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A PAZ QUE NASCE DE UMA NOVA JUSTIÇA

A PAZ QUE NASCE DE UMA NOVA JUSTIÇA

2012-2013 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PODER JUDICIÁRIO

Impressão:

UM ANO DE IMPLANTAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO POLÍTICA DE PACIFICAÇÃO SOCIAL EM CAXIAS DO SUL


Coordenação: Leoberto Brancher

I Fotografia e Reportagem: Caroline Pierosan I Projeto gráfico: Tati Rivoire I Revisão: Fátima De Bastiani


A PAZ QUE NASCE DE UMA NOVA JUSTIÇA

2012-2013 UM ANO DE IMPLANTAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO POLÍTICA DE PACIFICAÇÃO SOCIAL EM CAXIAS DO SUL



Sumário Lentes restaurativas: um novo foco sobre os conflitos e os crimes O que é a Justiça Restaurativa e por que ela é tão transformadora? Entenda as principais diferenças entre a JR e o processo penal tradicional

A paz que nasce de uma nova Justiça Modelo Restaurativo de Justiça inspira política pública pioneira em Caxias do Sul

Um lugar para buscar justiça na comunidade Núcleo de JR tem por objetivo difundir as práticas restaurativas na solução de conflitos com a participação das famílias, amigos e comunidades

Central Judicial: Laboratório e Centro de Difusão Casos judicializados têm oportunidade de encontrar um novo desfecho com as práticas restaurativas

Justiça que se aprende na infância Conviver pacificamente, vivenciar valores positivos e aprender a relacionar-se com o diferente é o caminho para uma vida de paz

Justiça como poder da comunidade Promover a Cultura da Paz em meio à comunidade da Zona Norte – região conhecida pelo contexto violento – é o desafio da Central Comunitária

Voluntariado pulsa no coração da JR em Caxias do Sul Ajudar a criar um mundo de paz e um planeta mais seguro é apenas uma fração do orgulho que um voluntário sente ao doar seu tempo para uma causa em que acredita

Desmistificando os Círculos de Construção de Paz Um processo que parece ser demorado mas que é, na verdade, mais econômico e rápido que o tradicional e na maioria dos casos promove resultados estáveis

Kay Pranis avalia processo de implantação de JR em Caxias do Sul Referência mundial em Círculos de Construção de Paz mostra-se impressionada com a amplitude da utilização das práticas restaurativas na cidade

Fundação Caxias aproxima sociedade civil da JR Entidade quer conscientizar empresários de que a promoção da Cultura de Paz é, também, responsabilidade do setor. Fundação pretende manter gestão financeira do Núcleo de JR

UCS planeja pesquisa e ensino de Justiça Restaurativa Em 2014 devem ser desenvolvidos cursos de extensão e pesquisa científica, com o intuito de produzir publicações internacionais sobre a experiência pioneira da JR como Política Pública em Caxias do Sul

Município assume a JR como Política Pública de Pacificação Social Prefeito e Secretário de Segurança reafirmam a importância de uma Lei Municipal para que a Justiça Restaurativa se torne prática permanente na cidade e asseguram suporte ao projeto

Judiciário gaúcho institucionaliza e expande a JR como alternativa de solução de conflitos Artigo de Leoberto Brancher, Juiz de Direito

ANEXO – RELATÓRIO DE MONITORAMENTO A INTRODUÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM CAXIAS DO SUL Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim

7 11 27 31 39 47 53 61 67 73 77 81 85 89



Cidades de Paz As páginas a seguir contam a história da criação de uma política pública baseada nos princípios e nas práticas da Justiça Restaurativa na cidade de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. A construção é uma confluência de várias contribuições e várias histórias. Recapitulando nossas origens, vamos contar um pouco sobre o início da Justiça Restaurativa no Rio Grande do Sul e, por via reflexa, no Brasil. Entremeamos relatos de casos com noções sobre esse novo modelo de Justiça, ao lado de definições estratégicas do programa local. Enfim, contamos sobre o passado e o presente para anunciar nossos sonhos de futuro. Porque é disso que se trata: um empreendimento dedicado a tornar um sonho em realidade. Por isso não disfarçamos nossa intenção de contagiar. Ao contrário, essa publicação é um convite à solidariedade. Para sonhar junto. Apesar de tudo, nosso relato é pé no chão. E, assim é também, principalmente, uma história de desafios. A aliança institucional que lidera a proposta por si só já representa um desafio, ao unir pela primeira vez Poder Judiciário, Prefeitura Municipal, Universidade e uma Fundação privada em torno de um horizonte tão incomum quanto promissor: o de promover a Justiça como Poder da Comunidade. Vistas assim, as histórias que compõem a história objeto desse relato são fruto do esforço de uma pequena multidão de pessoas que podem parecer anônimas, mas são elas que verdadeiramente assinam e iluminam cada linha dessa trajetória. Por fim, como nos une o propósito universal de promover a paz, é nosso desejo que nossa cidade não caminhe só, mas esteja unida a um conjunto cada vez maior de Cidades de Paz e de Cidadãos pela Paz, formando um autêntico movimento da cidadania democrática em que o direito à palavra e o poder de coesionamento social se exerce de baixo para cima e de dentro para fora, com o objetivo de RESTAURAR A JUSTIÇA E A PAZ no nosso País.

Alceu Barbosa Velho Prefeito Municipal de Caxias do Sul

Leoberto Brancher Juiz Coordenador do CEJUSC

Isidoro Zorzi Reitor da UCS

Paulo Poletto Presidente da Fundação Caxias



Lentes restaurativas: um novo foco sobre os conflitos e os crimes O que é a Justiça Restaurativa e por que ela é tão transformadora? Entenda as principais diferenças entre a JR e o processo penal tradicional 7


A

Justiça Restaurativa (JR) é uma nova forma de lidar com a questão

dos conflitos e dos crimes, centrada mais nas pessoas e nos relacionamentos do que nas questões jurídicas. Antes que discutir questões legais, culpados e punições, a JR promove intervenções focadas na reparação dos danos, no atendimento das necessidades da vítima, na corresponsabilização do ofensor, sua família e pessoas do seu relacionamento, tudo visando à recomposição do tecido social rompido pela infração e o fortalecimento das comunidades. O professor Howard Zehr, com sua obra “Trocando as Lentes – Um novo foco sobre o crime e a justiça”, é considerado um dos principais mentores da teoria restaurativa no mundo. Para ele, a grande diferença entre a Justiça Restaurativa e a tradicional está na abordagem. A justiça tradicional trabalha com três perguntas básicas: que lei foi infringida? Quem infringiu? Que Para o Professor Zehr, o sistema tradicional de Justiça penal dificilmente estimula o ofensor a compreender as consequências de seus atos ou desenvolver em-

castigo merece? É punitiva e gira em torno de questões legais. A Justiça Restaurativa se preocupa com questões como: Quem sofreu o dano? O que essa pessoa precisa para que esse dano seja reparado? Quem tem a responsabilidade por melhorar a situação? É reintegrativa e se preocupa com as pessoas e com os relacionamentos.

patia em relação à vítima. Pelo contrário, exige que o ofensor

As deliberações dos envolvidos num encontro estruturado e orientado por

defenda os próprios interesses.

um facilitador podem servir como alternativa ou complemento às soluções

De acordo com Zehr, no sistema

do sistema de justiça formal. O diálogo a respeito do problema pode servir

tradicional o réu é desestimulado

de apoio aos participantes, auxiliar na solução, evitar a propagação de

a reconhecer sua responsabilidade e tem poucas oportunidades de

conflitos, reduzir a reincidência e contribuir para o coesionamento da vida comunitária.

agir de modo responsável concre-

A JR propõe que os ofensores devem entender as consequências de seu

tamente. Zehr afirma que o senso

comportamento. Além disso, devem assumir a responsabilidade de corrigir a

de alienação social só aumenta

situação na medida do possível, tanto concreta como simbolicamente. Zehr

ao passar pelo processo penal e

afirma que a verdadeira responsabilidade consiste em olhar de frente para os

pela experiência prisional.

atos praticados, significa estimular o ofensor a compreender o impacto de seu comportamento, os danos que causou – e instá-lo a adotar medidas para corrigir tudo o que for possível. Moldadas sob a alta exigência do acertamento de relações feridas por fatos graves, como crimes, as práticas da Justiça Restaurativa têm se mostrado eficientes na pacificação da mais ampla gama de conflitos: brigas em família, maus comportamentos escolares, desentendimentos nos locais de trabalho, confronto entre presos e até disputas por terras.

8 Caxias da Paz


JUSTIÇA RETRIBUTIVA

JUSTIÇA RESTAURATIVA

Culpa

Responsabilidade

Perseguição

Encontro

Imposição

Diálogo

Castigo

Reparação do Dano

Coerção

Coesão

Círculos Restaurativos Os encontros restaurativos são organizados em formato de círculo, e para ele são convidadas as pessoas envolvidas ou afetadas, ou que possam ajudar na solução do problema – infratores, vítimas, seus familiares e comunidades. Habitualmente excluídos dos processos de Justiça, ou quando muito apenas ouvidos como meio de prova judicial, no processo restaurativo eles são

Os principais objetivos da Justiça

chamados a expressar seus pontos de vista, sentimentos e necessidades e,

Restaurativa incluem a RESPON-

principalmente, propor soluções para corrigir as coisas.

SABILIZAÇÃO DO OFENSOR, com apoio da sua família, amigos e pessoas da sua comunidade, objetivando restaurar relaciona-

Resultados Restaurativos

mentos e consertar as coisas. A REPARAÇÃO DOS DANOS, direta

Satisfação da vítima: fortalecer a posição das vítimas, em consideração às suas necessidades,

ou indiretamente, visa a atender

visando à superação da experiência traumática e buscando formas pelas quais o ofensor reconheça

às NECESSIDADES DA VÍTIMA, e

o impacto de suas ações e, tanto quanto possível, repare os danos causados.

dos demais atingidos pela violação. E um acordo ou plano de

Redução da reincidência: proporcionar que o ofensor compreenda o efeito de seu comportamento,

comportamentos futuros costuma

o desvalor da sua conduta e se abstenha de repeti-los, oferecendo-lhe a oportunidade de ouvir a

ser elaborado a fim de fortalecer

vítima, que poderá manifestar seus sentimentos e apresentar seus pleitos por reparação.

vínculos afetivos e laços sociais, promovendo o COESIONAMENTO

Coesão comunitária: prevenir a escalada de um conflito de menor potencial ofensivo para eventos

DA COMUNIDADE.

de maior gravidade, restaurar o senso de corresponsabilização e de pertencimento a uma “comunidade” na qual os ofensores reparam o dano feito diretamente ao indivíduo ou à vizinhança, permitindo que haja reintegração e a volta à normalidade. Redução dos gastos públicos: otimizar as verbas públicas despendidas com segurança, mediante a simplificação e, quando apropriado, até mesmo a dispensa dos procedimentos formais em casos que possam ser resolvidos no âmbito comunitário.

