ser mudados, são indesmentíveis. mas no meio de tudo isto, reforço o óbvio, existem pessoas… as esquinas das cidades podem parecer todas iguais, mas cada uma tem o seu enredo. esta podia acontecer em qualquer outra cidade. em londres. paris. varsóvia ou helsínquia. mas era em lisboa. poderia ser em qualquer lugar, mas as esquinas de lisboa têm a identidade de quem cá vive e o perfil dos olhares que se cruzam vindos de cada lado do seu encontro. era uma tarde de domingo, fim de dia. o sol cansado de tentar aquecer uma tarde de preguiça e

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de modorra, esgueirava-se já pela linha do horizonte, deixando entrelaçar os tímidos raios de luz com o cintilar dos candeeiros da cidade, que pareciam pinceladas de luz ocre a esbaterem-se sobre as fachadas dos prédios e das copas das árvores. uma esplanada naquela esquina parecia ser um enquadramento perfeito, como se ela não tivesse querido existir sem aquele local de convívio aconchegado na sua curvatura laça e espaçosa. sentámo-nos. a tarde, apesar da hora de fecho do sol, estava amena e envolvente, sem brisa que incomodasse e a aproximação da noite dava-lhe um ar de crepúsculo dourado e brilhante. quando um domingo está prestes a acabar, as pessoas dispõem-se a prolongá-lo, numa remota e última esperança de que o inevitável bulício da semana lhes não interrompa aquela sensação de serenidade e tranquila letargia que lhes ameniza o ciclo do trabalho e da luta por um qualquer amanhã que ninguém sabe muito bem o que lhes vai trazer. todos anseiam por um futuro que acreditam estar no final de uma vida de labuta, mas todos tendem a adiar e mascarar essa quimera de descanço e lazer, quando o fim do domingo se aproxima. e as pessoas procuram os espaços calmos e acolhedores da cidade para esta iminência do esvaziamento da sua folga semanal. sentámo-nos e deixámo-nos ali ficar numa conversa de rotina e sem assunto, dependurados naquele exercício de nada fazer, de nada nos preocupar, como que sorvendo os últimos goles duma bebida, quando se sabe que o copo vai ficar vazio, no final do acto em si, de saborear um pedaço de vida sem um amanhã que nos viesse a preocupar. de repente um vulto que dobra a esquina e se vai perder na dobra da cidade, em passos, nem lentos nem afoitos e que se nota carregarem em si uma desesperança eivada de resignação. rosa maria! as pessoas têm também o nomes de flores, e como elas viçam e murcham e esmorecem, de acordo com as oportunidades da vida. rosa sempre foi maria, mas as pétalas que antes lhe conhecera viçosas e brilhantes, embora quase sempre pensativas, mas também doces, emolduravam-lhe a face, agora vazia de brilho e de esperança. voltou a cabeça, o olhar e reconheceu-nos. aproximou-se e por instantes perscrutei-lhe de novo o fulgor do olhar e uma instintiva alegria no reencontro. aproximou-se e acedeu ao convite para connosco se sentar e sabermos dela. a rosa maria estava desempregada, já o sabíamos. apesar do apelo que todos sentimos pelo tempo livre que nos ilude sobre as contingências da vida, ele só nos é favorável quando não nos amachuca a auto-estima de nos sentirmos em dívida para com ela, quando ela não nos oferece os instrumentos indispensáveis a construirmos os nossos passos, a definirmos as nossas prioridades e delas erguermos os nossos sonhos. o desemprego é um fardo e um estigma que nos acabrunha e deforma os nossos pontos de vista sobre o futuro. e a rosa maria carregava esse fardo todo, grande demais para a sua pequena e frágil estatura de jovem mulher sózinha na cidade. noutros tempos, não muito distantes, ela tinha sido a nossa anfitiã de estimação no café para fumadores que tinhamos descoberto, ali perto, e onde nos acolhíamos da pesada ditadura dos espaços livres de fumo, em nome duma asséptica noção da saúde pública. era ela, sempre com um sorriso tímido, mas ao mesmo tempo acolhedor, que nos trazia os cafés e as águas com que regávamos as nossas conversas e às quais ela frequentemente se associava, sempre com aquele olhar doce e meigo de menina carente de afectos e de atenção, que nos confessara gostar de desenhar e que nos revelara a sua ascendência caboverdiana, diminutamente já perceptível dos traços que 2010 - 2014


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a consaguinidade de cruzamentos vários lhe emprestava e fazia dela apenas uma menina morena e de perfil tremendamente sereno. tínhamos também ficado a saber da sua infância passada em abrantes, de onde viera em busca de oportunidades na cidade grande e também em busca de si própria, na solidão que aparentava. agora, ali sentada, revendo amizades que não o seriam em toda a dimensão desse conceito, mas que se exprimiam numa cumplicidade de mais velhos que facilmente comunicavam com ela, olhava-a e sentia nela todo o drama de quem não vislumbra o futuro, sabendo no entanto que ele existe. as portas nem sequer se lhe abriam, porque ela nem as descortinava na sua busca diária de um novo emprego. o olhar era o mesmo, mas turvo pela impotência de se afirmar num mundo em que nada lhe parecia sorrir. tinha um não sei quê de angústia e desconsolo. sempre aquele brilho de menina perdida entre os demais, que se procurava a si própria e não se encontrava da forma que ela ambicionava. abrantes era uma saída possível, quiçá temporária, para se abrigar de novo no seio da família e tomar balanço para nova incursão na cidade grande a que ela já se habituara. sentia-lhe isso nas palavras com que se ia revelando, mas a sua independência pesava muito mais, numa ânsia desmedida de criar o seu próprio espaço e dele erguer um qualquer futuro que agora lhe era difícil imaginar. despediu-se, sempre com aquela doçura no olhar, que lhe conhecera e deixou-me um travo amargo na consciência. um travo de incomodidade e de revolta por senti-la na encruzilhada dum labirinto que ela não conseguia resolver. talvez a voltasse a encontrar, num outro dia qualquer, naquela esquina da vida e a pudesse reconhecer muito mais rosa que maria. viçosa e fulgurante, se bem que com aquele eterno olhar de menina perdida e doce, mas crente num futuro qualquer que lhe trouxesse uma alegria maior. uma serenidade que ela já tinha, mas que hoje estava perturbada pelo peso imenso duma incapacidade de compreender os desafios crueis da vida que lhe caíam em cima. rosa era também maria, mas os espinhos da flor do seu nome torturavam-na no sonho que queria acreditar ser também possível para ela. menina de abrantes, de olhos doces, desenhos ingénuos e rabiscados pelos intervalos da sua busca, no labirinto da cidade. continuei ainda sentado a deixar correr aquele fim de tarde, quase noite, dum domingo que nem sempre nos traz felicidade. e a felicidade será o quê, sem o bem estar dos outros?... 21. fevereiro. 2013

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pilão no feminino

há coisas assim… era dia de festa no pilão, comemorava-se o centésimo primeiro aniversário do instituto, ontem mesmo, dia vinte sete de maio e tinha já entregue o meu texto para este espaço do boletim, havia uns dias. eis senão quando, o fernando pires, o homem do boletim, me informa que o texto que eu havia enviado estava com problemas de espaço. era preciso um texto mais pequeno para esta edição. ora, vamos lá a ver o que hei-de eu de escrever, comentei comigo próprio. podia aproveitar um texto já escrito, daqueles que tenho guardados no meu baú da escrita, mas não me estava a apetecer. pensei, pensei e às tantas, porque não aproveitar aquele painel humano de alunos, ex-alunos e famílias em dia de festa, para alinhar algumas considerações e sensações daquela jornada de convívio?... dei comigo, então, a pensar num pormenor que me chamou a atenção. o número, talvez inusitado de ex-alunas presentes neste aniversário do pilão. e isso levou-me a considerar que estas pinceladas femininas num universo maioritariamente masculino, poderiam ser um bom motivo de reflexão. na realidade, o advento, de em determinada fase das inúmeras mudanças que têm ultimamente acontecido na vida do instituto, ter contemplado a entrada de alunas, mesmo que nos cursos de bacharelato e superiores e em regime de externato, pareceme ter sido uma revolução, ainda não devidamente analisada, nos cânones tradicionais duma instituição esmagadoramente masculina. e parece-me que talvez só agora, à distância do tempo e de outra realidade, nos possamos começar a aperceber da importância e relevo dessa ousadia. no meu tempo, a presença feminina no pilão era reduzida a uma minoria de funcionárias, cujas funções, segundo a tradição e regras da época, eram exclusivamente executadas por mulheres e ficava-se por aí. saliente-se que nem no corpo docente havia mulheres e portanto, as poucas que lá trabalhavam, tinham a ver com a execução de tarefas iminentemente femininas e de categoria profissional muito espcífica. era, por assim dizer, o espelho da época, como se determinadas funções pudessem ser atribuídas a pessoal menor, mesmo sendo mulheres, mas essas mulheres não carregassem consigo uma identidade feminina. no fundo, nos códigos do conservadorismo daqueles tempos, eram quase trabalhadoras assexuadas, que apenas eram mulheres porque desempenhavam funções que nenhum homem desempenharia. funções que tinham essencialmente a ver com lavagem, costura e tratamento das roupas dos alunos e pouco mais. o universo de alunos e professores, de militares e pessoal administrativo, era portanto inequivocamente masculino.

