Capa
Leonardo Garbin Editoração
Camila Kieling e Marta Castilhos (Editoras Associadas)
M775c Monteiro, Silas Borges (org.). Caderno de notas 2: rastros de escrileituras./ Org. por Silas Borges Monteiro. Canela,RS: UFRGS, 2011. Coleção Escrileituras ISBN 978-85-61774-02-8 1.Filosofia. 2.Projeto Escrileituras. 3.Pensamento da Diferença. I.Título. CDU 101
Este livro foi produzido com o apoio do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS
Betina Schuler Doris Helena de Souza Eduardo Aníbal Pellejero Eduardo Guedes Pacheco Emília Carvalho Leitão Biato Ester Maria Dreher Heuser Fani Averbuh Tesseler Gabriel Sausen Feil Nilton Mullet Pereira Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan Polyana Cindia Olini Samuel Edmundo Lopez Bello Sandra Mara Corazza Silas Borges Monteiro (Org.) Walter Omar Kohan Wladimir Antônio da Costa Garcia
Conselho Editorial Ada Kroef (CEE-CE; FUNCAP; FVJ-Ceará) Avelino da Rosa Oliveira (UFPel) Betina Schuler (UCS/EMEF Rincão/PM-POA). Dóris Helena de Souza (SMED/POA) Eduardo Pellejero (UFRN) Gláucia Maria Figueiredo (UNIOESTE) Karen Nodari (UFRGS/Colégio Aplicação) Luciano Bedin da Costa (UFRGS/SETREM) Ludmila de Lima Brandão (UFMT) Maria Amélia Santoro Franco (Universidade Católica de Santos) Nadja Maria Acioly-Regnier (Université Claude Bernard Lyon1) Vânia Dutra de Azevedo (PUC/Campinas)
Comitê Editorial Carla Rodrigues Gonçalves (UFPel) Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE) Sandra Mara Corazza (UFRGS) Silas Borges Monteiro (UFMT)
Sumário Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Emília Carvalho Leitão Biato Polyana Cindia Olini
Caóides . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Sandra Mara Corazza
A estratégia da involução: o devir-menor da filosofia política. . . . . . . 17 Eduardo Aníbal Pellejero
Sobre a escrita (o escrever) e o aprender (pela filosofia) . . . . . . . . . . . . . 29 Walter Omar Kohan
Estudos em torno da busca de um começo para pensar: do poderoso Eu ao “impoder” essencial do pensamento . . . . . . . . . . . . . 45 Ester Maria Dreher Heuser
Procedimentos, em Gilles Deleuze: Proust, Sade, Sacher-Masoch, Klossowski, Kafka e Bacon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67 Gabriel Sausen Feil
(Des)truísmos de velhas estruturas para poder construir novas? Ato de criação e a ocupação de um certo espaço e tempo . . . . . . . . . . . . 95 Fani Averbuh Tesseler
Pensando as artes de si e a produção da diferença em Michel Foucault . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 Nilton Mullet Pereira Samuel Edmundo Lopez Bello
Uma didática menor: questão de entradas e saídas . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 Betina Schuler
Conversação: um convite ao pensamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137 Dóris Helena de Souza
Micrometria e catástrofe: aprender a sensação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157 Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan
“Uma” (des)educação musical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187 Eduardo Guedes Pacheco
OpenBarthes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197 Wladimir Garcia
Ceci n’est pas une épilogue . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201 Silas Borges Monteiro
Acerca dos autores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
Prefácio tão Biato valho Lei i Emília Car ia ind Olin Polyana C
Há, na teoria dos paratextos – prefácios, prólogos, proêmios, epílogos –, a ideia de que se escrevem depois do livro a prefaciar. No entanto, há desvios da definição, como este: um prefácio em branco, escrito de um livro ainda não lido. Não há nisso algum ineditismo. Nietzsche assina “Cinco prefácios para cinco livros não escritos” e instaura o inusitado, ao dar, aos prefácios, um outro estatuto. Formula, na prática, arautos: paratextos que anunciam, esclarecem previamente, antecipam e instigam. Que se propõem a ser mais do que simples apontamentos ou esboços: manifestos do esforço de pensameno e, um tanto indiferentes aos textos a serem escritos, indicativos de questões; o que acontece, enfim, antes do começo. Decidimos elaborar um começo, ou o que vem antes dele, enquanto os textos dos autores não ficavam prontos – contingência do tempo e dos prazos. Logo depois, deixamos um espaço, para, ao cabo de tudo, trazer um possível desfecho. O espaço que se insere no vertente (pré)fácio sugere outro espaçamento: o que marca as suspensões e os retornos na cadência textual de todo autor. São brancos, vazios, arrombamentos, pontuações, pausas, que permitem que cada elemento do texto se encadeie com o outro, de modo a existir tal como a vontade dos autores. Fossem ausentes os brancos, diria Derrida, não serviriam eles aos desejos de seu autor e, mais grave ainda: não seriam ocupados pelo leitor. Os intervalos devassam o texto e impossibilitam a identidade hermética, a interioridade. São momentos criadores, como impulsos à invenção e à arte. Entre tempo e espaço. Este (pré)fácio. Este colóquio. Este livro. A brecha que o espaçamento abre. O Caderno 1 “Projeto, Notas e Ressonâncias” da Coleção Escrileituras se constitui em escritos indispensáveis, em que o ensejo para refletir sobre o Projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida e seus aprofundamentos teóricos necessários relaciona-se bem com o caráter inspirador do 9
livro. Este Caderno 2 “Rastros de escrileitura” foi pensado a partir da intenção de reunir parte das conferências, comunicações e artistagens do I Colóquio Nacional Pensamento da Diferença: Escrileituras em meio à vida, realizado em novembro de 2011, na Universidade de Caxias do Sul, Núcleo Canela, Rio Grande do Sul. Também por isso, este volume é abrangente; apresenta o transito teórico de Escrileituras por todos os núcleos de estudo do projeto. Os temas de pesquisa e reflexão variam significativamente, sinalizam as diversas possibilidades destes estilos transdisciplinares em filosofia-educação. Procuramos dispor os artigos de forma que nos remetam ao Colóquio. Dessa forma, “Caóides” abre este volume. A autora – que chamamos Sandra Corazza – estabelece diálogo sobre o cenário e o percurso dos estudos e trabalhos desenvolvidos no Projeto Escrileituras e, sobretudo, dos efeitos que tal relato provoca, emerge a poesia do que temos vivido. Em seguida, é Eduardo Pellejero quem movimenta o nosso pensamento para a criação de novas formas de individuação. Indica possibilidades e alternativas advindas do devir-menor, enquanto movimento revolucionário não representativo; isto é, livre dos padrões estabelecidos politicamente e historicamente. Walter Omar Kohan retoma, em novas dimensões, o enfrentamento político na Grécia Antiga, no diálogo com Fedro, na escrita de Platão e no aprender por uma vida filosófica, de Sócrates. Argumenta a impossibilidade da afirmação do pensamento unitário e o valor da diferença no ser, na política, no pensamento e na escrita. Expositores das sessões temáticas simultâneas dão continuidade às múltiplas frestas propostas aqui. Ester Maria Dreher Heuser recorre às diferentes perspectivas de Descartes, Kant, Fichte, Hegel e Feuerbach, para visitar possíveis princípios em filosofia, com a intenção de refletir, a partir de Deleuze, o que significa pensar, bem como a necessidade de pensar. Gabriel Sausen Feil apresenta a noção de procedimento na obra de Gilles Deleuze, em diálogo com Proust, Sade, Sacher-Masoch, Klossowski, Kafka e Bacon. Aponta que todos têm, em comum, o fato de funcionarem eroticamente, já que atuam sempre a partir da dissolução de uma Forma; e o erotismo surge como reinvenção do que parece tão verdadeiro e imutável. Verdade verdadeira? A minha ou a deles? Pergunta Fani Tesseler. A autora propõe-se a pensar o ato de criação, com Deleuze, e destaca, ao lado de Foucault, a impossibilidade da verdade posta da realidade. Enquanto, em seus questionamentos sobre sujeito, verdade e invenções associadas, Nilton Mullet Pereira e Samuel Lopez 10
Bello trazem Michel Foucault como pensador da diferença, para nos enviar às máscaras e modos provisórios de apresentação de si. Ainda, para o potencial de não submeter a vida aos modos já existentes, através da invenção de modos de ser ainda improváveis. Num movimento de não submissão e rompimento com projetos daqueles que estabelecem a didática de forma moralizadora e unificadora, o texto de Betina Schuler também ensaia outras formas de existir. Retirando a Didática de um campo totalizador e universalizante, coloca-a no terreno das possibilidades de criação, de um corpo novo. Em sequência, Dóris Helena de Souza, em sua “Conversação”, indica, inicialmente que não trará a falação de conceitos a serem compreendidos, já que os trata como ato de criação. Faz, então, provocações ao pensamento do leitor, no sentido do olhar para a didática sem pretensões revolucionárias nem modelizações, mas tratando-a como um modo que fala da vida. O enredo de Paola Zordan, também, traz uma escritura sobre a vida e seu cotidiano, que prende nossa atenção, à medida em que trata do aprendizado das sensações, em meio à educação dos corpos. Ao tratar de criação, voltamos a Nietzsche e ao que este concebeu como a “justificativa estética do mundo”, qual seja, a arte, sobretudo a música, que atravessam os seus cinco prefácios e consubstancia-se como tema e forma. Problematizando a arte musical, inserida nas questões comuns da infância e da educação, Eduardo Pacheco propõe a (des)educação musical como criação e invenção de si. Com remissões à filosofia da diferença, apresenta diversos aspectos que compõem essa invenção. Para encerrar o volume, as dezessete notas de Wladimir Garcia estilhaçam qualquer compostura apolínea dos textos científico-acadêmicos. São noções morfológicas, sintáticas, semânticas, estruturais, sentimentais, escapamentos, constituindo uma escritura dotada de diferentes possibilidades de criação e inspiração. É certo que até mesmo nos espaçamentos deixados, quer sejam para frente, para trás ou para os lados, cada um desses textos contém o seu autor; e cada autor assina em seu nome próprio. Coloca-se, todavia, na lógica da não-identidade; pois, nem mesmo o nome do autor representa um jogo de significado. Os textos, desse Caderno de Notas, são sempre abertos e passíveis de inserções artistadoras. A arte nos textos fundamenta a realização do Projeto Escrileituras, que privilegia o poético; provoca sensações, na forma de perceptos e afectos; e assume a fabulação como o prumo da produção de si. É disso que tratam os textos deste volume. Ao leitor, ofertamos os espaços a serem ocupados. 11
Caóides a
ara Corazz
Sandra M
Estudos. Pesquisa. Trabalho. Formação. Fomento. Edital 038/2010. CAPES, INEP. O título do projeto? Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. Surpresa e receio, quando da aprovação. Duração: 4 anos. Muito tempo. Muita gente, espalhada, diversa. Na UFRGS, eu, que dizem chamar-se Sandra Corazza. E mais três Núcleos, com os seus coordenadores: Carla Rodrigues, na Universidade Federal de Pelotas; Ester Heuser, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná; e Silas Monteiro, na Universidade Federal do Mato Grosso. E tantos outros colegas e amigos, espalhados por este mundão velho sem porteira. Na UFRGS, ainda, o BOP – Bando de Orientação e Pesquisa. Nele, o sopro de Patrícia Dalarosa. E o apoio do Grupo de Pesquisa DIF – artistagens, fabulações, variações; da Linha de Pesquisa 09 Filosofia da diferença e educação; ligados ao Programa de Pós-Graduação em Educação; ao Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação; e à Pró-Reitoria de Pesquisa. Na Universidade de Caxias do Sul, Ana Lidia Bisol e toda a decisiva acolhida da equipe do NUCAN. Eixos. Educação básica. Educação de jovens e adultos. Ensino superior: alunos de licenciaturas. E um eixo profissional: professores públicos das redes públicas de ensino, municipal, estadual, federal. Chegada parecia a hora de nos agregar ao redor dos índices nacionais, Prova Brasil, IDEB, e outros que-tais. Para participar de dentro, exercitando a crítica e a problematização. Questionando, para qualificar a discussão sobre a própria qualificação da Educação Básica no Brasil. Nosso cenário: o uso, a produção e as dificuldades da linguagem na escola. Currículos e operações mentais. Interpretação, variações, relações 13
entre saberes, processos de pensamento, dinamismos espaços-temporais, sensibilidade para as artes, formas de expressão e de conteúdo. Com as Oficinas de Escrileitura (escrita-e-leitura), o projeto cria posturas multivalentes de leitor, co-autoria, tradução de textos abertos, reescrevíveis, produtivos. Que ganham força nesses mesmos movimentos. Sua extensão é a alfabetização, enquanto prática e conceito, para além da apropriação dos códigos escritos. Escrileituras, que acontecem em diferentes suportes e de múltiplos modos, com sentidos diferentes, em processos de individuação. Criação de modos de existir e de pensar. Experimentação de afectos. Enfrentamento do que não está atualizado, no campo do aprender. O trabalho com as Oficinas implica o vivido, as sensações, as invenções. Cada Oficina consiste num convite à escritura e à leitura, que se desdobra em saberes matemáticos, biografemas, histórias, música, arte, literatura, poética, teatro, fantasias, fruições. Encontros produzidos na multiplicidade do leitor-escritor com o texto: enquanto ato de sedução do pensamento, que só seduz porque deseja. Encontros que excedem todas as procuras; ultrapassam a tagarelice; e transbordam, em grandes ondas. Na intersecção das Oficinas entre si, marcam-se a decomposição e a desocupação dos territórios identitários, que se abrem à raridade e ao inusitado. As Oficinas põem problemas em cena, enquanto condição de possibilidade da aprendizagem. Convocam a violência e a vidência do pensamento. Investem em processos disparadores de criação textual e não-textual. Suas experimentações ultrapassam a ilusão de etapa metodológica, previsível e garantida, para o acesso ao conhecimento; deste, não compreendem a natureza empírica, passível de desvelamento; distanciam-se da generalização e da comprovação de evidências. Tratam a vida como artistagem: um desordenamento necessário à criação; uma idéia de afectação vital; transgressão e abertura ao encontro inesperado com outros textos. As Oficinas põem na roda o que não se conhece, através de uma infância do mundo. E, na extensão desse estranhamento, fazem falar, ler e escrever, em línguas liberadoras de forças. 14
Transdisciplinaridade. Imersão e aportagem de problematizações acerca do cotidiano. Vivência de processos de singularização. Articulação com a docência da investigação. Produção, no espaço de correlações entre leitura, escritura e pensamento. As Oficinas inserem a Escrileitura na dimensão imaginadora e imaginária de todo texto. Lidam com as coisas do mundo, brechas experimentais, espaçamentos impensados, a importância de outrem e de se viver junto. Abrem universos de imagens, tessituras, conexões, interceptação do Mesmo, esfacelamentos, linhas e fluxos, estriamentos atravessados por cheiros, hormônios, gradientes sonoros e gravitacionais. Todos territórios do aprender e do ensinar, feitos da massa disforme da fantasia, dos quais brotam desertos, saqueadores, combates, festas. Ao se voltarem para a repetição daquilo que é único, as Oficinas funcionam como corpos sensíveis ao movimento; encostas de textos; lugares de abrigo; casas movediças. Foi assim que, tomando a Escritura-e-a-Leitura como aventuras, as Oficinas engendraram este I Colóquio Nacional Pensamento da Diferença: Escrileituras em meio à vida: feito um exercício de vivaz e fascinante pensamentar. Por isso, o Colóquio possui uma temporalidade própria ao período da viagem das Oficinas, com paradas provisórias, velocidades que passam da aceleração infinita às lentidões necessárias, esgotamentos, vôos alucinados, desatinos, excessos, escassez de idéias, combates, inspiração, musicalidade, solidão e fome. Colóquio, que solicita outro tempo, que não o cronológico; pede passagem para existir ao seu modo, inscrever signos; e, logo, mudar de posição. Dessa maneira, é que nos posicionamos, junto a nossos conferencistas convidados Eduardo Pellejero, de Natal, e Walter Kohan, do Rio de Janeiro; e junto a todos vocês, pesquisadores, que, de várias partes do Brasil, aceitaram a amizade do convite. Para enfrentar o perigoso plano de um primeiro Colóquio: pisando terras desconhecidas, em devir-estrangeiro, como arqueólogos num trabalho-viagem. Que as Caóides, as três filhas do Caos, a Filosofia, a Ciência e a Arte, iluminem, protejam e amparem este nosso percurso. 15
A estratégia da involução: o devir-menor da filosofia política
Eduardo
lejero
Aníbal Pel
Temos abdicado das utopias. Quiçá nunca nos tornaremos maiores, como queria Kant. A filosofia abriu mão da possessão (de direito) do poder e da propriedade (de fato) do saber. Porém, mesmo que já não depositemos nenhuma fé no advento de um mundo feliz, não podemos renunciar ao exercício de um pensamento político, na difícil, na imprecisível, na perigosa intersecção do nosso impoder e da nossa ignorância. Sem isso, as distopias que se insinuam no horizonte veriam desimpedido o terreno que as separa da sua realização total ou totalitária. O que fazer? A velha pergunta leninista continua a gravitar sobre nós com um peso irresistível, inclusive quando estamos convencidos de que não existe solução que não passe pela criação1 (mas “criar” não é uma resposta satisfatória a essa pergunta). A questão seria, hoje, antes e para além de qualquer programa de ação: Como abraçar uma política assim, que propõe a luta, não como revolução, mas apenas como resistência? Como abraçá-la quando se assume plenamente consciente de que as mudanças às quais podemos aspirar não têm mais que um valor local, estratégico, não totalizável? Talvez pudéssemos encontrar, não vou dizer uma resposta, mas um ponto de partida, na obra de Gilles Deleuze, quem nos propõe um deslocamento da REVOLUÇÃO, enquanto fim da história, para a revolução, enquanto linha de transformação – isto é, a afirmação da resistência, em detrimento da revolução concebida como o advento irreversível e radical de uma sociedade finalmente totalizada, não dividida, reconciliada. Uma lógica do acontecimento efêmero, imprevisível, neutro (événement), em lugar da dialética totalizante, determinista e teleológica do advento (avènement). 1 “Só há soluções criativas. São as soluções criativas que contribuirão a sair da crise atual” (Deleuze, 2003, p.217).
17
Deleuze propõe, nesse sentido, uma filosofia política menor, que teria como núcleo conceitual a ideia singular de um devir-revolucionário sem futuro de revolução2. Isto é, a consideração do acontecimento político por excelência (a revolução), não enquanto ideal ou meta a atingir, mas enquanto devir: “uma bifurcação, um desvio em relação às leis, um estado instável que abre um novo campo de possíveis (…) [e que] pode ser contrariado, reprimido, recuperado, atraiçoado, mas que comporta sempre qualquer coisa de insuperável”3. É uma questão de vida, que passa no interior dos indivíduos como na espessura da sociedade, criando novas relações com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho; mudanças que “não esperam pela revolução, nem a prefiguram, ainda que sejam revolucionários por sua conta: têm em si uma força de contestação própria da vida poética”4 – isto é, deslocando o desejo ou reorganizando a vida, tornam inúteis os dispositivos do saber e do poder que serviam para canalizá-los. Noutras palavras: esses processos valem na medida em que, ao ter lugar, escapam ao mesmo tempo dos saberes constituídos e dos poderes dominantes; mesmo se, mais tarde, são prolongados por novos dispositivos de saber e de poder. O devir-revolucionário ocupa no sistema deleuziano o lugar que nas filosofias políticas historicistas era o lugar da revolução; mais precisamente, extrai da revolução a parte do evento, do acontecimento, deixando de lado (por um momento?) a parte do projeto, a parte de sua efetuação na história. O devir-revolucionário aparece, nesse sentido, como o poder de variação e reordenação dos objetos e dos sujeitos, dos signos e das significações de um mundo prévio (e, nessa mesma medida, se assemelha à função do trabalho do sonho). De repente, o objeto da luta deixa de ser a defesa de um estado de coisas e a realização de uma série de possibilidades para se perfilar como divergência essencial e multiplicação de perspectivas. Trabalho de destotalização da vida, o devir-revolucionário é um processo que coloca em questão (que enfraquece) qualquer dialética historicista, que pretenda sancionar de iure o que dificilmente consegue impor de facto através do uso e abuso da violência. 2 3 4
DELEUZE; PARNET, 1995, “G comme Gauche”. DELEUZE, 2003, p.216. DELEUZE, 2002, p.200-201.
18
Na obra de Deleuze e Guattari, o devir-revolucionário é uma variação do conceito de devir-menor: processo de des-subjetivação, de in-determinação, de in-volução, no qual os termos envolvidos, passando por uma série de transformações, desbordam aquilo que os determina ao nível da representação; inclusive se não superam nenhum estádio anterior em direção a uma figura mais alta. O devir-menor é um curto-circuito da ordem lineal, cronológica e historicista, um movimento de variações imprevisíveis, onde rompemos com as representações que, de um ponto de vista maior, nos definem como sujeitos. É uma ruptura com as funções que nos são assinaladas, enquanto sujeitos dos dispositivos históricos de poder e de saber nos quais nos encontramos comprometidos: o que nossa sociedade espera de nós, o que o mercado de trabalho espera de nós, o que a escola espera de nós, o que nossas famílias esperam de nós, o que nós próprios esperamos de nós, etc. Indeterminando esses horizontes de expectativa, essas estruturas de controle ou de disciplina, o devir-menor nos abre ao (im)possível. Essa ruptura com qualquer estrutura de expectativa é também uma ruptura com qualquer forma de política maior. A política maior, com efeito, confisca nossa potência de variação e de criação, de mudança e de pensamento, em troca de uma representação e um lugar no status quo. O devir-menor, pelo contrário, liberta as singularidades subjacentes aos padrões de representação histórica ou política, desviando-os da linha de progressão ou evolução de uma maioria, e afirmando os elementos singulares subjacentes como diferenciais de individuações, subjetivações e agenciamentos por vir. De outro ponto de vista, é necessário assinalar que, para que essas aberturas de possível sejam algo mais que um fenômeno de vidência, para que as (novas) sensibilidades associadas a esses acontecimentos ou devires possam se afirmar é imprescindível a criação dos agenciamentos necessários. Essa criação é, depois de tudo, a tarefa que dá consistência a esta singular filosofia política. Deleuze escreve: “Quando uma mutação social tem lugar, não é suficiente deduzir as conseqüências ou os efeitos, seguindo linhas de causalidade econômicas e políticas. A sociedade deve ser capaz de formar os agenciamentos coletivos correspondentes à nova subjetividade, de forma a que permitam amadurecer essa mutação”5. 5
DELEUZE, 2003, p.216.
19
Sem as transformações das relações de força desencadeadas pelos devires, a política maior (tradicional) não conhece outro sentido, não possui outra tarefa que a reprodução dos dispositivos de saber e de poder existentes. Mas sem a invenção e promoção de novas figuras de individuação, não há saída política possível. A procura de agenciamentos que possam estender os movimentos disparados pelos acontecimentos é a alternativa construtiva às clivagens históricas e às segregações sociais dos padrões majoritários6. No registro de Guattari, podemos dizer que devir-menor é só uma das caras desta filosofia política menor; sendo a outra a produção de territórios existenciais (agenciamentos), a partir da parte não-representada, que insiste em nós e fora de nós: parte que é revelada no trance de devir-menor e que acaso poderíamos interpretar na linha do que Rancière denomina “a parte dos sem-parte”. Brevemente: devir-menor é sempre uma relação com o não-histórico, com o não-representativo, com o inumano, com o fora; isto é, com tudo aquilo que se encontra para além das determinações empíricas e transcendentais dos sujeitos em questão. Porém, não é um salto no vazio, um devaneio sem sentido, nem um simples grito de protesto, mera negatividade. É uma forma radical de mudança que nos coloca numa zona de indeterminação, abrindo “nossas” singularidades a articulações inesperadas, desbordando o solo representativo da política maior, em virtude de uma mais-valia não histórica: o fugaz lampejar de relações improváveis (impossíveis) entre nós e os outros, entre nós e o trabalho, entre nós e o sexo, entre nós e o pensamento (relações que, certamente, deverão ser consolidadas em agenciamentos apropriados). Quero dizer que devir-menor não é a chave de uma nova forma de dialética negativa. Deleuze e Guattari aspiram a algo mais do que ao desvanecimento de qualquer subjetividade constituída (fim da alienação); mesmo se esse desvanecimento também está em causa. Devir-menor implica necessariamente uma contrapartida material construtiva: a invenção de espaços políticos sui generis, o agenciamento criativo de territórios existenciais. Noutras palavras, se for permitido o uso de uma fórmula polêmica, devir-menor implica uma dialética menor ou menorizada, enquanto vetor 6
Cf. DELEUZE, 1979, p.124.
20
de subversão dos padrões históricos de subjetivação. A política maior (moderna) acredita ser capaz de superar as contradições sociais e econômicas, através do esclarecimento dos sujeitos envolvidos, que se supõem capazes de exceder os dispositivos de saber e de poder instituídos; logo, em condições de conduzir a história além do seu estado factual (em direção à sua realização ideal ou idealizada). A ruptura ou a abertura inerente a qualquer processo de devir-menor, pelo contrário, não implica uma elevação ao próximo estágio do sistema, nem uma evolução dos sujeitos compreendidos pelo mesmo, mas uma rarefação das condições dadas e uma involução dos sujeitos em causa. As afirmações programáticas de Deleuze apontam precisamente nessa direção: o devir-menor implica a descoberta de que todo o mundo tem seu sul e seu terceiro mundo, que todo o mundo está constituído por pontos de não-cultura e de subdesenvolvimento, isto é, que todo o mundo está atravessado por linhas onde as representações cedem, a linguagem escoa, as maiorias se desvanecem. Nessa medida, por certo, o devir-menor enquanto potência política específica pode aparecer como uma espécie de regressão (pelo menos de acordo com os parâmetros da representação majoritária e da política maior). Contudo, como assinalamos, devir-menor é um processo de criação, antes de constituir uma regressão a um estado prévio, quer seja animal, humano ou mítico. Trata-se da criação de novas formas de individuação, a partir da dissolução das figuras maiores da representação e da libertação das singularidades materiais e expressivas recobertas pelas mesmas. O exemplo da literatura menor mostra que o papel revolucionário da escrita de Kafka – com todas suas variações animais, maquínicas e inorgânicas – vai de mãos dadas com o empobrecimento da linguagem e a renúncia à sua inscrição na história da literatura alemã. Kafka, segundo Deleuze e Guattari, abdica de um lugar na linha que, a partir de Goethe, articula a grande literatura, a consolidação da língua e a identidade alemã. Kafka propõe uma saída para a expressão através de pontos de subdesenvolvimento, de inumanidade, de involução, de não-cultura; pontos, nos quais, por exemplo, um animal se conecta com a escrita. Essa é a chave das linhas de fuga propostas por Kafka, em relação aos becos sem saída materiais e expressivos, nos quais ele e o povo (que falta) se encontram presos. Ao mesmo tempo, essa é razão pela qual Kafka fica fora da história (literá21
ria, mas não só), isto é, fora de qualquer linha de progresso ou evolução de uma identidade maior (cultural, mas não só). (Não devemos esquecer, em todo o caso, que o lugar de um judeu tcheco na linha de progresso desse momento histórico específico não era lugar nenhum.) Ainda ao nível de uma política (cultural) menor, vale lembrar que Guattari sugeria um exemplo ilustrativo muito concreto: é o caso das rádios livres nos anos 80, agenciamento onde a evolução tecnológica (em particular a miniaturização dos emissores e a possibilidade de serem montados por aficionados), “coincidiu” com uma aspiração coletiva por novos meios de expressão, num processo micro-político que, involuindo criativamente, isto é, levando a rádio fora dos horizontes maiores de comunicação (a comunicação de maiorias para maiorias), abriu novos campos de possíveis para a expressão, a partilha, a subjetivação, etc. Evidentemente, essa involução (afastamento dos padrões instituídos de qualidade técnica, limitação da potência dos transmissores e do alcance dos sinais, redução numérica do público alvo) seria também o princípio da fugacidade de muitas rádios piratas e o seu calcanhar de Aquiles (as novas leis de radio-difusão apelariam a essas deficiências, nomeadamente, à reduzida potência dos transmissores, para eliminá-las do mapa). (Mas não devemos esquecer, igualmente aqui, que só conseguiram aparecer eventualmente no mapa – nos interstícios de um mapa que não previa espaços de liberdade semelhante – pela instrumentalização criativa dessas fraquezas.) Outro exemplo dessas mutações objetivas e subjetivas, desencadeadas por processos de devir-menor, são as comunidades que aparecem um pouco por todas as partes nas décadas de sessenta e setenta, em consonância com os novos géneros musicais, do rock ao punk – com todas as inovações técnicas que estes géneros pressupunham, dos amplificadores e sintetizadores aos ácidos, assim como com as mudanças nas condições objetivas e subjetivas: baby-boom, estado de bem-estar, etc. Comunidades hippies, por exemplo, que se afastando dos padrões majoritários de nível de vida, levantam seus acampamentos no deserto, ou circulam pelas estradas afora, numa singular forma de nomadismo que torna a vida, de novo, possível. Agenciamentos da vida individual e coletiva que voltam as costas ao sonho americano, e que nessa mesma medida são inaceitáveis para uma maioria que entende a busca pela felicidade (the pursuit of happiness), apenas sob a forma do progresso (inadequação em virtude da qual seriam 22
colocadas em causa as formas desenvolvidas de educação das crianças, as práticas de cuidado de si e dos outros, etc.). Por fim, e já nas fronteiras da macropolítica, numa aberta confrontação com as políticas maiores hegemônicas, a guerrilha surge seguramente como um dos casos com mais implicações desta política menor – caso que Deleuze tematiza no seu ensaio sobre T. E. Lawrence. A guerrilha é, do ponto de vista da ação política, mas também do trabalho social, um exemplo rico (complexo) de devir-menor. Em condições que tornam impossível lutar em (por) territórios maiores, a guerra do espaço do reconhecimento (projetos maiores de liberdade, igualdade ou consenso), a guerrilha se adentra no deserto, na selva, ou nos bairros periféricos, onde articula de facto, em condições inaceitáveis para a maioria, aquilo que reclama de iure como seu direito. É nesse sentido que a luta pelo reconhecimento dos povos originários de México e as aspirações de certos grupos marxistas entraram num devir-menor (revolucionário) em 1994, na selva de Lacandona, a sul de Oaxaca. Estrategicamente (provisoriamente), renunciando à inscrição na história maior de México – onde não tinham lugar, nem representação; onde não existiam sequer signos de uma vontade política confiável de mudar esse estado de coisas –, esses grupos levaram a luta para um campo enrarecido, onde os dispositivos maiores de poder manifestavam uma presença atenuada. Desse modo, foram capazes de intensificar o movimento, conquistando, entre outras coisas, a autodeterminação, a criação de formas singulares de administração e, quiçá mais importante, a emergência de uma nova forma de subjetividade, de um novo tipo de consciência, associada a um “novo” povo: não este ou aquele grupo étnico, não este ou aquele partido de esquerda, mas os Zapatistas, enquanto agenciamento coletivo de enunciação da parte dos sem-parte. Fazendo isso, todas essas pessoas levantaram suas vozes e se apoderaram de suas vidas, muitas vezes por primeira vez, sem a mediação do reconhecimento (é necessário, nesse sentido, considerar as máscaras e o passa-montanhas, que desterritorializam o rosto – já que qualquer um pode estar atrás). Como se pode entender, de um ponto de vista maior, do ponto de vista da classe média mexicana, e inclusive do ponto de vista da classe baixa, que sonha ascender à classe média, esse devir-menor é incompreensível, impensável, uma impossibilidade, uma fantasia irracional: é vista como 23
uma involução. E eu estou de acordo: era incompreensível, era impensável, era inclusive uma impossibilidade; mas não era uma fantasia, porque, enquanto involução criativa, abria uma brecha (linha de fuga), num beco sem saída político, econômico e social (uma série de impossibilidades), e conduzia todas essas pessoas para além da marginalização, da aculturação, da aniquilação. Talvez o pensamento crítico clássico pudesse argumentar que essas minorias étnicas – e correspondentemente as mulheres, os jovens, os desempregados, etc. – não se encontram em condições de renunciar às suas lutas específicas pelo reconhecimento, por uma representação adequada ao nível dos direitos. E esse é um problema importante, no sentido em que coloca a questão sobre a articulação possível entre políticas maiores e menores. Porém, se o devir-menor é proposto como o princípio de uma política alternativa, o é precisamente na medida em que as lutas por direitos ao nível da representação majoritária parecem predestinadas ao fracasso, condenadas a ser sistematicamente ignoradas, quando não traídas em nome de uma representação estabelecida. É uma questão de prioridade. Afirmar a ideia de devir-menor, como princípio de uma praxis política alternativa, não significa abrir mão das lutas pelo reconhecimento de nossos direitos; significa, simplesmente, pospor estrategicamente essa luta, envolvendo-nos num movimento não-representativo de individuação, procurando construir de fato aquilo que reclamamos de direito; ainda que isso só seja possível em espaços menores ou em condições menores, condições que são indesejáveis, inaceitáveis, intoleráveis para as maiorias. Com signos políticos incomensuráveis e em circunstâncias muito diversas, acredito que foi um pathos desse tipo que definiu os poucos grupos minoritários que mostraram alguma vitalidade política nos últimos cinquenta anos; permitindo-lhes articular um território, agenciar um povo, ou, simplesmente disciplinar um corpo capaz de forçar algum tipo de negociação ao nível da política maior. Evidentemente, os devires, como as linhas de fuga, não são necessariamente revolucionários em si; uma linha de migração (subsariana ou cubana) pode terminar na morte (balseiros), ou nas malhas de dispositivos muito mais duros que os que deixa para trás (trabalho escravo). E, evidentemente, os devires não conduzem automaticamente a uma revolução social capaz de dar à luz uma sociedade, uma economia e uma cultura, 24
liberadas dos dispositivos de saber-poder próprios do capitalismo. Por fim, não cabe comparar, segundo uma escala progressista, quais regimes são mais duros ou mais toleráveis (quero dizer, é possível fazê-lo retrospectivamente, mas não na hora de adotar uma linha de ação): “A capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle, se decidem no curso de cada tentativa”7. O que importa é que, de repente, já não nos sentimos os mesmos condenados; e um problema do qual ninguém via a solução, um problema, no qual estávamos todos presos, subitamente deixa de existir, e nos perguntamos de que era que falávamos. De repente, estamos noutro mundo, como dizia Péguy: os mesmos problemas já não se colocam – se colocarão muitos outros, claro. Por outra parte, não dispomos, nem de fato nem de direito, de nenhum meio seguro para libertar e, em seguida, para preservar as linhas de fuga subjacentes aos dispositivos de saber e de poder nos quais nos encontramos comprometidos: “O que nos condena a uma perpétua ‘inquietude’ (...) não sabemos como pode mudar tal grupo, como pode recair no histórico”8. O devir-menor, entendido como linha de fuga ou como máquina de guerra, não estabelece as bases de um programa político revolucionário. Pelo contrário, o devir-menor se desenvolve justamente na direção oposta às lógicas organizativas arborescentes dos movimentos políticos tradicionais. Nesse sentido, Guattari dizia-nos que a procura de uma unificação demasiado grande, por parte das forças de resistência, não contribuiria senão para facilitar o trabalho de semiotização do capital9; e Deleuze insistia que não existe algo como um governo de esquerda (há governos mais ou menos receptivos às reclamações da esquerda, mas a esquerda não tem nenhuma relação com a forma do Estado e as lógicas de governo). Só nos resta, portanto, a noção de um pensamento político que, sem ceder às demandas do poder, mas, ao mesmo tempo, sem aspirar à conquista do poder, abraça – para além do governo e da oposição – a vocação da resistência. Isto é, um pensamento político trágico e, com isso, um sentido a-histórico da luta. O que não significa uma chamada à desmobilização. O devir-menor é algo mais que um conceito da ética, e Deleuze, em nenhum 7 8 9
DELEUZE, 1990, p.239. Idem, 1990, p.234. Cf. GUATTARI; STIVALE, 1985. Cf. QUERRIEN, 2004, p.28.
25
momento, pensa em abandonar o terreno político, fechando-se numa posição inviolável, mas apenas ética, como sugere Philippe Mengue. Passar da política maior (historicista) para uma política menor (não totalizável, irresolúvel, infinita), certamente, traz para o primeiro plano questões complexas ao redor da ética da luta; na medida em que essas questões éticas não são resolvidas pela história (nem sequer por definição); mas implicam um desenvolvimento político, além de serem indiscerníveis da política, enquanto estratégia de luta generalizada. O devir-menor não é da ordem da ética nem da política. É, simultaneamente, uma questão que atravessa a ética e a política, em seus sentidos maiores, problematizando as distinções históricas (como privado e público, individual e coletivo); apaga-as por um momento; dá lugar para novas distribuições do sensível e novos campos de possíveis. Em resumo, a adoção de um ethos militante não pode ser desligado da praxis política associada e dos agenciamentos coletivos, que dão consistência e efetividade a uma autêntica ética da resistência. Logo, a questão seria: de que modo funcionam todas essas formas de resistência desatadas por fenômenos de devir-menor? E qual é seu valor, não absolutamente; mas em cada caso, em relação às condições materiais de impossibilidade nas quais têm lugar? Provavelmente, mais do que provavelmente, nunca nos tornaremos maiores. Mas a menoridade pode ser uma potência política valiosa, se somos capazes de transvalorar nossos ideais em filosofia política. Como vimos, para Deleuze não é questão de devir-maior, de atingir a maturidade, mas de devir-menor, como uma tribo devém nômade no deserto, como um peão devém guerrilheiro na selva. Consequentemente, a dialética muda de signo e o pensamento político encontra um papel singular, cada vez que é confrontado com a miséria, a opressão ou a injustiça. Deleuze escreve: “Artaud dizia: escrever para os analfabetos, falar para os afásicos, pensar para os acéfalos. Mas que significa ‘para’? Não é ‘dirigido a...’, nem sequer ‘em lugar de...’. É ‘ante’. Trata-se de uma questão de devir. O pensador não é acéfalo, afásico ou analfabeto, mas o devém. Devém índio, não acaba de devir, talvez ‘para que’ o índio que é índio devenha ele mesmo algo mais e se liberte da sua agonia”10. 10 DELEUZE; GUATTARI, 1991, p.105.
26
Involução criadora que pode nos abrir para linhas de fuga, em situações de asfixia política; nas quais, antes de progredir ou inscrever-se num projeto maior, é necessário agenciar um novo espaço ou uma nova sensibilidade para a ação e para o pensamento. Na convicção de que é possível, é desejável, é necessário agenciar uma potência singular ou uma força específica, antes de reclamar uma representação adequada. Na convicção, quero dizer, de que é politicamente prioritário agenciar de facto aquilo ao que reclamamos ter direito; mesmo quando não seja senão em espaços reduzidos ou em condições inaceitáveis para o padrão majoritário. Entrar em Damasco antes dos ingleses, como dizia Lawrence. Porque não há política para o fim do mundo. Devir-menor não é uma utopia, mas a possibilidade de alcançar uma linha de transformação em situações históricas que fazem parecer qualquer mudança como impossível. Devir-menor não é uma verdade política universal, mas apenas uma estratégia singular não totalizável. Não responde à necessidade de integrar todas as culturas, todas as formas de subjetividade e todas as línguas num devir comum, mas apenas à necessidade estratégica de salvar uma cultura da alienação, para permitir o florescimento de uma subjetividade, para arrancar do silêncio uma língua. Não é uma solução para tudo nem para todos (e essa é sua fraqueza), mas pode ser o único para alguns (e essa é sua força). Não a arte (técnica) do possível, mas a arte (transformação) do impossível. O colapso de qualquer movimento é muito mais perigoso que o fracasso ou a recaída dos movimentos políticos históricos. Da mesma forma, tanto no pensamento como na ação, é necessário continuar lutando, prolongar o movimento, de modo a relançar a expressão, para além das suas determinações históricas ou institucionais; e impedir que, em nós, e na gente, degenere o labor necessariamente paciente que dá forma à impaciência da liberdade. Ao contrário da pergunta recorrente de Lênin “O que fazer”?, a interrogação crítica levantada por Deleuze e Guattari ainda está viva para nós, e continua dando um sentido efetivo ao pensamento político, independentemente das respostas particulares que as condições materiais, as circunstâncias históricas e as vontades individuais, tornam possíveis. Que devires nos atravessam hoje?
27
Referências DELEUZE, Gilles; BENE, Carmelo. Superpositions. Paris: Éditions de Minuit, 1979. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Éditions de Minuit, 1991. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. L’Abécédaire de Gilles Deleuze, em Metropolis. Paris: Arte (Canal de TV), 1995. DELEUZE, Gilles. Pourparlers 1972-1990. Paris: Éditions de Minuit, 1990. _____ . Deux régimes de fous: Textes et entretiens 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. _____ . L’île déserte et autres textes: Textes et entretiens 1953-1974. Paris: Minuit, 2002. GUATTARI, Félix; STIVALE, Charles. Discussion with Felix Guattari. Detroit: Wayne State University, 1985. Disponível em: webpages.ursinus.edu/rrichter/stivale.html. QUERRIEN, Anne, “Esquizoanálisis, capitalismo y libertad. La larga marcha de los desafiliados”. In GUATTARI. Plan sobre el planeta. Capitalismo mundial integrado y revoluciones moleculares. (Trad. Raúl Sánchez Cedillo). Madrid: Traficantes de Sueños, 2004.
28
Sobre a escrita (o escrever) e o aprender (pela filosofia) ar Kohan
m Walter O
Um título pode ser lido de tantas formas, que é preciso especificar alguns dos seus sentidos para dar boa acolhida às leituras do texto que ele anuncia. O faremos através de algumas questões: qual é a relação entre a escrita (e o escrever) e o aprender? Como essa relação se manifesta no caso específico do aprender pela filosofia11? Acaso é diferente aprender pela filosofia de qualquer outro aprender? Ou, inversamente, o aprender, a secas, e o aprender pela filosofia em particular, o que nos dizem sobre a escrita e o escrever? O presente texto considera essas questões numa situação particular, a do nascimento da filosofia na antiga Grécia, quando surge um embate de ideias num contexto de forte enfrentamento político. Mais particularmente, nos concentraremos na perspectiva que Platão oferece dessa situação no Fedro. O diálogo começa com uma caracterização de Sócrates, o filósofo; continua com uma crítica ao discurso escrito de um escritor de discursos, o logógrafo Lisias, o melhor entre eles, que dá lugar a uma severa condenação da escrita. O argumento esboçado por Platão pontua seu impacto sobre a memória. O efeito implícito é o seu impacto negativo sobre a capacidade de aprender dos jovens atenienses. Numa primeira parte do trabalho destacaremos a forma em que é apresentada indiretamente a filosofia, a partir de uma caracterização do filósofo que Sócrates faz dele mesmo em diálogo com Fedro e a relacionaremos com a que aparece em outros diálogos de Platão; buscamos assim configurar sentidos para um aprender conformado por uma vida filosófica, 11 Embora não entremos na questão, o “aprender pela filosofia”, a diferença do “aprender filosofia” sugere que a filosofia a qual nos referimos no presente texto não é uma conteúdo a ser aprendido mas algo que acompanha a aprendizagem. Seria algo assim como “aprender através da filosofia”, ou “por meio dela”.
29
tal como é entendida por Sócrates; na segunda parte, detalharemos a condenação de Platão à escrita no Fedro, levando em consideração apontes críticos de Jacques Derrida e Gilles Deleuze sobre esse relato, para estabelecer o que está em jogo nessa condenação; finalmente, relacionaremos a condenação de Platão à escrita a um contexto mais amplo; veremos seus efeitos pedagógicos e políticos e como põe Platão numa posição surpreendente em relação ao seu próprio mestre. Afinal, o que está em disputa são formas diferentes de entender o aprender não só em relação aos rivais mas dentro da própria filosofia. O que interessa não são os nomes em jogo, mas um problema que é o nosso: para que escrever e educar em nome da filosofia?
A apresentação do filósofo A vida de Sócrates e também sua morte estão marcadas por uma relação muito próxima com o phármakon, traduzido como remédio, veneno, droga, medicina. No Fédon, depois de conversar com seus amigos, Sócrates bebe o phármakon que, cumprindo a condenação, leva seu corpo à morte, mas – ele quer convencer seus amigos – também sua alma a uma nova vida. Não há razões para se entristecer, insiste: a morte é a forma de uma nova vida, mais livre, pura, profunda. No Fedro, o phármakon é um discurso em papiros que leva Sócrates até os confins da pólis para ouvir, do próprio Fedro, o discurso que Lísias proferiu sobre o amor. Ali afirma que o phármakon é uma das únicas coisas que leva Sócrates a perder o controle de si mesmo; tanto que seguiria Fedro a qualquer lugar para ouvir o que ele tem para lhe dizer. Uma maior proximidade da vida de Sócrates com o phármakon é manifesta em outros diálogos. Em uma passagem do diálogo Mênon, Mênon acusa Sócrates de tê-lo enfeitiçado e drogado (geoteúeis me kaì pharmátteis, 80a). Sócrates o reconhece sem problemas; apenas coloca uma condição: que se leva todos os outros ao phármakon da aporía, é por que ele está mais em aporía do que ninguém. No Cármides, Sócrates é apresentado, por Crítias, como conhecedor da droga (ho tò phármakon epistámenos, 155c), que poderá curar a dor de cabeça de Cármides (“cuidar da alma com algumas poções”, epoidaîs tisin, 157a). 30
De uma forma próxima a como é retratado por outros e por si mesmo, Sócrates retrata Eros no Banquete (203 ss.): daímon, um ser intermédio que passa a vida inteira filosofando (philosophôn dià pantòs toû bíou, 203d), nem mortal (ser humano), nem imortal (deus), feiticeiro terrível, bruxo e sofista, (deinòs góes kaì pharmakeús kaì sophistés, 203d-e). Parece, sem dúvida, um autorretrato: em muitas passagens dos Diálogos, Sócrates recebe essas características, inclusive de Agatão no próprio Banquete (194a). No Teeteto, Sócrates diz ter a mesma arte da sua mãe, a parteira Fenareta, e também afirma que as parteiras, por meio de drogas (pharmakía, 149c) e poções, são capazes de provocar ou aliviar dores de parto, de parir ou abortar partos difíceis. As parteiras são mulheres que pariram – não poderiam ajudar a realizar algo que nunca experimentaram –, mas já não podem mais parir, tornaram-se estéreis. O mesmo vale, diz Sócrates, para a sua arte de dar à luz: ele mesmo já é estéril, com a diferença de que faz os homens, e não as mulheres, dar à luz, examinando as almas, mas não os corpos que engendram conhecimentos (150b). O mais importante da arte de Sócrates é a sua capacidade, potência, para ser, de qualquer forma, uma pedra de toque (basanízein dynatòn eînai pantì trópoi, 150c). Embora a forma em que Platão descreva esse trabalho sobre o pensamento do jovem seja muito próxima àquela do Fedro (Sócrates ponderaria se o jovem dá à luz uma imagem – ou simulacro – e uma mentira, ou algo fecundo e verdadeiro, eídolon kaì pseudos…gónimon te kaì alethés, 150c), ele o faz inspirado pela familiaridade com o phármakon, vinda de sua mãe. A familiaridade com o phármakon, herdada de sua mãe parteira, é a condição que permite a Sócrates desenvolver essa capacidade. Como Derrida assinalara12, não há unicidade do phármakon. Ao contrário, ele é contraditório; seu sentido é impossível de ser fixado em um dos contrários sem a presença do outro. Enquanto substância, é a anti-substância: o veneno é sempre remédio; a droga, sempre medicina; a vida, sempre morte... Platão o confirma apresentando, no mesmo Fedro, o remédio (a dialética) como veneno (escrita, graphé). De modo que a proximidade de Sócrates com o phármakon está também afetada por esse caráter contraditório do phármakon, que lhe outorga tanto a possibilidade quanto a impossibilidade de ser o que é. Essa proximidade parece também contagiar 12 DERRIDA, 1991, p.43 ss.