9 Justiça Restaurativa


JR em Caxias do Sul A equipe do Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul acredita que o congestionamento e a demora dos processos judiciais, tão criticados pela sociedade, podem ser amenizados com o trabalho baseado na Justiça Restaurativa. “Situações que levam a inúmeros boletins de ocorrência e processos podem acabar com muito mais agilidade através dos Círculos de Construção de Paz”, defende Katiane Boschetti da Silveira, coordenadora da Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude. Para ilustrar, ela cita que, em um único caso resolvido de forma restaurativa, a família atendida já estivera envolvida em nada menos do que 15 processos judiciais, direta ou indiretamente relacionados à situação de desorganização familiar que vivia. A Justiça Restaurativa propõe olhar as consequências da infração e reparar o dano, com a participação dos envolvidos, trazendo a vítima para um papel Justiça Restaurativa é um processo

central. “Ninguém é capaz de assumir responsabilidade por algo que não

através do qual todas as partes

percebe. Nada é mais veemente do que a voz de uma vítima dizendo, cara

envolvidas em um ato que causou

a cara com seu ofensor, o quanto a infração lhe prejudicou”, afirma Paulo

ofensa reúnem-se para decidir coletivamente como lidar com as circunstâncias decorrentes desse ato e suas implicações para o futuro. Tony Marshall

Moratelli, coordenador da Central Judicial de Pacificação Restaurativa. Leoberto Brancher – Juiz da Vara da Infância e da Juventude, coordenador do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania de Caxias do Sul (CEJUSC) – considera que o sistema institucional de Justiça Tradicional não é senão reflexo de um padrão cultural, historicamente pautado pela crença na legitimidade do emprego da violência como instrumento compensatório das injustiças e na eficácia pedagógica das estratégias punitivas. De acordo com o magistrado, vivemos um momento decisivo em Caxias do Sul. Para ele, a promoção da Cultura da Paz como política pública é uma construção histórica, um modelo novo, um avanço que se deve a uma compreensão e um compromisso político diferenciado por parte do Município. “Caxias está iniciando uma aplicação incomum de Justiça Restaurativa como política pública municipal, dando base para um amplo movimento social de promoção da paz. É uma aposta ousada e que merece inspirar iniciativas semelhantes em outras cidades do País”, convida o Juiz.

10 Caxias da Paz


A paz que nasce de uma nova Justiça Modelo Restaurativo de Justiça inspira política pública pioneira em Caxias do Sul 11


Faltava um corrimão

A missão da Justiça é promover a pacificação social. Seja no âmbito judicial, na escola, na família ou na comunidade, temos feito isso usando certos mecanismos que se repetem. Culpa, perseguição e castigo são respostas automáticas, fazem parte da nossa cultura. Mas precisamos reconhecer que não vamos promover a paz repetindo estratégias que trazem hostilidade, vingança e violência incorporadas no seu DNA. Precisamos parar e

Um homem beberrão e violento, uma mulher sozinha, três filhos reféns da perturbação familiar. Um novo registro policial, e agora uma medida baseada na Lei Maria da Penha afasta o marido do lar. Um ano depois a mulher, em depressão profunda, acabou internada numa clínica psiquiátrica. Em razão disso as crianças foram recolhidas a uma instituição de abrigo, e o caso foi remetido para um procedimento restaurativo pelo Juizado da Infância. Durante sete meses foram realizados vários Círculos Restaurativos envolvendo a mãe, pai, avós, tios e profissionais das redes sociais. Desde o princípio a mulher deixou claro que não queria que o marido fosse afastado da família. Apenas queria que ele não bebesse, fizesse um tratamento e tomasse os remédios para evitar os comportamentos violentos. Revelações como essa, ou que o alcoolismo e a violência se repetiam na família ao longo das gerações, foram trazidas ao longo de diálogos e reflexões intensos, e antecederam os acordos. No percurso, os avós assumiram as crianças temporariamente, tirando-as do abrigo. O casal se reconciliou, o homem parou de beber, dedicou-se ao tratamento, reorganizaram as finanças da família e concluíram as reformas do sobrado ainda em construção para receberem os filhos de volta. Construir um corrimão para proteger as crianças na escadaria da casa era o último item do acordo, que foi cumprido à risca. Em audiência, chorando, o homem desabafou ao Juiz: “se a gente tivesse a chance de conversar desse jeito desde o começo, não precisaríamos passar tudo isso que a gente passou, esse sofrimento todo”. De fato, os encontros restaurativos foram o corrimão que faltava para as pessoas subirem esse degrau da construção da paz em família. (Facilitadores: Alceu Valim de Lima e Fátima De Bastiani)

refletir antes de continuar agindo assim. A cada vez que fizermos isso, estaremos dando uma chance verdadeira para a construção da paz. Leoberto Brancher, Juiz de Direito

Quase mil pessoas cumprem pena de privação de liberdade hoje em Caxias do Sul. Um levantamento da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social realizado em outubro de 2013 apontou que 472 apenados (entre homens e mulheres) estão cumprindo pena no regime fechado e 495 no regime semiaberto. De janeiro a agosto de 2013, 1.243 mulheres vítimas de violência doméstica procuraram a ajuda da Coordenadoria da Mulher. Em média, 50 adolescentes infratores cumprem medida socioeducativa no CASE. Mais de 120 crianças estão acolhidas em instituições de abrigo. Hoje, o Brasil é o quarto país com o maior número de presos do mundo, atrás de Estados Unidos, China e Rússia. O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV) divulgou, em dezembro de 2012, um relatório sobre a situação dos direitos humanos no País na década de 2001-2010. Neste período a população carcerária brasileira cresceu 112%. Segundo o documento, embora o crescimento da população carcerária tenha sido uma tendência mundial nas últimas décadas, o ritmo apresentado pelo Brasil foi “frenético e assustador”. O País registrou um aumento de 233 mil pessoas, no ano 2001, para 496 mil em 2010. As penitenciárias continuam superlotadas. De acordo com o relatório, “o sistema prisional brasileiro continuou a ser, na década de 2000, um setor público dramaticamente atravessado por severas violações de direitos humanos”.

12 Caxias da Paz


Nosso sistema de controle social tem custos vultosos. Recursos existem. Falta saber gastar. Veja-se o exemplo do Sistema Socioeducativo, que atende a menores infratores em privação da liberdade. Para manter presos uma média de 900 adolescentes, ao longo do ano 2012, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul gastou com a FASE (ex-FEBEM) – somando pagamentos de dívidas trabalhistas – um total superior a 120 milhões de reais. Isso significa uma média próxima a R$ 133 mil por interno por ano, ou cerca de R$ 11 mil por adolescente a cada mês. Isso, sem contar os custos com a Brigada Militar, Polícia Civil, Poder Judiciário,

Aprendemos com Marshall

Ministério Público, Defensoria Pública, investidos no processamento de cada caso.

Rosenberg que “todo ato de

O Caso do Corrimão ilustra que, por melhor intencionadas, intervenções

violência é a expressão trágica de

preponderantemente repressivas e institucionalizantes podem trazer repercussões

uma necessidade não atendida”.

desastrosas. Os dados acima indicam centenas de pessoas segregadas, distantes

A toda hora nos deparamos com

de suas famílias e amigos e, na sua maior parte, principalmente dissociados de si

pedidos legítimos manifestados

próprios, alheios às consequências dos seus atos.

sob a forma de exigências violentas, necessidades legítimas

Na raiz de tudo, emoções perturbadas e conflitos mal resolvidos. Conflitos que

reclamadas de forma agressiva.

podem estar na infância maltratada, na juventude mal acompanhada, na falta ou

Manifestações que começam

fragilidade dos pais, na falta da oportunidade de pertencer a uma família e a uma

como pedidos de ajuda – até

comunidade, na falta de cuidados.

para que sejam contidos –, mas

A constatação desta realidade motivou profissionais caxienses da Justiça, da

que, não encontrando um entorno

Segurança e das áreas afins a buscar outra forma de lidar com o crime e o conflito,

continente, se convertem em atos

seja como forma de prevenção, seja como forma de resposta, visto que as soluções

de violência. E como respondemos

punitivas tradicionais, incluindo o aparato institucional que as cerca, mostram dar

com mais violência, o resultado é

sinais de esgotamento.

segregação, isolamento, desconexão, medo e insegurança, tanto para infratores quanto para vítimas, suas famílias e membros da

Tiro separa famílias

sociedade direta ou indiretamente

O que teria sido apenas uma brincadeira virou estampido, sangue e tragédia. Fascinado por um revólver que lhe caiu nas mãos, o adolescente encostou o cano da arma no rosto do amigo e desafiou: “E agora...?” A arma disparou. A bala atravessou o rosto do colega e se alojou próximo à mandíbula, de onde não pôde ser retirada. As lembranças trazem mais do que dores de cabeça para a vítima: doem no coração dos jovens e das suas famílias. Embora vizinhos, ninguém se falou mais. Judicialmente responsabilizado pela tentativa de homicídio culposo, o ofensor cumpriu medida em liberdade. Incentivado por sua orientadora a refletir sobre as consequências do seu ato, aceitou ouvir o relato de quem teve que senti-las na carne. O caso foi então encaminhado para a Central Judicial de Pacificação Restaurativa. Relutante, mas incentivado pela família, a vítima também se dispôs ao encontro. Um Círculo de Construção de Paz foi realizado com a presença dos jovens e suas famílias.

Leoberto Brancher, Juiz de Direito

afetados por tais eventos.