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ontem, depois de regressar a casa, terminadas as celebrações de mais este aniversário do instituto, numa contagem, que as adversidades do presente não deixam adivinhar que se continuem a repetir por muitos mais anos, dada a frieza dos números duma economia que não se compadece com tradições e nem quase com pessoas, dei comigo a recordar a alegria e vivacidade das nossas ex-alunas, nossas colegas de percurso e de tradição, de princípios e valores, mas também de vivências comuns, e imaginei o inimaginável… é que o pilão nunca mais terá sido o mesmo desde a altura em que mulheres puderam partilhar aquela casa com os jovens que até ali tinham sido a sua única identidade. vê-las num convívio aberto com todas as gerações de pilões, apreciar a sua vivacidade, entrega e emoção, observá-las a desfilar num batalhão de ex-alunos, como há décadas não se fazia naquela parada, com toda a firmeza e ao mesmo tempo graciosidade feminina, foi uma prova de que a sua passagem por aquela casa tão bela e tão ridente, lhe trouxe uma nova dimensão. a dimensão da equidade do género, do respeito pelas duas grandes dimensões humanas, o masculino e o feminino, numa demosntração de que a vida e as instituições que a sustentam e compõem, é para ser partilhada na universalidade e complementaridade dos universos do homem e da mulher. aquelas mulheres, hoje adultas e mães de família, tiveram o condão de trazer àquele espaço a sensibilidade que só as mulheres cultivam, a harmonia, a beleza sem rodeios, a elegância congénita da sua condição, a fragância dos seus perfumes, o brilho dos seus olhos, o discernimento dum universo matriarcal e ao mesmo tempo materno, a diferença que fazia falta à prevalência do homem num universo imperfeito. e hoje em dia, embora numa proporção ainda diminuta, são suas herdeiras, as jovens alunas que contribuem também para um enriquecimento da igualdade entre sexos. aquelas pequenas “piloas”, pioneiras de mais um passo em frente na ruptura com preconceitos que às vezes se confundem com tradições, carregam também em si, sinais de mudança. poderão ser os últimos, talvez, antes duma derrocada anunciada, no entanto ainda evitável, mas elas representam a convicção de que não se deve ter medo de inovar e mesmo afrontar o que se julga ser imutável. todos nós, pilões de antanho ou mais recentes, devemos prestar homenagem a essas mulheres, mais maduras ou ainda jovens, que ousaram, em boa hora, romper as muralhas do preconceito e trazer ao instituto a universalidade do género humano, feito de homens e mulheres, de diferentes sensibilidades e condições, de sonhos de todas as cores… 28. maio. 2013

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viagem no tempo

há dias em que damos connosco a viajar no tempo que já passou. no tempo que demorámos a chegar até aqui e do qual nem nos demos conta de que também faz parte do nosso percurso, que muitas vezes julgamos ser apenas aquele que nos acompanha a memória mais recente, aquela que não nos confronta com a idade que temos. não que a idade seja para mim um constrangimento, nem um peso que me impeça de continuar activo, rebelde, insatisfeito e mesmo irrequieto, na construção duma existência em que me obrigo a renascer todos os dias e a sentir-me suficientemente vivo e livre para tudo questionar e tudo reconstruir, mas os sessenta e três anos que já levo nesta jornada de vida, permitem-me olhar para trás, por cima do ombro, e ter a capacidade de poder apreciar a dimensão deste tempo e do seu impacto naquilo que hoje sou. o tempo é sempre uma dimensão pouco exacta e traiçoeira, porque medida conjuntamente com aquilo que convencionámos considerar de envelhecimento. e o envelhecimento tem uma conotação negativa e tendenciosa. sermos velhos é algo de que muitos não se orgulham. já foi, noutros tempos e conjunturas, sinónimo de respeito e mais-valia, um capital de experiência e conhecimento que a sociedade reconhecia, respeitava e disso retirava proveito para um crescimento sustentado e racional de todos. hoje, ser velho, é algo socialmente incorrecto, de tal modo que se inventaram novas designações, como sénior ou idoso, para amenizar uma decadência anunciada daqueles que já não se ajustam às vorazes necessidades duma sociedade avidamente produtiva e rentabilizável. ser velho colide impiedosamente com não ser produtivo e por via disso, ser velho contabiliza-se não só em idade, mas principalmente em índices friamente numéricos de despesa, déficit e encargos sociais, que cada vez mais precisam de ser reduzidos, enquanto não há coragem para os eliminar definitivamente. não se ser produtivo, cai mal, à luz do figurino das tendências actuais da economia, e o facto de se ter sido contributivo toda a vida, passa a ser apenas um detalhe sem importância e sem direito a respeito social. o tempo que coincide com a minha idade cronológica começa em mil novecentos e quarenta e nove, mas a minha memória apenas regista dados e episódios da minha pré-adolescência. são memórias de brincadeiras na rua, com as crianças da vizinhança, nas franjas do bairro de campolide, onde a diversão se dividia entre campeonatos de caricas, devidamente artilhadas com casca de laranja ou tangerina, para lhes dar peso e aderência às pistas traçadas a giz no alcatrão ou nos lancis dos passeios, ou então a tradicionais jogos de “bilas”, os coloridos berlindes de vidro da época, numa configuração de três covas cavadas em chão de terra, e ainda a aventuras vividas ao volante de carros velhos ou em reparação numa oficina que havia na travessa do tarujo. a tudo isto somava-se um protecionismo quase doentio, por parte dos meus pais, sempre com o natural medo de que qualquer coisa me acontecesse.

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o final da minha infância confunde-se naturalmente com o início da minha préadolescência e marca uma mudança radical, que tem a ver com a minha entrada para os pupilos. antes ainda, um ano de frequência do primeiro ano do liceu, no dom joão de castro, no alto de santo amaro, tudo isto em lisboa, cidade berço da minha existência, concede-me um raro, mas redutor contacto com a vida como ela era. as idas em grupo às sessões da tarde do jardim cinema ou do paris, ali no triângulo do largo do rato, da estrela e campo de ourique. salas de cinema já devoradas, não tanto pelo tempo, mas muito mais pela insensibilidade cultural e social dos que decidem as cidades. sol de pouca dura, pois no final do ano lectivo, os meus pais candidatam-me aos pupilos e finalmente, no início da época, talvez mais emblemática da minha vida, em mil novecentos em sessenta, transito para um mundo à parte. não é minha intenção fazer, aqui e agora, uma condenação a esta opção economicamente justificada dos meus pais, nem branquear ou diabolizar os nove anos em que estive afastado do mundo real, entre são domingos de benfica e a estrada de benfica, mas à distância, usando o tempo agora como catalisador duma reflexão inadiável, reconheço que um regime de internato é sempre uma opção contra-natura, não obstante os pontos positivos que nela se possam encontrar e que existiram, sem dúvida. não posso, no entanto, deixar de reconhecer que os nove anos que vivi neste regime, constituiram um hiato do meu crescimento natural, uma quebra no desenvolvimento dos sonhos que ainda nem sequer sabia que poderia ter tido, um cercear do natural contacto com uma realidade que, durante esses anos, me passou quase ao lado ou na qual não pude intervir com a intensidade e naturalidade que seria normal. a década de sessenta, com todas as mudanças e revoluções sociais em que foi rica, foi demasiado importante para que um jovem a tenha vivido apenas duma forma parcial e contida. reconheço que o protecionismo daqueles muros, tanto os de tijolo como os virtuais, estes últimos talvez ainda mais eficientes, proporcionaram-me algumas vantagens em termos de estudo e reconhecimento da importância da disciplina, do método e dos valores essenciais da vida, mas foi certamente a cultura da amizade, fraternidade, camaradagem e sentido da unidade, que mais me marcaram para toda a vida. não deixo porém de acreditar que a irreverência e o confronto com todos os desafios duma época, enquanto se é jovem, fazem também parte do seu crescimento e da sua afirmação para a sua chegada à idade adulta. toda esta conjuntura não anulou felizmente o meu sentido de irreverência e de procura do caminho que eu considerava mais justo, até porque, cá fora o que se vivia era também um outro cenário de “internato” de todo um povo, que eu, a pouco e pouco fui assimilando e compreendendo, num desabrochar duma consciência política que nunca mais haveria de me abandonar. o mundo cá fora era um mundo de opressão e obscurantismo que eu jamais poderia ignorar. a minha fuga era a música e a poesia, na convicção de que residia também na arte e na cultura um caminho para a libertação das mentalidades e, por consequência, da própria dignidade e autonomia das pessoas. cresci a fazer poesia e a sentir na música um constante apelo da magia do lúdico e da maravilha do sonho. naquele tempo, todos os atalhos e labirintos eram válidos para se combater e anular o espartilho político, social e mesmo policial que nos impunha um silêncio que era uma afronta ao direito inalienável do ser humano, à sua liberdade individual, intelectual e de expressão, nas mais diversas formas.

