A legitimidade das Associações Policiais em um Estado de Direito Paulo Ribeiro da Cunha1
Há historicamente considerável resistência de setores da cúpula militar das Forças Armadas e dos comandos policiais em reconhecer a legitimidade das associações policiais enquanto atores políticos, bem como suas manifestações democráticas, comumente adjetivando paralisações, movimentos e ou greves como Motim. Curiosamente, há igualmente nessa linha, muita resistência entre setores civis de esquerda em reconhecer que os militares fazem parte do atual processo político. Os exemplos são muitos nessa sociedade que se propõe democrática, mas o equívoco dessa interpretação, ao quer parece, continua, haja visto os muitos posicionamentos contrários às entidades policiais que desencadearem movimentos de paralisação e greves pelo país nos últimos tempos, confirmando através dessas ações, a firme intenção delas em democratizar o meio militar, além de incluir na agenda questões corporativas, soldo, relações de trabalho, e mesmo condições adequadas para o efetivo exercício de suas atividades. Na verdade, esse debate é tardio no Brasil, mas inevitável, já que reflete uma tendência histórica já aceita em outros países. Para fundamentar essa tese, vale recorrer a dados recentes. Não foram poucas as paralisações nos últimos anos entre as PMs, e segundo pesquisa do Sociólogo José Vicente Tavares dos Santos2, completaram-se 15 anos de greves policiais que ocorreram em todos os estados em 2012. Entre as corporações que enfrentaram a questão da legalidade do movimento, há o registro de 150 greves organizadas pela Polícia Civil, 34 por Policiais Militares, inclusos os Bombeiros nessa categoria; 18 por Policiais Federais, 22 por Guardas Civis e 60 por Agentes Penitenciários. Em sua maioria, foram reprimidas com rigor, resultando em prisões, expulsões; e em alguns casos, houve uma situação de acomodação, em que pese por pouco tempo.
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Professor de Teoria Política da UNESP - Campus: Marília. Este texto resgata alguns apontamentos desenvolvidos com profundidade no Cap. I intitulado Política, a Esquerda Militar e a Democracia: uma problematização Contemporânea à ser publicado no livro MILITARES E MILITÂNCIA (VOL. I) – Uma relação dialeticamente conflituosa (PRELO). Email - prcunha@marilia.unesp.br 2
José Vicente Tavares dos Santos in Mais uma para ficar na história .OESP, 12/02/2012; Veja, 15/01/2012.
Isto, no entanto, não abortou outras tentativas, mas é constante a inabilidade dos governos em lidarem com situações como essas, exemplo maior aconteceu na última greve em 2002 em São Paulo, cujo resultado foram violentos choques entre os membros da Polícia Civil e Militar na frente do Palácio do Governo. Mas não somente. Paralisações brancas ou mesmo greves nas PMs palpitaram em outros estados, e mais recentemente, ocorreram algumas bem significativas como as greves dos Policiais e Bombeiros do Rio de Janeiro. Houve a prisão de suas lideranças, e durante algum tempo, cogitou-se a concessão de uma anistia; porém ao final, mais de uma dezena de seus membros acabaram sendo expulsos3. Greves entre policiais também ocorreram em Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Alagoas, Ceará, e na Bahia, somente para citar os casos mais conhecidos entre as mais de duas centenas de greves desde 1988; alias, somente o Amapá e o Amazonas tiveram uma greve cada, e houve 17 greves em São Paulo e na Bahia 144. Como ainda ressaltou Santos (2012), ‘há enorme dificuldade do poder público e da imprensa em reconhecer a legitimidade dessas mobilizações como luta social de uma categoria por melhores condições de vida.’ Noutros estados, alguns movimentos adquiriram uma politização maior no processo de luta, tendo inclusive em alguns estados sido eleitos parlamentares de esquerda advindo das corporações policiais às Assembléias Estaduais, e que denota entre eles, alguma influência de agremiações e partidos políticos; em outros casos como o do Rio de Janeiro, em que pese, haja uma presença de alguns partidos de esquerda no apoio e incorporação das demandas da categoria no processo de luta como o Partido do Socialismo e a Liberdade – Psol, ao que tudo indica, setores significativos do movimento dos policiais e bombeiros cariocas são influenciados por políticos conservadores e populistas, muitos deles ligados à igrejas evangélicas. Santos (2012), no entanto, relativiza nosso enfoque sobre a importância de se discutir se houve ou não apoio de partidos aos movimentos policiais grevistas, mas concordamos com ele quando pontua que os policiais devem ser vistos como trabalhadores que fazem parte do processo político, e complementa sua legitimidade depende disso.’
