palávoraz

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(expediente)

palĂĄvoraz

editor erre amaral

coedidora melissa boĂŤchat

editor de arte douglas costa Imagem da Capa patrĂ­cia ferreira


Palávoraz O termo deve ser lido com expressivo e proposital esforço desde a sìlaba tônica, e com certa pressa, para que quem a ouça quase não perceba que a letra ‗o‘ é um óbice para que a palavra, bem oralizada, chegue aos ouvidos como precisa chegar, a saber, simplesmente como ‗palavras‘. É com o termo escrito que o leitor tem de se haver com sentidos outros que Palávoraz suscita. De modo simplificado, Palávoraz dá-se, em automática tradução, como „palavra voraz‟. É curioso pensar, então, em palavra voraz como aquela que devora, que engole imoderadamente, que é insaciável, que anseia pelo que sobeja. Além disso, não é incomum pensar em palavra voraz como aquela que tem a capacidade de destruir, de causar ruìna, de corroer. Talvez um pouco menos vulgar seja pensar em palavra voraz como aquela prenhe de cobiça, aquela demasiado ambiciosa, ávida por. Em qualquer desses sentidos em que a expressão ‗palavra voraz‘ possa ser tomada, sempre manifestará uma superlativa insatisfação. Em razão de tal insatisfação, para todo o sempre irremediável, é que Palávoraz – literatura e afins vem a lume. Por meio de, portanto, ensaios, versos & prosas, traduções e afinidades eletivas, os/as palavorazes anseiam por, sem moderação, engolir leitores/as, corroer mesmices, cobiçar gozos deletreadores. Para tanto, a primeira edição de Palávoraz é dedicada ao Ardiloso Demiurgo, aquele que, como autêntico mestre da insatisfação, deixou para quem o lesse a tarefa de completar o inesgotável texto do destino literário do universo: Jorge Luis Borges (1899-1986). Tal tarefa, é sabido, está marcada pela incompletude, portanto, pela irrealização - o que faz dela, a um tempo, frustrante e desejável. Boas leituras!

Erre Amaral editor


Ernani Ssó Ademir Demarchi Manoel Herzog Maria Elisa Rodrigues Moreira Raul Arruda Claudio Celso Alano da Cruz

A Borges, com humor

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O cativado leitor

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Contemplando o microcosmo – reflexões sobre O Aleph 12 A infinita biblioteca de Jorge Luis Borges 16 Jorge Luis Borges (não) jogava xadrez 18 Borges: da biblioteca ao armazém da esquina 23


Erre Amaral

Le mot juste

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Luís Giffoni

Um tango para Borges

36

O Aleph

38

Carlos Henrique Schroeder

Leila Guenther

No palácio de machado de dois gumes 40

Rebecca Monteiro

Babel Inexpugnável

42

Melissa Boëchat

Carta al Sr. B.

46

Mariza Lourenço

A Herança

48

Alice Sant'Anna

Benjamin

52

Sobre os esquemas de segurança

53

Denise Freitas

Linha do tempo Após o traço descrito

54 55

Mariana Ianelli

De uma antiga lenda japonesa como num dos sonhos de Borges 56

Ana Rüsche

Silvana Guimarães Micheliny Verunschk

Furores

57

O Espelho de Borges Maria Kodama

58 59

Ademir Demarchi

La dicha

62

Mauro Faccioni Filho

Arte poética

64

Josely Vianna Baptista

Arte poética

66

Manuela Afonso

Amarillo

70

Mariana Collares

Olhos sobre tela

72

Ronald Augusto

El hacedor: rasuras 74

Patrícia Ferreira

Projeto Borges

86


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6

Imagem: Douglas Costa


A Borges, com humor Não lembro quem notou que Oscar Wilde dizia coisas profundas como se fossem leviandades. Acho isso ótimo. Das duas, uma, ou as duas mesmo? Wilde não dá a mìnima se for mal interpretado e demonstra uma total confiança na inteligência do leitor. Pra isso, é preciso ter cabelo no peito, como dizia meu avô. Talvez também seja preciso ser inglês. Ao menos dizem que os ingleses preferem um a piada fraca a piada nenhuma. Mas nós, brasileiros? Não há mês que não se veja um resenhista ou acadêmico machão dizendo admirar autores como Machado de Assis e Jorge Luis Borges, em que o humor e a ironia não podem ser separados da linguagem e da visão de mundo. Mas na hora do bem bom, quer dizer, na hora em que o resenhista ou acadêmico escreve seu próprio livrinho, faz uma pose das mais compenetradas ou mesmo das mais soturnas, louco de medo de não ser levado a sério, até ou principalmente quando lida com trivialidades. Não é por nada. O cara manja seus colegas. Conheço pouca gente capaz de louvar o humor e a ironia de autores desconhecidos ou pouco conhecidos. Louvar o humor de gente morta há décadas ou séculos, já com meio palmo de poeira em cima que ateste sua classicidade, ou escritores como Borges, com uma fama acachapante de erudito, cego ainda por cima – porque, cá entre nós, é difìcil pensar num cego gaiato —, é barbada, não? Errado. Andei dizendo por aì que o Dom Quixote era um dos grandes livros de humor de todos os tempos e houve quem me repreendesse: você está diminuindo o livro de Cervantes, porque Dom Quixote tem muito mais que humor. Ok. Mas esse muito mais seria outra coisa, se Cervantes não fosse o gozador que é. Tudo, nele, passa pelo filtro do humor, muitas vezes um humor de cavalariço, como definiu seu tradutor inglês, John Rutherford. Eu estaria diminuindo o Dom Quixote se o humor fosse apenas essa coisa que se vê nos programas da tevê brasileira ou nas chamadas comédias universitárias de Hollywood. 0O0 Quando se fala em Borges, fala-se em labirintos, punhais, espelhos e tigres. Labirintos, punhais, espelhos e tigres se tornaram propriedade particular de Borges. Mesmo quem nunca leu Borges sabe disso. Se eu me atrever a escrever um conto em que entre um espelho ou um tigre corro o risco de ser chamado de imitador. Ou de borgeano, mas com aquele tom que bota a palavra entre aspas. Outra coisa: quando se fala em Borges, fala-se do contista fantástico ou de violências sulinas e do escritor com preocupações metafìsicas. Muito raramente no humor de Borges. Os livros que ele escreveu em parceria com Adolfo Bioy Casares, assinados pelo carnavalesco H. Bustos Domecq – Seis problemas para dom Isidro Parodi e Duas fantasias memoráveis –, são de humor. Anos depois, assinados por eles mesmos, Bustos Domecq volta à ação em Crônicas de Bustos Domecq e Novos contos de Bustos Domecq. São textos tresloucados, sátiras ferozes a literatos e artistas, ou às próprias literatura e arte. Os resenhistas sérios e os acadêmicos – um acadêmico sério seria uma redundância – toleram esses livros como uma extravagância do gênio e seguem adiante. Tudo bem, podem ser mesmo uma extravagância, mas o resto da obra de Borges tem mais humor e ironia do que labirintos ou espelhos. Até seus ensaios estão repletos de humor e ironia. Sem falarmos em sua vida, uma vida de desastres amorosos, por sinal. Basta ler um dos inúmeros livros de entrevistas. Como é que fica, então? A seguir, umas notas mostrando o humor na obra séria de Borges e em sua vida. 0O0 Numa conversa com gente politizada, Borges se saiu com esta tirada: ―Eu tinha entendido que havia apenas boa e má literatura. Isso de literatura comprometida pra mim soa a mesma coisa que equitação protestante‖. Nos anos 1970, ou fins dos 1960, Mario Vargas Llosa tinha um programa de tevê chamado Torre de Babel. Foi a Buenos Aires entrevistar Borges e ficou horrorizado ao ver que o escritor de fama internacional morava num apartamento de três peças apenas e com goteiras. Então perguntou como ele podia viver num lugar desses. Borges respondeu que ―os argentinos não gostam de ostentação‖. No dia seguinte, Borges contou que tinha sido visitado por um ―peruano que devia trabalhar numa imobiliária, porque queria que eu me mudasse‖. Outra? Todo mundo sabia que Borges não gostava dos livros de Dostoiévski. Mas, como era famoso, convidavam-no para tudo, inclusive pra falar numa homenagem a Dostoiévski. Ele foi. Passaram o microfone pro velho e ele disse: ―Como não gosto de Dostoiévski, vou falar de Dante‖. Em 1975, morre dona Leonor Acevedo de Borges, aos 99 anos. Uma mulher, durante o velório, lamentou: ―Pobre da dona Leonor, morrer agora, quando faltava tão pouco pra completar cem anos. Se tivesse esperado um pouquinho…‖. Borges, impassìvel, respondeu: ―Vejo, senhora, que é devota do sistema decimal‖. 0O0 Sei que muita gente fica embasbacada com os adjetivos coruscantes de Borges. Mas pegue-se História universal da infâmia, livro da primeira fase, com um texto todo barroco. Há nele a gozação do próprio estilo, daquela pompa, daquele esplendor. Basta ler com atenção. A primeira história, ―O atroz redentor Lazarus Morell‖, começa com uma frase de grande ironia, ainda mais que Borges sempre é acusado de racista: ―Em 1517 o P. Bartolomé de las Casas teve muita pena dos ìndios que se extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas e propôs ao imperador Carlos V a importação de negros, que se extenuaram nos laboriosos infernos das minas antilhanas‖. 0O0 Uma das brincadeiras preferidas de Borges era atribuições falsas. Inventava autores pra dizer coisas que ele mesmo tinha pensado, inventava livros que depois os leitores tentavam achar ou diziam ter lido. Coisas assim. Nessa linha, a obra-prima é ―A aproximação a Almotásin‖, um belo conto que finge ser uma resenha e que foi publicado como resenha. Depois ele aplicou o mesmo truque em outros. 0O0

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Desenh o:

Gabrie lA

maral

Há vários contos em que a ideia central é uma piada, piada que Borges trata com a seriedade da criança que brinca, descrevendo todos os desdobramentos com lógica implacável. O mais engraçado é ver os crìticos se descabelando pra explicar a coisa. Talvez o melhor exemplo disso seja ―Pierre Menard, o autor do Quixote‖. Eu adoraria saber como Borges teve a ideia de um sujeito que resolve, em pleno século 20, escrever Dom Quixote exatamente como Cervantes escreveu, linha por linha, palavra por palavra, vìrgula por vìrgula. 0O0 Um dos contos mais badalados de Borges é ―O aleph‖. Sabe-se que há um fundo autobiográfico, uma história de amor das mais grotescas, que Borges disfarçou com maestria. Mas me interessa aqui apenas citar uma descrição que me parece muito engraçada, dentro do contexto. O primo e amante de Beatriz Viterbo, o poeta Carlos Argentino Daneri, está entregue a uma atividade intelectual ―contìnua, apaixonada, versátil e de todo insignificante‖. Escreve um poema que deve descrever toda a Terra. Em certo ponto, Borges esclarece: ―Em 1941 já havia despachado vários distritos do estado de Queensland, mais de um quilômetro do curso do Ob, um gasômetro ao norte de Veracruz, as primeiras casas de comércio da paróquia da Concepción, a chácara de Marina Cambaceres de Alvear na rua Once de Septiembre, em Belgrano, e um estabelecimento de banhos turcos perto do prestigioso aquário de Brighton‖. 0O0

Nos ensaios, Borges continua brincando e continua cheio de imaginação. Lembremos um trechinho de ―O idioma analìtico de John Wilkins‖, no livro Outras inquisições: “Essas ambiguidades, redundâncias e deficiências lembram as que o doutor Franz Kuhn atribui a certa enciclopédia chinesa que se intitula Empório celestial de conhecimentos benévolos. Em suas remotas páginas está escrito que os animais se dividem em a) pertencentes ao Imperador, b) embalsamados, c) amestrados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cachorros soltos, h) incluìdos nesta classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel finìssimo de pelo de camelo, l) etcétera, m) que acabam de quebrar o vaso, n) que de longe parecem moscas‖. 0O0 Sei não, mas me parece que os leitores que não percebem o humor de um Borges devem ler se agitando como loucos. Depois, quando escrevem suas teses, parecem moscas, tanto de longe como de perto. Ao serem confrontados com os fatos, ficam com cara de animais que acabaram de quebrar o vaso.

Ernani Ssó é o escritor que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, RS, numa tarde de neve. Em 73, entrou pro jornalismo porque queria ser escritor. Saiu em 74 pelo mesmo motivo. Humor e imaginação são seus amuletos.

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O cativado leitor O sucesso alcançado por Jorge Luis Borges e a fama obtida por seus livros principais criaram para ele uma aura de genialidade, como se suas obras mais famosas assim já tivessem nascido, num estalar de dedos. O fato é que Borges ralou muito como leitor e como escritor de um sem-fim de textos tidos como menores se comparados a essas obras já dadas como ―clássicas‖ e essa sua experiência foi fundamental para ele chegar onde chegou. Ele mesmo dizia ―que outros se gabem dos livros que se lhes foi dado escrever; eu me gabo daqueles que me foi dado aonde ler‖, ao que acrescenta que ―não sei se sou um bom escritor; creio ser um excelente leitor, ou, em todo caso, um sensìvel e agradecido leitor‖ [1]. Momentos dessa experiência de leitor/escritor esteve nas páginas de periódicos como Sur, Revista Multicolor e El Hogar, nas quais colaborou com regularidade. Esses textos foram depois reunidos em livros e finalmente recolhidos nos volumes IV das Obras Completas 1975-1988 (2.a ed., Buenos Aires: Emecé, 2003) e Textos recobrados 1931-1955 (Buenos Aires: Emecé, 2001). Os textos publicados em El Hogar, por exemplo, foram reunidos no volume Textos cautivos, da Editora Tusquets, de Barcelona, por Enrique Sacerio-Garì e Emir Rodrìguez Monegal em 1986, depois de longas negociações em cartas que cruzavam oceanos demorando meses para chegar e algumas delas não encontrando o destinatário, retardando ainda mais o trabalho. As peculiaridades dessas negociações, impensáveis nestes tempos de comunicação total, só as encontramos no bom e velho livro da rara edição da Tusquets, não incorporados às Obras Completas. É curioso, particularmente, o espaço que Borges ocupou na revista El Hogar – A Casa, uma publicação dirigida para mulheres donas de casa ou para a famìlia, na qual Borges parecia um estranho em meio aos assuntos banais desse tipo de publicação de caráter moralizante [2]. A página, publicada a cada duas semanas nessa revista semanal, foi ocupada de 1936 a 1939 e nela Borges publicava várias resenhas, em geral umas três, alguma nota literária e uma seção chamada ―Biografias sintéticas‖, em que esmiuçava a vida de algum escritor, através do seu peculiar estilo que, em poucas pinceladas pitorescas, às vezes algo irônicas, atravessava a vida do autor, em geral ilustrada ao fim com algum texto que ele traduzia. Esses textos foram batizados de ―cautivos‖ pela assumida condição de leitor por parte de Borges, no sentido de que era ―fascinado‖, ―cativado‖ pelas leituras, que transmitia aos leitores procurando dar-lhes caminhos para a descoberta desses autores que lhe chamavam a atenção, no caso de El Hogar, majoritariamente norte-americanos, explicados em chaves de leitura que estão perfeitamente utilizáveis para leitores de agora, dada a perspicácia e atenção daquele que lia. Para ilustrar este comentário sobre esse Borges leitor traduzo a seguir uma ―Biografia sintética‖, dedicada ao poeta negro norte-americano Langston Hughes, publicada em 19 de fevereiro de 1937, aocmpanhada de um poema dele tal como foi traduzido por Borges, ao qual acrescento o texto original não publicado em El Hogar, bem como uma versão dele em português, feita por Marco Aurélio Cremasco. Note-se o tom crìtico de Borges que, já de cara, diz o que pensa dessa literatura que chega adjetivada com a condição de cor do autor, indo contrariamente ao que pretensamente deseja. Em apenas quatro parágrafos temos a biografia de Hughes em cores fortes pelas poucas mas intensas cenas escolhidas por Borges para descrevê-lo. São impressionáveis a passagem do terremoto vivenciado por Hughes no México, assim como sua vida resumida nas descrições de viagem, em pouquìssimas frases, arrematadas pela informação de um prêmio ganhado em dólares por um poema e pelos livros que publicou, contrastando com a informada fome que passara na Europa. E, em seguida à biografia, o poema escolhido por esse admirável leitor. 19 de fevereiro de 1937 BIOGRAFIA SINTÉTICA Langston Hughes Exceto em alguns poemas de Countée Cullen, a literatura negra de agora , adoece de uma contradição que é inevitável. O propósito dessa literatura é demonstrar a insensatez de todos os prejuìzos raciais, e no entanto não faz outra coisa que repetir que é negra: ou seja, acentua a diferença que está negando. O poeta negro James Langston Hughes nasceu em 1.º de fevereiro do ano de 1902 em Joplin, Missouri. Seus avós maternos eram negros livres e proprietários. Seu pai era advogado. Até os quatorze anos, James Langston Hughes viveu no Estado de Kansas. Se tornou ginete aì: aì aprendeu a estribar direito e a lançar o laço certeiro. Até 1908 passou um verão no México, próximo da cidade de Toluca. Tremeu a terra, tremeram as montanhas e James Langston Hughes não se esquecerá de milhares de homens silenciosos e ajoelhados enquanto tremia lentamente a terra e o céu estava azul. Em 1919 apareceram os primeiros poemas fracamente compostos sob o influxo de Claude McKay e de Carl Sandburg. Em 1920 regressou ao México. Em 1922, depois de um ano de indecisos estudos na Universidade de Colúmbia, embarcou para a África. ―No Dakar vi o deserto‖, relata, ―roubei um macaco no Congo, provei vinho de palma na Costa do Ouro, e me salvaram, quase afogado, do Nìger‖. Essa viagem foi a primeira de muitas. ―Nos melhores restaurantes de Paris conheci a fome‖, disse em outro lugar. ―Fui porteiro de um cabaré da rua Fontaine, sem outro ganho que as gorjetas. Como os frequentadores eram franceses, o ganho – noite a noite – chegava a zero. Fui Segundo cozinheiro no Grand Duc. Passei dias felicìssimos em Gênova, sem um centavo no bolso, alimentando-me de figos e de pão negro. Lavei as pontes do vapor que me trouxe a Nova York‖. Em 1925 ganhou um prêmio de cento e cinquenta dólares por seu poema ―Uma casa no Taos‖. Em 1926 saiu seu primeiro livro: Os blues cansados. Logo, outro livro de poemas: Roupa fina para o judeu (1927), e uma novela: Não sem riso (1930).