31
o próprio Sócrates, impossível de ser fixada numa identidade sem contradições. Contudo, o phármakon exige um andar mais atento. Vamos mais devagar. Abrimos o Fedro desde o início. O que encontramos? Sócrates e, com ele, um enigma infinito, o da filosofia; ou melhor, o enigma de qualquer professor de filosofia, de todo educador filosofante: o que fazer em nome de uma vida filosófica? Como, por que e com quais sentidos convidar outros a essa vida? Com que direito? Com quais sentidos? O enigma se mostra também sob a forma de uma ausência: encontramos Sócrates e não encontramos Platão. Platão escreve, mas não se escreve. A ausência não é ocasional: como sabemos, Platão só menciona a si mesmo umas poucas vezes, na Apologia, para contar-se como um dos que contribuiria para pagar uma eventual multa a favor de Sócrates; e no Fédon, para dizer que estava doente e, portanto, ausente, na despedida do mestre. Fora dessas passagens, sequer aparece mencionado nos Diálogos que ele próprio escreveu. Essa ausência marcou decisivamente à filosofia. O mestre, o primeiro a inscrever a filosofia, como exercício da palavra com outros na pólis, não escreve. Um discípulo o escreve, escondendo-se, por escrito, na máscara do mestre. Essa ausência mostra também o insuportável não lugar de todo aprendiz de filosofia. Como se aprende a pensar? Qual relação estabelecer com o mestre? O que aprender dele? O mestre infinito fala sem escrever e o discípulo desobediente escreve essa ausência. O mestre não escreve e é escrito por um discípulo que condena a escrita; e, por escrito, escreve a sua filosofia, a partir da filosofia do mestre. Repetição e diferença indecifráveis. Assim é a filosofia, uma dupla insuportável. Abrimos o Fedro então e, já no início, encontramos esse enigma da filosofia, um pensamento a ser elaborado e reelaborado até o infinito, um diálogo inverossímil, um mistério perene: o do próprio pensamento, em diálogo consigo mesmo, ao mesmo tempo impossível de elucidar, mas também de iludir. Encontramos uma virtualidade que exige ser sempre desdobrada, atualizada, estendida nas mais diversas dimensões, inesgotável, irresolúvel, louca. Lendo o Fedro, nos dispomos a iniciar mais uma dobra desse movimento, da infinita abertura do pensamento inaugurado por Sócrates e Platão, essa dupla inseparável. Repetimos o gesto de tantos. Não sabemos a 32
intensidade de nossa marca, antes de escrevê-la. No momento atual desse movimento, o phármakon da escrita está dentro da própria filosofia. Mais uma vez, é preciso atenuar a velocidade. Voltamos a olhar para o Fedro. O que encontramos? Sócrates encontra Fedro, que está vindo da casa de Lísias, o mais hábil em escrever discursos entre os atenienses. Fedro leva consigo um phármakon, discursos en papiro sob o manto e, com ele, como um ímã, arrasta Sócrates até os confins da pólis. Fedro e Sócrates andam, caminham, estão em pé, em movimento. Já o afirmamos: a filosofia é uma conversa infinita. Buscam, conversando, um lugar mais propício para sentir o discurso de Lísias. Sócrates está perdido. Descoberto o phármakon, faria qualquer coisa para ouvi-lo. O que encontramos no início, então, é o desejo do filósofo de escutar de alguém o que um terceiro, afamado conhecedor, manifesta saber sobre certo saber. Lísias tem discursado, diante de Fedro e outros, acerca do amor (erotikòs), de uma forma que o próprio Fedro não sabe muito bem como explicar. O tema não é pouco significativo: as coisas do amor são uma das poucas, se não a única coisa de que Sócrates reconhece saber nos Diálogos (“nada diferente afirmo saber que as coisas do amor” – oudén phemi állo epístàsthai è tà erotiká, Banquete 177d). Também diz de quem aprendeu aquilo que sabe do amor, nesse mesmo Diálogo: de uma mulher, sacerdotisa, estrangeira, Diotima de Mantinéia (ibid., 201d). O filósofo só sabe o que sabe de uma dupla forma de exterioridade; e sabe um saber de relação, de afeto, de paixão. De modo que o mais valioso dos escritores proferiu um discurso sobre o único saber que o filósofo admite saber, o saber que lhe é mais próprio, um saber que o leva à loucura. Está aí a força do phármakon. Próximo a ele, Sócrates perde-se a si mesmo: não pode não querer ouvi-lo. Está tão fora de si, que seria capaz de fazer qualquer coisa, se Fedro não aceitasse contar-lhe o que ouviu de Lísias. Assim, começa então a filósofo: buscando, com outros, um lugar, para ouvir o que outros dizem saber sobre o saber que lhe é mais próprio, sobre esse saber sem o qual ninguém, que vive segundo a filosofia, poderia viver: o amor, um saber de relação, de sensação, de paixão, de encontro com outros corpos e outras almas. Começa assim a busca de um filósofo: com um desejo, um saber e um caminho a ser percorrido com outro, sobre o que lhe é mais vital e, ao mesmo tempo, que coloca a sua vida em questão. 33
O filósofo não conversa com qualquer um. O interlocutor não é um desconhecido. Ao contrário, Sócrates manifesta conhecer Fedro de uma forma tão íntima, que não conhecê-lo significaria também esquecer-se de si mesmo (Fedro 228a). Não é um detalhe para quem, como Sócrates, se mostra sempre obsessivamente preocupado em conhecer-se a si mesmo. A relação entre conhecimento e esquecimento de si também aparece, fortemente, num momento crucial, no início da Apologia de Sócrates (17a); quando, estando sua vida em jogo, e depois de ter ouvido a apresentação das acusações contra ele, Sócrates manifesta que elas foram tão convincentes que, mesmo afastados da verdade, quase conseguiram que ele se esquecera de si mesmo. O “quase” marca o risco de uma morte, talvez mais vital para o filósofo que aquela que está sendo processada. Nos dois casos, o risco de se esquecer de si próprio aparece perante o poder da palavra proferida pelo outro da filosofia, o retórico. Contudo, no início do Fedro, se conhecer a si próprio supõe conhecer o outro amigo da filosofia com quem se conversa e ambos supõem conhecimentos, nada mais são do que a condição para ouvir o discurso perigoso do outro da filosofia. Não é apenas Sócrates que conhece Fedro. Também Fedro conhece Sócrates, tanto que ele vai dizer palavras muito semelhantes (236c) a Sócrates logo depois de ler o discurso de Lísias; quando aquele ameaça não querer dizer o que pensa ao respeito. A filosofia é uma conversa entre amigos. Ainda estamos no início do Fedro e não estão dadas todas as condições para começar a filosofar. Não são poucas. É preciso considerar muitas outras coisas: a temperatura externa e a do corpo, o ar que se respira, a tranquilidade do ambiente que permita não ser interrompido, um som de ambiente agradável, música para os ouvidos. E também, e sobretudo, é necessário tempo. Há que se dispor de tempo para filosofar. Tempo livre, daquele que não pode ser medido pelos cronômetros ou pelos relógios, tempo de inícios sem fim, sem pressas, sem condições, a não ser aquelas emanadas da própria conversa. Tempo para conversar, sobre o que não é urgente e produtivo, tempo compartilhado, comum, tempo de amizade, tempo de verdade. Fedro e Sócrates dispõem desse tempo e encontram também um lugar apropriado para conversar. Uma vez estabelecidas as condições da conversa, o filosofar começa com uma relação a si. Antes de ocupar-se do saber do outro, é preciso explicitar um saber sobre si. Sócrates afirma outra vez seu lugar paradoxal. 34
Manifesta-se incapaz de se conhecer a si próprio, algumas linhas depois, apenas, de ter afirmado que não conhecer Fedro significaria se esquecer de si próprio. Porém, como é possível que se esqueça do que não se conhece? Só resulta possível para alguém tão próximo do phármakon como Sócrates. Ele parece enfrentar exigências opostas: por um lado, se reconhecesse se conhecer a si mesmo, então já não poderia dedicar sua vida a se investigar a si próprio, como afirma no Fedro e em tantos outros lugares, pois, para que iria investigar o que já conhece? Por outro, se não se conhece, também não poderia se dedicar a essa vida, pois é esse conhecimento que justifica e outorga sentido a uma vida de busca de si. De maneira que Sócrates parece embaraçado: conhecer-se e desconhecer-se são ambos impossíveis e necessários. Como o phármakon, como a filosofia na pólis, como a única vida que faz sentido de ser vivida por Sócrates, a que o leva à morte... Talvez por isso Fedro descreve Sócrates como o mais extraordinário, sem lugar e estranho (atopótatós, 230c) de todos os atenienses; alguém que, embora nunca extrapole os limites da cidade parece mais um estrangeiro sendo guiado (xenagouménoi, 230c), do que alguém natural de Atenas. Sócrates complementa esta apresentação: reivindica-se como alguém amante de aprender, mais interessado em aprender dos homens da cidade do que das árvores e dos campos.
A condenação à escrita Depois de serem estabelecidas as condições da escuta e o saber de si do filósofo, Fedro lê apaixonadamente o discurso de Lísias. Sócrates se volta contra ele em diversos sentidos: na forma, afirmando que ele é repetitivo, que diz as mesmas coisas de uma e outra maneira, como uma criança (235a); no conteúdo, citando poetas (Safo e Anacreonte), como possíveis fontes de inspiração para falar melhor sobre o mesmo assunto. Contudo, antes de criticar o discurso de Lísias, volta a falar sobre si: amante como é das palavras (philológoi, 236e), fala primeiro com a cabeça coberta para evitar a vergonha no olhar de Fedro. A imagem é muito forte: falar sem olhar o amigo, com um discurso que não resiste às exigências de um cara-a-cara. Em qualquer caso, Sócrates muda a perspectiva de análise, já que, para saber o que Lísias afirma saber, qual seja, se é preciso amar mais a quem 35
não corresponde do que a quem ama, trata-se de deliberar primeiramente sobre a essência do amor, sobre o que é o amor. Segue-se um relato, do qual, depois, o próprio Sócrates se desculpa e emenda a cara descoberta com outro relato muito mais poético, que acaba com um exultante elogio a Éros. Assim, a filosofia se mostra como uma saber de e sobre o amor. Em seguida, Lísias é criticado; mas a questão não é apenas Lísias, senão todos os autores de discursos escritos, os logógrafos. Sócrates o diz claramente: não é vergonhoso escrever, mas sim escrever mal e sem beleza (258d). É preciso então examinar o que significa escrever bem. Antes, Sócrates contará o mito das cigarras, discutirá a relação entre retórica e verdade e analisará em detalhe o discurso de Lísias, através de outros relatos. Também falará outra vez de si: apresenta-se como amante das divisões e das reuniões, que lhe permitem falar e pensar. Chama-se indiretamente de “dialético, capaz de olhar para o uno e o múltiplo” (266b). No final do diálogo, quando já considerou suficientemente a arte e a falta de arte nos discursos, Sócrates propõe a Fedro considerar se é conveniente ou não conveniente escrever (274b). Narra então um relato que diz ter ouvido dos antigos e deixa a eles saber sobre sua verdade. O relato conta que uma divindade egípcia, Theuth, inventor de coisas, tais como os números, a aritmética, a geometria e a astronomia, o jogo do gamão e os dados, apresentou ao Rei Thamuz os caracteres da escrita (grámmata, 274d), enquanto um aprendizado que tornaria os egípcios mais sábios e com mais memória; e, por isso, deveria ser repassado a todos eles. Ele afirma ter descoberto uma droga (phármakon, 274e) para a memória e o saber. Contudo, o rei questiona a descoberta da divindade. Ele afirma que a escrita teria o efeito contrário, provocando o esquecimento nas almas dos que a aprendem; pois, por confiarem em caracteres externos, descuidariam sua memória. Segundo Thamuz, Theuth teria descoberto uma droga (phármakon, 275a) para a rememoração (hupomnéseos) e não para a memória (mnéme). O que a escrita oferece aos que a aprendem é aparência de saber e não o verdadeiro saber. Eis a tremenda invenção platônica, seu mito primordial, a divisão do ser em ser em si e ser derivado, em modelo e simulacro, original e cópia. Uma série de duplicações acompanha o movimento inicial no saber, na moral, na política… Em todas elas, a inferioridade do segundo termo diante do primeiro é categórica, fundadora, radical. As consequências são 36
impressionantes: há que conhecer, proteger, admirar as primeiras tanto quanto desapreciar, controlar e combater as segundas. Contudo, o filósofo, querendo ou não, deixa uma deixa para a escrita, por escrito. Com efeito, Platão apresenta uma brecha, mesmo quando sinaliza sua aparente negatividade da escrita. Por um lado, faz notar várias fraquezas, além daquela já apontada. Dentre elas, sua dependência: quando é ofendida, a escrita precisa da ajuda de seu pai, pois ela é incapaz de defender-se a si mesma e por si mesma (275e). Alem disso, ela se oferece indiscriminadamente aos seus leitores sem diferenciar entre os que são capazes de entendê-la e os que não o são. Finalmente, a escrita parece viva, mas, quando é interrogada, permanece em silêncio (275d), dizendo sempre uma e a mesma coisa. Assim, curiosamente, o questionado phármakon não é pura imperfeição. Platão afirma que ele é sempre um e o mesmo; uma das notas mais destacadas das realidades supremas, em si e por si mesma, uma marca de superioridade e perfeição, pois não mudam a diferença das coisas que se geram e se corrompem. Deixa entrever, dessa forma, sua natureza ambivalente, incontrolável, o caráter titânico e provavelmente infrutuoso que terá a luta por extirpá-lo do ser. Mais ainda, o problema é de família e a dialética não terá um trabalho fácil com sua meia irmã ilegítima (276a). Efetivamente, a escrita não é apenas exterioridade. Pelo menos como metáfora, sua irmã legítima recebe dela seu nome, ela é também chamada de escrita. Vingança da escrita, contragolpe do phármakon. Platão parece ter caído em sua própria loucura: a dialética é chamada de escrita da alma: o modelo, original, toma o seu nome emprestado da cópia, do simulacro (eídolon, 276a)! Não é isso, pelo menos, não só: a cópia está encarnada no original, em seu nome. Como assinala Deleuze13, a duplicação está seguida de um julgamento moral: as imagens dividem-se em bem fundadas e bastardas, e os pretendentes, em legítimos e ilegítimos. Há que se diferenciar moralmente o mundo surgido da diferença. Em qualquer caso, com esse gesto, a batalha parece perdida antes de começar e, justamente, perdida nas mãos do inferior; pois, desse modo, confirma-se a antecedência da diferença em relação à unidade. O ser é diferença, mesmo que isso pese a Platão. 13 DELEUZE, 2000, p.262-4.
37
Platão sonharia, afirma Derrida, com uma memória sem suporte, sem signo, sem suplemento (ibid., p.56), absolutamente dona de suas recordações e da sua atividade de recordar. Na perspectiva platônica, a escrita, o suplemento, o apoio à memória, introduz uma fissura no ser; a de um ser híbrido, uma cópia, que não pode ser pensado segundo a lógica binária do ser ou não-ser, pois ela é e não é ao mesmo tempo. A escrita introduz uma rachadura na inteligibilidade do que é, um desdobramento desnecessário e perigoso da voz, um sintoma externo e debilitado da vitalidade da alma, uma droga (phármakon) sedutora, que debilita a fortaleza e a integridade da memória e os significados que nela habitam. O lógos, como ser vivo, sofre a invasão externa de um parasita, de um meio-irmão órfão, de uma sobra, de um acréscimo que não faz outra coisa senão corroê-lo. É preciso expulsar esse suplemento indesejável, devolvê-lo ao seu lugar, extirpar o parasita, o filho ilegítimo, para limpar a família. A dialética é o caminho platônico da cura. Discurso vivo e animado, que se escreve na alma de quem aprende, é capaz de defender-se a si mesma e sabe falar ou calar quando necessário. Frente à dialética, a escrita é tal como uma criança órfã: sofre os efeitos do abandono quando seu pai-escritor não está próximo. Por que Platão critica tão ferozmente a escrita por escrito? Derrida tem a sua hipótese: a escrita deve servir para expurgar-se a si mesma; o lógos deve ser curado do parasita da escrita... por escrito. Esta é a ousadia e o risco de Platão; ousadia filosófica, pedagógica e epistemológica, pois não há ciência, epistéme do phármakon; sua essência é não ter uma essência estável, mas é “o movimento, o lugar e o jogo (a produção) da diferença”.14 O phármakon é, por um lado, uma reserva inescrutável – “fundo sem fundo” – da diferença, que “produz” todas as diferenças, o diferir da diferença. Assim, Platão bebe do seu próprio veneno: as oposições do platonismo são derivadas de uma escrita – phármakon anterior, primeira (“arqui-escrita”). A escrita é o “jogo do outro no ser”15. Platão escreve, porque o ser não pode ser uno, porque o ser não é presença plena e absoluta. Escreve, porque o ser só pode ser desdobrando-se, repetindo-se no que não é, no simulacro, inscrevendo-se na estrutura da repetição suplementar de uma unidade impossível. Só há ser – e verdade – porque há diferença e repetição. 14 DERRIDA, 1991, p.74. 15 Idem, 1991, p.118.
38
A escrita e o aprender (pela filosofia) A condenação platônica à escrita é também uma condenação a um certo tipo de escrita e a algumas formas de exercer a escrita. Eis um dos problemas principais de Platão: existem rivais que se apresentam como mestres, educando os jovens numa certa virtude cidadã, afirmando saber como ensinar aos participantes da pólis. São os que pressupõem que aprender a virtude é possível e a ensinam. Usam a escrita para os seus próprios fins. Colocam a escrita num dispositivo de transmissão de modos de vida individuais e coletivos, que expressam formas de pensar o bem comum, muito distantes da forma que Platão quer para a pólís. Os efeitos da escrita, tal como esta é praticada pelos rivais políticos, parecem terríveis ao educador Platão: ela debilitaria a memória e a memória é nada menos do que a fonte do aprender. Assim a apresenta no Mênon, onde conta uma história segundo a qual aprender é lembrar. Lembremos, antes, a primeira pergunta, essencial, do diálogo: é possível ensinar a areté (virtude; excelência)? Muitos afirmam que sim e se apresentam como capazes de fazê-lo. Contudo, Platão coloca Sócrates para pôr em questão essa pretensão. Como sempre, Sócrates coloca condições para responder essa pergunta: há que se saber o que é a areté. Mênon, esperto em discursos sobre a areté, pensa que o sabe, mas, após algumas perguntas de Sócrates, não sabe mais o que dizer. Mênon sente-se completamente encantado, inebriado e enfeitiçado por Sócrates, “verdadeiramente entorpecido, na alma e na boca” (Mênon, 80a-b). Está como quem sofre uma descarga elétrica e fica impossibilitado de qualquer movimento. Considera acertado que Sócrates não tenha viajado para fora de Atenas, porque, se tivesse viajado, sendo estrangeiro, o teriam julgado como feiticeiro por tais coisas em outras póleis. Sócrates aceita a posição de Mênon com uma condição: “Pois não é por estar eu mesmo no bom caminho (euporôn) que deixo os outros sem saída (aporêin), senão por estar eu mesmo mais que ninguém sem saída (aporôn), assim também deixo os outros sem saída (aporêin)” (Mênon, 80cd). As duas sentenças estão unidas por uma partícula adversativa (senão). Em ambas as frases, repete-se a parte final: produzir a aporia nos outros; o que muda é a causa colocada para esse efeito; a primeira nega uma possível causa; a segunda afirma outra possível causa. Sócrates nega que ele provoque a aporia nos outros, por estar ele em uma situação confortável e tranquila 39
de saber qual caminho tomar (euporôn). A contraposição ocorre entre duas eventuais posições de Sócrates, dadas respectivamente pelos prefixos eu (bem, bom) e a (ausência, carência, negatividade), perante a mesma forma póros, que indica movimento, caminho, deslocamento. Sócrates afirma que aturde os outros só porque ele está mais aturdido que ninguém, porque o seu saber nada vale, assim como nada valem os saberes dos outros. Lembremos a pergunta inicial: é possível ensinar a virtude ou excelência? Eis o que o educador Sócrates pensa: ensinar a virtude ou excelência é ensinar que não se sabe o que ela é; não há virtude ou excelência a ensinar, a não ser uma relação inquieta em relação ao saber; uma perturbação com o que se sabe, uma mania erótica por buscar saber, sem nunca de fato saber nada a não ser esse não saber. Só a partir de estar problematizado, um educador pode ajudar os outros a se problematizar. Só um virtuoso pode provocar a virtude. Virtuoso é aquele que não sabe e não se ilude quanto a seu não saber, alguém que não sabe o bom caminho; mas que está sempre à busca do bom caminho, sem jamais possuí-lo. Assim, na perspectiva socrática, só é possível aprender a virtude pelo filosofar. Só alguém muito aturdido pelo perguntar filosofante, o que examine e coloque em questão por que vivemos a vida que vivemos, pode provocar, nos outros, esse aturdimento. Por isso Sócrates nada escreveu, por que não tinha para ensinar nada fixo que pudesse ser escrito. Como escrever uma paixão, uma relação ao saber, um estar sempre incerto em relação ao caminho a andar, uma forma de se examinar a se mesmo, como modo de viver a própria vida? Porém, pôr em questão o que se pensa pode imobilizar o pensamento. Isso acontece com o paradoxo do aprender, compartilhado por Sócrates e seus rivais. Aprender parece impossível, pois não se poderia aprender, se já se sabe, mas, também, se não se sabe. Ninguém aprenderia o que já sabe, pois se já o sabe, não há nada a aprender; mas também não poderia aprender o que não sabe, pois, como reconhecê-lo, se não o sabe? Mênon quer saber como sair da aporia. Sócrates o ajuda, mas não o ajuda como um leitor da Apologia esperaria, com seu saber de não saber. Nesse caso, Platão coloca na boca de Sócrates uma teoria tomada de Píndaro e de outros poetas e homens religiosos, segundo a qual a alma é imortal, e investigar e aprender são totalmente uma reminiscência (Mênon, 81d). Mênon pede a Sócrates que lhe ensine como é essa teoria. Platão se diverte e faz Sócrates responder: “Agora, tu me perguntas se eu te posso 40
ensinar, a mim que afirmo que o ensino não é senão reminiscência” (82a). Sócrates pede a Mênon que traga um servente (um escravo não adquirido, mas criado na própria casa desde o seu nascimento), que fale grego, para mostrar como de fato ele nada ensina. No transcorrer da conversa, o escravo passa de uma condição de estar certo de um falso saber a uma perplexidade, que o leva a querer aprender aquilo que reconheceu como problema; em resultado, aprende um conteúdo novo, matemático, um saber diferente que, na hipótese de Sócrates, ele já sabia, mas não recordava. A conclusão de Sócrates é: “Assim, pois, sem que ninguém lhe tenha ensinado, mas porque lhe perguntaram o que ele sabe, ele mesmo, por si mesmo, recobrou o saber” (Mênon, 85d). Poderíamos questionar se a conclusão é legítima ou não; se de fato ninguém lhe ensinou e se o servidor aprende o que ele sabe ou aquilo que Sócrates sabe. Também poderíamos questionar que outras coisas além do saber matemático em questão ele aprende no diálogo com Sócrates. Porém, deixamos isso para outra oportunidade e ficamos por enquanto com a história platônica. O que nos interessa é mostrar que, para Platão, aprender significa lembrar; e ensinar significa fazer lembrar. Em outras palavras, Platão faz Sócrates resolver a aporia, do lado do saber, com a ajuda da memória: só se pode aprender o que já se sabe, porque esse saber está esquecido. Só se pode ensinar o saber que o outro já sabe, fazendo-o lembrar do que já sabe. Eis a saída platônica do paradoxo: aprender é reencontrar-se através de um mestre com um saber que, esquecido, já se possuía. Assim, no estado deteriorado das coisas da pólis, para Platão, aprender se torna não apenas possível, mas necessário, imprescindível, para encontrar o saber perdido que ajuda o que é a se tornar o que deve ser. No exercício com Mênon, Sócrates não escreve, mas desenha uma figura no chão, da qual pede ao servidor uma proporção. É interessante que ele, que não escreve e critica à escrita, precise de uma imagem sensível, inscrita na terra, para ajudar o outro a lembrar seu saber. Talvez esteja sinalizando um limite, uma condição, um risco. Em qualquer caso, se é verdade que a escrita debilita a memória, então, com ela, o aprender está em risco. Sem memória não há aprendizagem. Sem aprendizagem não há possibilidade de sair do que se é e encontrar o que se deve ser, o que verdadeiramente se é, de transformar o modo em que se vive para viver uma vida justa, bela, boa. A escrita compromete a memória e, com ela, a 41
aprendizagem necessária para as aspirações platônicas de formar os jovens para uma pólis mais justa, bela e verdadeira. A desqualificação da escrita no Fedro ganha novas dimensões. O embate é vital. A crítica à escrita pressupõe um campo de batalha pedagógico e político na formação dos jovens atenienses. Curiosamente, o adversário de Platão é também o seu mestre; o qual, vimos, ocupa uma posição que contém não só a diferença, mas também a tensão, o paradoxo, a contradição. Percebemos isso na primeira seção do trabalho, na apresentação que Sócrates faz de si mesmo em diversos diálogos. Assim, o embate de Platão contra a escrita não é apenas um embate contra aqueles que afirmam saber o que é virtude e como ensiná-la; mas, contra o próprio mestre que afirma não saber o que é a virtude e não poder ensiná-la. Derrida16sugere algo interessante nesse sentido: é verdade que Platão, condenando a escrita, estaria condenando os que acusaram Sócrates por escrito. Porém, estaria também condenando a própria posição de Sócrates, um modo de exercer uma vida filosófica em relação com a vida política, uma relação passiva e estéril na pólis, como a que ele mesmo relata na citado passagem do Teeteto e que outros personagens também criticam nos Diálogos, como Calicles no Górgias (484c) e Adimanto na República (VI 487c-d). A condenação à escrita teria o duplo sentido de condenar os acusadores de seu mestre, mas também a posição dele como filósofo, como alguém que educou em nome da filosofia, sem ensinar; mas provocando aprendizagens de consequências políticas desaprovadas pelo discípulo que o escreveu. Afinal, essa disputa seria sobre o valor político de um aprender pela filosofia, de uma vida filosófica. Há duas filosofias enfrentadas: a filosofia como uma forma de aprender a colocar em questão os saberes; contra outra filosofia, como forma de saber afirmativo imprescindível para viver uma vida bela, justa e verdadeira. A filosofia como questionamento da política instituída frente à filosofia como afirmação do saber normativo para a pólis. A posição estrangeira e atópica do filósofo descrita no início do Fedro seria impotente, na visão platônica, para encontrar a positividade política que transforme o estado de coisas. Platão parece não estar disposto a aceitar essa posição e por isso a escrita (?!) dos Diálogos, a fundação da 16 Idem, 1991, p.95 ss.
42
Academia, as viagens à Sicilia. Considera preciso afirmar uma política para a filosofia muito diferente daquela aprendida com o mestre. Contudo, a batalha também ali está perdida antes de ser começada. A filosofia, como phármakon, resiste a toda captura. Não há forma de capturar o pensamento na unidade. A pretensão política de afirmar um pensamento unitário fracassa uma e outra vez. A diferença não é apenas primeira no ser, mas também na política e no próprio pensamento. Existe um Sócrates escondido em cada educador platônico. Como um estrangeiro, sorri perante as pretensões formativas da instituição pedagógica da filosofia. Oferece o phármakon da pergunta, do phílos, da diferença. Não sabe o que significam aprender, ensinar, escrever. Não ensina, mas provoca aprenderes. Não escreve, mas gera escritas. Não sabe outra coisa, a não ser o valor do não-saber, da diferença, para uma vida que mereça a pena ser vivida. Para isso educa. Para que diferença possa ser aprendida. E escrita.
Referências DELEUZE, Gilles. “Platon et le simulacre”. In: _____. Logic du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1995. [DELEUZE, Gilles. “Platão e o simulacro“. In_____. Lógica do sentido. (Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes). São Paulo: Perspectiva, 2000.] DERRIDA, Jacques. “La pharmacie de Platon”. In: PLATON, Phèdre (Trad. L. Brisson). Paris: GF- Flammarion, 1968/2000, p.255-403. [DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. (Trad. Rogério Costa). São Paulo: Iluminuras, 1991]. _____. De l’hospitalité. Anne Dufourmantelle invite Jacques Derrida à répondre. Paris, Calmann-Lévy, 1997. [DERRIDA, Jacques. Da Hospitalidade: Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida. (Trad. Antonio Romane). São Paulo: Escuta, 2003.] KOHAN, Walter Omar. Sócrates & a educação. O enigma da filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. LIDDELL, Henry, SCOTT, Robert. A Greek English Lexicon. Oxford: Clarendon Press, 1966. PLATÃO, Diálogos. (Trad. Carlos Alberto Nunes). Belém: Editora da UFPA, 2003.
43
Estudos em torno da busca de um começo para pensar: do poderoso Eu ao “impoder” essencial do pensamento ria Ester Ma
euser
Dreher H
Assim como o problema do começo em Filosofia foi considerado sempre muito delicado, o mesmo acontece com o problema do começo do seu ensino. Como pôr o filosofar e, portanto, o pensar, em curso? Como “introduzir” os estudantes na Filosofia? Ou, como apresentar a Filosofia aos estudantes de tal modo que o pensamento de cada um entre em atividade filosófica? Ou, o que é preciso ser levado em conta para que as condições do pensar no pensamento sejam criadas? Dito de outro modo, ainda: quais são as condições de efetividade para que a experiência do pensar no pensamento aconteça? Tais questões serão tratadas, neste estudo, a partir do eixo do problema “o que significa pensar?”, orientador do plano filosófico deleuziano. Antes, porém, serão apresentadas, brevemente, algumas tentativas de inaugurar um começo absoluto em Filosofia e, consequentemente, ao pensamento, a fim de pôr em relevo elementos imprescindíveis para o tratamento do problema que orienta essa investigação. Tal procedimento se ampara na própria perspectiva de teoria apresentada por Deleuze na conversa com Foucault, Os intelectuais e o poder: “uma teoria é sempre muito local, relativa a um pequeno domínio, e pode ter sua aplicação em outro domínio, mais ou menos afastado”, ou, o que quer dizer o mesmo: “uma teoria é exatamente como uma caixa de ferramentas (...) É preciso que sirva, é preciso que funcione”17. Ainda que algumas das perspectivas teóricas a serem apresentadas estejam distantes do plano de composição da Filosofia de Deleuze, há nelas elementos que interessam para a composição e “funcionamento” deste estudo.
17 DELEUZE, 2006, p.265, 267.
45
Em busca de um começo absoluto: as tentativas de Descartes, Kant, Fichte, Hegel e Feuerbach Mesmo depois do esforço de Descartes18 em se desfazer de todas as opiniões e estabelecer algo de firme e constante capaz de fundar a ciência (a Filosofia que ele procurava), sobre princípios certos e indubitáveis – ao ponto de serem inabaláveis até mesmo diante das mais extravagantes suposições dos céticos – e, a partir do exame cuidadoso de todas as coisas que o levaram a conjurar qualquer pressuposto explícito, a fim de alcançar a única proposição constante, sólida, exata e necessariamente verdadeira, expressa na fórmula do Cogito “penso, logo sou”, a busca pelo princípio não cessou. Tal busca continuou fazendo parte do empreendimento filosófico posterior ao acontecimento cartesiano. Acontecimento que, em seu princípio primeiro, recusou qualquer pressuposto objetivo, mas, guardou em si, ainda que implicitamente, pressupostos de outro tipo, os subjetivos. Subjetivos porque supõe que – antes mesmo de a Filosofia começar – “todo mundo sabe”, sem conceito e de um modo pré-filosófico, o que significam pensar e ser, ser uma coisa que pensa. Princípio primeiro apoiado, portanto, no senso comum, o qual Deleuze19 nomeou princípio da cogitatio natura universalis, porque: → Descartes concebeu o pensamento como uma capacidade atuante e inerente a todo homem: o pensamento é, nesta teoria, o exercício natural de uma faculdade; → é um princípio baseado no senso comum uma vez que o eu puro do eu penso que fundaria a Filosofia, por conter em si seu próprio fundamento, remeteu todos os pressupostos implícitos nele contidos ao eu empírico, ao “eu” que cada um de nós é e sabe o que cada pressuposto significa. Portanto: “é porque todo mundo pensa naturalmente que se presume que todo mundo saiba implicitamente o quer dizer pensar”20. À primeira vista, afirma Deleuze21, a fórmula cartesiana parece impecável, irrefutável até, o “eu penso” determina o “eu sou” como coisa que 18 19 20 21
DESCARTES, 1979. DELEUZE, 1988, p.218. Ibidem. DELEUZE, 1978, p.34. Ao apresentar as aproximações e distanciamentos entre as filosofias de Descartes e Kant, Deleuze afirmará que, na medida em que, para Descartes, não havia mais problemas que exigiam novas criações conceituais, era hora de um novo filósofo aparecer, pois, “quando um filósofo não tem problemas está por chegar o filósofo seguinte” (Idem, p.43).
46
pensa; no entanto, Kant22 aparece e “corrige” Descartes, adiciona outro componente no conceito de “eu penso”: a forma do tempo, enquanto forma de interioridade (com três componentes: sucessão, simultaneidade e permanência), pois é somente no tempo que minha existência indeterminada se torna determinável23. Assim, o que Kant faz é substituir o eu substancial cartesiano pelo eu profundamente rachado pela linha do tempo, isto é, por um eu que só se determina empiricamente24. Para alcançar tal operação, Kant agiu como um grande explorador ao “descobrir” o domínio transcendental, um subterrâneo deste mundo, que condicionaria toda a experiência possível, uma vez que determinaria o que é de direito (quid juris) e o que é de fato (quid facti), que efetivaria a repartição entre o puro ou transcendental, e o empírico. Nessa repartição, determinou o a priori e o a posteriori: separando, assim, o que independe da experiência e que é, por isso, necessário e universal, posto que aquilo que aparece, o a posteriori, é dado na experiência, é fenômeno particular e contingente. Tal separação, entretanto não é absoluta, uma vez que o a priori é condição do a posteriori, ainda que aquele seja independente da experiência ele fundamenta os objetos desta, ou seja, o universal e necessário – que, para Kant, são as categorias que funcionam como predicados universais condicionadores de toda experiência possível25 – se dizem das condições dos objetos da experiência. Nessa 22 KANT, 1985, B152 a B158. 23 Nas palavras de Kant (1985, B157 e B158): “Ora, como para o conhecimento de nós próprios, além do ato do pensamento que leva à unidade da apercepção o diverso de toda intuição possível, se requer uma espécie determinada de intuição, pela qual é dado esse diverso, a minha própria existência não é, sem dúvida um fenômeno (e muito menos simples aparência), mas a determinação da minha existência só pode fazer-se, de acordo com a forma do sentido interno [o tempo], pela maneira peculiar em que é dado, na intuição interna, o diverso que eu ligo; sendo assim, não tenho conhecimento de mim tal como sou, mas apenas tal como apareço a mim mesmo”. 24 Cf. DELEUZE, 1988, p.226. 25 Há, disponíveis na internet, algumas aulas de Deleuze (1978) acerca da filosofia de Kant, especificamente sobre “síntese e tempo”. Na primeira delas, Deleuze faz a distinção entre o a priori e o a posteriori, e apresenta, detalhadamente a tábua das categorias. Na segunda aula, o conceito de tempo inaugurado por Kant é tematizado a partir de vários ângulos, com exemplos trazidos da literatura e da poesia, os mesmos que serão utilizados no texto Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a Filosofia Kantiana (In. DELEUZE, 1997). Na terceira aula Deleuze explicita as relações entre Descartes e Kant, no empreendimento comum de determinar o começo em Filosofia e retorna à introdução do tempo no “eu penso” operada por Kant. Interessante notar ainda ao longo dessas aulas, além do conteúdo constituinte da Filosofia de Kant apresentado pelo professor Deleuze, os procedimentos utilizados por ele para mostrar como funciona a “espécie de máquina de pensar” que é Kant, encorajando os estudantes a resistirem a “atmosfera excessiva” dessa máquina, dando importância não exclusivamente para a compreensão dos seus conceitos, mas também para “tomar o ritmo desse
47
exploração, e no esforço de repartição entre as condições e os fenômenos, Kant cria a noção de “sujeito transcendental”, assegurando uma promoção do sujeito e, ao mesmo tempo, uma duplicação dele: → promoção porque em Kant o sujeito constitui as próprias condições de possibilidade da aparição, ou seja, ele não é unicamente responsável pelas limitações e ilusões da aparência; → duplicação porque distinguirá dois sentidos de “eu”: há, de um lado, um sujeito que está subordinado às aparências e que cai nas ilusões sensíveis, o “sujeito empírico”, o eu fenomenal, o único que podemos conhecer; de outro, há um sujeito que não se reduz a empiria, que é, por sua vez, a unidade de todas as condições sob as quais uma coisa aparece a cada um dos sujeitos empíricos, daí este ser denominado “sujeito transcendental”. Eis, de modo sumaríssimo, o começo kantiano: tudo o que aparece a um sujeito ou a um eu empírico, se dá sob as condições do espaço e do tempo (as formas puras da intuição que são, por sua vez, as formas de recepção do que aparece) e das categorias (formas de representação do que aparece26); ambas as condições – uma irredutível à outra – são as formas de toda experiência possível, as dimensões do sujeito transcendental. Deleuze compreende que, a fim de determinar as estruturas transcendentais do pensamento puro, entretanto, Kant decalcou-as sobre atos empíricos de uma consciência psicológica, isto porque ele partiu do empírico para chegar ao puro, fazendo deste o efeito daquele – como num passe de mágica, operou pelo método do decalque –, não conseguindo, portanto, manter-se no nível de sua própria exigência: conduzir a determinação do pensamento puro no plano de direito (quid juris)27. homem, desse escritor, desse filósofo”. Procedimentos marcados por questões e exemplos corriqueiros que ilustram o seu esforço em mostrar o quanto a Filosofia é concreta, uma vez que ela é problema e criação de conceitos e que cabe ao professor de Filosofia ser mais claro do que o próprio filósofo ao evidenciar os problemas e explicar seus conceitos – usando exemplos que não estão no filósofo –, uma vez que o próprio filósofo tem que fazer outra coisa: criar conceitos para responder os seus problemas – concepção defendida por ele no Abecedário, em H de História da Filosofia e em P de Professor (2001). Nessas aulas, é possível perceber o sentido da afirmação deleuziana (em P, do Abecedário) de que para dar uma aula é preciso tornar o assunto que se fala fascinante, eis o que ele faz com Kant. 26 Kant cria uma tábua de doze categorias, composta por quatro classes de conceitos do entendimento, sempre divididas em grupos de três categorias, sendo que a terceira delas, em todas as classes, é resultado da ligação da segunda com a primeira da sua classe. As categorias são as seguintes: da quantidade – unidade, pluralidade e totalidade; da qualidade – realidade, negação e limitação; da relação – substância, causa e reciprocidade; da modalidade – possibilidade/ impossibilidade, existência/não-existência e necessidade/contingência (1985, “Analítica dos conceitos”, §10). 27 DELEUZE (1988, p.224; p.236) percebe esse método do decalque operado por Kant na pri-
48
meira edição da Crítica da razão pura (1985, A p.99 ss.) em “Dos princípios a priori da possibilidade da experiência” – sessão suprimida na segunda edição. A fim de tornar-se compreensível tal operação, parece pertinente apresentar as partes do texto kantiano, por mais extensas que sejam, em que o decalcamento das estruturas transcendentais se efetiva sobre atos empíricos da consciência psicológica, até porque, na edição brasileira traduzida por Valerio Rohden, as variantes da primeira edição não foram incluídas. O desconhecimento dessa passagem, eliminada pelo próprio Kant, torna obscura a interpretação deleuziana acerca dos procedimentos de decalque kantianos. Os grifos da citação que segue são nossos, destacam, exatamente, a operação de decalque das estruturas transcendentais sobre os atos empíricos de uma consciência psicológica: “Da síntese da apreensão na intuição: Venham as nossas representações de onde vierem, sejam produzidas pela influência de coisas externas ou provenientes de causas internas, possam formar-se a priori ou empiricamente, como fenômenos, pertencem, contudo, como modificações do espírito, ao sentido interno e, como tais, todos os nossos conhecimentos estão, em última análise, submetidos à condição formal do sentido interno, a saber, ao tempo, no qual devem ser conjuntamente ordenados, ligados e postos em relação. É esta uma observação geral que se deve pôr absolutamente, como fundamento, em tudo o que vai seguir-se [é esse um dos momentos da Crítica em que podemos ver o “Eu profundamente rachado pela forma pura do tempo”, a qual Deleuze sempre enfatiza ao tratar de Kant]. Toda a intuição contém em si um diverso que, porém, não teria sido representado como tal, se o espírito não distinguisse o tempo na série das impressões sucessivas, pois, como encerrada num momento, nunca pode cada representação ser algo diferente da unidade absoluta. Ora, para que deste diverso surja a unidade da intuição (como, por exemplo, na representação do espaço), é necessário, primeiramente, percorrer esses elementos diversos e depois compreendê-los num todo. Operação a que chamo síntese da apreensão, porque está diretamente orientada para a intuição, que, sem dúvida, fornece um diverso. Mas este, como tal, e como contido numa representação, nunca pode ser produzido sem a intervenção de uma síntese. Esta síntese da apreensão deve também ser praticada a priori, isto é, relativamente às representações que não são empíricas. Pois sem ela não poderíamos ter a priori nem as representações do espaço, nem as do tempo, porque estas apenas podem ser produzidas pela síntese do diverso que a sensibilidade fornece na sua receptividade originária. Temos, pois, uma síntese pura da apreensão”. A segunda síntese, “Da síntese da reprodução na imaginação” (Idem, A p.100; A p.102), parte explicitamente do empírico para alcançar o transcendental: “É, na verdade, uma lei simplesmente empírica, aquela, segundo a qual, representações que frequentemente se têm sucedido ou acompanhado, acabam, finalmente, por se associar entre si, estabelecendo assim uma ligação tal que, mesmo sem a presença do objeto, uma dessas representações faz passar o espírito à outra representação, segundo uma regra constante. Esta lei da reprodução pressupõe, contudo, que os próprios fenômenos estejam realmente submetidos a uma tal regra e que no diverso das suas representações tenha lugar acompanhamento ou sucessão, segundo certas regras; a não ser assim, a nossa imaginação empírica não teria nunca nada a fazer que fosse conforme à sua faculdade, permanecendo oculta no íntimo do espírito como uma faculdade morta e desconhecida para nós próprios (...) se uma certa palavra fosse atribuída ora a esta, ora àquela coisa, ou se precisamente a mesma coisa fosse designada ora de uma maneira, ora de outra, sem que nisso houvesse uma certa regra, a que os fenômenos estivessem por si mesmos submetidos, não podia ter lugar nenhuma síntese empírica da reprodução. Deve portanto haver qualquer coisa que torne possível esta reprodução dos fenômenos, servindo de princípio a priori a uma unidade sintética e necessária dos fenômenos (...). Se pois podemos mostrar, que mesmo as nossas intuições a priori mais puras não originam conhecimento [sensível] a não ser que contenham uma ligação do diverso, que uma síntese completa da reprodução torna possível, esta síntese da imaginação também está fundada, previamente a toda a experiência, sobre princípios a priori e é preciso admitir uma síntese transcendental pura desta imaginação, servindo de fundamento à possibilidade de toda a experiência [os itálicos são do autor].
49
Não satisfeito com a solução transcendental empregada por Kant, na qual persistiram dualidades, tais como coisa em si e aparência, conteúdo e forma, razão prática e razão pura, sujeito e objeto, Fichte28 intensificou a busca por um começo absoluto em Filosofia, o qual também deveria ser o princípio de todas as coisas, isto é, o princípio que determinaria tudo aquilo que dele se segue. Tal princípio deveria satisfazer os requisitos de unidade, imanência e capacidade de gerar um sistema, bem como permanecer em si, mesmo quando sai de si. Dele dependeria todo o sistema filosófico fichtiano, também sua forma, possibilidade e credibilidade. O começo para Fichte era o mais difícil de tudo. Embora não tenha esclarecido em que consistia tal dificuldade, afirmou que, para começar, para encontrar o princípio, é preciso coragem, esforço e até mesmo violência, a fim de mover o pensar em direção ao absoluto começo. Trata-se, pois, de uma tarefa dolorosa, tal como é concebida a preparação do filósofo em Platão, quando um dos prisioneiros da caverna é obrigado imediatamente a levantar-se, virar o pescoço, andar e olhar na direção da luz; forçado, à custa de perguntas, a designar o nome dos objetos que desfilavam por detrás do muro, os quais, até poucos instantes, davam a impressão de ser o verdadeiro mundo; arrastado à força para fora da caverna e, ainda que com a vista ofuscada, fora coagido a olhar não só para as sombras, imagens e objetos, mas também para o sol com todo o seu fulgor. Para encontrar o começo, na perspectiva de Fichte, trata-se, entretanto, de um processo inabitual, que não está relacionado em nada com a sensibilidade e com os objetos; pelo contrário, é necessário o puro pensar que procede inteiramente a partir de si mesmo. Este puro pensar é descrito por Fichte como um gerar e produzir, o qual alcança, depois de tanto esforço e sofrimento do aprendiz, o terreno prévio, anterior a toda relação dual entre sujeito e objeto, coisa em si e aparência, razão prática e razão pura – o que Kant não teria conseguido, apesar de ter lhe indicado o caminho29. O ponto atingido pelo puro pensar é, finalmente, algo um tanto paradoxal: o mais claro de tudo e, simultaneamente, o mais oculto, onde não há claridade e que Fichte nomeou “eu puro”. Esse princípio é inteiramente “a partir de si, em si, por si”, portanto, apreendido numa vida absoluta, da qual não pode jamais sair, trata-se, pois, em última 28 FICHTE, 1980. 29 Cf. Rubens Rodrigues Filho, na introdução do volume dedicado a Fichte da Coleção Os Pensadores (1980).
50
instância, de um eu encerrado em si que é, ainda assim, a fonte de toda a realidade, sem, contudo, ser, ele próprio real nem ideal. Esse eu puro não é a consciência individual do próprio Fichte, ou um sujeito empírico qualquer, ao contrário, o filósofo quer apresentar o começo do seu sistema filosófico como uma estrutura universal, uma consciência transcendental, unidade absoluta que é imutável, idêntica a si e verdadeira30. Hegel, por sua vez, iniciou a Ciência da lógica justamente com a questão “Qual deve ser o começo da ciência?”31 e levou em consideração as respostas apresentadas por seus antecessores, a fim de erigir o “seu” próprio começo. Menciona o “original” começo pelo Eu que “se fez célebre nos últimos tempos”, uma vez que atende as características consideradas imprescindíveis por ele: ser um absoluto (ou um abstrato, o que quer dizer o mesmo),32 uma primeira verdade da qual tudo provém, isto é, de onde tudo é deduzido, ser algo conhecido e uma certeza imediata33. O Eu seria um começo plausível uma vez que é o mais concreto, o imediatamente certo e o pura e simplesmente conhecido; entretanto, para Hegel, a plausibilidade é apenas aparente. Começar pelo Eu é um equívoco, pois o imediatamente conhecido é o eu empírico, o eu subjetivo de cada homem, o qual até pode ser o mais conhecido para cada um, mas é inteiramente desconhecido para os outros. Sendo assim, o Eu não preenche as condições exigidas para começo da Filosofia; para tanto, seria “preciso sua separação do concreto, quer dizer, o ato absoluto por meio do qual o eu se purifica de si mesmo e penetra em sua consciência como eu abstrato. Mas este eu puro não é mais um imediato nem conhecido; não é o eu ordinário da nossa consciência, ao qual imediatamente e para cada um se devia reportar a ciência”34. Na medida em que Hegel caracteriza o começo como o puramente imediato, o indeterminado e o simples, exige que ele nada pressuponha. Eis, portanto, a “essência” do começo em Hegel: nada pressupor, pois “o começo, como começo do pensar, deve ser totalmente abstrato, universal, forma pura sem nenhum conteúdo, (...) nada mais que a representação de um simples começo como tal (...) [que] não é nada, [mas, ainda assim, dele] tem que 30 31 32 33 34
Cf. ASMUTH, 1998, p.55-63. HEGEL, 1993, p.87. Cf. Idem, p.91. Idem, p.97 ss. Idem, p.98.
51
surgir algo”35. Começo que Hegel chamou “puro ser”, o qual contém o ser e o nada, os contrários ser e não-ser. Feuerbach foi um dos filósofos que mais longe foram no problema do começo. De acordo com Deleuze, ele denunciou os pressupostos implícitos da Filosofia em geral e na Filosofia de Hegel em particular36. Em seu projeto de uma reforma da Filosofia com vistas a uma Filosofia do futuro, Feuerbach almejou “reconduzir a Filosofia do reino das ‘almas penadas’ para o reino das almas encarnadas, das almas vivas”37. Projeto que o levou a fazer uma crítica geral à Filosofia moderna, de Descartes a Hegel, uma vez que ela não passa de metamorfose da teologia: a essência abstrata e transcendente de Deus se realizou e foi suprimida de um modo abstrato e transcendente na própria razão – uma razão necessariamente separada e distinta da sensibilidade, do mundo e do homem. Quando Descartes retirou dos sentidos a possibilidade de fornecerem realidade verdadeira, essência e certeza, porque buscava algo de imediatamente certo e, para tanto, afirmou a cisão entre sentidos e entendimento atribuindo a este a exclusividade de proporcionar a verdade, não operou mais do que por derivação da teologia: no lugar de Deus, do ser puramente pensado – sem determinações de fora, sem sensibilidade e matéria –, pôs o ser pensante, o eu. Fundou, assim, a Filosofia na autoconsciência que passou a ser o próprio espírito puro, atividade realizada puramente como ato de pensar – o Ser absoluto como pensamento absoluto38. Nas palavras de Feuerbach: “assim como outrora a abstração de todo o sensível e material foi a condição necessária da teologia, ela foi também a condição necessária da Filosofia especulativa”39. No seu 35 36 37 38
Idem, p.95. Cf. DELEUZE, 1988, p.220n. FEUERBACH, 2008, p.5n. “A definição que Descartes propõe de si como espírito — a minha essência consiste unicamente no pensamento — é a definição que de si fornece a Filosofia moderna” e que se prolonga no idealismo kantiano, fichtiano e hegeliano (Idem, §18 [os itálicos são do autor]). A abstração dos sentidos também é condição necessária para que o ensino de Filosofia se efetive, na carta Acerca de la exposición de la filosofía en los Gimnasios endereçada ao Conselheiro escolar superior do Reino da Baviera, Inmanuel Niethammer, Hegel recomenda: “é preciso que se subtraia da juventude primeiramente a visão e a audição, é preciso que se lhe desvie do representar concreto, que se retire a noite interior da alma, que aprenda a ver sobre esta base, a manter firmes e a diferenciar as determinações” (Hegel, 1991, p.142). 39 Idem, §10. O começo da Filosofia especulativa é marcado pelo começo da Filosofia cartesiana a qual realizou a abstração da sensibilidade e da matéria e determinou a identidade do ser e do pensar; ela começou, também, a Filosofia da identidade, que “nada mais é do que uma consequência e um desenvolvimento necessários do conceito de Deus, enquanto ser cujo conceito ou essência implica a existência” (Idem, §24).
52
próprio empreendimento em determinar o verdadeiro começo da Filosofia e, portanto, do pensamento, coerente com sua crítica à abstração efetivada pela Filosofia e pela teologia, Feuerbach40 retomou justamente o que a Filosofia especulativa havia eliminado do Absoluto e rejeitado para o âmbito do finito, do empírico: o sensível. Determinou, portanto, que o princípio da Filosofia, e do pensamento, é um elemento distinto do pensar; aquilo que não filosofa no homem que, pelo contrário, é contra a Filosofia, que se opõe ao pensamento abstrato41. A Filosofia, para Feuerbach, deve começar pela não-Filosofia, sua essência é a-filosófica, trata-se do princípio do sensualismo: “afecção precede o pensamento”. A “nova Filosofia” considera e aborda o ser tal qual ele é para nós, pensante e existente; ela começa, pois, com a proposição: “sou um ser real, um ser sensível; sim, o corpo na sua totalidade é o meu eu, a minha própria essência”42. Em suma, o homem, com seu coração e cabeça, sem parte nenhuma abstraída, portanto, é o começo da Filosofia para Feuerbach, o que lhe dá unidade, pois: “toda a especulação sobre o direito, a vontade, a liberdade, a personalidade sem o homem, fora ou acima do homem, é uma especulação sem unidade, sem necessidade, sem substância, sem fundamento, sem realidade”43. Deleuze está de acordo com Feuerbach, quando este compreende que o homem em sua inteireza, já era o solo e o fundamento do Cogito cartesiano, do sujeito transcendental kantiano, do eu puro de Fichte e também do puro ser hegeliano, apesar de todo o esforço empregado pelos filósofos para atingir a abstração e, finalmente, alcançar a pureza. Para ele, o que resulta desse esforço é o sufocamento da vida (em uma subjetividade), o que se produz são “enormes dualismos estéreis”. Em sua perspectiva, “os filósofos se deixam enganar de bom grado, e discutem em torno do que deve ser primeiro princípio (o Ser, o Eu, o Sensível?...)”, considera que não vale a pena nem mesmo invocar a riqueza concreta do sensível, “se for para fazer dele um princípio abstrato”44. 40 Idem, §31. 41 “Para tomar realmente a sério a realidade do pensamento ou da Ideia é preciso acrescentarlhe algo de diferente dela, ou: o pensamento realizado deve ser algo diverso do pensamento não realizado, do simples pensamento — objeto não só do pensar, mas também do não-pensar” (Ibidem). 42 Idem, §36. 43 FEUERBACH, 2011, p.19. 44 DELEUZE, 1998, p.68.
53
Em busca de um começo do pensar no pensamento: para aquém do Eu e da verdade Diferentemente de todos eles, inclusive de Feuerbach, Deleuze45 recusa que o verdadeiro começo da Filosofia parta do eu, do ser empírico, sensível e concreto ainda que ele tenha uma aparência de começo puro. Percebe que esses variados esforços pela busca de um começo absoluto estão ancorados em pressupostos comuns que compõem uma imagem moral do pensamento46; a qual Deleuze quer combater e procura aliados para tanto, geralmente habitantes externos ao plano filosófico. Dentre eles, encontra-se Marcel Proust que, em sua Recherche, combate os pressupostos da Filosofia clássica racionalista, os quais podem ser assim resumidos: 1) o pensador procura, quer e ama naturalmente o verdadeiro e sua busca é baseada, de forma premeditada, em uma decisão carregada de boa vontade, eis o que estava suposto já em Descartes → princípio da cogitatio natura universalis; 2) a boa vontade e a natureza reta do pensador pertencem de direito (quid juris) ao pensamento → ideal do senso comum; 3) entretanto, ainda que de direito a busca da verdade seja a coisa mais natural e, por isso, a mais fácil possível, de fato (quid facti) é difícil pensar, pois há coisas exteriores que influenciam e desviam o pensamento de sua vocação e fazem com que ele tome o falso pelo verdadeiro e caia em ilusões, mas, para vencer isto, associado à decisão do pensador é preciso → um método, um caminho seguro para seguir os passos da verdade e encontrá-la, “tratar-se-ia de descobrir e organizar as ideias segundo uma ordem que seria a do pensamento, como significações explícitas ou verdades formuladas que viriam saciar a busca e assegurar o acordo entre os espíritos”47; 4) método que garantiria o exercício concordante de todas as faculdades de um sujeito sobre um objeto, supostamente o mesmo para todas elas (sensibilidade, memória, imaginação, razão/pensamento) → concordia facultatum; 5) acordo entre as faculdades, fundado no sujeito pensante tido como universal e se exercendo sobre o objeto qualquer → modelo da recognição que santifica 45 DELEUZE, 1988, p.215-216; p. 220. 46 Imagem que Deleuze critica ao longo de toda constituição de sua Filosofia, mas, de modo mais incisivo e esquemático, nos escritos da década de 60: em Nietzsche e a filosofia publicado em 1962, na primeira edição de Proust e os signos, de 1964, em Diferença e repetição de 1968 e em Lógica do sentido de 1969. 47 DELEUZE, 2003a, p.89.