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Corpo de Bombeiros expulsa líder e mais 12 grevistas. FSP,C4, 13/03/2012; PM do Rio expulsa 11 policiais que aderiram à greve. FSP,C4, 21/03/2012; Brigada indicia 13 policiais que protestaram em 2011 no RS. FSP, 28/03/2012; Veja, 15/01/2012. 4 José Vicente Tavares dos Santos in Mais uma para ficar na história .OESP, 12/02/2012; Veja, 15/01/2012.
Há, no entanto, uma lacuna de entendimento sobre esses movimentos, e faltam estudos específicos sobre suas motivações políticas e ideológicas, salvo contribuições bem pontuais. A título de registro, temos algumas pistas na Bahia que nós auxiliam a explicar os desdobramentos da recente paralisação em 2012, e quando comparados aos demais movimentos policiais militares, refletem uma expressão atípica quanto aos seus interlocutores. Tendo à frente um governador que anteriormente na oposição apoiara efusivamente as reivindicações dos PM; desta feita à frente do cargo, demonstrou total insensibilidade a uma democrática interlocução, e que teve dos policiais militares uma radicalização, com ocupação da Assembléia Legislativa Estadual. Independente dos excessos ocorrido por alguns, com conseqüentes prejuízos à população, algo que, com graus variados, não os diferencia em situações de greve de outras categorias cujas paralisações são sensíveis ou diretamente prejudiciais no quotidiano da população como greves dos médicos, servidores da saúde, do judiciário, transportes coletivos, metroviários, controladores de vôo, petroleiros, caminhoneiros, bancários, entre outras; ali ocorreu um fato atípico e surpreendente para muitos: o comandante da 6* região militar, o General Gonçalves Dias se confraternizou com os grevistas, e assim se manifestou publicamente, ‘Peço aos senhores: se as pautas que estão sendo discutidas pelos políticos não forem atendidas, vamos voltar a uma negociação. Não poderá haver confronto entre os militares. Eu estarei aqui, bem no meio dos senhores, sem colete’. (GASPARI, 2012) Inegavelmente, temos aqui um posicionamento político que foi de enorme coragem pessoal e dignidade profissional, até porque, estando o general numa posição de força, entendeu que esse recurso bem sua utilização não se operava naquela situação; e sim, o canal para o equacionamento do impasse era a negociação, cuja solução passava por canais políticos e não militares. Como um gesto de reconhecimento, mas de igualmente enorme significado, os policiais grevistas deram ao general um bolo por seu aniversário, presente maior por sua sensata posição que muito contribuiu para desanuviar o ambiente. Os pressupostos da hierarquia e disciplina em nenhum momento foram corrompidos, violentados, ou deixarem de ser reconhecidos nessa aparente confraternização, e nem ameaçados; muito pelo contrário, sua autoridade foi reafirmada sob outras bases, configurando-se militarmente em um Comando como expressão de liderança, conceitos previstos e valorizados em Documento do Estado-Maior do Exército - Liderança Militar e
Princípios de Chefia (PORTARIA nº 088-3ª SCH/EME, de 19 de setembro de 1991), expressão concreta de um novo tempo e de uma nova forma de lidar com conflitos numa democracia na virada do milênio, possibilitando superar a tese histórica do Brasil do século XX que, caso social não seria mais caso de polícia e sim de política. Todavia, há várias possibilidades de interpretação que conferem legitimidade à essa situação política, mesmo sendo militares os envolvidos. Podemos entender que a suposta ilegalidade de um movimento grevista não o dissocia de sua legitimidade, alias, pressuposto