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THE NEGRO SPEAKS OF RIVERS I have known rivers: I have known river ancient as the world and older than the flow of human blood in human veins. My soul has grown deep like the rivers. I bathed in the Euphrates when dawns were young. I built my hut near the Congo and it lulled me to sleep. I looked upon the Nile and raised the pyramids above it. I heard the singing of the Mississippi when Abe Lincoln went down to went downs to New Orleans, and I‘ve seen its muddy bosom turn all golden in the sunset. I‘ve known rivers: Ancient, dusky rivers. My soul has grown deep like the rivers. [Langston Hughes] EL NEGRO HABLA DE RÍOS He conocido rìos... He conocido rìos antiguos como el mundo y más antiguos que la fluencia de sangre humana por las venas humanas. Mi espìritu se ha ahondado como los rìos. Me he bañado en el Eufrates cuando las albas eran jóvenes. He armado mi cabaña cerca del Congo y me ha arrullado el sueño, He tendido la vista sobre el Nilo y he levantado las pirámides en lo alto. He escuchado el cantar del Mississippi cuando Abe Lincoln bajó a New Orleans, Y he visto su barroso pecho dorarse todo con la puesta del sol. He conocido rìos: Rìos inmemoriales, oscuros. Mi espìritu se ha ahondaddo como los rìos. [Langston Hughes, tradução de Jorge Luis Borges]

[1]

BORGES, Jorge-Luis. Textos cautivos – Ensayos y reseñas em El Hogar (19361939). Edición de Enrique Sacerio-Garì y Emir Rodrìguez Monegal. Barcelona: Tusquets Editores, 1986, Colección Marginales 92. [2] Conforme a transcrição feita por Enrique SacerioGarì na Introdução ao volume Textos cautivos, o editor alertava aos leitores a conduta da revista em 1914, tão familiar aos usuários de sites como o Facebook contemporaneamente: ―Sendo El Hogar uma revista especialmente dedicada às famìlias, e a fim de conservar sempre seu espìrito moralizador, esta administração rechaçará todo anúncio de tendência equìvoca e duvidosa. Salvaguardamos assim nossa responsabilidade, e no caso, improvável, de que fôssemos surpreendidos em nossa boa fé, agradecerìamos qualquer denúncia pertinente a acabar com o abuso, de modo que a publicidade de El Hogar não constitua nunca para seu público nem um perigo nem um engano‖.

O NEGRO FALA DE RIOS Conheci rios: Conheci rios antigos como o mundo e mais velhos do que o fluxo de sangue humano em veias humanas. Minha alma tem crescido profunda como os rios. Eu tomei banho no Eufrates quando as alvoradas eram jovens. Eu construì minha cabana perto do Congo e ele me embalou para dormir. Eu vi o Nilo e escalei as pirâmides sobre ele. Eu ouvi o canto do Mississippi quando Abe Lincoln desceu à New Orleans, e eu vi seu leito barrento tornar-se dourado no pôr-do-sol. Eu conheci rios: Rios antigos, sombrios. Minha alma tem crescido profunda como os rios. Ademir Demarchi nasceu em 1960 em Maringá e reside em Santos-SP. Cursou Letras/francês, mestrado (UFSC) e doutorado (USP) em Literatura Brasileira. Edita as revistas BABEL, de poesia, crìtica e tradução (6 edições de 2000 a 2003, fundada com os escritores Marco Aurélio Cremasco, Mauro Faccioni Filho e Susana Scramim, todos paranaenses) e Babel Poética (premiada em 1.º lugar entre 170 projetos no Programa Cultura e Pensamento 2009/2010 do Ministério da Cultura, que teve 6 edições no perìodo 1011-2013, com 10 mil exemplares em distribuição nacional, contendo um mapeamento da poesia contemporânea do Brasil por temas sobre como os poetas veem o paìs, o lugar em que moram, a questão das fronteiras, sua relação com o outro social, os ìndios). Edita o selo Sereia Ca(n)tadora, de livros artesanais, com 30 tìtulos publicados entre 2010-2013, vários com traduções que tem feito de poetas latino-americanos. Em 2012 ganhou Prêmio Tradução do Governo do Estado de São Paulo para compilar uma antologia das Tradições Peruanas de Ricardo Palma. Publicou: Passagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná (com 26 poetas, Imprensa Oficial do Paranpa, 2002); Os mortos na sala de jantar (Realejo, 2007 – prêmio de publicação do Governo do Estado de São Paulo); Passeios na Floresta (Éblis, 2007; Lima: Amotape Libros, 2013); Do Sereno que Enche o Ganges 11 (Dulcineia Catadora, 2007; Lima: Centro Peruano de Estudios Culturales, 2012); Ossos de Sereia (YiYi Jambo, Assunción, Paraguay, 2010; Sereia Cantadora, 2012); O amor é lindo (Sereia Cantadora, 2011); Obras cadáveres – Arthur Bispo do Rosário, Estamira, Jardelina, Violeta e o Deus do Reino das Coisas Inúteis (Edições Caiçaras, 2011) e Pirão de Sereia, que reúne sua obra poética de 30 anos (Realejo, 2012 – prêmio de publicação da Prefeitura de Santos). Participa da série Diálogos com a Literatura Brasileira (org. Marco Vasques, vol. III, Ed. Movimento/Ed. Letradágua, 2010) e da antologia da região Sul Moradas de Orfeu (org. Marco Vasques, Letras Contemporâneas, 2011). Tem também numerosos poemas, artigos e ensaios publicados em jornais e revistas impressos e em sites na internet (Coyote, Medusa, Oroboro, Rascunho, Polichinello, Cronópios, Musa Rara, Germina, Ideias/Jornal do Brasil, Tanto, Blocos On-Line, Celuzlose, Revista Pausa, Cinezen, Triplov, Agulha etc.), teve poema selecionado para integrar a Bienal Internacional de Curitiba 2013 e escreve semanalmente desde 2008 a coluna Babel no jornal O Diário do Norte do Paraná, de Maringá-PR. Site: babelpoetica.wordpress.com.

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http://www.siteastronomia.com/o-que-e-uma-galaxia

Contemplando o microcosmo – reflexões sobre O Aleph

Manoel Herzog, nascido em Santos a 24 de setembro de 1964, advogado, iniciou na literatura em 1980, segundo lugar em concurso de contos infantis promovido pela Rede Globo. Em 1987 publicou Brincadeira Surrealista, livro de poemas. Cursou Direito na Faculdade Católica de Santos. Foi finalista, com Amazônia, romance, do Prêmio Sesc 2009. Coordena oficinas de literatura em Santos, na Estação da Cidadania, pelo projeto Ponto de Cultura. Em janeiro de 2012 publicou Os Bichos, romance, pela Editora Realejo. Em novembro de 2013 lançará Companhia Brasileira de Alquimia, romance, pela Editora Patuá.

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Certa feita, durante uma palestra de Jorge Luis Borges em Oxford, um professor quis saber como encontrar o livro raro mencionado num conto. Em que prateleira de que corredor da biblioteca da universidade estava a obra, edição valiosìssima. O professor, um leitor borgeano aplicado, tinha largado tudo para ir à tal biblioteca, mas não o localizou. Achava que não tinha seguido direito a descrição, certamente feita a partir de um dado concreto, pediu ao mestre argentino, autor do conto, que o orientasse como encontrar o tal livro e ouviu, no mais perfeito inglês britânico, daquele senhor de mãos cruzadas sobre a bengala: ―My dear... it‘s not true.‖ Seguiu-se um silêncio absoluto, cortado apenas pela gargalhada de um aluno. A anedota, verdadeira ou não, caracteriza bem a personagem Borges. Não se acredita que deixe de ser, como ele diz, verdade, tão envolvente que é. Ouvi-a de um amigo santista, e não me parece difìcil ele ter confundido com uma passagem de Borges, n‘O Aleph, onde se menciona um livro de Richard Burton encontrado numa biblioteca da cidade de Santos. Quero dizer que não faço coro à gargalhada do aluno, que devia amargar rancores tìpicos contra o infortunado professor. Antes, acho que Borges ‗mentiu‘ foi ao dizer que era mentira. Tinha que ser verdade. É que eu tenho essa propensão a julgar que tudo o quanto a Literatura traz a lume é a pura verdade, e que mentira, mentira mesmo, é o mundo ilusório disto que chamamos realidade. Algo assim como a filosofia indiana da figueira invertida, onde o que julgamos ser a raiz submersa no véu da ilusão é a verdade, sendo a copa uma quimera, Maya. Não vou sozinho na minha sandice. Fernando Pessoa, outro enclausurado na concha do universo, diz o seguinte: “Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito?” (grifei)

E Leopardi, a grande voz da poesia italiana pós-Dante, isto aqui:

“Parece absurdo, mas é verdadeiro: porquanto toda a realidade é nula, as ilusões são, neste mundo, as únicas coisas reais e substanciais.”

Enfim, tudo quadra bem à epìgrafe do conto El Aleph, sacada do Hamlet de Shakespeare. “O God! I could be bounded in a nutshell, and count myself a King of infinite space.” Borges fez de Shakespeare personagem de um de seus contos. Seu Shakespeare é exatamente o escritor reduzido à condição de, conceito tão caro aos esoteristas, ―ponto antes da Criação‖, niilismo puro, é o ninguém onde cabem todos os alguéns, segundo Harold Bloom. Não se sabe quem foi William Shakespeare, nem se o pode encaixar em alguma de suas personagens, se as reduzirmos a alteregos. De se notar que Borges, assim como Fernando Pessoa, foi criado falando inglês, idioma acrescido de mais de 3.000 vocábulos pelo autor de Hamlet. Sendo ninguém, espectador ìnfimo, Borges pode contemplar isento. Da concha, entre espelhos, labirintos e bússolas, enxerga o Todo. Jorge Luiz Borges foi homem de gabinetes. Vivenciou o infinito através de seu microcosmo particular. Pertence à estirpe dos grandes artistas que, de suas clausuras, podem sobreviver ao contato com a plenitude, ou ver a face de Deus, o que é vedado ao Homem, ou ver o lado escuro da Lua, o que enlouquece os astronautas. Há outra famìlia de artistas, os grandes aventureiros, homens que impactaram o macrocosmo, viveram à exaustão e sofreram na alma e na carne o mundo, para então devolvê-lo processado em forma de arte. A este grupo pertencem Ernest Hemingway, Mark Twain, Camus, Camões, Cervantes – e Neruda. Com que deslumbre eu li, aos dezesseis anos, o Confesso que Vivi, do poeta chileno, e pensei, como eu pensei então, que pra escrever era imperioso viver. A cada nova esposa Papa Hemingway, soldado, caçador e pescador, escrevia um romance. E Richard Burton, o aventureiro inglês, cônsul de Santos/SP e grande linguista, tradutor do Kama Sutra, Bhagavad Gita, e de tantas obras em idiomas perdidos, que aventuras não viveu pelo mundo para compor sua obra. E Robert Louis Stevenson, escritor de insólitas viagens, outra referência de Borges. Foi só bem depois que pude conceber os artistas de estúdio, dos quais julgo Borges o mais apurado exemplo. Na pintura, Diego Velásquez. E destes verifico um profissionalismo extremo, uma dedicação absurda a seu ofìcio, alheados de ideologias e paixões, arte pela arte. Trabalhando como bibliotecário e se envolvendo em duas singelas relações amorosas consideráveis ao longo da vida, além de um vìnculo extremo com a mãe, que era sua secretária e morreu aos 99 anos, Borges fez digressões sobre filosofia, religião e História originalìssimas para um homem de tão parca experiência. Vida interior.

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Gauguin, o pintor francês que veio dar com os costados no Caribe e causou espécie nos salões de Paris pintando um mundo selvagem, não valia um Cézanne, que pouco saiu do atelier. Borges, preso a sua sóbria Buenos Aires, viaja até um império britânico cinzento, até Alexandrias e Sìrias, ao pampa brasileiro, ao porto de Santos, tudo de dentro de casa, da biblioteca, ou de um café, em contato com os livros e recontando a História, que tanto se parece repetir ao longo de séculos e civilizações. O Aleph, um dos mais notáveis contos de toda a História da Literatura, sintetiza bem a obra borgeana, essa caracterìstica de microcosmo que condensa todo o conhecimento. Não por acaso é dedicado a um dos dois amores da vida do escritor, Estela. Homem de vida monástica, Borges viveu a paixão, platônica, por Estela durante anos, tendo fim esta com a recusa da amada ao casamento proposto, pois Estela fazia questão de experimentar sexualmente o noivo antes de casar. Embora o escritor tenha declarado diversas amantes, a criada da famìlia sustenta que ele morreu virgem. A Beatriz Viterbo do conto é a transubstanciação de Estela. O narrador, que não por acaso se chama Borges, inicia contando de todo o ocorrido a partir do falecimento de sua amada Beatriz (alusão à musa de Dante Alighieri, morta prematura e intocadamente), de como passou a, todos os anos, no aniversário de seu nascimento, frequentar a casa dos parentes da morta, onde manteve contato com seu primo-irmão, Carlos Argentino Daneri, um escritor medìocre que julga estar escrevendo um poema épico de dimensões gigantescas, algo como um ‗canto geral‘. O narrador Borges, também escritor, despreza profundamente seu interlocutor, em cuja literatura vê um compêndio de cacofonias e exageros. É delicioso o comentar sarcástico sobre a obra do desafeto que, contudo, ao cabo do conto ganha um honroso segundo lugar num concurso literário, sendo o primeiro e o terceiro colocados outros acadêmicos tão mofados quanto Carlos Argentino. Borges personagem, o grande escritor/narrador, é sumamente ignorado, sequer uma desonrosa menção honrosa. Alusão clarìssima à insuperável frustração do mestre portenho que não ganhou o Nobel, injustiça que a História da Literatura nunca remediará. Neruda, stalinista e lobista, levou o prêmio. É um ponto interessante a se notar o comedimento sexual de Borges em contraponto ao apetite voraz de Neruda, homem de tantos amores. Tão comedido no amor erótico quanto Borges parece ter sido nosso Machado. Noto, e minha visão é a de um brasileiro que não tem como deixar de comparar o maior argentino ao nosso maior, a primeira similitude com Machado de Assis na crìtica impiedosa que Borges, o narrador, faz ao torpe poeta Carlos Argentino. Lembra sobremaneira a passagem inicial do Dom Casmurro, tìtulo do romance e apelido que o narrador machadiano ganha ao desdenhar os esboços de um pretenso literato. Da segunda similitude falamos adiante. Borges, o narrador, paulatinamente, da oitiva do poema ruim de Carlos Argentino, chega à confissão de que a casa onde seu interlocutor vive será em breve demolida pelos capitalistas portenhos, que querem ampliar seus negócios. Carlos Argentino fica revoltado porque, demolida a casa, perderá seu grande repositório literário, o Aleph que mantém escondido no sótão. Borges se interessa pelo Aleph, que é nada mais nada menos que um centro energético, um chacra geográfico-histórico, um portal, um elo com mundos superiores, de onde se pode mirar, a um só tempo, toda a História da Humanidade, todos os acontecimentos, toda a ciência e arte, o macrocosmo visto num pequeno umbigo de diâmetro não superior e três centìmetros. Concluo que o Aleph significa o dom da Poesia, que casualmente tocou ao medìocre Carlos Argentino. A segunda similitude noto no que o deslumbrado Borges assistiu quando lhe foi permitido, por Carlos Argentino, contemplar por instantes o tal Aleph. Segue a descrição: Entonces vi el Aleph. Arribo, ahora, al inefable centro de mi relato, empieza aquí, mi desesperación de escritor. Todo lenguaje es un alfabeto de símbolos cuyo ejercicio presupone un pasado que los interlocutores comparten; ¿cómo transmitir a los otros el infinito Aleph, que mi temerosa memoria apenas abarca? Los místicos, en análogo trance prodigan los emblemas: para significar la divinidad, un persa habla de un pájaro que de algún modo es todos los pájaros; Alanus de Insulis, de uma esfera cuyo centro está en todas partes y las circunferencia en ninguna; Ezequiel, de un ángel de cuatro caras que a un tiempo se dirige al Oriente y al Occidente, al Norte y al Sur. (No en vano rememoro esas inconcebibles analogías; alguna relación tienen con el Aleph.) Quizá los dioses no me negarían el hallazgo de una imagen equivalente, pero este informe quedaría contaminado de literatura, de falsedad. Por lo demás, el problema central es irresoluble: la enumeración, si quiera parcial, de un conjunto infinito. En ese instante gigantesco, he visto millones de actos deleitables o atroces; ninguno me asombró como el hecho de que todos ocuparan el mismo punto, sin superposición y sin transparencia. Lo que vieron mis ojos fue simultáneo: lo que transcribiré sucesivo porque el lenguaje lo es. Algo, sin embargo, recogeré. En la parte inferior del escalón, hacia la derecha, vi una pequeña esfera tornasolada, de casi intolerable fulgor. Al principio la creí giratoria; luego comprendí que ese movimiento era una ilusión producida por los vertiginosos espectáculos que encerraba. El diámetro del Aleph sería de dos o tres centímetros, pero el espacio cósmico estaba ahí, sin disminución de tamaño. Cada cosa (la luna del espejo, digamos) era infinitas cosas, porque yo claramente la veía desde todos los puntos del universo. Vi el populoso mar, vi el alba y la tarde, vi lãs muchedumbres de América, vi una plateada telaraña en el centro de una negra pirámide, vi un laberinto roto (era Londres), vi interminables ojos inmediatos escrutándose en mí como en un espejo, vi todos los espejos del planeta y ninguno me reflejó, vi en un traspatio de la calle Soler las mismas baldosas que hace treinta años vi en el zaguán de una casa en Frey Bentos, vi racimos, nieve, tabaco, vetas de metal, vapor de agua, vi convexos desiertos ecuatoriales y cada uno de sus granos de arena, vi en Inverness a una mujer que no olvidaré, vi la violenta cabellera, el altivo cuerpo, vi un cáncer de pecho, vi un círculo de tierra seca en una vereda, donde antes hubo un árbol, vi una quinta de Adrogué, un ejemplar de la primera versión inglesa de Plinio, la de Philemont Holland, vi a un tiempo cada letra de cada página (de chico yo solía maravillarme de que las letras de un volumen cerrado no semezclaran y perdieran en el decurso de la noche), vi la noche y el día contemporáneo, vi un poniente en Querétaro que parecía reflejar el color de una rosa en Bengala, vi mi dormitorio sin nadie, vi en um gabinete de Alkmaar un globo terráqueo entre dos espejos que lo multiplicaban sin fin, vi caballos de crin arremolinada, en una playa del Mar Caspio en el alba, vi la delicada osadura de una mano, vi a los sobrevivientes de una batalla, enviando tarjetas postales, vi en um escaparate de Mirzapur una baraja española, vi las sombras oblicuas de unos helechos en el suelo de un invernáculo, vi tigres, émbolos, bisontes, marejadas y ejércitos, vi todas las hormigas que hay en la tierra, vi un