54
nada mais que o reconhecível e o reconhecido e inspira conformidades48. Com tais pressupostos, contudo, as verdades que a Filosofia alcançará permanecerão arbitrárias e abstratas; ela explicitará apenas o convencional e determinará nada mais que significações explícitas e comunicáveis, enfim, não conseguirá realizar o seu projeto de romper com a doxa. Deleuze compreende que outras sendas precisam ser abertas para libertar a Filosofia e o pensamento das potências que os impedem de criar. O começo da Filosofia e do pensar no pensamento é explorado por ele em outros territórios, aquém do Eu e da verdade e distante da pacífica boa vontade do pensador que deseja naturalmente conhecer o verdadeiro. O filósofo concebe que a relação do pensamento com o verdadeiro nunca foi um negócio simples, considera que “é vão invocar tal relação para definir a Filosofia”49. O pensamento enquanto faculdade ou força é, para Deleuze, uma simples possibilidade de pensar50; não há, no pensamento, um pensador pressuposto capaz de pensar nem de dizer Eu, conforme sua vontade autoconsciente. Inerente ao pensamento é a dificuldade de chegar a pensar alguma coisa; unicamente, o que lhe é de direito (quid juris), é o “seu próprio ‘impoder’ natural” de pensar. Foi na experiência de escrita/pensamento de Antonin Artaud que Deleuze encontrou a “terrível revelação de um pensamento sem imagem e a conquista de um novo direito que não se deixa representar”51; talvez tenha sido ele quem expressou de modo mais intenso aquilo que Deleuze também considera ser o começo do pensar e, portanto, da Filosofia: “pensar é criar, não há outra criação, mas criar é, antes de tudo, engendrar, ‘pensar’ no pensamento”52. 48 DELEUZE, 1998, p.223. 49 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.73. 50 Ao afirmar isso, Deleuze (Cf. 1988, p.238; _____; GUATTARI, 1992, p.73) tem como uma de suas referências o “célebre” texto de Heidegger Que significa pensar? (2005, p.125): “Aportamos ao que significa pensar quando nós mesmos pensamos. Para que semelhante tentativa tenha êxito devemos estar dispostos a aprender o pensar. Assim que nos envolvemos nesse aprender também já concedemos que ainda não somos capazes do pensar. Mas o homem denomina-se aquele que pode pensar – e isso com razão pois ele é o ser vivo racional. A razão, a ratio, desdobra-se no pensar. Como ser vivo racional o homem deve poder pensar, desde que queira, entretanto talvez o homem queira pensar e, mesmo assim, não pode (...) O homem pode pensar à medida que tem a possibilidade para tanto. Esse possível, porém, ainda não nos garante que somos capazes disso, pois apenas somos capazes do que desejamos”. Mas, diferentemente de Heidegger, Deleuze não conserva o desejo de pensar, nem a homologia que há entre o pensamento e o que está para ser pensado. 51 DELEUZE, 1998, p.242. 52 Idem, p.243. Também em 1985, quando Deleuze relaciona o pensamento e o cinema, Artaud está presente: por um momento breve, o poeta acredita no cinema, pois é “arte nova, pensam-
55
Como engendrar o pensar no pensamento? Como chegar a pensar? Foi esse o problema disparador de uma série de cartas trocadas entre um jovem poeta – que, posteriormente, seria conhecido pelo mundo como um artista “maldito” genial53 – e o diretor da revista Nouvelle Revue Française, Jacques Rivière. Após um polido “não!” à intenção de publicar seus “poemas defeituosos” advindo do diretor, Artaud responde à negativa com uma extensa correspondência na qual o poeta se põe a pensar o próprio fazer poético. Um pensamento que ultrapassa o problema de dar acabamento à expressão daquilo que ele pensa e alcança o ponto de pôr em questão como chegar a pensar alguma coisa. Ao contrário dos poemas, as cartas causam forte impacto sobre o editor que se propõe a publicá-las. Proposta aceita por Artaud sob a condição de “não falsear a realidade”54. A série de correspondências trocadas entre eles terá imensa importância na própria obra de Artaud, ela ocupa seu lugar fundador, é uma autorização para escrever. Paradoxalmente, “ao poeta coube primeiro a edição de suas cartas e não de sua poesia!”55. Mas, que realidade é essa que não pode ser falseada? A própria realidade do pensamento: → a grave erosão que lhe é inseparável; → a perda central, a impossibilidade de pensar, seu essencial “impoder” – “Não consigo pensar. Vocês entendem esse oco, esse intenso e durável nada?”, escreve Artaud56; → a fragilidade do espírito em nada parecida com o poderoso sujeito autoconsciente e senhor de si que a Filosofia, desde Descartes, acreditou existir como começo do pensamento: “o que é primeiro não é a plenitude
53
54
55 56
ento novo (...) Diz que o cinema é coisa de vibrações neurofisiológicas, e que a imagem deve produzir um choque, uma onda nervosa que faça nascer o pensamento, ‘pois o pensamento é uma matrona que nem sempre existiu’. O pensamento não tem outro funcionamento que seu próprio nascer, sempre a repetição de seu próprio nascimento, oculto e profundo” (2005, p.199ss). Cf. LINS, 1999, p.44: “Na sua polissemia infinita, Artaud fascina, exaspera biógrafos, pesquisadores, críticos, admiradores e ‘discípulos’. Sua obra divulgada, sobretudo pela prestigiada Gallimard ocupa 25 volumes! (...) a obra de Artaud teve grande repercussão, a partir de 1970, quando os maiores homens das letras, da Filosofia, das artes plásticas e da psicanálise, assim como o espaço acadêmico, com dezenas de teses elaboradas sobre Artaud, inclusive no Japão, vão apresenta-lo ao mundo inteiro como um artista ‘maldito’ genial”. BLANCHOT, 2005, p.47. Blanchot é autor de comentários importantes sobre essas correspondências, em 1959, – aos quais Deleuze remete em nota no seu Diferença e repetição (1988, p.243), bem como em O que a Filosofia? (1992, p.73) –, neles é evidenciada a impossibilidade de pensar que é primeira no pensamento, bem como a necessidade de um combate infinito contra o Eu e os pensamentos corretos já formados que habitam o pensamento, combate necessário para que se comece a pensar, isto é, a criar. KIFFER, 2008, p.1. ARTAUD Apud BLANCHOT, 2005, p.54.
56
do ser, é a fenda e a fissura, a erosão e o dilaceramento, a intermitência e a privação corrosiva”57. Atormentado por não poder se isentar de seu pensamento poético, ainda que impotente em sua essência, Artaud escreve: “Há algo que destrói meu pensamento; algo que me impede de ser o que eu poderia ser, mas que me deixa, poder-se-ia dizer, sob suspensão; (...) No momento em que a alma se dispõe a organizar sua riqueza, suas descobertas, essa revelação, no minuto inconsciente em que a coisa está prestes a emanar, uma vontade superior e malévola ataca a alma como um ácido, ataca a massa palavra-imagem, ataca a massa do sentimento, e me deixa ofegante como na própria porta da vida”58. Esse “ácido” que lhe provoca a experiência da dor da impotência de pensar, nunca é, porém, completamente corrosivo, a impotência não é impotente o bastante para fazê-lo desistir de pensar, de manter-se vivo e ativo no infindável combate contra aquilo que não o deixa pensar: “o combate é também aquele que Artaud quer continuar, pois nessa luta ele não renuncia ao que chama de ‘vida’ (...) cuja perda não pode tolerar, que quer unir a seu pensamento e que (...) se recusa a distinguir do pensamento”59. Nesse combate, Deleuze vê Artaud vivendo um processo de pensar “que não pode abrigar-se sob uma imagem dogmática tranquilizadora, mas se confunde, ao contrário, com a destruição completa da imagem”60. A destruição dessa imagem constituída pela tradição europeia dualista, centrada no Eu puro – a expressão do espírito absoluto – que abomina o corpo, implica, portanto, interrogar tudo aquilo que aprendemos como sendo próprio ao pensar e, consequentemente, também pôr em questão o que compreendemos por ensinar a pensar. Trata-se, pois, de colocar em xeque o Eu, ainda que transcendental, com suas faculdades harmoniosamente 57 BLANCHOT, 2005, p.53. O tema da fissura orienta as leituras que Deleuze faz da literatura moderna de Zola, Fitzgerald e Malcom Lowry, sempre numa relação privilegiada com o alcoolismo, “como se a fissura não atravessasse e não alienasse o pensamento senão por ser também a possibilidade do pensamento, aquilo a partir do qual o pensamento se desenvolve e se recobre. Ela é o obstáculo ao pensamento, mas também a morada e a potência do pensamento, o lugar e o agente” (2003b, p.342). 58 ARTAUD apud KIFFER, 2008 [“Il y a donc un quelque chose qui détruit ma pensée; un quelque chose qui ne m’empêche pas d’être ce que je pourrais être, mais qui me laisse, si je puis dire, en suspens (...) et qu’au moment où l’âme s’apprête à organizer sa richesse, ses découvertes, (...), à cette inconsciente minute où la chose est sur le point d’émaner, une volonté supérieur et méchante attaque l’âme comme un vitriol, attaque la masse mot-etimage, attaque la masse du sentiment, et me laisse, moi, pantelant comme à la porte même de la vie”.] 59 BLANCHOT, 2005, p.55. 60 DELEUZE, 1988, p.242.
57
concordantes, para constituir um pensamento sem sujeito e sem modelo; pensamento desenraizado, perpetuamente engendrado frente à impotência que lhe é de direito. Desenraizamento que não se dá sem um sofrimento avassalador, pois sofrer e pensar estão secretamente ligados. Já não era isso que Platão supunha quando descreveu toda a crueldade necessária para arrancar o prisioneiro da caverna e força-lo a contemplar a verdade? E Fichte – ainda que recusasse a importância da sensibilidade – quando afirmou que o mais difícil de tudo é o começo porque se trata de uma tarefa dolorosa que supõe uma violência inabitual? Parece que mesmo a tradição filosófica orientada pela imagem dogmática do pensamento está assentada sobre este segredo: não há criação de pensar no pensamento senão com dor e sofrimentos causados por uma violência. O genealogista Nietzsche conhecia o segredo e mostrou o quanto o filósofo pode estar alheio a ele na medida em que crê na boa vontade do pensador: “A nós nos chega à consciência apenas as últimas cenas de conciliação e ajuste de contas desse longo processo, e por isso achamos que intelligere [compreender] é algo conciliatório, justo, bom, essencialmente contrário aos impulsos; enquanto é apenas uma certa relação dos impulsos entre si. Por longo período o pensamento consciente foi tido como o pensamento em absoluto: apenas agora começa a raiar para nós a verdade de que a atividade de nosso espírito ocorre, em sua maior parte, de maneira mais inconsciente e sentida por nós, mas eu penso que tais impulsos que lutam entre si sabem muito bem fazer-se sentidos e fazer mal uns aos outros: – a violenta e súbita exaustão que atinge todos os pensadores talvez tenha aí a sua origem (é a exaustão de um campo de batalha). Sim, pode haver no nosso interior em luta muito heroísmo oculto, mas certamente nada de divino, nada repousando eternamente em si, como queria Spinoza. O pensar consciente, em particular o do filósofo, é a espécie menos vigorosa de pensamento e, por isso, também aquela relativamente mais suave e tranquila: daí que justamente o filósofo pode se enganar mais facilmente sobre a natureza do conhecer”61. Também o filósofo, no entanto, quando têm seus pensamentos mais vigorosos, os têm neste campo de batalha. Campo incontornável mesmo 61 NIETZSCHE, 2001, §333, “O que significa conhecer”.
58
para aquele que, por quase toda a vida, filosofou como um juiz de paz. Foi justamente na Filosofia de Kant que Deleuze percebeu um dos maiores e mais conflituosos campos de batalha da História da Filosofia. Em sua furiosa obra de velhice, a Crítica da faculdade do juízo, Deleuze flagra Kant engendrando a gênese do pensar no pensamento, ponto em que a concordia facultatum e nenhum dos outros pressupostos constituidores da imagem dogmática do pensamento podem funcionar. Capítulo decisivo da História da Filosofia para a busca deleuziana por um começo do pensar62: trata-se da abordagem do exercício da faculdade da imaginação na última Crítica, quando ela assume uma função produtiva e original e exerce-se livremente, uma vez que não está submetida a nenhum conceito e, assim, encontra-se liberada da tutela do entendimento e da razão – o que não acontecia nas duas Críticas anteriores, nas quais as faculdades ainda que difiram por natureza entram em um acordo harmonioso para atender o interesse da razão, sempre determinado por uma das faculdades63. Deleuze percebe que a faculdade da imaginação, na terceira Crítica, sinaliza para um livre exercício das faculdades, de tal modo que cada uma deve se tornar capaz de funcionar por conta própria. Esse exercício livre da imaginação é apresentado por Kant na “Analítica do sublime”, quando ela está relacionada ao sentimento do sublime, um prazer negativo – desprazer, portanto –, produzido pelo sentimento de uma momentânea inibição das forças vitais, chegando a produzir um contínuo maravilhamento e estima, admiração ou respeito. Kant considera o sublime apenas em relação a objetos da natureza bruta que, sem raciocínio, produzem no espírito uma comoção, uma violência à faculdade da imaginação. Ele ressalta, entretanto, que o sublime não está em nenhuma forma sensível, mas no homem e diz respeito apenas a Ideias da razão, não podendo ser representado. Assim, o sublime não está nos objetos da 62 Um estudo mais demorado acerca da importância de alguns aspectos da Filosofia de Kant para a criação da Doutrina das faculdades deleuziana pode ser encontrado no capítulo “Coação do sublime” do livro Pensar em Deleuze: violência e empirismo no ensino de Filosofia (HEUSER, 2010). 63 Deleuze compreende, no entanto, que as faculdades nunca entrariam em um acordo determinado por uma das faculdades se, de início, elas não fossem capazes em si mesmas de um acordo indeterminado, sem legislação, interesse e predominância. Portanto, o livre acordo entre as faculdades – livre, mas não sem dor –, que só aparece na última Crítica, é primeiro, condição dos acordos concordantes das outras duas Críticas, ou seja, a Crítica da faculdade do juízo funda as demais (Cf. DELEUZE, 2006, “A ideia de gênese na estética de Kant”).
59
natureza, estes apenas podem ser aptos a uma sublimidade possível de ser encontrada e evocada no ânimo, na gemüt, que é inteiramente vida. Apenas o caos, as mais selvagens e desregradas desordem e devastação suscitam as ideias do sublime quando somente poder e grandeza podem ser vistos64. Tais fenômenos são sublimes porque eles nos fazem descobrir que ao provocarem a elevação da fortaleza da alma acima de seu nível médio, permitem descobrir em nós uma faculdade de resistência a qual possibilita que nos julguemos independentes e superiores à natureza; faculdade sobre a qual está fundada a autoconservação da espécie, dado que leva em si as Ideias da razão, de totalidade absoluta, capazes de superar o que, à primeira vista, parecia ultrapassar o próprio homem. É neste pensamento vigoroso kantiano que Deleuze vê se expressar uma harmonia paradoxal entre razão e imaginação quando ambas se implicam no esforço de apreender a selvageria da natureza: ambas só entram em acordo “no seio de uma tensão, de uma contradição, de uma dilaceração dolorosa. Há acordo, mas acordo discordante, harmonia na dor”65. Por sua importância na instauração do começo deleuziano do pensar no pensamento, é imprescindível que este estudo se detenha no processo desse acordo discordante que é engendrado do seguinte modo: frente a um espetáculo selvagem da natureza, o sentimento do sublime exerce uma afronta sobre a faculdade de imaginação, uma vez que ela é retirada da forma do senso comum, isto é, do acordo harmonioso entre as faculdades, e, por si, avança até o infinito, em um jogo livre, sem qualquer impeditivo, excedendo todo padrão de medida da sensibilidade. Toda a forma de reconhecimento foi quebrada. Todo o ritmo e ordem do senso comum foi rompido. O infinito circunscreveu a totalidade do espaço, só há o caos. O sublime coage a imaginação a enfrentar 64 KANT, 1993, §23-28. Grandeza e poder são as formas das duas espécies de sublime: a matemática e a dinâmica. A espécie matemática de sublime é extensiva, dada pelo absolutamente grande, pelo grande acima de qualquer comparação, cujo padrão de medida não pode ser outro senão ele mesmo e compreendido pela imaginação, única faculdade capaz de avançar por si mesma até o infinito. Exemplos do sublime matemático são o espetáculo do mar em plena calmaria, assim como a abóbada celeste estrelada, que inspiram um sentimento de respeito. A espécie dinâmica, por sua vez, é dada pelo infinitamente potente da natureza, o qual nos causa medo e impotência física, como exemplo da espécie dinâmica de sublime, Kant refere fenômenos da natureza que “tornam nossa capacidade de resistência de uma pequenez insignificante em comparação com o seu poder” (Idem, p.107). Tratam-se de espetáculos naturais atraentes quanto mais terríveis forem, desde que, no entanto, seus observadores encontrem-se em segurança, tsunami, terremotos, enchentes podem servir de exemplo. 65 DELEUZE, 2006, p.86.
60
o seu máximo, o inimaginável na natureza, e ela não pode mais refletir a forma de um objeto. O excessivo66 se transforma em abismo, no qual a imaginação teme se perder e, por isso, transmite sua coerção à faculdade da razão, que é forçada a pensar o suprassensível como fundamento da natureza e da própria faculdade de pensar67. O constrangimento da imaginação, contudo, ao se reportar à natureza sensível, não é, realmente, efeito exercido pelo sublime, mas provocado pelas Ideias da razão, a nossa faculdade de pensar, pois “somente a razão nos obriga a reunir em um todo o infinito do mundo sensível; nada mais força a imaginação a enfrentar seu limite”68. Do desacordo entre imaginação e razão nasce um acordo, eis a gênese do pensamento sendo engendrada na estética kantiana: a razão força a imaginação a atingir o seu máximo, coloca-a em presença do limite do seu poder no sensível69; e a imaginação, por sua vez, desperta a razão como faculdade que pensa um substrato suprassensível para a infinidade do mundo sensível. Tendo como objeto seus próprios limites – o inimaginável para a imaginação e o impensável para o pensamento na forma do senso comum –, as faculdades elevam-se a um exercício transcendente, ultrapassando suas limitações pela violência que uma provoca à outra entrando em um acordo discordante e engendrado na dor. É no exercício transcendente das faculdades, que aquilo que era o “impoder” natural de cada uma, no nível do senso comum, é transformado em sua mais elevada potência, sua diferença radical, aquilo que só ela é capaz de exercer sobre a alma. Apenas mediante a perspectiva do funcionamento das faculdades em um acordo discordante que uma parte enigmática da Filosofia deleuziana ganha sentido. Enigmática e incontornável para quem quer encontrar o começo do pensar no pensamento inerente à 66 Kant ilustra este excessivo, diante do qual a imaginação fica estupefata como “o pavor, o horror e o estremecimento sagrado que apanha o observador à vista de cordilheiras que se elevam aos céus, de gargantas profundas e águas que irrompem nelas, de solidões cobertas por sombras profundas que convidam à meditação melancólica” (KANT, 1993, “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, p.115-116). 67 DELEUZE, 1988, p.237. 68 DELEUZE, 2006, p.86. 69 A lição da “Analítica do sublime”, salienta Deleuze (Ibidem), é que “mesmo a imaginação tem uma destinação suprassensível”, o que o entendimento ocultava quando o interesse da razão era especulativo e complementa mais adiante que este é o destino de nossas faculdades em geral, a unidade de todas elas, o que Kant chama de Alma. É o suprassensível, o princípio que anima qualquer uma das faculdades, pois é por meio dele que cada uma engendra o seu livre exercício em um livre acordo com as demais.
61
Filosofia de Deleuze: ao contrário de Kant, que só pensa o desacordo das faculdades frente ao sentimento do sublime, Deleuze considera que outras faculdades, além da imaginação também têm seus dados, seu estilo e seus atos particulares investindo o dado, cada uma a sua maneira. Isto é, cada faculdade tem um poder exclusivo, alcançado quando uma força a outra a atingir o seu máximo potencial – o que só se efetiva mediante o rompimento da concordia facultatum e a necessária quebra do modelo da recognição, quando o pensamento nada cria, apenas reconhece, como no caso de Descartes com o pedaço de cera que é sempre o mesmo que é visto, tocado, imaginado ainda que receba modificações de forma e odor70. Os poderes próprios de cada faculdade são assim apresentados por Deleuze 71: → o poder da sensibilidade é o “ser do sensível”, o sentiendum, aquilo que é, ao mesmo tempo, insensível no nível do senso comum, mas que só pode ser sentido no uso transcendente da faculdade da sensibilidade; → o poder transcendente da memória aparece quando ela fica diante do seu próprio limite, frente à forma pura do tempo, a qual força a memória a transcender a si própria e a recordar-se do memorandum, daquilo que só pode ser lembrado; → a imaginação é forçada a imaginar o imaginandum, o limite, o impossível de imaginar, como Kant expõe na “Analítica do sublime”; → por fim, o pensamento é forçado a apreender aquilo que só pode ser pensado, o cogitandum, o ser do inteligível, o pensamento puro ou a Essência. Uma impelida pela outra, como em uma cadeia de força, cada faculdade sai dos eixos, da forma do senso comum e, ao invés de entrarem em um regime de convergência e de contribuição para o reconhecimento de um objeto, “cada uma é colocada em presença do seu ‘próprio’, daquilo que a concerne essencialmente”72. Um problema, ao menos, ainda permanece: o que dispara essa cadeia de força sobre a faculdade da sensibilidade? O que força o desencadeamento 70 DESCARTES, 1979, 2ª Meditação, §11-13. Esse é o exemplo emblemático para Deleuze (1988, p.222) determinar o modelo da recognição que se define pelo exercício concordante de todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo. O objeto é reconhecido “quando uma faculdade o visa como idêntico ao de uma outra ou, antes, quando todas as faculdades em conjunto referem seu dado e referem a si mesmas a uma forma de identidade do objeto”. Além da identidade do objeto, o modelo da recognição tem seu fundamento na unidade do “Eu penso”, orientado pelo princípio de colaboração das faculdades no sujeito para “todo mundo”, ou seja, o senso comum como concordia facultatum que tem seu ápice na afirmação cartesiana “ninguém pode negar”. 71 DELEUZE, 1998, p.231ss. 72 Idem, p.233.
62
do exercício transcendente das faculdades? O que provoca o engendramento, o nascimento do pensar no pensamento? Como começar a pensar se não há um Eu para acionar o pavio de pólvora do pensamento? Deleuze inscreve sua singularidade no clássico problema do começo em Filosofia, criando uma nova estética transcendental como teoria da sensibilidade, o que se pode chamar de uma aesthesiologia, uma vez que para ele “no caminho que leva ao que existe para ser pensado, tudo parte da sensibilidade”73. O pensamento só poderá pensar, atingir o cogitandum, se houver o encontro com a intensidade de um signo que faça nascer a sensibilidade no sentido, o sentiendum, o qual forçará as demais faculdades a apreenderem aquilo que lhes é próprio. A gênese desse começo na Filosofia de Deleuze aparece, com toda sua força, muito antes de Diferença e repetição, no genuíno olhar que ele apresenta da literatura de Proust, quando na conslusão da primeira edição afirma: “sem algo que force a pensar, sem algo que violente o pensamento, este nada significa. Mais importante do que o pensamento é o que ‘dá que pensar’; mais importante do que o filósofo é o poeta (...) [pois ele] aprende que o essencial está fora do pensamento, naquilo que força a pensar”74. Olhando retrospectivamente o conjunto da obra que constitui a Filosofia de Deleuze, pode-se afirmar que ela toda – nos encontros com filósofos, artistas, escritores, cineastas – é a busca desse começo que faz nascer o pensar no pensamento, começo que precisa ser sempre, a cada vez, recomeçado. É nesse ponto que Deleuze está mais próximo de Artaud, pois o problema de ambos é o mesmo: fazer com que nasça aquilo que ainda não existe → o pensar no pensamento. Uma vez que só o imprevisível, o impensável no nível do senso comum das faculdades, é o que provoca o pensar; que só pensamos quando forçados por um signo que determinará a necessidade absoluta de pensar; nessa perspectiva, o professor de Filosofia, para que consiga instaurar, em instantes de suas aulas, momentos de experiência de pensamento, precisa passar a ser um ensignador, um emissor de signos dolorosos capazes de elevar as faculdades de cada estudante com a emissão de uma multiplicidade de signos, a seu exercício transcendente, instalar a necessidade absoluta de um ato de pensar e promover uma paixão de aprender. Um ensignador que amorosamente prepara e promove encontros com signos de todo tipo: 73 Idem, p.239. 74 DELEUZE, 2003a, p.89.
63
mundanos, amorosos, sensíveis, artísticos, mortais; advindos de variadas expressões do pensamento que recebeu de herança: da História da Filosofia, da música, da literatura, da poesia, da pintura, do teatro, do cinema, das ciências, enfim, do livro-mundo. Um ensignador que, além de lançar signos – ciente de que nem todos eles interessarão a todos os estudantes –, garante a participação dos estudantes na constituição dos problemas, pois eles, assim como o ensignador, só serão livres quando dispuserem de seus próprios problemas. Um ensignador que, a cada aula, experimente estabelecer oportunidades para que o começo do pensar no pensamento, o seu nascimento, aconteça –, ainda que as experiências fracassadas sejam em maior número.
Referências ASMUTH, Christoph. “Começo e forma da Filosofia. Reflexões sobre Fichte, Schelling e Hegel”. In. Revista Filosófica de Coimbra, n.° 13, 1998. BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. (Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Martins Fontes, 2005. DELEUZE, Gilles. Cuatro lecciones sobre Kant. Dictadas entre Marzo y Abril de 1978. Edición electrónica de www.philosophia.cl Escuela de Filosofía, Universidad ARCIS. _____. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Graal, 1988. _____. Crítica e clínica. (Trad. Peter Pál Pelbart.) São Paulo: 34, 1997. _____. L’ABÉCÉDAIRE de Gilles Deleuze. Paris: Éditions Montparnasse, 1997. Entrevista com Gilles Deleuze. Editoração: Brasil, Ministério de Educação, “TV Escola”, 1 videocassete, VHS, cor, 2001. _____. Proust e os signos. (Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003a. _____. Lógica do sentido. (Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes.) São Paulo: Perspectiva, 2003b. _____. A ilha deserta: e outros textos. (Edição preparada por David Lapoujade; organização da edição brasileira e revisão técnica Luiz B. L. Orlandi.) São Paulo: Iluminuras, 2006. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. (Trad. Eloísa Araújo Ribeiro.) São Paulo: Escuta, 1998. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz.) Rio de Janeiro: 34, 1992. DESCARTES, René. Discurso do método; Meditações. In _____. Coleção Os Pensadores. (Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior.) São Paulo: Abril Cultural, 1979. FEUERBACH, Ludwig. Teses provisórias para a reforma da Filosofia. (Trad. Artur Morão), 1988. Disponível em: http://www.lusosofia.net/. Acessado em 03 de setembro de 2011.
64
_____. Princípios da Filosofia do futuro. (Trad. Artur Morão.) Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008. FICHTE. A doutrina da ciência de 1794 e outros escritos. In. Coleção Os Pensadores. (Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho.) São Paulo: Abril Cultural, 1980. KIFFER, Ana. Cartas e corpos, de Antonin Artaud, 2008. Disponível em: <http://www. abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/005/ANA_KIFFER. pdf>. Acessado em 07 de setembro de 2011. HEGEL, G. W. F. Ciência de la lógica (Primeira parte). (Trad. Augusta Mandolfo; Rodolfo Mandolfo.) Buenos Aires: Solar, 1993. _____. Escritos pedagógicos. (Trad. Arsenio Ginzo). México: Fondo de Cultura Econômica, 1991. HEIDEGGER, Martin. Que significa pensar? (Trad. Paulo Rudi Schneider). In SCHNEIDER, Paulo Rudi. O outro pensar: sobre que significa pensar? e a época da imagem do mundo, de Heidegger. Ijuí: Unijuí, 2005. HEUSER, Ester Maria Dreher. Pensar em Deleuze: violência e empirismo no ensino de filosofia. Ijuí: UNIJUÍ, 2010. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. (Trad. Alexandre Morujão.) Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. _____. Crítica da faculdade do juízo. (Trad. Valerio Rohden e António Marques.) Rio de Janeiro: Forense universitária, 1993. LINS, Daniel. Antonin Artaud: o artesão do corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. (Trad. Paulo César de Souza.) São Paulo: Companhia das letras, 2001. PLATÃO. A República. (Trad. Carlos Alberto Nunes.) Belém: EDUFPA, 2000.
65
Procedimentos, em Gilles Deleuze: Proust, Sade, Sacher-Masoch, Klossowski, Kafka e Bacon ausen Feil
Gabriel S
I – SOBRE O CONCEITO DE PROCEDIMENTO Das aparições do conceito75 Em Proust e os signos, Deleuze76 afirma: “esse é o procedimento que garante a pureza do encontro ou do acaso e que recalca a inteligência impedindo-a de vir antes”. Trata-se de uma estratégia literária de Proust, que faz com que os signos se desprendam da significação e que o pensamento não se limite à inteligência. => O signo em função da violência às significações já postas. Em Apresentação de Sacher-Masoch, Deleuze77 apresenta os procedimentos de instituição e aceleração, próprios de Sade, e os procedimentos de denegação e suspensão, próprios de Sacher-Masoch. => Todos tendem a uma mudança de ritmo. No apêndice “Klossowski ou os corpos-linguagens” (em Lógica do sentido), Deleuze78 apresenta o procedimento de dissolução do Eu, de Klossowski. => Trata-se da dissolução de uma das Formas79 mais pretensiosas. 75 Essas aparições não se referem a todas as vezes que Deleuze usa a expressão “procedimento”. Mas se trata de vezes em que faz dessa expressão um conceito, mencionando-o ou, simplesmente, operando-o. O crucial está no fato de estar lidando (de maneira concentrada e dedicada) com o modo de fazer de um escritor e/ou de um artista. 76 DELEUZE, 2003a, p.108. 77 DELEUZE, 1983. 78 Idem, 3003b. 79 Por “Forma”, entendemos tudo aquilo que já tem existência. São os objetos já estabelecidos, já conhecidos; objetos identificáveis. Vale tanto para os objetos físicos como para os objetos mentais: uma ideia é uma Forma também. O critério, para ser Forma, é: já existe? Acontece que o mundo já Formado, jamais deixa de povoar os fluxos das matérias não Formadas (eis aí a positividade dessa perspectiva). Uma Forma é sempre passageira, momentânea, embora, muitas, impõem-se como se fossem fixas.
67
Juntamente com Félix Guattari80, usa o conceito de procedimento em Kafka: por uma literatura menor, afirmando que “somente a expressão nos dá o procedimento”. => Isso mostra que o procedimento está no âmbito do modo de fazer, do modo de mostrar, e não no âmbito daquilo que está sendo mostrado. Ênfase, desde já, na postura e não no conteúdo. Em Francis Bacon: lógica da sensação, Deleuze81 afirma: “o importante é que eles [os procedimentos] não forcem a Figura a se imobilizar; pelo contrário, devem tornar sensível uma espécie de itinerário, de exploração da Figura no lugar, ou em si mesma. É um campo operatório”. => Trata-se dos procedimentos agindo em função da mobilidade; em função do fazer com que algo (no caso a Figura) não seja apreendida pela ilustração ou pela narrativa. Além disso, coloca o procedimento no campo operatório. Em Crítica e Clínica, Deleuze82 mostra, num texto intitulado “Louis Wolfson, ou o procedimento”, como o autor em questão procede para fazer a sua língua mãe variar83. Diante dessas seis aparições, temos os seguintes indicativos (não indicativos lógicos, silogísticos; de qualquer maneira, funcionam nos dando dicas): 1) o procedimento age sobre as coisas já estabelecidas, de modo a testemunhar as suas derrocadas; 2) o procedimento atua de modo a alterar o ritmo normalizado e previamente esperado; 3) o procedimento é, sobretudo, da ordem da expressão; e 4) o procedimento, ao contrário de um manual, de uma cartilha ou de uma receita, empreende variações.
Da preferência pelos autores que criam os seus próprios procedimentos O procedimento é um conceito que funciona, com Deleuze, já na escolha de seus autores preferidos, no sentido de sempre preferir aqueles que inventam os seus próprios procedimentos. Quando, em Apresentação de Sacher-Masoch, Deleuze84 afirma que tanto Sade quanto Sacher-Masoch não funcionam como autores pornográficos e sim como pornólogos, é justamente pelo fato de ambos criarem, em seus textos, modos de proceder 80 81 82 83 84
DELEUZE; GUATTARI, 1977, p.25. DELEUZE, 2007, p.12. DELEUZE, 1997. Neste texto, não iremos apresentar o procedimento de Wolfson. DELEUZE, 1983, p.21.
68
diante de uma Forma consagrada (os valores morais no caso de Sade; os valores paternais no caso de Sacher-Masoch). Parece-nos que, na entrevista intitulada “Mística e masoquismo” (em A ilha deserta), Deleuze85 defende que o que torna o masoquismo e o sadismo interessantes é, justamente, o fato de ambos se constituírem em procedimentos. Deleuze não se interessa pelo masoquista e pelo sádico num sentido clínico (tal como a psicanálise, por exemplo), mas se interessa pelo modo singular que cada um deles procede; pelo modo singular que cada um deles faz para agir contra aquilo que os afligem: os valores religiosos e vitorianos afligindo Sade; a sociedade patriarcal afligindo Sacher-Masoch. Deleuze, enfim, está preocupado com as estratégias que esses escritores criam para ultrapassar as suas aflições. Então: o que a literatura de Sade faz para ultrapassar os valores vitorianos? O que a literatura de Sacher-Masoch faz para suspender a sociedade patriarcal? Em outras palavras: como essas literaturas procedem? Como elas se apropriam de tais aflições e as transformam em matéria de escrita? Quando referimo-nos, anteriormente, à expressão “Forma consagrada”, nossa intenção era a de nos referir, usando a terminologia deleuziana, aos estratos; porém, especificamente aqueles estratos que insistem em perpetuar-se. Deleuze e Guattari, em Mil Platôs,86 afirmam que todo estrato está em processo ininterrupto de desestratificação. Ou seja, segundo eles, não existe estrato estático, sendo por isso que as Formas consagradas são problemáticas: elas contrariam o seu processo, digamos assim, natural de desestratificação. O procedimento, portanto, é justamente a criação de um modo de extrair dessas tais Formas consagradas algo de novo, sob a condição de não simplesmente negá-las. Se esses escritores são os escolhidos de Deleuze, é justamente porque eles não negam as suas aflições; pelo contrário, positivam-nas, de tal modo que impulsionam as suas escritas.
Da organização das indeterminações É fácil considerar que essa perspectiva visa à desorganização (assim como é fácil considerar que o pensamento deleuziano é contra o ponto ou contra os estratos). Porém, o procedimento não funciona, simplesmente, 85 DELEUZE, 2006. 86 DELEUZE; GUATTARI, 1995a; 1995b; 1995c; 1995d; 1995e.
69
desorganizando as Formas; pelo contrário, funciona instituindo uma ordem. O procedimento, aliás, é uma instituição, no sentido de colocar ordem nas indeterminações que nos impulsionam. A questão, a grande questão, é criar uma ordem aos impulsos de tal maneira que esses impulsos não sejam negados, mas afirmados. O procedimento é, primeiramente, uma maneira de ocupar o vazio provocado pelas Formas doentes; depois, é uma maneira de recuperar o vazio. Em suma, o procedimento é uma maneira de preencher o vazio sem se desfazer dele.
Dos libertinos Um exemplo de procedimento que institui uma ordem é o Procedimento Libertino: o libertino é um decorador, um diretor de teatro87. A sua questão não está tanto no o que ele diz, mas no modo em que dirige a sua vida cotidiana e a dos demais envolvidos. De modo que, para identificar um libertino, basta identificar quem é que detém a direção da cena. Como um diretor, o libertino cumpre todo um protocolo, tomando o cuidado de fazer acontecer o prazer ordenado. Um libertino é valorizado por sua engenhosidade e por sua intelectualidade, e jamais por deixar tudo acontecer. Então, se ele é um criador de procedimento não é, simplesmente, porque perverte os manuais de conduta, mas é porque não faz isso sem instituir um novo modo de proceder. Ou seja, o libertino recebe esse nome não porque é adepto da liberdade ou da bagunça, mas porque é adepto da liberdade de criar novas ordenações. Nesse sentido, o procedimento nada tem contra as ordens, mas apenas contra aquelas não foram criadas precisamente por aquele que as cumprem. Os libertinos têm um código. Por exemplo, as classes que distinguem a função dos libertinos da função das vítimas, em Os 120 dias de Sodoma88, nada são senão um código. Entretanto, esse código não tem referência às classes morais ou sociais, mas às classes que se definem no interior da Sociedade Libertina. (Essas classes valem apenas no âmbito de sua própria escritura!)
87 Cf. BARTHES, 2005. 88 SADE, 2006.
70
Do inesperado no procedimento O procedimento, entretanto, não alcança o seu clímax devido ao seu empreendimento racional: somente o inesperado pode fazê-lo. Podemos criar as condições para que o procedimento efetue-se, porém, jamais podemos controlar o inesperado. É que o procedimento não funciona como uma teoria, mas como um problema de vida; e como tal, corre todos os riscos: possibilidade de sofrimento, de crises etc. Da imitação do procedimento Retomemos o seguinte fragmento: “somente a expressão nos dá o procedimento”89. Afirmamos que um procedimento pode ser sempre imitado sem correr qualquer risco de ser reproduzido, copiado. Podemos imitar os procedimentos de Deleuze sem corrermos o risco de fazermos como ele, igual a ele. Pois, conforme Deleuze e Guattari90, a expressão puxa o conteúdo; de tal maneira que não existe a possibilidade de mudarmos a expressão sem transformarmos, ao mesmo tempo, o conteúdo. Temos, portanto, duas maneiras de trair91 um procedimento: imitando o seu conteúdo, expressando-o de outro modo; e (se acreditarmos que o conteúdo também possa puxar a expressão) imitando a sua expressão, apropriando-se de outro conteúdo. A fim de exemplificação: o conteúdo de um procedimento pode não cessar de tomar partido contra Sade, mas a expressão desse procedimento pode jamais fazer isso: embora o conteúdo libertino de Sade possa estar sendo questionado, o tom da escrita pode ser, ainda assim, libertino. Ou seja, suspende-se no conteúdo enquanto se imita na expressão, num possível efeito dissimulador (exemplo da segunda maneira). Por outro lado, o conteúdo de um procedimento pode imitar o conteúdo libertino de Sade, enquanto que a forma de escrita, em vez de ser sadeana, pode ser acadêmica, por exemplo. E aí temos a forma de expressão sadeana sendo suspensa, enquanto que o conteúdo do escritor sendo imitado (exemplo da primeira maneira).
89 DELEUZE, 1977, p.25. 90 DELEUZE; GUATTARI, 1977. 91 A expressão “trair”, em Deleuze, assume a consistência de um conceito. Trair um procedimento seria o ato de se servir dele ao modo de quem se serve de um trampolim.
71
II – RELAÇÕES ENTRE PROCEDIMENTO E DESMONTAGEM E TRANSGRESSÃO
Da desmontagem Tratando-se do conceito de procedimento, em Deleuze, não é necessário dizer: “procedimento de desmontagem”, pois o conceito de procedimento envolve, necessariamente, a desmontagem. O procedimento dizendo respeito sempre a um processo de desmontagem de uma Forma (das significações em Proust, dos valores morais e religiosos em Sade, da função paterna em Sacher-Masoch, da identidade pessoal em Klossowski, dos processos econômicos e sociais em Kafka, da língua mãe em Wolfson, das ilustrações e figurações em Bacon). O procedimento entendido como uma estratégia de guerra, que age a partir da desmontagem de uma Forma consagrada. Entretanto, não se trata de uma tarefa crítica (no sentido dialético do termo), mas de uma tarefa que implica a invenção de modos consistentes de fazer os objetos variarem. Em última instância, trata-se de um mecanismo que faz funcionar algo que já não funcionava mais, que se encontrava estacionado: os valores morais, por exemplo, já não funcionavam para escrita de Sade; era preciso atacá-los, dissimulá-los, para que se tornassem potentes em termos de matéria de escrita. O procedimento, portanto, não funciona como um protocolo; pelo contrário, é a via alternativa em relação ao manual de conduta ou ao manual de comportamento. O procedimento tem aversão a tudo aquilo que dá a entender que as coisas (incluindo os humanos) são sempre iguais. Nesse sentido, se o procedimento teima, por exemplo, com as religiões, é precisamente porque elas nos penalizam se por acaso desejarmos não permanecer os mesmos. Da positivação do ponto Quando Deleuze e Guattari92, no platô “Três Novelas ou ‘O que se passou?’” (em Mil Platôs, volume 3), falam do conceito de ponto, pode parecer que eles o situam em oposição a tudo o que eles desejam: a invenção, o novo, a fuga etc. Afinal, o ponto é aquilo que já é Formado, aquilo que 92 DELEUZE; GUATTARI, 1995c.
72
pode ser facilmente localizado e identificado (o ponto pode, inclusive, ser concebido como sinônimo daquilo que viemos chamando de Forma; porém, fazendo parte de outro desenho: o da teoria das linhas). De qualquer maneira, a noção de procedimento, ligada à desmontagem, acaba por mostrar que Deleuze e Guattari nada têm contra o ponto. Pois o procedimento somente inicia com um ponto sendo colocado em tona: uma vez em tona, inicia-se o procedimento, que é justamente a desmontagem desse ponto. Eis a importância da transgressão!
Da transgressão O procedimento não acontece se não houver uma Forma (quanto mais consagrada melhor); e é por isso que a transgressão é uma condição do procedimento. Ora, a Forma pela Forma segue invicta. O procedimento surge, exatamente, para fazer com que essa seja transgredida. Entretanto, a transgressão diz respeito a um processo de insistência, nunca de abandono, de modo que ninguém transgride saindo fora. O transgressor, definitivamente, não é o rebelde sem causa. Para transgredir, é necessário insistir com as Formas que nos aborrecem, na expectativa de que essas Formas sejam desmontadas. Kafka se aborrecia com toda aquela situação. Negou-a? Ignorou-a? Pelo contrário, usou-a como matéria de escrita. Das definições Conceitos operados nos procedimentos que se seguirão: => Denegação: é uma negação positiva. Na ansiedade por conquistar o novo, o negador sai logo destruindo o velho. Mesmo dando um passo à frente em relação aquele que simplesmente aceita o velho, permanece na tarefa crítica (aquela que somente afirma se antes negar). A denegação se torna positiva porque ao invés de destruir o velho, suspende-o. => Dissimulação: é um fazer testemunhal da não coincidência e da incoerência entre os termos envolvidos. Trata-se de não exigir, por exemplo, que corpo e linguagem concordem entre si. => Pantomima: é justamente a testemunha de que o corpo (intuitivo) não concorda com a linguagem (racional). Ou: a pantomima é um exemplo de dissimulação. => Perversão: acontece quando as Formas deixam de ser aquilo que eram. 73
=> Suspensão: é tudo aquilo que antecede e que é posterior a uma Forma. É uma promessa de Forma ou, na maioria dos casos, um informe eterno. Ou: quando não estamos no âmbito do Ser. => Hesitação: é o que fica acontecendo no estado suspenso: as matérias ficam hesitando em Ser ou não.
III – PROCEDIMENTOS93
Do procedimento de produção de signos/violência (Proust) => O que aflige Proust? A infância significada (no sentido de que é preciso reinventar a infância para que essa se torne matéria de escrita). => Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela. => Uma vez apropriando-se, como procede? (1) Considera a memória que guarda sobre a sua infância; (2) Escolhe um pequeno detalhe, um pormenor: a lembrança da degustação de um bolinho mergulhado numa xícara de chá94; (3) Dispara a sua escrita a partir da violência provocada pela sensação de tal degustação; (4) Reinventa a sua infância. => Para Deleuze95, Proust mostra que “aprender diz respeito essencialmente aos signos. (...) Aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados”. Isso significa que existem signos quando se passa a considerar algo que, até então, não podia ser apreendido. Proust passa a considerar um pormenor que não podia ser considerado antes, simplesmente porque ainda não existia. Esse pormenor, então, funciona como signo. => O signo, ao contrário do significado, é vazio de sentido. Ele passa a ser preenchido apenas a partir do momento da decifração. => Precisamos de signos que nos violentem, tais como a sensação provocada pela degustação de um simples bolinho mergulhado numa xícara de chá. A violência dos signos nos força a procurar; retira-nos dos passageiros estados de estabilidade. A aprendizagem, assim, não implica a 93 Não temos a pretensão de defender esses procedimentos como sendo os únicos apresentados por Deleuze. Aliás, poderíamos explorar o fato de Deleuze não apenas apresentar procedimentos de seus escritores e artistas preferidos, como também ele próprio elaborar os seus. Poderíamos mencionar, por exemplo, os procedimentos de traição e de roubo. 94 PROUST, 1967. 95 DELEUZE, 2003a, p.4.
74
verdade, nem a afinidade de interesses e muito menos a boa vontade contemplativa. O signo nos trai por violência involuntária. => Daí a ideia de que a infância, de Em busca do tempo perdido96, nada tem a ver com acerto de contas com o passado. A grande graça está no fazer da infância uma estratégia de coação do pensamento (no sentido de instigação do pensamento à criação). A obra de Proust, especialmente essa, testemunha isto: a questão nunca foi a de narrar a infância, mas sempre foi a de, com a infância, descobrir o que não se sabia antes dos encontros proporcionados. => “É preciso sentir o efeito violento de um signo, e que o pensamento seja como que forçado a procurar o sentido do signo”97. O pensamento, nesse sentido, deixa de ser uma dádiva do interior, uma dádiva introspectiva: somente funciona se for forçada a funcionar. => Para Deleuze98, não se aprende, portanto, “pela assimilação de conteúdos objetivos”. Não se trata de ter acesso a certo objeto e, uma vez tendo esse acesso, passar a dominá-lo a parir de pontos de referências elencados pela inteligência. Nunca se aprende um objeto, mas sempre se aprende com o objeto, esse funcionando como signo de uma aprendizagem. Um pesquisador, que escreve aquilo que Kant diz, não está estabelecendo uma relação de semelhança com esse autor, mas está fazendo de Kant um signo do seu próprio aprendizado, como Proust faz da sua infância um signo de sua própria escrita. Nesse sentido, a aprendizagem implica um servir-se dos seres: “aprendemos a nos servir dos seres: frívolos ou cruéis, eles ‘posaram diante de nós’, eles nada mais são do que a encarnação de temas que os ultrapassam, ou pedaços de uma divindade que nada mais pode contra nós”99. => A principal contribuição de Proust e os signos100, para o conceito de procedimento, está no argumento de que a grande graça não está no pensamento, na entidade, mas está naquilo que dá o que pensar, está no signo de pensamento. Está, em outras palavras, naquilo que faz a Forma dissolver-se, transmutar-se. É preciso aprender que o essencial está fora do pensamento; o essencial está naquilo que força a pensar, que desmonta 96 PROUST, 1967. 97 DELEUZE, 2003a, p.22. 98 Idem, p.21. 99 DELEUZE, 2003a, p.22. 100 Idem, p.89.
75
o pensamento. Esse, paradoxalmente, funciona a partir da sua desarticulação. É por isso que o pensar, em Deleuze, não é para qualquer um; é por isso que ele não é da ordem do ordinário e do representativo. Aprendemos com um objeto quando ele força o nosso olhar, o nosso ouvir, o nosso interpretar.
Do procedimento de instituição e aceleração (Sade) => O que aflige Sade? Os valores morais e religiosos. => Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela. => Uma vez apropriando-se, como procede? (1) Concebe os valores morais e religiosos como pertencentes a uma natureza segunda (natureza grosseira, ordinária, humana); (2) Institui uma sociedade de libertinos, regida por um modelo de ação livre; (3) Debocha da natureza segunda; mostra o quão ridículo são os preconceitos; mostra que há valores por toda parte, mas que a verdadeira natureza está acima deles; defende que toda lei humana contraria a verdadeira natureza e que, por isso, só merece desprezo; (4) De imediato, institui a verdadeira natureza (natureza primeira); pressupõe que as suas vítimas nada sabem sobre ela, limitando-se apenas à outra; (5) Nega e destrói a natureza segunda a partir da violência, da perversão dos valores; considera que a sua vítima deve destruir a segunda natureza para transcender à primeira (livre dos valores, em revolução permanente); considera a destruição uma das primeiras leis da natureza, e que, por isso, deve ser concebida não como uma prática criminosa, mas como uma necessidade natural; (6) Mostra, exibe os seus atos de perversão, porque acredita que uma dor “provocada na natureza segunda, poderia de direito se repercutir e se reproduzir ao infinito na natureza primeira”101; (7) Sente prazer na demonstração; por isso, repete as suas cenas de forma exaustiva; (8) Acelera; opera a cena num ritmo absurdo (comparado ao dito normal), fazendo da aceleração um procedimento que “se faz pela multiplicação das vítimas e das suas dores”102. Do procedimento de denegação e suspensão (Sacher-Masoch) => O que aflige Sacher-Masoch? A sociedade patriarcal. => Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela. 101 DELEUZE, 1983, p.31. 102 Ibidem.
76
=> Uma vez apropriando-se, como procede? (1) Concebe as funções familiares, sobretudo, a função paterna e a conjugalidade, como sendo criações do homem, incluindo a função da mulher; (2) Escolhe uma mulher para casar-se; convence-a a assinar um contrato que a obriga a fazê-lo seu escravo; (3) Passa a educá-la; convence-a a agir, para com ele, com frieza e crueldade; (4) Faz de tudo para que ela cumpra o contrato assinado; (5) Faz dessa uma mulher livre de sua função estabelecida pela sociedade patriarcal (afinal, a função dita normal da mulher não implica o fato de ela ter que espancar o seu marido); (6) Transforma essa mulher numa mulher Ideal, de modo que se apaixona por ela; (7) Aproveita-se do fato, de ela ter sido educada para ser fria a cruel, para não ter a menor chance de ter o acesso que, tradicionalmente, o marido tem em relação à sua mulher; (8) Passa a sofrer (o contrato inclui uma cláusula que deixa claro que se trata de um dever da mulher-carrasco se dar a outros homens); (9) Empreende “a arte do suspense”103, pois a dor do sofrimento é apenas uma condição para que o prazer seja retardado ao máximo; (10) Apesar do sofrimento, passa a ver a possibilidade de também transformar a sua função; (11) Uma vez livre da lógica da função patriarcal, renasce. => A mulher Ideal precisa ser fria para preservar a sua sentimentalidade supra-sensual, entendida como o estado de uma sensualidade transmutada (sensual sem ser codificada sexualmente). É por isso que a mulher-carrasco de Sacher-Masoch é envolvida de gelo e protegida pelas peles: é no frio que a sua sentimentalidade supra-sensual é conservada. => Entretanto, esse estado de gelo é apenas um tipo Ideal. A carrasca flutua entre, pelo menos, outros dois tipos. O primeiro é o da mulher pagã, a qual reclama para si a independência da mulher e a brevidade das relações amorosas; denuncia o casamento, a moral e as instituições como sendo invenções do homem a serem destruídas. No outro extremo, o terceiro tipo é o da mulher edipiana: casada, age compelida por um homem. Ambas não satisfazem Sacher-Masoch. A Ideal se movimenta e se suspende entre os dois: ora ela se torna edipiana, ora sádica e por vezes Ideal: “é ela... Vênus, mas sem as peles... Não desta vez é a viúva... E, no entanto, é Vênus... Oh! que mulher”104. Ora sente prazer no jogo, ora sente-se envergonhada por participar dele: variação, efeitos da educação. 103 Idem, p.38. 104 SACHER-MASOCH, 1983, p.165.