que pode ser aceito na ordem burguesa, já que há entre pensadores liberais mais categorizados, àqueles que defendem o princípio da legitimidade de uma rebelião contra o governo5. Ou uma leitura e um posicionamento à esquerda; mas não necessariamente de esquerda. Ao que tudo indica, houve o reconhecimento de que estava em curso uma legítima luta social em um Estado Democrático e de Direito (quaisquer que sejam as limitações), e não um motim, confluindo em sua atitude (em nossa interpretação) com a leitura de Santos (que não comenta especificamente esse ato) que o infere numa linha de argumentação de que, pela abrangência e constância, as greves policiais devem ser vistas como expressão de um Fenômeno Social (2012). Na verdade, face à delicada situação citada e um passivo histórico não equacionado, alias não muito diferente de outros momentos correlatos em nossa história, a politicamente correta atitude do General Gonçalves Dias, lamentavelmente, tem encontrado um firme repúdio e mesmo punição nas cúpulas militares. Consta, inclusive, que houve uma intervenção branca em seu comando. Seu posicionamento também seria condenado em jornais e pronunciamentos públicos, e mesmo por alguns ocupantes de 1* escalão do governo que se dizem de esquerda. Jornalistas a exemplo de Elio Gaspari (2012), qualificaram a atitude como impertinente e constrangedora. Nessa linha contestatória, somaram setores militares, expressa numa fala do Presidente do Clube Naval, o Vice –almirante da reserva Ricardo Antônio da Veiga Cabral, 5
Possibilidades de (re)interpretação sob um enfoque crítico e analítico, podemos inclusive apreender um diálogo com pensadores de um arco liberal, e mesmo que não haja maiores desenvolvimentos teóricos sobre esse debate, um Estado que deveria oferecer condições de sobrevivência dignas aos seus servidores e associado à condições compatíveis operacionalmente para defender a população e a sociedade; esteve nesses casos alheio em relação aos seus integrantes (recorrendo a Weber, o Estado não esteve ausente somente enquanto detentor legal e legítimo da coerção), portanto, o principio a rebelião dado pela quebra de um Contrato na ordem burguesa, enquanto pressuposto de legitimidade pode sim ser aceito como bem pontificam clássicos a destacar o II Tratado sobre Governo Civil de John Locke, ou Rousseau em o Contrato Social.
cuja leitura demonstra não somente o desconhecimento do problema de seus pares policiais militares; como resvala sua assertiva para um reles preconceito. Ao comparar à crise do Manifesto do Clube Militar à das Polícias Militares à uma questão contábil, afirmou que a primeira ‘não é como a greve do Corpo de Bombeiros e da Polícia Militar da Bahia, a coisa é um problema mais ético que financeiro 6. Como última pá de cal em algumas ilusões, a anistia reivindicada pelos PM encontraria firme oposição em um ator político que poderia sugerir um compromisso político, respaldado por sua história e trajetória, a ex. guerrilheira anistiada e atual Presidente da República do Brasil, Dilma Rousseff. Percebe-se que há um longo caminho a ser pavimentado para um efetivo diálogo que expresse um salutar Estado Democrático de Direito, já que ainda há 02 pesos e duas medidas. Não houve uma atitude punitiva nos casos recentes em que houve correlatas manifestações políticas de indisciplina de altos oficiais da ativa confrontando a política governamental, como podemos apreender em declarações de generais da ativa a respeito da Comissão da Verdade; ou mesmo quanto a menção pública eximindo os militares de desculpas quanto a questão dos desaparecidos.