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astrolabio persa, vi en un cajón del escritorio (y la letra me hizo temblar) cartas obscenas, increíbles, precisas, que Beatriz había dirigido a Carlos Argentino, vi un adorado monumento en la Chacarita, vi la reliquia atroz de lo que deliciosamente había sido Beatriz Viterbo, vi la circulación de mi propia sangre, vi el engranaje del amor y la modificación de la muerte, vi el Aleph, desde todos los puntos, vi en el Aleph la tierra, vi mi cara y mis vísceras, vi tu cara, y sentí vértigo y lloré, porque mis ojos habían visto ese objeto secreto y conjetural, cuyo nombre usurpan los hombres, pero que ningún hombre ha mirado: el inconcebible universo. Sentí infinita veneración, infinita lástima. Remeto o leitor ao capìtulo sétimo das Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Delírio, onde o protagonista, em delírio, vê a passagem dos séculos: Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, — flagelos e delícias, — desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão. Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, — de um riso descompassado e idiota. — Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, — talvez monótona — mas vale a pena. Quando Job amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere me; a coisa é divertida, mas digere-me. A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: — ―Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a decifração da eternidade.‖ E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranqüilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Epifanias análogas, delìrios de grandes mestres da Literatura que enxergam toda a experiência humana a partir de um ponto privilegiado. Carlos Argentino Daneri, um poeta ‗torpe‘, como Borges o qualifica (amo esta palavra), foi premiado. Tinha um Aleph, ainda que Borges, despeitadamente, o considerasse um Aleph falso. O sentido da palavra ‗torpe‘, em espanhol, mais se aproxima de fraco. A raiz semântica foi desviada no português, para nós lusófonos torpe mais se aproxima de vil. A origem é a mesma: torpor, entorpecer, etc. Um poeta torpe, fraco, foi premiado, Borges excluìdo. Neruda ganhou o Nobel, que Borges não. Carlos Argentino Daneri é a referência borgeana a Pablo Neruda, o apontamento conformado com o destino, a Providência, que outorga Alephs, ainda que supostamente falsos, aleatoriamente.

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A infinita biblioteca de Jorge Luis Borges ―Eu afirmo que a biblioteca é interminável‖, diz Jorge Luis Borges no já clássico conto ―A biblioteca de Babel‖. A biblioteca é uma figura emblemática na obra do escritor argentino, e nos possibilita pensar essa obra como espaço de diálogo entre os mais diversos textos e leituras, constituindo-se como um lugar de memória e de saber marcado por certo ―efeito de infinito‖. Mas o que conformaria o infinito na biblioteca de Borges? Estudos acerca dos aspectos matemáticos da obra de Borges, como o desenvolvido por Jacques Fux (Literatura e matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o Oulipo, Tradição Planalto Editora), esclarecem que ainda que a Biblioteca de Babel comporte um número imenso de livros, o qual não seria abarcado pelo próprio universo, esse número não é infinito. No entanto, o efeito narrativo de tal imensidade de volume é o da infinitude, uma vez que essa biblioteca é impossìvel de ser percorrida e mesmo vislumbrada em sua completude por qualquer ser humano. A Biblioteca de Babel é, pois, infinita, assim como o são as mil e uma noites, tal como lidas por Borges: no livro Sete noites, que apresenta uma série de suas conferências, ele afirma que o tìtulo O Livro das Mil e Uma Noites “é um dos mais belos do mundo”, e credita essa beleza ao fato de ―que para nós a palavra mil é quase sinônima de infinito‖. Nessa perspectiva, ainda segundo Borges, se dizer mil noites já é dizer infinitas noites, falar em mil e uma noites é acrescentar algo ao que já é infinito, alargando ainda mais uma ideia que, em tese, não poderia ser mais ampla do que já é... É esse procedimento, esse acrescentar algo mais àquilo que já seria ilimitado, o que acaba por fazer da obra-biblioteca de Jorge Luis Borges infinita. Ele, que adora brincar com seus leitores, provoca esse ―efeito de infinito‖ de forma magistral, iludindo-nos, criando falsas pistas e propondo fios de Ariadne falaciosos que, em lugar de nos guiarem por seus labirintos, fazem com que nos percamos entre espelhos que multiplicam desertos sem fim. Em ―A biblioteca de Babel‖, conto no qual nos apresenta a essa biblioteca ―interminável‖, o argentino faz isso mais de uma vez. Datado de 1944, para aqueles que conhecem bem o território borgiano e que por ele transitam com desenvoltura, o conto se deixa perceber como uma réplica mais desenvolvida de outro texto seu, ―La Biblioteca Total‖, que havia sido publicado cinco anos antes na revista Sur e que já nos leva a pensar nesse excesso que é fazer do que já é “total” algo também “interminável”. Nesse texto Borges discorre sobre os perigosos traços da Biblioteca Total, identificando sua origem na Metafísica de Aristóteles, na passagem em que se afirma que a formação do mundo se deu pela conjunção fortuita de átomos não homogêneos, os quais apresentavam diferenças de posição, de ordem e de forma. A isso, acrescenta a informação de que Aristóteles afirma que os elementos de uma tragédia e de uma comédia são os mesmos: as letras do alfabeto. Já está aì o argumento sobre o qual Borges construirá sua Biblioteca de Babel, uma biblioteca total cuja base está na indefinida e interminável possibilidade de combinações das letras do alfabeto. Com isso, Borges brinca com sua própria estratégia, fazendo de “La biblioteca total‖ e ―A biblioteca de Babel‖ duas versões de uma mesma narrativa, escritas por meio de uma combinação diferente desse material de base que são as letras, e que poderiam ser recombinadas em milhares de outras variantes. Isso fica evidente na própria trama, quando Borges aponta que um dos ―fatos notórios‖ de Babel é a ocorrência da totalidade com pequenas variações: segundo o narrador, ainda que sejam criticados os homens que procederam à eliminação das obras inúteis de Babel (uma vez que não existiriam obras inúteis, pois ―cada exemplar é único, insubstituìvel‖), essas obras praticamente não se perdem, já que ―(como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-sìmiles imperfeitos: de obras que não diferem entre si a não ser por uma letra ou por uma vìrgula‖. Mas a brincadeira de Borges de acrescentar sempre mais um ao já infinito não para por aì. Afirma-se no conto que na Biblioteca de Babel ―basta que um livro seja possìvel para que exista. Somente fica excluìdo o impossìvel‖. Ora, essa biblioteca total e interminável não apenas contém tudo o que é possìvel existir mas, também, todas as variações mìnimas que podem ser aplicadas a esse possìvel! Contudo, ainda é pouco que Babel seja uma biblioteca total e interminável do possìvel. É preciso continuar com as adições. O acréscimo ocorre então, também, para além de sua possibilidade conceitual, com a apresentação de sua descrição fìsica, que começa da seguinte maneira: ―O universo (que outros chamam a Biblioteca) é composto de um sem número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no meio, cercados por balaustradas baixìssimas.‖ Uma vez mais, Borges propõe que a biblioteca extrapole sua própria infinitude ao aproximá-la do ―universo‖, um universo composto por ―um sem número indefinido e talvez infinito‖ de estruturas de armazenamento (afinal, para abarcar livros infinitos é preciso espaços também intermináveis). Insaciável, Borges continua a descrever esse espaço infindável, concluindo com a seguinte afirmativa: ―No corredor há um espelho, que fielmente duplica as aparências.‖

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Com esse movimento, Babel (assim como o Aleph, aquele pequeno ponto capaz de abarcar todos os tempos e todos os espaços do mundo, que fosse total e interminável, a biblioteca ainda multiplica-se e engloba a si mesma na reduplicação infinita do espelho, de modo a fazer com que uma totalidade apresente-se contida em outra totalidade, numa mise en abyme do infinito... O ideal de conter tudo em relação ao qual a mise en abyme é explorada caminha, pois, rumo ao excesso, ao esgotamento, à exaustão, e diz assim, ao mesmo tempo, da perda de controle, da monstruosidade e da inutilidade desse tipo de projeto. Como a memória total de Funes lhe impos-

Foto: Melissa G. Boëchat

existentes ou que poderiam ter existido) reduplica o já infinito: não bastando

sibilitava o pensamento, entre as inumeráveis prateleiras de Babel dissemina-se a inacessibilidade a qualquer saber que elas possam conter: tudo está ali, mas não pode ser encontrado... Se a busca por uma composição infinita de acervos e pelos saberes que a partir deles podem ser produzidos apresenta-se perante qualquer projeto de biblioteca apenas como utopia irrealizável, ela se mostra como um procedimento narrativo dos mais válidos e produtivos, especialmente em um escritor como Borges, que a desdobra ao longo de sua obra. Alberto Manguel, que durante um perìodo de sua vida visitou Borges para ler para ele aqueles livros de que a cegueira o privara, nos lembra que, levada às últimas consequências, a biblioteca total ―só pode se cumprir quando os limites da biblioteca coincidirem com os limites do próprio mundo‖ (A biblioteca à noite, Companhia das Letras). Essa é uma situação cartográfica também narrada por Borges, em ―Do rigor na ciência‖, texto no qual se indica que ―os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele‖. Borges vai além: a biblioteca total pode estar contida em um único exemplar, o livro total, o ―livro dos livros‖, objeto já mencionado como um dos possìveis exemplares de Babel quando se nos apresenta a busca dos mìsticos por ―um grande livro circular de lombada contìnua‖, no momento em que o narrador afirma acreditar que ―deve existir um livro que seja a chave e o compêndio perfeito de todos os demais‖ ou quando lemos numa nota de rodapé a afirmação da inutilidade da vasta Biblioteca feita por Letizia Álvares de Toledo, segundo quem, ―a rigo r, bastaria um único volume, de formato comum, impresso em corpo nove ou dez, que constasse de um número infinito de folhas infinitamente finas‖. Se não pode ser encontrado nas prateleiras de Babel, o livro dos livros pode ser encontrado nas prateleiras de Borges, quando reaparece, desdobrado, em ―O livro de areia‖, publicado em 1975. Percebido como um ―livro sagrado‖, ―um amuleto‖, um ―livro diabólico‖ ou ―monstruoso‖, o Livro de areia traz em si a totalidade de Babel. Ao tentar encontrar sua primeira página, o narrador descobre-se incapaz de fazê-lo, uma vez que a cada tentativa sua era como se as folhas ―brotassem do livro‖, situação que se repete ao tentar localizar sua página final. Ao procurar fazer um catálogo das pequenas ilustrações que apareciam a cada duas mil páginas do livro, ele rapidamente preenche um pequeno caderno, sem perceber nenhuma repetição. Uma vez mais a totalidade mostra-se irrealizável e inútil: o livro infinito geraria também um catálogo infinito, um comentário infinito a seu respeito, assim como seria impossìvel recuperar as informações vislumbradas em suas páginas. Possuir toda a escrita do mundo, seja numa biblioteca ou num livro, seja na ficção ou na história, mostra-se uma tarefa inatingìvel, assim como o seria tentar esgotar a obra de Jorge Luis Borges, constituìda a partir do ―efeito de infinito‖ que aqui se procurou abordar. Afinal, e aqui afirmo eu, a obra-biblioteca de Borges é interminável.

Maria Elisa Rodrigues Moreira é graduada em Comunicação Social, Mestre em Teoria da Literatura e Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais, com tese em que aborda as obras de Jorge Luis Borges e de Italo Calvino; desenvolve atualmente pesquisa de pósdoutorado junto à Universidade Federal de Uberlândia (PNPD/CAPES).

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Jorge Luis Borges (não) jogava xadrez LO NUESTRO Amamos lo que no conocemos, lo ya perdido. El barrio que fue las orillas. Los antigos, que ya no pueden defraudarmos, porque [son mito y esplendor. Los seis volúmenes de Schopenhauer, que no acabaremos [de leer. El recuerdo, no la lectura, de la segunda parte del Quijote. El oriente, que sin duda no existe para el afghano, [el persa o el tártaro. Nuestros mayores, con los que no podriámos conversar [durante un cuarto de hora. Las cambiantes formas de la memoria, que está hecha de [olvido. Los idiomas que apenas desciframos. Algún verso latino o sajón, que no es otra cosa que un hábito. Los amigos que no pueden faltarnos, porque se han muerto. El ilimitado nombre de Shakespeare. La mujer que está a nuestro lado y que es tan distinta. El ajedrez y el álgebra, que no sé.[1]

―Amamos lo que no conocemos, lo ya perdido‖, anuncia o primeiro verso de um poema enumerativo pouco conhecido de Jorge Luis Borges. Entre o que não conhecemos e o que já se perdeu, o inventário nostálgico se confunde com o território poético. São 14 itens relacionados em 14 versos. São versões precisas (preciosas) de um mundo especular que encontra sua melhor tradução no surpreendente ―El ajedrez y el álgebra, que no sé‖. Assim como parte da vida está constituìda pelo não sabido, pela ausência profunda, pela matéria inalcançável, a consciência da ausência dos amigos mortos ou o ilimitado nome de Shakespeare não se mostram suficientes para preencher esse interstìcio. Misturando estilhaços, mistérios e curiosidades, Borges – em exercìcio metafìsico – faz uma relação intelectual dos elementos que caracterizam a aventura humana. São elementos que – de alguma maneira – estão intimamente relacionados com os desìgnios divinos. Por vias transversas, travessas, muitas vezes adversas, para fornecer melhor sabor às brincadeiras que fazem com os sentimentos dos homens e das mulheres, os deuses criaram representações simbólicas da guerra – muitas vezes encenadas pelos algarismos e pelas peças que deslizam pelas 64 casas que compõem o tabuleiro de xadrez. Ao confessar que não domina a álgebra, que não sabe jogar xadrez, utilizando como parâmetro a matéria poética, o poeta também acena para uma contundente alteração no ordenamento utilitário.

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George Steiner, em ensaio perspicaz sobre o xadrez, ―A Morte dos Reis‖, reitera esse pensamento: Apesar de toda a riqueza de conteúdo, apesar de toda a soma de história e de instituições sociais investidas neles, a música, a matemática e o xadrez são esplendorosamente destituídos de finalidade prática (a matemática aplicada é apenas um serviço de encanador mais refinado, uma espécie de marcha para a banda militar). São metafisicamente triviais, irresponsáveis. Recusam-se a manter relações com o exterior, a tomar a realidade como árbitro. Esta é a fonte de seu sortilégio. Eles nos falam – como faz também um processo similar, mas muito posterior, a arte abstrata – da capacidade única do homem de ―construir contra o mundo‖, de conceber formas que são bobas, totalmente inúteis, austeramente frívolas. Tais formas não respondem à realidade e, portanto, como nenhuma outra, são invioláveis diante da autoridade banal da morte. [2]

Somente o inútil serve para impor outro ordenamento. O jogo de linguagem proposto para o leitor intercala o lúdico na relação lúcida que subtrai as certezas e permite que a poesia, a matemática, o xadrez e a música se transformem em algo aquém do comportamento normatizado. Os pares produzidos pelas afinidades eletivas (poesia/música, xadrez/matemática) estabelecem a confusão. Ou melhor, a fusão. O amalgama permite visibilidade para o axioma de Alice, fabulosa (ao produzir fábula) enxadrista menor: ―há a sala que você pode ver através do espelho, só que as coisas trocam de lado‖ [3]. A arte se transmuta em jogo, o jogo adquire caracterìsticas de arte. E o inútil persiste, insiste, ilude, diverte. O inìcio da existência humana, intimamente relacionada com o arrumar as peças na posição inicial, com o efetuar o primeiro movimento, se completa com a espera pela resposta. Também significa seguir em frente, um lance após o outro, compondo com audácia e criatividade a partida que dá sentido à vida. E pouco importa se as diversas tentativas de ludibriar o destino ou o tempo consumido na tarefa são suficientes para estabelecer um parâmetro existencial ou alguma forma (simbólica, alegórica, metafórica, concreta) de glorificar o rito e o mito. Sentado diante do tabuleiro, calculando as possibilidades matemáticas do próximo lance, imerso em pensamentos profundos, o enxadrista constrói o próprio alheamento emocional. [4] Ricardo Reis (também conhecido como Fernando Pessoa) propõe uma imagem arquetípica e que não está distante do entorpecimento que caracteriza a conduta de alguns viciados em drogas sintéticas: Quando o rei de marfim está em perigo Que importa a carne e o osso Das irmãs e das mães e das crianças? Quando a torre não cobre A retirada da rainha branca, O saque pouco importa. E quando a mão confiada leva o xeque Ao rei adversário, Pouco pesa na alma que lá longe Estejam morrendo filhos. [5]

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As emergências da vida se diluem no imobilismo relacionado com o tempo de duração da partida. Diante da possibilidade do mundo acabar, a partida de xadrez continuará sendo jogada. A atemporalidade, entendida como necessidade psicológica de eliminar o escorrer do tempo, amplia a perspectiva de Bartleby, o escrivão, aquele que gostava de repetir ―ad infinitum‖ o mantra sagrado, ―Eu prefiro não fazê-lo‖ [6], pois – enquanto durar a partida – pouco importam as consequências. Seja na vida, seja diante da catástrofe, o próximo lance é que determinará o andamento das coisas que transitam pelo mundo. Assim como as diferenças entre o certo e o errado, entre vencer ou perder (distinções que nem os deuses conseguem entender, prever ou suportar). Antes de efetuar o movimento, o enxadrista examina com cuidado a posição do jogo, calcula as variantes, prevê as alternativas do adversário. Diante do tabuleiro também é o Outro. Percebe que não está sozinho. Que, em muitas oportunidades, ele mesmo é o inimigo. A mão trêmula desliza cuidadosamente até a peça. Quando o jogador finalmente executa o lance, rompe o silêncio. O ruìdo se propaga pelo ambiente com a mesma força com que o poema invade a página em branco. A surpresa não está no que é dito ou realizado, está no som que se segue ao momento de inércia, na respiração acelerada, na possibilidade de propor o inusitado. Mas isso é uma sensação temporária, um instante de perplexidade. ―Terminado o jogo, rei e peão voltam à mesma caixa‖, dizem os antigos. Depois da tempestade, a percepção da igualdade, os jogadores, o tabuleiro e as peças são feitos do mesmo barro. Em ―El Hacedor‖, livro de 1960, Jorge Luis Borges publicou dois poemas denominados ―Ajedrez‖: I En su grave rincón, los jugadores Rigen las lentas piezas. El tablero Los demora hasta el alba em su severo Ámbito en que se odian dos colores. Adentro irradian mágicos rigores Las formas: torre homérica, ligero Caballo, armada reina, rey postrero, Oblicuo alfil y peones agressores. Cuando los jugadores se hayan ido, Cuando el tiempo los haya consumido, Ciertamente no habrá cesado el rito. En el Oriente se encendió esta guerra Cuyo anfiteatro es hoy toda la tierra. Como el outro, este juego es infinito.