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lembro-me dum episódio marcante do ambiente que se vivia naquela casa. dada a proximidade, era prática usual deixarem os alunos mais velhos assistir a jogos importantes que decorriam no estádio da luz, onde tinhamos entrada gratuita. não sendo eu adepto do futebol profissional, nunca usufruia destas saídas excepcionais. um dia, estando anunciada a apresentação do emblemático album dos beatles “seargent pepper’s lonely hearts club band”, no cinema s. jorge, eu e mais uns colegas, como eu, indiscutíveis melómanos e admiradores dos beatles, metemos uma “pretensão de saída” para podermos assistir a acontecimento, para nós, de grande importância e significado. foi-nos negada. recorremos da decisão e fomos chamados ao oficial responsável por tal decisão. explicámos então o que aquele evento significava para nós e da injustiça que sentíamos relativamente às autorizações de saída para o futebol, não compreendendo nem aceitando que se abrissem excepções para acontecimentos desportivos e se negasse a mesma atitude para um acontecimento musical, igualmente relevante, para quem tinha outros gostos e sensibilidades culturais. foi um gesto de defesa do direito à diferença, que finalmente resultou, não obstante a incredulidade do oficial, face a tal ousadia. mas lá fomos os três, orgulhosos e felizes, assistir em quadrifonia à apresentação duma obra que marcou aquela época. era preciso ser-se irreverente, ousado e assertivo para se combater a monotonia e cinzentismo das padrões que nos regiam. o tempo corria normalmente, sem muito pensarmos nele e em breve entrei na vida profissional e activa, ingressando no exército, onde permaneci “provisoriamente” durante trinta e seis anos. confesso que nunca me senti militar a cem por cento, desempenhando, não obstante, as minhas funções com sentido de profissionalismo e responsabilidade, mas também com um constante sentido crítico e de discernimento, dos quais nunca abdiquei. perguntam-me muitas vezes a razão pela qual nunca escolhi, na altura devida, a minha passagem à categoria de oficial. direi que por uma certa dose de rebeldia e também porque o estatuto nunca esteve à frente do meu sentido de dignidade. assim sendo, congratulo-me por ter desempenhado as mais diversas funções, tanto técnicas como hierárquicas, fazendo-me respeitar e respeitando, sem nunca deixar de ser a pessoa que ainda hoje continuo a ser, não sacralizando a hierarquia, mas sabendo com ela conviver, respeitando-me a mim próprio e aos outros, fosse qual fosse a patente. a afirmação dos meus princípios e valores foram uma constante no meu percurso e a leitura do tempo, em cada uma das suas fases, um contributo indispensável à minha identidade própria e ao meu perfil de homem livre e socialmente consciente. agora, acolhido na curva indecifrável e quase imprevisível do tempo que me resta, olho para trás e procuro tudo aquilo que poderia ter sido e sinto uma energia e um sentido de vida que reside numa idade que nada tem a ver com aquilo que as pessoas vislumbram no somatório dos anos que já se viveram, porque o meu futuro continua a ser a soma dos sonhos que tive, dos realizados e dos pendentes e ainda mais de todos aqueles que ainda continuo a alimentar em cada manhã em que acordo, sem balizas para a imaginação da vida de cada dia. a minha medida do tempo são os momentos. momentos de ontem e momentos de hoje e o amanhã continua a ser a derradeira esperança, e muitas vezes, convicção de que quase tudo precisa de mudar na forma como as pessoas entendem e planeiam o mundo. e eu, tal como ontem ou ainda hoje, faço parte dessa mudança. muitos de nós, transformam-se ao longo da vida, outros

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permanecem estáticos, deixando os anos devorá-los e disso se queixam e lamentam. eu continuo insatisfeito e irrequieto e por isso, todos os dias me questiono. todos os dias vou buscar ao meu percurso de vida a força dos sonhos que ainda não se tornaram realidade e acredito que eles são urgentes e inadiáveis. sou muito mais uma pessoa de dúvidas do que de certezas, porque estas nos bloqueiam esta capacidade de evoluirmos na forma do pensamento e na busca das soluções. quem cultiva as certezas, nega a sua condição de ser racional e eternamente incompleto, porque a perfeição é um antídoto da evolução da mentalidade humana, diria antes, humanista. infelizmente, vivemos hoje dias de desesperança e quase capitulação, perante o avanço duma deturpada mentalidade que reduz os sonhos a números e o direito à vida, a uma cruel campanha, em que tudo vale para se ser mais, melhor, mais diferente e mais poderoso do que todos os outros. o trabalho deixou de ser um direito para passar a ser um irredutível sacrifício, a que todos temos de nos sujeitar para almejarmos estar vivos. já não se trabalha para vivermos, mas sim vivemos quase exclusivamente para trabalhar, sem que isso nada nos acrescente em termos de bem estar e felicidade. esta, a felicidade, é hoje um parâmetro que a moderna e fria economia considera como um exclusivo para um reduzido número de abençoados pelo sucesso, sendo que o sucesso é também, hoje em dia, outro parâmetro apenas configurado por uma rara capacidade de ambição e egoísmo. a racionalidade funciona hoje como adubo duma irracionalidade desmedida, que despreza quem não vence, e vence aqueles considerados desprezíveis ou substituíveis, à luz da ganância dum novo paradigma em que apenas a competição e o supérfluo ditam as normas. em que apenas o dinheiro conta, na sua vil condição de espelho dum poder desmedido e insensível. esta viagem no tempo que tem a idade da minha vida, transportou-me do sonho ao desespero, à raiva e à indignação mais profunda. quase tudo aquilo porque almejei e lutei, se esfumou na névoa dum progresso profundamente injusto e desigual. o valor do trabalho deixou de ser a conquista do bem estar, para passar a ser, premeditadamente, o valor do dinheiro que gera em quem já o tem em demasia. ou então em quem se vende despudoradamente para arrecadar o seu quinhão de sucesso, sem vergonha e sem pejo da pobreza que causa à esmagadora maioria daqueles, cuja única riqueza é o esforço do seu saber e dos seus braços. a viagem deste tempo veio acumulando desastres evitáveis, mas que são o húmus duma classe que emergiu dos sonhos da minha geração e deles se apoderou, abastardando-os e transmutando-os em pesadelos para a humanidade, da qual sugam o seu sangue suor e lágrimas... a única alternativa que tenho é manter esses sonhos vivos, na sua pureza e mesmo ingenuidade. é denunciar a fraude desta sociedade que se rendeu ao sucesso fácil, esquecendo que o sucesso só se justifica se contribuir para uma melhoria global das condições de vida da humanidade e se isso for conseguido com justiça, fraternidade e verdadeiro sentido social. hoje em dia, olho para o meu país e só consigo ver um amanhã que não contempla a grande maioria dum povo que já teve futuro. hoje em dia, alguém lhes roubou o futuro. aos mais velhos, o futuro dos seus últimos dias e aos jovens, o futuro duma vida toda. somos órfãos de nós próprios e do monstro que vimos crescer e acreditámos ter alma e coração...

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a única alternativa é mesmo acreditar no sonho, por mais que nos digam que o sonho é irrealizável, porque as realidades sempre nasceram do impossível e quando nascem do conformismo, rapidamente se transformam em pesadelos, em fraudes ou em tirania… 14. agosto. 2013

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histórias sem enredo

estou aqui a pensar em ti e ainda no tóto. o ruído em coro do café, as conversas emaranhadas, dissonantes e cruzadas que vêm das mesas, confundem o silêncio do meu pensamento, nas mesmo assim vou construindo palavras e frases, ideias e divagações que depois se hão-de organizar. penso em ti e no tóto porque foi com vocês que tudo começou, mas agora tenho o senhor ferreira na cabeça. tu não conheces o senhor ferreira. ninguém conhece o senhor ferreira, senão eu. o senhor ferreira, a maria da graça, a quitéria e o andriy e outros que lá ficaram ainda na ucrânia distante e misteriosa que se vai, no entanto, enraizando no léxico e nos hábitos de nós todos, mesmo se não os conhecemos para além da imigração. a ti, ninguém te conhece. és a paula, minha amiga que emigrou para o além, depois de ter perdido uma mama em combate desequilibrado contra a doença… lembro-me de ti com mama, sem mama ou apenas com a tua voz e a tua escrita que me encantavam… e não me coformo por teres desarecido assim, quase resignadamente, depois de te teres entregue a um desânimo atroz, chamando a morte, perante a incapacidade dos amigos te salvarem. mas para além de todos aqueles que já referi, há ainda a rosa maria, que tu também não conheces. talvez o único ponto em comum de tudo isto é que também eles todos não fazem ideia de quem seja a mikas e no entanto eu conheço a mikas quase tão bem como te conheço a ti. e ela conhece-me. pressente-me e observa-me ao largo, meio desconfiada meio provocadora quando aí vou. a gata que é a mikas podias ser tu e tu a mikas. quase tudo podia ser o mesmo. a rosa maria, por agora, só poderia ser ela mesma. ninguém, senão eu, a conhece ainda nesta história sem enredo. movimenta-se pela sala repleta de mesas e de gente. serve bebidas e recolhe a louça. troca cinzeiros, que este é um daqueles ainda raros antros de fumadores que envolvem o ar numa nuvem pérfida de fumo e vícios. e esboça um sorriso sereno quando se cruza com o meu olhar. a rosa maria perguntoume sobre o que escrevo e eu digo-lhe que sobre tudo e nada. não faço projectos nem traço cenários e muito menos enredos. ela olha-me intrigada. eu digo-lhe que escrevo sobre as pessoas e as coisas. sobre tudo o que se passa. o que poderia passar e mesmo sobre o que nunca se passará. sobre o passado e o futuro, que o presente são apenas as palavras e as ideias que vou tecendo nesta tela do quotidiano. ela olha-me com aqueles olhos tranquilos e transparentes que lhe deixam à mostra uma alma, se é que ela existe, pura e simples. um olhar ao mesmo tempo curioso e desconfiado que 2010 - 2014