13 Paz Restaurativa


Num ambiente seguro e protegido, a família do ofensor contou que se afastara porque tinha medo de retaliação e sentia vergonha da tragédia causada por seu filho. A família da vítima disse que, em meio à dor e à raiva, muitas vezes chegou a duvidar que o tiro tivesse sido acidental. O jovem baleado pôde expressar o peso de suportar uma dor quase permanente: as fisgadas da bala ainda metida em sua cabeça. Essas revelações reabriram os canais, promoveram empatia, restauraram os laços de amizade e a compreensão de que o evento fora acidental. Um perante o outro, ambos os jovens admitiram que naquela época faziam coisas arriscadas e reconheceram que o acidente fez parte de um modo de vida que haviam modificado desde então. Ao término de algumas horas de encontro os jovens e suas famílias se abraçaram, aliviados. A bala nunca pôde ser removida. Mas a muralha de rancor e desconfiança entre as famílias não existe mais. (Facilitadores: Franciele Lenzi e Paulo Moratelli)

Fatos violentos como esse acontecem quase que diariamente em Caxias do Sul, mas desfechos incomuns como o relatado acima também passaram a fazer parte da rotina da cidade, a partir de novembro de 2012, quando teve início a implantação de uma política pública fundamentada na Justiça Restaurativa. Conflitos, disputas e até mesmo crimes que costumeiramente aportam na esfera judicial têm sido solucionados de forma pacífica através de práticas baseadas em estratégias de diálogo. Encontros que permitem a expressão de sentimentos e o reconhecimento de necessidades têm dado base à restauração dos relacionamentos e dos laços sociais rompidos por incidentes como este. O trabalho faz parte de um movimento que vem se espalhando no mundo há não mais de 40 anos e entrou na trajetória da Justiça gaúcha em 2005. Em 2013 as práticas restaurativas também foram incluídas na política judiciária nacional de solução de conflitos, promovida desde 2010 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – a princípio com ênfase em métodos de conciliação e de mediação – através da criação de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC), nas principais cidades brasileiras. Em Caxias do Sul, esses avanços estão sendo alavancados pela união entre o Poder Judiciário, a Prefeitura de Caxias do Sul, a Universidade de Caxias do Sul e a Fundação Caxias, de forma que a pacificação social na cidade se tornou marcada pelo diferencial da interinstitucionalidade e pela adoção, como base filosófica e metodológica, dos princípios e das práticas da Justiça Restaurativa. Sob orientação técnica do Poder Judiciário, através do CEJUSC, e execução da Prefeitura de Caxias do Sul, através da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social, a iniciativa tornou-se oficial no dia 1º de novembro de 2012, em ato político que sacramentou a parceria entre as instituições envolvidas. Acompanhe um pouco de como começou essa história.

14 Caxias da Paz


A política pública de pacificação social que começa a ser construída em Caxias do Sul tem as marcas da interinstitucionalidade e vale-se da teoria e das práticas da Justiça Restaurativa, objetivando evitar o agravamento de relações conflitivas e uma resposta mais eficaz às transgressões da lei.

2004-2013

Primeiros passos da JR no Brasil e sua chegada a Caxias A temática da Justiça Restaurativa apareceu pela primeira vez em Caxias do Sul em agosto de 2004, no Curso de Formação de Lideranças em Cultura de Paz, promovido pela Biblioteca dos Direitos da Criança da UCS, em parceria com a Associação Palas Athena de São Paulo. No curso, o Juiz paulista Egberto Penido introduziu conceitos da Comunicação Não Violenta (CNV). Na mesma época, em 13 de agosto de 2004, também estava sendo fundado o Núcleo de Justiça Restaurativa da Escola da Magistratura em Porto Alegre.

2005

Fórum Social Mundial Ainda em novembro de 2004, Dominic Barter, inglês radicado no Rio de Janeiro, consultor e representante no Brasil da Rede CNV, palestrou no Teatro da UCS, em Caxias do Sul. Ele veio ao Rio Grande do Sul preparar a participação de Marshall Rosenberg, criador da CNV, no Fórum Social Mundial que seria sediado em Porto Alegre em janeiro de 2005. Essa edição do Fórum Social Mundial representou um marco de convergência entre a Cultura de Paz, a Comunicação Não Violenta, a Justiça Restaurativa e a Justiça Brasileira. Com a colaboração da AJURIS e da Palas Athena, várias oficinas foram realizadas durante o Fórum sobre esses temas, com as presenças internacionais de Marshall Rosenberg e Dominic Barter, da CNV, de Guillermo Kerber, do Conselho Mundial de Igrejas, e de David Adams, consultor da UNESCO, criador e articulador da Década da Cultura de Paz, que reuniu vários detentores do Prêmio Nobel da Paz, numa campanha mundial entre 2000 e 2010. Durante o Fórum também ocorreram as tratativas com a equipe do Ministério da Justiça para dar início aos projetos-piloto. A metodologia da CNV seria então

15 Paz Restaurativa


adotada como base das formações dos pilotos de Porto Alegre e São Caetano do Sul, enraizando a introdução da Justiça Restaurativa no Brasil.

COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA A CNV é estruturada sobre quatro elementos: observar sem julgar, identificar e expressar as necessidades (do outro e minhas), nomear os sentimentos envolvidos (da outra pessoa e meus) e formular pedidos claros e possíveis. A CNV enfatiza a importância de determinar ações com base em valores comuns e aponta uma continuidade entre as esferas intrapessoal, interpessoal e social, além de providenciar formas práticas de intervir. A aplicação da CNV pode dar-se em todas as relações e interações em que se pressupõe que haverá diferenças e conflitos.

2005

Nasce a Justiça para o Século 21

A introdução oficial da Justiça Restaurativa no Brasil aconteceu a partir de 2005, através do projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro”, iniciativa da Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça em colaboração com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Foram criados três projetos-piloto em Porto Alegre (RS), Brasília (DF) e em São Caetano do Sul (SP). Em Porto Alegre tomou forma o Projeto Justiça para o Século 21, um articulado de ações interinstitucionais liderados pela Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS) com o objetivo de difundir a Justiça Restaurativa na pacificação de conflitos e violências envolvendo crianças, adolescentes e seu entorno familiar e comunitário. As práticas restaurativas, até então baseadas na CNV e sob orientação de Dominic Barter, foram aos poucos se incorporando à rotina do Juizado da Infância e da Juventude da Capital, monitoradas por um programa de pesquisa e avaliação da Faculdade de Serviço Social da PUCRS. Estudos autodidatas evoluíram e deram lugar a um amplo processo de formações, a cargo da Escola da Magistratura. Esses cursos atraíram público e foram levados a vários outros Estados brasileiros. O programa tornou-se referência nacional na implantação

16 Caxias da Paz


da Justiça Restaurativa. Entre 2005 e 2011, 11.793 pessoas haviam participado de atividades de sensibilização e formação promovidas pelo Justiça 21. A experiência de Caxias do Sul foi originada a partir dessa fonte.

Junho de 2010

A Justiça Restaurativa sobe a Serra Em 2010 a Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social de Caxias do Sul resolveu adotar a Justiça Restaurativa como estratégia de prevenção da violência no Município. Em 18 de junho daquele ano, realizou-se um Ceminário na UCS, no qual foram apresentadas várias experiências com a JR em Porto Alegre, e foi celebrado um protocolo de intenções entre a AJURIS, a Prefeitura de Caxias do Sul e diversas instituições locais. O objetivo era unir esforços para começar a aplicação da Justiça Restaurativa na cidade, a partir da sua afiliação ao Projeto Justiça para o Século 21. Sensibilização, formação de lideranças, formação de facilitadores, consultoria de implantação, supervisão de práticas: o roteiro do Justiça 21 para implantação da Justiça Restaurativa foi seguido em Caxias. Entre junho e julho de 2010, 70 líderes da rede socioassistencial foram apresentados aos conceitos básicos da Justiça Restaurativa. Dos 70 participantes, 20 foram inscritos no curso de facilitadores, segundo a metodologia da Comunicação Não Violenta (CNV), que se realizou ainda em julho de 2010. E desde então as atividades de formação não pararam.

Agosto de 2010

Acadêmicos canadenses trazem lições de Justiça ancestral Em agosto de 2010, cerca de 400 pessoas participaram de outro grande evento na UCS. O encontro marcou a presença de professores do Centro de Justiça Restaurativa do Departamento de Criminologia da Simon Fraser University (SFU), de Vancouver, Canadá, Brenda Morrison e Elisabeth Eliot, acompanhados pelo professor brasileiro João Salm, também docente da SFU e articulador da parceria. Mais do que conhecimentos de ponta no cenário acadêmico restaurativo internacional, essas contribuições assinalaram um primeiro e decisivo contato de Caxias do Sul com uma das principais vertentes metodológicas do movimento restaurativo no mundo: os Círculos de Construção de Paz, derivados das tradições indígenas daquele país.

17 Paz Restaurativa


Outubro – Novembro de 2010 Formações com Kay Pranis introduzem os Círculos de Construção de Paz no Brasil

Os meses de outubro e novembro de 2010 assinalam o início de uma nova etapa no movimento restaurativo brasileiro, com a introdução da metodologia dos Círculos de Construção de Paz. Uma mudança que também passou por Caxias. Em viagem articulada pelo Projeto Justiça 21 e patrocinada pela UNESCO, com recursos do Criança Esperança, Kay Pranis esteve pela primeira vez no Brasil para uma série de capacitações que ocorreram em São Luís do Maranhão, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Caxias do Sul. Aqui, sob patrocínio da Prefeitura Municipal através do Conselho Municipal dos Direitos da Criança (COMDICA), foram formados os primeiros 25 facilitadores, na sua maioria servidores municipais. Kay também palestrou para um grande público na Universidade de Caxias do Sul sobre o tema Processos Circulares: Ferramenta para Intervenção e Prevenção no Trabalho com Jovens. Após a capacitação, os novos facilitadores passaram a aplicar a metodologia, informalmente, nos seus espaços de atuação profissional. Desde então, o grupo – que também recebera formação em CNV – optou pelos Círculos de Construção de Paz como sua principal ferramenta nas práticas restaurativas, passando a manter reuniões quinzenais sistemáticas – que perduraram até o final de 2012 – com o objetivo de dividir experiências e aprofundar seus conhecimentos sobre os Círculos. Estava fundado o movimento restaurativo em Caxias do Sul.

Outubro de 2012

Novos facilitadores formados Em setembro de 2012, desta vez em turma aberta organizada pela Escola da AJURIS, Kay Pranis formou um segundo grupo de facilitadores em Caxias. Além de pessoas da região (Caxias e Bento Gonçalves) participaram alunos também de outros Estados (Cascavel – PR, e Belém – PA). Nessa segunda

18 Caxias da Paz


visita a Caxias, Kay Pranis também formou um grupo de multiplicadores. Desde então Caxias conta com 6 profissionais aptos a formarem novos facilitadores, que também integram o corpo docente dos cursos da Escola da Magistratura da AJURIS. No dia 18 de outubro de 2012, Kay também palestrou em evento aberto, realizado no auditório do Ministério Público de Caxias do Sul. Essas atividades serviram como preparação para o III Simpósio Internacional de Justiça Restaurativa – Abordagens Transdisciplinares, que ocorreu no dia 1o de novembro de 2012 em Caxias, no bloco J da Universidade de Caxias do Sul.