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II Tenue rey, sesgo alfil, encarnizada Reina, torre directa y peón ladino Sobre lo negro y blanco del camino Buscan y libran su batalla armada.

[1] Disponível In: www.amediavoz/

No saben que la mano señalada Del jugador gobierna su destino, No saben que um rigor adamantino Sujeta su albedrío y su jornada.

borges.htm#LONUESTRO.

También el jugador es prisioneiro (La sentencia es de Omar) de otro tablero De negras noches y de blancos dias.

e outros textos da revista The

Dios mueve el jugador, y este, la pieza. Qué dios detrás de Dios la trama empieza De polvo y tempo y sueño y agonías? [7]

mas de muitas possibilidades‖ [8]. São as possibilidades, assim como

[3] CARROLL, Lewis. Através do Espelho. In: Alice – Edição comentada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. p. 137. [4] Na novela ―Schachnovelle‖ (ZWEIG, Stefan. Amok e Xadrez. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 93-160), um prisioneiro polìtico durante a II Guerra Mundial, diminui a solidão reproduzindo partidas de um livro de xadrez (que roubou de um oficial nazista). Para compor o tabuleiro, utiliza o desenho em forma de xadrez do lençol. As peças são construìdas com migalhas de pão. Esse momento de distanciamento mental lhe permite acumular forças para suportar as longas sessões de interrogatório e tortura. [5] PESSOA, Fernando. Ficções

no Aleph, onde ―Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas

de Interlúdio 2-3 (Odes de

coisas, porque a via claramente de todos os pontos do universo‖ [9],

Ricardo Reis, Para Além do outro

que permitem ao xadrez se reproduzir nas múltiplas surpresas que es-

Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

tão contidas (ou omitidas) na linguagem.

1982. p. 105.

Amalgamados pelo tema, como se fossem gêmeos siameses, os poemas dialogam de forma antagônica e complementar. Ao mesmo tempo, estabelecem o andamento do combate filosófico. Transportam o embate mental para o reino da linguagem. Segundo Paulo Sampaio, ―Borges, o escritor e o mago de linguagens, sabia que a peça literária (texto/tecido) arquiteta-se como o jogo sobre o tabuleiro: de um lance,

Acesso em 10/10/2003. [2] STEINER, George. A Morte dos Reis. In: Tigres no Espelho New Yorker. São Paulo: Globo, 2012. p. 366. (Biblioteca Azul).

Oceano de C[oelho] Pacheco).

[6] MELVILLE, Herman. Bartleby, o Escrivão. Rio de Janeiro:

No primeiro ―Ajedrez‖, o deslizar dos versos sobre a estrutura de soneto in(tro)duz a percepção de que, diante do tabuleiro, o esforço vital se

Record, 1992. [7] BORGES, Jorge Luis. Obras Completas (1952-1972). Barcelo-

torna inequìvoco.Jogar não se mostra suficiente. Urge avançar. Ciente

na: Emecé Editores, 1989. p. 191.

de que, uma vez iniciada a partida, as possibilidades são infinitas – em-

[8] SAMPAIO, Paulo. Sobre

bora essas, assim como a vida, sejam constantemente associadas ao ato amoroso. Na medida em que as peças (próprias, do Outro) vão desaparecendo do tabuleiro, as ilusões também são substituìdas pelo

―Ajedrez‖ de Borges. Revista Jogo Aberto, nº 14, ano II, julho de 1986. São Paulo, Loja de Xadrez Ltda, 1986. p. 166. [9] BORGES, Jorge Luis. O

essencial. No momento em que a vida, o amor e a morte seguem uma

Aleph. 6 ed. Rio de Janeiro: Glo-

trilha passional, o canibalismo se transforma em um ato amoroso extre-

bo, 1986. p. 133.

mo, ―in extremis‖. A extinção fìsica também é um objeto amoroso, reinvenção da relação, a revelação afetiva transmutada em refeição – comprovação de que o objeto do desejo raramente se manifesta de forma lógica, consciente. Por isso, a necessidade da palavra-chave, cha-

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ve 21


que abre as portas da libido, que ilumina as portas do Paraìso: ―comer‖ as peças do Outro se confunde com ―tomar‖ o que ao Outro pertence. O segundo ―Ajedrez‖ está em outra dimensão. Ao mesmo tempo em que estabelece uma relação de alteridade (―otro tablero / De negras noches y de blancos dias‖), evoca uma inesperada religiosidade (―Dios mueve el jugador, y este, la pieza. / Qué dios detrás de Dios la trama empieza‖). O inatingìvel, quase um efeito conspiratório, proclama que mais do que as peças e os lances, são as palavras que determinamos sagrados segredos do jogo. São as palavras, aquelas que proclamam que sabor e saber são sinônimos, que revelam que o poema é jogo, que o jogo é metáfora, que a metáfora não é a liberdade e que a liberdade não se conquista diante do tabuleiro ou do poema. Como definiu, com conhecimento de causa, o ex-campeão mundial Garry Kasparov, ―O público precisa compreender que xadrez é um esporte violento. É tortura mental ‖. Confissão que a versão borgeana sintetiza com ―polvo y tempo y sueño y agonia‖. Borges (não) jogava xadrez. Mas sabia escolher os melhores lances na partida que estava jogando com o leitor. AMIS, Martin. Os enxadristas não são mais desleixados. O Estado de São Paulo, 21 de novembro de 1993. Caderno 5, p. 10 BORGES, Jorge Luis. O Aleph. 6 ed. Rio de Janeiro: Globo, 1986. _____. Obras Completas (1952-1972). Barcelona: Emecé Editores, 1989. CARROLL, Lewis. Através do Espelho. In: Alice – Edição comentada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. MELVILLE, Herman. Bartleby, o Escrivão. Rio de Janeiro: Record, 1992. PESSOA, Fernando. Ficções de Interlúdio 2-3 (Odes de Ricardo Reis, Para Além do outro Oceano de C[oelho] Pacheco). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. SAMPAIO, Paulo. Sobre ―Ajedrez‖ de Borges. Revista Jogo Aberto, nº 14, ano II. São Paulo, Loja de Xadrez Ltda, julho de 1986. STEINER, George. Tigres no Espelho e outros textos da revista The New Yorker. São Paulo: Globo, 2012. ZWEIG, Stefan. Amok e Xadrez. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. www.amediavoz/borges.htm#LONUESTRO. Acesso em 10/10/2003.

Raul Arruda é Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008) e despacha no blog http://raulealiteratura.blogspot.com.br/.

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Borges: da biblioteca ao armazém da esquina 1.

Há temas que por si só já despertam em nós um grande interesse. Se me disponho a falar so-

bre o tema amoroso, por exemplo, sobre melancolia, sobre paixão, sobre sexo, felicidade e infelicidade, imediatamente me são oferecidas a atenção e o interesse daqueles que me escutam. Pelo menos durante cinco ou dez minutos, o que já é alguma coisa. Isso ocorre porque todos esses temas que eu acabo de elencar trazem em si o que costumamos chamar de um alto grau de universalidade, ou seja, diz respeito a todos ou quase todos. Num ambiente universitário como o que estamos agora, em especial num curso de Letras, o mesmo pode ser dito de algumas obras como a Ilìada, o Édipo-Rei, a Divina Comédia, o Quixote. São obras que merecidamente ganharam fama e um interesse cada vez maior, por isso estão na categoria de clássicos absolutos. Da mesma forma, podemos falar de determinados autores, como Shakespeare, Baudelaire, Kafka. Ou Guimarães Rosa, o grande homenageado desse evento. E, claro, do argentino Jorge Luis Borges. Mas o que vou apresentar pra vocês, de certa forma, não é bem aquele Borges clássico que em geral se conhece. Talvez se apresente até para alguns como um anti-Borges. Como afirmou uma crìtica argentina, Graciela Montaldo, desde a década de 1990 do século passado não tem parado de crescer um ―outro‖ Borges, bem diverso daquele que conhecìamos, muitas vezes com caracterìsticas até opostas. Um Borges menos cético e mais esperançoso, mais alegre, até mais amoroso e afetivo, e – inacreditavelmente – mais popular. Na verdade, não se tratava de um novo Borges, mas de um Borges até muito antigo, um Borges dos anos de 1920 e 1930, quando o escritor tinha a mesma idade do século, ou seja, 20, 30 anos. Retornava, então, um Borges quando jovem. E isso só foi possìvel porque, naquela referida década de 1990, ocorreu um verdadeiro boom de publicações de textos borgeanos até então inéditos no formato livro, e que se encontravam dispersos e perdidos nos jornais e revistas da época. Isso quando não haviam sido expurgados por Borges de sua própria obra já editada. Eram textos, portanto, inacessìveis, na prática, à maioria dos leitores daquele final do século XX. 23


Só para dar uma ideia da verdadeira revolução que estava ocorrendo na recepção da literatura de Borges, dos 173 textos que dispúnhamos na sua obra tida como oficial, ou seja, as Obras completas, editada pela Emecé, passamos a dispor de cerca de 600 textos. Ou seja, multiplicou-se em mais de três vezes a textualidade borgeana, digamos assim. Os efeitos disso não se fizeram esperar, e as repercussões reverberam até hoje. É importante que se diga, no entanto, que não se está aqui atacando o velho Borges, longe disso. O que se quer é divulgar esse jovem Borges, tão genial e surpreendente quanto o outro, embora muitas vezes tão diverso. Enfim, é esse ―outro‖ Borges que eu quero trazer para a frente do palco hoje. É provável, inclusive, que muitos de vocês nem tenham conhecimento daquele velho Borges. Tanto melhor. Desconfio que, talvez, esse jovem Borges tenha mais a dizer a vocês nesse momento. Depois, com o tempo, e se assim o desejarem, poderão conhecer o outro. Na verdade, os outros. Porque Borges, como Fernando Pessoa, como Mário de Andrade, são muitos. O que quero apresentar pra vocês é um desses Borges, o jovem Borges, que precisava de um lugar no mundo pra se estabelecer como pessoa e como criador. Precisava de uma identidade espacial, digamos assim. Vamos tratar, portanto, a partir da obra de Borges, de um tipo de tema que, como aqueles que expus no inìcio da minha fala, dizem respeito a todos ou quase todos. Espero conseguir interessá-los por mais do que cinco ou dez minutos, já que pretendo falar por cerca de 30 minutos. Mas não mais do que isso. 2.

Gostaria então de começar pelo título que dei a essa conferência. Ele me ocorreu como uma maneira

de desestabilizar um pouco essa concepção tão arraigada que se costuma ter de Borges como um ser essencialmente livresco, como um autêntico ―guardião dos livros‖, aquele que escreveu aos 42 anos o célebre conto ―A Biblioteca de Babel‖. Conto que antecipa em meio século essa verdadeira biblioteca ―infinita‖ que está se criando a partir da rede mundial de computadores. É claro que não há nada de errado com tal visão de Borges e de sua obra, pelo contrário, ela foi inúmeras vezes avalizada pelo próprio Borges, e tem sido exaustivamente trabalhada pela crìtica, com alguns resultados notáveis.

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O problema ocorre quando tal perspectiva marcadamente livresca não permite que venha à tona uma outra, em grande parte oposta a essa, e que tem suas fontes mais decisivas não na ―biblioteca‖, mas no ―armazém da esquina‖, conforme veremos. Esse outro lado da lua, digamos assim, da literatura borgeana, possui também um conto célebre para representá-lo, chamado ―O homem da esquina rosada‖, cujo primeiro esboço foi escrito aos 26 anos. (Um breve parênteses. Quando Borges publica a versão definitiva desse conto, em 1935, havia em Buenos Aires um armazém em cada esquina, em especial nas suas zonas suburbanas ou periféricas. Por tradição, costumavam – tais armazéns – ser pintados em tom rosa. Daì o uso da expressão ―esquina rosada‖. Fecho o parêntese). Até cerca de 10 ou 20 anos atrás, o mundo parecia só ter olhos para esse Borges da biblioteca, o Borges cosmopolita. O outro Borges, o chamado Borges nacionalista, por muito tempo – digamos de 1940 a 1990 – ficou, em grande parte, esquecido pela crítica e, por consequência, por seu universo de leitores. Isso quando não foi execrado e sumariamente proscrito, operação iniciada e incentivada pelo próprio Borges maduro, principalmente a partir da década de 1940, quando o escritor argentino começou a ganhar projeção internacional. A partir daì ficava cada vez mais visìvel o expurgo a que submeteu grande parte de sua produção da juventude. Mas esse Borges livresco, é bom que se diga, tem sua razão de ser. Um depoimento do próprio escritor autoriza e explica de forma cabal essa sua paixão pelos livros. Disse Borges em uma de suas inúmeras entrevistas: ―Se me fosse pedido para escolher o acontecimento principal da minha vida, escolheria a biblioteca de meu pai‖. Poderìamos citar muitas outras declarações dele referentes a sua relação visceral e prematura com os livros, mas acredito ser essa particularmente decisiva e esclarecedora. Assim como uma outra que diz: ―Meu primeiro conhecimento das coisas veio sempre dos livros, antes que do contato com essas mesmas coisas‖. Que coisas são essas? Digamos: as coisas do mundo externo aos livros, as coisas da vida cotidiana, escolham o que vocês quiserem. O que Borges está dizendo é que o mundo, a chamada vida concreta de todo dia, para ele, sempre foi mediada pelos livros.

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Aqui convém fazer uma pausa. Ele não está, claro, se referindo a qualquer ―coisa‖, mas a algo como, por exemplo, a experiência amorosa, algo extremamente universal. Borges está dizendo que antes de conhecer o amor no que costumamos chamar de vida real, conheceu-o nessa vida virtual que vem a ser os livros. Até aì nada de novo. Alguns de nós, até mesmo muitos de nós, poderiam dizer algo semelhante. Um conhecido escritor francês do século XIX, Sthendal, assim se referia a uma pessoa: ―É tão ingênua no amor, que nem romance ela leu‖. Quer dizer: a leitura de um romance pode nos fazer conhecer o amor antes mesmo de nos encontrarmos com ele na vida real. É exatamente isso que Borges está dizendo. O diferencial, no seu caso, é que ele radicaliza. Não só conheceu essa ―coisa‖, o amor, depois de já tê-lo encontrado nos livros, mas todas as ―coisas‖. Em suma: Borges foi o que se costuma chamar de uma personalidade livresca. Ora, não é de surpreender que alguém que tenha dito que o principal acontecimento de sua vida foi o encontro com uma biblioteca, tenha se transformado numa personalidade livresca e tenha dedicado a sua vida aos livros. Penso que esse Borges livresco já está bem estabelecido aqui, bem justificado. Podemos ler agora uma página muito conhecida e citada de Borges que nos será de grande proveito para entendermos essa passagem que Borges realiza da biblioteca para o armazém da esquina, que estou utilizando aqui, claro, como uma metáfora daquele mundo que está além – ou aquém, se quiserem – da biblioteca. Mas antes de lermos essa passagem, vamos imaginar um garoto de uma famìlia de elite na Buenos Aires de um século atrás, aì por 1910. De uma famìlia de posses que, por motivos totalmente imprevistos e aleatórios, foi construir o seu casarão num desses bairros pobres de Buenos Aires. Mais precisamente no bairro de Palermo, que se localizava então no limite norte da cidade. Esse menino que estamos imaginando, superprotegido pelos pais, crescerá não propriamente no bairro de Palermo, mas recolhido no interior de um jardim cercado por pontiagudas grades de ferro. Mais especificamente, crescerá próximo à biblioteca de seu pai, muito bem servida de livros ingleses, entre muitos outros. 26