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constrói tantas dúvidas e perguntas que nem eu sei como responder duma forma objectiva e clara. às vezes, quando o movimento do café abranda, encosta-se ao fundo do balcão e não sei se sonha. prefiro imaginar que ensaia e equaciona o presente a tentar saber mais dela própria. interroga-se sobre quem é. o que é e o que poderia ser mesmo agora se não estivesse ali absorta num olhar vago e longínquo, fora daquelas quatro paredes e pudese vaguear pelo seu universo interior e profundo, feito jardim de traços inertes e aleatórios como os que ela empresta às figuras que inventa. um jardim onde coubessem todas as pessoas que ela ama e respeita e mais os sons dos pink floyd, que se espalham na sala e ela argumenta não conhecer bem nem ligar muito, mas que vão conquistando os seus sentidos. um mundo de sonhos, fantasias e anseios que ela certamente tem mas não mostra, ciosa do seu espaço próprio e imensamente sereno. tem um ar doce e muito tranquilo mas adivinha-se nela uma ânsia enorme sobre tudo o que a rodeia. no entanto mantem-se serena e doce. pressente-se uma bondade transbordante, mas contida e um carácter humano, como se as pessoas a pudessem surpreender, mas mesmo assim, não conseguisse senão acreditar nelas. o senhor ferreira, esse, por esta altura do livro que repousa a meu lado, já tinha morrido. mais precisamente a três quartos da página cinquenta e oito, a maria da graça recebeu um telefonema anunciando que o senhor ferreira, a quem ela fazia a limpeza da casa e também a da sua incansável libido, de cada vez que ele se punha nela, se havia atirado da janela a baixo e jazia agora inerte e sem vida no passeio daquela rua de bragança. ninguém mais o terá conhecido melhor do que eu, a não ser o walter hugo mãe, que o inventou e a maria da graça, mas essa era apenas uma personagem do “apocalipse dos trabalhadores” e portanto conhecia-o por pertencerem à mesma história. para te contar quem era a maria da graça teria de folhear as páginas já lidas do romance que ando a ler e isso seria uma intromissão na esfera privada do autor, o walter hugo mãe, de quem ainda agora te falei. a mikas, ao menos, não se preocupa com nada disto porque para ela a vida e a morte só existem ao nível das suas quatro patas e ainda por cima sempre lhe ensinaram que vidas ela tinha sete. e nenhuma tinha ainda sido gasta! tudo o resto que a sobrevoa à altura das pessoas pertencerá a um mundo estranho que embora não a perturbe não a preocupa sobremaneira. a maior perturbação que a mikas teve nos últimos tempos foram aquelas cartas que o faneco lhe escreveu. que raio de papeis eram aqueles, cheios de rabiscos, que o gato da amiga da dona lhe mandava?.... a dona que por acaso és tu, paula, bem lhe tentou explicar que eram cartas e que nas cartas se diziam muitas coisas. se punham sentimentos e desejos. se contavam sonhos e desilusões e que até se faziam declarações de amor. a mikas coçou os bigodes longos e ficou-se a mirar a paula. hummm... amor!?... se ela entendesse o que era isso havia de se interrogar porque raio o faneco, um gato que ela nem conhecia, lhe escrevia cartas com essas coisas?... mas enfim... são histórias de gatos. e perguntas-me tu porque escrevo sobre tudo isto. sobre as personagens do “apocalipse dos trabalhadores”. sobre ti. sobre o tóto e a mikas e o faneco e mais a rosa maria, que também apenas eu conheço. e a rosa maria com essa mesma interrogação no olhar a lembrar tâmaras cheirosas que se nos cravam no paladar da nossa atenção. a rosa maria, curiosa e serena, a perguntar-me porque lhe levei os três

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desenhos que havia feito na véspera. é que ela aproveita os tempos mortos da sua azáfama de servir às mesas para ir rabiscando ideias gráficas e rebuscadas e eu ontem pedi-lhe esprestado o tríptico que ela tinha acabado de criar para servir de ilustração a um texto que ainda não tinha feito. no fundo todos se interrogam porque razão eu escrevo tudo isto e levo desenhos da rosa maria para casa. ah! mas já lhos devolvi. e a ela ninguém perguntará porque faz desenhos. e o que representam. o que quer significar com eles? eu escrevo porque gosto de pessoas. de bonecos. de animais e mesmo de coisas. de todas as coisas. todas as coisas são passíveis de contar uma história embora eu nem conte histórias. eu prefiro traçar pinceladas de palavras e deixar tudo num estado semi acabado. ideias pensadas e reflectidas mas raramente concluídas, para que cada um as conclua como muito bem lhe aprouver. escrevo porque gosto. gosto de momentos e pensamentos e porque gosto deles todos não sei que melhor fazer do que recriá-los em palavras. em ideias. em histórias sem história nem enredo para que perdurem na memória colectiva mesmo que essa seja apenas a minha. escrevo porque gosto de ler também o que os outros escrevem, seja em palavras, rabiscos ou apenas sentimentos. e porque estava a ler o walter hugo mãe, imaginei que poderia também ser escritor. vâ glõria a de quem apenas sonha e não concretiza… mas sente o prazer de respeitar o sonho concretizado de alguns… escrevo, portanto, porque sonho… _____________________ contribuições: • “o apocalipse dos trabalhadores”, de walter hugo mãe • “tríptico” de rosa maria

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o síndrome da peste grisalha

subitamente sentiu-se assaltado por uma sensação de incomodidade. nada lhe parecia mais estranho e no entanto, não sabia o que pensar. nada, mas nada parecia fazer sentido naquele momento e não sabia a causa daquele estado de indignação e revolta. tinha estancado, ficou ali parado, o olhar posto sem horizonte no rio que desfilava, qual oceano, à sua frente. tantas vezes ali fora, apenas para deixar o rio entrar na sua alma, deixar-se levar pelo verde da corrente em direcção à foz, o céu azul, os navios cruzando a linha de água imensa, os cacilheiros no seu vai-vem de margem a margem e a ponte, sempre atracada aos dois pilares e suspensa pelos cabos poderosos da sua estrutura familiar e nunca lhe tinha acontecido aquilo. normalmente colhia daqueles passeios uma agradável sensação de calmia e introspeção, coisa que lhe alimentava o espírito e o conciliava com um certo tipo de solidão que cultivava e lhe servia de espaldar para o seu feitio tímido e de difícil ligação ao mundo das pessoas mais extrovertidas… agora, ali especado e confuso, tentava discernimento suficiente para encontrar razão para aquela angústia, aquele sufoco que sentia, como se de repente a sua vida tivesse parado e continuasse apenas vivo, porque respirava… mais nada… tudo o resto, o amanhã, os sonhos, os projectos e a própria normalidade do dia a dia, tudo isso lhe parecia adiado, ou pior ainda, improvável e mesmo impossível… mesmo o mais logo, a seguir, a noite que havia de cair, o sono que haveria de dormir, tudo isso parecia ter sido abalado por aquela sensação de impotência sobre o controlo da sua vida… ensaiou alguns passos e concluiu que podia caminhar. não era imobilidade física que o tinha atingido. era assim qualquer coisa que lhe tomava o fluxo do pensamento e principalmente lhe ameaçava o futuro. como se, de repente, alguém lhe tivesse cortado as amarras que o ligavam ao tempo que ainda esperava viver, como se esse tempo estivesse lá, na longura da sua esperança de vida, mas ele não o conseguisse aproveitar duma forma minimamente feliz e digna, como se um peso enorme e diabólico lhe tivesse caído em cima e o reduzisse a um ser sem sustentabilidade para viver, mas apenas para existir.