77
=> Percebemos que no procedimento masoquista, a exemplo do sádico, há duas naturezas distintas. A mulher Ideal se encontra suspensa na natureza primeira, neutra em relação a sentimentos tais como o amor (sentimentos banais, codificados pela função paterna, pertencentes à segunda natureza, a grosseira). Somente fazendo com que a sua educanda aja com tal frieza, é que o masoquista pode transcender essa natureza segunda, a qual, em Sacher-Masoch, é a natureza da sentimentalidade sensual, criada pelos homens. A mulher Ideal, glacial, recobre esse mundo, mostrando que o homem só tem mesmo uma natureza grosseira, e que ela, a mulher, torna-se fria diante dessa grosseria. O gelo (a frieza) da mulher Ideal, então, conserva a sentimentalidade supra-sensual, fazendo dessa sentimentalidade o objeto do renascimento do homem, e da crueldade o castigo merecido pela grosseria masculina. Nessa fria aliança – “Vênus tem que se esconder numa boa pele se não quiser se resfriar”105 –, a sentimentalidade e a crueldade feminina fazem o homem se tornar um novo homem, constituindo-se no Ideal masoquista, o qual não permite que o masoquista se entregue à relação com amor, sentimento quente, mas exige que se conserve frio, supra-sensual. => Deleuze, em Apresentação de Sacher-Masoch, apresenta uma série de vantagens desse procedimento sobre o de Sade: (1) Professor X Educador: apesar de Sade, por vezes, usar a atmosfera professoral, o verdadeiro educador, para Deleuze, é Sacher-Masoch. Conforme Corazza106, é o masoquista que “deve atuar, levando a educanda [a mulher escolhida] a engajar-se em seu papel que ela não sabe”. Segue o raciocínio: “a sua tarefa consiste em ‘formar’ a natureza da educanda, em ‘educá-la, persuadi-la’, de acordo com um projeto determinado”. Apesar do teor do contrato, o masoquista, portanto, é escravo somente em aparência, visto que é ele quem convence a mulher a se tornar uma carrasca. Em princípio, Wanda, em A Vênus das peles107, não quer aceitar o convite, dizendo: “o senhor está se tornando cada vez mais inconveniente!”108; “acha-me capaz de maltratar um homem que me ama e a quem também eu amo?”109. A carrasca somente se torna uma carrasca por ser persuadida a assinar o contrato, “de modo a parecer que é 105 Idem, p.155 106 CORAZZA, 2006, p.37. 107 SACHER-MASOCH, 1983. 108 Idem, p.176. 109 Idem, p.183.
78
ela quem educa o educador, embora seja este quem a forma”110. Mais tarde, Wanda começa a suspeitar do estranho projeto de Severino, dizendo: “em minha opinião, você é um grande corruptor de mulheres”111. O masoquista, portanto, encontra-se preso somente pelo contrato, contrato elaborado por ele mesmo. E se Wanda começa a ter prazer nisso tudo, é por força da educação do masoquista. O sucesso do projeto, portanto, depende da capacidade do masoquista de fazer da mulher uma carrasca fria e severa: fria o suficiente para não se deixar condicionar pelos sentimentos do homem; severa o suficiente para fazer o contrato cumprir-se; (2) Possessão X Pacto: se a possessão é a peculiaridade própria do sadismo, a aliança, o pacto, é a do masoquismo. Nesse, não há submissão que não esteja pressuposta propositadamente no pacto, não sendo correto dizer que se no sadismo há a submissão do aluno, no masoquismo há a do educador. Se Sacher-Masoch é essencialmente educador, é porque faz parte de seu projeto formar a sua educanda, correndo, inclusive, “os riscos inerentes à tarefa pedagógica”112; ou seja, correndo o risco de fracassar. Fracasso que se torna inevitável se a educanda não for suficientemente educada para funcionar cruelmente. No caso de êxito, ambos os envolvidos no projeto são heróis, não havendo lugar para vítimas. No projeto sádico, diferentemente, o aluno se mostra submisso, e somente alcança o objetivo colocado pelo professor se for obediente, visto que o objetivo é alcançado se o aluno for capaz de fazer como o mestre. Saint-Ange, em A Filosofia na alcova, diz de um aluno de libertinagem: “acreditais que há seis meses tento educar esse porcalhão e não consigo?”113. Diz isso despreocupadamente, pois o fracasso, no sadismo, não implica em nada ao professor; (3) Instituição x Reflexão: tanto as cenas descritas por Sade quanto às descritas por Sacher-Masoch, desdobram-se em um ou em vários espelhos. Entretanto, em Sade, o espelho funciona multiplicando os atos, a fim de melhor demonstrá-los, exibi-los. Em Sacher-Masoch, a função do espelho é mais complexa: o que o espelho reflete já é outra coisa, e aquilo que ali estava antes de ser refletido não é negado, mas é suspenso. Essa diferença se justifica pela diferença de estratégia de ultrapassagem à primeira natureza. A estratégia de Sade é fazer instituir, a 110 CORAZZA, 2006, p.40. 111 SACHER-MASOCH, 1983, p.189. 112 DELEUZE, 1983, p.24. 113 SADE, 1999, p.95.
79
de Sacher-Masoch é fazer refletir. A primeira se faz pela exibição, pela demonstração, pela multiplicação das dores (o libertino não é envolvido num renascimento); a segunda se faz pelo desdobramento daquilo que se é, em função de um novo nascimento; (4) Negação x Denegação: na ultrapassagem de uma natureza para a outra, Sade deixa um rastro negativo: a segunda natureza não é ultrapassada sem antes ser negada, via demonstração do quanto os atos perversos são superiores, via exibicionismo do libertino, via linguagem obscena como forma de gozar da ingenuidade daqueles que vivem regidos pela natureza falsa. O prazer do sádico, em suma, encontra-se na negação dos valores morais, na destruição da segunda natureza114. O sádico peca por excesso de velocidade, por precipitação exagerada: ao perverter os valores, institui a sociedade de libertinos que ele mesmo já havia instituído antes mesmo da perversão. No processo de ultrapassagem, Sacher-Masoch, ao invés de negar a natureza grosseira, denega-a, suspende-a. E é nessa denegação que ele atinge o prazer. Ou seja, apesar de também haver, em Sacher-Masoch, a distinção de duas naturezas, uma não nega a outra, mas apenas diferenciam-se: enquanto uma se encontra Formada, a outra se encontra suspensa. Conforme já dissemos, o prazer não se encontra na dor, como muito se pensa, mas na denegação: “o masoquista é moroso”, diz Deleuze115, de modo que retarda o prazer. Sofre (sente-se revoltado, envergonhado, aniquilado), primeiramente, com o fato de estar sendo dominado por uma mulher (não podemos esquecer do detalhe de que, enquanto não acontece o novo nascimento, o masoquista ainda é um homem grosseiro e preconceituoso), depois com a possibilidade de ser traído por ela (cláusula contratual: “ela pode, se quiser”), vivendo essa espera como forma de retardar, ao máximo, o seu prazer. Uma espera, diz Corazza, “que se desdobra em dois fluxos simultâneos – um que tarda essencialmente, o do prazer; e o outro, enquanto condição que possibilita aquele, que se espera e supõe, isto é, o da dor”116. A espera masoquista não acontece tranquilamente, pelo contrário, somente acontece porque há uma ameaça: a chegada 114 O fato de o procedimento de Sade não ultrapassar a segunda natureza sem antes negar a primeira, não pode ser confundido com a característica que amarra todos os procedimentos apresentados neste texto, que diz respeito ao lidar com as Formas em vez de ignorá-las. Sade não ignora a segunda natureza, o que ele faz é lidar com ela de uma maneira, segundo Deleuze (1983), negativa. 115 DELEUZE, 1983, p.77. 116 CORAZZA, 2006, p.38.
80
do terceiro, chamado de o Grego por Sacher-Masoch. “É ele quem auxilia o educador a recuar o primeiro fluxo [o do prazer], que deve tardar, pelo tempo necessário, para que o segundo fluxo esperado e suposto [o da dor] o torne permitido”117. De que tipo é esse prazer? De que tipo é essa dor? Prazer de se tornar um novo homem; dor pelo sofrimento causado pela cláusula que pressupõe a traição, a chegada do Grego. Sem a dor e o sofrimento não há a denegação daquilo que se é; sem a chegada efetiva do Grego não há o prazer em ser pervertido. Ainda que o prazer do sádico também se encontre numa superação daquilo que se é na sociedade dita normal, o sádico se mostra excessivamente rápido, instituindo uma sociedade que se baseia na negação da pretensiosa normalidade; o masoquista, por sua vez, abre-se para um mundo desconhecido, onde os julgamentos de antes já não fazem sentido; (5) Impiedade X Frieza: a frieza sádica se exerce essencialmente contra os sentimentos, os quais são denunciados como provocadores de dispersão de energia impessoal demonstrativa, e condenados por nos limitarem à natureza segunda. A frieza sádica, portanto, diz respeito à impiedade diante dos fracos. Já a frieza do Ideal masoquista trata de sentimentos suspensos, fora dos sentimentos ordinários reconhecidos por Sade. Esta é a função da frieza masoquista: fazer suspender a sentimentalidade no gelo, onde os sentimentos deixam de existir como sentimentos. O que subsiste no frio? Somente a sentimentalidade supra-sensual, envolvida de gelo e protegida pelas peles. O frio “protege a sentimentalidade supra-sensual como via interior, e a exprime como ordem exterior, como Cólera e Severidade”118. O ódio da mulher Ideal é contra o sentimento comum que a afronta, de modo que, frente a ele, mantém-se fria, indiferente; (6) Pai X Mãe: mesmo que nos romances de Sade as heroínas também exerçam importantes papéis, o fundo masculino é dominante, mesmo porque as heroínas agem sempre junto aos homens, inclusive tendo que imitá-los, e seus atos são a eles dedicados. Ao contrário do que acontece nos romances de Sacher-Masoch, a mãe é identificada com a segunda natureza, e o pai testemunha a primeira, acima das leis, dissolvendo a família. A mãe, então, funciona como defensora dos valores morais e da imagem edipiana, enquanto a filha é promovida à cúmplice incestuosa: em parceria com o pai, contra a mãe, contra a segunda natureza. Eugénie, em A filosofia na alcova, chega a 117 Ibidem. 118 DELEUZE, 1983, p.57.
81
desejar a morte de sua mãe, devido à função castradora exercida por essa119. Os pais são libertinos enquanto as mães são ciumentas e, por isso, são elas que ameaçam o suposto livre agir dos homens. O sadismo, portanto, apresenta uma negação da mãe, e uma super valorização do pai120. O inverso é o que acontece no procedimento masoquista, no qual o pai é o excluído, anulado, visto que, uma vez refletido na mulher Ideal, perde o seu papel. A mãe, apesar de não funcionar, exatamente, como um termo de identificação com a natureza primeira, funciona como condição através da qual o masoquista exprime-se. Quando o masoquista faz com que o espanquem, o que ele está surrando, humilhando e ridicularizando, é a imagem do pai (patriarca), de modo que se torna livre através de um novo nascimento em que o pai já não tem nenhum papel. E se o masoquista chama o Terceiro, o Grego, não é, certamente, para gerar uma volta da função patriarca (mesmo correndo esse risco), pois essa, por princípio, não implica dois homens (a presença de um segundo homem dissolve, no mesmo instante, a função exercida por um homem numa relação dita normal); além disso, o Grego, por contrato, é um incentivador do ato, o qual deve resultar no surgimento de um novo homem. Esse segundo nascimento independe não apenas do pai, mas da mãe uterina também, já que essa se dissolve com a supressão da função patriarca. A mãe uterina é a mãe edipiana, já integrada a um sistema patriarcal, seja como vítima, seja como cúmplice. O homem do novo nascimento somente existe renascendo da carrasca, desdobrado por essa. Se Severino fosse um simples marido, ou seja, se ele não conseguisse convencer Wanda de sua posição de escravo, não se desdobraria, e assumiria a reconhecida condição de homem sexual. => Observação: nas obras de Sacher-Masoch há, certamente, heróis masculinos; porém, os dois grandes personagens se apresentam sob o signo de Caim e de Cristo. Caim, o preferido da mãe, comete o crime para, justamente, romper a aliança com o pai: ele mata Abel, o preferido do pai, o responsável por difundir a ordem patriarcal. Se o crime de Caim, então, pertence inteiramente ao mundo masoquista, é porque o seu projeto se inspira na opção pela mãe em detrimento ao pai. => Outra observação: o projeto de Caim permanece insuficiente, pois o pai retorna e pune Caim. É necessário um segundo episódio: Cristo. 119 SADE, 1999. 120 DELEUZE, 1983, p.64; p.65.
82
Novamente é a mãe que põe o filho na cruz; porém, nesse segundo episódio, ela assegura ao filho uma ressurreição como segundo nascimento livre da tradição patriarcal. Dois episódios, dois movimentos: sofrimento de Caim (condição que se espera e se supõe), renascimento de Cristo (prazer que se tarda). Caim faz o que faz pressupondo o seu sofrimento, esperando pela dor. Não há dúvida de que romper com aquilo que se é é doloroso, mas Cristo ressuscita como um novo homem, agora suspenso no gelo. => Nota: para o pensamento deleuziano, o encontro entre um sádico e um masoquista é impossível: não haveria prazer no sádico se seus crimes não causassem lágrimas, e não haveria prazer no masoquista se o seu projeto não envolvesse uma carrasca Ideal, educada por ele mesmo. => O escândalo provocado pelo masoquismo está no fato do masoquista destruir a si mesmo. Em outros termos, a Forma a ser pervertida está no próprio criador do procedimento: o masoquista. Trata-se de planejar a perversão de si mesmo. Os críticos, segundo Deleuze121, em Apresentação de Sacher-Masoch, não encontram sentidos porque somente são capazes de enxergar um aspecto negativo na perversão, não sendo capazes de imaginar, sob um aspecto positivo, que essa possa produzir algo novo.
Do procedimento de dissolução do Eu (Klossowski) => O que aflige Kossowski? As determinações; sobretudo, a determinação pessoal (o Eu). => Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela. => Uma vez apropriando-se, como procede? (1) Acredita que a grande pornografia esteja na dissolução da identidade pessoal; (2) Elabora um personagem (Octave) que deseja experimentar a sua esposa (Roberte) em “estado” de indeterminação; (3) Esse personagem instaura a lei da hospitalidade, cujo conteúdo comporta o oferecimento de sua esposa, Roberte, a todos os seus hóspedes;122 (4) Transforma-se em voyeur; (5) Assim, multiplica a essência de Roberte (entendida como as infinitas forças que compõem aquela composição que, por comodidade, chamamos por um nome próprio), para conhecê-la cada vez mais (quantitativamente) e melhor (qualitativamente), seguramente bem mais e bem melhor do que se a guardasse simplificada para ele mesmo, a conhecendo de um só modo, e de 121 Idem. 122 KLOSSOWSKI, 2001b.
83
um modo muito triste, visto que quando se tem apenas um, esse tende a ter que suprir determinadas expectativas; (6) Joga Roberte para a indeterminação, visto que já não pode reconhecê-la. => Octave sabe que somente se possui bem aquilo que já é possuído pelos espíritos (entendidos como as entidades desprovidas de Formas), aquilo que já não tem determinação, aquilo que é expropriado, posto fora de si, desdobrado. Uma vez Roberte posta para fora de si, Octave encontra, enfim, uma esposa totalmente desvinculada daquela referida Forma triste. => O projeto implica, mas não projeta a infidelidade da esposa; o que ele projeta é a dissimulação da identidade pessoal. Toda a obra de Klossowski tende para a dissolução das determinações, sobretudo da identidade pessoal, a mais pretensiosa das Formas. Dissolução não somente da identidade de quem é desdobrada, no caso Roberte, mas também daquele que a concebe, no caso Octave: ambos se põem para fora de si mesmos, visto que agora há mil Robertes para refletir Octaves. Isso porque a função desse não se limita a de planejar o projeto, mas se estende a de voyeur; ou seja, além de oferecer a sua própria esposa aos hóspedes, Octave ainda se posiciona num lugar neutro para ver, sem ser visto, a sua mulher em ação. => A dissolução do Eu, em Klossowski, deixa de ser uma negatividade, uma perda, para ser a mais alta afirmação de uma potência positiva. => Há, nesse autor, uma teologia: a teologia entendida como a ciência das entidades não existentes. Nesse sentido, a multiplicação de Roberte é teológica porque essa é ofertada aos espíritos. Esse é um aspecto, mas ainda há outro. Além de teológicos, os projetos de Klossowski são também pornográficos, o que faz da sua teologia uma teologia peculiar, completamente desvirtuada da tradicional. Segundo Deleuze,123 a construção de personalidades pertence à ordem de Deus, a qual é inimiga da ordem dos espíritos, pois Deus quer conservar as personalidades, sobrepô-las a eles. A ordem de Deus é a ordem das identidades, dos Eus e de tudo aquilo que concentra forças ao ponto de enfraquecê-las para torná-las reconhecíveis. Deus abocanha os outros deuses, mais conhecidos como demônios (ou espíritos indeterminados), para julgá-los ao seu gosto. Deleuze124 faz a seguinte
123 DELEUZE, 2003b, p.300. 124 Idem, p.301; p.302.
84
leitura de Baphomet125: a ordem de Deus faz a triagem dos sopros126, seleciona-os e, por fim, impede os selecionados de se misturarem com os não estriados, com os sopros estranhos, os quais passam a ser evitados: sopros considerados maus, não desejáveis. Acontece que os espíritos têm má vontade em relação a essa tarefa desagradável. Essa má vontade é óbvia, visto que os sopros se misturam naturalmente. Então é também óbvio que, por vezes, apareça um espírito que, embora tenha sido selecionado, rebele-se e se revolte contra essa ordem absurda. O rebelde não deixa esquecer que os selecionados continuam sendo sopros, e isso faz implodir a ordem de Deus. A ordem da perversidade implode a de Deus, e isso não é tão difícil de acontecer, visto que esta é somente uma derivada daquela. A diferença entre as ordens, portanto, não é a de um bom Deus de um lado e de espíritos maus de outro, um alto e um baixo mundo, pois só o que há são espíritos maus, e no alto mundo o que há são espíritos ainda maus, porém, catalogados. Espíritos maus que violentam, entram vários no mesmo corpo ou um só possui vários: orgia (não sabemos onde começa um corpo e termina outro). Teologia, portanto, porque o que interessa são os espíritos, entidades irredutíveis às determinações; pornografia porque, diante das eventuais determinações, somente o que pode acontecer é o rompimento dessa ordem. E se há uma ordem anti, essa é a de Deus; e se há um primado, esse é dos sopros. => Há dois termos complementares nesse raciocínio: a disjunção e os puros sopros. O primeiro termo diz respeito ao desdobramento de Roberte, em que há uma disjunção entre aquilo que ela era e reconhecia-se, e aquilo que ela torna-se. O segundo termo diz respeito à nova ordem em que Roberte é lançada, cuja principal peculiaridade é a de fazer diluir todas as Formas. Um termo sem o outro permanece na negatividade, e por isso precisam estar em pressuposição. O primeiro, funcionando sozinho, funciona como uma disjunção negativa, visto que aquilo que não ganha realidade acaba excluído. Ou seja, aquelas virtualidades de esposas que não são vistas por Octaves, são excluídas, como se Octave fosse um Deus capaz de delegar existências. Porém, com o segundo termo pressuposto, a disjunção se torna positiva, pois, ao invés de a disjunção indicar que 125 Trata-se do título de uma obra de Klossowski. Não tivemos acesso a ela. 126 Podemos (numa tentativa que implica perdas e ganhos conotativos) dizer que os sopros, nesta perspectiva, têm a ver com movimentos instintivos e caóticos, desprovidos de codificações, significações e subjetivações.
85
algumas forças são excluídas em virtude de algo a formar-se, indica que cada força se abre ao infinito, com a condição de perder a sua identidade ou a sua Forma. A disjunção continua sendo uma disjunção, mesmo quando algo Forma-se, e a divergência se torna a condição para as Formações, e não uma derivada dessas. Como condição, a disjunção alcança um nível superior: o dos puros sopros. => Conforme Deleuze127, portanto, não foi apenas Sade que havia permanecido na negatividade, mas também Klossowski, até chegar aos puros sopros, ao segundo termo. => O principal objetivo de Klossowski, com a invenção de seus personagens Roberte e Octave128, ou Roberte e Théodore129, é justamente a conservação da suspensão: o marido faz o que faz com Roberte com o intuito de mantê-la sempre suspensa, para que ela possa vir a se tornar qualquer coisa, independentemente de uma personalidade. Ora, nada há de perverso em negar aquilo que nos parece Formado. Caso contrário, poderíamos permanecer no leão, sem nunca experimentarmos a criança (para usarmos a imagem nietzschiana); é por isso que, no procedimento de Klossowski, a questão é, em vez de negar, retardar as determinações: quanto mais hesitarmos para determinar Formas, tanto melhor. (Nesse ponto, Klossowski se aproxima mais de Sacher-Masoch do que de Sade.)
Do procedimento de substituição e despersonalização (Kafka)130 => O que aflige Kafka? A família e a relação conjugal. => Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela. => Uma vez apropriando-se, como procede? (1) Convence Felícia a escrever pelos menos duas cartas destinadas a ele por dia; (2) Pelo fluxo contínuo de cartas, consegue evitar a aproximação pessoal, a qual poderia desencadear a relação conjugal entre eles; (3) Impede que as relações estabelecidas da família e da conjugalidade se instalem em sua vida; (4) Assim, substitui o tradicional contrato conjugal por um pacto diabólico. 127 DELEUZE, 2003b, p.304. 128 ROBERTE; OCTAVE, 2001a; 2001b. 129 ROBERTE; THÉODORE, 2001c. 130 Num artigo intitulado “Kafka erótico”, buscamos (2007) defender o caráter erótico da literatura kafkaniana a partir de dois argumentos que acabam por expressar dois procedimentos kafkanianos: procedimento de substituição do contrato conjugal por um pacto diabólico e procedimento de despersonalização dos personagens.
86
=> Como Sacher-Masoch, Kafka deseja outra coisa que não a esfera criada e representada pelo pai. => Eis positividade do procedimento kafkaniano: ao invés de, simplesmente, fugir do mundo que o desagrada, Kafka permanece nele, mas não sem o fazer transgredir. Além do aspecto positivo, encontramos aí o caráter masoquista do procedimento; afinal, Kafka se reinventa permanecendo junto à sociedade que o aflige; mesmo o sofrimento sendo um pressuposto. => O pacto é diabólico na medida em que ele faz dissolver o contrato conjugal. (Quando Deleuze e Guattari131 usam o adjetivo “diabólico” para se referirem a esse pacto, devem estar na mesma perspectiva do Deleuze132 de “Klossowski ou os corpos-linguagens”. Perspectiva essa que considera a ordem de Deus como sendo aquela que Forma, e a ordem demoníaca como sendo aquela que deforma, espalha, esquarteja, desintegra etc.) => O que aflige Kafka? Os papéis determinados, os segmentos duros, as leis. => Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela. => Uma vez apropriando-se, como procede? (1) Cria as personagens jovens; (2) Faz com que essas funcionem encontrando as saídas, as brechas que todo segmento social deixa; (3) Elas indicam essas brechas aos personagens principais, os quais se apresentam vivendo no limite dos segmentos; (4) Tudo muda quando eles se deparam com as jovens, as quais os fazem perceber que todo campo social, apesar de segmentado, é um fluxo contínuo, bastando achar os conectores; (5) Uma vez redimensionado o segmento, os personagens principais também se redimensionam; conectam-se com segmentos inimagináveis até então, ficando perdidos, agoniados e, momentaneamente, despersonalizados. => Esse segundo procedimento kafkaniano é operado, segundo Deleuze e Guattari133, nos romances. => Embora coadjuvantes, são as personagens jovens que operam a transgressão. => Por vezes, os conectores são indicados pelas jovens; por outras, os conectores são as próprias jovens. 131 DELEUZE; GUATTARI, 1977. 132 DELEUZE, 2003b. 133 DELEUZE; GUATTARI, 1977.
87
=> Para Kafka, o campo social é um fluxo ininterrupto, mas que o homem, limitado a certos segmentos, não percebe isso, percebe, ao contrário, o campo social como um campo estável. São necessárias, então, funções conectoras, para mostrar as brechas, e essas funções são exercidas, justamente, pelas jovens: “é quase sempre uma jovem que encontra a porta de serviço, isto é, que revela a contiguidade do que se acreditava distante, e restaura ou instaura a potência do contínuo”134. => O procedimento de despersonalização envolve o que chamamos de orgia, já que as personagens se compõem como misturas de várias funções entrelaçadas, e uma vez juntas, tornam-se indiscerníveis. As mulheres kafkanianas, dizem Deleuze e Guattari, “são em parte irmãs, em parte empregadas, em parte prostitutas”135. Irmãs, empregadas e prostitutas: juntas numa só personagem, fazendo os segmentos vazarem. As irmãs, pertencendo às famílias, são as mais habilidosas para fazer ou deixar a família fugir; as domésticas, pertencendo aos investimentos sociais, sempre conhecem as portas de saídas; as prostitutas estão nos cruzamentos desses investimentos sociais ou, ainda, são as próprias brechas. A prostituta funciona como a falha do sistema familiar; porém, devemos entender a brecha ou a falha sob uma perspectiva positiva, afinal, a prostituta testemunha o fluxo contínuo, e a família, ao contrário, testemunha o segmento como se ele pudesse permanecer em repouso. Ou seja, se há uma função negativa aí, essa função é a da família. O interessante é que nenhuma dessas três funções vale por si mesma, de modo que é preciso que elas estejam juntas numa só personagem, sendo por isso que a irmã não funciona como uma simples irmã engajada no projeto familiar; a orgia em que a irmã participa com a empregada e com a prostituta dissolve a irmã que dizemos conhecer. Além disso, a prostituta, justamente por estar misturada com as outras duas, jamais aparece como uma mulher que cobra por serviços sexuais (pelo menos não explicitamente), mas aparece sempre como uma insinuação. São ares de prostituta e não papel de prostituta.
134 Idem, p.94. 135 Idem, p.95.
88
Do procedimento de deformação (Bacon) => Conforme Roberto Machado136, a questão presente em todas as páginas de Francis Bacon: lógica da sensação137 é: “como escapar da representação na pintura?”. O desafio de Bacon é, nessa perspectiva, pintar sem lançar mão da representação; pintar sem contar histórias; expressar “uma figura não figurativa, desfigurada, deformada”. => Figura X Figuração: quando Bacon consegue pintar o grito mais do que o horror, faz Figura; quando acaba pintando o horror, faz figuração. Pois enquanto o grito é apenas um grito, o horror é um grito significado, ilustrado. => O que aflige Bacon? As ilustrações e as figurações. => Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela. => Uma vez apropriando-se, como procede? (1) “Distingue na sua pintura três elementos fundamentais: a estrutura material, a área redonda-contorno e a imagem”138; (2) Expressa o primeiro elemento com grandes superfícies planas, as quais não funcionam como paisagens: não as coloca embaixo da Figura, mas no mesmo nível do que essas; (3) Faz do segundo o limite comum entre os outros dois elementos; isola a imagem de tal modo que ela não seja forçada a imobilizar-se; (4) Expressa o terceiro de um modo que a imagem se faça Figura e não figuração. => Sobre o primeiro elemento: Deleuze diz que, em Bacon, “nem a sombra nem mesmo o preto são sombrios”139. Isso significa que as sombras e o preto não funcionam como um fundo feito para destacar a imagem; pelo contrário, as superfícies planas são tão importantes quanto as Figuras, a tal ponto que o efeito é o de um único plano. Diz Bacon, sobre o seu próprio procedimento: “tentei tornar as sombras tão presentes quanto a Figura”140. Além disso, a estrutura material não funciona como paisagem, visto que não está ali para estabelecer um contexto ilustrativo. => Sobre o segundo elemento: por que isolar? “Bacon diz com frequência: para conjurar o caráter figurativo, ilustrativo, narrativo que a Figura necessariamente teria se não estivesse isolada. A pintura não tem nem 136 Esses dois fragmentos de Roberto Machado se encontram na orelha do livro Francis Bacon: lógica da sensação (DELEUZE, 2007). 137 DELEUZE, 2007. 138 Idem, p.15. 139 Ibidem. 140 BACON apud DELEUZE, 2007, p.15.
89
modelo a representar, nem história a contar”141 [grifo do autor]. É preciso, então, duas providências: (1) Isolar a imagem da sua relação com o objeto que insistiria em ilustrá-la (para que o sorriso, por exemplo, não permaneça vinculado à alegria; nem o coração preso ao amor etc.); (2) Isolar a imagem de outras imagens; afinal, como diz Deleuze, “a narrativa é o correlato da ilustração. Entre duas Figuras, há sempre uma história que se insinua ou tende a se insinuar para animar o conjunto ilustrado”142. Essa segunda providência age, portanto, possibilitando que imagens possam aparecer lado a lado sem com que isso implique um raciocínio constituído de início, meio e fim, ou um caráter de complementação ilustrativa ou explicativa (no sentido de uma imagem ilustrar ou explicar a outra). => Sobre o terceiro elemento: o segundo elemento (a área redonda) possibilita uma proximidade absoluta da grande superfície plana com a imagem: ambas são percebidas no mesmo plano de visão. Assim, temos um sistema fechado, no qual a imagem passa a se constituir como Figura: “é esse sistema, essa coexistência de dois setores um ao lado do outro, que fecha o espaço, que constitui um espaço absolutamente fechado e giratório, muito mais do que se procedêssemos com o sombrio, o obscuro ou o indistinto”143. A partir do momento em que a imagem se constitui como Figura, passa a se sustentar por si mesma, no sentido de que é capaz de produzir perceptos e afetos (elementos não conceituais, próprios da arte) que absolutamente independem de metáforas e/ou de conhecimentos representacionais previamente estabelecidos. => Aparentemente, um paradoxo: ao mesmo tempo em que temos um único plano, um único sistema, temos, ainda assim, o isolamento do terceiro elemento (a imagem). Isso se explica na medida em que tal isolamento é apenas um passo do procedimento, que diz respeito ao livrar a imagem de sua figuração. => Sem dúvida, em nenhuma outra obra Deleuze usa tanto a expressão “procedimento” quanto em Francis Bacon: lógica da sensação. Além disso, podemos dizer que esse livro é, efetivamente, a apresentação de um procedimento: inúmeros pequenos procedimentos constituindo o grande procedimento de Bacon. Diante desse grande, detemo-nos naquilo que 141 DELEUZE, 2007, p.12. 142 Ibidem. 143 DELEUZE, 2007, p.16.
90
vem caracterizando todos os procedimentos aqui apresentados: chamemos essa característica de “guerrear na casa do inimigo”. Todos estabelecem as suas batalhas justamente nos territórios de seus inimigos: na casa das significações/inteligências (Proust); na casa dos valores morais (Sade); na casa da sociedade patriarcal (Sacher-Masoch); na casa das identidades (Klossowski); na casa das conjugalidades e das pessoalidades (Kafka); e na casa das ilustrações e das figurações (Bacon). Tal característica pode ser encontrada em diversas passagens dessa obra, dentre as quais selecionamos esta: “eis por que há flou em Bacon, até mesmo dois tipos de flou. (...) No primeiro caso, o flou é obtido não por indistinção, mas, ao contrário, pela operação que ‘consiste em destruir a nitidez pela própria nitidez’”144. O flou, tradicionalmente, é o efeito obtido através da estratégia de se embaçar a imagem, de deixá-la nublada, turva ou tremida. Tradicionalmente, portanto, destrói-se a imagem a partir da negação de sua Forma (a partir do simples efeito abstrato, por exemplo). Porém, o que torna Bacon um inventor de procedimento são detalhes como este: apropria-se da imagem com toda a sua carga conotativa Formalizada, iniciando o empreendimento a partir daí. Trata-se de “extrair a Figura do figurativo”145. Em vez de subtrair clareza a partir da indistinção, luta com a nitidez no terreno da própria nitidez.
IV – CONCLUSÃO OU PROCEDIMENTOS ERÓTICOS => Da apresentação desses procedimentos, concluímos que todos têm em comum o fato de funcionarem eroticamente, uma vez que sempre atuam em função da dissolução de uma Forma.
Da fusão entre procedimento e erotismo Quando nos referimos ao erotismo, estamos partindo do conceito traçado por Deleuze146 em “Klossowski ou os corpos-linguagens” e, de maneira mais implícita, na Apresentação de Sacher-Masoch. O erótico aparece como sendo a dissolução das Formas que nos afligem; dissolução provocada por empreendimentos que lidam com os pretensos estratos estáticos. 144 Ibidem. 145 DELEUZE, 2007, p.17. 146 DELEUZE, 2003b; 1983.
91
O erotismo diz respeito, então, a um processo de desintegração de uma Forma e, nesse sentido, podemos concebê-lo como um procedimento de reinvenção daquilo que parece tão estacionado, tão verdadeiro, tão imutável; mas que efetua tal reinvenção a partir de uma dissimulação, a partir de uma atitude que toma a Forma de uma maneira, no mínimo, inusitada. O erotismo, afirmamos, é um procedimento, e o procedimento, por sua vez, é sempre um caso de erotismo. Não se trata de um procedimento sobre o erotismo, mas o próprio erotismo se constituindo num procedimento, e o próprio procedimento sendo um caso de erotismo.
Da perversidade dos procedimentos O que amarra os procedimentos, em Deleuze, ao erotismo, é o fato de que, apesar de esses violentarem as Formas, necessitam, ainda assim, dessas: ao menos de uma. Já dissemos que sem Forma não há transgressão. Todos os procedimentos implicam a escolha de um objeto (conforme procuramos mostrar, os objetos escolhidos são aqueles que incomodam os seus autores. Então, por exemplo, os amigos libertinos de Os 120 dias de Sodoma147 fazem com que as donzelas e os donzelos se casem entre eles. Por que fariam isso se eles são expressamente contrários à Instituição do Casamento? Ora, efetuam os casamentos com o único propósito de ter uma Instituição a mais para descumprir. Ou seja, primeiro uma Forma, depois fazer com ela agonize). A consequência esperada, claro, é a transformação desse objeto. E é nesse sentido que as Formas exemplares são as mais pretensiosas, pois a perversidade aparece justamente quando algo quer fazer de conta que é imutável. É por isso que, para Deleuze,148 nada é mais pornográfico do que a dissolução do Eu; afinal, nada é mais pretensioso do que a pessoalidade.
Referências BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. (Trad. Mário Laranjeira.) São Paulo: Martins Fontes, 2005. CORAZZA, Sandra Mara. Uma única vez. In: _____. Artistagens: Filosofia da Diferença e Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. DELEUZE, Gilles. Apresentação de Sacher-Masoch: o frio e o cruel. (Trad. Jorge Bastos.) Rio de Janeiro: Taurus, 1983. 147 SADE, 2006. 148 DELEUZE, 2003b.
92
_____. Crítica e clínica. (Trad. Peter Pál Pelbart.) São Paulo: Ed. 34, p.1997. _____. Proust e os signos. (Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003a. _____. “Klossowski ou os corpos-linguagens”. In: _____. Lógica do Sentido. (Trad. Luis Roberto Salinas Fortes.) São Paulo: Perspectiva, 2003b. _____. “Mística e masoquismo”. In _____. A ilha deserta: e outros textos. (Trad. Fabien Pascal Lins.). São Paulo: Iluminuras, 2006. _____. Francis Bacon: lógica da sensação. (Trad. Roberto Machado). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. (Trad. Julio Castañon Guimarães.) Rio de Janeiro: Imago, 1977. _____; _____ Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 1. (Trad. Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa.) São Paulo: Ed. 34, 1995a. _____; _____. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 2. (Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão.) São Paulo: Ed. 34, 1995b. _____; _____. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 3. (Trad. Aurélia Guerra Neto, Ala Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik.) São Paulo: Ed. 34, 1995c. _____; _____. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 4. (Trad. Suely Rolnik.) São Paulo: Ed. 34, 1995d. _____; _____. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 5. (Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa.). São Paulo: Ed. 34, 1995e. FEIL, Gabriel Sausen. “Kafka erótico”. In: Revista Travessias, Cascavel, n. 1, p.01-09, 2007. Disponível em: <http://www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/revistas/ travessias/ed_001/cultura/KAFKA%20%20%20%20ER%D3TICO.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2011. KLOSSOWSKI, Pierre. “La Révocation de l’Édit de Nantes”. In: _____. Les lois de l’hospitalité. Paris: Gallimard, 2001a. _____. “Roberte, ce soir”. In: _____. Les lois de l’hospitalité. Paris: Gallimard, 2001b. _____. “Le Souffleur”. In: _____. Les lois de l’hospitalité. Paris: Gallimard, 2001c. PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido vol. 1. No caminho de Swann. (Trad. Mário Quintana.) Rio de Janeiro: Globo, 1967. SACHER-MASOCH, Léopold Von. “A vênus das peles”. In: DELEUZE, Gilles. Apresentação de Sacher-Masoch: o frio e o cruel. (Trad. Jorge Bastos.) Rio de Janeiro: Taurus, 1983. SADE, Marquês de. A filosofia na alcova. (Trad. Augusto Contador Borges.) São Paulo: Iluminuras, 1999. _____. Os 120 dias de Sodoma ou A escola da libertinagem. (Trad. Alain François.) São Paulo: Iluminuras, 2006.
93
(Des)truísmos de velhas estruturas para poder construir novas? Ato de criação e a ocupação de um certo espaço e tempo sseler
rbuh Te Fani Ave
“Como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva”. Clarice Lispector começa assim um pequeno conto chamado nada menos do que “Tentação”149. A cidade tropical, cheia de luz excluía. Perigo sair ao sol do verão. Praia cheia e ninguém na rua. Paciência. Que fazer de uma menina ruiva? “Numa terra de morenos, ser ruiva era uma revolta involuntária”. Até mesmo o irmão que dobrou a esquina, fixando-lhe o olhar a despertar sua esperança de companhia, por ali passou – um Basset ruivo. Foi com sua dona, enfim. A menina fascinada pedia pelo cachorro que a fixava tão surpreendido, encabulado e cheio de urgência quanto ela. Diz a autora150: ‘Mas ambos eram comprometidos”. Na infância ruiva impossível e na natureza aprisionada do cão. Ela, a inocência que só se abriria quando fosse uma mulher. Na adolescência, passou a conhecer e conviver com pessoas diferentes daquelas de sua própria comunidade familiar étnica, saindo do casulo família, escola, amigos, bairro. Custou, mas acabou percebendo que os costumes, signos, atividades, lugares e papéis de cada um eram diferentes para seus novos amigos na escola pública. Ainda mais estranho e banal é que para cada grupo seus próprios valores e costumes eram considerados os únicos corretos, naturais, óbvios e essenciais. No primeiro ano, curso clássico, início dos anos 70, nem sequer conseguia estranhar as diferenças, pois estava imersa na sua origem e também a considerava natural, a única forma possível. As dificuldades e diferenças foram ficando claras no decorrer daquele ano, até que percebesse e começasse a observar, ouvir e engolir, deglutir e aproveitar a cultura do outro. Outro? No início era só (con) 149 LISPECTOR, 1975, p.42. 150 Idem, p.42-43.
95
viver, só ver. Depois foi crescendo em idade, carne e pedra. Empedrando e emparedando-se, como o gato negro de Poe151, enterrado na parede por descuido ou magia – só quem convive com gatos sabe como isso se dá, eles se metem por tudo e nem se vê. Mas, aquela de antes, aquela outra, lá dentro miando, gritando e silenciando cada vez mais, gradativamente ia se esquecendo e curtindo ser do mundo. Se negando e aderindo ao transformar-se. Verdade possível ou ilusão? A estrada continuava branca de sol se estendendo sobre o horizonte verde, azul, amarelo, vermelho... Proponho-me a pensar o ato de criação, com Deleuze152, a partir do que ele coloca quando diz que é o espaço-tempo que se constitui como o limite comum a todas as séries de invenções. “Se todas as disciplinas se comunicam entre si, isso se dá no plano daquilo que nunca se destaca por si mesmo, mas que está como que entranhado em toda a disciplina criadora, a saber, a constituição dos espaços-tempos”153. Lembro então da História, já que são o tempo e o espaço, em suas várias formas de ocupação, duração e utilização, seus dois conceitos de base. Pensar a história ou a verdade em História como ciência se configura em seu avesso, na prática escolar. Esta é um lugar focal, onde se desenvolve certa discursividade, com legitimidade para se colocar entre sujeitos e contextos, entre espaço e tempo na escola. O sentido e finalidade do discurso histórico desde o século XIX, quando do surgimento do estado nação e dos primeiros sistemas escolares, esteve relacionado a construções discursivas, comprometidas com processos de criação identitários, que buscam marcar-se como leais a diferentes discursos de pertencimentos à própria nação em formação, territórios de fronteiras, onde se dá sua produção, distribuição e consumo. Disputas de pertencimento, de memórias coletivas e individuais; de produção de alteridades no tempo e no espaço, passíveis de deslocamento, de afirmação da diferença que problematiza tanto a identidade fixada, monolítica e essencializada154, enquanto, adianta-se sobre práticas pedagógicas que se limitam a aproximar alunos e conteúdos pelas similaridades e identificações, partindo da realidade que é o sujeito aluno. Justo, porém 151 POE, 2000. 152 DELEUZE, 1987. 153 Idem, p.4. 154 MONTEIRO; ANHORN, 2011.
96
não exclusivo. Viver diferenças ensina outros possíveis. Compõe-se a prática, alternativamente, com a apresentação e aproximação do outro, da alteridade, destacando a diferença, a diversidade, a existência de formas as mais diversas de viver, ensina-se a tolerância, a possibilidade minoritária do devir155. Processo lento e trabalhoso para meninas ruivas em terras ensolaradas, entre outros. Quanto à ciência histórica tomada como verdade, que se utiliza do registro escrito, a narrativa ou a escrita da História, que nunca foram feitas de uma só forma, apesar do conforto em se acreditar nisso, em assegurarmo-nos156 da existência de uma única verdade. Como se fosse possível a existência de uma identidade mesmo que imaginada, que cresceu evoluindo até nós, desde a pré-história157, trazendo-nos o consolo de nossa própria imagem. Buscar formas de legibilidade da História, através do tempo ininterrupto, que sempre se desenvolve em, um certo, mesmo sentido, é partir do pressuposto da verdadeira existência de uma linha contínua e evolutiva que neste caso, seria a existência de uma verdade única, primordial e irrevogavelmente envolta pela questão do tempo e de sua linearidade, mas criada por nós mesmos. Recorre Foucault 158 à crítica deste pretenso sentido universal de toda uma tradição na História (teleológica ou racionalista), que pré-vê em cada acontecimento singular, uma continuidade ideal ou encadeamento natural. Lamentamos todos nós, no fundo, que as coisas não sejam bem assim. Se a realidade e suas transformações históricas não são tão simples, lineares ou inexoráveis, ficamos a mercê do acaso. Quem? Mesmo que haja quem assim afirme, as forças que se encontram em jogo na História jamais estiveram obedecendo a uma determinada destinação, muito menos a um pré-plano ou esquema mecânico. São forças que se vão construindo a si mesmas no acaso da luta. “É preciso ainda compreender este acaso não como um simples sorteio, mas como o risco sempre renovado da vontade de potência que a todo surgimento do acaso opõe, para controlá-lo, o risco de um acaso ainda maior”159. A verdade, especialmente em História, não é e não narra a realidade nua, dos fatos verdadeiros, a que 155 PEREIRA; ALMEIDA; TEIXEIRA, 2009. 156 Permito-me usar a primeira pessoa do plural porque me refiro a uma forma geral e comum de referência que atinge/atingiu a todos nós; de forma mais contundente, se passamos pela escola. 157 Afinal, existe a “PRÉ “ História? 158 FOUCAULT, 1989. 159 NIETZSCHE apud FOUCAULT, 1989, p.28.
97
o pesquisador pode chegar pela intensa coleção de dados documentais que consegue juntar, não é buscar a totalidade como categoria fundamental e possível, nem tentar alcançar alguma essência profunda. Essa História que busca uma revelação, como um tirar do véu do passado, único e absoluto inscreve-se em um tempo artificial, por sua vez criado por alguns, embora pensado como natural e querendo garantir aquilo que é da ordem da natureza humana e do desvendar da verdade. Principalmente, não existe nenhuma certeza de que ela esteja lá em algum lugar do passado, pronta para ser revelada, descoberta por um cientista, que como tal deve ser isento. Isento? Quando trabalha sobre o ato de criação, Deleuze afirma que ninguém cria sem uma necessidade verdadeira. Aquele que é um criador não inventa por prazer, “só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Essa necessidade – que é uma coisa bastante complexa, caso ela exista – faz com que um filósofo se proponha a inventar, a criar conceitos, e não a ocupar-se em refletir”160. De maneira complementar, a construção da idéia de tempo contínuo, de linha evolutiva, ao se projetar na História, retroativamente, lança conceitos modernos para um passado idealizado, contribui para a noção de um imanente ou inerente humano que está lá, dado, em um certo momento, e que vai a partir daí até hoje, continuamente para o futuro. Uma essência, uma linha ou característica dominante, que faz dos que a tem os melhores dentre os demais. Essa maneira de entender a História não considera a presença do sujeito e sua própria linguagem no contexto. Os fatos são coisas postas num espaço vazio e não textos, interpretações ou práticas discursivas para serem trabalhadas. Foucault 161 nos avisa que “É preciso despedaçar o que permitia o jogo consolador dos reconhecimentos. Saber, mesmo na ordem histórica, não significa ‘reencontrar’ e sobretudo não significa ‘reencontrarmo-nos’”. A Historia será ‘efetiva’ na medida em que ela reintroduzir o descontinuo em nosso próprio ser”. Nesse arranjo, o historiador (ou outro cientista) no dever de relatar e contar a verdade precisaria, para fazer ciência, ocultar sua identidade, no afã de se distanciar da verdade dos fatos, com um olhar neutro, observador sem posição no jogo, um ser exterior à sociedade. 160 DELEUZE, 1987, p.3. 161 FOUCAULT, 1989, p.27.
98
Mais uma vez, aparece aqui, o historiador que se limita a desvelar o que está dado, e que invariavelmente só pode ser revelado por quem tem o domínio do saber necessário para isto. Em outras palavras, o ponto de vista é o de quem já sabe o significado da História a partir de si próprio, de sua própria cultura e posição no mundo. Já sabe como se desenrola a História, já que esta teria apenas uma linha num contínuo, um tempo único para todos, um universal. Parece que só assim, este sujeito/cientista/historiador poderia saber o que realmente aconteceu no passado, encontrar a verdade histórica e conseqüentemente o futuro. Mas, quais são as imagens do passado verdadeiras e reais com as quais a História trabalha? Qual é o real, real? A verdade verdadeira? A minha ou a deles? Existe um universal verdadeiro e matéria prima do historiador? Há um movimento de procura do saber, não para dissolvermo-nos a nós mesmos em um movimento natural, ou para colocar a História, o acontecimento e sua verdade em uma continuidade ideal, mas para fazer com que o acontecimento ressurja em sua singularidade e intensidade. Historicizando as práticas que herdamos, contatamos com outras formas culturais, outras maneiras de viver e isso é que nos permite pensar a possibilidade de mudança. Pois se nem sempre foi como está, poderá vir a ser diferente. Já que não há uma temporalidade única, é possível uma atitude que nos faça tentar encontrar e entender o outro, o diferente de nós mesmos, aceitando outras formas de percepção histórica, mais complexas ou não, como reais e verdadeiras diacronicamente, ou ainda, partir do contato com modos diferenciados de vida. São possíveis, assim, novas relações de forças, entre saberes, entre aqueles que os manipulam, classificam, utilizam. Estas relações se (re)forçam, se (re)equilibram, se (re)instituem como um possível. A singularidade do evento entra em cena para, em sua complexidade, ser um texto em si mesmo, pois a multitemporalidade de que se constitui, onde o tempo, o espaço e o sujeito que escreve, que narra, tomam parte na ação, fazem parte do (des)equilíbrio das forças em jogo. Múltiplos são os elementos que se dispõem para a construção das possibilidades para a (des)construção de um saber histórico, dado como legítimo.
99
A esse respeito acrescento a posição de Foucault162, ao denunciar a desqualificação da tecnologia de verdade, existente ao longo de vários séculos e que aos poucos foi sendo desviada e expulsa pelo dogma da ciência e pelo discurso filosófico. Este autor conclui: “Afinal não há uma verdade dada na realidade esperando para ser revelada pelo pesquisador/ cientista, mas uma razão, uma determinada lógica na narrativa histórica, ocupando uma posição estratégica no jogo de poder e instituída, então, como verdade.
Referências DELEUZE, Gilles. O ato de criação. (Texto digitalizado). (Trad. José Marcos Macedo),1987. Disponível em: http://www.dossie_deleuze.blogger.com.br/ FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. (Trad. Laura Fraga de Almeida.) São Paulo: Loyola, 1996. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. (Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque; J. A. Guilhon Albuquerque.) Rio de Janeiro: Graal, 1989. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. (Trad. e Org. Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Graal, 1989. LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. MONTEIRO, Ana Maria F. da Costa; ANHORN Carmen Teresa Gabriel. Apresentação. Ensino de História. In: Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 36, n.1,, jan/abril, 2011. PEREIRA, Nilton Mullet, ALMEIDA, Cybele Crossetti e TEIXEIRA, Igor Salomão. Reflexões sobre o medievo. São Leopoldo: Oikos, 2009. POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. (Trad. Pietro Nasetti.) São Paulo: Martin Claret. 2000.
