A AULA ENCANTADA por Julio Cesar M. Di Giovanni
Durante o lanche, todos aguardavam as velinhas faiscantes. Os alunos, ansiosos pelo “parabéns” e pelos pedaços graúdos de bolo de cenoura com uma cobertura cremosa de chocolate e confeitos coloridos, gritavam: — Vai logo, Julio! Acende as velas!!! O professor, ansioso por acabar com aquela tensão, tentava riscar o palito de fósforo pela terceira vez, sem sucesso. Já estava acostumado com aquela situação: as caixas de fósforo emprestadas pelas funcionárias da cozinha sempre ficavam meio úmidas por conta das louças. Com esse tipo de vela, então, as que soltam faíscas, a tarefa ficava ainda mais terrível! Enfim, as velas se acenderam e as faíscas fizeram os olhos dos alunos brilharem de alegria... Na volta do recreio, a aula abordaria a estrutura dos contos de encantamento, a partir de algumas páginas do livro didático. Antes disso, porém, o professor deveria concluir a leitura de um conto iniciado no dia anterior. “A Caixa Mágica”, de Hans Christian Andersen. Uma história divertida e emocionante sobre uma caixa que produzia faíscas e fogo. Uma pederneira. Porém, por se tratar de um objeto encantado, quando riscada uma vez, a caixa fazia aparecer um cão enorme, com os olhos do tamanho de um pires. Quando riscada duas vezes, um cão ainda maior aparecia, com olhos do tamanho de rodas de carroça. Ao ser riscada três vezes, um terrível cão com olhos do tamanho de um carrossel surgia! História divertida, emocionante e envolvente. Ao terminar de ler, o professor sentiu um estranho cheiro de queimado. Com o susto e um movimento brusco, o professor remexeu no bolso e percebeu que a caixa de fósforos emprestada pelas funcionárias da cozinha ainda estava lá. Os alunos arregalaram os olhos e a Thaís, professora parceira do professor, perguntou o que havia acontecido. O professor explicou sobre o cheiro de queimado, sobre a caixa de fósforos que ele havia se esquecido de devolver e sobre aquilo tudo ser
um pouco esquisito, ainda mais se tratando de uma história que falava sobre uma pederneira mágica! Thaís olhou desconfiada, com apenas uma sobrancelha erguida. Exagerando os movimentos labiais, ela sussurrou, sem emitir um único som: — Você sentiu mesmo o cheiro de queimado? Um turbilhão de pensamentos passa pela cabeça do professor. Pensamentos tão rápidos que fariam a língua de um locutor de rádio se enrolar, caso o sujeito tentasse verbalizá-los. Pensamentos do tipo: “Esqueci de devolver os fósforos.” “Deve ter sido algum movimento meu que fez o cheiro de queimado subir...” “Devo ter esfregado o nariz sem perceber e o cheiro estava na minha mão...” “Será que eu imaginei o cheiro?” “Que coincidência isso ter acontecido bem ao final desta história!” “A Thaís deve estar achando que eu inventei tudo isso.” “As crianças estão impressionadas com meu susto! Que engraçado...” “Espera aí, essa situação toda pode dar jogo!!!” E, de fato, esse último pensamento estava absolutamente correto: a situação deu um jogão digno de uma final de Copa do Mundo! Com o embrião de uma ideia se formando, o professor pegou a caixa de fósforos e a examinou bem de pertinho, procurando indícios de algo encantado. Os alunos mais conectados notaram e algum bem-aventurado gritou: — Será que essa caixa de fósforos é mágica?! A fagulha estava acesa! O coração do professor disparava com a possibilidade de lidar com a magia ali, em tempo real. Possibilidade rara de vivenciar a criação de mitos no mundo profano. Ele não iria parar... — Será...? — disse, da maneira mais cínica e displicente que era capaz. — O problema é que se ela for mágica e a gente tentar riscá-la, pode aparecer um cachorro grande como o da história! Os alunos estavam em polvorosa! Urrando de empolgação, querendo testar o impossível. Alguns duvidavam, já empenhados em tentar desconstruir qualquer pensamento mágico com frases pouco elaboradas: — Nada a ver! Mas a maioria clamava por mais encanto. Imploravam para que o professor riscasse alguns fósforos na caixa. Uma, duas, três vezes... — Mas se riscarmos três vezes, o cachorro que vai aparecer terá olhos do tamanho de um carrossel, gente! É muito perigoso — era dever do professor avisá-los —. Mesmo o cachorro com olhos do tamanho de rodas de carroça pode fazer um bom estrago na escola. Acho melhor deixar essa história pra lá...
— NÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOOOOOO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Os alunos clamavam por mais!!! Era necessária a autorização de uma instância maior, uma coordenadora. Enquanto a Thaís telefonava para a coordenadora Carola, os pequenos aguardavam na porta da sala, com os olhos arregalados. — A Carola autorizou, Julio. Mas ela disse pra você riscar apenas uma vez, para não causar problemas na escola. Os alunos demonstraram uma leve frustração, queriam que o professor riscasse a caixa três vezes. O professor fica ainda mais empolgado, percebendo que eles estão completamente enfeitiçados. — Explique a situação para a coordenadora. Diga que eles querem muito tentar trazer o cão gigantesco (falado)!!!!!; Corre-lá-e-avisa-quemtiver-que-avisar-que-é-pra-dar-um-jeito-de-avisar-que-tem-um-cachorrogigante-na-escola (sussurrado em adultês)!!!!!!! O microcosmos que nos cerca conspira! O jogo se transforma em uma final de Copa entre Brasil e Argentina!!! A primeira tentativa falha. Caixa de fósforo úmida. No momento em que o professor risca o fósforo pela segunda vez, conseguindo acendê-lo, o inspetor Marinho entra na sala escancarando a porta. Todos tomam um susto, inclusive o professor. Alguns alunos correm para o fundo da sala!!! O inspetor está brilhantemente preocupado, merecedor de um Oscar de melhor inspetor-colaborador-de-encantamentos, com o rádio na mão e um ar urgente: — Julio, acabei de receber um recado da coordenação. Tem um cachorro enorme no clubinho! Não é para nenhuma criança descer, ninguém está conseguindo acalmar o cachorro. Um alvoroço! Alguns correndo para o fundo da sala, outros tentando confirmar sua dúvida com a Thaís (“é mentira, né?”), outros empolgados, gritando (deu certo!!!). O professor, estrategicamente, tenta fazer a situação se acalmar, como faria em uma emergência real. — Gente, vamos lá, página 58... Estamos na aula de Português... Um dos alunos, mais conectado, grita: — Julio!!! Na história, os cachorros são acalmados por um avental azul!!! Dá o seu casaco para o Marinho e fala para ele estender o casaco no chão!!!!! O cachorro vai sentar e se acalmar!!!!! O professor está ainda mais empolgado, agradecendo aos céus pelo grupo maravilhoso de alunos. Era a final da Copa do Mundo entre a seleção brasileira de 1970 e a seleção argentina de 1986!!!!! Coisa linda!!! Para a felicidade de todos, a estratégia deu certo! Em alguns minutos o inspetor voltou à sala e informou que o cão havia sido acalmado com o casaco azul. Os bombeiros estavam conduzindo o cachorro gigante para o Jardim Zoológico e as crianças já podiam ficar tranquilas. Todos correram, para tentar ver o cachorro. Antes de descer, o aluno conectado afirmou: “Nossa, se eu conseguir ver esse cachorro, vai ser a maior aventura DE VERDADE da minha vida!!!”.
Afortunadamente, a sincronicidade do micro-universo estava impecável! Uma pegada gigante de cachorro-inspetor tinha sido deixada nas areias do clubinho!!! Na volta à sala de aula, parte do grupo estava impressionada e empolgada com a pegada na areia, os olhares brilhando. Outra parte, embasbacada, tentando entender aquela magia ininteligível, explicar o que o cérebro não captava. O professor, tentando “pôr panos quentes” na situação, insistia na leitura da página 58 do livro didático. A leitura, que poderia ser fria e estática, foi acesa pelos acontecimentos mágicos da aula e se incendiou em significado. No texto, uma análise sobre gêneros textuais, suas funções e uma pergunta: “Por que lemos e escrevemos contos de encantamento?”. Todos encantados, inclusive os adultos! Uma final de Copa do Mundo entre a seleção canarinho de 1970 e a seleção argentina de 1986, com direito a gol de mão do Maradona, empate com chute de fora da área do Gérson, e virada com bola cruzada pelo Rivelino e um belo voleio direto do Pelé!!! É gooooooooooool!!!!!!!