Supondo-se que tal menino estava vocacionado para as letras, e que os parentes todos – pai, mãe, irmã, avó, etc... – o apoiavam na sua vocação, não fica difìcil imaginar também que daì poderia sair um escritor extremamente culto e cosmopolita, um escritor como Jorge Luis Borges. E foi o que aconteceu. O inusitado no caso, aquilo que ninguém poderia prever, foi a atenção que acabaria sendo dada pelo menino, quando crescesse, àquele mundo que estava para além das grades de ferro do jardim. Ou seja, àquele mundo de pessoas pobres, simples, que moravam em casas sem reboco, em ruas sem calçamento e com muita poeira, como em qualquer periferia de uma grande cidade, naquela e em nossa época. E mais inusitado ainda foi constatar o verdadeiro fascìnio que exerciam sobre o menino certas figuras das redondezas que costumavam se reunir nos armazéns de esquina, que abundavam no bairro onde viveu a sua infância. Eram homens movidos a coragem e bravura, que em terrenos baldios da vizinhança se batiam a punhal em duelos sangrentos. E que só muito tempo depois o menino, já então adulto, viria a saber que existiam naquele Palermo, tão próximo e ao mesmo tempo tão distante. E ficaria sabendo também que essas figuras eram conhecidas pelo nome de compadritos. Creio que estamos prontos para ler aquela conhecida e tão citada página antes referida. Trata-se da página introdutória, de um prólogo, na verdade, do seu livro intitulado Evaristo Carriego, de 1930. O livro é uma biografia de Carriego, que ficou conhecido como ―o poeta do arrabal portenho‖, ou o ―poeta dos subúrbios de Buenos Aires‖. Tornou-se evidente com o tempo que, além de biografar Carriego, nesse livro Borges pretendeu também biografar o bairro onde ele viveu, ou seja, aquele já citado bairro de Palermo. Não por acaso, foi nesse mesmo bairro que Borges viveu até os 14 anos. Vamos ao prólogo então. Diz Borges, numa tradução mais ou menos livre que faço, o seguinte: Acreditei, durante muitos anos, que tinha crescido num subúrbio de Buenos Aires, um subúrbio de ruas perigosas e de casas pobres, baixas, que nos permitiam ver o horizonte, o pôr-do-sol. Mas a verdade é que me criei num jardim de uma confortável e ampla casa burguesa, atrás de pontiagudas grades de ferro, e numa biblioteca de inumeráveis livros ingleses. O subúrbio de Palermo, o Palermo daqueles homens que duelavam a punhal e tocavam 27


violão, andava (me afirmam) pelas esquinas, mas as figuras que habitavam minhas manhãs e trouxeram agradável horror às minhas noites não foram essas. Borges está se referindo aqui, naturalmente, às suas leituras infantis. Passa então a enumerar uma série de personagens retirados de livros de aventuras, tais como o pirata cego de A ilha do tesouro, o protagonista de A máquina do tempo, a Sherazade de As mil e uma noites, entre outras narrativas menos conhecidas hoje, mas que faziam então as delìcias do jovem e ávido leitor que era Borges. A cena evocada por ele aqui é bastante conhecida, ou seja, trata-se de uma criança ou um adolescente, completamente envolvido pelo universo mágico propiciado pelos livros, desligado de tudo que não diga respeito às ―suas‖ aventuras pelo mundo da ficção. Há um célebre texto de Machado de Assis onde lemos uma frase muito pertinente ao que estamos falando. Refiro-me ao conto ―A Missa do Galo‖, em que um jovem, procurando se distrair enquanto espera pelo inìcio da referida missa, lê um dos mais famosos desses livros de aventura, o romance Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas. Diz o narrador, que vem a ser o próprio jovem em questão: ―... trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D‘Artagnan e fui-me às aventuras‖. Por tudo que se conhece hoje sobre o jovem Borges, não é difìcil imaginar as inúmeras vezes em que ele montou nesse ―cavalo magro‖ para ir-se às aventuras. Os mais jovens entre vocês, caso queiram, podem trocar A ilha do tesouro, A máquina do tempo e Os três mosqueteiros pelas aventuras de Harry Potter e a Câmara Secreta, e estarão falando de sensações e lembranças muito semelhantes às referidas por Borges aqui. Voltando ao nosso prólogo, Borges, depois de evocar os seus dias e noites de entusiasmadas leituras infantis, conclui o texto com as seguintes perguntas: ―Contudo, o que havia do outro lado das grades do jardim? Que destinos violentos foram se cumprindo a alguns passos de mim, no obscuro armazém da esquina ou em terrenos baldios?‖ E, por fim, a mais importante de todas: ―Como foi aquele bairro de Palermo, ou como deveria ter sido aquele Palermo para que fosse belo lembrá-lo? Neste prólogo, me parece, está colocado de forma muito clara o essencial dessa vertente literária borgeana, que estou querendo trazer para mais perto de vocês. Essa vertente que busca sair do espaço da biblioteca, do tranquilo espaço da biblioteca, para aventurar-se – como se lê no prólogo que estamos analisando – no espaço perigoso das ruas, no espaço do armazém da esquina, que tinha nos compadritos os seus mais assìduos frequentadores. Figuras reais que a partir dos anos de 1920 Borges buscará plasmar 28


no que tenho chamado de suas narrativas criollas. Criollas aqui no sentido de narrativas voltadas para a matéria local, portenha, argentina, ou seja, nacional. E naquela última pergunta, em particular, encontramos na disjuntiva ou a chave para um melhor entendimento dessa vertente. ―Como foi‖ ou ―como deveria ter sido‖, pergunta Borges. Em outras palavras: eu, enquanto criador, parto do real, ―daquilo que foi‖, daquilo que me diz respeito profundamente e que me toca, me sensibiliza, me fascina evocar. Mas também posso somar a isso, como ocorreu no caso de Borges, uma lembrança imaginada (trata-se aqui, claramente, de uma memória inventada por Borges) daquele Palermo aventureiro dos compadritos, dos duelos, dos punhais. Porque para que fosse bela aquela lembrança ele precisou pensar também como o bairro de Palermo ―deveria ter sido‖. Ou seja: a literatura é, ou deve ser, mais do que o simples real, parece estar nos dizendo Borges. Seguindo nessa reconstituição que estamos fazendo da infância de Borges no bairro de Palermo, convém agora falarmos um pouco de Evaristo Carriego. Carriego foi o primeiro poeta a oferecer uma representação estética consistente das áreas periféricas de Buenos Aires, em especial de Palermo, onde morava. Mas o que mais importa aqui é que aquele bairro de Palermo, descrito e inventado por Carriego, vem a ser o mesmo da infância de Borges, já que eram vizinhos. Evaristo Carriego foi amigo do pai de Borges, frequentava sua casa. E um fato da maior importância: Carriego costumava ler poemas em voz alta para a famìlia, o menino Borges aì incluìdo, é claro. E o poeta de Palermo lia não só versos alheios, mas também os seus próprios, que tematizavam, preferencialmente, aquele bairro, aquele subúrbio que rodeava a todos por ali. Mais de uma vez ao longo da vida Borges evocará a voz de Carriego, muito expressiva, segundo ele. Sem dúvida aquela voz impregnou a memória afetiva daquele menino que já então se sentia fortemente atraìdo para a poesia e para a literatura. Ora, não fica muito difìcil perceber que se o dia-a-dia do bairro, de seus habitantes, suas vozes, diversões, fofocas, brigas, discussões, facas e punhais, alegrias e tristezas, toda a vida de Palermo, enfim, ficava do lado de fora da casa dos Borges, tudo isso acabava sendo trazido pelos poemas de Carriego aos atentos ouvidos daquele garoto. Isso que estou relatando pra vocês agora ocorre em torno de 1910. Borges tem cerca de 10, 11 anos. E muito em breve irá de mudança com a famìlia para outros bairros de Buenos Aires. Depois viajarão pela Europa por sete anos, retornando em 1921, já com o jovem Borges em plena atividade literária. E é então que ocorre um dos eventos mais impactantes da vida do escritor: o seu reencontro com Buenos 29


Aires. Que, naquele perìodo de 1914 a 1921, havia se transformado, de forma vertiginosa, na maior e mais moderna metrópole sul-americana e uma das maiores do mundo. Mas o que Borges irá reencontrar, na verdade, não será propriamente esta babélica e moderna metrópole. Irá lhe interessar muito mais as suas zonas periféricas, claro que Palermo em primeiro lugar, o seu querido bairro da infância. Já no ano de seu retorno ao paìs, 1921, publica no jornal um poema intitulado, justamente, ―Arrabal‖. E, a partir daì, durante toda a década de 1920, acompanhamos o seu entusiasmo crescente por essa temática. Tratava-se de inventar um lugar literário. E esse lugar, para ele, só poderia ser o subúrbio, o arrabal, como se diz na Argentina. É nessa década então que Borges irá estabelecer o que podemos chamar de uma poética do subúrbio, e que terá no armazém da esquina um locus, um lugar, privilegiado, e na figura do compadrito a sua figura central. 3.

É para falar um pouco sobre tal poética do subúrbio que eu gostaria de ocupar essa terceira parte da

minha fala. Acredito que a partir dessa poética ficará mais clara a operação borgeana que estou tentando delinear para vocês, ou seja, essa passagem da biblioteca para o armazém da esquina. E, também, como já havia anunciado antes, pretendo trazer aqui o tema da identidade, que igualmente diz respeito muito de perto a todos nós. Trata-se de pensar, mesmo que brevemente, o papel que a literatura tem ou pode ter para nos constituir enquanto uma individualidade especìfica, um modo de ser, uma maneira de estar no mundo. Dito em outras palavras, o papel que a literatura pode ter para que vejamos, reconheçamos, identifiquemos – até onde isso é possìvel – as linhas do nosso rosto. Ou seja, reconhecer aquilo que nos faz ser o que somos. Esse foi um tema obsessivo para Borges, e foi nessa sua vertente criolla que estamos aqui a tratar, em especial, que ele o desenvolveu, a meu ver, de maneira mais profunda. Nessa vertente, Borges pensou a sua face palermitana, portenha, argentina e até latino-americana. Dito isso, vou me utilizar de mais dois textos de Borges. O primeiro deles foi escrito quando tinha 26 anos. Trata-se de um pequeno ensaio, que iniciava com uma clara e explìcita convocação a seus conterrâneos. Dizia assim: Aos criollos quero falar: aos homens que nesta terra se sentem viver e morrer. Não falo aos que acreditam que o Sol e a Lua estão na Europa. Não falo a esses que se sentem exilados em nosso paìs, a esses verdadeiros desterrados, saudosos daquilo que está longe, daquilo que não é nosso. Esses são os estrangeiros, os gringos de verdade, autorizados ou não por seu sangue – leia-se: sejam ou não argentinos. Não é para eles que escrevo. 30


Estamos aqui na abertura do livro de Borges intitulado O tamanho de minha esperança, de 1926. Um ―outro‖ Borges, já bem mais velho, trataria de rasurar esse jovem Borges, proibindo a reedição do livro e expurgando-o de suas Obras completas. Eis um paradoxo bem borgeano: qual dos dois é o mais maduro do ponto de vista do tema que nos ocupa, a identidade? O jovem Borges de 26 anos ou o velho Borges que morreu com 86 anos renegando esse pequeno livro cuja bússola apontava para a América. Livro que, sem pudor nenhum, voltava as costas para a Europa. Ou melhor, virava as costas para aqueles – essa é a frase que quero sublinhar – que acreditam (pois eles ainda estão aì) que o Sol e a Lua estão na Europa e, com a necessária atualização da frase, nos Estados Unidos. Mas entre aquele jovem e o velho ancião, tão bem ficcionalizados pelo próprio Borges em um conto hoje famoso, quero destacar um terceiro Borges. Trata-se de um senhor de pouco mais de cinquenta anos que, em 1955, escreveu um prólogo para uma edição das Poesias completas, daquele mesmo Evaristo Carriego, que faleceu antes dos trinta anos. Carriego que ficou conhecido, conforme já dito, como aquele que inventou poeticamente o arrabal portenho, e que, por isso, veio a se constituir como um verdadeiro “pai” dos principais poetas do tango, que souberam como ninguém levar esse arrabal para todas as partes do mundo através das suas canções. O trecho escolhido abre-se com as seguintes palavras: Como se produziram os fatos, como pôde esse pobre rapaz Carriego chegar a ser o que agora será para sempre? Talvez o próprio Carriego, interrogado, não nos pudesse dizer. Sem outro argumento que minha incapacidade para imaginar de outra maneira as coisas, proponho essa versão ao leitor[:]. E a partir daì somos levados pela imaginação borgeana a uma das reflexões que considero das mais ricas e profundas sobre a questão que estamos tratando. Transcrevo o trecho na ìntegra, porque não há como seccioná-lo sem comprometer a sua extraordinária qualidade: Um dia, entre os dias do ano de 1904, numa casa que persiste na rua Honduras, Evaristo Carriego lia com pesar e com avidez um livro da gesta de Charles de Baatz, senhor de Artagnan. Com avidez, porque Dumas lhe oferecia o que a outros oferece Shakespeare ou Balzac ou Walt Whitman, o sabor da plenitude da vida; com pesar, porque era jovem, orgulhoso, tìmido e pobre, e se acreditava desterrado da vida. A vida estava na França, pensava, no claro contato com os aços, ou quando os exércitos do Imperador inundavam a terra, mas a mim tocou o século XX, o tardio século XX, e um medìocre arrabalde sul-americano... Nessa elucubração estava Carriego quando algo aconteceu. Um rasgado de guitarra, a desparelhada fileira de casas baixas vistas pela janela, Juan Murãna tocando no chapéu para responder a uma saudação (...), 31


a lua no quadrado do pátio, um homem velho com um galo de rinha, algo, qualquer coisa. Algo que não poderemos recuperar, algo cujo sentido sabemos, mas não sua forma, algo cotidiano e trivial e imperceptìvel até ali, que revelou a Carriego que o universo (que se dá inteiro em cada instante, em qualquer lugar, e não só nas obras de Dumas) também estava ali, no simples presente, em Palermo, em 1904. ―Entrai, que aqui também estão os deuses‖, disse Heráclito de Éfeso às pessoas que o encontraram aquecendo-se na cozinha. Um rápido comentário sobre essas palavras de Heráclito, antes de concluirmos a leitura do texto de Borges. ―Aqui também estão os deuses‖, dirìamos nós, latino-americanos, tradicionalmente postos na ―cozinha‖ pelos poderes do mundo. Para quem necessita de bons argumentos para independizar excelência econômica de excelência cultural, eis um bom texto. Vamos então à conclusão de Borges, e também ao encerramento da minha fala: Tenho suspeitado algumas vezes que qualquer vida humana, por intrincada e variada que seja, consta na realidade de um momento: o momento em que o homem sabe para sempre quem é. A partir da imprecisa revelação que tentei intuir, Carriego é Carriego. Já é o autor daqueles versos que alguns anos depois lhe será permitido escrever. [O texto é a transcrição de uma palestra proferida na UFAM em 2012.]

Claudio Celso Alano da Cruz é professor na UFSC/CNPq.

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Imagem: Douglas Costa


 2 Ficções não estava à vista do mais atento perscrutador. Encontrava-se subtraìda em meio a outras tantas obras dos mais diversos tamanhos e cores. Mas ele desenvolvera tal capacidade farejadora para livros que não houve como a obraprima borgiana esconder-se por mais tempo de seus acurados olhos. Junte-se a isso, a longa demanda que ele já havia empreendido no sentido de encontrá-la. Oculta em si mesma por uma lombada negra já esmaecida, lá estava ela, pronta para repousar em suas ansiosas mãos. O seu modo de se relacionar com os livros se dava, antes de tudo, mediante uma curiosa sinestesia. Sem se preocupar com qualquer movimento ledor antecipado, era ao objeto-livro que, primeira e inelutavelmente, ele se entregava. O olhar alongado pelo toque, pelo manuseio, frente, verso, rápido folhear e, após isso, o prazer maior: abrir o livro ao meio, levá-lo ao encontro das narinas e cheirá-lo... profunda e... demoradamente. Um livro não era, por ele, portanto, comprado, mas possuìdo. Dominado em cada detalhe de sua coisainteira. Depois, bem depois, quando recuperado desse estranho coito feito de instinto-e-papel, ele se dava a um prazer segundo: ler a capa, a contra-capa, as orelhas, o ìndice, a bibliografia. E, antes de ler os primeiros parágrafos de uma possìvel introdução ou prólogo, ele se deliciava com um prazer terceiro: ler as assinaturas, as dedicatórias, as anotações, e até mesmo os sublinhados dos possuidores anteriores da obra. Ficava a cismar como um leitor abria mão de obras tão indispensáveis, como era o caso, por exemplo, de Ficções, de Borges, e logo ali, depois dela, na letra C, O jogo da amarelinha, de Cortázar; um pouco mais atrás, Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, e, um pouco mais abaixo, na letra P, Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello! Não. Ele não conseguia compreender tal desprendimento, colecionador que era dos livros que iam se somando às suas estantes e ao seu espìrito. Embora a relação aquisição-leitura fosse extremamente desequilibrada em favor do primeiro termo dessa equação, ele acreditava que, um dia, por alguma razão estranha à sua vontade, os livros ali dispostos em sua biblioteca receberiam a visita de seus atentos olhos, quando, finalmente, seriam possuìdos em sua plenitude. 34


3 Comprara Ficções em Porto Alegre, sob um clima friorento de ventos extraviados, quando cursava a disciplina Ficção Latino-Americana II, no doutorado em Estudos Literários. O desafio que lançou para si, à época, foi o de fazer uma análise comparativa entre a questão do duplo em ―Pierre Menard, autor de Quixote‖, e a temática do labirinto presente em ―O Jardim de caminhos que se bifurcam‖. Optou em fundamentar tal exercìcio ensaìstico não a partir de pensadores experimentados e provindos das principais matrizes da teoria literária. Ousou pensar as noções de ‗duplo‘ e de ‗labirinto‘ junto à engenhosa e indisciplinada epistemologia de Michel Foucault. Julgou que assim fugiria a alguns lugarescomuns interpretativos com que esses dois contos de Borges, em especial, eram tomados. Referenciando-se, sobretudo, ao prólogo ―Las meninas‖, de As palavras e as coisas, ela, trafegando a imperceptìvel fronteira que media a metáfora e o conceito, passou a trabalhar insone em seu ensaio. Naquela oportunidade, premida pela urgência de já iniciar a leitura e a discussão da obra borgiana, não foi a um sebo que ela se dirigiu, mas a uma livraria. Adquirindo, portanto, um exemplar ainda não explorado por um leitor anterior. Ela seria a primeira a lê-lo. Não concebia iniciar a leitura de um novo livro sem antes marcá-lo como se fosse um território conquistado. Não importava, como era o caso daqueles comprados em sebos, que já estivessem com outras assinaturas. Não era pela leitura que ela fazia valer a sua primeira passagem por um livro adquirido, mas pela escrita. A sua escrita. Daì sua dificuldade em lidar com livros tomados por empréstimo, fossem eles pegos em bibliotecas ou cedidos por amigos ou professores. Não poder assiná-los e assinalá-los em razão de não serem seus, ter de se submeter a essa condição pelo simples fato de eles não estarem disponìveis para a sua aquisição, eram motivos que a deixavam predisposta a um terrìvel mal humor. Ler uma obra que não lhe pertencia significava jamais conseguir apreendê-la em sua plenitude. As palavras dançavam rebeldes e fugidias diante de seus desencorajados olhos. Os sentidos nelas resguardados inundavam sua mente num irritante estado de provisoriedade, pois sua permanência heurìstica limitava-se ao instante em que a obra seria devolvida. Pagou o livro e dirigiu-se ao café. Pediu um expresso e uma água mineral com gás. Abriu na página de rosto de Ficções e assinou: Denise. Porto Alegre. Junho/1988.