162 FOUCAULT, 1996.
100
Pensando as artes de si e a produção da diferença em Michel Foucault ra ullet Perei Nilton M Bello es p o mundo L d E el u Sam
Sujeito e Verdade O que é o sujeito? Pergunta-se no início de cada conversa; no intervalo de cada leitura; no limiar de cada ciência; até mesmo na escrita de alguma poesia. A pergunta o que é o sujeito esconde um jogo perigoso legado a nós pela analítica da finitude. Um jogo de esconde-esconde que interpõe o que se vê em entrelinhas, em espaços sempre ociosos, nunca habitados, mas prontos a nos oferecer a face oculta da superfície. Esse é um jogo de azar, que quer fazer-nos sentir medo da qualidade da superfície e da univocidade do ser. O azar de termos nascido, crescido e vivido numa superfície inóspita, cheia de ocasos, de máscaras e de uma profusão de signos mal desenhados, arredios e pouco nítidos. O que é o sujeito incita pensar no lugar onde ele se situa e nos lugares onde ele apenas se oferece à parca visão dos mortais. Uma dupla resposta nos sugere a analítica da finitude: um sujeito transcendental, fonte inesgotável que justifica tudo o que fazemos, o que somos e o que sabemos do mundo da superfície. Ele é o que remete sempre a superfície a um lado invisível e profundo, ponto afastado de toda experiência, terra que reflete a aparência do mundo superficial. Ele quer que se acredite num mundo repartido entre o superficial e o profundo, entre a identidade e a máscara, entre o sensível e o inteligível, entre a cópia e o simulacro. Do que ele é o profundo, a identidade e o modelo. Do que ele é sempre o intocável ao olho nu e ao tato mundano. O sujeito transcendental está ao mesmo tempo em cada multiplicidade e distanciado delas. Ele é o que nos faz sermos e dizermos, em essência, sujeitos conhecedores, capazes por natureza, de amainar o caos do mundo, no sentido de minimizar
101
seus efeitos. Amainar o perigo de uma vida sem referência, sem essência, sem alvo. O sujeito transcendental promete um abrigo seguro dos males de uma vida na superfície. Ele está no início de cada proposição, justifica cada argumento e apaga toda a diferença que desorganiza o cosmos. Ele é senhor de toda a verdade, que nele encontra seu abrigo seguro contra as peripécias de uma vida. Se há verdade é porque ela nele está encarnada, à espera de aparecer triunfante para dar brilho à opacidade da superfície. Trata-se de um sujeito pensado como intrinsecamente capaz de verdade, que ignora a vida, mas, sobretudo, que descola a verdade da espiritualidade, descola a verdade da potência e dos efeitos de suas ações. Se o sujeito transcendental é o lado escondido de nós mesmos, como multiplicidades, ele nos oferece a verdade independente da nossa atitude ética163. Todos e cada um pensamos o que somos, porque em algum momento seremos capazes de dizer a verdade, de produzir conhecimento verdadeiro, essa é a nossa essência e a fonte da nossa movimentação. Essa produção de verdade do sujeito transcendental é descolada das nossas sensações, uma vez que a verdade não é um valor que se transvalora, ela não modifica a subjetividade, não torna aquele que a detém ou a produz em um outro em relação ao que era antes. A verdade passou a ser, desde Descartes, através do cogito, uma atividade que está situada em outra esfera que não a vida. Esse sujeito capaz de verdade não é capaz de transfiguração em razão da verdade que enuncia. Na analítica da finitude o homem aparece como o lugar a partir de onde se pode fundar todo o conhecimento que temos. Como objeto de estudo da filosofia, o homem se torna o sujeito transcendental que funda o conhecimento que temos. Assim, ele deixa de ser mero objeto empírico e passa a ser o sujeito fundante que escapa das malhas da história. A outra parte da resposta, então, é o próprio homem, face e o mesmo que o sujeito transcendental, elemento natural que funda o conhecimento que temos. Faz-se único, se insinua e se afasta, mas, uma vez transcendental é também empírico, senhor de toda a obra, enunciado pelas ciências empíricas, mergulhado nas malhas do saber da modernidade, ele nos conduz sempre para aquele jogo de azar, se aproximando como aquele que trabalha, que vive e que fala, se distanciando, como aquele que funda sua própria 163 FOUCAULT, 2006a.
102
existência corpórea e empírica. Sujeito de e do conhecimento, o que ele é na vida, no trabalho e na linguagem, está sempre uma vez deslocado do que ele é em essência, na transcendência. Um ser que rasteja, ao mesmo tempo, contempla o zênite; um ser que nasce desviado da sua origem, sempre recuada, sempre prometida como alvo e nunca reencontrada. Duas respostas ao problema da finitude, duas respostas que a analítica da finitude oferece a fim de exorcizar o caráter móvel das máscaras que trilham pela superfície. O que é o sujeito? Como pensá-lo como efeito de qualquer outra coisa? Como supor que ele pode ser elaborado no solo da superfície? Michel Foucault promoveu uma longa pesquisa para tratar do sujeito. Não o homem, não o sujeito transcendental, não o homem em seu estado original, nem o homem como manifestação empírica da sua origem recuada. Mas, uma pesquisa sobre o sujeito e a verdade. Uma pesquisa sobre como a verdade de tempos em tempos nos torna sujeitos, nos (dá) forma. Um estudo sobre a superfície, na crença de que o mundo é apenas superfície – solo onde vemos estados de acontecimentos e onde pulsam virtualidades. O projeto foucaultiano foi de pensar o sujeito na superfície da história. E isso implicou abandonar o barco da analítica da finitude; significou perder o medo do caos, da vida e do fato de nada haver além dos bancos de areia nos quais as relações produzem a vida. “Que é o sujeito?” passa a ser uma pergunta para dissolver o sujeito e arremessá-lo no solo irrepetível da história. Para Foucault, o sujeito não é uma substância. É uma forma, e essa forma não é idêntica a si mesma. Nunca há consigo próprio uma mesma relação quando se constitui o sujeito político que vota numa assembleia ou toma a palavra num ato público; ou mesmo quando se busca atender ou realizar um desejo. Há, sem dúvida, relações de interferência entre essas diferentes formas, porém, não estamos na presença do mesmo tipo de sujeito. Em cada caso se estabelecem consigo formas e relações diferentes, formas históricas constituídas por jogos de verdade de uma época164. Trata-se de negar a possibilidade de uma história que recolha na consciência humana, ou na atividade sintética de um sujeito, ou no repouso sobre uma verdade escondida, o rosto, a superfície, o que acontece aos homens de fato, suas práticas e os seus discursos. 164 FOUCAULT, 2006b, p.275.
103
Trata-se de negar essa mesma história que pensa o homem como lugar transcendental e de onde ela mesma se produz e se julga. A busca da origem, que se opõe a emergência e a proveniência, disposta no pensamento moderno situa o homem desencontrado de si mesmo. Na medida em que o homem se acha deslocado dele mesmo, o pensamento moderno constitui-se em uma forma de perseguir ad infinitum aquilo que lhe escapou: sua própria origem, sua identidade primeira, seu modo a-histórico de ser. O homem nasce, na leitura foucaultiana, de um paradoxo do saber moderno: ele somente pode ser contemplado através dos saberes empíricos da Biologia, da Filologia e da Economia Política, que ele mesmo produz e que o abordam como uma finitude que vive, fala e trabalha. O sujeito deixa de ser o ser transcendental, ao mesmo tempo, próximo e distante da vida, e passa a ser uma composição, uma historicidade, produto de um jogo, nem de sorte, nem de azar, mas um jogo de forças. Decorre que pensar o sujeito para Foucault implicou pensar as relações e os jogos de verdade do e com o sujeito. De certo modo, tanto o projeto de uma arqueologia, quando de uma genealogia ou de uma estética da existência, o problema é o sujeito e suas relações com os jogos teóricos, os jogos políticos, os jogos morais e éticos. Eis sua história no pensamento de Michel Foucault A arqueologia pensa o sujeito. Mas, pensa o sujeito criado no interior de uma rede discursiva, o objeto paciente do historiador que, criticando a história das idéias, conta uma história dos saberes, estejam eles no limiar de uma ciência ou ainda num estado pré-científico. O sujeito pensado na arqueologia é aquele das posições ocupadas pelos indivíduos no interior de discursos165. É função, é lugar de onde se fala. O sujeito que não está posto desde o início do discurso, mas que é seu resultado; sujeito que não habita um espaço de pureza de onde olha o mundo e escolhe ao bel prazer do que fala, do que come, do que ama. Sujeito preso na armadilha dos saberes, construído como lugar para se falar, comer, amar. Sujeitos e objetos, todos eles construídos no interior das palavras. Essas que já não se opõem mais às coisas, que não estão mais no lado de cá, como aquilo que se fala sobre uma coisa. Porque falar é exercer uma violência sobre o mundo, é cortar o caos e construir um domínio de objetos novos. Sujeito função, não origem do discurso, ponto psicológico onde se sustenta a enunciação. 165 FOUCAULT, 1987.
104
A arqueologia pensou o homem. Contou seu aparecimento, como o sujeito universal fundamento de todo o saber, o homem iluminista, o homem duplo, empírico-transcendental. Tamanha ambigüidade, descreveu Foucault: um ser enredado na empiricidade do mundo, dos saberes empíricos, um homem que vive, trabalha e fala, conhecido justo pelo lugar finito e empírico que ocupa; ao mesmo tempo, um ser recuado a uma origem intemporal, sujeito unidade e síntese de toda a empiricidade. Homem que não é contemporâneo de si mesmo, recuado que está, fora do tempo a conjurar sua estranha finitude. Eis que o tema da identidade se põe ao conhecimento histórico – o tema de uma cara escondida por baixo dos movimentos espontâneos e casuais dos acontecimentos, uma forma primeira que já está suposta em toda a pesquisa, que o que o historiador precisa é fazê-la aparecer no que tem de contínuo e de universal. O tema da identidade escondida é correlata de uma história que esconde as originalidades, que as considera mero torpor, erros, máscaras. Máscaras que escondem o absoluto. Para Foucault o que há na história, projeto de uma história nova, não são senão as máscaras, os modos provisórios de apresentação de cada um, instalado em cada prática, em cada dito. Não há sujeito, nem psicológico, nem transcendental que possa estar fora do jogo das forças, que possa subsistir ao tempo, que possa fugir ao ralo comum da história, da historicidade. O sujeito psicológico e seu jogo de intenções é estranho à história, já que o que acontece na história é produto de uma inversão das relações das forças, o que acontece é uma nova configuração do jogo, nunca produto da vontade de um indivíduo. Mas, o que acontece não é resultado de uma busca da origem, de um movimento que se projeta para fora da história, a buscar uma identidade ou um sujeito transcendental. O que ocorre é o fato no vazio, no vazio onde atuam as forças, de onde novas configurações aparecem e se tornam objetos para o nosso gozo e prazer, para o nosso fazer história. A história é a história dos discursos. A sua escrita é a descrição das regras que fizeram aparecer determinados discursos e não outros em seu lugar. Michel Foucault pensou fazer uma genealogia. Uma história dos começos. Não uma história da origem, mas do começo rasteiro e das relações de poder que se dispõem no começo de cada nova irrupção de acontecimentos. O sujeito? Idem, agora um sujeito construído no interior de 105
uma cartografia de poder. O sujeito assujeitado pelas relações de poder. O sujeito resultado de técnicas normalizadoras de poder. Disciplina, saber, poder-saber, jogo que dá visibilidade a normais e anormais. Temos agora uma história efetiva. Que recusa terminantemente a origem, e que se serve da emergência e da proveniência. Uma história das avaliações. Porque pensa que a história é a história dos modos como os homens criaram valores, avaliaram, de modo que cada avaliação só pode ser avaliada a partir dos próprios fundamentos que lhes deram origem. Nada do “aquilo mesmo”, da essência escondida da coisa”, de uma “identidade primeira”. Afinal, atrás das coisas esconde-se um segredo, o “segredo de que elas não têm segredo” ou que sua “essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhes eram estranhas” (Foucault, 1988). Antes de encontrar a origem, o que encontramos é o disparate, a discórdia. Vemos aqui um Foucault muito mais demolidor, como que a usar um martelo a fim de desconstituir os últimos bastiões de uma história dos homens, para colocar em seu lugar uma história das relações de poder, uma história de como essa relações estratégicas construíram e assujeitaram, silenciaram e tornaram visível. Uma história do corpo. De um corpo crivado de história. “O corpo, e de tudo que diz respeito a ele, a alimentação, o clima, o solo – é o lugar da proveniência; sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele também eles se atuam e de repente se exprimem, mas nele também eles se desatam, entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insuperável conflito”166. O corpo, volume em perpétua pulverização. Aqui, com este verdadeiro culto ao corpo, vemos uma recusa sistemática da história supra-história, esta que recolhe sob a guarda de uma totalidade todos os fragmentos. Eis ai uma história efetiva, que não se sustenta em nada suficientemente fixo. O homem não pode basear-se nele para contar a história de outros homens e se reconhecer neles. Mas, Foucault também pensou uma história de nós mesmos, do si e da sua relação com a verdade. Do modo como estabelecemos conosco uma relação de cuidado. Do modo como, na cultura ocidental, criamos uma prática de cuidado conosco mesmos. Nem um sujeito produzido pelos 166 FOUCAULT, 1988.
106
sistemas de saber, nem o sujeito assujeitado pelas técnicas de poder. Uma subjetividade construída numa relação de si consigo mesmo. Foi um projeto de contar uma história, no ocidente, das relações entre o sujeito e a verdade. “É preciso considerar a ontologia crítica de nós mesmos não certamente como uma teoria, doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula; é preciso concebê-la como uma atitude, um ethos, uma via filosófica em que a crítica do que somos é, simultaneamente, análise histórica dos limites que nos são colocados e a prova de sua ultrapassagem possível”167. Na ultima fase da sua produção intelectual Foucault faz emergir a noção de jogo de verdade, como noção para além dos jogos científicos e teóricos, como condição para a produção de subjetivações e assujeitamentos. Para tanto, entende como verdade, não “o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”168. Foucault nos seus trabalhos, e no seu fascínio sobre as técnicas de existência – as práticas de si – da cultura Helenística, faz aparecer o sujeito constituindo-se [e o gerúndio aqui expressa movimento] e, portanto, inventando-se, singularizando-se, através de, e em meio, a práticas regradas. Esse caráter regrado é central na compreensão dos estudos foucaultianos sobre ética, principalmente no que se refere às relações do sujeito com a verdade. Se esse papel econômico-político da verdade, sua incidência e movimentação no interior de dispositivos como os de seguridade, disciplinaridade, vigilância e suas tecnologias, operando estrategicamente na condução das condutas, levariam o filósofo a um estudo sobre as formas de governo sobre os outros; é no dispositivo da sexualidade, por exemplo, que Foucault identifica os modos pelos quais os indivíduos são levados a se reconhecerem como sujeitos sexuais desejáveis e desejantes. Isto porque a noção de desejo, tanto quanto a noção de loucura, precisava passar 167 FOUCAULT, 2005, p.351. 168 VEYNE, 1985.
107
por um deslocamento de entendimento em relação ao poder e de método em relação a sua forma de investigação na produção de sujeitos. O último Foucault é, pois, a revitalização da problematização do sujeito, não mais no âmbito das técnicas de dominação (Poder) ou técnicas discursivas (saber), antes de mais nada, da autoconstituição através do que ele denominou de técnicas de si. No dizer do filósofo: “Parecia agora que seria preciso empreender um terceiro deslocamento a fim de analisar o que é designado como “o sujeito”: convinha pesquisar quais são as formas e as modalidades da relação consigo através das quais o indivíduo se constitui e se reconhece como sujeito. A partir do estudo dos jogos de verdade [...] de um certo número de ciências empíricas nos séculos XVII e XVIII – e posteriormente ao estudo dos jogos de verdade [...] a partir do exemplo das práticas punitivas, outro trabalho parecia se impor: estudar os jogos de verdade na relação de si para si e a constituição de si mesmo como sujeito, tomando como espaço de referencia e campo de investigação aquilo que poderia chamar-se ‘história do homem do desejo’”169. Nesse sentido, a analítica empreendida para os jogos de verdade diz respeito às maneiras pelas quais o ser se constitui historicamente como experiência, isto é, podendo e devendo ser pensado. “Através de quais jogos de verdade o homem se dá seu ser próprio a pensar quando se percebe como louco, doente”170, não-aprendente, julga-se criminoso ou excluído de determinados ambientes sociais. É, pois, no estudo do dispositivo da sexualidade, na antiguidades grega e latina, que Foucault percebe que as práticas de abstenção sexual, por exemplo, longe de responderem a grandes interdições sociais, civis ou religiosas, como produzidas pelo cristianismo e a Europa Moderna, atendiam a uma reflexão de ordem moral feita por homens, em uso do seu direito, seu poder, sua autoridade, sua liberdade. Em outros termos, é produzida uma austeridade em relação às práticas 169 FOUCAULT, 2007, p.11. 170 FOUCAULT, 2007, p.12.
108
dos prazeres numa vida de casamento em que nenhuma regra ou costume impede os homens em terem relações sexuais extraconjugais, em relações com os rapazes que pelo menos, em certos limites, são admitidas, correntes ou até mesmo valorizadas. Trata-se, por exemplo, da instituição para si de práticas de fidelidade não com um sentido universal, mas como uma moralidade pela qual organizamos e pensamos formas de nos conduzirmos. Trata-se de pensar formas e modos de viver essa fidelidade de um modo singular. Eis que aqui reside o entendimento das possíveis transfigurações em Foucault. Trata-se, afinal, de uma preparação para tomar a verdade como princípio de ação.
Práticas de si e as formas-sujeito da antiguidade. Que é a subjetividade? Michel Foucault responde que estudar as técnicas de si no ocidente, não significa estudar as formas de sujeição ou de assujeitamento, mas a subjetividade como resultado de uma certa quantidade de procedimentos realizados sobre si mesmo que implicam em uma produção ética. Trata-se, antes de tudo, de pensar uma relação do sujeito com a verdade, isto é, pensar em modos de subjetivação. Na antiguidade essa relação entre o sujeito e a verdade fazia parte de um programa filosófico que não separava filosofia de espiritualidade, ou seja, tornava a busca da verdade um modo de transfigurar o sujeito. Espiritualidade e verdade, duas faces de um mesmo programa filosófico, refreado pelo advento do mundo moderno, mas que no frescor do mundo antigo fez reinar a possibilidade da transfiguração de si diante da verdade. Eis do que falamos. Se a filosofia consiste em uma atividade que implica determinar os limites do sujeito no acesso à verdade, a espiritualidade consiste em um conjunto de práticas as quais o sujeito deve realizar, tal como a ascese, para poder ter acesso à verdade. Como diz Foucault, “é preciso pagar um preço para ter acesso á verdade”171. É preciso, pois, supor que o sujeito não pode acessar a verdade de “pleno direito”, como se estivesse estabelecido por uma lei transcendental que o sujeito é, por natureza, sujeito de conhecimento. Ao contrário, o sujeito para acessar a 171 FOUCAULT, 2006a.
109
verdade precisa modificar a si mesmo, de certo que o preço a pagar para acessar a verdade é a transformação do sujeito. A ascese é uma prática que leva o sujeito, uma vez que cuida de si e exerce sobre si uma certa quantidade de movimentos, se torna capaz de ter acesso à verdade. Então, é o trabalho sobre si mesmo que leva o sujeito a se mostrar como tendo direito à verdade. Nada de transcendental, mas de histórico, uma vez que é no trabalho diário sobre si que o indivíduo se torna um sujeito que conhece a verdade. Se para o pensamento moderno a verdade não passa de um efeito do trabalho do conhecimento, na cultura greco-romana, a verdade é o que “ilumina” o sujeito. Assim, a verdade, a qual o sujeito se deu ao direito em função da ascese, tem como efeito a transfiguração desse mesmo sujeito. Ela lança-se sobre ele, se volta a ele e o aperfeiçoa. Desde Platão até os estóicos, não havia separação entre espiritualidade e verdade. De certo que a prática filosófica era, ao mesmo tempo, uma busca pela verdade e um exercício de transfiguração de si. Buscar a verdade implicava uma atitude ética e estética. Para os antigos não estava colocada a questão do saber como resultado de um método seguro de acesso a verdade, o que implicaria um acúmulo de saber para decifrar o mundo e o sujeito. Mas, tratava-se de ver no saber um valor espiritual que propõe a salvação do sujeito, a transfiguração do sujeito, um envergamento sobre si que se lhe remete a uma conduta singular diante do mundo e de si mesmo. Saber sobre o mundo, não quer dizer acúmulo de certezas, mas acúmulo de ferramentas para enfrentar as surpresas da vida. Assim, conhecer é agir; agir sobre si mesmo, na medida em que conhecer a verdade, é dizer a verdade, é exercer a verdade para constituir a si mesmo, não como uma sujeição a uma lei exterior que submete a um comportamento, mas como um saber espiritual que leva à prática ascética, no sentido da produção de uma quantidade de equipamentos necessários para transfiguração de si. Ao abordar o tema das práticas de si, Foucault passou a tratar da auto-formação do sujeito, nem o sujeito enredado na gramática do discurso, nem o sujeito efeito de práticas coercitivas, mas um sujeito fruto de práticas e técnicas de si e para si mesmo. Por essas práticas, Foucault172 entende o conjunto de “procedimentos que sem dúvida existem em toda civilização, propostos ou prescritos 172 FOUCAULT, 2006, p.620.
110
aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de determinados fins, e isto graças a relações de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si por si”. Nesse caso, Foucault trata de práticas de liberação, de formas de relações nas quais o sujeito se volta para si mesmo, num movimento que significa envergar a força para constituir uma subjetividade. No caso das asceses antigas, o platonismo difere-se dos estóicos e dos filósofos dos primeiros séculos do Império. No platonismo trata-se de buscar algo fora de si, ou seja, o trabalho ascético se voltava ao reconhecimento de uma ignorância e uma busca de algo que estava fora do sujeito, numa atitude de descoberta da verdade. Uma verdade que o sujeito não sabe por ser ignorante, uma verdade escondida. No estoicismo trata-se de voltar a si mesmo, retornar a um mesmo lugar, onde nenhuma verdade reside escondida, mas significa construir um conjunto de procedimentos para enfrentar o mundo. Parece ser esta, a ascese dos estóicos, o que mais encanta Foucault. Nem a renuncia cristã, nem o vôo para o alto socrático-platônico, mas o voltar-se para si proposto pelos estóicos. Isso de início quer dizer pensar diferentemente do que se estabelece com Descartes, um apartamento entre espiritualidade e verdade; para o empreendimento de um processo estético de construção de si mesmo. Eis no que reside o interesse de Foucault pela antiguidade, particularmente, pelo estoicismo. Desde as práticas cristãs medievais, temos perdido a ideia de uma ascese que é prática de liberdade, que é constituição de um estilo para si mesmo, que é um modo artístico de se constituir. Na antiguidade a busca pela constituição de uma ética era um “esforço para afirmar a própria liberdade e dar a sua própria vida uma certa forma na qual podia se reconhecer e ser reconhecido por outros e onde a posteridade mesma poderia encontrar como exemplo”173. Por outro lado, com o advento da moral cristã essa prática de si como prática de liberdade e de produção de singularidade, dá lugar a uma prática que obedece a um código de regras exterior ao sujeito, uma vez que o cristianismo como “religião de texto” e de obediência a Deus, constitui uma moral a partir de um código exterior ao sujeito e universal de conduta. Assim, a ascese antiga se discerne da ascese cristã. Enquanto aquela realiza exercícios para atingir a 173 FOUCAULT, 2006b, p.290.
111
si mesmo, para voltar a si, esta realiza o exercício como submissão ao texto e com o objetivo de uma renuncia de si. Abandonar a si para acessar um plano exterior ao sujeito. Na ascese antiga a volta sobre si mesmo tem o objetivo de constituir uma subjetividade através de um processo artístico. As práticas ascéticas antigas não se pautavam pelo labor religioso, não tratavam de perguntar pelos Deuses, quem são os deuses ou como intervém na nossa vida, preocupavam-se em pautar sua própria conduta moral. Preocupavam-se os gregos em constituir uma ética que “fosse uma estética da existência”174. A moral cristã supunha abnegação, busca de uma pureza em relação à vida, de uma purificação da própria vida, contra a vida, tendo como referência uma lei externa, superior, baseada no livro sagrado e na palavra divina. Mas, inelutavelmente, os tempos atuais tem visto o abandono progressivo do modelo moral cristão. Um diagnóstico da nossa atualidade mostra que tanto a crença em um Deus universal, quanto num código de conduta moral único, tem perdido espaço. A estratégia de Foucault não é retomar as práticas ascéticas antigas, mas reconhecer na experiência dos antigos a potencialidade para pensar a atualidade. Na leitura dele a idéia de uma moral como obediência a um código de regras está em processo, presentemente, de desaparecimento; já desapareceu. E a essa ausência de moral, deve responder, “uma busca de uma estética da existência”. Emerge nas últimas entrevistas de Michel Foucault a ideia de uma estética da existência que está relacionada a uma tentativa de retomar uma “carta” do baralho do mundo antigo, a prática ascética como prática de liberdade, como prática de constituição de uma singularidade. A forma-sujeito da antiguidade é, pois, uma composição de verdades. Mas a composição também é o inventado (não copiado, nem imitado ou traduzido), o próprio; não proveniente de outrem. O não usual; extraordinário, esquisito. O singular. Porém, tudo proveniente de um jogo regrado de signos, finalidades, afetos, efeitos. Uma composição de si torna-se assim uma combinação estilística possível de diferentes jogos de verdade. Para quem pensou o sujeito como enredado nas malhas do discurso ou como efeito de uma cartografia de poder, agora o que resta é pensar a novidade e a diferença. É no sentido de uma estética da existência que Michel Foucault procurou pensar a diferença. 174 DREYFUS & RABINOW, 1995, p.260.
112
Michel Foucault – um pensador da diferença e das virtualidades. Nosso pensador foi duramente criticado ao ter declarado a morte do homem. “O homem é uma invenção, e uma invenção recente, tal como a arqueologia do nosso pensamento o mostra facilmente. E talvez ela nos indique também o seu próximo fim”175. Fora, igualmente criticado ao afirmar que o homem é produto do discurso e que se tornar sujeito consiste em posições que tomamos no interior de uma rede discursiva; do mesmo modo fora criticado quando supôs ser o sujeito um efeito de relações de poder, e que tais relações concernem a toda a rede social, de modo que ninguém a ela escapa. Michel Foucault mostrou que o sujeito universal é uma invenção histórica. Este texto não tem como objetivo, nem responder a essas críticas, nem mesmo defender Foucault de todas as acusações que lhe foram imputadas em nome da liberdade e da consciência histórica. Contudo, este texto se propõe a falar de liberdade. Melhor de práticas de liberdade. Dessas que já estamos falando desde as práticas ascéticas antigas e, mas precisamente, desde o estoicismo. Revolver o arquivo da antiguidade, como fez Foucault, embaralhá-lo; é realizar uma extensão de uma genealogia da moral, como fizera Nietzsche, ao pensar e produzir uma genealogia de uma ética e de uma estética, desde uma história da sexualidade e desde as práticas do cuidado de si presentes no ocidente greco-latino. Para Foucault, o estudo da ética sexual dos antigos, abre perspectivas não para se pensar a verdade sobre o sexo; mas, como a partir da sexualidade, por exemplo, podem se pensar uma multiplicidade de relações. Isso supõe, em princípio, imobilizar a moral universal do cristianismo desde o final do Império; diagnosticar o atual do nosso presente e supor que a carta do baralho antigo que parece vital para pensar o presente são as práticas do voltar a si como práticas de liberação. Uma prática ascética teria hoje uma função ética e estética de constituição de um modo de vida, como um processo em constante movimento que, rompendo com todos os universais e com a moral crista e burguesa, se propõe a pensar o impensado. Trata-se, antes, de não submeter à vida aos planos já constituídos e às relações já familiarizadas, e de inventar novos 175 FOUCAULT, 1991, p.421.
113
modos de ser ainda improváveis. Pensar em uma estética da existência não é abordar a experiência vivida, mas a fonte virtual que reside no interstício das relações – relações possíveis, ainda por inventar, a espera da experiência. Trata-se, pois, de uma dimensão estético-existencial que implica fazer-se diante da virtualidade que toda a prática vê flutuar em torno de si. Produzir-se é absorver a energia vital do imprevisível. É a partir dessa ética existencial, vinda da sexualidade, que Foucault176 pensa a amizade, dentre outras possíveis, como uma estratégia criadora dessa multiplicidade de relações possíveis, dessa virtualidade, dessa potência. Ao tratar da questão da Homossexualidade, por exemplo, o nosso filósofo é muito enfático ao dizer: “o que torna ‘perturbadora’ a homossexualidade é o modo de vida homossexual mais do que o ato sexual mesmo”177[grifo do autor]. Para Foucault, esta noção de modo de vida é importante, pois permite pensar em diversificações possíveis que não aquelas provenientes e já existentes de classes sociais, profissões, níveis culturais. “Um modo de vida pode ser partilhado por indivíduos de idade, estatuto e atividade sociais diferentes. Pode dar lugar a relações intensas que não se pareçam com nenhuma daquelas que são institucionalizadas e me parece que um modo de vida pode dar lugar a uma cultura e a uma ética178. Para o filósofo, que dois indivíduos do mesmo sexo comecem a se amar, produzam um desejo-inquietação um pelo outro, que compartilhem seus tempos, suas confidências, seus saberes, seus prazeres, isto é, as suas intensidades afetivas, é o que sacude e perturba a instituição. “Sim, muito profundamente. Entre um homem e uma mulher mais jovem, a instituição facilita as diferenças de idade, as aceita e as faz funcionar. Dois homens de idades notavelmente diferentes, que código terão para se comunicar? 176 FOUCAULT, 1981. 177 FOUCAULT, 1981, p.38. 178 FOUCAULT, 1981, p.39.
114
Estão um em frente ao outro sem armas, sem palavras convencionais, sem nada que os tranquilize sobre o sentido do movimento que os leva um para o outro. Terão que inventar de A a Z uma relação ainda sem forma que é a amizade: isto é, a soma de todas as coisas por meio das quais um e outro podem se dar prazer”. Uma sociedade um pouco destrutiva como a nossa, diz Foucault, não pode dar espaço sem temer que se formem alianças, que se tracem linhas de força imprevistas e por mais que os códigos institucionais se esforcem, estes não podem validar ou cercear as intensidades múltiplas que dessas inquietações e desejos se derivam. E essa, sem dúvida, é a razão pela qual a homossexualidade não é uma forma de desejo, mas algo de desejável. As diferenças e intensidades serão sempre derivadas do tipo de relações de amizade que estabelecem um com o outro. A cada nova relação uma derivação, uma forma. E, nesse sentido, colocamo-nos diante da necessidade histórica de reabrir virtualidades relacionais e afetivas, produzindo posições enviesadas, atravessadas, linhas diagonais, descontinuidades, que podem ser traçadas no tecido social e que permitam fazer aparecer virtualidades, cada vez mais afastadas daquilo que é lei, que é regra ou é hábito.
Referências DREYFUS, Hubert L.; ROBINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. (Trad. Vera Porto Carrero.) Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. FOUCAULT , Michel. De l’amitié comme mode de vie. Entrevista de Michel Foucault a R. de Ceccaty, J. Danet e J. le Bitoux, publicada no jornal Gai Pied, no 25, abril de 1981, p.38-39. (Trad. Wanderson Flor do Nascimento.) Disponível em: http://vsites.unb.br/ fe/tef/filoesco/foucault/biblio.html Acessado em 11 de outubro de 2010. _______. A arqueologia do saber. (Trad. Luiz Felipe Baeta Neves.) Rio de janeiro: Forense Universitária, 1987. _______. Microfísica do poder. (Trad. e Org. Roberto Machado.) Rio de janeiro: Graal, 1988. _______. As Palavras e as coisas. (Trad. Ramos Rosa.) Lisboa: Edições 70, 1991. _______. “O que são as luzes”? (Trad. Elisa Monteiro.) In: _______. Ditos & Escritos, v. II: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. (Trad. ) Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p.345-347.
115
_______. A hermenêutica do sujeito. (Trad. Márcio Alves da Fonseca; Salma Tannus Muchail.) São Paulo: Martins Fontes, 2006a. _______. Ditos & Escritos V: ética, politica e sexualidade. (Trad. Elisa Monteiro; Inês Autran Dourado Barbosa.) Rio de janeiro: Forense Universitária, 2006b. _______. História da sexualidade II: O uso dos prazeres. (Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque.) Rio de Janeiro: Graal, 2007. VEYNE, Paul. “O último Foucault e sua moral”. (Trad. Wanderson Flor do nascimento). In: Critique, Paris, Vol. XLII, nº 471-472, p.933-941, 1985. Disponível em: http:// vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/art10.pdf Acesso em 11 de outubro de 2010.
116
Uma didática menor: questão de entradas e saídas huler
Betina Sc
Capítulo Primeiro: lição de macaco [...] faço tão somente um relatório; também aos senhores, eminentes membros da Academia, só apresentei um relatório. Ao modo do macaco imitador do humano, em seu relatório para a Academia179, irrompe aqui uma fábula educacional: a didática. E nesse procedimento kafkiano, é roubada a minoração para fazer a didática dançar. E o problema está posto: trata-se de uma questão de entradas e saídas. Para tanto, esse relatório investe em certas entradas para tomar a didática em suas práticas discursivas, em seus procedimentos tecnicistas e críticos, para fazer outras coisas com ela. É retirada do didatez para ser pensada com outros atravessamentos para além de seu projeto moralizador. E nisso entra o macaco cuspidor do papinho pedagógico que não fala das profundezas. Fala das superfícies. E grita as saídas. Queremos aprender a sua lição: lição de macaco, lição de saída, de ir em frente, uma didática menor. Só não ficar parado. Ao macaco atraía a saída, apenas ela.
Capítulo Segundo: lição de entradas Abre-se uma porta e entram todos. Os silenciosos cartazes de frufru acompanham a cerimônia do caixote que se fecha para a melhoria do humano. E começam a cuspir os tratamentos, os encaminhamentos, as boas ações, os mesmos rostos, os mesmos movimentos, promessas. Nada no humano atraia o macaco, mas era sua invenção de saída possível. O que nos atrai na didática escolar? O que nos repulsa? O corpo pode mais. E pensa 179 KAFKA, 2011a.
117
com a barriga. Ao modo macaco, aqui é experimentada a vida e o pensamento, tentando rasgar práticas discursivas no presente, captadoras de homens, macacos e caixotes. E é justamente nessa compressão e sufocamento que surge a necessidade das fendas. De braços, mãos e barrigas contorcidas em movimentos dançantes, afirmando suas escolhas pela vida. E nisso se rompem os papinhos, as bobagens professorais daqueles que sempre sabem o que dizer, julgar, moralizar, prometer, educar para que se produzam algumas possibilidades de metamorfose na didática, para além das metáforas. As barrigas roncam as didáticas tecnicistas e sua busca incansável por eficiência, neutralidade, linearidade, memorização e repetição, fixação, adaptação, medição, padronização, transmissão de conhecimentos. Uma luta incansável pelo controle da animalidade, em nome da ordem, civilidade, moralidade. Burocratização do humano, em que pilhas de verdades, poeira e identidades amontoam-se sem fim180. A didática é aqui pensada em sua relação de imanência com a modernidade. Tanto foi produzida por uma nova forma de pensar quanto foi produtora dessa mesma racionalidade, estando assim, fortemente implicada na produção de um determinado sujeito para uma determinada sociedade, realizando fortemente o nexo entre saber e poder. Com esse nascimento disciplinar da didática, além de arranjar um lugar específico para cada um, organiza os critérios de esquadrinhamento que irão permitir localizar cada indivíduo, agrupar a partir de uma determinada lógica, desarranjar e hierarquizar tais categorias. Uma didática, pois, fincada nos processos de normalização, por meio de técnicas que tornem os indivíduos conhecíveis e governáveis. Ela nasce ocupando-se dos métodos e técnicas de ensino, buscando aplicar as diretrizes das teorias pedagógicas, estudando os processos de ensino e aprendizagem. Uma procura por dar cientificidade à pedagogia e, portanto, torná-la mais verdadeira e eficaz. Assim, opera com uma perspectiva (tomada nessa lógica como “a” perspectiva) de que as palavras são as coisas e, portanto, ensina-se um sentido para o mundo e se oculta seu processo de construção, fazendo-o parecer da ordem do transcendente. A linguagem, nesse nexo, transcreve o real e o currículo é tomado como um mundo objetivo de fatos, um repertório morto de elementos 180 KAFKA, 2005.
118
da realidade que foram descobertos, os quais necessitam ser transmitidos com exatidão e memorizados. O conhecimento é tomado pela necessidade de explicação, ligado a esquemas mentais de raciocínio e localizado na adultez. Uma marcha de objetivos, avaliações, grades curriculares, planos de unidade, disciplinas, objetivos, técnicas de ensino, recursos, resultados, utilitarismos. Uma marcha de alunos estancados em divisões binárias e cobrados desse lugar. A barriga ronca a falta de vida e sente fome de outras coisas. E por isso talvez, faça jejum. Por isso a artistagem da fome181. Não porque não se quer comer. Sim, se tem fome, muita fome. Mas de outros alimentos! Para além desse humano médio, morno e tão satisfeito consigo mesmo e seu ressentimento, a barriga segue roncando e tentando cuspir. Mas lembremos que somente o inseto gigante parou para ouvir o violino e viver ali sensibilidade e beleza. A música o prendia. Seria ele um animal182? Mas há ainda a denúncia de tudo isso. E desponta a didática crítica. A barriga segue roncando as cidadanias, as libertações (lembrando que o macaco imitador preferiu a invenção de saídas à liberdade do humano), conscientizações, as ideologias, representações, a militância, os currículos ocultos, as identidades, a inclusão, a diferença relativa em que a diferença ainda está subordinada ao idêntico. O animal da toca183 já tinha cantado essa lição: a inclusão que a tudo engole e mesmifica, galerias devoradoras. Tocas burocráticas, tocas tribunais, tocas paranóicas com medo do estranho, furungação constante em busca de certeza. A segurança que tudo tenta calcular e domesticar. Os encontros já previstos e nomeados. Os assentos morais ocupados. A identidade unificadora e a normalidade184 grotesca parecem brotar do chão, mas não metafísicas e por isso a possibilidade de pensar de outros modos. De pensar com a barriga, com uma barriga. Professor Kafka e Professor Nietzsche gostam dos estômagos leves, que ruminam e digerem a potência, vomitando o ressentimento e a culpa. Riem da invenção de modelos e cópias e dançam a vida como uma arte. E a didática não está fora disso. É colocada também para dançar. Ela não resolve ficar, porque está ocupada demais pensando na próxima saída. Os escapes, 181 KAFKA, 2011b. 182 KAFKA, 2009e. 183 KAFKA, 2009d. 184 FOUCAULT, 2001.
119
sempre os escapes. Desconfia que as palavras não são as coisas, assume uma linguagem menor, uma linguagem que é dessa vida e desse mundo, que desinventa o verbo e fabula a vida, interrompe para ouvir os silêncios e respeita a artistagem da fome, que pinta os sons de violino. Para isso, é tomado o procedimento da minoração185 para pensar a didática, no sentido de desmanchar os conectores de poder, sustentados pelos discursos científicos, tecnicistas ou críticos, nos quais a didática se constitui com força de verdade no campo da educação. Minoração no atravessamento de outros aportes, tais como a literatura de Kafka. O macaco relatoriador entende que essa problematização da ciência coloca-se como uma crítica da verdade, como um valor que esqueceu que o é. Por isso a potência da genealogia186 para pensar essa questão para além da verificação da oposição de verdade e erro, sendo a ciência o princípio de julgamento e tendo em seus procedimentos a garantia da verdade187. Por isso, tomar a didática genealogicamente, atravessando-a com a literatura de Kafka, pode ser entendido como um procedimento de minoração, pois o que vai interessar são as condições de existência e não de validade, assim como as possibilidades de criação. Trata-se de tirar a língua de um lugar dado e acostumado e fazer outros usos dela. Trata-se de operar nesse campo como uma micropolítica, como um outro modo de exercício político, no qual sintomas julgados a priori como individuais, são tomados como questões de ordem política na dissolução do sujeito. Essa furungação didática não significa ser contra o que é ficção e, então, a favor do que é “realmente real”. Não existem valores fora do mundo, fora da cultura, fora da linguagem, fora das relações de força. Por isso a pergunta não é pela origem da verdade, mas por essa vontade de verdade. A vida é maior do que o que temos por lógica, verdadeiro, falso. Não se trata de uma busca por desvendar uma verdade transcendental de um sentido, mas mostrar as estratégias de produção dos efeitos de verdade, entendendo o discurso como um espaço onde poder e saber se articulam188. Crença na verdade como um bastão contemporâneo no guiamento das condutas, porque louvado como valor superior. Uma estreita ligação 185 DELEUZE; GUATTARI, 2002. 186 NIETZSCHE, 2006; FOUCAULT 2002a; 2003. 187 MACHADO, 2006. 188 FOUCAULT, 2002a.
120
entre ciência e moral, uma vez que é esta moral platônica-cristã dos ideiais que dá valor à ciência. Mas o macaco ri de cabeça inclinada, entendendo que os valores morais não têm uma existência em si; são produções nossas, humanas, e que o critério de avaliação poderia ser deslocado para o aumento ou não da vida. Daí a importância de examinar o funcionamento dos discursos didáticos que se instituem como práticas discursivas, produzindo os objetos de que falam, em conexão com os eixos de poder, saber e formas de subjetivação. Não temos uma essência, uma natureza, uma realidade pré-existente, uma vez que nos constituímos em práticas que obedecem a determinadas racionalidades, produzindo o que temos por verdade. Não há conhecimento verdadeiro sobre o homem, uma vez que ele mesmo não passa de uma ficção189. Aqui o homem kantiano tomado como medida de si mesmo dissolve-se em frestas. Por isso esse relatório se coloca em uma perspectiva extra-moral. Não é contra a moral, mas para além dela, buscando problematizar essas forças didáticas tecnicistas e críticas, ambas imanentes à modernidade e funcionando na crença inabalável no ser do pensamento racional, o qual é capaz de não apenas conhecer, mas também ser corrigido e corrigir. Para isso entram os currículos e suas organizações disciplinares de corpos e saberes. As avaliações e seus critérios binários e classificatórios de inteligência e não-inteligência. As distribuições de tempos e espaços no esquadrinhamento para a produção do corpo útil na maquinaria capitalística. As escritas resumidas a resenhas, perguntas, respostas, redações, títulos, reprodução e classes gramaticais. Os encaminhamentos à experts da alma humana para a melhoria daqueles que não cabem. A didática funcionando em seu poder de normalização, em nome do bem-estar e da produção de cidadãos. A partir disso, é colocada a necessidade de perguntar: como alunos e professores são tomados como objetos de conhecimento em relação a essas categorias e, ao mesmo tempo, subjetivados como um determinado tipo de sujeito a partir de tecnologias disciplinares, biopolíticas e de controle que funcionam no campo da didática190? Vivemos um panóptico generalizado, no qual os rastelos191 são cada vez mais múltiplos. Assim, 189 FOUCAULT, 2002b. 190 FOUCAULT 2002a; 2002c . DELEUZE, 2008. 191 KAFKA, 1993.
121
poderíamos perguntar: como o indivíduo pode ser tomado como objeto de conhecimento em relação à aprendizagem, ao currículo, avaliação, planejamento, inclusão? Quais são as relações de poder que estão circulando e quais os efeitos que estão sendo produzidos? Como estão operando os mecanismos de obtenção da verdade? Apoiados por quais critérios e técnicas de verdade? Sustentados por quais hábitos e rotinas? De que modos os indivíduos estão aprendendo a se relacionar consigo mesmo nestes contextos? Por meios de quais verdades problematizam a si próprios quando se enxergam como aprendizes, crianças, adolescentes, aprovados, reprovados, inteligentes, não-inteligentes, comportados, não comportados, civilizados, não-civilizados, normal e anormal, saudável e patológico nessa maquinaria binária? Por meio de quais conceitos estamos problematizando a nós mesmos e quais os modos de subjetivação estão sendo fabricados? A partir dessas questões que buscam fugir das facilidades das explicações metafísicas a didática é colocada para dançar para além da denúncia. Perguntar como estamos nos constituindo em relação ao saber, ao poder e ao si, buscando as forças e as relações de poder ligadas às práticas discursivas nos incita a exercermos uma relação ética, como uma prática estética de existência. Um modo de atuar sobre si mesmo para além da moral prescritiva, arranjando fendas nos tipos de individualização ligados ao estado, ao didatez, à língua maior. Nesse sentido, quando pensamos a didática, rompemos com a lógica que toma a identidade fixada e fixadora como um ponto de partida, para entender que nos constituímos na exterioridade do acidente, do acaso das batalhas, para além dos manuais do humano. Trata-se de implicações de estilos de vida, aqui encaradas sempre como questões políticas192. Uma dança de saídas. Uma saída na necessidade de cuspir. Talvez seja desse tipo de dignidade que Nietzsche193 falava em relação ao pensamento. A primeira precaução: a lentidão na ruminação. A segunda: não abdicar de si mesmo, não se sacrificar em nome de uma moral superior, mas construir a própria vida como uma arte de viver que, paradoxalmente, passa por um permanente afastar-se de si. E uma terceira precaução: tentemos! Tentemos!!! 192 FOUCAULT, 2003, 2007. 193 NIETZSCHE, 2001.
122
Capítulo Terceiro: lição de saídas Saída na função K, para além da metafísica, para além do salvacionismo, do tecnicismo e da denúncia. E para a invenção de saídas, mais algumas precauções metodológicas à la Foucault. Muitos professores foram aqui consumidos para isso. Tomar a didática para além do tecnicismo e das teorias críticas denuncionistas, abre uma possibilidade de atravessarmos esse campo com outros aportes194. Nesse sentido, é experimentado o procedimento de minoração na didática, justamente amputando os elementos da língua maior para além da pretensão de escrever sobre a realidade195. E nesse relatoriar, a didática é tomada como uma questão de poder, saber e subjetivação: a potência da genealogia196! Esse projeto nietzschiano que opera com a ruptura de uma lógica metafísica, aposta em uma problematização descontínua da valoração dos valores, negando o valor “em si” dos valores. Nietzsche197 problematiza essa moral universal que se pretende para todos no julgamento das condutas humanas, funcionando fora do tempo e do espaço, nos levando a perguntar pela condição de invenção dos valores em questão. Por isso, os valores com os quais lidamos no campo da didática não existem pairando no céu eterno, mas são fabricados historicamente, descontinuamente. Os códigos que temos, as categorias que usamos para nomear ao mundo, aos outros e a nós mesmos têm uma vasta conexão com as invenções de juízo de valor de bem e mal, que se produziram em práticas sociais. Tomar a didática pela genealogia de Nietzsche e Foucault é encarado nesse relatório como um modo de minoração no campo da didática. Um menor muito longe do menor kantiano198, que nos produz nessa lógica de sairmos de um estado de menoridade, tomada como defeito de preguiça e coragem, para atingirmos nossa maioridade e o uso autônomo da razão. Trata-se aqui de outra coisa. De uma minoração que problematiza justamente essa razão pura, esse sujeito centrado, essa emancipação. Essa lição menor nos abre outras possibilidades de vida, de pensamento, de escrita. 194 MATOS, 2009. 195 DELEUZE; GUTTARI, 2002. 196 CORAZZA; TADEU, 2003. 197 NIETZSCHE, 2006. 198 KANT, 1988.
123
Trata-se de um uso menor dessa língua. Por isso tomar de Kafka sua mecânica para pensar a didática, para inventar outras dobradiças, conceitos e personagens por meio disso, ao invés de ficarmos confirmando o que já sabemos, constitui-se como um escape dessa noção de liberdade moderna, para pensarmos as saídas. O macaco sabe que se trata de forças, de relações de forças, de estratégias e não do poder como propriedade. Sabe que buscam gerir sua conduta e que somos seu principal efeito. E nessa capilaridade sem centro irradiador, vê o poder em sua amarração com a produção de saberes. Isto é óbvio. Escreveu um relatório à Academia. Entendeu facilmente que nosso regime político de verdade está atravessado pelo discurso científico. O mesmo discurso que se apropria da didática em sua constituição, para fazê-la funcionar com valor de verdade. Nós esquecemos dessa invenção e esquecemos que esquecemos e, assim, a ciência produz na educação e no mundo esses efeitos de verdade. O macaco em suas aulas entendeu que se trata de relações de forças com os outros e consigo mesmo e que uma série de técnicas são postas em funcionamento para ensiná-lo a assumir um determinado lugar, se assumir como um determinado tipo de sujeito. Mas o macaco entendeu muito mais. Daí a minoração199 para a criação de outras possibilidades éticas, estéticas e políticas na didática. A partir disso, o conhecimento passa a ser vistos de outros modos, já que, nessa perspectiva, é entendido não como fruto da interioridade do sujeito, mas resultado de batalhas pela imposição de sentidos. Conhecer não estaria, assim, na ordem da explicação, mas de interpretações infinitas. Os conceitos com os quais aprendemos a nomear o mundo são históricos, tiveram certas condições de possibilidade para existirem. Não há um mundo lá fora a ser representado pela linguagem e um sujeito, tal como uma interioridade, que o representaria pela linguagem. Somos nós que inventamos e colocamos sentido no mundo, não há um sentido nele mesmo. Não há sujeito, identidade, interioridade; o que temos são efeitos de subjetivação, uma posição no discurso, ficções. E as saídas são mais algumas invenções no alargamento dos modos de existência. E como diz de relações espalhadas por toda a teia social, as lutas não podem vir de fora, pois será sempre resistência e invenção dentro 199 DELEUZE; GUATTARI, 2002.
124
das próprias relações de forças. Fala-se de pontos móveis, produzidos na imanência e contingência da vida, para podermos pensar de outros modos. O macaco está confuso, pois isso significa que os universais deixam de ser os explicadores do mundo e entende-se que são eles que precisam ser explicados, em sua formulação e funcionamento. Não se trataria mais de uma correspondência entre aparência e essência, mas trazer para a visibilidade as condições de invenção. A identidade é picotada, o rebanho é posto de frente com o seu esgotamento. Um cansaço desse homem moderno, burguês, calculado, esquadrinhado, burocratizado, regulado, binarizado, normalizado. Por isso a necessidade de invenção de saídas. Uma saída na didática. Uma minoração da didática. Uma fresta na toca, que toma como matéria a própria vida. Um colocar para dançar as coisas já pensadas e os textos já lidos, os poderes instituídos. Corpos vivos nessa didática menor que escorrem nessa maquinação normalizadora. As didáticas chamadas “oficiais” não são apenas compostas de informações. Há toda uma organização do conhecimento, o modo de se trabalhar com ele e o tipo de racionalidade que o está regulando, o que implica na produção de determinados modos de ser, agir, ver, sentir, pesquisar, perguntar. Práticas discursivas e não-discursivas200 na produção do que temos por realidade, por verdade e por nós mesmos. A didática é retirada do campo do universal e do total e jogada para o terreno da imanência, da possibilidade de criação. Não se trata da superação do velho pelo novo, de denúncia ou de um novo projeto de salvação. Versa, justamente, sobre algo bem mais modesto, até porque a escola moderna nasce no cruzamento de um poder pastoral e de uma razão governamental201 com a preocupação da condução das condutas. Uma instituição que nasce como instituição de confinamento, atravessada por exercícios do poder disciplinar e biopolítico e que se faz nessa relação de imanência. Portanto, o que se busca não parte de um entendimento que nega toda essa constituição da escola e sua didática, mas traçar pequenos esburacamentos, arquitetar provisórias saídas, fazer escapes, alguns rasgos para podermos pensar e viver outras coisas. Apenas a invenção de saídas para um respiro de ar fresco, quando o mofo pedagógico já entope a garganta e 200 FOUCAULT, 2002b. 201 FOUCAULT, 2008. Ó, 2003.
125
seca a língua. Queremos outras línguas que, colocadas na ponta dos dedos, escrevam exercícios éticos, estéticos e micropolíticos, em que a diferença não esteja submetida ao jogo da identidade. Por isso, mais do que metodologias e técnicas de ensino, essa minoração constituidora de saídas pensa em procedimentos, tais como táticas e estratégias que inventam novas conexões entre os acontecimentos vividos, experimentando outras possibilidades de existir. Para além do coro da verdade ou erro; a criação, a vida. As inscrições se dão no corpo, é do corpo que se trata a didática. E não do seu avesso, mas de sua multiplicidade. Um modo de resistência contra a barbárie da subestimação da inteligência de alunos e professores, contra o abandono intelectual, contra uma relação de embrutecimento que assumem consigo mesmos, da imobilização que proíbe o inédito de cada vida e acontecimento. Tornar a didática uma máquina: uma máquina literária, filosófica, científica. Uma filoescritura que desmanche os dados da língua maior, que diagnostica o presente para buscar entender como estamos nos constituindo no que somos, no que estamos deixando de ser, o modo como falamos e escrevemos isso, na criação de brechas para outros modos de pensamento e existência. Língua essa dos tribunais pedagógicos que, por meio de seus experts, operam na melhoria do humano, em nome de um ideal. Que tomam a ovelha de rebanho como medida de todas as coisas e a escola como tendo a função de realizar tal função. Portas202 feitas à medida de cada um. Relatórios diários que examinam a normalidade a anormalidade do humano didatizado. A didática? Ela se coloca a esse serviço. Do disciplinamento, à biopolítica, ao controle. Mas não uma didática menor. Por que não existe “a” didática. Existem didáticas e alianças provisórias. Uma didática do Fora? Fora daquilo que constitui a materialidade do nosso pensamento e de nossos modos de existência? Talvez. Kafka falando da partida203, já anunciava sua meta: o fora. Kafka204 e seus pés trepadores de degraus que pisoteiam essa perspectiva que quer apresentar o mundo como explicado e explicável. Tomar a didática via o processo de minoração traz a importante questão de que todas as questões individuais estejam ligadas à política. 202 KAFKA, 2009b, 2010. 203 KAFKA, 2009a. 204 KAFKA, 2009c.