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aos poucos recuperou a capacidade de olhar para além do seu pânico e viu que o rio continuava lá e mesmo que um navio enorme, carregado de contentores, subia o leito, em busca de um cais para descarregar. e mais outro, um paquete daqueles de cruzeiro, levantava amarras, com os turistas no convés, enxaguando os olhos com a últimas imagens da cidade… a cidade branca… a cidade da luz inigualável que tanto maravilhava os seus visitantes. uma luz inebriante e inolvidável, que corria nas veias e nos telhados de lisboa e pintava o casario das cores mais inimagináveis, quentes e vivas, como se de sangue se tratasse, um sangue que mantinha a cidade viva e sã, alegre e melancólica, hospedeira e ao mesmo tempo saudosista, acenando à despedida dos seus visitantes. tudo se mantinha na mesma e o sol aproximava-se do Bugio, como acontecia em todos os entardeceres, pintando em ouro a vagarosa corrente em direção ao mar que haveria de receber o Tejo em cada minuto da eternidade possível… era sempre isto que procurava ali. deixava-se arrastar pela letargia dos momentos em que mais nada lhe apetecia e sabia que ali, no cais, à beira rio, com o casario e os restos dum porto, que durante tanto tempo permaneceu fechado à cidade, dum lado e aquela planície verde, azul e às vezes cinzenta, do outro, ali podia sentir-se perto e distante, protegido e ao mesmo tempo de peito aberto aos desafios que noutras circunstâncias se lhe negavam. sabia que se iria cruzar com pessoas, pessoas que nada sabiam dele, mas que ele tinha a liberdade de recriar e para elas construir encenações mirabolantes, olhando apenas para cada rosto, observando cada gesto e postura. todos os que se cruzavam com ele, tinham uma história que germinava na sua cabeça e assim conseguia estar permanentemente acompanhado na solidão de que se alimentava. lembra-se que durante uma vida de trabalho, de cumprimento das suas obrigações, de respeito pelos outros e entrega às causas da cidadania, sempre sonhou com este tempo, agora, o tempo de todo o tempo do mundo, para se ocupar das suas motivações pessoais, intelectuais e lúdicas. aposentado e livre de horários, continuava atento e sempre que possível interventivo nas coisas da sociedade, informado e crítico, mas também colaborante e solidário com as pequenas e grandes causas da humanidade, eram, no entanto, estes serenos momentos de diálogo com o silêncio, de confronto com o espaço que o rodeava e o exercício do pensamento, que lhe transmitiam um sossego e tranquilidade que lhe alimentava a alma, os olhos e a mente. eram, muito frequentemente, a oportunidade de ter as conversas silenciosas que tomavam o lugar de outras que ele até gostaria de ter com pessoas que nunca conhecera, mas sabia existirem. as palavras, guardava-as para a escrita que sempre exercitou e que era como que uma catarse de si próprio. o leito do seu rio de pensamentos, de dúvidas e incertezas.o tempo, este tempo, era cada vez mais um tempo de desconstrução e coisificação das pessoas. uma vaga de reciclagem de resíduos sólidos e metafísicos humanos, em que a natureza do homem era descartável e substituível pela sua componente submissa apenas, em que as pessoas deixavam de ser projectos individuais em respeito pelo colectivo, para passarem a ser um projecto colectivo em benefício de entidades estranhas e diabólicas, tais como os mercados, as tendências, os índices, os ratings, os déficies, e em última análise, o dinheiro, eleito a entidade endeusada e inquestionável. tudo era legítimo em nome do dinheiro, do lucro e dos resultados duma gestão que apenas se preocupava com números, estatísticas, resgates e juros. a sociedade não crescia e só não diminuía mais 2010 - 2014


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rapidamente porque a esperança de vida aumentara e aquilo que, cientificamente seria uma conquista, era considerado pelos donos do dinheiro, como um sério entrave aos seus planos para reduzirem cada vez mais a despesa devida à população idosa e aposentada. nada os demovia, aos senhores do dinheiro, ávidos de multiplicar os seus dividendos, de condenarem esta frágil franja da população a uma condição de egoismo e esbanjamento dos dinheiros públicos, mesmo que isso representasse um ataque aos seus próprios progenitores ou mesmo avós, que descontaram toda a sua vida o que sempre lhes foi exigido pelo estado, que todos consideravam pessoa de bem. essa outrora pessoa de bem foi, no entanto, sendo assaltada por gente de má fama, usurários e especuladores. pensar nisto não melhorava nada o seu estado de desalento e indignação. vieram-lhe à memória episódios da sua vida, breves reminiscências do tempo em que ainda fazia sentido sonhar. ao cruzar-se com casais enamorados, que emanavam, mesmo assim, raios de esperança e sonho, recordou-se que também amara. hoje já só amava escondido dentro de si próprio. amava quase clandestinamente, em sonhos dormidos ou acordados e sentia falta dessa euforia da paixão. sentia-se exilado na sua própria condição de desperdício duma sociedade que se desumanizara e caminhava para formas inpensáveis de evolução. uma evolução no sentido retrógrado da razão e da própria vida. o rio, esse continuava lá, indiferente ao curso de vidas como as dele e de muitos outros, escorraçados para o lado pesaroso e excedentário da vida. restavam-lhe, por vezes, os amigos desses tempos fora de prazo, com quem se condoía num rumor surdo de reclamações e lamentos, mas nada lhe trazia esperança ou alívio a esta raiva que sentia de já quase não ter forças para contrariar um futuro anunciado de declíneo e esvaziamento crescentemente sentido. mas não era só ele que o preocupava, nem os seus congéneres de destino semelhante. era também a geração que cá deixava, os filhos, os netos, todos aqueles que a sua descendência colocara neste mundo e a quem prometera e incutira expectativas de que o futuro fosse cada vez mais risonho e prometedor, como seria natural num universo em evolução e essa dor e essa desilusão assaltavam-lhe a integridade em que sempre se formara e crescera. o que deixava aos seus não era mais um futuro, mas antes uma enorme e preocupante incerteza, que ele tinha consciência de ter germinado ali à sua frente, sem que ele tivesse tido o discernimento de que isto, mais tarde ou mais cedo, viesse a acontecer. teria sido a sua própria incúria e desatenção a permitir que os vampiros desta actualidade mórbida e voraz tomassem conta da vida de todos nós, os crentes na pureza da humanidade?... olhou mais uma vez os telhados da cidade e parecia-lhe já ver o crepitar dos tempos a consumirem tudo aquilo que ajudara a construir. caminhava cada vez mais lentamente, mais perdido e sozinho, atolado por pensamentos que já nada significavam. triste e impotente, vislumbrou um longo banco virado ao rio que insistia em chegar ao mar. um banco sem céu, sem sonhos… sem nada!... sentou-se nele e ali se deixou ficar. fechou os olhos e voltou a abri-los para um último olhar à outra margem e assim se abandonou sem porvir, acometido do agora inevitável e anunciado síndrome da peste grisalha… 25. fevereiro. 2014

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ensaio sobre a vida, que eu da morte nada sei…

viver é mais difícil do que estar morto. só que não se pode estar morto sem se ter vivido e ambos os estados têm uma sequência inultrapassável, mesmo que se queira fugir em frente, directamente para a morte. antes de se viver, é nada. e depois da vida, nada está adquirido porque ninguém ainda regressou da morte. assim, a morte, em abstracto é também nada. não, não vos venho falar da morte, embora ela esteja presente em toda a vida. venho mais falar-vos da vida, mas não apenas da vida embrulhada numa ideia de antecâmara para um paraíso, que também é nada. a vida que me atormenta os pensamentos, é aquela que nós julgamos não poder viver. é portanto, o lado difícil desta tarefa diária e consecutiva que nos liga às realidades e às mentiras de procurarmos vencer num labirinto, do qual apenas conhecemos a entrada e duvidamos muitas vezes que tenha uma ou mais saídas. viver é o trajecto e nós pensamos que é o objectivo. viver, é portanto mais do que um objectivo, porque viver implica o caminho que se faz. o modo como nós lidamos com a nossa existência e dela tiramos benefícios ou contrariedades. alegrias ou tristezas. proveitos ou perdas. a morte só é objectivo, se entre o início do ser e ela, nada existir, mas ninguém está interessado em alcançá-la, sendo, no entanto ela, uma constante que associamos à vida, porque gostamos de estabelecer patamares. no fundo existe uma auréola de mistério na morte, o que faz com que a englobemos, talvez abusivamente, no mistério da vida. quantos de nós vive a vida com uma sensação de vazio? uma ou outra vez, isso acontece. sentimo-nos ocos e sem um sentido para continuar, mas apesar de tudo, continuamos, porque a nossa intuição não é chegar à morte. é evitá-la. desafiá-la. confundi-la e ludribiá-la. isto pode parecer um bocado confuso, mas se viver não é um objectivo, mas apenas um trajecto e a morte não constitui também esse objectivo, o que são estes estados opostos que regem a nossa existência? e reparem que agora falo em existência e não em vida, porque a existência pode acontecer sem que vivamos essa dimensão temporal e espiritual. viver, existir, morrer. tudo, estados difíceis de definir e entre eles estabelecer uma relação definitiva. se a nossa existência não contiver uma vida, então ela é apenas, não um trajecto, mas uma antecâmara para a morte e isso, para além de redutor, aproxima demasiado a morte do início de tudo e mesmo que esse espaço perdure no tempo, é como se entre um e outro não existisse distância. é uma linha recta entre o nada e o nada. por isso, existem as memórias. as memórias são condimentos da vida. são estados de alma, odores, sentidos, olhares e sentimentos que nos ajudam a construir uma dimensão significativa desse nosso estado de existir. pensar é também um dos elementos