Novembro de 2012

3o Simpósio Internacional de Justiça Restaurativa O III Simpósio Internacional de Justiça Restaurativa foi realizado na Universidade de Caxias do Sul no dia 1º de novembro de 2012, como parte de um circuito nacional que incluiu Porto Alegre, São Paulo e Belém do Pará. A participação de representantes do movimento restaurativo canadense e norte-americano foi promovida em âmbito nacional em parceria entre a AJURIS, Associação Palas Athena, Terre des Hommes e o Consulado do Canadá, com apoio da Secretaria Estadual da Justiça do Rio Grande do Sul. Aqui no Estado, também foram parceiros o Tribunal de Justiça, o Ministério Público e as Prefeituras de Porto Alegre e de Caxias do Sul.

Quatrocentas pessoas participam do III Simpósio Internacional de Justiça Restaurativa realizado na UCS, quando é anunciada

Autoridades em Justiça Restaurativa como Barry Stuart, Carolyn Boyes

a criação de um Núcleo e três

Watson, Catherine Bargen, Sayra Pinto e João Salm, palestraram no Simpósio.

Centrais de Pacificação. A Justiça

A proposta foi de aproximar os países para trocar experiências e aprofundar

Restaurativa começa a ser es-

a compreensão da Justiça Restaurativa e a difusão da Cultura da Paz junto a

truturada como política pública

profissionais das áreas de justiça e políticas sociais como Juízes, promotores,

na cidade.

Defensores Públicos, advogados, assistentes sociais, educadores, guardas municipais, policiais civis e militares, psicólogos, professores e estudantes. No evento foi assinado o convênio entre a Prefeitura e a Fundação Caxias, e anunciada a criação de um Núcleo de Justiça Restaurativa e de três Centrais de Pacificação Restaurativa na cidade – passo decisivo e concreto na materialização da Justiça Restaurativa como política pública em Caxias. O convênio para instalar as Centrais foi firmado entre Prefeitura e Fundação Caxias, sob o testemunho de representantes do Consulado do

19 Paz Restaurativa


Canadá, do Tribunal de Justiça do RS, da Universidade de Caxias do Sul e das diversas Secretarias Municipais envolvidas. O investimento inicial da Administração Municipal para a realização do projeto foi de R$ 267 mil. O então Prefeito José Ivo Sartori afirmou na ocasião que a Administração Municipal acreditava no processo de conversa, diálogo e restauração – respaldado pela presença de Alceu Barbosa Velho, novo Prefeito eleito, na ocasião representando a Assembleia Legislativa do Estado.

Dezembro de 2012

Seminário de Planejamento Estratégico define rumos da futura política Representantes das instituições envolvidas na execução do projeto – Judiciário, Prefeitura, UCS e Fundação Caxias – e das equipes que viriam a integrar as Centrais de Pacificação Restaurativa participaram de um seminário de planejamento estratégico no dia 16 de dezembro de 2012. O encontro, realizado de forma participativa pelo método ZOPP, foi facilitado pelo assessor da Secretaria de Governança Urbana da Prefeitura de Porto Alegre, Carlos Simões Filho. Objetivos, linhas de ação e resultados a serem alcançados ficaram definidos desde então.

Objetivo Geral (2016) Consolidação

Conquistar perante a sociedade o reconhecimento da Justiça Restaurativa como uma metodologia efetiva de resolução de conflitos e promoção da paz.

Objetivo Específico (2013) Implementação

Implementar a Justiça Restaurativa como política pública no Município de Caxias do Sul.

Eixo 1 – Política Pública

JR é uma política pública de pacificação social.

Eixo 2 – Intersetorialidade

JR é uma articulação intersetorial.

Eixo 3 – Investimento

Investimentos para a JR assegurados.

Eixo 4 – Integração

JR conecta instituições, serviços e comunidades.

Eixo 5 – Facilitadores

Capacitação continuada e rede de facilitadores ampliada e fortalecida.

Eixo 6 – Comunicação

Difusão e mobilização promovida.

20 Caxias da Paz


Fevereiro de 2013

Grupo de Estudos e de Autossupervisão de Práticas Desde 26 de fevereiro de 2013 e ao longo de todo o ano, o Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul promoveu encontros quinzenais para estudos e autossupervisão das práticas restaurativas. Participam profissionais, estudantes e pessoas da comunidade. Com participação média de 25 pessoas, o grupo tem por objetivo difundir o conhecimento teórico e prático sobre Justiça Restaurativa e Círculos de Construção de Paz, promover a integração e estimular o voluntariado das pessoas interessadas no tema. O roteiro dos encontros seguiu a leitura do Livro Reuniões de Justiça Restaurativa, de Ted Wachtel, Terry O`Connell e Ben Wachtel, que apresenta os conceitos fundamentais da Justiça Restaurativa mesclados a uma narrativa da introdução nos Estados Unidos do modelo das conferências restaurativas australianas, por iniciativa do Instituto Internacional de Práticas Restaurativas.

Maio de 2013

Protocolo estabelece atendimento restaurativo para atos infracionais de menor potencial ofensivo Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social, Juizado da Infância e Juventude, Promotoria da Infância e Juventude, Defensoria da Infância e Juventude, Brigada Militar, Polícia Civil e Guarda Municipal reunidas na Direção do Fórum de Caxias do Sul no dia 23 de maio de 2013 celebram protocolo operacional prevendo esforços integrados para promover atendimento restaurativo a crianças e adolescentes envolvidos em conflitos e atos infracionais de menor potencial ofensivo, através da Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude. O pacto permite colocar em prática as disposições da Lei n. 12.594/2012 – SINASE.

21 Paz Restaurativa


A nova lei estabelece que práticas restaurativas, o atendimento às necessidades das vítimas e a autocomposição de conflitos devem ser usados preferencialmente, de forma a dispensar a intervenção judicial e a imposição de medidas aos adolescentes infratores.

Julho de 2013

Jornada Municipal de Pacificação Restaurativa consagra repercussão nacional do projeto O dia 12 de julho de 2013 já teria sido um momento marcante na trajetória da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul pela formatura da terceira turma de facilitadores formados pela Professora Kay Pranis na cidade, com o destaque de tratar-se da primeira formação em Justiça Restaurativa oferecida oficialmente pelo Tribunal de Justiça gaúcho – uma iniciativa que beneficiou também as Comarcas de Porto Alegre e de Pelotas e representou um marco na institucionalização da Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário. Representativa desse momento, a 1ª Jornada Municipal de Pacificação Restaurativa reuniu na cidade importantes autoridades e parceiros por ocasião da assinatura do Convênio entre a Prefeitura Municipal e o Tribunal de Justiça, oficializando a parceria com o Poder Judiciário para implantação do Núcleo e Centrais de Pacificação. Além do representante da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Cláudio Vieira da Silva, e de uma delegação da ONG Terre des Hommes, que promove Justiça Restaurativa nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, liderada por Anselmo de Lima, o encontro foi prestigiado pelo Presidente do Tribunal de Justiça, Desembargador Marcelo Bandeira Pereira, pelo 1º Vice-Presidente do Tribunal, Desembargador Guinther Spode, pelo Corregedor-Geral da Justiça do Estado, Desembargador Orlando Heemann Júnior, e pelo Corregedor Nacional de Justiça em exercício, o Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça e Desembargador Federal Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Na ocasião, o Desembargador Guilherme Calmon parabenizou todos os envolvidos pela coragem de investir na construção de uma justiça autêntica para o século XXI. “É preciso alterar o olhar no âmbito das lesões e

22 Caxias da Paz


dos conflitos. É preciso criar a ideia de corrigir os erros para que haja a reconstrução da sociedade”, ressaltou. O Presidente do Tribunal de Justiça, Marcelo Bandeira Pereira, destacou a sensibilidade do Prefeito Alceu para fazer com que o convênio fosse firmado. “Esta iniciativa é louvável e não podíamos deixar de nos fazer presentes”. Conforme o Prefeito, o projeto foi encarado com muita determinação e seriedade. Alceu destacou a preocupação da Administração Municipal em cuidar das pessoas. “Nossa cidade é pujante economicamente, mas é preciso também haver solidariedade. E esta iniciativa tem tudo para dar certo, pois promove a paz acima de tudo” afirmou. Na solenidade foi apresentada à Comunidade caxiense a equipe de 19 pessoas que já vinham atuando diretamente junto ao Núcleo e às Centrais de Pacificação, e também foram diplomados os 25 novos facilitadores formados pela Professora Kay Pranis.

Cronograma de início das atividades 5 de novembro de 2012

Núcleo de Justiça Restaurativa e Central Judicial de Pacificação Restaurativa

5 de junho de 2013

Central de Pacificação Restaurativa da Rede da Infância e da Juventude

19 de julho de 2013

Central Comunitária de Pacificação Restaurativa – Zona Norte

Agosto de 2013

Conselho Gestor: pacificar a cidade é compromisso de todos Concluída a instalação do Núcleo e das Centrais, em agosto de 2013 também foi oficializada a instalação de um Conselho Gestor da Política de Pacificação Restaurativa, que deverá servir como espaço de articulação e compartilhamento de informações, sendo integrado por representantes dos diversos segmentos institucionais envolvidos no programa de pacificação restaurativa. O Conselho Gestor é integrado pela Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social, pelo Centro Judiciário de Resolução de Conflitos e Cidadania, pela Fundação Caxias do Sul e pela Universidade de Caxias do Sul. Também possuem assento no órgão, segundo o projeto original, a Fundação de Assistência Social do Município, o Ministério Público e a Defensoria Pública. Na elaboração do seu regimento interno, o Conselho Gestor já cogita a

23 PazRevista Restaurativa da Paz


ampliação de seus componentes para incluir outras instituições como Secretaria Municipal de Educação, Secretaria Municipal de Saúde, 4ª Coordenadoria Regional de Educação, Brigada Militar e Polícia Civil. O Conselho Gestor decidiu também pela criação de uma Coordenação Executiva, integrada pelas quatro instituições que ancoram o projeto – Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social, CEJUSC/Poder Judiciário, Universidade de Caxias do Sul/Faculdade de Direito e Fundação Caxias do Sul, responsável pela implementação das decisões do Conselho e para concentrar as atividades num nível mais operacional. Além de gerenciar o processo de implantação e as atividades do Núcleo e das três Centrais de Pacificação, o Conselho Gestor vem se dedicando a elaborar o projeto de Lei Municipal para instituir e regulamentar a aplicação da Justiça Restaurativa como política pública permanente em Caxias do Sul.