126
Nesse sentido, uma didática sem autores e mestres. E como extrair da própria didática uma didática menor, que seja capaz de pensar a linguagem e operar com ela como uma linha revolucionária? Talvez como Deleuze e Guattari205 trouxeram a partir de Kafka, há uma certa disjunção entre comer e falar e entre comer e escrever. Logo, pensemos no estômago leve de Nietzsche e da ruminação. Talvez a dica por começarmos pelo jejum. Desse modo, esse relatório de didática não se coloca como uma metáfora, que ainda conserva um sentido primeiro em seu funcionamento, mas com metamorfose, que multiplica as palavras. A linguagem, pois, deixa de querer representar o tempo todo para alargar os limites. Não se versaria mais de mera explicação. Há uma fartura de opinião, informação, comunicação, palavras de ordem. Didática na sociedade de controle! Fazer outras coisas nesse campo nos exige um exame fino e delicado de sintomas quanto à linguagem como transmissão de ordens, exercício do poder ou resistência a isso. A linguagem não apenas transcreve uma realidade dada a priori. Ela faz muito mais do que isso. Ela produz o mundo. Por isso não pode ser pensada fora das relações de força. Por isso pode ser tomada em sua força ativa, revolucionária, de fronteira. E daí o grande desafio de desmancharmos essa relação que assumimos conosco mesmo, desaprender os lugares que aprendemos a ocupar na docência, desconstruir as metanarrativas de uma razão pura e identidade. Não temos como saber o resultado desses outros movimentos, pois se opera com o processo. Não temos como prever e regular os efeitos. Temos como disparar forças junto a outras forças. Uma didática do estranhamento e resistência. De sintomatologizar o nosso presente e analisar quais são as forças que estão se apropriando da didática nas escolas, quais valores estão sendo valorados, valorados por quem, porque esses valores e não outros em seu lugar. E dessa sintomatologização com precisão cirúrgica, tirar detalhes da vida, do cotidiano ainda não esquadrinhados pelas didáticas da representação, para fazer outras coisas com isso206. Multiplicação de sentidos, disparar outras leituras e escritas, outras produções que desmanchem com essa divisão entre ficção e realidade, essa modelização sufocante, quando se toma com Nietzsche a idéia de que tudo o que temos são interpretações, isto é, invenções de 205 DELEUZE; GUATTARI, 2002. 206 CORAZZA, 2010; 2011.
127
sentidos. Daí a didática preocupada com ritmo, em colocar para dançar, em fazer a aula funcionar e o que importa será a criação que está implicada, que desconcerte esse corpo já todo codificado. Mas o pensamento não pensa sozinho. Já nos cochichava Foucault que ele precisa ser forçado a pensar, uma vez que rompe com a noção moderna de Razão e vai negar que o pensar seja o exercício de uma faculdade inata ou algo adquirido, argumentando que o pensar se dá em uma intromissão do de-fora, nessa desarticulação com o que está dado. Sendo assim, o pensar envolveria experimentação e problematização, sendo que o poder, o saber e a constituição de si seriam a raiz tripla de uma problematização do pensamento, o que vai desafiar a criação de novas formas de subjetividades e de pensar207. O conhecimento não existe fora das relações de forças que o produzem e o tornam possível, pois conhecer é sempre atribuir sentido. É sempre da ordem da imposição, da valoração, da ficção. E não há um “eu” por trás dessa produção, um sujeito centrado, autônomo, racional que produziria esse conhecimento. Novamente Professor Nietzsche nos ensina com sua genealogia que o que temos é somente a ação. Com que postura nos colocamos diante disso? Como entrar nessa relação escapando de aulas já dadas, de textos já lidos, de condutas marcadas? Talvez um jejuar de tantos padrões, metodologias certeiras, cálculos e médias, identidades e verdades para buscar as condições de invenção dessas valorações. Um jejuar dessas unidades que validam a si mesmas em protocolos que esqueceram que são uma invenção e assumem caráter sacro nas escolas. Um jejuar desses conhecimentos que se apresentam como universais e totais, porque científicos. Um jejuar de uma moral de rebanho para entender que a moral é da ordem da imanência, pois os valores são desse mundo. Uma artistagem da fome na escavação de saídas, que justamente pergunta quais as condições de possibilidade para esses valores em seus efeitos de poder, em suas produções de subjetivações. Por que a subjetivação não é um fato e muito menos um ponto de partida. É da ordem da produção. Jejuar a tudo isso não significa um vale-tudo. Muito menos um nada. Trazer para a visibilidade a arquitetura dessas galerias didáticas 207 DELEUZE, 1998.
128
significa expô-las como artefatos que são e que, portanto, podem ser diferentes. E esse movimento não é isento de relações de forças, uma vez que se trata também da invenção de outros sentidos. E, para isso, precisamos de outros procedimentos. Mas não em nome de uma nova prescrição, de uma nova grande revolução, de uma outra salvação. Por isso esse currículo menor não pergunta se esse conhecimento é verdadeiro ou falso, mas pergunta pela sua afirmação de vida. Um conhecimento que não serve para conhecer, mas para cortar, na experimentação de infinitas combinações e arranjos. Por isso essa avaliação não se pretende calculadora ou salvadora, mas funciona no jogo do poder e saber. Por isso essa didática menor não tem um ser humano ideal a cumprir, porque não é da ordem metafísica. São ângulos, perspectivas, linhas, em que nenhum ponto tem privilégio sobre o outro. Carnaval de máscaras. Invenção de um encontro com a didática, na criação de um outro funcionamento para esse corpo. E para isso, Professor Kafka nos deixa alguns procedimentos para pegarmos a didática pelo rabo na problematização do que estamos nos tornando no presente e dos valores que estamos valorando. Combina-se ao Professor Nietzsche, que nos pede antenas em pé no exame das forças ativas e reativas e um estômago leve para digerir tudo isso e vomitar o necessário. Daí a potência da ruminação. Da arte de ruminar. Tomar a didática na lentidão necessária e mastigá-la na constituição de outras possibilidades. Uma mastigação por repetida vezes, utilizando-se de diversas línguas que cortam os sentidos ao invés de operar em uma lógica explicativa que antecipa o pensamento. É com mandíbula forte que a mesmidade vira resto. Um abdômen-casca que estranha os universais e tem congestão dos micro-fascismos que vivemos todos os dias em nós. Uma ruminação literária para tomar a didática em suas forças de criação, estabelecendo novas amarrações entre os eventos experimentados e os documentos que entramos em contato. Farejando com nariz de abutre208 os sintomas no presente, para pensarmos outras afetações para além do esgotamento que vivemos. E nessa deformação do corpo da didática, podemos pensar em um alargamento ético, estético e político. Não se trata de opor a teoria como abstração à vida como prática; hierarquizar os saberes em científicos e 208 KAFKA, 2009f.
129
não-científicos e entre o que é sério e o que não é; não há uma perspectiva privilegiada da verdade, de entrada na obra, mas multiplicidades. Não há uma consciência transcendental que almeja ser alcançada ou um tempo ideal que busca ser ressuscitado. Essa ruminação enjoa com as generalizações e pede a experimentação, sussurrando as impossibilidades kafkianas que aqui são roubadas para pensar a didática: a impossibilidade de não escrever, a impossibilidade de escrever sobre tudo, a impossibilidade de não escrever em uma língua menor como modo de saída. Contra o que apequena a vida e esgota o corpo: a função K na didática. Por isso esse relatório não pretendeu escrever sobre a verdade da didática, muito menos fazer completamente outra coisa com a escola, realizar uma nova grande revolução, defender uma nova promessa de emancipação, mas justamente multiplicar os sentidos e as possibilidades de existência nesse campo na invenção de algumas fissuras.
Capítulo Quarto: relatoriando uma didática menor A didática, tomada para além de uma perspectiva tecnicista ou da denúncia, problematizada a partir dos conceitos de transvaloração em Nietzsche e de subjetivação em Foucault, arranca a didática do seu lugar acostumado, para pensá-la como uma questão de valoração, de relações de força, de constituição de saberes e produção de modos de subjetivação. Uma convocação que chama a didática à vida, no alargamento dessas práticas para além da representação, explicação e informação, uma vez que a linguagem é tomada em seu caráter produtivo, constituidor da realidade. Para tanto, opera com o conceito de minoração em Deleuze e Guattari209, como um modo de extrair da própria didática uma didática menor, tal como uma precaução de intruso, na invenção de saídas possíveis para o escape. Uma didática menor na expansão de entradas e saídas, na criação de outras possibilidades de existência nesse campo agora esburacado. Um alvoroço de saída. Para além de escrever sobre o que a didática “é”, este relatório pretendeu simplesmente relatoriar algumas entradas e saídas, para pensarmos 209 DELEUZE; GUATTARI, 2002.
130
outras possibilidades de criação com ela, tal como um procedimento de transvaloração. Talvez deslocamentos necessários que mexam com nosso modo de pensar a escola e suas práticas, em uma aposta nas forças ativas. A didática vem de uma longa trajetória positivista, iluminista, tecnicista, passa pelo crivo das teorias críticas e hoje é cavocada pelo pensamento da diferença. Mas isso não significa uma substituição ou uma hierarquização. Mas a escolha de operar com a função K na didática, na impossibilidade de uma lógica explicativa. Uma engenharia de saídas ao invés das liberdades inventadas pelas disciplinas210, das fugas ou denúncias militantes. Não se quer tornar livre da didática, mas produzir outras linhas. Trata-se da impossibilidade de não criar na didática, a fim de não se morrer de fome ou sufocado. Este modo não opera em nome de uma grande bandeira, mas de um modo micropolítico no desenho de outros autores, personagens, cenários, línguas. Uma condição de resistência à didática maior, à didática do Estado, à didática com letra maiúscula, às didáticas das paredes que correm cada vez mais rápido para a finalização do canto. Um arrancar essa linguagem didática do sentido. Metamorfoses didáticas. Metamorfose nessa utilização outra da língua, na intervenção rigorosa em sua materialidade. Tomar a didática como parte de uma estética da existência. Professores que ao modo de macaco ensinaram a dissolução do sujeito e deslocaram a discussão do sujeito para os modos de subjetivação. Que deslocaram as teorias do poder para o exercício microfísico e produtivo do mesmo. Que mostraram a verdade como mais um valor em suas tecnologias de veridição e efeitos de poder. Que transvaloraram os valores. O macaco ensina uma lição modesta para a didática. Não há uma natureza didática. Portanto há invenção e a possibilidade de nomearmos nossas práticas, aos outros e a nós mesmos para além do registro da moral. Daí a importância de mostrarmos a arquitetura dessa muralha, assim como seus buracos cariados. Por que o saber tende a esquecer de onde veio e se naturaliza, normaliza e domestica os sentidos e as palavras. E a vida mofa. Por isso a precaução metodológica de Foucault211: perguntar pelo campo atual das experiências possíveis. E inventar outras possibilidades. Lição de macaco: não ser escravo dos outros e nem de si mesmo. Kafka lecionou saídas. Por que não gostava de palavras acostumadas. Por 210 FOUCAULT, 2002a. 211 FOUCAULT, 2010.
131
isso criou um sotaque de fervilha. Prendeu a fome de bobagens. E inventou o violino encantador de insetos gigantes, com ouvidos sensíveis. Kafka deforma a didática. O gato fabulador nos diz para mudarmos a direção. E nos come212. Força-nos a pensar na criação de problemas específicos nesse campo. E a didática pegou deformação. Por que abre um olhar grande para o mundo e, ao mesmo tempo, um olhar que não é oura coisa, senão o próprio mundo. (Des)praticando a norma e fazendo selvagem a linguagem, coça a idéia de pensar uma didática que não seja a da palavra de ordem, que queira significar o tempo todo a vida para os outros, que queira falar pelos outros. Uma prática de fissuras micropolíticas. E, ao modo de macaco saidor, a experimentação de procedimentos na didática, no pensamento, na escrita, na vida. Por isso o macaco nietzschiano tentou. E esta escrita é isto: apenas um relatório. Que fala de um ponto específico. Que não quis negar o passado, nem projetar o futuro. Tão somente buscou problematizar o presente na possibilidade de invenção de um outro corpo para a didática. Nessa urgência, há uma inclinação de cabeça, um ronco de barriga e uma casca arrebatadora. O macaco introduziu-se na didática e empurrou o pensamento. Um simples alargamento! Lecionador de saídas: procedimento de abdômen-casca 213 Começa desaparecendo dá lugar à vibração que ri dos significados da verdade apalpando uma escrita que se desprende para a voz de chão prefere os buracos no parquê desbotado de laranja que engole a função de liberdade para sorrir as saídas nos ventos de março amanhecidos de fumaça fria invenções de saídas possíveis.
212 KAFKA, 2011c. 213 Escrita resultante de uma experimentação didática com alunos do Ensino Fundamental da EMEF Rincão, Porto Alegre - Oficina de Transvaloração: Filoescritura com Kafka, criada junto ao Projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida (2011).
132
Arrancado o vestido de tribunal espartilhos que teimam em começar com letra maiúscula que espremem o sentido explode um abdômen-casca que alarga o léxico o xico e o que raspa disso. Vereditos mofam na garganta e saem fungos de realidade deixam sua colônia aveludada a da certeza e acusam a falta de real o excesso de ficção bate: tique-taque maquinação: Tu deves temos ainda os parquês desbotados de laranja. Corte da defesa Metamorfose função K na delicadeza de procedimentos mastigadores da razão explicativa na congestão desse parasitismo procedimento de abdômen-casca. Na invenção de uma outra fome que nos come uma salivação menor máquina filoliterária mixada habitar em uma língua fronteiras estrangeiras. Quarto fechado como deserto e de repente cessa o papinho as bobagens as opiniões certo jejum para respirar com maçãs entaladas nas costas 133
chamadas notas gramáticas cálculos do humano. Acusam as maçãs podres rasgação da acusação dos acusadores batidas ecoam múltiplas entradas escolha de entrar de lado de cabeça erguida para metamorfosear-se em orelha alargada na função K sons alados. Um outro funcionamento para o corpo-escrita o quarto subindo em mim na inclinação necessária de escrivaninha a existência vira ritmo na estação dos insetos vestimos a delicadeza vestimos língua, casca e abdômen. Função K na ponta envergada dos dentes secura do nariz rasteja ao desaparecimento celebra a potência da invisibilidade Que se passa? Não há mais cordas para dizer do mesmo Gregor já escreve na nossa língua teimosa escorre estranha para o canto da boca um grito com fru-fru correu pelas paredes: - Que se passa?
134
São a boca e o estômago que entendem Que agora tinha outras fomes alimento delicado de vertigem mordiscado ao estranhamento outros modos à mesa penso como abdômen-casca!
Referências CORAZZA, Sandra Mara. “Introdução ao método biografemático”. In: FONSECA, Tania Mara Galli; COSTA, Luciano Bendin da (Orgs.). Vidas do fora: habitantes do silêncio. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010. _____. Caderno de Notas: para pensar as oficinas de transcriação. Observatório de Educação. Escrileitura: um modo de ler-escrever em meio à vida. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. CORAZZA. Sandra; TADEU, Tomaz. “Dr. Nietzsche curriculista – com uma pequena ajuda do Professor Deleuze”. In: CORAZZA, Sandra; TADEU, Tomaz. Composições. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. DELEUZE, Gilles. Foucault. (Trad. José Carlos Rodrigues). Lisboa: Veja, 1998. _____. Conversações. (Trad. Peter Pál Pelbart). São Paulo: Ed. 34, 2008. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: para uma literatura menor. (Trad. Rafael Godinho.) Lisboa: Assírio & Alvim, 2002. FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). (Trad. Eduardo Brandão.) São Paulo: Martins Fontes, 2001. _____. Vigiar e punir: nascimento da prisão. (Trad. Raquel Ramalhete.) Petrópolis: Vozes, 2002a. _____. Arqueologia do saber. (Trad. Luiz Felipe Baeta Neves.) Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002b. _____. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). (Trad. Maria Ermantina Galvão.) São Paulo: Martins Fontes, 2002c. _____. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. (Trad. Roberto Machado). Rio de Janeiro: Graal, 2003. _____. História da sexualidade, 2: O Uso dos Prazeres. (Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque.) Rio de Janeiro: Graal, 2007. _____. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-1978). (Trad. Eduardo Brandão.) São Paulo: Martins Fontes, 2008. _____. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). (Trad. Eduardo Brandão.) São Paulo: Martins Fontes, 2010. KAFKA, Franz. Na colônia penal. (Trad. Modesto Carone.) São Paulo: Editora Brasilense 1993. _____. O processo. (Trad. Modesto Carone.) São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
135
_____. “A partida”. In: _____. O abutre e outras histórias. (Trad. Noémia Ramos.) Lisboa: Estrofes e Versos, 2009a. _____. “Diante da lei”. In: _____. O abutre e outras histórias. (Trad. Noémia Ramos.) Lisboa: Estrofes e Versos, 2009b. _____. “Advogados”. In: _____. O abutre e outras histórias. (Trad. Noémia Ramos.) Lisboa: Estrofes e Versos, 2009c. _____. A toca. (Trad. Franscisco Agarez.) Lisboa: LXL, 2009d. _____. A metamorfose. (Trad. Gabriela Fragoso.) Lisboa: Editorial Presença, 2009e. _____. “O abutre”. In: _____. O abutre e outras histórias. (Trad. Noémia Ramos). Lisboa: Estrofes e Versos, 2009f. ______. Carta ao pai. (Trad. Marcelo Backes.) Porto Alegre: L&PM, 2010. ______. “Um relatório para a Academia”. In: _____. Essencial. (Trad. Modesto Carone.) São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011a. ______. “Um artista da fome”. In: _____. Essencial. (Trad. Modesto Carone.) São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011b. ______. “Pequena Fábula”. In: _____. Essencial. (Trad. Modesto Carone.) São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011c. KANT, Immanuel. “Resposta à pergunta: que é o iluminismo”? In: _____. A paz perpétua e outros opúsculos. (Trad. Artur Mourão.) Lisboa: Edições 70, 1988. MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. MATOS, Sonia Regina da Luz. “Didática e suas forças vertiginosas”. In: Conjectura: Filosofia e Educação. V. 14, n. 1, jan/abril 2009, p.93-134. NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. (Trad. Paulo César de Souza.) São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ______. A genealogia da moral. (Trad. Paulo César de Souza.) São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Ó, Jorge Ramos do. O governo de si mesmo: modernidade pedagógica e encenações disciplinares do aluno liceal (último quartel do século XIX – meados do século XX). Lisboa: Educa e Autor, 2003.
136
Conversação: um convite ao pensamento ouza
lena de S
Dóris He
Um prólogo Caros possíveis interlocutores dessa escrita. É para vocês que dedico essas palavras iniciais. Não que eu pense ser necessário explicar o que deve ser interpretado por cada um, mas esse “cuidado” deve-se a “conselhos” recebidos de alguns amigos com os quais fui partilhando essa escrita antes mesmo de terminá-la (ainda que temporariamente) e que assinalaram a necessidade de dar um tratamento mais ‘acadêmico’ e menos escrachado à mesma. O que me levou a reescrever algumas partes, cortar outras e, sinceramente, sufocar um pouco diante de tal decisão. Mas, é gargalhando que assumo diante de vós não ter seguido à risca tais sugestões. Fugi, entrei, saí, inventei, criei brechas, linhas, fissuras e por elas é que dancei por entre letras e palavras. E, foi assim, entre devires e transmutações que decidi continuar. Bem, meu ponto de partida era pensar, falar e escrever a respeito de acontecimentos da vida, mais especificamente da minha vida, recortando algumas experimentações profissionais que tenho feito nesses últimos três anos como professora que está à frente da gestão de uma escola pública municipal em Porto Alegre. E, desse modo dei início a minha escrita. Fui desenhando-a procurando atravessá-la com leituras já feitas, conceitos, acontecimentos e invenções. Seguindo por esse caminho, comunico aos possíveis leitores desse “meu” escrito que não procurem (já que não encontrarão!) explicações sobre o já explicado, nem falação de conceitos a serem compreendidos, pois procuro tratá-los como um ato de criação, onde cada um assina, marca e registra aquilo que cria, já que “um conceito não é algo simples, é multiplicidade”. Para esses autores “todo conceito tem uma história e num conceito, há, no mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de outros conceitos que respondiam a outros problemas e supunham outros planos”. E, é nesse
137
sentido que aparecem e somem nessa escrita e “não pode ser diferente, já que cada conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado”214. Portanto, trata-se de uma escrita para ser lida, conversada e logo depois, quem sabe, abandonada, atirada, jogada, pois talvez já tenha cumprido seu propósito. Outra questão importante a destacar nesse prólogo é a assunção, desde o início, que se trata de uma escrita que usa fragmentos de escritas de outros autores como Kafka, Nietzsche, Deleuze, Guattari, Corazza, assim como composições de artistas como Ivan Lins, Gilberto Gil, Ação Direta, Caetano Veloso, Cazuza, Titãs e Fausto Bardalo Dias. Destaco isso para que os possíveis leitores façam suas próprias relações, pois certamente para alguns isso será tomado como um modo de ilustrar essa escrita, para outros talvez como uma possibilidade de fabulação, transcriação, enfim, meu desejo é que cada um seja afetado de modo singular, criando seus próprios conceitos. Filosofando!!!! A última questão, mas não menos importante a destacar refere-se à opção pela invenção de algumas cenas fictícias que surgem ao longo da escrita, no sentido de cutucar os possíveis leitores, provocá-los mesmo ao pensamento. Não há nenhuma pretensão de denunciar nem prescrever, muito menos julgar, condenar e absolver, pois se trata simplesmente de selecionar ferramentas capazes de acionar forças no sentido de afirmar a vida. Devires. Transmutações, aquelas que nos fala Nietzsche nas três metamorfoses em que “o camelo, espírito da suportação”, ajoelha e carrega em si os fardos da vida. Afinal todos somos camelos! Mas, queremos saídas, não liberdade! E, vem a segunda metamorfose em que o camelo se transforma em leão para (...) “conquistar, como presa a sua liberdade e ser senhor em seu próprio deserto, é a liberdade de novas criações, é o respeito para além da suportação”. É a busca permanente por saídas, outras entradas talvez! Não liberdade! Assim, acontece uma terceira metamorfose e o leão se transmuta em criança, “inocência, esquecimento, (...) um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer ‘sim’. (...) o espírito agora quer a sua vontade, pois aquele que está perdido para o mundo conquista o seu mundo”215. 214 DELEUZE e GUATTARI, 1992, p.29; p.30. 215 NIETZSCHE, 2003, p.51; p.52; p.53.
138
No caso específico dessa escrita trata-se de devires, de transmutações! Devires e transmutações animais! Portanto, caros possíveis leitores, tenham presente esse prólogo e não procurem referências, nem muitos nomes, citações e reproduções do já produzido, do já escrito. Decididamente não foi esse o propósito desta que vos convida à leitura.
Quem está do outro lado das grades? “Aquele homem ou homens andavam, pois sem impedimentos. Um alto objetivo começou a clarear na minha mente. Ninguém me prometeu que se eu me tornasse como eles a grade seria levantada”216. Eis que ainda ao modo do macaco e experimentando a cada dia viver com intensidade uma possibilidade de rasgar as práticas discursivas presentes nos espaços nomeados ‘escolas’, que dissimuladamente tentam capturar homens/macacos e macacos/homens, comprimidos e sufocados entre grades e caixotes é que surgem as fissuras, as brechas e fendas por onde eles saem e entram, com mãos e braços contorcidos em movimentos saltitantes e dançantes afirmando, assim suas escolhas pela vida. Que se rompam as grades da hipocrisia professoral, do falso moralismo educacional. Que se façam outras e novas metamorfoses ambulantes. E, aí num suspiro ofegante, provocante, assim como quem não quer nada e tudo quer, surge uma voz que diz: temos que fazer diferente, romper padrões, não podemos enclausurá-los, é preciso fazer outras coisas, de outros jeitos, jeitos diferentes, é preciso quebrar regras! É preciso experimentar, pois do contrário, como saber? Coloca-se uma provocação potente, um desafio aos protagonistas da imitação! Um grito silencioso num universo selvagem. Um devir animal, que parece não se preocupar em ter que responder a tudo, ao modo do ‘certo’, da ‘verdade’, um devir animal que desconfia de tudo, de todos; que observa, que entra e sai procurando um momento exato para que possa respirar; que provoca aquele que anseia assumir-se em seus devires. 216 KAFKA, 2011a, p.119.
139
Uma possibilidade de fuga, de desapego ao espaço que nos espreme entre grades e caixotes. Uma saída! Não liberdade! (...) Arte de criar o saber arte, descoberta, invenção teoria em grego quer dizer o ser em contemplação sei que a arte é irmã da ciência ambas, filhas de um Deus fugaz que faz num momento e, no mesmo momento desfaz (Gilberto Gil, “Quanta”) Pensar numa didática menor é provocar o pensamento para o ainda impensado, é provocar pensar o já pensado de outros modos, para além das verdades estabelecidas pela dita ‘ciência’. Uma didática menor empurra para fora da toca; exige que se respire fundo, exige orelhas e olhos e bocas e pernas e barrigas e línguas. Enfim, exige um corpo, um corpo sem órgãos, um corpo sem formas, simplesmente um corpo. Uma didática menor, ao estilo de Gil é aquela que “faz num momento e no mesmo momento desfaz”. E, novamente em suspiros ofegantes, provocantes, assim como quem não quer nada e tudo quer, nos chegam outra vez diferentes vozes a sussurrar: Quero saber: “De onde vem tudo isso que existe e para que serve?” Quero pesquisar: “Aquilo que tenho vontade! Quero biblioteca! Quero informática!” Quero pedir: Não me mandem calar a boca, nem ficar quieta! Eu quero falar!” Quero perguntar: “Quando vou poder falar? Como vão escutar? Quem vai responder?” Quero falar: “Gosto de estar na escola! Às vezes a vontade é de fazer outras coisas! Aqui é muito bom!” Quero descansar: “Não quero fazer nada!” Quero explicação: “Para tudo aquilo que não posso fazer!” Quero afirmar: “A vida! Os encontros! Os amigos! As pessoas! As escolhas!”
140
Expliquem! Desta vez são outras provocações. Provocações que fazem pensar, que desafiam ordens instituídas: pela escola, pelos professores, pelos pais, pelos próprios alunos. E, lá estão os devires, animais, espremidos entre grades, paredes e caixotes. Saídas e entradas. Não liberdade! Não me iludo tudo permanecerá do jeito que tem sido transcorrendo, transformando tempo e espaço navegando todos os sentidos pães de açúcar, corcovados fustigados pela chuva e pelo eterno vento água mole, pedra dura tanto bate que não restará nem pensamento transformai as velhas formas do viver ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei não se iludam,não me iludo tudo agora mesmo pode estar por um segundo (Gilberto Gil, “Tempo Rei”) Não! Liberdade eles não querem! Querem apenas saídas! Quem sabe outras entradas! Querem esticar pernas e braços, ruminar pensamentos, vomitar excessos. Querem inventar outros e novos modos de viver tempos e espaços da e na escola. Querem duvidar, questionar, discordar, escutar, falar, provocar e, ao estilo de Kafka, querem poder gritar: “Ó derrisão da sagrada natureza! Nenhuma construção ficaria em pé diante da gargalhada dos macacos à vista disso”217. 217 KAFKA, 2011a, p.117.
141
Enfim, querem tombar grades e quebrar caixotes; gargalhar e coçar despretensiosamente suas barrigas
Grades: simplesmente, viver e afirmar a vida! Uma questão de entradas e saídas “E eu aprendi, senhores. Ah, aprende-se o que é preciso que se aprenda; aprende-se quando se quer uma saída; aprende-se a qualquer custo. Fiscaliza-se a si mesmo com o chicote; à menor resistência flagela-se a própria carne”218.
E, lá estão eles! Homens em seus mais inusitados devires. Devires animais que anseiam e aguardam um momento conveniente para coçar mais uma vez, e outra vez suas barrigas, para chamar sua própria atenção. Por instantes conseguem e aproveitam para esticar mais uma vez, e outra vez pernas e braços. Estralam dedos, balbuciam palavras, sorriem, franzem a testa, e a cada gesto, mais e mais próximos de uma saída se encontram. São palavras, letras, números, cálculos, lugares, células, nomes, datas,...! Oh! Expliquem-me que lugar é esse? Uma jaula? Uma sala? Grades? Paredes? Óh, dúvida que espreme, pressiona, sufoca! Mas ao mesmo tempo quebra, rompe, corta, empurra e faz pensar outras saídas. Saídas de tocas, buracos, caixotes, grades, paredes. Saídas! Não liberdade! Enfim, é preciso respirar! Aqui é lugar de aprender. Ele quer aprender. Ele gosta dela. Ele não gosta de gritos. Ele não pode bater. Ele quer bater. Ele se sente burro. Ele diz que não vai aprender. Ele não quer escrever. 218 KAFKA, 2011a, p.122.
142
Ele não quer conversar com ninguém. Ele está feliz. Ele fez tudo. Ele terminou a tarefa. Ah! Todos estão à espera. As desculpas: ‘Eu peço desculpas’. As promessas: ‘Eu prometo não fazer mais nada errado! Eu prometo fazer tudo certinho! Eu prometo me comportar bem! Eu prometo’! É quase uma súplica por um não-suplício, um pedido, um grito. Não liberdade! Apenas uma saída possível, quem sabe uma questão de entradas. Vá saber o que se passa na cabeça de cada um! Oh, devires! Camelos, leões e crianças que se espremem, escondem, choram e riem num suplício que rasga a alma e atravessa os mais intensos pensamentos. Oh, devires! Camelos, leões e crianças que pedem, gritam, assumem, contam, falam, cospem suas próprias verdades, ruminam suas próprias mentiras e depois vomitam aquilo que não lhes cabe mais na barriga. Cospem na cara uns dos outros e depois só fazem limpar-se de tudo que foi vomitado. Ah, devires! Que fazem viver a cada tempo transmutações múltiplas! Se pudesse esse devir criança gargalharia sem parar convidando-nos a rir com ela, dela, nela e depois que sua barriga estivesse doendo de tanto rir ela cairia exausta, para outra vez e mais outra, buscar saídas e entradas. Não liberdade! Enfim, ela quer aprender, ela quer escrever, ela quer contar! Mas, logo ao se dar conta desse querer ela se joga outra vez contra as grades. Sai! Volta! Pede desculpas! Assume sua culpa, sua culpa, sua culpa! E, ela, já em devir transmuta-se outra vez em camelo e olha, carrega o fardo, pede desculpas e diz: a culpa não é minha, a culpa não é minha, a culpa não é minha! E, grita isso com toda sua força. Depois pára, coça a barriga e ri. Gargalha e pede que a deixem em paz. Joguei o jogo, corri os riscos paguei o preço, caminhei nas pedras aprendi com os erros, resisti ao tempo a minha escolha, minha opção tenho sede de vencer o meu caminho, minha inspiração 143
hoje, amanhã e sempre !!! eu tenho urgência, e um compromisso contracultura, eu tenho metas e um desafio, seguir em frente !!! Intensidade, proposta, proliferação intensidade, arte, revolução (Ação Direta, “Intensidade”) E, o camelo se transforma em leão e o leão em criança. Está cansado e precisa esticar as pernas e os braços que estão a esmagar-lhe o peito impedindo-o de coçar sua barriga. Ele está cansado. Precisa simplesmente fechar os olhos e a boca e os ouvidos e o nariz. Ele quer dormir, pois está com sono! Ele quer saídas! Não liberdade! Apenas saídas!
Um processo de transmutação De camelo a leão, de leão a criança, de criança a macaco, de macaco a rato, de rato a gato, de gato a cordeiro, de cordeiro a camelo, de camelo a leão, de leão a criança... Ah! Viva nossos devires animais!
Cena 1: Detenção Era uma vez um gatinho que queria muito ser cordeiro. Estava infeliz porque estava fazendo o que não queria fazer. Ele queria fazer algo diferente daquilo que era obrigado a fazer. Ele queria criar um projeto. Todos os dias ele contava aos seus amigos, reclamava, resmungava. A todo o momento e em todo lugar ele repetia incessantemente sua infelicidade. Ele queria ir embora! Fugir! Escapar! Respirar! Só havia um detalhe: um dia, muito antes, ele quis muito ser um gatinho ensinador. Queria entrar numa escola a qualquer custo, a qualquer preço. E, foi aí que teve uma idéia! Fez um concurso para ser um gatinho ensinador! Ele queria muito entrar! Ele estudou. E, estudou bastante. E, passou. E, aprovou. E, ele, finalmente entrou! Mas, logo percebeu que estava muito triste! Não queria mais ser gatinho ensinador! Queria muito se transmutar! De gatinho a cordeiro!
144
“Tenho um animal singular, metade gatinho, metade cordeiro. Herdei-o com uma das propriedades de meu pai. Contudo, apenas se desenvolveu ao meu tempo, pois anteriormente possuía mais de cordeiro que de gatinho. Agora participa das duas naturezas igualmente. Do gato, a cabeça e as unhas; do cordeiro, o tamanho e a figura; de ambos, os olhos, selvagens e acesos; o pêlo, suave e bem assentado; os movimentos, já saltitantes, já lânguidos”219. E, eis que uma transmutação acontece! Gato, cordeiro, camelo, leão, criança. Simplesmente devires. Devires animais! E, ele prepara-se para transmutar. Atua como camelo e faz as tarefas para as quais prestou concurso e aprovou. Leu o edital do concurso, estudou e aprovou. Assumiu suas funções na certeza de que seria feliz. Mas, o que aconteceu quando ele se deu conta que outras forças haviam entrado em relação e que sua alegria não estava mais em ser gatinho? Ele quis transmutar! Um gatinho dançante, alegre, saltitante! Mas logo o gatinho estava triste, preso, sufocado. Queria sair, respirar, ir embora. Não para sempre, nem para longe, apenas queria ser feliz, dançar, cantar. Então resolveu procurar desesperadamente por saídas. Não liberdade! Apenas saídas. Por que não o compreendem? Por que não o deixam sair? Perguntas e respostas presas em grades, paredes, papéis. Perguntas e respostas presas na própria lei! Oh! a lei! Como ser gato e cordeiro ao mesmo tempo? Como ter do gato a cabeça e as unhas e do cordeiro o tamanho e a figura? Como manter olhos selvagens e acesos e pêlos suaves e bem assentados? Oh! Como ser gato/cordeiro? Como burlar a bicharada e ir ao encontro de uma didática menor, de uma aula menor, de uma escola menor? Será isso possível! Não, liberdade não! Apenas saídas, outras entradas!
219 “Um cruzamento” (conto de Franz Kafka), traduzido por Regiane Affonso Sales e Denise Rodrigues, discentes do curso de Alemão da faculdade de Letras da UFRJ. Apostila do curso: Poética e Metafísica, ministrado por Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro (PPGCL-UFRJ, 2004) e retirado do site http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/ ct/ct05/ctp050101.htm p. 16.
145
Eles dançam, eles dançam, eles dançam Todos eles, dançam Dança-moenda, dança-desenho, dança-trapézio, dança-oração Moenda, redenção (Caetano Veloso, “Os meninos dançam”) Eis que ela, a criança em seu devir animal escapa das grades. Salta em movimentos dançantes e lânguidos e eles, camelos, leões, ratos, gatos, cordeiros, mais uma vez, aguardam outros devires. Outras transmutações e acontecimentos. E, de repente, uma dúvida: – “Que queres tu saber ainda? (…) És insaciável. (…) Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou me embora e fecho-a”220. E, ele, o gatinho/cordeiro escapa, respira e saltita! Ele se vai!
Cena 2: Inquirição Certo dia, batem à porta da escola da bicharada dois ratinhos que se identificam e fazem: Uma solicitação: conversar com um gato. Um questionamento: por que está preso ali quem não se sente mais feliz em ficar? Um pedido: deixem que ele se vá, por favor! Uma explicação: ele pode ir, mas primeiro tem que chegar alguém para ficar em seu lugar! Uma conclusão: coisas de ratos e gatos. “’Ah’, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas 220 KAFKA, 2011b, p.7.
146
essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra, que já estou no ultimo quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro”. – “Você só precisa mudar de direção”, disse o gato, e devorou-o”221. Ratos, gatos, camelos, leões, crianças! Simplesmente devires. Saem de suas tocas e sem pedir licença entram e saem. Precisam incessantemente carregar, soltar, entrar, sair, espremer, cavar, esticar. Estralar braços e pernas. Precisam coçar suas barrigas! Gargalhar! Extrapolar espaços, romper barreiras. Ratos, gatos, camelos, leões, crianças! Explicam e pedem explicações. Transformam-se e transmutam-se em grandes e pequenas orelhas! Escutam atentamente. Ficam surdas quando não querem mais ouvir. Concordam, questionam e, mais uma vez, quase que em súplica conclamam: ‘liberdade’. Ele quer sair! Precisa sair! Do contrário, sucumbirá à própria tristeza. Será isso um pedido de ar fresco’? Será fuga de algum compromisso antes assumido? Oh! Infinita dúvida! Como fazer? O que fazer? Como encontrar saídas possíveis sem fechar entradas necessárias aos acontecimentos cotidianos? Como libertar sem aprisionar? Como sair sem ninguém para entrar? Oh! Aprisionamento que espreme braços, e pernas, e barrigas, e costas, e mãos! Sufoca e enfia cada vez mais para dentro cabeças, e olhos, e bocas, e nariz, e orelhas! Oh! Dúvida constrangedora que consome a bicharada humana, demasiado humana! Ratos que querem escapar das ratoeiras e gatos que estão sempre à espreita de grandes orelhas! Orelhas ratas, camelas, leoas, crianças. Eis, que aparecem as pequenas orelhas! Elas se apresentam e se colocam diante dos labirintos. Labirintos de muros altos, muros que correm ao encontro um do outro, correm lado a lado. E, lá estão elas! São as pequenas orelhas! Orelhas ratas, gatas, cordeiras, camelas, leoas, crianças! Pequenas orelhas que escapam das ratoeiras e não se deixam devorar! Apenas uma questão de entradas e saídas! Não liberdade! Disparo contra o sol, sou forte, sou por acaso Minha metralhadora, cheia de mágoas Eu sou um cara, cansado de correr 221 KAFKA, 2011b, p.171.
147
na direção contrária, sem pódio de chegada ou beijo de namorada, eu sou mais um cara Mas se você achar, que eu tô derrotado Saiba que ainda, estão rolando os dados Porque o tempo, o tempo não para Dias sim, dias não, eu vou sobrevivendo sem um arranhão, da caridade de quem me detesta A tua piscina, tá cheia de ratos, tuas ideias, não correspondem aos fatos O tempo não para, não pára, não, não pára (Cazuza, “O tempo não pára”) Orelhas ratas, gatas, cordeiras, camelas, leoas, crianças! Pequenas orelhas que escapam das ratoeiras sem se deixar devorar! Uma questão de entradas e saídas! Não liberdade! Pois, o tempo, o tempo não pára! Não pára não!
Cena 3: Uma proposta. Uma demanda. Uma expectativa. Um veredito Não estão preparados para esse trabalho! Não querem fazer, não fazem nada! Com poucos daria certo! Não mexa! Eles podem não gostar! Já estão acostumados! São envolvidos! É muito legal! São muitas atividades lúdicas! É preciso atividades mais intelectivas! Não houve aprofundamento! É muita gente! Tira muito tempo para coisas importantes! Deve acontecer em outro momento de trabalho! Não é possível entrelaçar as atividades! Não deu para amarrar nem costurar! Era o desejo deles! A gente foi sobrevivendo, vivendo! Fazer o que é possível! Discutir tempos, espaços, planejamento! 148
Está apegado à família que o criou. Isto não pode ser considerado, por certo, como uma demonstração de fidelidade extraordinária, porém como o reto instinto de um animal que na terra tem inumeráveis parentes políticos, mas talvez nem um só consanguíneo, e para o qual, por isso, lhe parece sagrada a proteção que encontrou entre nós. Às vezes me faz rir quando me fareja, desliza-se por entre minhas pernas, e não há modo de afastá-lo de mim. Não satisfeito em ser gato e cordeiro, quer ser quase cachorro. Ah, devires! Ratos! Gatos! Cordeiros! Quase crianças! Apegados e fiéis a regras e normas do cotidiano. Ah, devires! Ratos! Gatos! Cordeiros! Quase crianças! Quase camelos quando se trata de suportar, carga, força, fardo. Gatos! Cordeiros! Insistem em enfiar suas cabeças em tocas, buracos. Insistem em se espremer entre grades, paredes e caixotes! Gatos! Cordeiros! Deslizam! Escorregam! E, eles seguem, tentam alcançar linhas de fuga que possibilitem outros modos de ser, camelo, leão, rato, gato, cordeiro e criança ao mesmo tempo. Fiéis e traiçoeiros. Atacam, protegem, denunciam. Mas, também anunciam possibilidades! Tomar cuidado na hora de dividir! Não consegui! Frustrei as expectativas! Diminuiu com o passar dos dias! A maioria vem, curte, gosta de participar! Fuga dos grupos! Sumiço e retorno para onde querem! Há regras a serem observadas! Um grupo bom para trabalhar! Um grupo pequeno! Tem de todo tipo: normal, deficiente, moço, velho, responsável, descomprometido! É legal a pesquisa e a escrita! Algumas coisas precisam se reorganizar! E, para ser complacente com ele, faço como se tivesse compreendido algo e confirmo com a cabeça. Então salta ao solo e começa a bailar ao meu redor. Talvez o facão de açougueiro fosse 149
uma libertação para este animal, mas como o recebi em herança devo evitar isso. Por isso terá de esperar que o alento lhe falte por si, apesar de que, às vezes, me olhe com olhos humanamente compreensivos que incitam a agir compreensivamente. Ah! Mundo da prescrição! Que venham aqueles que não suportam apenas denúncias! Que venham os devires! Ratos, gatos, cordeiros, camelos, leões e crianças! Devires que deslizam e escorregam. Devires que explicitam inquietações, colocam forças em relação, devires que ativam a vida. Devires animais! Ratos, gatos, cordeiros, camelos, leões e crianças! Tudo ao mesmo tempo, fiéis e traiçoeiros. Devires animais! Acontecimentos! Possibilidades! Difícil é misturar os diferentes! Funciona! Às vezes funciona bem! Misturar é um modo de agredir! É diferente e dá certo! Todos querem brincar! É um sofrimento! Cuidado com os detalhes! Comeu comida, não os livros! Não voltou mais! Sumiu! Circular é aliviar! Muitos problemas! Complicado! Está melhorando! Já fazem relações! Atravessamentos entre trabalhos diferentes! Espaços muito bons para serem ocupados! Espaços horríveis, desconfortáveis, impróprios! Às vezes, as crianças vêm com gatos e uma vez, até trouxeram dois cordeiros. Mas contrariamente às suas esperanças, não se produziram cenas de reconhecimento. Os animais olhavam-se 150
tranquilamente com olhos animais e consideraram, sem dúvida, reciprocamente, sua existência como uma obra divina. Sobre os meus joelhos, este animal não conhece nem o medo nem desejos de perseguir ninguém. Acocorado contra mim é como se sente melhor. Oh! Ratos, gatos, cordeiros, camelos, leões e crianças que insistem em se mover como baratas tontas em volta de didáticas prescritivas, de metodologias perfeitas! Oh! Ratos, gatos, cordeiros, camelos, leões e crianças que ficam presos, contorcidos entre grades, paredes e caixotes. Oh! Transmutem-se aqueles que teimam em acreditar em modelos salvacionistas e em soluções mágicas! Oh! Ratos, gatos, cordeiros, camelos, leões e crianças! Alegres, sorridentes, provocativos, questionadores, desconfiados, inventivos, que desejam saídas, entradas! Não liberdade! Ah! Todos e cada um! Vivamos nossos devires animais! Oh! Professores e alunos e escolas e grades e paredes e caixotes, e livros e tecnologias, e entradas e saídas! Não liberdade! Simplesmente vida! (…) Bichos escrotos saiam dos esgotos bichos escrotos, venham enfeitar meu lar! meu jantar! meu nobre paladar! Bichos! saiam dos lixos Baratas! Me deixem ver suas patas Ratos! Entrem nos sapatos do cidadão civilizado (…) (Titãs, “Bichos escrotos”) Mas, eles cansam de tanto rodopiar. E, em seguida prostram seus olhares para fora! Percebem saídas possíveis! Oh! Ratos, gatos, cordeiros, camelos, leões e crianças que deslizam e escorregam. Respirem! Levantem a cabeça! Busquem saídas! Não liberdade! Apenas saídas! Uma didática menor! 151
Pensamento da dobra e dobra do pensamento: saídas que entram e entradas que saem “Até então eu tivera tantas vias de saída e agora nenhuma! Estava encalhado. Tivessem me pregado, minha liberdade não teria ficado menor. Por que isso? Escalavre a carne entre os dedos do pé que não vai achar o motivo. Comprima as costas contra a barra da jaula até que ela o parta em dois que não vai achar o motivo. Eu não tinha saída, mas precisava arranjar uma, pois sem ela não podia viver”222. Ainda é o camelo quem carrega e, ao modo do macaco, espreme-se entre grades, paredes e caixotes. É ele quem pensa e articula saídas e entradas possíveis, já que sua pretensão não é a liberdade, mas possibilidades de afirmar a vida. Esta vida e não outra. Trata-se de uma vida que é desse plano, o plano da imanência e não uma vida da transcendência que só faz projetar possibilidade para um futuro que nunca chega. E, não é isso que se espera de devires animais. O que se espera e deseja são outros cheiros e sabores. Não se quer mais jogar as experimentações e acontecimentos para um futuro que nunca chega, pois isso tem ‘cheiros’ e ‘sabores’ já conhecidos àqueles que se dedicam a experimentar a escola, seus espaços, tempos e rotinas. Trata-se de acontecimentos, fluxos, linhas! Oh! Ratos, gatos, cordeiros, camelos, leões e crianças. Eles querem outras possibilidades! Eles observam, pensam, experimentam. São atrevidos! Buscam saídas e entradas e percebem não ser apenas sensação isso que lhes passa, pois se trata de vibração. Uma vibração que não é apenas corpórea, mas múltipla, descontínua, intensa. É fluxo. É gargalhada! Quero, sua risada mais gostosa esse seu jeito de achar que a vida pode ser maravilhosa que a vida pode ser maravilhosa... quero, toda sua pouca castidade 222 KAFKA, 2011a, p.116-117.
152
quero, toda sua louca liberdade quero, toda essa vontade de passar dos seus limites, e ir além,e ir além (Ivan Lins, “Vitoriosa”) E, a cada dia, ratos, gatos, cordeiros, camelos, leões e crianças vão compondo dobras que se desdobram, não para serem o contrário das coisas, nem sua binariedade, mas para ser ressonância de outros modos de ‘ser’ na e da escola. Outros modos de ser aluno, professor. Outros modos de viver currículos, grades que aprisionam pensamentos e conhecimentos. São linhas! Linhas abertas, rizomáticas, segmentadas. Labirintos que se dobram e desdobram quebrando lógicas, provocando conversações, exercitando pensamentos, ativando criações. “O lugar dos macacos é de encontro à parede do caixote – pois bem, por isso deixei de ser macaco. Um raciocínio claro e belo que de algum modo eu devo ter chocado com a barriga, pois os macacos pensam com a barriga”223. Trata-se de um olho que vê para além do próprio olho. Vê com a imaginação, com a percepção, com sinapses, com continuidades e rupturas. Não continuidades e rupturas cronológicas, mas nômades. Diagramas que surgem rachando paradigmas, provocando possibilidades. Minorando! Eu venho das horas do diabo venho mais negro do que a vida, quem me deitou um mau olhado com a boca posta de lado, com sete pragas rangidas não foi bruxo, nem feiticeira namoradeira, nem foi Deus, nem foi Belzebu lá estás tu (...) a insinuar um bailado vou-me rir muito, vou gozar mais, vou cantar(...) Coça, coça a barriga, pantominas, Coça, coça a barriga, Patavinas eu sou o “Coça Barriga”, 223 KAFKA, 2011a, p.117.
153
coça, coça a barriga, vitaminas coça, coça a barriga, nicotinas (...) ao chegar à beira mundo, abrir então os meus braços p´ra me lançar no espaço, vou-me rir muito, vou gozar mais (...) Eu sou o “Coça Barriga”, bate forte meu coração salta minha fera encurralada, já ninguém ouve o teu pregão darei largas à minha loucura, e já ninguém me segura (...) o pé de vento que se vai levantar, comigo a rodopiar Coça, coça a barriga, pantominas, Coça, coça a barriga, Patavinas (Fausto Bardalo Dias, “Coça Barriga”) Portanto! Cocemos nossas barrigas! Barrigas gordas, magras, lisas e estriadas! Vamos coçar nossas barrigas ao estilo K, minorando, pensando com ela, pois segundo ele, até os macacos pensam com a barriga! E, na tentativa de uma conclusão provisória de meu pensamento nessa escrita, partilho com Betina, quando ela afirma que “(...) nos coça a idéia de pensar uma didática que não seja da palavra de ordem, que queira significar o tempo todo, a vida para os outros, que queira falar pelos outros”. Portanto, caros possíveis leitores dessa escrita, não se pretendeu escrever aqui a respeito de uma outra nova didática. Mas, de fazer pensar possibilidades, possibilidades de uma didática menor. Uma didática sem modelos nem prescrições a serem seguidos. Uma didática sem pretensão revolucionária, sem pretensão de propor ou ditar verdades fixas. Simplesmente, uma didática menor, que fala da vida e, como afirma Betina, trata-se de uma “experimentação de procedimentos, tanto na didática, como no pensamento, na escrita, e na própria vida e, tudo isso, ao modo de macaco saidor”.
154
Referências CORAZZA, Sandra. Caderno de Notas: para pensar as oficinas de transcriação. Observatório de Educação. Escrileitura: um modo de ler-escrever em meio à vida. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Trad. Bento Prado Júnior e Alberto Alonso Muñoz.) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. KAFKA, Franz. “Um cruzamento”. (Trad. Regiane Affonso Sales e Denise Rodrigues.) (Texto digitalizado). Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. _____. “Um relatório para a academia”. In: _____. Essencial. (Trad. Modesto Carone.) São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011a. _____. “Pequena fábula”. In: _____. Essencial. (Trad. Modesto Carone.) São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011b. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. (Trad. Mário da Silva.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. SCHULER, Betina. “Uma didática menor: questão de entradas e saídas”. (Texto digitalizado, 20 p.). Porto Alegre, 2011. Letras e excertos de músicas GIL, Gilberto. Quanta. In:_____. Quanta. Warner Music, 1997. GIL, Gilberto. Tempo Rei. In: _____. Raça Humana. Warner Music, 1984. AÇÃO DIRETA. Intensidade. In: _____. Massacre humano. Voice Music, 2006. VELOSO, Caetano. Os meninos dançam. In: _____. Cinema transcendental. Universal, 1979. CAZUZA. O tempo não pára. In: _____. O tempo não pára. PolyGram; Universal Music, 1989. TITÃS. Bichos Escrotos. In: _____. Cabeça dinossauro. WEA, 1986. LINS, Ivan. Vitoriosa. In: _____. Perfil. Som Livre, 2010. DIAS, Fausto Bordalo. O coça barriga. In: _____. Melhor dos melhores. Independente, 1996.