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essenciais desse trajecto. um exercício que nos ajuda a fazer desse espaço, um caminho de aquisição de experiências e conhecimento. e o amor e os afectos, um arcoiris que nos enche de cor e nos ajuda a criar a noção de comunidade e agregado humano e solidário. as memórias são então o aglutinador de tudo isto e o elemento essencial para sentirmos como existente uma coisa que não conseguimos definir, mas à qual chamamos alma. e se essas mesmas memórias se apagassem? se, por via duma vacuidade na alma, desenvolvessemos apenas uma não memória? uma ausência de ligações entre tudo o que somos e o que fazemos. e mesmo entre tudo aquilo que pensamos? seria um vazio. e alturas há, da nossa vida, em que sentimos essa inutilidade da nossa existência. é, por isso, importante termos a capacidade de ir construindo essas ligações à medida que caminhamos pelo trajecto da vida e assim possamos ir tecendo essa teia de experiências, de princípios e valores, de sucessos e de fracassos, de amores e desamores, de erros e de generosidades, de sonhos e pesadelos, porque é isso tudo que molda aquilo de que nada sabemos. a nossa alma, que talvez sintamos, mas não conseguimos explicar. chegamos então à conclusão que é a vida o trajecto mais importante da nossa existência, aquele que pode e deve marcar a diferença entre o início e o fim. viver é uma missão carregada de significado e responsabilidade, de busca e de surpresas, de ansiedades e desafios, de oportunidades e dificuldades. é, por isso, o espaço temporal que nos pode proporcionar um balanço positivo e dele podemos retirar, se o soubermos gerir com bom senso e saber, a tão almejada felicidade, que tanto nos motiva ao longo deste sinuoso percurso. é de entre as dificuldades deste percurso que podem e devem ir nascendo as sementes desse estado abençoado a que decidimos chamar felicidade. as realizações dos nossos sonhos, o alcançar das nossas metas e objectivos, a defesa dos nossos princípios e valores, a projecção dos nossos afectos na família que vamos construindo e nas amizades que fomos ganhando, a certeza de que a nossa consciência é uma retrato límpido daquilo que pensamos, fazemos e desejamos para nós e para os outros. viver é a exaltação do nosso melhor, depois de dominarmos e expurgarmos algum mal que nos possa ter contaminado em momentos mais fracos da nossa resistência humanitária. viver é o que vale a pena, entre o nada de que vimos e o nada para o qual caminhamos. um dia, vida e morte confundir-se-ão e voltaremos a ser nada. por tudo isto, devemos à vida o esforço de a tornarmos melhor, em cada dia que passa e de estendermos aos outros esse estado de sã convivência dentro de nós próprios… 29. maio. 2013

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o tudo e o nada do tempo

o passar do tempo é uma coisa tão imperceptível quanto definitiva e derradeira. mas na realidade, a contagem do tempo, que é uma coisa mais analítica e material, é talvez a única razão porque o sentimos passar, enquanto movimento da nossa existência. tudo o resto são consequências fisiológicas ou comportamentais que nos dizem, tão só, que mudamos, sem que associemos isso ao correr dos ponteiros do relógio, ao calendário ou a outro tipo de aferição temporal. parece-nos sempre que vivemos numa eternidade, que muito lá no fundo sabemos não existir, mas que acreditamos estar pendurada nesse imenso espaço que é o tempo, para uns mais exigentes, o universo, sem que nos preocupemos muito em identificar qual a sua dimensão. no derradeiro virar da página do calendário de mais um ano, sentou-se num banco do jardim a pensar em tudo isto. a pensar coloquialmente consigo próprio porque razão as pessoas teriam de obedecer ao tempo, a esta corrida, a esta competição de si mesmas com o que todos consideram o inevitável esgotar duma validade anunciada. no fundo, para que servia o tempo senão para nos acomodarmos no espaço comum que todos convencionaram aceitar? passavam pessoas, crianças brincavam, alguns cães vagueavam e as folhas das árvores já tinham caído e sido arrastadas pelo vento e pela chuva, deixando muitas árvores nuas e esqueléticas e tudo isto lhe trazia à cabeça esse enigma do tempo e da sua voracidade no consumir dos sonhos e das esperanças, dos projectos e dos desejos, das coisas que se pensam em cada dia, aguardando sempre que haja um amanhã, porque nos habituámos a construir os nossos hábitos e necessidades na consumação do tempo. e se por capricho ou impulso ele decidisse não acompanhar o tempo? se se negasse a mudar de ano, só porque sim, sem mais outra explicação, nem para ele nem para ninguém? tentou fazer um exercício simples e solitário. fechou os olhos e deixou de estar ali. isolou-se no silêncio e na escuridão de si próprio, se bem que ainda assim ouvisse o som ambiente da vida que o rodeava. fez um esforço suplementar e tentou abstrair-se de tudo. estirado naquele banco, as pernas estendidas, a cabeça caída para trás, apoiada num encosto imaginário, deixou-se estar assim, construindo a sua postura de imobilidade temporal. pouco a pouco, os sons foram-se desvanecendo e um vazio profundo invadiu-o, apenas entrecortado pelo seu próprio pensamento. tentava manter o corpo inerte e sem rigidez, assumindo uma atitude de ausência, tentando escapar deliberadamente por entre os solavancos cadenciados do tempo a que estava habituado a obedecer. sentia uma leveza indescritível, como se não tivesse peso ou corpo. apenas a energia suficiente para manter uma linha de pensamento,

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mas mesmo este, sem qualquer dependência na necessidade de existir espartilhado ou enredado pelo tempo que sempre conhecera. como se propusera ignorar o tempo, assim permaneceu numa dimensão e numa escala indefinível e imaginária. como podia ele medir uma coisa que se decidira ignorar, mais ainda, recusar a consumir e a considerar? esta sensação transmitiu-lhe um prazer desconhecido e teve mesmo a sensação de esboçar um leve sorrisso, que no entanto não poderia confirmar, mas que julgava ter-se desenhado no seu rosto, pelo leve mas perceptível contrair e distender dos seus músculos faciais, numa modulação da sua fácies que lhe transmitia essa tal sensação de sucesso da sua experiência. manteve no entanto os olhos bem cerrados, simulando uma normalidade que pensou, lhe conferiria o estado desejável aos objectivos pretendidos. assim, enquanto conseguisse fazer perdurar o corte da sua percepção com a realidade visual e sensorial do presente, talvez conseguisse fazer parar o tempo e evitar que este tivesse qualquer tipo de influência sobre si próprio. um turbilhão de diminutos fragmentos de memória da sua vida começaram a estilhaçar-se contra as paredes da sua imobilidade, mas tão minúsculos e dispersos, que nada de consistente se lhe apresentava como recordações ou imagens. era um desfilar de ténues indexações a episódios e lembranças que não chegavam para decifrar imagens ou situações que fariam parte do seu passado. esforçou-se, numa tentativa vã de construir quadros e referências que lhe pudessem trazer à memória os sinais de outros tempos, mas na realidade, o tempo misturava-se com aquele desfilar de sensações que ele não conseguia ordenar ou compreender. no tempo fora do seu tempo, agora, tudo lhe fugia à velocidade duma voraz sensação de perda dum fio, que fosse, por onde lhe fosse possível agarrar a meada de pensamentos e imagens difusas e incompletas. os olhos cerrados, o corpo semi abandonada à deriva naquele banco de jardim e lá fora, ainda, pequenos resquícios e murmúrios das brincadeiras de crianças em correrias pelo relvado, eram um último elo à realidade da qual se propusera distanciar. de repente pareceu-lhe ter sido capaz de agarrar uma dessas memórias dispersas. estava sentado à beira de um rio, qualquer coisa de exótico trazia-lhe à memória recordações africanas que correspondiam a uma janela peculiar da sua vida. havia mulheres debruçadas sobre a margem do rio, esfregando e passando roupa na água. mas o que lhe chamou a atenção, era um pequeno embrulho de gente. uma criança negra literalmente embrulhada num pano branco, a face apenas descoberta e muito erecta naquela paisagem silenciosa, em que apenas o marulhar das águas e as roupas a serem batidas contra as pedras rasteiras da margem, quebravam a quietude daquela tarde. não pôde deixar de registar a altivez daquele olhar infantil. uns olhos brilhantes e serenos, mas de uma identidade única e desafiante que olhavam o infinito, numa postura de imensa afirmação, como se enfrentasse ali todo o mundo, o universo das diferenças e sinais de toda uma raça. reconheceu então uma fotografia que havia feito daquela criança e que deveria ter arrumado, algures na baú das suas memórias de áfrica, um tempo que lhe ficara marcado para sempre no capítulo humanista das suas recordações. esforçou-se por recordar onde estaria efectivamente aquela imagem da criança negra embrulhada na sua altivez de menino frágil e ao mesmo tempo orgulhosa da sua condição. o contraste entre a sua tez escura e a alvura daquele pano 2010 - 2014