Julho – Outubro de 2013

Curso de Pacificação Social reúne 350 servidores e lideranças comunitárias Ao longo do segundo semestre de 2013, a Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social e a Guarda Municipal promoveram o Curso de Gestão de Processos de Pacificação Social, parte do projeto Gestão Local da Violência e Criminalidade, por meio de um convênio entre o Governo Federal e o Município. Os alunos, integrantes de políticas públicas que atuam em interface com a segurança e em organizações da sociedade civil, foram divididos em cinco turmas considerando a proximidade geográfica entre as regiões administrativas, a fim de promover a aproximação das instituições. Trezentas e cinquenta pessoas participaram da formação, que teve uma carga horária total de 140 horas – das quais foram dedicadas 10 horas para uma introdução aos conceitos da Justiça Restaurativa, ministradas pelo Prof. Afonso Armando Konzen, coordenador do Núcleo de Justiça Restaurativa da Escola da AJURIS. Durante outras 20 horas do curso, os alunos conheceram a metodologia das Práticas Circulares para Construção da Paz, com as formadoras Fátima De Bastiani e Lenice Pons Pereira, que contaram com o apoio de voluntários e integrantes da equipe do Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul. O curso teve ainda 10 horas-aula dedicadas à mediação de conflitos, ministradas por Eliana Giusto e Ronaldo Karnal.

24 Caxias da Paz


Novembro de 2013

Primeiro ano do projeto foi concluído com formação inspirada no modelo das conferências australianas O encerramento do primeiro ano de atividades do projeto foi marcado pela formação de três novas turmas de facilitadores restaurativos, a cargo dos Professores Jean Schmitz e Keila Carvalho. Belga radicado no Peru, Jean é o representante para a América Latina do Instituto Internacional de Práticas Restaurativas, do norte-americano Ted Wachtel – um dos mais proeminentes difusores da Justiça Restaurativa naquele País, que adota metodologias adaptadas a partir do modelo australiano de conferências de Justiça Restaurativa – desenvolvida pelo policial Terry O’Connel e conhecida como “Modelo Wagga Wagga”. A formação intensiva de 40 horas-aula objetivou ampliar as opções metodológicas das práticas restaurativas aplicadas em Caxias do Sul. Um grupo de 30 dos facilitadores já atuantes junto às Centrais foi habilitado para a aplicação de abordagens rápidas e objetivas de Justiça Restaurativa, principalmente em conflitos de menor complexidade. Uma versão compacta da formação com 20 horas-aula foi proporcionada para outros 60 alunos, divididos em duas turmas, na sua maioria guardas municipais e policiais militares. O objetivo da formação foi integrar as forças policiais para que possam imprimir uma condução restaurativa desde o início do atendimento das ocorrências, ou mesmo facilitar o encaminhamento de soluções restaurativas para conflitos sem expressão criminal ou de menor potencial ofensivo.

25 Paz Restaurativa


26 Caxias da Paz


Um lugar para buscar justiça na comunidade Núcleo de JR tem por objetivo difundir as práticas restaurativas na solução de conflitos com a participação das famílias, amigos e comunidades 27


O

Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul é resultado de

uma articulação interinstitucional entre o Poder Executivo Municipal (representado pela Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social), o Poder Judiciário (representado pelo Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania – CEJUSC), a Academia (representada pela Universidade de Caxias do Sul, através da Faculdade de Direito) e da sociedade civil (representada pela Fundação Caxias).

Poder Executivo

Poder Judiciário

Prefeitura de Caxias do Sul

CEJUSC

Universidade de Caxias do Sul

Fundação Caxias

Academia

Sociedade civil

O objetivo do Núcleo é desenvolver uma política pública de pacificação social através de um conjunto de ações desencadeadas pelos órgãos públicos na prevenção e no controle da violência, notadamente os que atuam nas áreas da Justiça, Segurança, Assistência, Educação e Saúde, em colaboração com organizações da sociedade civil. Segundo justificado no projeto que lhe deu origem, a intenção é “oferecer reações sociais curativas, sistemáticas e continuadas para enfrentar situações disruptivas mediante o reatamento dos laços sociais rompidos, promover o coesionamento do tecido social e (re)construção do senso de pertencimento e de comunidade, como forma de interrupção das espirais conflitivas, objetivando prevenir e reverter as cadeias de propagação da violência”. Para isso, as ações do Núcleo são fundamentadas nos princípios e nas práticas da Justiça Restaurativa, visando a promover a cultura de paz.

28 Caxias da Paz


Além de promover a integração interinstitucional, o Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul responde pela gestão administrativa, formações, avaliações, difusão e supervisão técnica das práticas restaurativas. O Núcleo é composto pela Central Judicial de Práticas Restaurativas (Fórum), pela Central Comunitária de Práticas Restaurativas (Centro de Referência de Assistência Social, CRAS Norte) e pela Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude (Universidade de Caxias do Sul).

Central JUDICIAL de Práticas Restaurativas

Central COMUNITÁRIA de Práticas Restaurativas

Central de Práticas Restaurativas da INFÂNCIA e da JUVENTUDE

Um diferencial com relação aos projetos-piloto que introduziram a Justiça Restaurativa no Brasil a partir de 2005 é que a iniciativa não se limita a testar a aplicação das práticas restaurativas a casos isolados, mas envolve a implantação de uma estrutura sustentada por investimentos públicos com o fim de consolidar, de maneira sistêmica, um conjunto de ações e serviços que objetivam difundir a cultura de paz e incorporar as práticas restaurativas nos mais diversos âmbitos das políticas públicas e espaços de convivência social e comunitária. Tem-se observado que a maioria dos participantes dos processos de JR ficam satisfeitos com a experiência e com os resultados. As vítimas expressam que os benefícios incluem: sentir-se escutado e reconhecido, receber respostas para dúvidas pessoais, ter a experiência de uma sensação de segurança aumentada e, em alguns casos, até receber restituição financeira. Além disso, percebe-se que participar da elaboração dos itens do plano de compromissos para o ofensor cumprir é muito importante para algumas vítimas.

29 Núcleo de Justiça Restaurativa


Cada Central tem um coordenador e uma equipe de facilitadores, alguns servidores com dedicação exclusiva e voluntários que dedicam alguns turnos semanais para a realização de Círculos. Os profissionais e voluntários que atuam nos Núcleos já passaram por capacitação nos conceitos de Justiça Restaurativa e foram preparados para serem facilitadores de Círculos de Construção de Paz.

Espaços de convergência e referenciamento das contribuições institucionais, recursos humanos, materiais, acadêmicos e demais esforços investidos no Projeto Visa articular, mobilizar, capacitar, gerenciar e avaliar o processo de implantação e implementação Braço executivo da Política Municipal de Pacificação Restaurativa Composto de três Centrais de Pacificação e uma Assessoria Técnica A função do Núcleo e das três Centrais de Pacificação (que atualmente envolvem um total de 13 profissionais, na maioria servidores designados ou contratados pelo Município, junto a diversos outros que atuam como voluntários) não é absorver a totalidade dos conflitos, mas promover a difusão e o compartilhamento dessas competências sociais estratégicas para que a cidade possa aprender a agir preventivamente, de forma a desarticular as espirais conflitivas, estabilizar relacionamentos potencialmente disruptivos e harmonizar ambientes de convivência social.

30 Caxias da Paz


Central Judicial: Laboratório e Centro de Difusão Casos judicializados têm oportunidade de encontrar um novo desfecho com as práticas restaurativas 31 31 Revista da Paz


A

Central Judicial de Pacificação Restaurativa deu início às atividades

em 3 de novembro de 2012. Até o início de outubro de 2013, os Círculos de Construção de Paz haviam sido aplicados em 164 casos, com a participação de 1.104 pessoas. Essa Central é coordenada por Paulo Henrique Moratelli, psicólogo e servidor da Fundação de Assistência Social (FAS). Moratelli atua também como

Atos infracionais, pequenos delitos, disputas de vizinhança, conflitos

Facilitador, assim como a advogada e educadora social da FAS, Franciele Lenzi Ferreira. Vanessa Campos colabora como agente administrativa.

intrafamiliares e violação de direitos de crianças são exemplos

Os Círculos promovidos pela Central buscam resolver os casos que antes

do que tem sido resolvido através

corriam apenas pelo processo judicial tradicional. A partir da realização do

de práticas restaurativas.

Círculo de Construção de Paz é criado um Termo de Acordo, que precisa ser cumprido pelas partes. Ao receber o documento, o Juiz do processo analisa os termos e homologa ou não o acordo. “Tomamos muito cuidado para que os acordos feitos nos Círculos estejam em conformidade com a Lei, sejam exequíveis e equilibrados entre as partes”, explica Moratelli. Depois disso são realizados pós-círculos para monitoramento dos acordos que foram firmados. A cada pós-círculo o termo de acordo pode ou não ser modificado, de acordo com a necessidade de cada caso. Um exemplo de aplicação típica de Justiça Restaurativa realizada pela Central Judicial de Pacificação Restaurativa pode ser compreendida no caso a seguir:

Juizado da Infância e da Juventude (Rotina) Infrações penais (Atos Infracionais) Círculos Restaurativos com vítimas, infratores e suas comunidades em casos de Atos Infracionais Círculos Familiares, sem vítima, foco na infração = pactuação dos PIAs = maior compreensão, responsabilização, comportamento e coesionamento Conflitos familiares (Jurisdição protetiva) Círculos Familiares focos situação conflitiva ou de risco motivadora da intervenção jurídico-protetiva

Juizado Especial Criminal, Vara da Violência Doméstica, Juizado Especial Cível, Varas Cíveis (Experimental) Infrações Penais pequeno potencial ofensivo, conflitos familiares e/ou de proximidade

“Laboratório de Práticas & Centro de Formação em Serviço” Infrações Penais pequeno potencial ofensivo, conflitos familiares e/ou de proximidade

32 Caxias da Paz


Ameaçados por dois rapazes armados de revólver, dois empregados de um restaurante não tiveram opção senão entregar o malote no qual transportavam 15 mil reais para serem depositados no banco. As investigações apontaram quatro infratores, três deles menores (dois já tinham trabalhado no restaurante, um deles ainda estava empregado no local). A vítima e todas as testemunhas haviam sido ouvidas e o processo estava pronto para julgamento. Pela gravidade, o fato justificaria o Juizado da Infância e Juventude internar os três adolescentes no CASE. A vítima, porém, insistia na devolução do dinheiro. Tanto os jovens como suas famílias, bastante envergonhadas, se propunham a restituir o valor. O processo foi suspenso e um Círculo com a presença da vítima resultou em acordo. Os jovens cumpririam as medidas de liberdade assistida e, a título de reparação dos danos, cada um devolveria R$ 3.750,00 à vítima. Foi combinado que os pagamentos seriam feitos com o próprio trabalho dos jovens. Por isso, durante meses, eles tiveram de comparecer pessoalmente para pagar suas prestações no mesmo restaurante que haviam assaltado. Os acordos foram cumpridos, a sentença nunca foi prolatada e foram poupadas três vagas no CASE. Os três jovens se reorganizaram e, até então, não se envolveram mais em delitos. Todos experimentaram um processo de responsabilização e amadurecimento cujos resultados provavelmente seriam muito diferentes caso tivessem ficado um ou dois anos presos. Num contato recente com o facilitador, a vítima avaliou positivamente o resultado. Inclusive, lamentou não ter conseguido reaver a parte do dinheiro por parte do outro jovem envolvido que, por ser maior de idade, não teve seu caso encaminhado à Justiça Restaurativa. (Facilitadores: Alceu Valim de Lima e Fátima De Bastiani)

Justiça Restaurativa se consolida no Judiciário A credibilidade do trabalho da Justiça Restaurativa cresce entre Juízes, Promotores, rede socioassistencial e comunidade O coordenador da Central explica que durante este ano de aplicação de Círculos de Construção de Paz em processos judicializados a Central ganhou muito espaço dentro do Judiciário. “Os Juízes começaram a ver resultados positivos a partir dos Círculos e a encaminhar casos. Foi também uma fase de consolidação da proposta entre a rede socioassistencial”, comemora Moratelli.