[capítulos 2 e 3 da parte I do romance Le mot juste, Orobó Edições, 2011]

Erre Amaral é escritor e professor universitário. Autor de Le mot juste (romance, Orobó Edições, 2011) e de Paul Ricoeur e as faces da ideologia (ensaio, Editora da UFG, 2008). É colunista na Germina – Revista de Literatura e Arte, despacha no blog Le mot juste e é editor da Palávoraz – Literatura e Afins.

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Foto: Melissa G. BoĂŤchat


Um tango para Borges Ignorei o tango a maior parte da vida. Achava as letras ridìculas. Picadinho de coração empanado com farinha de corno. As músicas, desgastadas após tantas gerações que curtiram a dor de cotovelo, à meia luz ou arrebentando os tìmpanos pelos cabarés e bordéis do mundo, chiavam em meus ouvidos mais que discos de vinil arranhados. Sem falar no gosto duvidoso de olhares de gatos de porcelana – ou ―moñitos del mismo color‖, como consta na primeira gravação de Carlos Gardel. Tangos falavam de um tempo que não era o meu. Envolviam morbidez pelo passado. Melhor enterrá-los. Há alguns anos, numa tarde fria e chuvosa em Buenos Aires, refugiei-me no Café Tortoni, que cheira a Buenos Aires, mas os portenhos gostam de identificar com Paris ou Dublin. Em vez de serem eles mesmos, preferem passar por imitação dos outros. Tudo bem, a escolha é deles. Havia apenas um cliente no café, algo incomum no Tortoni. Era um senhor de oitenta anos, talvez mais, calvo, pele cor da lua, gogó imenso que, a cada gole de chá, deslizava um quilômetro entre as duas barbelas do pescoço. O olhar se dividia entre a rua e um ponto de fuga na porta de entrada: jeito de quem via e não enxergava. Sentado na mesa ao lado da escultura de Borges, colocara o chapéu de feltro, o sobretudo e o cachecol no gancho instalado sobre o espelho que cobria a parede inteira. Pareceu-me simpático. Resolvi puxar conversa. Assustou-se quando me aproximei e pedi licença para me sentar. Concordou com um meneio, enquanto a mão apontava uma cadeira. Seguiu-se a pergunta infalìvel, quando libero o portunhol: – Brasileño? O velho estava em dia de confissão. Abriu a memória, derramou saudade. Falou da juventude, quando seu paìs se julgava a quarta potência do mundo e não conhecia a pobreza. Buenos Aires, florida e bailante, competia em qualidade de vida com qualquer outra capital. A nostalgia me remeteu ao tango Cuesta Abajo, com seu passado de ouro que nunca voltaria. Lembrou seus amores nas casas da burguesia e nos lupanares, as decepções, o casamento, a morte da mulher, os filhos crescidos que nunca o procuravam, tudo à semelhança de outros tangos. Ao declarar paixão pelas notas doloridas do bandoneon, com uma lágrima empoçada em cada olho, fiquei em dúvida se ele dizia a verdade ou fantasiava: – O senhor viveu tudo isso ou sua vida apenas copiou letras de tangos? – Nós, os argentinos, somos um povo trágico. Se não temos uma tragédia, nós a inventamos e passamos a conviver com ela. Daì o tango. Ele só poderia surgir aqui, e em nenhum outro lugar. Compreendê-lo é compreender a alma portenha, até não mais se saber quem criou o quê, a fantasia ou a realidade. Aliás, os caminhos onde o real e o imaginário se bifurcam no resto do mundo, esses caminhos se cruzam no Prata. Pegou a roupa, preparou-se para partir. Perguntei-lhe o nome, sorriu, com malìcia: – Jorge Luis. Jorge Luis Borges. O nome, verdadeiro ou não, igual ao do escritor morto havia muitos anos, em escultura ali do lado, aumentou o surrealismo do encontro. Desde então, comecei a escutar tangos – e a gostar deles. Apesar da verborragia das letras, revelam beleza própria e sensibilidade à flor da pele que, consagradas pelo povo, incorporaram o espìrito argentino. Vou além. Eternizaram algo de nossa humanidade. A vida costuma imitar a arte – e o mundo tem um pouco de tango no sangue.

Luís Giffoni tem 23 livros publicados, entre romances, contos, crônicas, alguns prêmios como do Jabuti de Romance, da APCA e do Prêmio Nacional de Romance Cidade de Belo Horizonte. Suas obras foram adaptadas no Brasil e no exterior.

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O Aleph Não me surpreendi ao encontrar o mapa no armário, mas sim com o que aconteceria depois. Cheguei a Rio do Sul sob uma chuva torrencial, para participar de um debate sobre ―autoficção‖ na universidade local. Na solidão do hotel, releio ―Formas breves‖, do argentino Ricardo Piglia, que usaria no debate do dia seguinte. E na primeira narrativa, já tomada por anotações, rabiscos e outros organismos que surgem nas margens dos livros, Piglia diz que passa seus dias entre um hotel em Buenos Aires e outro em La Plata, nas funções da vida acadêmica. ―Os corredores vazios, os aposentos transitórios, o clima anônimo desses lugares onde sempre se está de passagem. Viver num hotel é o melhor modo de não cair na ilusão de ter uma vida pessoal...‖ E numa tarde qualquer em seu quarto de hotel em La Plata, encontra num canto do guardaroupas, num desvão, as cartas de uma mulher: Angelita, que fugira de casa para evitar mudar de cidade. Algum tempo depois, Piglia resolve vasculhar o guarda-roupas de seu quarto de hotel em Buenos Aires. Acha outra carta, de um homem, justamente em resposta à mulher de La Plata. ―A única explicação possìvel é pensar que eu estava enfiado num mundo cindido e que havia outros dois que também estavam enfiados num mundo cindido, passando de um lado para outro tal como eu e, por uma dessas estranhas combinações produzidas pelo acaso, as cartas haviam coincidido comigo‖. Chacoalhando a cabeça, resolvo retirar mais uma coberta do armário (a chuva não para, o frio aumenta), e dar uma de Piglia: investigar com minúcia o armário. Acho um papel, na verdade um mapa desenhado com nankin vermelho. O mapa descrevia o hotel em que eu estava, e havia um x no meu quarto, o de número 43. Paranoico, vasculho cada centìmetro do quarto : gavetas, lixeiros, procuro um alçapão em baixo da cama, nada, nada. Excitado pela descoberta do mapa, e sem sono, passo a outro livro de Piglia: ―O último leitor‖. No prólogo, ele apresenta o fotógrafo Russel, que esconde em sua casa no bairro de Flores, em Buenos Aires, uma réplica da cidade ―numa escala tão reduzida que podemos vê-la de uma só vez‖ e ―toda a cidade está ali, concentrada em si mesma, reduzida a sua essência‖. Os olhos pesam, o sono chega, são quatro da manhã, vou ao banheiro, lavo o rosto e volto a olhar o mapa. Durmo. Sonho que sou a primeira letra do alfabeto hebraico (Aleph), que lembra um homem com pernas e braços afastados em formato de uma estrela. Acordo assustado, imediatamente me lembro de Jorge Luis Borges, que em um dos seus contos nomina como "Aleph" um ponto de onde é possìvel ver todos os outros pontos do universo. Abro a janela do quarto, esperando ver o mundo todo numa escala diminuta, todos os ângulos, todos os tempos, todas as vidas ; mas nada, chuva e neblina. Coloco minha surrada jaqueta de couro e resolvo caminhar na chuva, como um desvairado (o que realmente sou), subo a avenida Aristiliano Ramos, e a cidade está deserta, habitada pela chuva. Sento na escadaria da igreja Matriz, a chuva castiga, pingos robustos. Dez segundos. Pode ter sido resultado da febre, ou da falta de sono, mas por dez segundos, da escadaria da igreja, eu vi a cidade, toda a cidade, metro a metro, não sei como, não sei explicar, eu vi. A cidade. Voltei para o hotel, rasguei o mapa, fiz outro, indicando a escadaria da igreja, e escondi no armário. Antes de dormir, pensei numa frase do Piglia, que ―ser borgeano é ter a capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no poder da ficção‖. No próximo final de semana retornarei à cidade, sei que outro mapa me aguarda. 38


Imagem: Douglas Costa Carlos Henrique Schroeder é autor de O publicitário do diabo (1998); As sepulcrais (1999); A ilha de Eros (2000); Dueto (2001); Reféns subliminares (2001); A ilha navegante (2003); A rosa verde (2005); Ensaio do vazio (adaptado também para quadrinhos) (2006); As certezas e as palavras (2010). Idealizador da Feira do Livro de Jaraguá do Sul e do Festival Nacional do Conto. Editor de livros na Editora da Casa. Vencedor do Prêmio Clarice Lispector (2010) da Fundação Biblioteca Nacional. É um dos 21 autores selecionados pela Geração Zero Zero, do crìtico Nelson de Oliveira.Bolsa Funarte de Criação Literária (2010). Bolsa Petrobrás de Criação Literária (2012). Absolut 2140 (romance coletivo). Documentais (coletânea de crônicas publicadas no Suplemento Pernambuco). Antologia de literatura contemporânea brasileira a ser publicada pela Editora da Fundacl. 39


http://sinalzarlavoz.blogspot.com.br/2013/09/el-hombre-en-su-laberinto.html(

Leila Guenther publicou os livros de contos O voo noturno das galinhas (Ateliê Editorial, 2006), traduzido para o espanhol em 2010 (El vuelo nocturno de las gallinas, Peru, Borrador Editores), e Este lado para cima, (Sereia Ca(n)tadora, Revista Babel, 2011). Participou das antologias Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (Garamond, 2006), Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte (Geração Editorial, 2008) e 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras (Geração Editorial, 2012). Foi selecionada no Programa Petrobras Cultural 2012 com o livro de poemas Viagem a um deserto interior. Desde 2009 mantém o blog nalinhadavida.blogspot.com.br 40


NO PALÁCIO DO MACHADO DE DOIS GUMES Não compreendo por que brada, em voz alta, não existir outro igual a ele sob o Sol, quando, no mundo, tudo se repete infinitas vezes. No céu, nem a maior das estrelas é única, pois quem as criou fê-las múltiplas. Mas que ele acredite ser especial. Não serei eu a desmenti-lo, embora minha vontade seja a de, como um eco ao contrário, responder-lhe que, assim como essas paredes, aposentos e corredores se multiplicam, há outros, muitos outros como ele. Mesmo os deuses, acrescentaria, são vários. Não há nada uno sobre a terra (acaso a rainha deu à luz apenas um filho? Não saiu Ariadne também de suas entranhas?). Nem mesmo sua monstruosidade é singular: que o digam aqueles que nos mandaram para cá. Se estas paredes que se confundem como os caminhos do universo fossem revestidas de placas de cobre ou bronze polido como dizem ser a versão original, no Egito, ele teria consciência de seu aspecto horrendo, de sua semelhança com os responsáveis pelas hecatombes sem fim? Pois, a cada nove anos, são exatamente cem os oferecidos em sacrifìcio. Ele, que não sabe contar, crê que as vìtimas são apenas nove. Por isso não sabe que estou aqui (é um mistério como um ser tão limitado possa conhecer os meandros de uma construção tão enigmática). Reflito sobre isso durante o tempo ocioso, mas o fato é que me convém que ele se creia só. Porque o mais provável é que eu não sobrevivesse caso ele me encontrasse. Por certo devoraria minha carne, sem apetite, depois de matar-me unicamente para combater o tédio. E eu, em minha natureza, não seria capaz de defender-me a contento (sinto falta de quando podia andar sobre a relva e viver, bucolicamente, da terra. Tenho o direito de sonhar). Aqui meus dias se resumem a evitá-lo. Todo meu esforço, desde que me mandaram para cá, consiste em não estar onde ele está, isto é, em muitos lugares. Quando o escuto aproximar-se, esgueiro-me, em silêncio, para outra parte. Há dias em que atravesso tantas portas, que me perco na contagem. Não sei se alguma vez já estive onde estou, se as cisternas e os pesebres são os mesmos de antes. Nessas contìnuas fugas, ponho-me a imaginar que talvez outros, como eu, também se furtem à sua presença, silenciosamente, e que, portanto, estamos aqui, em número superior a catorze ou cem, mas indefesos devido à impossibilidade de comunicação e à nossa própria ìndole. A menor distância que já guardei dele foi no dia em que ele brincava de outro, fingindo contracenar com seu duplo invisìvel. Confesso que senti pena. Quis lhe responder como se fosse seu gêmeo, o irmão ausente, mas controlei-me a tempo (do alto de sua imodéstia, ele me ouviria, entenderia minha língua?) e me pus ainda mais convicto em minha busca pelo centro, que contém, segundo ouvi, a única saída. Quanto mais próximo do cerne, mais próximo da verdade. Foi o que soube quando, uma só vez, vi de relance por estes corredores seres como ele. Eram pai e filho e tinham sido jogados aqui dentro como castigo. O pai conhecia a construção e, quando atingiram o meio, fugiram pelos ares (não me custa ter esperanças de encontrar, como eles, a saída, ainda que eu não saiba distinguir estas galerias, que existem muitas vezes, nem conheça a forma do centro e tampouco entenda de sobrevoos). É repulsivo o som que faz ao abater suas vìtimas. É quase tão horrìvel quanto suas feições, que uma vez entrevi, escondido atrás de uma das infinitas portas: não havia um só chifre em sua cabeça e a cara, lisa e translúcida, em nada se parecia com a dos imolados.

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http://www.tarologos.com/torre-fim-da-linha/

BABEL INEXPUGNĂ VEL

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É verdade. No primeiro piso da torre, há apenas o verbo. A confusão do verbo. Depois, vão se seguindo as balbúrdias, cada vez mais refinadas, cada vez mais firmes. Há o piso da confusão de ideias, claro. O piso da confusão de conceitos. O piso da confusão de argumentos. O piso da confusão de princìpios. Há também o piso da colisão de teoremas. Do embaralhamento das direções. Do teatro circular da dialética. E também, como não, há andares destinados aos erros de cálculo, aos mapas inúteis, às palavras soberbas. Há espaço para tudo aquilo que confunde e constrange, para os catalisadores da dispersão e da fuga, sejam as listas de nomes da anatomofisiologia, sejam os enganos do sono e do idealismo fútil. Os andares reservados para as provocações do álcool, de alucinógenos e de estimulantes em geral são inúmeros, sofisticados, intercalados por toda sorte de desordens menores e divertidas. É fácil encontrar na torre salas abertas para o esquecimento e a alucinação. Quando visitei o lugar pela primeira vez, na companhia esquálida da esposa de Pierre Menard, encontramos uma lista datilografada que parecia indicar o caráter especìfico e o número (entre infinito e surpreendente) de compartimentos disponìveis para visitação. Falarei apenas de alguns deles (seria desumano registrar todos), porque à época não me foi dada a permissão (sequer a possibilidade) de copiar a lista, mas também porque lembrar dela me parece repugnante. E um tanto vulgar. Contabilizamos, Cirena Menard e eu, 17 câmaras dedicadas às viagens imaginárias; 749 quartos propìcios à divagação e ao estudo, mas não necessariamente usados para isso (eram muito frios); 122 passagens nem tão secretas, capazes de levar rapidamente de uma teoria a outra, mas não de trazer de volta; 1.568 janelas disponìveis para o deslumbramento, mas não para o louvor; para esse último, eram suficientes as 3 masmorras do setor leste, curiosamente forradas de alabastro e cânhamo (e, de acordo com minha acompanhante, zurquines da Eslovênia); 2 escadas cronogramáticas e mais 23 de caráter ambìguo, pois serviam para a incoerente prática da álgebra elementar; lembro também de um número surpreendentemente vasto (quase imaginário) de lustres, cuja evidente disposição para a mistura de nuances e pontos de vista não precisa ser observada. O número de portas era incontável, mas não o de janelas. O que não nos pareceu estranho, mas elementar. Em um universo que se quer tão confuso quanto interminável, estabelecer laços é mais urgente do que produzir abismos, ainda que esses sejam também produtivos quando a vertigem é tão bem vinda quanto necessária. De qualquer maneira, quando voltei, muitos anos mais tarde (o tempo é de fato relevante quando se trata de torres?), percebi que a cada porta ou passagem correspondia uma outra, de igual aspecto, mas menos nìtida, cuja única função (assim me pareceu) era ser o sonho da primeira, mantendo os mesmos detalhes e quase a mesma entonação rìtmica, mas jamais a mesma resolução. As formas de distinguir as portas reais das portas sonhadas (além do seu grau de nitidez) eram evidentemente inúmeras e complexas, e jamais imediatas, mas isso não impedia ninguém de tentar, nem de registrar sucessos e fracassos em cadernos destinados especialmente para esse fim, e que se acumulavam em estantes de ferro dispostas ao longo dos enovelados corredores. 43