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realçava, mais do que tudo, o simbolismo daquela imagem verdadeiramente a preto e branco. tinha de procurar nos seus arquivos aquele pedaço de áfrica perdido da sua memória e nos seus papeis dispersos no tempo. a firmeza dos seus olhos fechados continuava a comandar todo o desfilar da sua memória. tentou concentrar-se, mas a difusa realidade de tempos idos e dispersos, apenas conseguia trazer-lhe à lembrança, pedaços de paisagem. tudo o que lhe vinha à ideia se confundia e começou então a questionar lugares e esparsas imagens que lhe assomavam à escuridão da sua postura. porque razão existiam árvores e campos de um verde espesso e denso. havia razão para tudo o que existia, existir? o mistério de tudo fazia-o pensar na razão de ser desse todo que o rodeava e agora nem sequer via. mas ele sabia que tudo estava lá. a natureza, as pessoas, a perfeita sintonia entre o ondular dos espaços verdes e o céu azul. e porque razão seria o céu azul e as nuvens brancas. e o sol. e a lua. e tudo o que se conjugava para criar paisagens e caminhos e veredas e ainda assim sobrar espaço para a imaginação que se cruzava com a realidade e tudo isto lhe bailava dentro da cabeça. porque razão os vales eram vales e as cordilheiras as envolviam em desenhos duma perfeição singular. tudo isto lhe assaltava o espírito e nada parecia explicar o que ele não sabia sequer questionar. levantou-se virtualmente daquele banco e passeou pelos caminhos do parque, interrogando-se de cada curva e desenho que os relvados traçavam no conjunto verde que o rodeava, mas o seu corpo ficara preso à sua imobilidade temporal. em vez de viajar no tempo, viajava apenas no espaço que ele tinha a noção de ali existir. lembrou-se de recônditos espaços parecidos com aquele, embora noutra dimensão do tempo que agora pretendia ter parado. os seus olhos cerrados e inepenetráveis a qualquer registo da realidade, erguiam como que uma barreira entre aquilo que ele tinha a noção de existir e uma outra realidade que ele mantinha arrumada no espaço da sua memória temporal. o tempo fora dele parecia realmente ter parado, mas lá muito no fundo da sua percepção daquilo que era o passado, o tempo não parava de interferir na sequência do seu pensamento. era este desfilar de imagens e sensações que o mantinha ainda ligado a qualquer coisa que o arrastava pelos trilhos duma memória que ele sabia existir dentro de si, mas que raras vezes conseguia ordenar e com ela construir uma linha consistente de episódios e vivências, a que normalmente se chamava memória descritiva do passado. sabia que ela existia, mas era-lhe difícil articulá-la com a escala difusa que essa dimensão temporal imprimia no registo de tudo o que se passara até então. as pessoas que conhecera em todo seu percurso misturavam-se com aquelas que ainda viria a conhecer e pensou que afinal o tempo que ainda estava para vir, era apenas a consequência de tudo o que já vivera. se ao menos pudesse conhecer já todos aqueles que ainda se cruzariam consigo na extensão do presente, talvez que as escolhas fossem mais fáceis de fazer e com aquilo que acumulara até então, o conhecimento, a maturidade, o domínio dos códigos e princípios de conduta, talvez essa transposição do futuro para o presente lhe trouxesse a vantagem de escolher com quem se relacionar, com quem as suas relações pudessem ser mais gratificantes e duradouras. nada do que vivera poderia talvez ser tão importante como aquilo que ainda tinha para viver.

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subitamente, qualquer coisa o trouxe à realidade, como uma impacto dele próprio com o presente. continuou sentado no banco, mas os seus olhos abriram-se inevitavelmente quando uma bola atirada por uma criança lhe bateu de raspão no corpo abandonado e perdido entre o labirinto das dimensões temporais por onde deambulava a sua mente. olhou à sua volta e lá estava tudo como antes. o parque, as pessoas, uma criança assustada que olhava para ele e tentava recolher a bola extraviada que o acordara daquele sonambulismo temporal. os tons da vegetação eram agora dourados porque o sol se punha já, semi encoberto pelas árvores e o prenúncio de um fim de dia trazia ao parque aquela auréola avermelhada duma luz solar a misturar-se com o amarelo dos candeeiros que se começavam a acender. tudo lá estava, mas as pessoas já não eram todas as mesmas, nem os pássaros chilreavam as mesmas canções. bem na sua frente, no banco que antes estava vazio, acomodavam-se agora um par de namorados, amantes ou apaixonados, que se misturavam em abraços, beijos e quiçá promessas, que os faziam num só corpo. a inevitabilidade do tempo tinha ocupado todo aquele espaço do seu abandono e ele próprio tinha sido arrastado, mesmo que sem se dar conta, pelo imparável movimento do universo reduzido àquele pedaço da cidade. conformou-se com a sua incapacidade de fazer parar o tempo. levantou-se e caminhou sem rumo, congeminando como era impossível fazer parar tudo à sua volta e como, mesmo agora, que caminhava sem sentido ou objectivo definido, era o próprio tempo que o arrastava e o condicionava na aleatória escolha de se dirigir para um ou outro lado. saísse por onde saísse do parque, pelo portão por onde entrara ou por outro qualquer dos vários que existiam, era o tempo que o comandava e o transportava no seu imenso espaço. mesmo assim, procurou sair pelo lado oposto, certo contudo de que isso não o conduziria ao outro lado do tempo. apenas o contrariava, na vâ ilusão de que o tempo tinha forma, volume ou conteúdo. mas não. o tempo era indefinível e informe. tinha a dimensão do tudo e do nada. 26. agosto. 2013

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liberdade e jogos florais

os tempos eram definitivamente outros. por aquela altura, os mancebos que hoje em dia já têm os cabelos grisalhos ou se sentem comprometidos e incomodados pelas carecas que ostentam ou tentam disfarçar, iam todos, ou quase todos, para a guerra colonial, na altura denominada de guerra nos território ultramarinos. a vida era cinzenta como os cabelos de hoje em dia, mas dum cinzento triste e acabrunhado, as conversas eram surdamente mantidas numa codificação cuidadosa, para não expressarem abertamente o verdadeiro sentido dos pensamentos, e a arte, a cultura, a informação, a própria educação e formação, eram tenazmente contidas numa malha de conceitos e restrições, medos e riscos. nada podia ser dito, escrito, representado ou divulgado, sem que a mão pesada e omnipresente da censura, não se mostrasse presente, mesmo quando se quedava na penumbra insidiosa duma aparente abstracção. o país era um grito contido de revolta, contenção essa apenas contrariada pela coragem de muitos cidadãos que, não raras vezes, com prejuízo das suas carreiras e integridade física, da sua liberdade cívica e mesmo das suas próprias vidas, ousavam lutar contra uma ditadura que não reconhecia ao povo o direito pleno à liberdade e ao exercício dos seus direitos de cidadãos. era este o país que existia nas vésperas do 25 de Abril de 1974. vivia-se então a chamada primavera Marcelista, um logro de abertura e liberdade, que ocorreu entre 1968 e 1974, na sequência do imperativo afastamento de Salazar, por via da suas diminutas capacidades físicas, e não só, após o carismático episódio da queda da cadeira ou da banheira, não se sabe bem, no forte de Santo António, nas imediações do Estoril. este período da primavera Marcelista tinha trazido alguma esperança de mudança, mas o que aconteceu foi apenas uma operação estética à velha ditadura, que se debatia com graves problemas, de entre os quais a guerra colonial era certamente dos mais graves, devido à intransigente negação a qualquer tipo de solução política que atendesse à reivindicação de soberania dos movimentos africanos de independência, que entretanto tinham já largos territórios da Guiné, Angola e Moçambique sob controlo mais ou menos efectivo. neste país, assim amordaçado e triste, toda e qualquer oportunidade era aproveitada para se tentar fazer passar mensagens, gritar, nem que sibilinamente, a denúncia da violência física, psicológica e política, sobre os cidadãos e os mais básicos direitos de cidadania. por volta de 1971, mais ou menos na mesma altura em que eu marchava para Angola, para a minha primeira e quase única comissão militar, a APE achou por bem levar a cabo uns Jogos Florais, oportunidade para abanar um pouco o marasmo que se vivia e incitar os alunos dos Pupilos do Exército a abraçarem um projecto dedicado às artes e 2010 - 2014


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à cultura. esta iniciativa, que abrangia as áreas da poesia, prosa, pintura e fotografia, era também extensiva aos antigos alunos e familiares. foi assim que, tendo eu já uma produção literária razoável, mas metida na gaveta ou conservada em inúmeros dossiers e cadernos que ainda hoje existem, resolvi também concorrer. enviei alguns poemas e um ou dois textos em prosa. e pronto, lá marchei para Luanda, deixando nas mãos da APE, para posterior entrega ao júri nomeado, as minhas obras literárias, não sem alguma esperança e ansiedade pelos resultados finais. por Angola lá andei, entre Luanda e o Luso, hoje cidade do Luena (nome do rio que por ali passa), na província do Moxico, no leste daquele maravilhoso e rico território que tanta saudade me faz sentir. já no ano do fim da minha comissão de serviço, mas ainda antes de a ter terminado, em Fevereiro de 1973, são divulgados os resultados finais e sou surpreendido por dois segundos prémios, um de poesia lírica e outro de prosa. não podia ter ficado mais satisfeito. afinal tinha havido algum reconhecimento às minhas capacidades literárias… a entrega dos prémios foi marcada para o dia 24 de Fevereiro de 1973, no Teatro S. Luís, em Lisboa, evento abrilhantado com uma intervenção do Maestro João de Freitas Branco e pela interpretação de duas peças musicais, “O Judeu” (abertura), da autoria de António Victorino de Almeida e a Sinfonia nº 9 em Mi menor OP. 95 (Novo Mundo) de Antonín Leopold Dvořák, interpretadas pela Orquestra Filarmónica de Lisboa, sob a Direcção do Maestro Ivo Cruz, na qual o meu pai era instrumentista em Oboé e Corne Inglês. naturalmente, dada a minha ausência em Angola, foi o meu pai orgulhosamente incumbido de receber os dois prémios, depois de lidos em público por Catarina Avelar e Manuel Lereno, ambos actores de reconhecido mérito, muito conhecidos naquela época. Foi com grande pena minha que não tive oportunidade de viver presencialmente aquele momento, mas passados estes anos, sinto até uma especial satisfação por ter sido o meu pai, entretanto já falecido, a ter a honra, o prazer e o orgulho de subir ao palco duas vezes, para receber os meus prémios, que significaram para ele, por certo, tanto ou mais do que eu ainda hoje continuo a sentir. a história acabaria aqui, não fosse a ironia dos factos e o 25 de Abril de 1974. ainda antes do meu regresso ao continente, como era uso dizer-se na altura, sou surpreendido por uma notícia publicada no Boletim nº 76 da APE, referente a Abril/Junho de 1974, onde numa rúbrica ainda dedicada à divulgação dos premiados nos Jogos Florais, se dava a conhecer o seguinte:

“A poesia lírica a seguir transcrita foi classificada em primeiro lugar pelo respectivo júri cosntituído por D. Maria Teresa Horta, D. Matilde Rosa Araújo e dr. António Torrado. Porém o ex-Ministro (da Guerra) Sá Viana Rebelo determinou a sua eliminação. Ao publicá-la neste número damos ao seu autor – o ex-aluno e nosso estimado consócio Ernâni Luís Valoura Balsa, em missão militar no ultramar, a reparação que muito justamente merece.”