155
micrometria e catástrofe: aprender a sensação an
rd Paola Zo
áreas, FATOS, fundos Diva, como já tinha pedido que não fizesse, enfia sua cara no escritório, mas pela hora rasteira da tarde achei que viesse para avisar que já ia embora e não para incomodar perguntando o que devia fazer para o almoço. “Doutora, preciso falar com a senhora.” Céus, aí vem bomba, foram as palavras que acudiram em minha mente quando tive que deixar de lado o pensamento e encarar a Diva. Anos me ensinaram que esse tipo de sentença da parte de quem eu pago para aliviar a minha vida em família na pior posição de todas, a de mãe, vem sempre com alguma exigência, chantagem, terror ao qual preciso me submeter para não estar fadada a ser negligente com meu próprio serviço. Não tinha cabimento Diva querer renegociar o salário, recém havia terminado o período de experiência e estava recebendo bem acima de um mínimo por poucas horas diárias de serviços domésticos em minha casa. Não podia imaginar que chegando às nove e saindo antes das três uma pessoa poderia reclamar. Principalmente porque eu não reclamava do pó acumulado nas estantes, das roupas morando no quartinho semanas sem passar, do feijão de segunda-feira servido na quinta, das almofadas erradas em cima da minha cama, de meias alienígenas na minha gaveta e de muitas outras monstruosidades que Diva produzia em minha casa. Não que eu seja passiva. Grito muito e esbravejo perto de quem me ama as fúrias que todas empregadas, e Diva não seria uma exceção, trazem. Mas como sei serem as Fúrias monstros que agem de acordo com uma estranha justiça, reclamava mesmo para os deuses. Enraivecida com as marcas de mãos sujas nos bastidores das portas, eu só via os defeitos e as omissões de Diva quando ela não estava por perto, pois, uma vez em casa, o fato de existir uma Diva me fazia flutuar e trabalhar a fundo, sem ter que pensar em alimentar os corpos, servir as fomes, tratar da apresentação da
157
roupagem e outras coisas. Manter as superfícies limpas a ponto de ninguém obstruir o nariz com pó: prova de fogo de toda empregada e alento para uma mãe, que pode dormir toda a noite sem interrupções por tosses, narizes entupidos e outras atrocidades que a falta de limpeza causa em crianças. Além dessa mínima exigência, o serviço é básico. Tirar o lixo, estender cobertas, aspirar estofamentos e tapetes. De resto, só reclamo de três coisas: dos filmes locados que desaparecem nas prateleiras, de quando misturam lixo seco no comum e se mexem em minha mesa. Três descuidos que significam caos. Com o dono da locadora de filmes, para o planeta e nas minhas responsabilidades institucionais. Caos total e insuportável. Diva tinha entendido bem, vinha mesmo com o diferencial de ter o legítimo costume de separar o lixo. Como Diva não era daquelas que vem contar problemas, pedir conselhos, contar os sonhos, mendigar consultas, ver se eu conseguia algum remédio, e nem mesmo costumava solicitar adiantamentos, não podia imaginar por que Diva, com quem estava achando que me daria bem exatamente por isso, vinha me interromper no meio da única tarde que fico em casa para poder escrever, preparar as aulas da semana e tudo mais que preciso, por falta de máquinas decentes e espaço público, fazer em casa. Ela havia faltado uns dias de serviço, dado desculpas fracas nas quais, para não ter que selecionar ninguém de novo, eu fingi acreditar. Não reclamei das duas faltas, das saídas apressadas depois do almoço, do sábado que se negou a vir em função das mesmas desculpas, de tudo o que estava me desgostando na comida, na limpeza, na roupa. Mas para quem vive de textos como eu e ainda tem que fazer os textos valerem os pontos que a instituição que me emprega cobra, a empregada ideal é que me deixa em paz. Principalmente porque cada empregada envolve no mínimo duas semanas de treinamento a fim de que não precise ser constantemente cobrada futuramente. Era um tempo que eu dispunha em troca de um promissor descanso do chão, das pias, da roupa, das panelas. Diva tinha experiência, era treinada e só precisou entender o básico da casa: a divisão das maquinadas, os botões de cada eletrodoméstico, o lugar dos produtos, os armários dos copos, das xícaras, dos pratos, a divisão das gavetas, os locais proibidos de mexer, como ligar o forno, a posição das toalhas, o que vai na mesa, onde deixar a roupa passada, que um não come pimentão, que a pequena não pode ver pedaços de cebola, a outra não come abobrinha, um não pode sentir cheiro de alho, eu detesto guisado e o molho vermelho tem 158
que ser servido sempre separado, senão a maior não come nada do prato. Depois de tudo o que já vi, desde a que não sabia operar um aspirador de pó, a que fez arroz boiando na banha, a que enxugava lágrimas nos panos de prato, a que cantava desafinado gritando, a que via televisão ao invés de limpar a sala, a que usava todos meus perfumes e cremes, até aquela que secou os licores, Diva era uma deusa. E estava quase indo para meu Olimpo porque nos últimos meses eu estava conseguindo o que há mais de um ano vinha sendo impossível: escrever fluidicamente, preparar uma aula cheia de entusiasmo, dar cabo em tarefas sem drásticas interrupções. Por isso, ao contrário do que não acontecia com Heleci, muito menos com a tagarela da Regina, nem a com aquela insegura da Inair que a cada minuto ia lá dizer “Dotora, eu vou lá para seu banheiro/ dotora tô indo aspirar o corredor” (só para eu dizer que no corredor não precisava aspirar, era só passar pano úmido), “to pegando a cozinha para terminar de vez”, e depois da vigéssima entrada no escritório “dotora, tudo limpinho pronto para eu ir embora”. Tudo, menos minha paciência e a roupa, que sempre ficava secando... Mas, ao menos que se obrigue a pessoa a nos preparar um chá e ter mais uma cozinha para limpar, a roupa fica pendente sempre, pois nenhuma consegue esperar secar a roupa e recolher no mesmo dia que estendeu, por mais quente e seco que esteja. Somente eu tenho o dom de tirar as manchas, lavar, estender e recolher no mesmo dia, isso se o vento e o sol, senhores de todas as roupas, permitirem. E as roupas e suas pilhas e suas cores que se estragam e suas superfícies que degradam podem virar monstros invencíveis para quem tem obrigação de escrever textos, atender escolas, orientandos, bolsistas, alunos, gente que sai pelo ladrão e precisa “aprender” e se formar. Num embate insano entre as frases dos filósofos, a alegria e dor de autores amados e as demandas de mil corpos institucionalmente a mim ligados, Diva, querendo falar comigo como nunca antes em seus quatro meses em minha casa. Aquilo veio pior que uma bomba, aquilo foi um estouro hecatômbico dentro do abismo de todos os conceitos que se desenrolavam parágrafo após parágrafo. Um grito surdo, uma lágrima para dentro, um desespero que nenhuma palavra pode apaziguar que mal se traduz numa impressão sem contornos no fundo de meu medo, no meu pior e eterno abandono, na completa falta de apoio, confiança, serenidade e adeus a tudo que ia tão tranqüilo e que em uma frase que ali naquela hora eu não consegui formular em meu cérebro e que se resumiria 159
no aceno que trazia o avesso de todo meu desejo mais que explícito de não ter que padecer de tanto serviço. Como sempre acontecia, deixei tudo isso nos mares não trafegáveis de minha dionisíaca alma quase sem tempo para festejar e beber, salvei o que estava fazendo e respirei fundo. Minha cara para falar com empregadas não conheço, nunca conversei com nenhuma que estivesse de costas para um espelho. Mas as incontáveis caras desdenhosas das pessoas quando peço alguma coisa para elas conheço décor. Assim como as caras “tudo de bom” quando pedem coisas para mim. Empregadas raramente pedem, na maior parte das vezes comunicam: vão ao médico e não poderão vir, não gostam de cheiro disso ou daquilo, só usam o tal sabão em pó, furaram uma camisa, quebraram uma jarra fina, não fazem tal bolo, acham ruim aquele tipo de serviço, não tem jeito de sair aquela mancha, se eu não tiver ninguém para dar e “já que chegou um novo” querem aquele sofá velho. Um vislumbre de esperança talvez tenha feito minha cara melhor quando lembrei de um videocassete há muito tempo parado lá no quartinho, era isso, tudo poderia ser muito simples, Diva, como toda e qualquer empregada, ia pedir um entulho que tinha mesmo que sair da minha casa. Só que não foi assim, um pedido, uma solicitação, um comunicado de praxe ao qual eu consigo me adaptar. Bastou eu virar minha cadeira para ver o que, após dezesseis empregadas, certamente mais de vinte faxineiras, oito tipos de babás e alguns zeladores a me servir, eu nunca tinha visto: alguém testemunhando.
figuração, deformação, escapes Era uma testemunha específica, de um tipo especial, daquelas que olha as coisas sem emitir juízos. Diferente da Clarice, já empregada, que foi lá para analisar, a mando de sua muito preocupada comigo patroa, a possibilidade de vir me ajudar, indo menos na casa onde trabalhava. Clarice ficou olhando a cidade pela janela e elogiando a paisagem, afinal, alguma coisa tinha que valer a viagem, ela sabendo que duas casas seriam impossíveis. Diva testemunhava o cordeiro que com muita dificuldade fora enfiado no freezer na noite anterior. Tributo anual ao homem da casa, que além de mel, ovos, ganhava pedaços carneados, um pernil, um quartinho de ovelha, metade de um javali, qualquer coisa que me tira a fome e que ele 160
prepara fora de casa, com seus amigos selvagens que roem ossos. Vi ela abrindo o compartimento e contemplar o bicho morto; ao que tive que explicar: “isso o doutor ganha todos os anos do mesmo fazendeiro, mas não dá para preparar aqui em casa”. O “doutor” para ela era doutor mesmo, eu, desde o dia que expliquei que não era nem médica, nem advogada, nem engenheira, nem dentista, mas doutora professora, devo ter ficado no grau das aberrações. Diva manifestou, ali, ainda de avental e touca, as tais “figuras paisagens” que eu vinha trabalhando num seminário com um livro de Deleuze224. Sim, Gilles Deleuze, o filósofo francês do molecular, do imperceptível, do impessoal, do indiscernível, do carrapato. O que se atirou pela janela por não conseguir respirar. Tinha tempo de fumar, o desgraçado. Melhor dizer, desgraçada sou eu que nasci mulher, tenho que alimentar os outros e beber comedidamente para conseguir levantar no horário da escola todos os dias. Devir-mulher no homem... se Deleuze tivesse que desencardir os panos duvido que fizesse das mulheres essas Rose Sélavy por baixo do chapéu cheias de testosterona. Sem rompantes misantrópicos, amaldiçoando minha educação marxista que dá poder demais às minhas empregadas, esqueci o burguês parisiense que nunca teve que escutar uma Diva. Devo ter dito “o que foi” – sempre coloco o nome da empregada em questão como modo dela saber que é mesmo com ela que estou falando. Isso porque já aconteceu de empregadas que falavam tanto e entravam tanto em meu escritório que eu tinha que começar a falar alto o que eu estava lendo ou escrevendo para não perder o fio da meada e de mim de vez. Devo ter dito “o que foi, Diva”, ao mesmo tempo em que salvava linhas, largava um texto filosófico, saia de dentro de três livros e sentia aquele medo atávico de ficar sozinha com roupas e roupas e bocas pedindo comida e narizes entupidos de sujeira e pés pretos e irritações e tinha uma menção redentora para liberar tudo isso no despacho de um não muito velho vídeo cassete. Atletismo, caríssimo a Deleuze que por instantes odeio por nunca ter padecido das demandas de uma Diva. A testemunha. “Sabe o que é...” e essas reticências acumularam todas minhas angústias e como atropelo as pessoas que hesitam em falar e sem querer já fui dando corpo para matar de vez com aquilo que eu temia saí dizendo “está pensando em ir embora” e no mesmo instante estava arrependida, pois a cara de 224 DELEUZE, 2007, p.14.
161
Diva era de quem nem sequer tinha começado. “É...” E para não chorar porque o último ano tinha sido especialmente difícil para mim que tive problemas físicos e nenhuma chance de tratar, crises de vários níveis, cobranças enormes no trabalho, boletim de desempenho, relatórios de produção, cadastros a serem preenchidos todas as semanas, palestras em vários lugares, projetos em rede, nenhum final de semana livre, três turnos incansáveis sem conseguir terminar nada, pilhas de mensagens a serem respondidas, quis saber, de uma vez por todas, porque minha vida não tem sido uma vida e seria melhor, se isso não lesasse profundamente os que de mim dependem, morrer. E rio, porque se não fosse tantos a depender de mim, eu não estaria morta, só vivendo com meus autores e meus textos e não sofrendo por nada. Para não chorar pergunto, olhando bem para a paisagem daquela pessoa, encostada na porta do meu escritório, qual o motivo. Não que me interessem os motivos das empregadas que sempre tem um marido querendo que fiquem em casa, uma pessoa doente para cuidar ou falta de vontade mesmo de trabalhar e o que ganharam comigo, incluindo roupas, móveis e o que eu tiver sobrando “já garantiu algum”, como me disse uma que nunca tinha ficado mais de um ano na mesma casa. Mas ali, naquele momento, a quinta empregada em um ano, tudo de pior em meu corpo dolorido, eu quis saber e talvez, porque eu vi que ela testemunhava, eu sabia que ela saberia me dizer porque eu não conseguia ajuda e estava fadada a provar dos piores desgostos. “É, a senhora é boa, muito boa”, e eu pensava nos sábados que eu não havia lhe chamado, na vista grossa para o serviço mal feito, no salário acima do mercado, na estabilidade da carteira assinada, no INSS pago, nos jantares que varamos madrugada lavando louça para não precisar que ela viesse fora do horário. Devo ter emendado com o provável, embora não constatável para mim que faço tudo nos vários períodos que fico sem ninguém, “peso do serviço”. Como não era das mais fracas, já tinha trabalhado em casa com mais gente e sendo obrigada a cumprir horários fechados, talvez com alguém mais exigente do que eu, ela também não achava grande o serviço, mas enfim, “serviço sempre é serviço e casa sempre dá trabalho” e tal e tinha “o almoço e a roupa”, mas isso não era nada. O salário, claro que poderia ser melhor, mas como tinha sido combinado, conforme a produtividade aumentaria e aí relembrei que eu estava sendo cobrada também e conforme eu progredisse, enfatizando que isso só acontece de dois em dois anos, o salário também 162
poderia progredir. O que era, e isso não foi dito assim facilmente, embora para mim fosse sabido, talvez eu tivesse mesmo que ter levado dezesseis empregadas para aprender: “sabe o que é, bom, a senhora sabe ó que é, eu quero ir embora, bom, eu gosto da senhora, gosto da gurizada...” e aí perguntei o que já tinha perguntado antes, se era a casa que é difícil, sabendo que as pouco afeitas a tirar o pó tendem a reclamar do excesso de quadros, obras, plantas, livros. Não, a casa tinha muita coisa só que de um jeito ou de outro as casas tem muitas coisas e “se não são umas coisinhas são outras”, mas, aí veio o que eu sempre soube em relação a todas as empregadas, faxineiras, consertadores de coisas e gente do gênero “como vou dizer... as suas coisas não são normais”. Era para rir, era para chorar, era para revisar a fundo todos os conceitos de arte, de entulho, de pintura. Diva, são obras de arte, algumas complicadas de se entender, pois são idéias que estão em algumas coisas, tipo aquelas coisinhas naquela prateleira que é cansativa de limpar, é uma obra de recepção, são pedaços de obras, obras que cada artista dá um pedacinho para a pessoa, aqui são muitos artistas, esse adesivo “gentileza gera gentileza”225 é uma dessas partilhas. “Não são essas coisinhas que me incomodam”. E aí pesou um silêncio. O que viria, talvez eu não pudesse saber. “O que te incomoda, Diva?” perguntei quase num suspiro, sendo toda minha vida um enorme incômodo como os elefantinhos de uma das obras na prateleira que só foi problema para uma visita alheia ao mundo das artes que, sem dizer nada, sei pela cara que achou aquilo brega. Era outra coisa. “A senhora tem livros estranhos”. Muitos livros, “enfeiando a sala” conforme disse quem não gostou da minha obra de recepção. Como eu já tinha dito outras vezes, para uma ou outra empregada que tinha se detido na prateleira cabalística, com história medieval, Malleus Malleficaram e alguns títulos com “demônio”, “inferno”, “mal”, “morte”, aquilo era meu trabalho. “Cruz credo”, uma que nem lembro quem era disse. Mas Diva não estava falando desses títulos de minhas pesquisa de outros tempos, que embora visíveis estão meio fora de circulação. Não foi preciso mais que cinco minutos de conversa para saber que Diva estava falando dos livros de arte que se espalhavam pela casa e estavam abertos por todo o escritório e passaram uns dias na mesa de centro da sala. Alguns eu levava para cama e eram como tijolos a 225 Partilhas de Adriana Daccache, Jorge Menna Barreto, Ana Carolina Becker, Júlia Berenstein, Roger Kichalowsky, entre outros artistas que promovem ações em rede.
163
serem carregados por ela do chão à cabeceira cheia de outros livros, toda manhã. Tentando parecer uma normalidade que eu não tinha, disse para ela que era meu trabalho, que meu regime é de dedicação exclusiva, que durmo lendo meus livros e leio também no café da manhã. Só que não eram só os livros. Dessas letrinhas pequenininhas ela não entendia mesmo, mas daquilo que ela via sim. E ela via minhas gravuras, sim, ela chamava toda imagem reproduzida em livro, em quadro e mesmo as gravuras em metal e as pinturas em tela, Diva dizia, meio que enchendo a boca e subindo anormalmente no “u”, “gravuuuras”, sendo essas, afinal, o motivo detectável, observável e analisável da Diva, que em alguns momentos significou a salvação da minha vida, querer ir embora.
crucificações Naquele dia, nunca em nenhum outro, vi que Diva carregava no pescoço, numa correntinha fina que não devia ser ouro, um crucifixo. Poderia ser uma estrela de Davi, mas se não fosse um crucifixo não teria aquela forma simples, uma vertical e uma horizontal variável na parte superior. Qualquer cruz não deixa de ser o diagrama de um encontro. Duas linhas. Duas direções. Que, em síntese, considerando todos os quatro pontos extremos, configura uma mínima e aparentemente rudimentar multiplicidade. Uma cruz é a figura mais simples. Lembro de estudos gestald do desenho infantil que faz emergir a figura do sol e penso que a cruz é um sol que perdeu quase todos os seus raios e vejo o quanto os desenhos estereotipados de palitos não passam de um arremedo da cruz. E vejo, sem nunca ter percebido como Diva perceberia, o ank com escritos egípcios que não sei ler. Cruz com cabeça. Em T. Chave da roda do destino, na qual impera a esfinge. A ser decifrada, a devorar cada instante que impede, por falta de astúcia, seguirmos com nosso caminho. Tirando esse ank, de atávico em minha casa só tenho um olho grego, se é que é grego mesmo, de vidro, comprado sabe-se lá onde, simplesmente porque os azuis vítreos me agradaram. Mas não era isso, em função da sua dificuldade com letrinhas Diva não conseguia ser crente e então seguira para escola kardecista, onde toda semana tomava passes, daí sua pressa, certos dias, em sair mais cedo. Imaginando todos os encostos e espíritos obsessores que Diva devia 164
ver nesse meu corpo puro templo devotado a escritores mortos, achei que tinha entendido sua vontade de ir embora e eu já dizer que se ela quisesse ficar eu até tomava um passe, mas só de pensar o tempo que ia perder fiquei completamente quieta. Não eram as minhas anormalidades, eu tinha mesmo estudado muito e saber de tanta coisa não era bem normal, ainda que fosse “normal ter gente sabida como eu”. Assim, “chegada em letrinhas e letrinhas complicadas de entender”. O problema, pela primeira vez Diva ganhou um pouco de eloqüência, o problema ninguém conseguia entender, pois “esprito não está em figura”, mas ela tinha certeza que sim, mas todo mundo, pastor, médiuns experientes, o pai dela que tinha vivido muito, o marido do primeiro casamento com quem tinha dois filhos criados, o marido que era e não era bem e que tinha um filho para alimentar e por sorte deus provinha com tudo o que precisava, diziam que não, mas ela via que sim. O “pobrema era que aquelas gravuuuras com gente se desmanchando e aparecendo o osso que a senhora”, sim a senhora, eu, que para ser chamada sou doutora e professora e sora, dona, por favor Diva, diga qual é o problema que tem nas minhas gravuras. “Os matinho grande na parede não incomodavam”, nem o barquinho da água podre com esqueleto de peixe na praia226, não, nem o super-herói mal focado227, nem aquelas mulheres com cara de vida fácil, não, o problema eram “as gravuras que estavam naqueles livros”. Exatamente os quais eu vinha usando, aqueles, que ela, sem eu saber que estava atenta, disse que eu tinha “no computador”. Num instante compreendi e quase não acreditei. Coisas estranhas de uma pessoa que sabe muito e que por saber muito e trabalhar com determinadas coisas, faz com que essas coisas sejam importantes. De toda a conversa, uma frase dita por Diva jamais foi apagada: “as pessoas se desmancham”. Algumas semanas antes eu tinha mesmo trabalhado a relação da carne com peças destroçadas num açougue. E as pinturas que passei e repassei em minha tela tem figuras que se desmancham tipo bicho num matador. O que incomodava Diva, entre todas as anormalidades de meu mundo, eram as reproduções das pinturas de Francis Bacon, fossem nos livros pesados, nos catálogos menores, na tela do meu computador, sentada bem onde ela teve certeza de que viu eu começando a me desmanchar, rompendo a pele, sangrando por baixo, entortando a posição dos ossos. No 226 Gustavo Rigon, acrílico sobre tela, 70 cm x49cm, 2007. 227 Alexandre Cappelari, Hulk,fotografia, 59cm x 59cm, 1996.
165
horror dessa descrição, que jamais imaginei que alguém pudesse em mim reparar, apelei. Por eu estar me acabando de tanto trabalho é que eu preciso de quem me ajude e não de quem falte o serviço ainda em experiência e me deixa na mão. E falei a ela que talvez seja mesmo preciso de reforço extra na parte da limpeza, que se estivesse como está eu teria que ver mais uma pessoa. Mas, para mim acrescentei sem falar, alguém que não tenha medo de pinturas de corpos humanos distorcidos. Resolvi, então, limpar a barra explicando que aquelas figuras eram efeitos, assim como nos filmes. “Monstros de filme”, disse para Diva que era, pela décima sexta vez, a personificação de um monstro bem real. “Inimigo pago”, como a mãe de um parceiro falava. Só que nenhuma palavra, por mais convincente que fosse, absolvia aquelas pinturas. Fez-se um longo discurso de minha parte, não fosse tão senso comum e clichê até podia parecer uma aula. Aproveitando que agora sabia no que precisava melhorar, o intuito de minha fala bastante longa era fazer com que Diva resolvesse ficar. Mas para isso teria que passar por uma aprendizagem e saber, a fim de superar suas limitações e poder ser empregada de uma pessoa como eu ela só precisava aprender que arte é melhor quando perturba e não nos consegue deixar indiferentes, que as perturbações mostradas na arte nos fazem pensar e aprender muitas coisas e que os quadros, as coleções, os livros, todas essas coisas que as pessoas inventaram e estão nas casas, não são do bem e nem do mal. Assim como um corpo, as coisas na natureza se desmancham, nada pode ficar inteiro por toda a vida.
mitigação da carne Eu não devia falar as coisas que se partem. Eu não devia entrar em âmbitos além do bem e do mal. Diva era boa, eu era boa, todo mundo se fazia bem e ninguém ia “contra os dez mandamentos”. Era o que se presumia, pois nada meu fora roubado e tudo o que, por pecado cobicei, certo que Diva não tinha. Mas minha estrela de Davi dentro de uma caixa no fundo de um armário me lembrava: não respeitar o tempo do sabbath era ir contra o terceiro. Eu podia culpar Diva pelo fato do trabalho e das exigências da família roubarem meu descanso, mas sabia não ser justo. As forças que me esfacelavam varrendo qualquer molécula de satisfação 166
própria, espaço ocioso, prazer em se fazer o que foi escolhido estavam em traçados que nem eu, nem Diva, nem Eva, nem Lilith, nem a Vênus, nem Gilnei que trabalhava no edifício, podemos manejar. Mesmo os atos deliberados envolvem gestos que dão para a vida e para o corpo que nela figura aspectos completamente alheios ao esperado. Os desenhos do acaso são terrivelmente aleatórios. E o que Diva ia fazer com meu discurso, pouco me cabia. Sem bem, sem mal, ela não havia se acertado. Devo ter perguntado com o que ela não tinha acertado, pois não fez nenhum doce, nenhum prato novo, nem me ajudou em horário noturno a servir algum jantar de bateria completa, daqueles que vão do aperitivo ao cafezinho, com no mínimo cinco tipos de copos para cada convidado. Compreendeu que não tinha mais nem certo e nem errado com tudo o que nos falamos. Mas uma coisa era certa: em minha casa se comia muito pouca carne e que ela ia embora porque não gostava mesmo de cozinhar sem sal e daquele tipo de pão chato e duro que se comia na casa nem das coisas que eu inventava de trazer, ou seja, aquilo que ela jamais deve ter visto e não teve humildade para dizer que não conhecia: berinjela, aipo, alho poró, grão de bico, talvez a linhaça que deixo num cantinho. Diva, ó Diva, se come pouca carne porque se equilibra a alimentação e o alimento é o corpo e o corpo é sagrado, é divino e deus, ela percebeu que meu deus é corpo e que por não existir deus que esteja fora dos corpos se apavora com aquilo que, por analogia, mostra que os corpos sempre acabam abatidos. Diva não pode suportar que deus morra como toda carne que ela passa no mercado para comprar. Digo que não tenho tempo de passar todos os dias no mercado que nem ela, e canto esse que nem para que ela veja o quanto tem de vantagens sobre mim, Fica, num átimo de segundo segurando as cordas de meu fracassado coração a se perder em embates com alguém predestinada a eu perder, a lembrança de meu tempo com tempo quando não haviam filhos e carros e cargos e coordenações. Num tempo em que eu podia sair do trabalho e comprar a castanha do dia no mercado central. Tempos irrecuperáveis, uma vez que os postos, e parece que todas essas exigências crescendo cancerosamente no tempo encarcerado no trabalho, são irreversíveis. Impressões que não cabem nas palavras que escolho para justificar a ausência de carne na mesa. A carne que atrai as feras e cuja ausência manda empregadas embora. E por um instante achei que o problema fosse mesmo as “gravuuuras”. E ali, meio que atirado para ser levado para emolduração, um cartaz de 167
evento da minha linha de pesquisa reproduzindo uma carcaça de Soutine. O olho de Diva foi parar ali, embaixo da mesa. Oficina de escrileitura. “É ...a senhora não é mesmo uma pessoa normal”. Se eu tivesse guampas, juro que elas saltariam. Mas a maior anormalidade que pude mostrar era meu corpo ainda sentado na cadeira giratória, vestido aos trapos para ficar bem a vontade em casa, amassada pela poltrona de onde tinha passado a manhã a ler uma tese, a qual foi drasticamente cortada ao meio no momento que fui até a cozinha explicar que a metade daquele cordeiro não ia ser preparada em casa. Não adiantava lamentar para Diva que anormal era eu ter que trabalhar tanto e ainda ter que todo dia pensar no que ela tinha que fazer. E fiz um gesto indicando as prateleiras cheias de livros e “isso é trabalho, trabalho, pesquisa, estudo dos tempos contemporâneos. Sem estudo estaríamos iguais a Idade Média, quando só se comia carne se ganhasse um pouco da caça do Senhor, pois, Diva, pobre só passou a comer carne por conta quando teve dinheiro para comprar no mercado, nos tempos antigos só os ricos sabiam caçar. Os pobres viviam da caridade dos ricos, dos que defendiam as terras, dos que tinham armas para matar os bichos”. Quando percebo as besteiras que estou falando tento mudar o enfoque. Socialismo uma ova, falava em mim o sangue conquistador ressentido por não conseguir escravizar mais ninguém. Passo a língua nos caninos suavizados, mas ainda sinto as pontas e todo seu potencial de rasgo... Sofrendo por nunca ter caçado, matado um boi ou participado dos rituais dionisíacos de dilaceração de um bode e me achando a mais completa babaca da terra perdendo o único tempo na odisséia da semana para escrever argumentando merda para Diva, tento mudar a linha de raciocínio. Vou para o sacrifício semanal chamado supermercado: “escolher os alimentos, a distribuição nas horas, as refeições dos próximos cinco dias... tento explicar para Diva que há uma diferença imensa em pegar o que vai se comer e preparar no dia e o que precisa ser planejado em longo prazo, dentro de um modelo de refeições nutritivas com ingredientes razoavelmente flexíveis, variando o que der e aproveitando ao máximo os recursos oferecidos pelo alimento, fibras, sementes, talos, folhas... E a carne é o que, nesse elenco de escolhas de preparo e reciclagem da comida ao longo da semana, é o que acaba ficando em segundo plano, pois precisa ser congelada. E pode estragar até ser preparada de forma a não parecer um cadáver”. E entre o gosto de um cadáver e a menção redentora do vinha d´alho que nunca consegui 168
ensinar a Diva, pois sempre o faço a noite, ficou o cadáver. O corpo que não pode ser visto, a carne ruim, o presunto a ser desovado, como quase toda a carne descongelada por Diva, que ninguém consegue bem comer e sobra e vem e vai da geladeira para o microondas e mesmo que eu mande que ela leve embora, fica. E a melhor coisa de Diva é que ela não vem me perguntar o que fazer com os restos. Só que ali, naquela conversa, o que restou foi a palavra cadáver saindo impensada de minha boca, justo minha boquinha alinhada por tantos aparelhos ortodônticos que evita por churrasco sangrento para dentro. Cadáver é mesmo uma palavra que pouco se diz. E ao dizer, infortunadamente para D. Diva que acreditei ser, até que enfim, a minha empregada de fato que já não vai ficar, não posso dizer o quanto tenho o gosto espúrio de alguns cadáveres em minha boca. Se foi a palavra cadáver, se foi a conversa sobre os nobres caçadores, se foi a carne que mesmo pouca para ela sobrava, se foi o boi esquartejado de Soutine, as reproduções de Bacon, não sei mesmo, Diva se avilta. E assim que falo cadáver, vira as costas dizendo enquanto segue para cozinha “faz como a senhora quiser, se não quiser me demitir eu fico sem as minhas contas”.
extrema solidão “Vai dar comida para teus cavalos”, foi o que o coleguinha babaca disse para minha filha ultra sensível que chorou todo trajeto da escola até em casa porque essa foi a frase que a impediu de brincar durante todo aquele recreio e mais outro e mais outro e mais um em que ela queria estar junto com sua turma inteira e aquele menino não deixava. Na hora, bem naquela hora, essa frase de tantos anos atrás, repetida para professora, para a diretora da escola, para a psicóloga indicada pela escola para tratar da menina que diziam não conseguir se integrar, era exatamente o que eu queria dizer para Diva. E a frase veio e o cavalo era eu troteando até a área de serviço e vendo o balde com panos de prato e pia de molho e o outro balde com os panos de chão e eu gritando para Diva dentro do quartinho fechado que viesse “amanhã depois das seis acertar as contas e que se fosse mesmo embora, afinal, tirando as figuras que ela não gostava e reestruturando a maneira de se comer carne, parecia que estava tudo bem, mas se ela fosse mesmo embora que no mínimo esfregasse aqueles panos e os colocasse 169
para secar que eu recolho”. O meu “recolho” fechou seu “o” no umbigo da minha pior amargura, já que aquilo era mesmo minha condenação, que pelo menos ela me poupasse daqueles baldes. Mas Diva saiu do quartinho vestida de madame, como sempre saia, mais penteada do que eu, com seu perfume ruim infestando a área, a cozinha e se ficasse mais um pouco o resto da casa. De aviltada passou a desaforada e, mesmo que não tenha dito nada, sua cara fazia eu me afogar nos meus baldes com panos sujos bem como eu tinha mandado, sem nada, nadinha de água sanitária. Essa era uma ameaça, pois os rastros dessa maldição se fazem valer em tudo: eu não compro esse horror que fura panos, estraga a cor das toalhas, resseca as peles e faz poás indesejados nas camisas. Essa era uma das reclamações de Diva. Queria encher os banheiros de clorofina e não escovar os azulejos. Encher os panos de clorofina para não precisar esfregar. Detestava não ter esfregão de aço, embora fosse a primeira que entendia que não existe detergente realmente biodegradável e que é melhor para mãos lavar a louça com sabão em barra. Ao lado do tanque, em cima da máquina de lavar, Diva esticou o braço de modo a não encostar em meu corpo e deixou as chaves de casa. E se foi sem dizer nada, batendo a porta nem fraco nem forte, sem nem ao menos eu ter chance de dizer que dependendo como as coisas iam eu sempre acabo me rendendo a toda a kiboa e bombril que a empregada pede. E fiquei ali, do lado do meu tanque, reparando na crosta cinzenta e gordurosa na borda inferior. Eu e o ralo cheio de cabelos de meu tanque. Eu e minha vontade de entrar ralo adentro e sumir. Eu e minha raiva por ter nascido e ter panos, e roupas enchendo a tulha, e louça que, dali a pouco chegando o pessoal em casa, ia crescer e crescer por toda a noite na pia da cozinha. E eu tinha que escrever um texto, um capítulo de livro para uma publicação muito especial, prazo só mais dois dias, sem negociações de data em função de verbas das agências de fomento. E nisso toca o telefone e corro para ver que me ligaram, sim, estou mesmo trabalhando em casa e eu já dou a notícia de que preciso arranjar uma empregada e que estou meio desconcentrada e que seria pior se eu estivesse trabalhando por lá e tal e o horário da reunião que eu não posso faltar e nem chegar atrasada amanhã. E ao mesmo tempo o zelador no porteiro eletrônico perguntando se pode trocar a lâmpada do corredor que queimou por aquela do canto da garagem até eu trazer uma nova. Resolvo isso depois, por agora troque. Tento recuperar a minha linha, meu fio, o texto deixado 170
até eu me esquecer dele lá tela do computador. Entro e saio do escritório, confiro mensagens, respondo a três pessoas querendo saber de aulas e referências bibliográficas e uma combinação de estágio docente e anoto que preciso ligar para a escola, marco compromissos, passo a limpo todos os pontos elencados na tese para elaboração de um parecer. Trabalho com no máximo três janelas, caso contrário não presta. Sou das últimas criaturas da era analógica, virei o lado de milhares de long plays, ainda prefiro livros de papel do que e-books. Sinto enjôo, vou buscar alguma coisa na cozinha. E vejo os baldes e sei que dentro deles há panos sujos que são fatalmente meus. A tarde está escura, ligo o interruptor da área de serviço. A porta, o interruptor, minha vida confinada em casa, minhas paredes coloridas, os interiores das pinturas de Bacon. Minha ânsia de vômito, o escoamento de tudo numa carne inconformada com seu fado, querendo “passar por um buraco de rato”. Talvez fosse isso o que Deleuze pensasse como banalizar a abominação de si. A aceitação do Destino, as lutas de superação, a individuação. Por mais que Diva tenha me visto se derretendo ao lado desse tanque, Gilnei, enquanto varria a calçada, me disse outro dia: “a senhora se vira”. Não sei bem o que ele quis dizer com isso, se falava do meu trabalho, das lâmpadas do condomínio ou da minha recorrente troca de empregadas ou nada dessas coisas porque se virar pode ser a coisa mais ilógica do mundo e quer dizer para a pessoa que basta estar vivendo. Derreter, entrar pelo cano, sair tipo um composto, barro, do outro lado. E o telefone toca novamente e mais uma vez é um assunto que me tira completamente da minha pessoa, da minha vida, da arte. Depois que coloco o fone no gancho sem dar comida para cavalo nenhum, cachorro algum cabendo no meu esquema, sem pensar nos passos largos até a área atiro o balde para longe, num arremesso de braço inédito nesses vinte anos de dona de casa, em direção à porta da cozinha. O jato de água deu aos meus olhos fascinados uma instantânea cascata. E uma poça imensa onde três panos que mereciam ser minha mortalha fingiam ser seres a anunciar o que, no meio de um corrido semestre e viagens marcadas não poderia ser pior: ficar sem empregada. A água atirada precede as águas que correm dos meus olhos. Devo estar para menstruar. Mal consigo elaborar meu ímpeto destrutivo toca novamente o telefone e ao correr para atender resvalo na água sobre o piso deslizante da cozinha e caio com a cara no chão. Um dos panos parece uma pedra a magoar o meu quadril. Sinto meu pé torcido e não sei se 171
a água em meu corpo exaspera minha dor, a carne inchando e um osso da têmpora que sinto como se estivesse fraturado, tudo isso muito pouco perto da dor a que todo corpo entregue aos outros está condenado. O que é esse corpo caído machucado na água de sua própria fúria só interessa a mim que abdico dele a cada instante que está intacto. O telefone parou de tocar e ouço a gravação atrás de mim que não fui achada na Universidade. Esse corpo precisa se levantar, pegar panos secos, torcer toda água para dentro do balde antes que o desastre seja maior e aquele que odeia água no chão encha meu corpo de palavras violentas que não cabem mais no desespero de estar só com todo o serviço que há de vir. Eu não entrei em simbiose com uma barata228. Antes da Diva chegar eu mesma limpei o quartinho, minha casa é um urbano deserto onde apenas minúsculas aranhas se atrevem existir. Eu arremessei um balde e talvez penasse para sempre as conseqüências de meu inócuo atrevimento. Antes eu tivesse provado a barata. Mexo a perna que torceu. Na verdade, doído mesmo está o tornozelo, mas nada que impeça de que me apoiando no outro pé, lentamente após sair da posição de quatro que me deixa intermediária entre um banquinho amigo e o chão, eu fique meio erguida. Abraçada no banquinho, meu salvador nessa hora trágica, consigo me erguer nas pernas e ir mancando para o quartinho buscar os panos secos. A pior parte foi levantar o balde. Acomodar o tornozelo de modo que ao ficar de joelhos a coisa não impedisse meus movimentos até foi bem possível. Depois de o balde estar quase um quarto cheio, com uma água muito mais cinza do que aquela translúcida de sabão em pó que atirei, sinto uma espécie de alívio por Diva ter querido ir embora. O chão da cozinha estava péssimo e embaixo dos armários estava um nojo. Como todas as outras, Diva jamais tinha se ajoelhado para limpar a minha casa. Com certa dificuldade e com certeza de que um pé estava maior que o outro vou levando o balde com água encardida e panos excessivamente encharcados para o tanque. Nisso a porta da rua se abre e a adolescente entra cozinha adentro distraída, pisando na água e anunciando que está morrendo de fome. Seus pés na umidade do piso fazem barro. Grito e esbravejo pela sujeira que piora e ao tirar os tênis em minha direção consegue molhar as meias. Mais um grito meu, um grito imenso que não ajuda nada, mas me dá a reles certeza de que estou viva e não posso 228 LISPECTOR, 1998.
172
aceitar sem bradar contra essa estúpida situação. Bosta, só vai comer depois que eu terminar de limpar a cozinha, não vê que tem água derramada, a Diva foi embora, estou cheia de trabalho, podia ajudar... Ela sai sorrateira da cozinha, fugindo dos problemas e acidentes que em suas prioridades blogueiras, twitteiras e fashions não lhe concernem. Como tampouco lhe concerne o corpo encostado no tanque, a colocar panos de molho e se apoiando nas paredes para continuar secando a água que derramou. Parece fácil, falo gritando para que ela me ouça lá do quarto, para quem passa deitada no sofá ou na cama a vida é mesmo muito fácil. Só me olham para pedir comida. Ou reclamar de uma roupa que não acham. E então grito mais, com a boca mais aberta do que um Inocêncio X colado na lâmina de uma das muitas aulas preparadas no domingo. Um grito que parece quebrar os ossos da cara, já lesados pela queda, que se dane essa cara que eu odeio, essa cara feia que estampa uma vida da qual sequer posso pensar em escapar. Grito tanto que nem vejo quando os outros chegam e só dou por mim quando a mais criança das crianças me olha assustada e diz para o resto da casa, meio que andando de gatinhas, que “a mãe parece um zumbi”.
retrogradação E tu estavas ali para terminar de enxugar a água e me obrigar a parar e estancar o sangue e colocar gelo no rosto deformado pelo inchaço. Deitada na cama as sensações se espraiam pelos órgãos danificados onde os pesadelos pós-operatórios retornam cada vez que ossos e músculos doloridos impedem o corpo de se levantar. O deserto hebraico em meu espírito aceita as penas e se encurva no escriba abnegado, que alguma coisa sempre ganha, mesmo que perca seu corpo para o minúsculo corpo das letras. Só que uma guerreira das frias estepes urra e atira tudo longe porque nada a conforma. Essa bárbara sem estrelas e sem cruzes nunca deixará de lutar. E é com essa força que mesmo em séculos e séculos e séculos de carne conformada às amenidades das penínsulas mediterrâneas que te digo, estou paralisada e isso é insuportável. Em meu braço uma seringa, “hipodérmica” dizes, aplicando a injeção. Uma agulhada não doi, a seringa poderia morar no corpo que eu nada sentiria tamanho o que eu sinto em meu rosto, em minha perna que se não quebrou rachou por dentro no torcer dos músculos comprimidos contra o chão. Quero sair da cama e não 173
consigo. Descansa, é tua palavra de ordem, garantindo que hoje o jantar é tua responsabilidade. Tu não tens como entender meu sofrimento, isso que tranca meu quadril e desestabiliza meus passos sem permitir que eu pare de trabalhar. Repito que preciso terminar o texto, tenho prazos e amanhã aquela reunião e dois orientandos atrás de mim que hoje nem retornei. Então perguntas se eu sei como está meu rosto e na minha manifesta ignorância trazes um espelho para eu poder ver minha cara partida ao meio, meu olho gigante imenso rosa forte que nem duas formas de cubos de gelo podem abaixar fazendo do outro olho um risco que pode ser qualquer coisa, mas é meu olho que ainda te vê. Interrupção. O tempo inteiro os corpos solicitam alguma coisa e mil vezes isso implica deixar de atender nosso próprio corpo. E o corpo que canta, o corpo que se banha, o corpo que exige um toque, vem atrás do corpo matriz que catastroficamente jaz sob o colchão. Cabelos molhados, camisola pingada de chocolate ao leite, o pedido por uma calcinha seca e que “não deixem as toalhas molhadas em cima da cama” que hoje não tenho como averiguar. Todo meu avanço é que agora esses corpos se banham sozinhos. Existem por si mesmos. Ainda que eu, corpo modular de onde tais vidas derivam, seja eternamente exigida por eles. Não é a matriz orgânica. O fato é de que os alimento. Crio. Ser o útero que gerou esses organismos não basta. É preciso fazer crescer, é preciso ensinar, é preciso educar. O que se educa são os corpos, jamais os organismos. Os órgãos são rebeldes, os sistemas cheios de falhas. Corações param, pulmões entopem, estômagos expelem fel, intestinos se revoltam, caralhos estão impedidos de fecundar. Os músculos tencionam, os ossos quebram, o sistema nervoso vem cheio de defeitos, muitas vezes em função de pouco ou muito funcionamento das glândulas. Tratando de organismos a derrocada é rápida e se generaliza. “Mãe é urgente”, ela solicita com a melodia que lhe é peculiar na voz: “fiquei menstruada e não acho uma calcinha para colocar.” Tudo urge e a mãe deitada está quase morta e o pai do lado se contorce e penso que vai chorar quando coloca a cabeça entre as mãos, sentado na borda do estofadinho do quarto. Indico todos os lugares da casa aonde se guardam calcinhas do tamanho apropriado. Estirada horizontalmente sinto a verticalidade das paredes a enquadrar os pontos em que a pele inflamada parece caminhar até o teto. No entanto, em contraste, tudo o que estás a olhar é o chão. Nosso tapete bege, uns poucos fios de cabelo sobre ele esparramados. E sei que temes passar novamente por 174
aqueles dias em que adoeci e tivestes que ser eu e tu. Que sem o meu corpo fazendo funcionar a casa sentiste completamente o terror de fazer tudo o que eu fazia. E Elisângela, aquela empregada que nunca saía do telefone e justo naquele período preparava a festa dos quinze anos da filha, foi muitas vezes embora sem avisar e conferir se eu tinha água na mesa de cabeceira. Aquelas tardes sem poder me mexer em que passei sozinha e sem água devastaram qualquer símbolo de amor, comunhão ou redenção, qualquer crença na humanidade. Paralisada, mas para minha felicidade com alguns livros, que eu lia no desconforto da sede e caso houvesse a saciedade dela, na vontade de urinar. Na aridez do meu quarto naqueles dias quentes e ensolarados de verão, em que eu podia ouvir os gritos das pessoas na rua, o barulho da água dos corpos que se atiravam lá embaixo nas piscinas, o rodar dos carros com som alto, uma alegria solar da qual eu não podia participar e que era por isso que ninguém vinha para acudir meu corpo sedento nas sombras comprometedoras de meu quarto. Sem água, uma vez sem a mínima esperança de que houvesse amor. Somente as palavras certas dos escritores que escolhi para companhia. Dos que de algum modo amo. Sem combustível para lágrimas, apenas a palavra seca dos que viveram e imprimiram suas sensações em páginas. Dando a mim pensamentos que eu não teria para que eu pudesse esquecer a minha sede e essa intragável e eterna solidão. Estamos juntos, mas não mencionamos o fato, mesmo passado está o tempo inteiro em nosso desespero de que se repita. Espremes o rosto porque teu calvário tem todos os elementos para ser recomeçado. Desta vez em nível de dificuldade máxima, pois não teremos quem sirva o almoço. Pela boca que entortas e pelas rugas em torno dos olhos sei que pensas que trabalhamos tanto para nada e dizes mais uma vez que eu só tenho a ti no mundo e que te encho de vergonha porque ouvem os meus gritos e que Dalva, Diva você quis dizer, tanto faz, todas se acham estrelas, pois bem, Dalva ficou lá na portaria falando para todos que eu era louca. E o que eu posso dizer além de tudo o que eu já sei que vais dizer e isso não vai diminuir o lixo que se acumula nos cestos. Alguém tem que trocar os sacos e garantir outro destino. São nossos despojos, cada vez mais proliferantes, é como uma doença, todas as casas tem. E sem falar nada fica na luz elétrica que nos encima aquele verão quente comigo costurada e inchada na cama sem água e sem ninguém para chamar no meio de toda aquela sede no corpo paralisado e aquele desespero de meu corpo secando e tu, 175
somente tu para me ajudar ir até o vaso sanitário e meu corpo esperando horas e horas para chegares do trabalho e me levar até o banheiro e tudo aquilo impresso na miséria de nossa carne presa entre paredes me obrigando a urrar mais mil vezes e querer morrer visto sepultada eu há muito já estar. Na cadeira giratória, na poltrona de ler quilômetros de textos dos outros com uma caneta vermelha na mão. Dalva via tudo isso e ouviu atrás da porta eu socando de ódio minha própria cabeça. Diva, não Dalva. A Divinha, como o marido a chamava. Adivinha? Ela esperava o marido na portaria quando a cidade inteira escutou meus gritos. Qual marido; quero saber. Como assim, qual marido, tu me dizes, sem saber que Diva mais ou menos tinha dois. O que buscava ela de carro. Assim ficou amiga do Gilnei, da vizinha que tem tempo para conversar lá embaixo, enfim, toda essa gente que acha loucura quem passa os finais de semana escrevendo e quando tira férias tem que aproveitar para dar cabo no trabalho acumulado e confina os filhos dentro de casa e só grita e chora porque não dorme para não perder os prazos que estão sempre engolindo a vida de quem deles depende. Contraído no estofamento pareces teres mais dores do que todas as provocadas por minha queda. “Eu não sei o que fazer”, me dizes, olhando minha perna inchada, talvez as crianças possam ficar um pouco sozinhas, talvez o melhor seja fechar bem todas as janelas e abrir o gás. Só uma tonturinha, um pouco de náusea e pimba. Num suspiro fundo vais procurar a calcinha daquela que não pode sair do vaso sem manchar de sangue o chão. Antes meus antepassados tivessem sucumbido ao holocausto. Mas não, vieram parar aqui, nesse absurdo chamado Brasil, num lugar sem cabimento e tacanho, onde um pintor inclassificável tem que ser professor para poder comer. E não me vem com Iberê Camargo, assassino. Estava pensando em Bacon, o putão irlandês que viveu em Londres, aqui ele estaria dando de comer aos cavalos até ficar velho. Uma pintura desse tipo, sem escola ou tendência, só consegue se fazer valer criminosamente. Pintar é um crime, como um atentado, um escândalo que pouco se nota, mas que jamais se conseguirá facilmente esquecer. Porque aquele corpo pintado, assim, o corpo que todo quadro emoldura, as figuras que são quase tudo de um quadro, essa figura mata o corpo que tem como modelo, mote ou inspiração. Por exemplo, os retratos de Rembrandt, qualquer retrato, naturezas-mortas e paisagens que nunca, nunquinha, são aquilo que pintam. Falei, como sempre, sabendo que ninguém estava me escutando. Percebo as movimentações 176
do corredor, os passos no quarto ao lado, o chuveiro com banho de outro, a descarga de tudo o que escorreu de menstruação e sabe-se lá o que mais, os pulinhos do sofá ao chão e os passinhos saltitantes de criança e tu ralhando de intolerância e a resistência do corpo que pula e vai e vem correndo me espiar, colocando só metade do corpo para dentro do bastidor da minha porta. E tenho a certeza de que entre eu a maçaneta que meu braço não alcança há uma linha que une meu corpo ao seu corpinho inquieto, difícil de ser fotografado, que faz borrões na foto se não estiver dormindo ou advertidamente fingindo de estátua. E pelo calor, tremor do piso e barulho de passos sinto que tu voltas, dando um xingão e mandando o corpinho tomar uma atitude. Olhas, do mesmo lugar rente ao bastidor da porta, minhas deformações, distorções de meu contorno, da textura da pele, algo capaz de alterar o aspecto das tuas mandíbulas, espremendo a boca num canto e engrossando o pescoço. Pareces que vais dizer alguma coisa, mas antes que eu comesse a falar volteias para o corredor. Tu também foges, testemunhando esse corpo quase sem saída que faz parte do teu.
voracidade Comeram tudo o que não devia, abriram sacos de macarrão e os devoraram crus. Atacaram barras de chocolate, acabaram com o pão e encheram a cozinha de farelos. Pingaram leite pela geladeira. Escuto as brigas sem poder fazer nada. Sem crer em erros e certa de que há fatos impossíveis de serem pintados, choro com as glândulas lacrimais completamente endurecidas pelo bloqueio dos vasos arrebentados. O que é impossível de enquadrar talvez nenhum texto possa dar conta. Nem mesmo um microscópio pode dar a sensação do sangue que se derrama entre os tecidos. Mas isso pode se ver numa reprodução de Bacon. Um dia, e além dos filhos é para isso que trabalho tanto, poderei ver essas pinturas na tela original. Como tu, que um dia se deparou com uma e até me tirou uma fotografia com o celular de dentro do museu, uma fotografia ruim de ver, escura e sem foco. Isto porque a pintura estava num corredor e era do período de Bacon que se chama malerish229 e como todas as pinturas de Bacon, tem na frente, pro229 DELEUZE, 2007, p.37.