Existe também na torre, como não podia deixar de ser, espaço suficiente para as mais vulgares e as mais dignas bibliotecas, cada qual com sua atmosfera especìfica. Algumas são hexagonais, como aquelas com que frequentemente sonhamos quando estamos em trânsito. Outras são exìguas, empapeladas, entulhadas de manuscritos, ociosas de conclusões precipitadas (quando não benevolentes) sobre toda espécie de assunto. Percorri muitas delas com Cirena, e em muitas delas nos perdemos de nós e de Pierre, e de nossos propósitos vagamente puritanos. Em seu interior sepulcral, nos deixamos levar por Ulrika e também por Funes, que nos exortavam a saciar nossa fome com as mais delicadas ferocidades. Em muitas dessas salas cheias de espelhos e efusões nós encontramos o amor e a miséria, a fugacidade e a cólera. Nelas fui insuficientemente feliz, mas fiquei saciada. Nas últimas visitas, como vaguei por elas sozinha, as paredes me pareceram bem mais rudimentares, mas também mais atrozes. Não foi difìcil descobrir porquê. No interior mais fundo dessas salas de leitura, podem ser encontrados pequeninos laboratórios de vidro, cuja função é destilar incansavelmente os dogmas produzidos pelas magnìficas prateleiras, alimentando assim, nobre e bravamente, a obra interminável da torre de confusões. Sem eles, a torre não existe. Sem a torre, eles estão em toda parte. Nas minhas sete visitas (sei que o sete é considerado um falso ìndice de veracidade, mas não tenho como me eximir do que de fato aconteceu), jamais encontrei o que procurava, jamais perdi o que pretendia, mas ainda me resta uma única certeza (quiçá produzida pela própria torre): há seguramente um andar onde se forja a confusão de histórias sobre Babel. Pesquisei muitas delas, e poderia falar de algumas, mas sou avessa a enumerações. Qualquer sequência (incluindo as não lineares e as imaginárias) não é menos terrìvel por ser arbitrária, e talvez nisso resida seu caráter propriamente vertiginoso (ou nefasto). Nunca me agradaram enciclopédias, listas de compras, dicionários, catálogos, inventários. De qualquer modo, para não falsear o relato, posso usar a generalização para fazer desse ofìcio mesquinho algo menos contaminado de literatura e de mistificação (essas matrizes da irracionalidade humana – fonte e subproduto das reverberações menos secretas da torre). Mas enfim, vejamos... Na maioria das histórias, a torre encontra um fim. É comum ouvir falar de ruìnas, de desabamentos augustos, de históricas implosões. Em algumas, há detalhes curiosos, de aviões ou de monstros que se chocam contra o altìssimo (ou infinitamente minúsculo) edifìcio, guerras que ali começaram, problemas nas estruturas. Em outras, encontram-se relatórios lógicos sobre a probabilidade do desastre, vaticìnios, profetizações. No entanto, são mais interessantes (porque mais inverossìmeis) aquelas histórias nas quais se descobre que a torre nunca existiu (e sequer começou), seja porque não havia homens capazes de levantá-la, seja porque não havia a necessidade de construì-la, já que nunca houve na terra uma única linguagem que estivesse livre de metáforas ou equìvocos. Em algumas hoje quase desconhecidas histórias, a torre nunca caiu. Eleva-se, cada vez mais alta e mais firme, em direção aos Deuses. Que nunca estiveram, de fato, ameaçados por ela. Nesses contos inefáveis da imaginação, que predominavam na civilização de Uqbar e também na de Luggag (especialmente derivados da realidade imortal dos Struldbrugs), é curioso ouvir como a torre cresce incansável: vertical e oblìqua, circular e horizontal. Neles, ela não é apenas espacial, mas também atemporal, onìrica, ilusória, expandindo-se para todos os lados e para nenhum. A cada vez que se ouve essas narrativas, a torre encontra-se mais viva e nìtida, mas também mais subliminar e iridescente. Seu funcionamento, como o da loteria de Babilônia, é silencioso e ambìguo, provocando conjecturas de toda ordem e especulações rigorosamente traiçoeiras. Encontrei, no entanto, em uma de minhas sete visitas, uma anciã de nome Segrob, que parecia ter o meu rosto, mas não podia reconhecer minha lìngua. Ela me contou sobre a existência de uma narrativa que justifica todas as outras, e delas deriva como num jogo de espelhos. De acordo com esse canto (com exatos 12.110 versos hexâmetros) jamais transcrito em algum suporte (qualquer impressão é uma afronta aos deuses, como me garantiu a velha senhora), todas as narrativas sobre a torre só servem para protegê-la de qualquer invasão maliciosa, de qualquer inversão de predicados. Desconfiei, no entanto, apesar da exposição ter sido bastante convincente, que a temida invasão jamais ocorreria, e não era sequer possìvel. O receio era inútil (como o são todos) por uma razão bastante simples, e que só agora vale a pena observar. Como o lado de fora da torre correspondia ponto por ponto com o seu interior, tudo o que nela estava, estava também fora dela, e também em toda a parte estava, como na superfìcie matemática chamada de ephla. Dela não se fugia, para ela não se retornava. Como a areia e o tempo, Babel alimentou seu valor metafórico de sua deriva imprecisa. De sua implacável presença. De sua fome.

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Rebecca Monteiro é professora de Teoria Literária e Literaturas em Lìngua Portuguesa na UFVJM, em Diamantina. Pós-doutora pela UFMG/FAPEMIG (2011), Doutora em Literatura Comparada pela UFMG (2008) e Mestre em Teoria da Literatura também pela UFMG (2002), realiza pesquisas na área de Literatura Comparada

e

publica

exercìcios

literários

no

blog

umas_outras_

(umasoutras.blogspot.com). 45


Carta al Sr. B. Estimado Sr. B. Arrisco por polidez referir-me a você como “senhor” no princípio desta carta. Mas ela, já em seu princípio, se bifurca por um sendero outro que não o do distanciamento formal e cortês. Portanto, e com certo peso sobre a pluma e a folha, escrevo. Escrevo para contar sobre as angústias da leitura, de uma leitura que nunca se completa. Escrevo para dizer de uma indizível angústia criada por você, uma agonia de letras e imagens verbais que nublam minha visão, uma agonia que me torna cega frente a seu texto. Vingança cruel contra leitores desavisados que acreditam necessitar apenas dos próprios olhos para enxergar seus símbolos, seus ícones, suas imagens – por fim, aquilo que você vê. Você vê. De nada adianta críticos, escritores, estudantes, professores, mestres e doutores enfatizarem sua cegueira. Este é apenas o fato. E o fato é aquilo que talvez você mesmo não enxergue, posto que aquilo você vislumbra está além; você, como numa cópula, multiplica o que vê – sua escrita é uma cópula. Como um espelho – sua escrita é uma imagem. Pois bem. O que assoma meu entendimento, meu raciocínio, minha leitura, é a forma como você me persegue, logo quando penso que sou eu aquela que tenta alcançar você. Inutilmente, corro atrás de um mito que escreve, de uma sombra esfumaçada que se desvia dos mundos palpáveis, que se esgueira pelos rincones das palavras. Sua expressão não é a de um cego que tateia, não. Você sabe muito bem aonde vai, e para onde levará aqueles que tentarão lhe acompanhar. O problema é que, quando penso e decido que não quero ir, você já me deixou lá. E me vejo sozinha. Perdida. Amedrontada. Por isso decidi dizer dessa angústia, para ver se a expulso, como a uma farpa dolorida. Expulso a angústia, mas não quero me livrar da madeira que a multiplica em várias outras farpas. Porque, no fundo, a solidão de estar onde você me coloca é o que me mantém alerta. Soy una mujer cobarde. Ahora lo digo. Saludos, v.o.

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Imagem: Douglas Costa

Melissa Boëchat é mineira, doutora em Letras - Estudos Literários, professora universitária de Literaturas em Lìngua Espanhola, publicitária e fotógrafa. Editora da Revista Vertentes (PROMEL/ UFSJ) e coeditora da Revista Palávoraz - Literatura e Afins.

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A HERANÇA Os pequenos olhos de Lúcio ficaram ainda menores quando viu a mulher pendurar cuidadosamente na parede, e em lugar de honra, o enorme retrato de seu tio-avô Aurélio, morto recentemente. Feio demais, pensou o marido. A boca, no entanto, salivou, quando pensou que a feiúra nada significava se comparada à fortuna do velho. Após a leitura do testamento, que foi presenciada por meia dúzia de gatos pingados escolhidos a dedo, a mulher não deu um pio. Ele esperou pacientemente por uma boa notícia, mas o tempo passou e nada. A conta bancária continuava da mesma maneira. E ele em queda vertiginosa rumo a mais absoluta miséria. Rico jamais havia sido, é bem verdade, mas nunca, como agora, precisara tanto de dinheiro. Questão de vida ou de morte, mais de morte, se computadas as ameaças dos agiotas a quem devia uma boa quantia. Resolveu perguntar a ela o que, afinal, o velhote lhe deixara. “Ora, o retrato e a coleção de armas brancas. Ele sabia que eu adorava polir suas facas.” “Estúpida! Em que mato sem cachorro fui me meter!” Ela não deu um pio. Em homenagem ao tio, escolheu as segundas para polir as armas. Lúcio observava a mulher desembainhar as facas, limpá-las e, novamente, guardálas dentro das bonitas caixas de madeira. O ritual exasperava Lúcio. Ela sabia. E gostava. Ela sabia dos jogos, das mulheres, das dívidas, da ganância, do desprezo. E do coração fraco, além do caráter. Ela sabia. Tão pequena e serena. Tomou gosto. Todas as segundas desembainhava e polia. Todas as segundas experimentava o fio e o corte. Às vezes, nos dedos, outras, nas coxas. O sangue ralo gotejava como uma mísera torneira sem conserto. E a tudo ele espreitava. Com irritação, de início. Depois, com pavor. Pior era a calmaria dos olhos de Emma, a placidez medonha da satisfação. O coração era fraco, ela sabia. Mais fraca e providencial, porém, foi a veia partida, esmigalhando a razão. Melhor tivesse morrido. “Adonaldo”, por favor, apronte Lúcio, vista-lhe um terno bem bonito. Hoje, às dez, vem aqui um retratista argentino, o mesmo que pintou o quadro de meu falecido tio. Não sei se já lhe contei, Lúcio, mas conheço muitos artistas e o retrato de titio foi um presente meu, pouco antes de sua morte. Ficou tão feliz, o pobrezinho. Tão vaidoso.” “Senhora, será que ele a compreende?” Ela não respondeu. Colocou-se cara a cara com o homem na cadeira de rodas. Olhou-o demoradamente e, com satisfação, percebeu os olhinhos apequenarem-se ainda mais. Melhor tivesse morrido. 48


Mariza Lourenço, advogada e escritora, é coeditora da Germina – Revista de Literatura & Arte (http://www.germinaliteratura.com.br). 49


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Imagem: Douglas Costa


benjamin tenho um medo terrìvel de cegar ela me disse, e desligou o telefone se abraçando debaixo das cobertas. fazia frio demais para levantar agora, lavar as mãos esfregá-las com álcool e voltar para a cama. fica na dúvida se ao acordar será capaz de abrir os olhos e enxergar o relógio por saber secretamente que coçou os olhos com os dedos depois de ontem, depois de ter passado a tarde com aquelas crianças na dúvida se a viam pouco ou nada, com uma roupa escolhida especialmente para a ocasião, percebeu que afinal ninguém poderia ver a tal roupa até que um menino apontou olha só a loura a menina bem novinha usa unhas roxas metalizadas e quer ser atriz quando crescer ela é a que mais vê de todos, poderia estudar em uma escola qualquer mas tem uma doença degenerativa aos poucos vai enxergar cada vez menos e todos sabem disso, saberá ela também? decide que não vai sentir pena ninguém aqui está pedindo pena amanhã ao acordar vai ser como eles

Alice Sant'Anna nasceu em 1988, no Rio. Lançou Dobradura (7Letras, 2008), Pingue-Pongue (uma publicação independente em coautoria com Armando Freitas Filho, 2012) e Rabo de baleia (Cosacnaify, 2013).

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sobre os esquemas de segurança podia dizer que é o incômodo dos ladrilhos muito frios, o tilintar do ralador, a concha e da escumadeira se chocando mas é mentira, de tudo isso eu gosto e até bastante o caso é que não vou conseguir tirar a mão da tua mão o caso é que vou te impedir : como é que posso te explicar que existe um ponto exato em que não tenho nenhuma resistência e que este ponto agora não está mais entre as minhas pernas - ele é guardado em numa caixa na estante do escritório na caixa que devia esconder os dólares (mas os dólares eu guardo sabiamente entre os livros – quem vai encontrar?) e que o coração mesmo dei pro caçador, (ele acha que é o coração dum veado, mas é o meu autêntico mesmo, é mais seguro assim) toda a estratégia dentro da estratégia pra deixar tudo bem a salvo pra que eu consiga segurar firme minha mão na tua mão te impedir, não te deixar encontrar o tal do ponto (que queria tanto que vc encontrasse entre minhas pernas perdido por ali, no coração da minha cozinha).

Ana Rüsche é escritora, publicou os livros de poesia Rasgada (edição de autor, 2005 e edição mexicana pela Ed. Limón Partido, 2008, tradução Alberto Trejo, rev. Alan Mills), Sarabanda (Selo Demônio Negro, 2007 e 2ª edição pela Editora Patuá, 2013) e Nós que Adoramos um Documentário (Ed. Ourivesaria da Palavra, 2010). Em prosa, publicou o romance Acordados (Ed. Amauta,: 2007). Escreve em www.anarusche.com.

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linha do tempo é quando me alcança esse abandono que o mundo principia amanhã, tão logo o reescreva talvez alguém se detenha na alternância das Idades provavelmente à sobra do aproveitamento e provavelmente também com a mesma gravidade cotidiana na qual o sol a chave o fundo manto no futuro do inverso nem suspeitem do que lhes devam os fonemas nomes apenas de escora entre outros fenômenos sem conta

Denise Freitas nasceu em Rio Grande (RS), em 1980. Escritora e professora; autora de Misturando Memórias (Casa Aberta, 2007) e Mares inversos (Casa Aberta, 2010); está entre os autores que compõem a Antologia poética: Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, 2011) e Coletânea de poesia gaúcha contemporânea (Assembleia Legislativa do RS, 2013); possui publicações em diversas revistas, dentre as quais, Revista Sibila, Germina Literatura, Musa Rara, Artistas Gaúchos,

Revista

Modo

de

Usar.

Escreve

o

blog:

www.sisifosemperdas.blogspot.com

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Após o traço descrito Essa oscilação desde o nome, com efeito, reflui até o fim de um longe remotamente distorcido. Algumas milhas acima um pássaro quase todo asa labora o silêncio do mundo, extingue e recomeça o infinito. Na mesma aparente imobilidade esse maciço de pluma contra o maciço zênite: duas minúcias de nenhum peso acercando-se da força bruta.

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De uma antiga lenda japonesa como num dos sonhos de Borges Cantarei para consolar os espíritos tristes e os fazer descansar em paz. Miminashi Hoichi Todas as noites os mortos cobram suas canções, a espera é cheia de surdos acontecimentos, sobre altas escadas de pedras de vento um palácio escancara seus portões e já os pés vão sobre as águas de um palude, vão sobre velhas tábuas podres, amuradas, vão sobre o azul sem anteparo, o azul profundo, e nenhum exorcismo abolirá mais este império.

Mariana Ianelli nasceu na cidade de São Paulo em 1979. Poeta, mestre em Literatura e Crítica Literária, é autora de Almádena, Treva alvorada, O amor e depois, entre outros (editora Iluminuras). Este ano estreou na crônica com o livro Breves anotações sobre um tigre (editora ardotempo) e no ensaio com Alberto Pucheu por Mariana Ianelli (editora UERJ). Em 2008 recebeu o prêmio Fundação Bunge (antigo Moinho Santista) de Literatura na categoria Juventude. Site oficial: http:// www.uol.com.br/marianaianelli/

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furores a prima C. despedaçando no meio-fio a cabeça de louça da minha primeira boneca os dentes de leite a apatia da Santíssima Trindade a cor branca o corpo de Hitler descendo aos infernos o vestido do primeiro baile, de veludo, me consumindo o fogo que arde sem se ver o silêncio de Guantánamo um gato molhado a letra A o último tango em Paris o olho amputado de Abu Ghraib a sandália havaiana do atropelado revirando-se pela avenida as jaulas uma mulher morrendo por lapidação na Arábia Saudita, Paquistão ou Nigéria a banda de música do 11° Batalhão de Infantaria de * às 12h31m na Av. Paulista o tempo: as rugas os fracassos os vícios: o tempo o terceiro movimento da Nona de Beethoven o responsório de Santo Antônio as quintas-feiras a hipotenusa play it once, Sam, for old time's sake a sombra da solidão no escuro o poema As Coisas, de Borges o signo de Escorpião a distância entre o estampido do revólver e a parede a palavra in-can-des-cen-te Genaro, quando abro as pernas e deixo-o entrar

Silvana Guimarães (Belo Horizonte/MG). Socióloga, escritora, tem textos publicados em revistas nacionais e estrangeiras. Participou de Dedo de Moça — Uma Antologia das Escritoras Suicidas, que organizou com Florbela de Itamambuca (São Paulo: Editora Terracota, 2009). Fundadora e editora da Germina — Revista de Literatura & Arte [www.germinaliteratura.com.br], e Escritoras Suicidas [www.escritorassuicidas.com.br]. Vive em Belo Horizonte. [sil.guimaraes@gmail.com] 57


O Espelho de Borges Em uma jaula de vidro repousa um homem que não vê, mas é visto. O observam as coisas inanimadas, as trevas a os móbiles de onde pendem transluminosas palavras. O trem envolto na bruma azul do calendário confunde-se com o homem, seu sono de mármore, seu hálito. Confunde-se com o homem até a palavra em negro Fevereiro o musgo dos números a pedra dos domingos em vermelho. Confunde-se com o homem tudo o que não vê, mas o cerca, o que de fora da moldura respira e observa. [do livro Geografia Íntima do Deserto, Landy, 2003]

Micheliny Verunschk, escritora. Mestre em Literatura e Literatura e Crìtica Literária e doutoranda em Comunicação e Semiótica pela Pontifìcia Universidade Católica de São Paulo (PUC). Publicou os livros Geografia Íntima do Deserto, (Landy Editora, São Paulo, 2003), O Observador e o Nada, (Edições Bagaço, Recife, 2003) e A Cartografia da Noite (Lumme, São Paulo, 2010). Foi finalista do Prêmio Portugal Telecom 2004 com o livro Geografia Íntima do Deserto. Participou de várias antologias, entre elas Na Virada do Século – Poesia de Invenção no Brasil, organizada por Claudio Daniel e Frederico Barbosa (Landy, 2002), Invenção Recife organizada por Delmo Montenegro e Pietro Wagner (Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 2004) e Poesia BR, organizada por Sérgio Cohn (Azougue Editorial, Rio de Janeiro, 2013). Tem trabalhos publicados na França, Portugal, Espanha, Canadá e EUA. 58


Maria Kodama As cidades são feitas de palavras como os homens. Os homens são nomes inventados pela máquina que arquiteta palavras. Palavras são galáxias de letras significados cometas planetas satélites que orbitam e habitam a grande máquina. A máquina é uma palavra nem mais bela nem mais triste mas diferente de útero. A máquina é uma palavra igual a qualquer outra como útero. A máquina pode ser um útero ou um labirinto. Ou ambos. Toda palavra pode dizer qualquer coisa como um nome e seu homem são a mesma coisa. As cidades são feitas de homens como as palavras. O labirinto sou eu. [do livro inédito, Outra Arte]

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Imagem: Douglas Costa


LA DICHA - Jorge Luis Borges El que abraza a una mujer es Adán. La mujer es Eva. Todo sucede por primera vez. He visto una cosa blanca en el cielo. Me dicen que es la luna, pero qué puedo hacer con una palabra y con una mitologìa. Los árboles me dan un poco de miedo. Son tan hermosos. Los tranquilos animales se acercan para que yo les diga su nombre. Los libros de la biblioteca no tienen letras. Cuando los abro surgen. Al hojear el atlas proyecto la forma de Sumatra. El que prende un fósforo en el oscuro está inventando el fuego. En el espejo hay otro que acecha. El que mira el mar ve a Inglaterra. El que profiere un verso de Liliencron ha entrado en la batalla. He soñado a Cartago y a las legiones que desolaron a Cartago. He soñado la espada y la balanza. Loado se el amor en el que no hay poseedor ni poseida, pero los dos que entregan. Loado sea la pesadilla, que nos revela que podemos crer el infierno. El que desciende a un rio desciende al Ganges. El que mira un reloj de arena ve la disolución de un imperio. El que juega con un puñal presagia la muerte de César. El que duerme es todos los hombres. En el desierto vi la joven Esfinge, que acabam de labrar. Nad ahay antiguo bajo el sol. Todo sucede por primera vez, pero de un modo eterno. El que lee mis palabras está inventándolas.