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TRÊS POEMAS SOLTOS 1. (para o futuro dos mortos) para o futuro exijo a recolha de todas as flores para cobrir e encher as bocas dos mortos calados à força e nos olhos os dedos penosos de quem os matou 2. (da inutilidade dos heróis) é inútil haver estátuas com flores na memória e olhos de pedra sorridentes por morrer e um escopro em cada ruga da face erecta que os heróis hão-de ser feitos de pó e poeira e cobiça de quem os mandou morrer 3. (dos meus dedos verdadeiros) porque também existem os povos da tristeza e paciência e eles se mostram alegres nos dedos que escrevem para fora mas eu não consigo pôr dedos falsos nas palavras que exporto para o estrangeiro e talvez por isso eu ainda um dia morra com os dedos carimbados por esta minha fra(n()queza. independentemente de toda a alegria e realização que o 25 de Abril me transmitiu, como símbolo vivo de esperança e de liberdade, como cidadão, este inesperado prémio enche-me de orgulho e tem um significado muito especial, porque só com a abolição daquele aparelho castrador, que era a censura, me foi possível reaver algo que me pertencia e que, a não ser o advento da revolução de Abril, nunca teria tido sido do meu conhecimento. muitos de nós desvalorizamos aquilo que aconteceu há 39 anos e as gerações mais novas, as que nasceram já depois dessa data, raramente têm consciência de quanto essa efeméride lhes poderá ter mudado a vida e aberto para eles um futuro que seria obrigatoriamente diferente. ninguém pode dizer se esse futuro teria sido melhor ou pior, mas uma coisa se pode afirmar sem margem para dúvida, é que a partir dessa data, cada um deles passou a poder ter grande parte do futuro nas suas mãos e passou a poder fazer escolhas que antes nunca poderia fazer. é bom que não se analise o 2010 - 2014


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passado recente apenas à luz daquilo que hoje são dados aparentemente adquiridos, primeiro porque para isso hoje ter algum sentido de verdade, tudo o que até aqui se passou, precisou de se ter passado, bem ou mal, com maior ou menor concordância da nossa parte, mas passou-se e o passado não tem maneira de ser corrigido no seu próprio tempo, apenas no presente e no futuro. segundo, porque, mesmo hoje, aquilo que nos parece adquirido, mostra-nos, infelizmente, o presente, que existe sempre algo ou alguém cujo sentido do sucesso próprio ou a cega submissão a vontades alheias em quem acredita fanaticamente, podem representar a destruição dos nossos sonhos. e nessas circunstâncias é preciso estar-se preparado para recomeçar e recomeçar e voltar a recomeçar os sonhos perdidos, mas isso exige uma grande dose de vontade própria e perseverança. exige acreditar na nossa liberdade e vivê-la… e partilhá-la responsavelmente com os outros… 25. novembro. 2013

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sonata de sol em mim...

há dias, noites, momentos, lugares, coisa nenhuma, nenhum lugar, um espaço, um silêncio, sei lá... em qualquer situação, a música que me surge de uma qualquer fonte, capta-me e imobiliza-me. Nada mais me cativa a atenção e fico ali preso àquela melopeia de sons, de silêncios e harmonias, de frases ininterruptas que me estremecem e aconchegam e a minha mente voa para outras paragens, que nem precisam de ser exóticas, porque são essencialmente hipnóticas, desvanecidas num turbilhão de sensações que tomam conta de mim. a música percorre-me as veias, milagre genético do meu pai, que certamente respirava solfejos, claves de sol e sustenidos, tudo mastigado na palheta do oboé ou do corneinglês com que praticava em casa. escalas ascendentes e descendentes, pequenos trinados.. e quando ele enchia o peito de ar, as bochechas inchavam-lhe e depois, aqueles sons estridentes ou secos duma simples palheta de duas meias canas a fluir pelo ébano do corpo do instrumento e os dedos, num bailado revoltado e envolvente nas chaves e contra chaves de todo aquele emaranhado mecânico que ajudavam a construir os sons mais belos que sempre me encantavam. era um concerto em cada dia, um concerto de pedaços de peças que se desdobravam e que ele misteriosamente ia lendo da partitura pousada naquela estante metálica que me encantava, porque parecia um puzzle enquanto se desdobrava da sua posição de repouso, em que mais não era do que um pequeno conjunto de hastes metálicas que depois desabrochavam como um expositor de dós, de fás, de soles e de mis, que se equilibravam dependurados nas suas hastes com um pequeno detalhe revirado na sua parte superior... e tudo aquilo desenhado a tinta permanente, num trabalho minucioso e de rara beleza e equilíbrio. era o meu pai que preenchia as suas pautas com a sua própria caligrafia musical e também as preparava para os outros naipes da orquestra, noutras versões da mesma obra, em tons e tempos e diferentes harmonias, porque uma mesma obra tem sempre mil e uma obras dentro dela, de acordo com os instrumentos de que necessita para completar o quadro musical, que se quer multicolor e harmonioso... a música é uma obra viva que de cada vez que se 2010 - 2014


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interpreta, renasce e se reinventa. um sopro de vida que respeita a inspiração de quem lhe deu vida numa linguagem cifrada do pensamento... não posso deixar de recordar estes momentos que durante toda a minha meninice e adolescência vivi, com um músico em casa. um músico privativo e único, que me enchia de orgulho e mesmo sem saber, me aguçava o apetite para mais tarde, hoje em dia ainda, fazer com que a música seja um aditivo da minha corrente sanguínea, viva por dentro do meu corpo, seja parte dos impulsos que fortalecem e optimizam as ligações dos meus neurónios e se sublimem em algo interior, a que todos nós chamamos alma, mesmo sem sabermos a certeza dela existir ou conseguirmos definir o que é tal elemento sublime que estabelece o elo imaterial entre nós e o desconhecido mais profundo do nosso ser. a música continua, para mim, a ser um mistério e eu quero que assim continue. não quero saber nada que a confunda com raciocínio, com destreza, com saber ou com talento. a música está acima de tudo isso, porque nada nem ninguém pode explicar do que se trata. ninguém pode contextualizar o modo como ela surgiu ou como se desenvolveu e nunca se consumiu, nunca se esgotou, nunca se calou. lembro-me do mistério que era para mim ver o meu pai a desenhar aqueles símbolos. colcheias, semi-colcheias, sustenidos, claves de sol e outros menos decifráveis, ainda hoje. aqueles arabescos que nasciam no topo das hastes das notas, as curvas alongadas que uniam espaços temporais, abarcando umas quantas delas e que transmitiam sinais e instruções ao executante. e depois, quando ele tocava, como era possível ele conseguir ler toda aquela mescla de tanta música desenhada, mas que aos meus ouvidos surgia com tanta consistência, tanto encanto e sentimento. nunca duvidei de que a música é das criações mais fabulosas do ser humano. uma linguagem que nos encanta sem sabermos porquê, pois todas as explicações que queiramos dar são insuficientes para definir o que se sente ou para nos saciar a sede de descoberta daquilo que não temos capacidade de explicar. por outro lado, a aptidão que a nossa mente tem de conseguir, melhor ou pior, entender a mensagem musical e dela retirar o prazer, o deleite, a emoção e a devida leitura de cada melodia, é mais um mistério da natureza humana. cada músico é um mágico e cada melodia um elixir que nos transmite uma infinidade de emoções. por isso, quando um músico morre, apaga-se mais uma lamparina mágica do maravilhoso e misterioso mundo das nossas emoções e nós próprios ficamos mais pobres. por entre o desenho destas minhas palavras, uma elegia à música que humildemente aqui quis deixar, apagou-se mais uma dessas lamparinas, a de Paco de Lucia, que me encantou desde o dia em que o conheci, no álbum “Friday Night in San Francisco”, com John McLaughlin e Al Di Meola. daí para a frente estive sempre atento à sua carreira e os seus temas e o seu virtuosismo na guitarra flamenca, em muito contribuiram para infindáveis momentos de puro deleite. dos músicos e compositores, perdura a música e nós servimo-nos disso para enriquecermos a nossa vida interior, tão ou mais importante que o supérfluo daquilo que nos ocupa e preocupa a maior parte das nossas vidas... 27. fevereiro. 2014

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