33 Central da Paz Judicial


A partir das experiências concretas, um padrão de atendimento está sendo desenvolvido. “Neste ano muito trabalho foi investido na elaboração e construção de material próprio, e isso foi realizado à medida que os casos eram tratados. A partir de agora, como isso já está superado, teremos mais tranquilidade nos procedimentos”, afirma o coordenador. De acordo com Moratelli, um dos grandes desafios é conseguir maior apoio da rede socioassistencial. “Estamos no momento de conquista do coração das pessoas envolvidas. Estamos mostrando que vale a pena sentar por algumas horas para resolver cada caso desses, porque isso traz resolutividade a situações complexas, que se arrastavam há anos”, explica.

Integração com o Judiciário facilita trabalho O contato direto com autoridades agiliza os procedimentos e dá segurança para casos de maior potencial ofensivo

O peso da culpa Um menino de 12 anos e seu irmão andavam de bicicleta por uma das ruas do bairro onde moram com a família. Na mesma ocasião, um senhor idoso caminhava pela mesma via. Ao colidirem as bicicletas, os irmãos perderam o controle dos veículos e um deles acabou atropelando o idoso, com saúde bastante frágil, que veio a falecer no hospital algum tempo depois. O garoto foi processado por homicídio culposo. O sentimento de culpa o atormentava. Antes sempre um bom aluno, acabou reprovado. Vivia sobressaltado, com medo da polícia. A mãe deixou de fazer compras no mercado do bairro, onde a filha da vítima trabalhava. As famílias, que eram vizinhas há muitos anos, não se falavam mais. Um Círculo com as duas famílias foi realizado pela Central Judicial. A filha do idoso contou que enquanto o pai estava no hospital os médicos descobriram um fungo em seu pulmão. Se o idoso não tivesse sido hospitalizado (por causa do acidente) provavelmente teria transmitido a doença para outras pessoas. Ela também declarou no Círculo que perdoava o menino pela morte do pai, e que, do seu ponto de vista, não existiam culpados nesta situação. Ela pediu que o menino voltasse a frequentar a sua casa. Ao final do encontro, a família do menino foi embora de carona com a filha do senhor. O processo foi arquivado sem nenhuma sanção para o menino, que retomou seu bom desempenho escolar. Aliviadas, as famílias voltaram a se relacionar. (Facilitadoras: Franciele Lenzi e Katiane B. da Silveira)

34 Caxias da Paz


A pedagoga Katiane Boschetti da Silveira afirma que, se o caso não tivesse sido encaminhado para um procedimento restaurativo, os detalhes da história nunca teriam sido descobertos. “O fato de ele se sentir perdoado e não culpado possibilitou que retomasse sua vida”, acredita Katiane, que foi a facilitadora deste caso, encaminhado à Central Judicial de Pacificação Restaurativa. A Central Judicial de Pacificação Restaurativa funciona dentro do Fórum, o que proporciona proximidade entre os facilitadores e o sistema judiciário. O psicólogo e coordenador Paulo Moratelli explica que o fato de a Central estar situada no prédio do Judiciário também favorece os atendimentos, já que o ambiente oferece segurança e traz respeitabilidade para o processo. “É muito mais fácil você convidar, chamar ou intimar as pessoas estando aqui dentro. As pessoas começam a perceber que é uma coisa séria. Fica muito claro que, se os acordos previstos no Círculo não se cumprirem, isso trará consequências”, destaca o psicólogo. De acordo com o Juiz Leoberto Brancher, além do pioneirismo em instituir uma política pública restaurativa no âmbito municipal, no âmbito judicial a introdução da JR está sendo conduzida de forma a constituir um modelo organizacional apto a ser replicado noutras Comarcas. Isso porque as práticas restaurativas estão sendo integradas aos serviços do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) – órgão que está sendo criado nas principais cidades brasileiras, a partir da Resolução n. 125/2009 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A arquitetura institucional que está sendo modelada em Caxias facilitará a difusão da Justiça Restaurativa também em outras Comarcas, pois a experiência caxiense parte da definição de um espaço institucional onde a JR pode ser instalada no Poder Judiciário. Essa contribuição pode ser favorecida também por oferecer alguns padrões de procedimentos, já testados, sistematizados e prontos para serem multiplicados. A inclusão das práticas restaurativas no menu de atendimento do CEJUSC, aliás, é um modelo organizacional que vem sendo referendado pelo Tribunal do Rio Grande do Sul, e sua difusão já começou, como é o caso de Pelotas, onde a JR foi introduzida na Comarca via CEJUSC, e em Porto Alegre, onde o Tribunal estuda um plano para que a Central de Práticas Restaurativas do Juizado da Infância e da Juventude seja absorvida pelo CEJUSC do Foro da Capital.

35 Central da Paz Judicial


Metas da Central Judicial de Pacificação Restaurativa Moratelli afirma que o desafio dessa Central é conquistar mais espaço dentro do Sistema Tradicional de Justiça. O apoio da comunidade também é fator importante, já que os Círculos Restaurativos podem ser muito úteis para resolver situações conflituosas de uma forma mais criativa, com a participação de todos os envolvidos. Além disso, o processo contribui para eliminar despesas públicas. “Tratamos o caso de uma família em que nove irmãos estavam institucionalmente acolhidos. Cada criança residente naquela Casa de Acolhimento custava em média R$ 5 mil por mês para o Município. Por meio dos Círculos, pudemos restituir essas crianças ao cuidado dos pais. Eliminamos um gasto de aproximadamente R$ 45 mil reais mensais para a Administração Pública, além de – e isso é o mais importante – proporcionar que elas voltassem para sua família de origem”, explica o psicólogo. Moratelli destaca também as vantagens do método quando se trata de casos envolvendo adolescentes em conflito com a lei, como no relato a seguir:

Círculo de Construção de Paz aplaca ameaças de morte entre adolescentes Um dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa no CASE estava sendo ameaçado de morte por outros três internos. Para evitar uma situação grave de conflito que pudesse terminar em morte, a transferência do menino estava sendo providenciada. Depois de conversar com todos, o facilitador da Central Judicial de Pacificação Restaurativa concluiu que cada um dos rivais do rapaz tinha um motivo diferente para querer a sua morte, mas todos estavam dispostos a conversar para resolver a questão. Um Círculo de Construção de Paz foi promovido com os quatro adolescentes e dois apoiadores. Os conflitos foram resolvidos e todos permaneceram cumprindo sua medida na mesma unidade sem que ocorresse alguma agressão entre eles. (Facilitador: Paulo Moratelli)

Para Moratelli, um jovem que consiga, depois de um encontro como esse, ressignificar seus comportamentos, se responsabilizar por seus

36 Caxias da Paz


atos, assumir o controle sobre si e a partir disso construir uma história diferente, representa um ganho social imensurável. “O que isso representa para a sociedade? É algo que não tem preço”, afirma o psicólogo. Ele conclui que cada caso tratado pelo Círculo também representa um benefício para toda a comunidade, já que uma situação particular bem resolvida traz sensação de segurança para outras pessoas. “O que está se construindo em Caxias é muito concreto, e a cidade carece muito de uma cultura de paz”, alerta o psicólogo.

Crianças também ganham voz nos Círculos de Justiça Restaurativa Uma mãe drogadita, um pai violento e cinco crianças de uma mesma família afastadas do lar e enviadas para uma Casa de Acolhimento Institucional. Um deles ainda bebê, e os demais com 3, 7, 10 e 12 anos. Todas as provas já haviam sido produzidas e o processo de perda do poder familiar estava pronto para o julgamento. Entretanto, as promessas de regeneração dos pais, apoiados pela avó e uma tia, para reaverem os filhos, eram convincentes. Um Círculo de Construção de Paz foi realizado com a família, e o resultado parecia muito positivo. Tudo se encaminhava para a volta das crianças para casa, mas um Círculo realizado apenas com as crianças, do qual apenas não participou o bebê, mudou novamente o rumo do processo. Os pequenos revelaram em detalhes uma rotina de opressão, agressões, maus-tratos, violência e negligência. Surpreendentemente, pediram para não voltarem para casa. A Justiça ouviu, e as crianças foram afastadas dos pais agressores. (Facilitadores: Miriam Baumgarten Rauber e Paulo Moratelli)

“Apelação Civil. Destituição do poder familiar. Depoimentos testemunhais não presenciados pelos genitores. Ausência de prejuizo à defesa. Juntada dos relatórios resultantes dos Círculos restaurativos. Ausência de ilegalidade. Instrumentos idôneos e aptos a colaborar com a formação do convencimento do magistrado. Ativismo judicial. Situação flagrante vulnerabilidade. Mãe usuária de drogas. Genitor que castigava imoderadamente os filhos. Ausência de alteração no quadro vivenciado. Art. 1.638, I, II e III, do Código Civil. Art. 22 do ECA – A ausência de ilegalidade na juntada aos autos dos Relatórios provenientes dos “Círculos Restaurativos” realizados, porquanto são documentos idôneos produzidos com o fito único de dar ao julgador mais subsídios, com lastro científico, para a formação de sua convicção quanto ao destino dos irmãos. Ativismo judicial pertinente e inovador”. (Apelação Cível N. 70054290002, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Julgado em 15-08-2013)