Uma vez mais, reafirma-se a tese
desenvolvida em outro ensaio, de que, as anistias relacionadas aos militares no Brasil são socialmente limitadas, e, ideologicamente norteadas7, e corroborando a leitura D´Araujo (2012) sobre a nossa democracia, conclui-se que, apesar dos avanços, os direitos são em grande medida formais, apresentando grandes déficits no quesito Estado Democrático de Direito. Leitura esta que também se apresenta contemporaneamente entre muitos setores militares, a exemplo das orientações da Escola Superior de Guerra a partir de 2002. Em seus manuais apreende-se que há um reconhecimento e valorização da democracia enquanto pressuposto de um discurso de subordinação ao poder civil; porém com condicionantes e limites intrínsecos à ordem burguesa. Ao final, podemos perceber preliminarmente nessa reflexão sobre a Política, a Esquerda Militar e a Democracia enquanto uma problematização, confrontando enormes desafios, ainda em aberto. A despeito das muitas polêmicas, há de fato, uma sugestiva e 6
OESP,03/03/2012; FSP, 01/04/2012; Veja, 15/01/2012. Quanto aos primeiros, comumente são identificados como de quebra de hierarquia e indisciplina, mesmo que suas reivindicações corporativas ou não, seja de caráter político. O exemplo mais conhecido é a Revolta da Chibata cuja anistia foi operada pelo Congresso; a segunda, ideologicamente norteadas. Ao contrário dos movimentos da Direita Militar vistas como patrióticas, e mesmo contemporaneamente como vemos nas declarações do Deputado Bolsonaro; a Esquerda Militar ainda é contestada, portanto há uma leitura ideologicamente que norteia esses processos. 7
positiva evolução da democracia na leitura dos militares em algumas pesquisas8, pautado fundamentalmente em um compromisso disciplinar com as instituições; embora muito resistentes quanto sua incorporação na caserna ou mesmo aceitar algum grau de democratização. Certamente, esse debate não se esgota com esses apontamentos, muito pelo contrário, deve inclusive adquirir enquanto problematização contornos políticos mais efetivos quando (e se) entrar em pauta para ser avaliada a PEC 186/2012 - Proposta de Emenda à Constituição, que propõe conferir nova redação ao inciso IV do § 3º do art. 142 da Constituição Federal, garantindo ao militar (leia-se Forças Armadas e Polícias Militares) o direito à livre associação sindical e o direito de greve9. Apesar da vagarosa tramitação de proposições como esta no Parlamento Brasileiro, e a PEC 186/2012 ainda aguarda a designação de um Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), seguramente, quando ganhar uma dimensão pública e entrar em pauta significará recolocar essa problemática na agenda nacional e mesmo influir nas instituições militares. Independente de outras considerações quer podem ser realizadas sobre a proposta e sua dimensão, concretamente a PEC cumpriria um primeiro e positivo passo para abrir um debate sobre essa delicada questão, para não dizer, é um imperativo que se justifica para equacionar democraticamente uma realidade expressa conflituosamente nas centenas de greves policiais, somente citando àquelas que aconteceram desde a constituição de 1988, mas que também se expressa como uma possibilidade de diálogo à ser construída entre os setores militares das Forças Armadas. E se o pressuposto da democracia no Brasil indica um processo de amadurecimento ao longo do tempo no sentido de efetivar de fato em um Estado de Direito, é bem factível ponderar por hipótese, que a democratização das instituições militares igualmente emergirá correlata com uma agenda conseqüente. Como ressaltado, este processo não é um caso isolado, muito pelo contrário, é análogo à história das lutas de muitos movimentos militares em outros países como demonstram vários analistas, nada distante do projeto das entidades mencionadas entre outras que intervieram nessa linha em nossa história. Há, no entanto, um longo percurso a 8
Por hipótese, podemos sustentar que essa resistência possa gradualmente estar sendo erodida pelos constantes encontros entre civis e militares nos últimos anos, onde encontramos muitos deles de uma geração mais recente estudando nos cursos de pós-graduação de muitas instituições federais, sem deixar de mencionar alguns igualmente recentes encontros acadêmicos como os da Associação Brasileira de Estudos de Defesa ABED, e os recentes e propositivos Congressos Acadêmicos Defesa. 9 A PEC 186/2012 é proposição do Pastor Eurico – Deputado pelo Partido Socialista Brasileiro/Pernambuco, disponível no link: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=547065 .
ser percorrido, com muitos obstáculos a serem superados. Não houve, por exemplo, evolução significativa sobre a questão dos desaparecidos e a anistia, presentes na resistência que já havia na época das pesquisas citadas, que ainda e se apresentam com alguma frequência em manifestações e declarações contrárias a Comissão da Verdade. Na verdade, as lacunas são muitas quanto a participação dos militares, bem como dos militares atuando à esquerda e os militares de esquerda procurando intervir na efetiva democratização de suas instituições, e mais ainda, quanto ao preconceito relacionado à quebra desse paradigma, esquecendo que o pressupostos da hierarquia e disciplina não está posto, e nem é necessariamente rompido pelos muitos atores das Forças Armadas e das Polícias militares, embora tenha que se reconfigurar em outras bases. Tais questões, no entanto, não são conclusivas e estão em aberto, e nem foram respondidas, mas é um instigante ponto de reflexão e análise, mas sobretudo, leia-se, uma relação dialeticamente conflituosa. Que seja aberto o debate.