177
positalmente, um vidro. Super complicado fazer uma fotografia disso. Embora tua fotografia fosse muito interessante, pois era um corredor e tivestes que pegar a imagem em ângulo, o que deixou o quadro um quadrilátero irregular com tangentes levemente paralelas. E dava para ver teu reflexo no vidro, pois o quadro era bem escuro. Ele colocava um vidro inteiro para proteger a tinta, não quebrado e fazendo desenhos como o Grande Vidro, mas um vidro concebido por Bacon como parte da obra. Estás nervoso. Elogio tua foto, tuas viagens das quais não há como eu fazer parte, o cuidado para me trazer uma lembrança daquilo que eu merecia ter junto aos meus olhos. Pinturas de onde meus antepassados jamais deveriam ter saído. Ansioso, te voltas num aceno com o celular e a tal foto no visor. Compensação que não justifica a tua ida para o escritório, pois como todas as noites em que estás em casa precisas te confinar para pagar contas, cuidar da contabilidade e ver tuas mensagens e fazer laudos. Hoje, como todos os dias em que me machuco, não seria diferente. Não queres ficar longe de mim e eu te lembro das providencias para um jantar que já passou do horário de praxe. Tudo te distancia das tuas incumbências, do teu estar de costas, do nosso ganha-pão. O que te tirou a calma na cozinha, o que ficou aos pedaços no chão, a demanda de corpúsculos insignificantes cuja presença intolerável se combate: massa crua, pão pisado e outras melecas sobre todas as manchas indeléveis dos anos vividos naquele piso. Chão que todo e qualquer corpo tende a sujar. Porque os corpos deixam pedacinhos por todos os lugares por onde passam. Moléculas, células mortas, partículas de pele e pelo. E tem mais, coisas mais líquidas, mais sólidas, grudentas, que podem impregnar superfícies, sendo impossível retirar alguns desses vestígios, como os ranhos que os adolescentes tendem a colar nas paredes. Não que se ame uma casa a ponto de fazer dela uma escravidão, mas por ser a casa uma escrava de nossos caprichos e necessidade de conforto que acabamos nos rendendo as suas exigências. Ainda existe amor, por mais loucura que pareça, naquilo que bastante se esfrega. Para que nesse lugar possam ser os livres os espasmos. Sem que os pequenos cadáveres, esses mínimos pedacinhos despojadas por cada um enquanto todo dia se vive, não incomode o outro. Amar, no nosso anômalo entrelaçamento, é arcar com uma enorme quantidade de vômito e excremento. Catarros, pruridos nasais, berros desesperados. Foram noites e noites apaziguando corpos. E mesmo assim nunca paramos de trabalhar. Fácil ser Nietzsche, fácil ser homem celibatário, mas aqui o caso 178
é de dois homens, de duas mães, numa relação sem gênero de duas pessoas que dão duro, cuidam de filhos, alimentam “cavalos” e mantêm juntas uma casa em pé. Por isso cada vez que um viaja o outro entra em colapso. Não há mais ninguém. Havia Diva, mas agora ela se foi. Há Gilnei, hoje certo que estou louca, cuidando do prédio de nossa porta para fora. Lembra da lâmpada que ele pediu. Há um canto da garagem que está escuro e o vizinho de cima já reclamou. Enchemos a casa de espelhos, tentando um truque para aumentar o espaço. E no desalento de todos os dias esses espelhos não configuram uma superfície onde possamos nos refletir. Apenas testemunham as pessoas que entram e não conseguem nos suportar. Por sorte hoje é a noite que estás em casa. Qualquer outro dia a vida despencaria comigo. Atirada num balde. Os espelhos apavoram. Tento levantar para pelo menos tentar que alguém ajude. Mas não há ninguém além da fome das crianças e do medo que minha cara mete. Diva me aspirou com o pó de cujo acúmulo em zonas específicas reclamei. Pratos batem na cozinha. A luta continua e a única ressonância é o tiritar da louça se acumulando na pia. Sinto a têmpora dilatando. Não posso apoiar o pé no chão. Sigo claudicante pelo corredor na meia luz que vem do quarto. Chego na cozinha cheia de migalhas pelo chão e consigo encher a chaleira de água, acender o fogo e pedir que a adolescente varra o chão. Nenhuma pedagogia me deu pistas para ensinar alguém a deixar de ser vassoura mole. Mas como educo, mesmo dizendo que não está bem, deixo fazer. Recolher a sujeira com a pá também se dá na moleza de quem não tem o menor interesse por chão limpo. A água ferve e na impossibilidade de me abaixar sem danos tenho que gritar para que alguém venha me alcançar uma panela. O macarrão vai amolecendo aos poucos e o vapor irrita minha pele. Tenho sono, talvez sejam os comprimidos que me deste. Ainda não morri porque desejo pelo menos terminar o texto. Não deixar os outros a míngua, os alunos na mão, gente sem resposta, tudo o que eu vivo e não quero que outros passem. Embora existam passagens inevitáveis, nem todas dão em arte. E tudo o que passa é fato. Passando pelas figuras que nenhum espelho pode mostrar. Coar a massa mostra que os braços também estão danificados. Escoando na água turva todos os desesperos se vão. Não é a primeira vez. E lá estão os pratos, os copos e como é de costume, chamo e ninguém vem. Acho que o fato de servir e ninguém sentar foi uma das coisas que acho que me fez perder Miriam, uma empregada que parecia boa e que depois de duas semanas desapareceu sem explicações. 179
Mas não cozinhar dá em sacos de macarrão furados, potes de geléia comidos de colher e devastação completa de pãos, copos de requeijão e frios. Alto dano econômico e nada para o café da manhã. Como sozinha. Mastigar é dolorido, talvez eu tenha quebrado um dente, sinto um incisivo mole. Com custos para todo meu corpo abro a geladeira para pegar queijo e suco e pimenta e qualquer coisa que faça um macarrão ter mais sentido. Aparece um, aparece outro, aos poucos a panela vai esvaziando, mas antes volto para o escritório e para minha cadeira giratória de onde só deveria ter saído para receber os filhos no final da tarde que por sorte não era a minha de buscar. Teu corpo curvado não vê que estou ali e quando por um surdo gemido me percebes explicas que já tinhas comido fora de casa e que aquele laudo não podia ser deixado para amanhã. Meu corpo se esparrama no encosto da cadeira de um modo nunca antes experimentado. Não me quebrei, tens certeza, estou apenas machucada, isso é normal num tombo daqueles, se houve alguma coisa não há mesmo o que fazer. Já aconteceu tantas vezes antes, meu corpo lesionado faz parte da vida, não adianta se preocupar. Há corpos piores, todos os dias vês coisas muito piores. E eu não devia ter atirado o balde, meu corpo é o resultado de uma cena histérica cuja única solução é laço. “Uma tunda de laço”. Se surra adiantasse todos que apanham estariam bem. E a louça do jantar não estaria espalhada pela cozinha. Mal sento recebo os pedidos de todas as noites e há lições de casa, tesouras a serem encontradas, recortes de revistas, continhas de armar e fome de sobremesa que só macarrão não adianta e eu preciso fazer aquele mingau. Passar a noite em claro terminando o texto vai ser difícil... enquanto mexo o mingau com a colher cuidando para não grudar no fundo atendo o telefonema que combina, item por item, todos os passos da reunião que não posso faltar.
acoplamento Disso se diz vida. E o que é a vida não se pode saber. Estreitamento do próprio corpo numa perspectiva peculiar. Uma nevralgia própria. Simples A óbvia e evidente vontade se virar; de sentar; de repousar; de dormir; de urinar; de defecar; regurgitar; gritar. Sem alongar; com pouco tempo para copular; sempre com ou sem teu corpo, sem conforto, sem consolo no corpo estirado na cama dentro do quarto que avoluma o tórax e faz 180
desaparecer cabeças em travesseiros, cujo ideal é nunca estarem com piolhos. Os filhos por trás, as enrabadas que nos fazem humanos, o cavalo que é meu corpo, o feno dos cabelos, os combates. “Esses caras só podem ser gay”, comento sobre os lutadores musculosos se agarrando no vale-tudo. Impulso, incitamento, energia vital , domínio, poder, causa de impacto, eficácia, influência, apogeu, motivo, grande quantidade, densidade, teor, expressão de machos musculosos que me enfias pelos olhos por seres o dono do controle que me obriga a determinadas programações. Aceitar o que a casa impõe é tolerar o que seu homem escolhe. Isso é a vida que o mundo espera de uma mulher. Ficar em casa, amar o que a engendrou exilada numa terra para onde a miséria dos povos foi arrastada, nunca conseguir ir para a Europa. Nocauteada. O pouco que se pode saber da vida são nos beijos com enroscamento de língua, no repouso conjunto, nas marcas deixadas nos leitos cujos lençóis todas as manhãs caberiam a uma Diva, figura que some, estender. O que fica da vida são sensações diversas, mais fortes entre dois corpos que fazem mais corpos e que dão comida a seus cavalos e criam casos não muito fáceis de resolver. Uma vez por semana partes antes de amanhecer para discutir os casos desses corpos sempre piores do que o meu. Apelo que fiques. Achatado na cama, meu corpo abraçado em teu corpo faz na cama uma figura que vale por duas. A carne testemunha as forças. O artista as detecta. A criação as libera. Pelas frestas da persiana percebo que amanhece e que apoiando tua perna no vaso sanitário, escovas os dentes. Tento me mover, mas pontadas lancinantes em três pontos diferentes, no quadril, no teu pé arqueado sobre a porcelana e no meu olho, pregam meu corpo na extensão da cama. A língua parece grossa e as bochechas imobilizadas estancam tudo o que poderia a vir ser uma fala. “Estou podre”, dizes antes de começar a se vestir. A casa se movimenta, os corpos vão e vem e atiram roupas e deixam cobertas caindo e mais louça na pia. Ainda com o café na cabeceira, abres um guarda-chuva, imenso pássaro preto contra a parede. Quando eu era criança diziam que aquilo dava azar, mas tu apenas o testas para que não aconteça como outro dia que chegaste molhado no trabalho e te resfriaste muito. O modo como dormimos, um acoplado ao outro, de lado, talvez seja o que tanto lesiona meus movimentos. Vestido de sobretudo, a gravata com nó que num aperto estrangularia, vens estalando os lábios no rosto naquele beijo rápido de todas as manhãs. Como um toureiro, um tropeiro que toca a manada 181
porta afora me deixando só tendo uma reunião daqui a duas horas com todas as camas desfeitas, os panos sujos nos baldes, a tulha de roupa cheia, a cozinha com a louça do café, do jantar e das beliscadas intermediárias. E um texto para terminar. Se meu corpo ficar atirado vivendo no pulsar dos hematomas e na dor das torções o caos se instalará além da minha casa a partir de hoje mais uma vez sem quem dela se ocupe, nas aulas dos estagiários que hoje atendo, na pesquisa dos orientandos que ontem deixei sem resposta, nas tratativas da reunião sobre o projeto institucional que logo começa, na aula que ao invés de ensinar alguma coisa vai acabar sendo aquela enrolação que ninguém merece.
Sphynx Somente vira professor quem insiste muito, assim como só se torna artista quem insiste muito. A diferença é que para ser artista é preciso investir demais em si mesmo e se tornar professor, embora seja mais traumático, é inegavelmente barato. Só quem tem dinheiro ou quem tem quem ponha em si pode iniciar uma carreira artística, enquanto ser professor garante um mínimo no final do mês. Há que custo? O preço de sair dolorida da cama, desfazer minha nudez enrodilhando o corpo em panos que afastam meus poros do mundo, seguir em serviço em prol da humanidade. Calça, camisa, meias, casaco, cachecol. Óculos escuros, não muito escuros porque o dia é cinza, para disfarçar o estrago. Ficar sob o jugo dos relógios e contar os passos e cada ação nos períodos contabilizando o aproveitamento das horas. As botas; sobre o pé para atenuar o impacto da palma na dureza do chão. Escolho o relógio de pulso dourado. Lá fora chove. O cobre das argolas contra o enrodilhado dos cabelos: recorte que o espelho me devolve. Capa e guarda-chuva, zíper prata, bolsa, horizonte do corredor do prédio a vista. E ali está ela, ao lado do elevador em pose felina com as patas recolhidas, repousando no aparador. Como sempre soube que era, tinha um belo rosto feminino, o véu egípcio ocultando cabelos ou crânio vazio, o corpo de leão cujo momento de placidez garantia um balançar de rabo ritmado e calmo e no tórax, como uma crosta submersa no aveludado do pelo, as asas recolhidas, fazendo que mal se olhasse a cara, ela fosse confundida com um grande gato amarelado de complexa camuflagem. 182
Acima da gola de pelos macios, sua pele era impecável e a coloração, visivelmente natural, era mais agradável do que toda face primorosamente maquiada. Nunca imaginei que fosse tão linda. E antes que ela me dissesse as palavras que selariam meu destino, eu sentindo que viriam no abrir de sua rosada boca de lábios grossos e tenros entre os quais eu começava a entrever suas agudas presas, eu sussurrei em seu ouvido de cheiro almiscarado irresistível: devora-me de uma vez, que se for para morrer que seja triturada entre os teus dentes. Ela esticou as patas dianteiras e tocou meu ventre com as almofadas dos dedos macias porque as garras estavam recolhidas. Olhei bem fundo no abismo verde de sua pupila hiperbólica e ela soube que não sou afeita a decifrações. Prefiro dar cabo aos fatos, amar meu trágico destino, cair no abismo, dilacerar meu corpo, sentar no trono de Hades, pegar no bastão do Anticristo. O horror não é ser rasgada por tuas unhas e encarniçada em sua boca, não é verter sangue para dar o que lamber a seus miraculosos filhotes, não é virar pasta de carne com ossos expostos e gorduras reviradas. Eletrocutada numa cadeira elétrica. Esquecida dentro de uma jaula. Horror é nunca poder cuspir em tua face nua que vive para esconder as pedras de teu cérebro. Presa e condenada cuspo meu desprazer em sua cara nada interpretando e nenhum enigma aceitando. Mas a esfinge, fora do tempo, não tem pressa e só existe para que a desvendem. Sua fome espera mil anos e suas querelas assistem partidas com vitórias e derrotas de todos os homens. Mas esqueceu que eu sou mulher e talvez mais bicho do que ela. E como odeio as idades do homem e meu corpo mais que o corpo do tempo tem dores que não cabem nos anos quero ferir sua charada besta e massacrar de vez suas interrogações inúteis. E lhe digo que amarei ser comida por ela, que prefiro morrer assim a da maneira como morreram as minhas mães, todas elas indecifradas. Que não quero ir apodrecendo lentamente as vísceras como acabou aquela que foi meu útero, que não vou perder lentamente a força até me acocorar no banheiro para ver a vida se esvaindo leve depois de viver quase cem anos como se deu com aquela que garantiu os proventos e gerou e sustentou minha mãe, que não quero sufocar nos líquidos fabricados em meu próprio corpo dentro de meus pulmões como morreu minha avó mais minha mãe do que a mãe que me gerou em útero, e que também não quero entupir as veias e definhar lentinho como foi o fim da empregada que me criou e nem ter o fim da babá que me cuidou até nascerem peitinhos, que morreu em 183
segundos num ataque de coração. Que fosse incomodar filósofos franceses, psicanalistas, teóricos que gostam de questões. Que esquecesse a órfã de várias mães que não consegue uma empregada para aliviar um fardo que nem Sísifo agüentaria. Senti sua raiva num entreabrir de lábios e no olho ficando mais claro, quase amarelo, apesar do timing da luz do corredor ter enegrecido tudo, deixando apenas o rastro de luminosidade cinza que vinha da porta, ainda aberta, da minha casa. Decifra, Esfinge, a dor absurda de meu fado. “Sphinx”, ela me corrige e quando começa a falar criando algo para que eu adivinhe uma resposta que ela exige como certa, percebo o acento intemporal num português que ela usa exclusivamente para mim. “Não há o que decifrar, não há o que interpretar”, eu berro, sem saber se a esfinge sabia que eu repetia palavras lidas em livros230 que troçavam dela. E como já sou louca para todos os vizinhos e tenho ganas de apertá-la no pescoço e sentir o gosto lúbrico de suas entranhas, grito para todos ouvirem que a amo mesmo não querendo adivinha alguma. Sem Divas. Sem Dalvas, estrelas, brilho qualquer. E grito: “Monstro, você veio ter como uma professora e não tem idéia do que uma professora assim como eu enfrenta. Você não sabe nada sobre dedicar sua vida aos outros e não tem idéia do quantos teus enigmas são tolos. E tudo o que você pretende como impasse ao pensamento de nada nos serve. Volte para Édipo e seus complexos que não resolvem a infiltração que tira o reboco da sala de aula para qual estou indo”. E chamo, em vão, o elevador desaparecido. A esfinge soluça, chorando sem lágrimas como um gato trancado em casa em noite de cio solto. As portas do elevador se abrem, mas não há cabine, apenas o abismo negro e profundo do fosso. Se a água do balde tivesse ido parar lá no fundo, mesmo que gotejasse na luminária da cabine, eu não precisaria limpar e sem limpar eu estaria intacta. Sinto o peso do pé torcido, inchado dentro da bota; apoio o corpo no guarda-chuva, escuto a síncope de choro, tão minha quanto dela, que numa reviravolta desesperada abre as garras em forma de lua crescente, lança sobre meu pescoço suas presas, numa força que arde e irrita e machuca, mas depois de tudo sorri na alegria de não mais precisar ir trabalhar. Num gesto sem desespero, é fácil atirar seu véu para baixo, ficando seu crânio descoberto e nu, fácil de ser perfurado por meus muitos ferros. 230 DELEUZE; GUATTARI, 1995.
184
a peça Abriram a porta do elevador cuja cabine estava abaixo do térreo. O que prendia as cordas lá embaixo era uma peça de carne que bem podia ser de um boi, mas não tão grande. Boi não era, pois não havia guampas. E quatro eram as peças de costelas embora rabo só se visse um no meio dos músculos avermelhados e algumas camadas de gordura em torno de vísceras aparentes, iluminadas na atmosfera azul escuro que vinha do saguão. Duas pernas humanas, depiladas, femininas, pendiam de um dos lados do teto da cabine. As unhas dos pés estavam feitas e pintadas num tom esbranquiçado e transparente. Havia algumas penas de pássaro e paletas finas e pele que tanto era couro mais grosso como pelo macio como de coelho ao que Gilnei, testemunha dessa ocorrência no fosso de elevador num prédio de apartamentos, pensou que podia ser o casaco da madame. “Nossa!”, era “a doutora do onze”, reconhecia a cabeleira crespa e o que restava de seu nariz proeminente numa cara roxa partida ao meio. O que fora seu pescoço estava aberto e seguia, até o amontoado de tripas, pedaços de cores diferentes e vísceras, suas vértebras ainda em seqüência. Não era um crime. Apenas dissipação de um corpo. A distorção visível de figuras, uma indecifrável e outra humanamente reconhecível, na justiça da carne onde as cores e as luzes reinam no contraste entre a textura do que vem do vivo e as superfícies que dão chão e fundo para isso que tem pele, gordura, tecidos, ossos, sangue seco revirado e pruridos não identificáveis para o olho se regozijar. O teto do elevador era o chão desse corpo cujo enigma inexistia e que nenhum zelador, empregada ou morador entendia as causas, apenas tu, que ao chegar não conseguiu sair da escuridão do subsolo e vai até a portaria e, mais que todos os outros, olha para aquelas peças emolduradas pelo fosso e sente uma vontade incrível de comer.
185
Referências DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. (Trad. Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. (Trad. Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carvalho.) Lisboa: Assírio e Alvim, 1996. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.1. (Trad. Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa.) São Paulo: Ed.34, 1995. LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. RUSSELL, Jonh. Francis Bacon. London: Thames e Hudson, 2001. SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon: a brutalidade dos fatos. (Trad. Maria Teresa Resende Costa). São Paulo: Cosac Naify, 1995.
186
“Uma” (des)educação musical
Eduardo
acheco Guedes P
Este ensaio tem como principal intenção realizar um convite. Tal ação tem sua força máxima de ação expressa por alguns questionamentos: é possível que a presença da música no contexto escolar possa ser pautada por situações que ultrapassem as relações convencionais entre Música, Infância e Educação? Tal encontro pode promover a criação de novas músicas, novas escritas? Pode criar formas inéditas de tocar e cantar? Ou ainda, problematizar a infância enquanto conceito dedicado a formatar um sujeito que deve ser preparado para ser o que ainda não é jogando para o futuro as potencialidades de vida dos seres que frequentam as salas de aula dos ambientes educacionais? A realização destas perguntas ajuda a compor o lugar no qual procuro realizar, através da elaboração de minha tese de Doutorado, o que escolhi chamar de (des)educação Musical. Assim, esse convite passa também por apresentar como busco, através do encontro com a Filosofia da Diferença, problematizar a presença da música no contexto educacional exercida nas diversas salas de aula a disposição das crianças nos tempos atuais e principalmente nas salas de aulas que compõe a educação básica do nosso país. Desta forma, esta (des) educação musical é uma crítica as concepções convencionais sobre como tratar a música no contexto escolar. Ao problematizar a música enquanto componente das propostas curriculares a educação passa, também, a ser foco desse olhar. O que cabe ressaltar que essa crítica não acontece pela denúncia. Ela se dá pelo exercício da criação, da invenção. (Des)educação musical não passa por apontar defeitos e falhas, mas pela possibilidade de que a força da composição musical, da criação em arte possa emprestar suas energias para os espaços educacionais. E qual é o principal traço dessa força? A possibilidade de criação. Para tanto, a música na (des)educação é entendida como arte, e não como conteúdo. E como arte, é forma de pensamento.
187
Ainda cabe ressaltar que esta busca pelas forças que encontram na criação o motivo de colocar a educação no foco principal da elaboração deste trabalho encontra na Infância um lugar no qual estas forças podem ser exploradas. Para tanto é de minha opção, ao conjugar música e educação, tratar da infância para além das concepções que compreendem o potencial destes seres como algo a ser colocado em reserva, matéria maleável do homem por vir231. Minha opção é buscar alternativas para que a infância também possa ser entendida como tempo de devir, onde a possibilidade de invenção de músicas possa, também, contaminar as possibilidades de criação de si mesmo das crianças que ocupam os espaços escolares. E que suas potências estejam voltadas para as suas vidas no presente, abandonando as concepções que tratam destas meninos e meninas como sujeitos que devem deixar de ser o que são para se tornarem adultos aptos a exercitar sua adultez afastadas da sua condição de infância. Muitos são os compositores e pensadores que criam conceitos sobre música. Gosto muito de um elaborado por uma das minhas professoras, Dulci Marta Lemos. Ela nos diz “música é um movimento da vida, não podendo ser pensada fora dessa instância, uma espécie de território, algo que invade o lugar do brincar, de fabular, de namorar, de morar”. “A música não se cala, ela carrega uma resistência que não pode ser interrompida. Transborda. Ressoa. Assimetria inevitável e necessária que interliga e comunga ludicidade para afirmar que o princípio é a existência de sons”232. Faço de suas palavras o ponto de partida para as minhas problematizações. Esse território sonoro, que invade, transborda a vida é também um lugar de invenções, um lugar de fugas. José Miguel Wisnik, ao tratar da história da música nos eu livro o Som e o Sentido: uma outra história das músicas233, nos propõe que a música nasce como a própria desterritorialização do ruído. O ruído deixa de ser algo que incomoda para ser territorializado. Uma tentativa de buscar ordem para o caos. Assim, para esse pensador, a música é a busca de um novo sentido para as freqüências sonoras. Nos diz que as organizações das sociedades estão diretamente vinculadas a busca de sentidos para os ruídos que compunham a vida. Assim, se a música é um território também é força de desterritorialização, possibilidade de fuga 231 SCHÉRER, 2009. 232 LEMOS, 2008, p.23. 233 WISNIK, 1989.
188
dos sentidos pré-estabelecidos. Essas ideias encontram ressonância na filosofia de Deleuze e Guattari234, quando afirmam que uma das formas de buscar ordem para o caos é através da arte. Para esses autores, arte é uma forma de pensar. Toda via, esse ato acontece através da criação de sensações, por afectos e percptos. Nas palavras dos filósofos: “o objetivo da arte é arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar os afectos das afecções, como passagem de um estado a um outro. Extrair um bloco de sensações, um puro ser de sensações”235. A sensação ocorre quando passamos de um domínio a outro. (desterritorialização de um domínio e reterritorialização de outro). Quando por exemplo, saímos do domínio visual de um quadro que retrata pescadores numa manhã ensolarada e passamos para o olfativo e experimentamos o calor do sol e sentimos o frio da água. Neste momento vamos além dos sentimentos e percepções. Neste momento salta uma sensação, isto é, cria-se um bloco de afectos e perceptos. Nas minhas palavras, quando o domínio sonoro proposto pela escuta de uma obra musical é trocado pela sensação de calor de uma melodia, ou como diz Silvio Ferraz, pelo frio que experimentamos ao ouvirmos Vivaldi. Penso que aqui podemos traçar umas das linhas que compõem a (des)educação musical. Criar sensações. Compor sensações. “A arte é linguagem das sensações, que faz entrar nas palavras, nas cores, nos sons ou nas pedras”236. Portanto, propor nos espaços educacionais uma relação artística com a música. Fazer da música uma possibilidade de invenção de sensações. Qual o alimento para essa empreitada? Vida! Nada se joga fora. O que muda é o tipo de relação proposta pela (des)educação musical. Se por sua vez não busco uma crítica pautada pela denúncia, busco por um movimento revolucionário. Uma revolução minoritária. Deleuze e Guattari237 forjam o conceito de “menor” para tratar de uma literatura não como a que tem um valor diminuído, mas como uma língua de uma minoria diante de uma língua maior, sendo que uma de suas características é um forte componente de desterritorialização. Menor não por ser pequena, menos importante, menor por que cria desvios das grandes ordens. Busco 234 DELEUZE; GUATTARI, 1992. 235 Idem, p.217. 236 Idem, p.228. 237 Idem, 1977.
189
que a (des)educação musical seja tomada por movimentos de minoração, ou seja, torne visível, potente aquilo que é jogado fora, que não tem valor, que é desprezado pelas normas vigentes e que burle as regras das grandes artes, das grandes educações. Penso aqui a educação como esse território, cheio de regras e sentidos pré-estabelecidos e palavras de ordem. Trato da música como disciplina, com conteúdos dispostos de forma que seja possível organizar uma avaliação determinando se alguém apreendeu os conhecimentos apresentados. Ou melhor, é essa relação com a música que desejo não tratar. Quero tomar o cotidiano recheado de clichês e problematizá-lo. Clichês, que tem força, são potentes, nos arrastam. Não precisamos realizar esforços muito intensos para encontramos nos cotidianos das práticas educacionais musicais palavras que pelo seu uso tem perdido toda a sua liquides, e por não possuírem mais a qualidade de serem vazadas necessitam muito mais que um sopro para que possam ser colocadas fora de rota.238 Entre estas palavras destaco: a musicalização através da flauta doce, o coral infantil, a doutrina Swanick (apreciação, composição e performance), técnica vocal, estágios de desenvolvimento musical, lúdico, repertório, práticas educativas, percussão corporal, escrita musical, construção de instrumentos musicais com materiais alternativos, objetivos (geral e específico), planos de aula, grade curricular, ementas, conteúdos, didática. Assim, com estas palavras também realizo um desenho no qual indico qual é o lugar que desejo realizar os movimentos (des)educacionais. Tomando a possibilidade de inventar uma (des)educação musical, também, como um movimento de minoração, escolho os meus intensivos para essa realização. Deleuze e Guattari239 chamam intensivos aqueles traços que são desconsiderados pela língua maior. Por exemplo, os erros de conjugação, as faltas de pontuação ou mesmo as suas trocas. Aquilo que é entendido pela língua maior como o que não contempla as regras e a excelência das doutrinas de uma língua culta. Elejo dois intensivos para compor a (des)educação musical, o ritmo e a percussão. Começo pelo segundo. Nas escolhas feitas pelos compositores que representam a música tradicional européia, ao ritmo é delegada uma posição subalterna no que se refere à importância nos elementos de uma composição musical. A história da música nos mostra que a partir e século VI, podemos perceber 238 COSTA, 2008. 239 DELEUZE; GUATTARI, 1977.
190
uma vontade que explora, até o final do século XIX, as possibilidades da melodia e sua relação com o suporte harmônico. Essa opção trata do ritmo como um suporte para essa melodia. Até então, esse traço da música não possuía status ao ponto, por exemplo, de ser entendido com relevante para ser a principal característica de uma composição. Assim, o ritmo carrega consigo uma minoridade, uma subalternidade nas composições européias. Essa relação do ritmo com a melodia invade o nosso cotidiano. Em quase sua totalidade as músicas que ouvimos no nosso dia a dia tratam o ritmo como um suporte para a melodia. Diante deste argumento podemos ouvir vozes discordantes que nos lembram que o Brasil a fora tem grupos como Olodum, Timbalada que tem a percussão à frente. Peço licença para discordar, pois nesses grupos a melodia é o principal traço. O fato de existir muitos percussionistas tocando não produz o movimento de minoração em relação aos traços que compõe o fazer musical. Ali ainda, apesar da aparência, o ritmo é um suporte para melodia. Tomando como referência essa escolha, a feita pela música européia tradicional, a percussão, enquanto naipe de instrumentos, e tratada como menos importante, com menor relevância no contexto das composições, dos grupos musicais e na relação entre os músicos. Ainda podemos lembrar que percussão é a opção feita pelos africanos. Não foi a melodia a energia escolhida por esses povos para ser explorada. Para essa gente, a polirritmia ocupa o espaço de invenção. Não preciso dissertar sobre a relação do ocidente com as pessoas de pele escura, muito menos com a sua música. Assim, é a partir desses intensivos, por mim eleitos, que busco criar uma (des)educação musical. No platô que trata do ritornelo Deleuze e Guattari240 nos dizem que a criança busca estabilidade, ordem através do canto. Valendo-me das palavras desses pensadores, proponho essa tentativa através do ritmo. Mas para tanto os convido para pensarmos sobre o ritmo. Como já tinha afirmado anteriormente, as educações e as músicas que integram essas educações estão recheadas de clichês, e que a (des)educação é uma vontade de problematizar essas pré-determinações, as quais têm força para nos arrastar para lugares comuns e esvaziados de potência criativa. Como afirmam nossos intercessores, não podemos confundir ritmo com ritmado. Não se trata de uma regularidade de tempos, de durações que encontram lugares determinados 240 DELEUZE; GUATTARI, 2005.
191
e repetidos (repetições do mesmo). Não se trata da marcha dos soldados. Ritmo, para eles possui outro sentido, ou melhor, criam outro sentido. Nas suas palavras, “a repetição compasso é uma divisão regular do tempo, um retorno isócrono de elementos idênticos. Mas sua duração só existe determinada pro um acento tônico, comandada por intensidades. Dizer que os acentos se reproduzem em intervalos iguais seria um engano quanto a sua função. Os valores tônicos e intensivos agem, ao contrário, criando desigualdades, incomensurabilidades, em durações ou espaços metricamente iguais. Eles criam pontos notáveis, instantes privilegiados que marcam sempre uma polirritmia. Ainda é desigual é o mais positivo. O compasso é apenas o envoltório de um ritmo, de uma relação de ritmos”241. Penso que essa possibilidade de compreensão sobre o ritmo nos leva, também ao conceito de ritornelo, onde a volta, o retorno promove a diferença. A volta para casa é sempre a volta do diferente. O ritmo, como retorno ao tempo inicial, ao inicio do compasso é sempre a volta de um som diferente. Uma repetição da diferença expressa pelas durações e pelas freqüências sonoras que não se repetem enquanto repetição do mesmo, mas sim como produtoras de diferença. Realizar uma (des)educação musical, é tomar essa energia como alimento para a criação em música, compor com ritmos. Criar ritmos, inventar ritmologias242. Outro traço que ajuda compor minha tentativa encontra na introdução do livro Diferença e Repetição243 outro intercessor importante. Aqui estou tratando, também, como intercessores não só autores, compositores, mas suas problematizações. Ao apresentar, logo no prólogo, suas inquietações sobre Filosofia enquanto possibilidade de criação e produção de pensamento, Deleuze o diz, “A História da Filosofia é a reprodução da própria Filosofia. Seria preciso que a resenha em História da Filosofia atuasse como um verdadeiro duplo e que comportasse a modificação máxima própria do duplo. (Imagina-se um Hegel filosoficamente barbudo, um Marx filosoficamente imberbe, do mesmo modo que uma Gioconda bigoduda). Tomo emprestado essa proposta. Por alegria, por admiração que faço. E também por curiosidade. Emprestar para essa (des) educação essa possibilidade. Como seria imaginar um Mozart musicalmente tomado pela sede daqueles que vivem a falta de água do sertão brasileiro? 241 DELEUZE, 2006, p.46. 242 Idem. 243 Idem.
192
Imaginar bigodes em Jobins, Beethovens, Caetanos... Em sonatas, sinfonias, concertos. Imaginar bigodes nas escolas, nos professores, nos planos de aula, nas avaliações. E tomar desse movimento a força necessária para criar novas músicas, e quem sabe novos conceitos. (Des)educar a música. Entre os aspectos que buscam compor uma (des)educação musical está a elaboração de um Manifesto244, que tem por intenção traçar algumas dos traços que ajudam a compor esse relação com a música no contexto educacional. 1 – Ao modo de Roland Barthes: Preparação da obra musical: o fazer musical se refere à captura das sonoridades que compõem o texto da vida; portanto, abandone aquela velha história que flauta doce é um ótimo instrumento para musicalizar crianças. 2 - Ao modo de Paul Valéry: É preciso ser leve como pássaro (não como uma pluma); portanto, quando sua professora de música quiser didatizar os seus encontros voe da sala de aula. 3 – Ao modo de Sandra Corazza: Música é o desregramento do pensamento, do escapamento da morada, do embrutecimento, do delírio, da loucura e do combate contra o que está aí. 4 – Ao modo de Hermeto Pascoal: Música é o aprofundamento das possibilidades melódicas e rítmicas, tendo a criatividade como elemento propulsor de combinações entre notas, texturas, timbres, ritmos, estilos e formas; entre esses, todos os conhecidos e reconhecidos pela humanidade como patrimônios culturais, além de invenções que estão por acontecer. No caso de achar tudo isso muito complicado, coloque água dentro de uma chaleira e sopre pelo bico da mesma. 5 – Ao modo de José Miguel Wisnik: Música é som percebido como produção de sentidos, é ruído deslocado e descolado de sua natureza, é ordenação e regramento. É quase como colocar as crianças em fila para a hora do lanche. 6 – Ao modo de Seu Chico: Preste atenção: imaginou passar a vida sendo um sol maior? 7 – Ao modo de John Cage: Não se engane, o silêncio não é a sinfonia da ausência; mas sim concertos das presenças. 244 Retirado do livro Fantasias de escritura: filosofia, educação e literatura (CORAZZA, 2010).
193
8 - Ao modo de Gilles Deleuze: Mais vale um bom pequeno ritornelo do que voltas e voltas ao redor do mundo. 9 – Ao modo de Nietzsche: Diante de toda a verborragia corrente, de todo o bláblálblá cotidiano é preferível que se fique onde estamos tocando um piano mudo. CARTA PARA UM AMIGO245 Santa Maria, 13 de julho de 2010 Querido Amigo, Confesso que tuas palavras me provocam curiosidade. Especialmente quando trazem à baila a palavra pedagogia. Ao assistir teu grupo tocando, e totalmente embriagado pela “alegria” de compartilhar a música que dali saiu, a curiosidade de como crianças e adolescentes aprendem a realizar essa proeza me enche de curiosidade. Que pedagogia é essa? Hoje me satisfaço com essa indagação, expressando meus sentimentos de saudades pelo caro amigo. Santa Maria, 16 julho de 2010. Indagação provocante essa que me fazes. Que pedagogia guia o aprendizado de música dos meninos e meninas do meu grupo? Antes de tomar em minhas mãos a resposta dediquei algum tempo para vasculhar como te apresentaria a pedagogia que une música, crianças, adolescentes e eu. Vários são os pensamentos que surgem. Alguns com uma intensidade tal que me exige uma obrigatoriedade na sua colocação, decretando que não sejam esquecidos. O primeiro remete à resposta que Debussy deu a um colega compositor quando, indagado sobre um acorde, afirmou que era impossível explicar aquela combinação de notas. Sua resposta foi a seguinte: aquele acorde não foi criado para ser explicado, mas para ser sentido. A que me refiro? A minha escolha de entender a música como arte, e não como algo a ser explicado, identificado, quantificado e sim produzido, inventado. Assim, entendo que a nossa pedagogia é uma pedagogia do pensamento em música. O segundo deles é o desejo muito presente de desfazer da minha presença um motivo de autoridade, seja ela como professor 245 Retirado da Proposta de Tese de Doutorado Fragmentos de uma (des)educação Musical, (PACHECO, 2010).
194
ou como compositor. Quando uso essa designação o faço lembrando-me de John Cage. Como bem sabes, o nosso grupo tem como intenção problematizar as relações existentes nos contextos sociais dos quais participamos. Muitos chamam isso de inclusão social. Para tanto, temos na música a nossa forma de problematização. Cage nos alerta que não basta que nossos discursos evoquem mudanças sociais, movimentos de liberdade, de diminuição das distâncias hierárquicas entre as pessoas. É preciso que a arte dos donos desse discurso provoque tal transformação. Assim, aquela arte que tem no compositor, maestro, professor, as figurais centrais do fazer musical, ou ainda, na supremacia de melodias sobre o ritmo, na valorização de uma nota da escala sobre as outras suas principais características não exprime na sua arte o desejo de tais transformações. Não basta clamar por transformação social se a arte que fazemos não tem essa vontade no seu próprio fazer. Nossa pedagogia é aquela que desfaz o compositor, dilui sua força entre todos aqueles que participam da criação musical, desfazendo as distâncias hierárquicas. Pedagogia que tira do professor o poder, as escolhas, as decisões para estabelecer outros tipos de relação entre os que aprendem música e os que ensinam música. Uma pedagogia que tira do ritmo o lugar de subalternidade nas obras de arte. Não é mais a melodia que decide para onde o ritmo vai se movimentar. O ritmo não é mais a repetição do mesmo, não é mais conteúdo fixo dos compassos. Ritmo é composição, criação, força que produz uma passagem entre o musical e o não musical, força que permite ao não musical ser tocado pelas forças sonoras da criação em música. Ritmo é o entre meio que liga o que éramos antes de compor e tocar o que somos depois disso. Pedagogia do ritmo, ou melhor, das ritmologias que nossos tambores desejam inventar. Pedagogia que não vincula a transcendência do espírito ao que é fora da vida, mas a transcendência da obra de arte, que faz da nota musical mais do que relações físicas entre pulsos vibratórios e sim na mais valia dos sentidos a ela atribuídos. Essa é a nossa pedagogia. Essa opção, é com convicção que lhe digo isso, não é a de educar, é a de criar músicas com os meninos e meninas do nosso grupo. A essa pedagogia chamamos de (des)educação Musical. Fico feliz pelo teu interesse. Aguardo ansioso nosso encontro. Felicidades, meu amigo.
195
Referências COSTA, Luciano Bedin da. A vida em escritura: biografemas e o problema de uma biografia. Proposta de Tese (Doutorado). Porto Alegre: Programa de Pós Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi; Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Graal, 2006. DELEUZE, Gilles; FELIX, Guattari. O que é a filosofia? (Trad. Bento Prado Jr e Alberto Alonso Munoz.) São Paulo: Ed. 34, 1992. _____. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. (Trad. Suely Rolnik.) Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. _____.Kafka – Por uma literatura menor. (Trad. Júlio Castañon Guimarães.) Rio de Janeiro: Imago, 1977. FERRAZ, Silvio. O livro das sonoridades [notas dispersas sobre composição] – um livro de música para não-músicos para músicos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005. LINO, Dulcimarta Lemos. Barulhar: uma escuta sensível da música nas culturas da infância. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008. PACHECO, Eduardo Guedes. Fragmentos de uma (des)educação musical. Proposta de Tese (Doutorado). Porto Alegre: Programa de Pós Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010. _____. “Ensaio da (des)educação musical”. In: CORAZZA, Sandra Mara (Org.). Fantasias de Escritura: filosofia, educação e literatura. Porto Alegre: Sulina, 2010. SCHÉRER, René. Infantis: Charles Fourier e a infância para além das crianças. (Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira.) Belo Horizonte: Autêntica, 2009. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido – uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
196
OpenBarthes e direção)
eiro Garcia (rot eira; Wladimir ira; Eduardo Silv ação) is re ov er F pr a im Renat formance e rimm (per G r u h rt A
1. Uma hospitalidade: uma abertura para o Outro, ao outro desconhecido com seus devires, ao anônimo que se insinua como texto do outro, para o bárbaro da terra, para uma alteridade radical, para o amado ausente que não cessa de retirar-se, que subsiste na ausência - para a diferença, enfim. Vale lembrar: o outro está em estado de perpétua partida, assim, de viagem: é, por vocação, migrador, fugidio; eu sou, eu que amo, por vocação inversa, sedentário, imóvel, à disposição... 2. Sou simultaneamente e contraditoriamente feliz e infeliz. Sou si. Sou mente. Somente. Sou contra. Sou o contradito. Feliz e infeliz. In-feliz. Sou simultâneo. Sou feliz e infeliz. Sou feliz e infeliz. Esta destituição me faz pensar o quanto me punge a paradoxalidade lírica do esquecimento. 3. Interessa, também, o fragmento de uma vida, o instante fugaz. O fragmento é o próprio texto: não pertence a um gênero, mas participa de vários. Aí o charme em dançar entre os gêneros. B: “os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?” É, portanto, uma questão de música, não de sabedoria, esta economia, o sinestésico. 4. O outro, de novo, outro: a lógica do contágio segue uma mutação criativa: na ideia de devir, o princípio era o bando e o contágio, depois vinham o intruso, o estranho, que se espalhavam numa dança infecciosa. 5. Tornar-se este objeto perdido – a nobre arte de saber perder as coisas e tomar isto como uma forma de saber, como uma alegria discreta.
197
Acionar uma máquina de escrita: toda a potência, nenhum poder. Amor ao ritmo, paixão pela palavra: sem isto não se goza a escritura. Como o grande gozador, o logoteca, o criador de língua. Sem isto não há escritura, já que isto fala. Interessa, portanto, a repetição do corpo, seus rituais e emanações. 6. Di-ferir: o mesmo não é senão uma relação lógica entre sua afirmação e sua negação a-si, relação de positividade sobre sua posição-a-si (lógica, física, espaço-temporal etc.) que se repete sobre si mesma, ou de negatividade na não-repetição dessa posição, o que sempre será logicamente uma diferença (de grau, de natureza etc.) de posição-a-si. Fazer um in-vento: ventar para dentro, fazer do fora a mais íntima interioridade, um intimus...Eu me desloco, ou, antes, eu me descolo, me transporto, como os amantes, para um outro lugar, eu des-realizo o real. 7. “Deixe-nos pensar no informe como aquilo que a própria forma cria, como lógica agindo logicamente contra si mesma consigo mesma, forma produzindo uma heterológica”. Deixe-nos pensá-lo não como o oposto de forma, mas como uma possibilidade trabalhando no coração da forma, para erodi-la de dentro. 8. É preciso fazer um exercício de poesia para suportar o peso de tudo. O estilo como um fluxo de pulsões, marcas seletivas, acasos controlados. Escrever como um jogo (no sentido de teatro): linhas em relação tal um quadro de Pollock. 9. Sim, só há restos, rastros e sulcos, ausências, por definição, presentes. Como lidar com essas marcas que a vida nos deixou gravadas no corpo? Eis que um outro as colhe e as distribui generosamente em novas linguagens, garantindo que a aventura da linguagem continue. 10. Apreço pelo entre: o entre é o corpo do nome. Como posição relacional ele captura os monumentos visuais e literários, estabelecendo uma política de desconstrução que pensa a partir do paradigma enquanto morte (a morte do paradigma) ou enquanto decomposição do relato, no retorno do fantasma e de suas grandezas sublimes. 198
11. 2=1 ou 1=2? Farsa dialética: o um é feito de dois, o dois é uma unidade. O um é tomado como punição. O dois é suspense de um (o um é prenhe de dois). O um faz explodir o desejo de dois. 12. A resistência na passividade ativa: o Wu Wei, estilo que implica numa conduta de vida. Não apenas abster-se do acontecimento, mas também não suscitá-lo. Abster-se de exercer uma autoridade, de exercer uma função. Não julgar, contornar a tagarelice do ego; não conhecer mais as oposições lógicas ou morais. Politicamente, o Wu Wei é escandaloso. 13. Esvaziar a educação: antidogma, antiesquema, antidiretriz.: tarefa urgente: 14. O ar que passa pelo corpo. Um exercício de Feldenkreis: “fique de pé e deixe seu corpo balançar levemente de um lado para outro, como se fosse uma árvore curvada pelo vento”. 15. E o anacoreta, heim? Fugir, negar o poder, os aparelhos - criar uma estrutura de vida que não seja um aparelho de vida. 16. Eis que inventaram este “m”, o método: ir de um ponto a outro da maneira mais rápida e eficaz possível. Felizmente há os que praticam o não-método (o não-método: “um psiquismo de viagem, de mutação extrema, borboletear, sugar o pólen”), o direito aos devaneios todos, ao inevitável dos delírios e, sobretudo, o direito a esquecer – a potência na passividade (“Ausência do amado: essa ausência bem suportada nada mais é do que o esquecimento. Sou intermitentemente infiel. Esta é a condição de minha sobrevivência; pois se eu não esquecesse, eu morreria. A linguagem nasce, assim, da ausência e do esquecimento. Elas se tornam práticas ativas, um atarefamento”). 17. (“A escrita como vida nova: a descoberta de uma nova prática de escrita. Excetuando o Novo, é apenas isto: que a prática da escrita rompa com as práticas de escritas antecedentes; que a escrita se destaque da gestão do movimento de gerir a si mesma... este nhenhenhém”. “A imagem de decisão de Blanchot: a imagem suplementar que corre o risco de romper 199
o equilíbrio. Onde encontrar um lugar para ela?”). A escrita invoca um saber: ao lançar os dados, produz um acesso controlado, mas o saber advém de um descontrole, de uma desorganização, de uma catástrofe: pela escrita, até que enfim, ensinamos o que não sabemos. Ou, quem sabe, falar como quem escreve (o transe excríptico), realizando um tipo de transmissão que protagoniza o outro como possibilidade de escuta. Estamos frágeis e perdidos e felizes nesta respiração profunda.
200
Ceci n’est pas un épilogue iro
es Monte
g Silas Bor
Geralmente pensamos em prefácios e posfácios como peças que abrem e fecham uma publicação. Afinal, é disso que tratam seus léxicos: o primeiro como aquilo que é preliminar, algo do discurso que pretende preparar o leitor para aquilo que encontrará adiante; o segundo, como uma espécie de conclusão, adicionando algo que pretenda trazer esclarecimentos ou destaques sobre o que foi lido. Ambos funcionam em um esquema de texto. Nesta publicação também funcionaria, a não ser pelo fato de que aquilo que abriu este Caderno não era um prefácio; nem este texto é um posfácio; pela simples razão de que aqui não se encontra um sistema, mas sim, rastros de escritura; aqui o pensamento não é; cabe-lhe devir. A ideia de que é possível localizar começos e fins traduz uma operação tipicamente metafísica de que algo está completo, pleno, fechado. Temos sido convencidos por Derrida de que a busca pela gênese e por seu telos é um esforço inútil, ilusório, equivocado, empenho em estabelecer fronteiras que marcam limites, que denotam espaços metricamente definidos; os quais, afinal de contas, querem dizer até onde ir, ou, quando muito, oferecem passaportes que autorizam a ultrapassagem de um lado ao outro, sob determinada ordem. Este Caderno é escritura. Convida seus leitores à escrileitura. Eis aí o nosso convite! Estranho: um convite quando, aparentemente, se chegou ao fim? Ora, retorne ao Prefácio. Ou, volte ao texto de Eduardo, qualquer um deles. Ou ao texto de parágrafos únicos. Ou à filosofia de Foucault. Ou à filosofia nascente. Que tal à leitura que Ester faz de Deleuze lendo os modernos? Ou qualquer outro. Não há começo, nem meio, nem fim: tudo continua. Ou coloque este Caderno de lado, e ouça as canções da Dóris... Ou, apenas – é certo que isso não é apenas – movimente-se em meio à vida.
201
Esses nomes que aparecem neste Caderno têm isso em comum: Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. E saibam: aquela que chamamos de Sandra Corazza não coordena nada disso! Viram? Isto não é um posfácio.
202
tores
s au o d a c r e c A
Betina Schuler – Professora da Universidade de Caxias do Sul e professora colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Educação da UCS. Professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre. Atua com os temas: filosofia da educação, currículo escolar; educação e estudos foucaultianos, teorias pós-críticas em educação. Pesquisadora no Projeto de Pesquisa “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida” (CAPES-INEP); betinaschuler@hotmail.com. Doris Helena de Souza – Graduada em Pedagogia (PUC/RS), Mestre e Doutora em Educação (PUC/RS). Professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre e atualmente diretora da EMEF Rincão/POA, ou apenas um devir: rata, gata, cordeira, camela, leoa, criança, professor; masseti@via-rs.com.br. Eduardo Aníbal Pellejero – Doutor em Filosofia Contemporânea pela Universidade de Lisboa. Professor de Estética na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e membro do Grupo de Pesquisa The Animal Condition, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa; edupellejero@gmail.com. Eduardo Guedes Pacheco – Bacharel em Percussão. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria. Membro do DIF: Artistagens, Fabulações, Variações como doutorando. Coordenador Pedagógico da Associação CUICA. Pesquisador no Projeto de Pesquisa “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida”; edupandeiro@gmail.com. Emília Carvalho Leitão Biato – Mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba. Professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da mesma instituição. Pesquisadora no Projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida”; emiliacbiato@yahoo.com.br. Ester Maria Dreher Heuser – Professora na Licenciatura e Mestrado em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Membro do Grupo de Pesquisa: DIF – Artistagens, Fabulações, Variações. Coordenadora do Núcleo Toledo do projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida”. Licenciada em Filosofia e mestre em Educação nas Ciências (área Filosofia) pela UNIJUÍ. Doutora em Educação pela UFRGS; esterheu@hotmail.com. Gabriel Sausen Feil – Professor de Comunicação Social da Universidade Federal do Pampa. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Autor do livro Procedimento Erótico, na Formação, Ensino, Currículo (2011), pela Paco Editorial. Membro dos Grupos de Pesquisa DIF: Artistagens, Fabulações, Variações e Diálogos do Pampa; e líder do T3XTO; gabriel.sausen.feil@gmail.com.
205
Nilton Mullet Pereira – Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da área de Ensino de História. Investigador Visitante na Universidade de Alcalá. Pesquisa o papel do uso de fontes no ensino da História, através do projeto “Vestígios do Passado: as fontes no ensino de História”; nilton.mulleti@ufrgs.br. Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan – Professora do Departamento de Ensino e Currículo e da Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É membro do Grupo de Pesquisa DIF: Artistagens, Fabulações, Variações; paola.zordan@gmail.com. Polyana Cindia Olini – Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso. Estudante de Mestrado em Educação na mesma instituição (bolsista CAPES). Participante do projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida”; polyanaolini@gmail.com. Samuel Edmundo Lopez Bello – Doutor em Educação: Educação Matemática pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, DEC/FACED. Atua, principalmente, nos seguintes temas: currículo, ensino de matemática, etnomatemática, prática pedagógica: linguagens e subjetivações; samuelbello@uol.com.br. Sandra Mara Corazza – Professora do Departamento de Ensino e Currículo e da Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Líder do Grupo de Pesquisa DIF: Artistagens, Fabulações, Variações. Coordenadora geral do Projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida”, do Observatório da Educação CAPES-INEP. Pesquisadora do CNPq; sandracorazza@terra.com.br. Silas Borges Monteiro – Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação e da Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. Coordenador do Núcleo Mato Grosso do projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida”; silas@ terra.com.br. Walter Omar Kohan – Doutor em Filosofia pela Universidad Iberoamericana. Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É representante da América do Sul na Rede de Pesquisadores L’état de droit saisi par la philosophie de l’Agence universitaire de la Francophonie (AUF). Pesquisador do CNPq; walterk@uerj.br. Wladimir Antônio da Costa Garcia – Professor da Universidade Federal de Santa Catarina nos cursos de Pós-Graduação em Educação e Literatura, nos quais orienta estudos de fronteira entre artes, filosofia e educação; wladimir.ufsc@gmail.com.
206