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A FELICIDADE - Jorge Luis Borges O que abraça uma mulher é Adão. A mulher é Eva. Tudo acontece pela primeira vez. Vi uma coisa branca no céu. Me dizem que é a lua, mas que posso fazer com uma palavra e com uma mitologia. As árvores me dão um pouco de medo. São tão formosas. Os animais tranquilos aproximam-se para que eu lhes diga seu nome. Os livros da biblioteca não têm letras. Quando os abro surgem. Ao folhear o atlas projeto a forma de Sumatra. O que acende um fósforo no escuro está inventando o fogo. No espelho há outro que observa. O que olha o mar vê a Inglaterra. O que diz um verso de Liliencron entra na batalha. Sonhei com Cartago e com as legiões que desolaram Cartago. Sonhei com a espada e a balança. Louvado seja o amor no qual não haja possuidor nem possuìda, porém dois que se entregam. Louvado seja o pesadelo, que nos revela que podemos crer no inferno. O que desce um rio desce o Ganges. O que fita uma ampulheta vê a dissolução de um império. O que brinca com um punhal pressagia a morte de César. O que dorme é todos os homens. No deserto vi a jovem Esfinge, que acabaram de construir. Nada há de antigo sob o sol. Tudo acontece pela primeira vez, porém de um modo eterno. O que lê minhas palavras está inventando-as.

Ademir Demarchi nasceu em 1960 em Maringá e reside em Santos-SP. Cursou Letras/ francês, mestrado (UFSC) e doutorado (USP) em Literatura Brasileira. Edita as revistas BABEL, de poesia, crìtica e tradução (6 edições de 2000 a 2003, fundada com os escritores Marco Aurélio Cremasco, Mauro Faccioni Filho e Susana Scramim, todos paranaenses) e Babel Poética (premiada em 1.º lugar entre 170 projetos no Programa Cultura e Pensamento 2009/2010 do Ministério da Cultura, que teve 6 edições no perìodo 10112013, com 10 mil exemplares em distribuição nacional, contendo um mapeamento da poesia contemporânea do Brasil por temas sobre como os poetas veem o paìs, o lugar em que moram, a questão das fronteiras, sua relação com o outro social, os ìndios). Edita o selo Sereia Ca(n)tadora, de livros artesanais, com 30 tìtulos publicados entre 20102013, vários com traduções que tem feito de poetas latino-americanos. Em 2012 ganhou Prêmio Tradução do Governo do Estado de São Paulo para compilar uma antologia das Tradições Peruanas de Ricardo Palma. Publicou: Passagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná (com 26 poetas, Imprensa Oficial do Paranpa, 2002); Os mortos na sala de jantar (Realejo, 2007 – prêmio de publicação do Governo do Estado de São Paulo); Passeios na Floresta (Éblis, 2007; Lima: Amotape Libros, 2013); Do Sereno que Enche o Ganges (Dulcineia Catadora, 2007; Lima: Centro Peruano de Estudios Culturales, 2012); Ossos de Sereia (YiYi Jambo, Assunción, Paraguay, 2010; Sereia Cantadora, 2012); O amor é lindo (Sereia Cantadora, 2011); Obras cadáveres – Arthur Bispo do Rosário, Estamira, Jardelina, Violeta e o Deus do Reino das Coisas Inúteis (Edições Caiçaras, 2011) e Pirão de Sereia, que reúne sua obra poética de 30 anos (Realejo, 2012 – prêmio de publicação da Prefeitura de Santos). Participa da série Diálogos com a Literatura Brasileira (org. Marco Vasques, vol. III, Ed. Movimento/Ed. Letradágua, 2010) e da antologia da região Sul Moradas de Orfeu (org. Marco Vasques, Letras Contemporâneas, 2011). Tem também numerosos poemas, artigos e ensaios publicados em jornais e revistas impressos e em sites na internet (Coyote, Medusa, Oroboro, Rascunho, Polichinello, Cronópios, Musa Rara, Germina, Ideias/Jornal do Brasil, Tanto, Blocos On-Line, Celuzlose, Revista Pausa, Cinezen, Triplov, Agulha etc.), teve poema selecionado para integrar a Bienal Internacional de Curitiba 2013 e escreve semanalmente desde 2008 a coluna Babel no jornal O Diário do Norte do Paraná, de Maringá-PR. Site: babelpoetica.wordpress.com.

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Arte poética Mirar el rìo hecho de tiempo y agua y recordar que el tiempo es otro rìo, saber que nos perdemos como el rìo y que los rostros pasan como el agua. Sentir que la vigilia es otro sueño que sueña no soñar y que la muerte que teme nuestra carne es esa muerte de cada noche, que se llama sueño. Ver en el dìa o en el año un sìmbolo de los dìas del hombre y de sus años, convertir el ultraje de los años en una música, un rumor y un sìmbolo, ver en la muerte el sueño, en el ocaso un triste oro, tal es la poesìa que es inmortal y pobre. La poesìa vuelve como la aurora y el ocaso. A veces en las tardes una cara nos mira desde el fondo de un espejo; el arte debe ser como ese espejo que nos revela nuestra propia cara. Cuentan que Ulises, harto de prodigios, lloró de amor al divisar su Itaca verde y humilde. El arte es esa Itaca de verde eternidad, no de prodigios. También es como el rìo interminable que pasa y queda y es cristal de un mismo Heráclito inconstante, que es el mismo y es otro, como el rìo interminable. Borges, Jorge Luis. El hacedor, in: Obras Completas, Vol. II, p. 221, 2.a ed., Buenos Aires: Emecé, 1999.

Mauro Faccioni Filho nasceu em Maringá em 1962 e reside em Florianópolis desde 1980. Formado em Engenharia, com doutorado em Modelagem Numérica. Produziu e dirigiu os filmes Jesus é traìdo na cruz (ficção, 16 mm, 15 minutos, 1985); Loba (ficção, vídeo, 90 minutos, 1986); Bruxas (documentário, 16 mm, 30 minutos, 1987); O mau selvagem (ficção, 16 mm, 20 minutos, 1990). Publicou, entre outros, Olhos cegos (poesia/teatro, Semprelo, 1990; reed. Letras Contemporâneas); O grande monólogo de Madrija (poesia, Semprelo, 1989); Helenos (poesia, Letras Contemporâneas, 1998) e Duplo dublê (poesia, Letras Contemporâneas, 2002). Foi co-fundador e co-editor de Babel – Revista de poesia, tradução e crìtica, para a qual traduziu poetas norteamericanos, canadenses e argentinos. 64


Arte poética Olhar o rio feito de tempo e água E recordar que o tempo é outro rio, Saber que nos perdemos como o rio E que os rostos passam como a água. Sentir que a vigília é outro sonho Que sonha não sonhar e que a morte Que nossa carne teme é esta morte De cada noite, que se chama sonho. Ver no dia ou no ano um símbolo Dos dias do homem e de seus anos, Converter o ultraje dos anos Numa música, um rumor e um símbolo. Ver na morte o sonho, no ocaso Um triste ouro, tal é a poesia Que é imortal e pobre. A poesia Volta como a aurora e o ocaso. Às vezes na tarde uma face Nos olha desde o fundo de um espelho; A arte deve ser como este espelho Que nos revela nossa própria face. Contam que Ulisses, farto de prodígios, Chorou de amor ao divisar sua Ítaca Verde e humilde. A arte é esta Ítaca De verde eternidade, não de prodígios. Também é como o rio interminável Que passa e fica e é cristal de um mesmo Heráclito inconstante, que é o mesmo E é outro, como o rio interminável. BORGES, Jorge Luis. ―Arte Poética‖, in: FACCIONI FILHO, Mauro (tradutor). Helenos. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1998, p. 3 (epìgrafe).

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Arte poética Mirar el rìo hecho de tiempo y agua y recordar que el tiempo es otro rìo, saber que nos perdemos como el rìo y que los rostros pasan como el agua. Sentir que la vigilia es otro sueño que sueña no soñar y que la muerte que teme nuestra carne es esa muerte de cada noche, que se llama sueño. Ver en el dìa o en el año un sìmbolo de los dìas del hombre y de sus años, convertir el ultraje de los años en una música, un rumor y un sìmbolo, ver en la muerte el sueño, en el ocaso un triste oro, tal es la poesìa que es inmortal y pobre. La poesìa vuelve como la aurora y el ocaso. A veces en las tardes una cara nos mira desde el fondo de un espejo; el arte debe ser como ese espejo que nos revela nuestra propia cara. Cuentan que Ulises, harto de prodigios, lloró de amor al divisar su Itaca verde y humilde. El arte es esa Itaca de verde eternidad, no de prodigios. También es como el rìo interminable que pasa y queda y es cristal de un mismo Heráclito inconstante, que es el mismo y es otro, como el rìo interminable. Borges, Jorge Luis. El hacedor, in: Obras Completas, Vol. II, p. 221, 2.a ed., Buenos Aires: Emecé, 1999. Josely Vianna Baptista nasceu em Curitiba em 1957. É tradutora e escritora, graduada em Lìngua e Literatura Espanhola e Literatura Hispano-americana e pós-graduada em Semiótica pela Universidade Federal do Paraná. Publicou Ar (poemas, Iluminuras, 1991); Corpografia – Autópsia poética das passagens (poemas, Iluminuras, 1992, em colaboração com Francisco Faria); Coleção Cadernos da Amerìndia (Tipografia do Fundo de Ouro Preto, 1996, edição artesanal - criação da coleção, organização e tradução de: Neblina vivificante: poesia e mito Mbyá-Guarani - v. 1, em colaboração com Luli Miranda; Soninho com pios de periquitos ao fundo: canção de ninar Mbyá-Guarani (v. 2); e O amor entre os Nivacle. O mito Nasuc (v. 3); A Concha das Mil Coisas Maravilhosas do Velho Caramujo – histórias fantásticas da América e da Memória (fabulações para crianças, Ed. Mirabilia/FCC, Ilust. Guilherme Zamoner, 2000, ganhador do VI Prémio Internacional del Libro Ilustrado Infantil y Juvenil do Governo do México em 2002); Outro (Álbum de arte e poesia, em colaboração com Maria Angela Biscaia e Arnaldo Antunes, Mirabilia, 2001); Sol sobre nuvens (poesia reunida, apresent. Augusto de Campos, Perspectiva, 2002, Col. Signos, dirigida por Haroldo de Campos); Los poros flóridos. México, Aldus. Trad. Reynaldo Jiménez; Musa paradisiaca: antologia da página de cultura 1995/2000 (em colaboração com. F. Faria; Mirabilia, 2004, originada de página de poesia publicada de 1996 a 2000 em jornais dos Estados do Paraná e Santa Catarina). Uma coletânea de seus poemas, On the shining screen of the eyelids, foi premiada em 2001 pelo CreativeWorks Fund, de San Francisco, EUA, e publicada em 2003 por Manifest Press, em tradução de Chris Daniels. Em 2002, a Editorial Aldus lançou no México Los poros floridos (edição bilìngüe, com arte de F. Faria e tradução de Reynaldo Jiménez e Roberto Echavarren). Em 2006, Florid pores foi publicado na ìntegra em 1913: a journal of forms (San Francisco, 1913 Press; tradução de Chris Daniels e Regina Alfarano). Participou de antologias publicadas no México, Peru, Argentina, Estados Unidos, Cuba, França, Paraguai, Colômbia, Equador, Espanha, Austrália e Bélgica. As mais recentes são The Oxford Book of Latin American Poetry, que cobre 500 anos da poesia do continente, indo de escritos maias anônimos do século XVII aos dias atuais, e na qual é a única representante brasileira de sua geração (Nova York, Oxford University Press. Org. Livon-Grosman e Cecilia Vicuña, 2009), e a antologia de poesia brasileira organizada por Flora Süssekind para o Festival Europalia, na Bélgica (2011). Foi editora-adjunta do jornal Nicolau de 1987 a 1990; é editora de Edições Mirabilia. Tradutora de literatura hispanoamericana, trouxe ao português, entre dezenas de outros, Paradiso, de Lezama Lima (indicado para o Prêmio Jabuti de Melhor Tradução, Brasiliense, 1987); Os autonautas da cosmopista, de Julio Cortázar (Brasiliense, 1991); Escritos polìticos, de Simon Bolìvar, em colaboração com Jaques Mario Brand (indicado para o Prêmio Jabuti de Melhor Tradução, Unicamp, 1992); Lamé: antologia poética de Néstor Perlongher (Unicamp, 1994); Evita e outras prosas, de Néstor Perlongher (Iluminuras, 2001) e Lua defronte; Caderno San Martín; integrou o corpo de tradutores das Obras Completas de Jorge Luis Borges (Prêmio Jabuti de Tradução, Globo, 1999). Em 2011 publicou pela Cosac Naify Roça Barroca, no qual traduz pela primeira vez para o português o mito cosmogônico da tribo indìgena Mbyá-Guarani em poemas em edição bilìngue (guarani-português). Vem participando, como poeta convidada, de diversas exposições do artista plástico Francisco Faria no Brasil e no exterior. As mostras mais recentes foram Significado da paisagem das Américas (Curitiba, Museu Oscar Niemeyer/São Paulo, Instituto Tomie Ohtake, 2005), da qual participou também o poeta Luis Dolhnikoff, e Francisco Faria – Desenhos (Rio de Janeiro, Largo das Artes, 2009).

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Arte poética Fitar o rio feito de tempo e água e recordar que o tempo é outro rio, saber que nos perdemos como o rio E que os rostos passam como a água. Sentir que a vigìlia é outro sonho que sonha não sonhar e que a morte que teme nossa carne é essa morte de cada noite, que se chama sonho. No dia ou no ano perceber um sìmbolo dos dias de um homem e ainda de seus anos, transformar o ultraje desses anos em música, em rumor e em sìmbolo, na morte ver o sonho, ver no ocaso um triste ouro, tal é a poesia, que é imortal e pobre. A poesia retorna como a aurora e o ocaso. Às vezes pelas tardes certo rosto contempla-nos do fundo de um espelho; a arte deve ser como esse espelho que nos revela nosso próprio rosto. Contam que Ulisses, farto de prodìgios, chorou de amor ao divisar sua Ítaca verde e humilde. A arte é essa Ítaca de verde eternidade, sem prodìgios. Também é como o rio interminável que passa e fica e é cristal de um mesmo Heráclito inconstante, que é o mesmo e é outro, como o rio interminável.

BORGES, Jorge Luis. O fazedor. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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Imagem: Douglas Costa


Amarillo Vìdeo inspirado na conferência de Jorge Luis Borges sobre a cegueira, proferida em 3 de agosto de 1977. O vìdeo é composto por imagens captadas e editadas em Londres, 2013, por Manoela Afonso, com áudio do poema Arte poética, de Jorge Luis Borges, na voz do próprio escritor. http://vimeo.com/75586672

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Imagem: Douglas Costa

Manoela dos Anjos Afonso nasceu em Curitiba, ĂŠ professora da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de GoiĂĄs e cursa doutorado em artes na University of the Arts London. Para saber mais: http:// manoeladosanjosafonso.wordpress.com/ 71


Olhos sobre tela Vìdeo-performance baseada no poema "Elogio da Sombra", de Jorge Luis Borges. Texto, performance e leitura: Mariana Collares Direção de Arte: Marcello Sahea Música: Barulhista Digital video | 3'48" http://vimeo.com/76525215

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Imagem: Douglas Costa

Mariana Collares é escritora e performer multimìdia. É colunista em vários sites de literatura e afins, tendo publicado textos em diversas revistas digitais no Brasil e exterior. Atualmente dirige e atua no projeto ―Eu Sou Uma Outra‖ - multimìdia e performance de textos da literatura universal -, além de apresentar uma coluna falada no programa CV Explica, que roda às quintasfeiras, às 21 horas, na Rádio Elétrica (radioeletrica.com). Publicou “Devaneios Literários”, crônicas, em 2010.

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el hacedor: rasuras

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Imagem: Douglas Costa


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Ronald Augusto. Poeta músico, e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e Oliveira Silveira: Poesia Reunida (2012). Despacha no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é diretor-associado do website www.sibila.com.br 85


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Projeto Borges O "Projeto Borges" foi desenvolvido, após um mergulho na obra do autor argentino, para a criação da capa da atual edição da Revista Palávoraz. Como nos labirintos espelhados de Borges, algumas etapas do trabalho desdobraram-se em imagens autônomas, o que foi muito bom, pois tivemos pelo menos quatro opções de escolha para a capa. Veja, a seguir, o registro do nosso projeto de criação. A imagem 8, contém intervenção do artista gráfico Frederico Martins, que utiliza fragmentos de textos de Borges para criar uma textura de fundo em palimpsesto.

Patrìcia Ferreira é artista plástica, mestre e doutora em letras e linguìstica. desenvolve o projeto ―gesto de artista‖ — contra o mercantilismo na arte. adora punk rock, new wave e otras cositas. também gosta de comer pipoca no cinema e tomar cerveja com os amigos. mantém os blogs http://ver-de-poesia.blogspot.com.br/ e http://patworkpat.blogspot.com.br/.

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Imagem: Douglas Costa


Foto: http://www.posfacio.com.br/wp-content/uploads/2012/09/jorge-luis-borges.jpg modificação : Douglas Costa


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