37 Central da Paz Judicial


A maioria dos casos atendidos pela Central Judicial são oriundos do Juizado da Infância e da Juventude. Essa Central, porém, está apta a atender casos encaminhados pelas diversas áreas jurisdicionais, o que vem permitindo oferecer as práticas restaurativas como parte do menu de soluções autocompositivas que pode ser acessado através do CEJUSC. Foi esse o caso da disputa civil relatada a seguir, em que um Círculo Restaurativo foi intercalado entre sessões de mediação:

Vizinhos, inimigos e irmãos Eram irmão e irmã, mas há muito não se falavam. As brigas pelas terras da família tinham se agravado ao ponto de se transformarem em agressões e ameaças de morte. Sob a forma de um processo em andamento numa Vara Cível, o conflito foi encaminhado para mediação. Identificada a questão de fundo afetivo preponderante sobre o conteúdo patrimonial, a mediação foi suspensa com apoio dos advogados, e abriu-se espaço para a realização de um Círculo de Construção de Paz. Durante o Círculo, mágoas e ressentimentos tomaram o lugar da discussão da herança. Frente a frente, auxiliados por um facilitador experiente, irmão e irmã, acompanhados por seus cônjuges, puderam desabafar anos e anos de rancores acumulados. Analisaram a origem dos conflitos e propuseram soluções para as desavenças. Terminado o Círculo, irmão e irmã saíram conversando lado a lado e entraram juntos no elevador, coisa até então inconcebível entre eles. Ao retornarem à sessão de mediação com os advogados, com as emoções harmonizadas, a divisão de terras transcorreu tranquilamente. Até uma indenização por prejuízos e danos morais decorrentes de uma agressão entre eles foi acertada. Os irmãos chegaram a um acordo, e o processo foi finalizado pacificamente. Através do Círculo, a família, antes inimiga, encontrou paz. (Facilitadores: Franciele Lenzi e Paulo Moratelli)

38 Caxias da Paz


Justiça que se aprende na infância

Conviver pacificamente, vivenciar valores positivos e aprender a relacionar-se com o diferente ĂŠ o caminho para uma vida de paz 39 Revista da Paz


A

Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude foi

inaugurada no dia 5 de junho de 2013. Até o final de outubro de 2013, haviam sido realizados um total de 120 encontros restaurativos, relativos ao atendimento de 27 casos de conflitos (incidentes relativos a fatos concretos, que implicaram um total de 88 encontros incluindo pré-círculos, círculos e pós-círculos), e outros 32 encontros de sensibilização e/ou de prevenção de conflitos. Esses encontros envolveram um total de 749 pessoas.

Briga de meninas vira inimizade de gente grande As duas adolescentes de 14 anos eram colegas do oitavo ano do ensino fundamental quando brigaram na saída do colégio, resultando em uma delas com lesões corporais. Somente um ano depois, o caso entrou em pauta na Vara da Infância e da Juventude. Mesmo passado tanto tempo, o conflito não perdera sua atualidade. Pior, evoluíra para uma desavença entre as famílias. Novos boletins de ocorrência foram registrados, desta vez por ameaças. O caso foi encaminhado para um procedimento restaurativo. Com a participação das duas famílias, o encontro em forma de Círculo de Construção de Paz mostrou que o conflito entre as meninas vinha de longa data. Desde o quinto ano do Ensino Fundamental elas discutiam frequentemente. Uma delas viera de outra cidade, tinha hábitos interioranos e seu modo de vestir era motivo de chacota. A colega a chamava de “pano de chão”, e ela revidava chamando-a de “patricinha”. Já haviam sido chamadas muitas vezes para as tradicionais reuniões de aconselhamento, inclusive envolvendo familiares, mas o conflito não se resolvia. As desavenças evoluíram para as agressões relatadas. Uma das meninas trocou de escola depois do fato. Mas havia outras crianças das mesmas famílias que permaneciam no colégio, e o conflito se desdobrava entre elas. E foi além da escola, tensionando a vida das famílias na comunidade. Embora vizinhos, evitavam frequentar os mesmos lugares. Encontros ocasionais entre familiares, adultos, crianças e adolescentes faziam aflorar a hostilidade, com ameaças e até a iminência de agressões. O Círculo permitiu não somente às garotas, mas também aos familiares, desabafarem o mal-estar gerado pela rivalidade. As meninas reconheceram terem sentimentos em comum. Embora constassem no processo como ofensora e vítima, ambas admitiram ter praticado agressões. Frente a frente com a realidade e lado a lado com suas famílias, as duas perceberam a dimensão das consequências de seus atos. Sentiram-se responsáveis e arrependidas pela grande confusão em que tinham envolvido os familiares. Decidiram então pedir desculpas recíprocas, e aos seus familiares, e dar um fim às provocações. O processo foi arquivado, e as famílias voltaram a conviver pacificamente. (Facilitadoras: Franciele Lenzi e Katiane B. da Silveira)

40 Caxias da Paz


Casos como este agora podem ter dispensadas as tramitações na polícia,

O propósito da Central é acelerar

Ministério Público, Juizado da Infância e da Juventude, pois já podem ser

o atendimento a conflitos e

resolvidos preventivamente na Central de Práticas Restaurativas da Infância e

infrações de menor potencial

da Juventude. A Central atende casos de conflito entre crianças e adolescentes

ofensivo envolvendo crianças e

e seu entorno familiar e comunitário, com o intuito de prevenir que evoluam

adolescentes, como forma de

negativamente e, até mesmo, que se transformem em processos judiciais.

estabilizar a convivência familiar

O espaço ocupado pela Central da Infância e da Juventude é cedido pela

e comunitária e de evitar a

Faculdade de Direito da Universidade de Caxias do Sul.

abertura de processos judiciais.

A equipe da Central é composta pela pedagoga Katiane Boschetti da Silveira, que atua como coordenadora e facilitadora, pela assistente social Marí Ângela Stallivieri e pela professora de letras e bacharel em Direito Rachel Marques, que atuam como facilitadoras. Henrique Simionato, aluno de Direito da UCS, colabora como secretário. Diversos voluntários auxiliam na realização dos Círculos. Katiane, Marí Ângela e Henrique trabalham em turno integral. Rachel trabalha meio turno.

Um protocolo entre a Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social, o Juizado, a Promotoria, a Defensoria, a Polícia Civil, a Brigada Militar e a Guarda Municipal possibilita que infrações de menor relevância sejam resolvidas mediante

A Central atende casos encaminhados sobretudo por Escolas, mas também

práticas restaurativas. A intenção

pode receber encaminhamentos da Guarda Municipal, Brigada Militar,

é proporcionar soluções mais

Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, Conselho Tutelar,

rápidas, econômicas e efetivas

Centros de Referência em Assistência Social (CRAS e CREAS), Ministério

do que as oferecidas pelas vias

Público, Defensoria Pública, Casas de Acolhimento, Centros Educativos,

tradicionais.

comunidade. Depois que o atendimento é solicitado, a Central tem o prazo de 90 dias para concluir o procedimento restaurativo.

Demandas dos serviços municipais que atendem à clientela infantojuvenil Conflitos envolvendo crianças, adolescentes e seus entornos familiares, comunitários e dos serviços de atendimento

Difusão dos métodos circulares na rede especializada de Assistência, Educação e Saúde Escolas, Centros Educativos, Instituições de Abrigo, CRASs e CREAS, Guarda Municipal, Conselhos Tutelares

Situações conflitivas de natureza não infracional envolvendo crianças e adolescentes usuários do Sistema Infrações de menor potencial ofensivo, abordagem diversória Situações conflitivas intrafamiliares Situações conflitivas entre as famílias e servidores de atendimento Procedimento semelhante ao da Central Judicial

Aplicações em circunstâncias não conflituais Círculos de Construção de Senso de Comunidade (coesionamento familiar, comunitário e institucional) Círculos de Diálogos, de Planejamento, de Cura, de Reflexão, etc.

“Centro de Difusão da JR para a Rede da Infância e Juventude”

41 Central da Paz - Infância e Juventude


Vivenciando valores positivos Experiência de resolução não violenta de conflitos desde a infância é o melhor caminho para prevenir incidentes violentos, harmonizar trajetórias de vida e evitar a multiplicação de processos judiciais

A verdade jogada pela janela “O trabalho de prevenção é a nossa principal meta. Acreditamos que é mais fácil armar os jovens com valores, ferramentas que vão ajudá--los quando surgirem os conflitos, do que intervir depois que a situação já virou um grande problema ou, até, um caso de agressão. Resolver o conflito de alguém é promover o bem de todos. Os membros de uma comunidade estão sempre interligados. Qualquer situação boa ou ruim tem um alcance muito abrangente; o mal ou bem de um atinge a todos”. Katiane Boschetti da Silveira, pedagoga e coordenadora da Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude

A avó reclamava que não conseguia mais lidar com ele. Queria livrar-se do “demônio” (como ela o chamava). O neto não lhe dava mais sossego. Na falta de outro familiar que o recebesse, o destino do menino seria o acolhimento institucional. Antes, porém, o Ministério Público encaminhou o caso para a Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude. No Círculo de Construção de Paz, o garoto revelou a raiz da sua perturbação. Segundo lhe contara a avó paterna, pela qual fora criado desde bebê, ele não teria sido apenas abandonado pela mãe, mas com apenas 11 meses de vida, fora por ela jogado para fora da janela de um carro em movimento. De fato, nessa ocasião a família se envolvera em um acidente de trânsito, quando o pai do menino dirigia embriagado. O veículo capotou. O casal e a criança se feriram e foram hospitalizados. Ainda no hospital, as famílias se desentenderam. O bebê teve alta antes dos genitores e a avó paterna o assumiu. Desde então não permitiu que a mãe visse o filho. Quinze anos se passaram sem que mãe e filho se falassem. No Círculo, a mãe revelou ter mentido à polícia para proteger o companheiro das consequências legais do crime de dirigir embriagado. Não era verdade que tivesse jogado o menino pela janela do carro. O menino perdoou a mãe e reatou os laços com ela. Hoje, eles moram juntos. O menino frequenta a escola e estabilizou seu comportamento. Mantém um ótimo relacionamento com a mãe e o padrasto. O garoto voltou a ser tranquilo na escola e mantém-se em dia com os estudos. No encontro de pós-círculo, disse estar se sentindo muito feliz. O “demônio” é hoje um adolescente normal e tranquilo. (Facilitadoras: Katiane B. da Silveira, Marí Ângela Stallivieri e Rachel Ivanir Marques)

A Central está organizada para atuar de duas formas: “proativa” (ou preventiva) e “reativa”. O trabalho preventivo da Central consiste em difundir os princípios restaurativos e promover a prática de

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Círculos de Construção de Paz junto às escolas e serviços de proteção à infância e juventude, como forma de estimular a empatia entre crianças, adolescentes, famílias, cuidadores e educadores, dando-lhes a oportunidade de aprender a lidar com o conflito por meio do diálogo. Para refinar as estratégias visando a desenvolver ambientes restaurativos, um projeto-piloto vem sendo realizado com seis escolas da comunidade da região leste de Caxias do Sul. Nas escolas selecionadas, são promovidos Círculos com professores, alunos e pais. “Nós pressupomos que uma criança ou adolescente morador desses bairros, frequenta alguma destas escolas. Focar o trabalho nas instituições de ensino é uma estratégia para atingir toda a comunidade”, explica Katiane. A ideia é que cada comunidade se aproprie do conhecimento e das habilidades restaurativas, aplicando-os a princípio como ferramenta cotidiana de fortalecimento de vínculos e de harmonização da convivência, até ir adquirindo maior autonomia na solução de conflitos de maior complexidade. O trabalho visa não apenas a evitar que as situações de conflito gerem processos judiciais, mas, principalmente, a fortalecer as comunidades. “Não atendemos casos que já viraram processos judiciais, embora muitos deles sejam gravíssimos. Lidamos com situações de tráfico de drogas, violência física e verbal, abuso emocional, negligência e vulnerabilidade social”, relata a coordenadora. Além da implantação experimental junto às seis escolas-piloto, a Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude, que trabalha com toda a rede municipal de atendimento à criança e ao adolescente, atende também por solicitação de outras escolas e serviços da rede de proteção. A intervenção nesses casos é reativa, quando já existe uma situação de conflito instaurada. Os facilitadores da Central promovem Círculos com os envolvidos para propor que a violência seja evitada e que as desavenças sejam resolvidas de forma objetiva e consistente. “Nosso alvo é fazer com que as pessoas conversem. Quando se promove o diálogo, os problemas são minimizados. Como a sociedade está toda interligada, prevenimos que outras pessoas tornem-se vítimas de violência”, explica Katiane. De acordo com ela, a rede de atendimento socioassistencial de Caxias tem se mostrado muito participativa. “Caxias tem uma rede forte. Quando as pessoas estão no Círculo, elas sentem que não estão trabalhando sozinhas, e isso motiva todos a agirem em conjunto para ajudar uma família”, comemora Katiane.

43 Central da Paz - Infância e Juventude


Desafios da Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude Padronização dos atendimentos, intercâmbio com a academia, divulgação do trabalho na comunidade e formação de novos líderes são as metas da Central A Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude tem como propósito concluir o padrão do fluxo de atendimento dos serviços, definir o protocolo operacional das ações para os atos infracionais de menor potencial ofensivo e buscar mais interação com o meio acadêmico. Como a Central está localizada dentro da Universidade de Caxias do Sul, o desejo da equipe é desenvolver um intercâmbio sólido com os alunos da UCS, do curso de Direito e de outras áreas do conhecimento. “Um Círculo de Construção de Paz é um ato pedagógico e social. Desejamos mostrar aos estudantes de vários cursos esta nova forma de promover Justiça”, explica Katiane. De acordo com a avaliação da coordenadora, a atuação de mais pessoas como facilitadoras de Círculos de Construção de Paz é necessária. Para ela, a ocorrência de casos de conflito em ambiente escolar em Caxias do Sul é muito grande. “Nós ainda não divulgamos muito para a cidade o nosso trabalho e já estamos com uma demanda altíssima. Existe muita violência e uma grande dificuldade de relacionamento entre as pessoas... o diálogo está faltando muito no ambiente escolar e principalmente nas famílias”, constata. Ela acredita que principalmente líderes de comunidade podem ser facilitadores. “O essencial é ter perfil para trabalhar com pessoas, ser interessado e ter a vontade de ajudar”, afirma. Katiane defende a realização de um trabalho comunitário de construção da cultura de paz para transformar a metodologia dos Círculos em uma metodologia pedagógica. “Queremos que as pessoas aprendam a aplicar os Círculos, que isso se torne uma prática dentro das casas, nas escolas, entre amigos”, desafia.

44 Caxias da Paz


Fundamentos dos Procedimentos Restaurativos Extrajudiciais A Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, artigo 40, item 3, letra “b”, preconiza que crianças e adolescentes envolvidos na prática de infrações penais sejam atendidos preferencialmente sem recurso ao processo judicial, assegurando-se a eles o pleno respeito dos direitos humanos e as garantias previstas em lei. A Lei Federal n. 12.594/2012, no seu artigo 35, inciso II, estabelece o princípio da “excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposicão de conflitos”. A Lei Federal n. 12.594/2012, no seu artigo 35, inciso III, estabelece o princípio da “prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas”. O Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC – ao qual está vinculada em Caxias a Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude) está autorizado a aplicar as práticas da Justiça Restaurativa pela Emenda n. 01 à Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ.

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Justiça como poder da comunidade Promover a Cultura da Paz em meio à comunidade da Zona Norte – região conhecida pelo contexto violento – é o desafio da Central Comunitária 47


A

Central Comunitária de Práticas Restaurativas foi inaugurada no dia

19 de julho de 2013 e funciona no Centro de Referência em Assistência Social – CRAS Norte (Rua das Fruteiras, Bairro Santo Antônio). A Central atua em parceria com a Rede de Proteção Social (UBS, escolas, ONGs e AMOB) e com as lideranças dos bairros Santa Fé, Vila Ipê, Belo Horizonte, Canyon, Portal da Maestra, Pedancino, Santo Antônio e Parque Oásis, que compõem a Zona Norte de Caxias do Sul, onde estima-se que vivam cerca de 59 mil pessoas. Entre julho e outubro de 2013, a Central promoveu um total de 45 encontros restaurativos, relativos ao atendimento de 13 casos de conflitos (incidentes relativos a fatos concretos, que se desdobraram em 23 encontros de pré-círculo, círculo e pós-círculo), e outros 22 encontros de sensibilização e/ou de prevenção de conflitos. Esses encontros envolveram um total de 178 pessoas.

Herança imerecida Um homem morreu e deixou a esposa de 29 anos sozinha para criar duas filhas, de oito e dez anos. A mulher decidiu cobrar a herança que acreditava merecer: a casa onde o sogro morava. O senhor de 76 anos não tinha para onde ir. Assim começou a discórdia que separou as duas netas do avô. A mulher insistia que tinha direito à casa, e o idoso afirmava que não tinha condições de deixar o lar. Dois anos depois da morte do filho, ele acabou perdendo também a esposa. A partir disso, longe das netas e sem a companheira, o idoso passou a viver uma situação de grande sofrimento. A nora insistia que não abriria mão do que era seu. O conflito foi levado à equipe da Central Comunitária de Práticas Restaurativas, que propôs a realização de Círculos de Construção de Paz com a família. Durante a realização dos Círculos, descobriu-se que a casa onde o idoso habitava não lhe pertencia totalmente. A posse do imóvel era dividida entre ele e outros três irmãos. Depois de compreender que, afinal, não tinha direito ao bem, e que, mesmo que tivesse, receberia apenas uma pequena parte, a nora desistiu da briga. Avô e netas puderam voltar a conviver. Os Círculos de Construção de Paz possibilitaram que os laços da família fossem restabelecidos. (Facilitadora: Susana Córdova Duarte)

Essa é apenas uma das situações de conflito que a Central Comunitária de Práticas Restaurativas tem ajudado a pacificar. “Estar inserido na comunidade é muito positivo. Estamos ao alcance de pessoas que muitas vezes deixam de buscar ajuda porque não têm como ir até o Centro da cidade”, explica Susana Córdova Duarte, tecnóloga em gestão pública e coordenadora da Central.

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Além dela, o Guarda Municipal e acadêmico de matemática Cristiano Marcos Vitali e a professora especialista em Educação Física Marien Regina Andreazza atuam como facilitadores. A assistente social Denise de Souza Cavalheiro Lain presta orientação técnica. A estudante de Psicologia Gabriela de Quadros Pirocca colabora como técnica administrativa, e Alceu Valim de Lima atua como facilitador de forma voluntária. O objetivo da Central Comunitária de Práticas Restaurativas é, por meio da Justiça Restaurativa e dos Processos Circulares, contribuir com a comunidade residente na Zona Norte de Caxias do Sul para a construção, promoção e difusão da Cultura de Paz. A Central promove a solução de conflitos envolvendo crianças e adolescentes, suas famílias e amigos. Também administra desavenças entre vizinhos, problemas de relacionamento no atendimento a idosos e situações conflitivas entre usuários e serviços de atendimento. Os Círculos de Construção de Paz realizados pela Central buscam restabelecer a convivência pacífica, restaurar relacionamentos fragilizados pela violência e fortalecer vínculos entre as pessoas.

Realidade de Carência Social A maioria dos moradores dos bairros da Zona Norte é formada por pessoas que vêm do interior para tentar trabalhar em Caxias, mas, sem qualificação, não encontram empregos formais De acordo com a coordenadora da Central, o maior problema da comunidade é a falta de acesso à informação. “As pessoas desconhecem seus direitos, e aqueles que elas conhecem não sabem onde buscar”, lamenta Susana. Ela explica que o perfil da maioria dos moradores destes bairros é de pessoas que vêm da zona rural ou de cidades menores para tentar trabalhar em Caxias. “Eles chegam sem qualificação profissional, não encontram empregos no mercado formal de trabalho e se estabelecem nas regiões periféricas, à margem da sociedade”, explica. “As pessoas acabam dependendo de programas do governo para sobreviver. O custo de vida em Caxias é muito alto, difícil de manter... aí nasce a violência: da carência financeira e da falta de informação”, explica Susana. “Na maioria dos casos, a violência familiar começa quando um pai que tem dois, três filhos para

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criar não consegue emprego e também faz uso de substâncias psicoativas. Ele, que deveria ser o provedor, não pode manter a família. Essas crianças choram, querem alimento, roupas... aí o pai bate no filho, e tudo começa”, conta a coordenadora. Susana acredita que as crianças que sofrem violência em casa têm a tendência a se envolverem com drogas, roubos e furtos... “Começa na carência da criança que apanhou, que sofreu violência e que vai reproduzir isso”, lamenta.

Estratégia As primeiras ações da Central foram atividades de sensibilização da comunidade para tornar o trabalho conhecido entre as organizações não governamentais e os serviços de saúde da região

Infiltração rompe amizade Uma infiltração no apartamento de uma senhora gerou uma grande intriga em um condomínio. Um grupo de vizinhos procurou a Central Comunitária de Práticas Restaurativas, aconselhados por um conhecido que já havia participado dos Círculos de Construção de Paz. O grupo estava relutante, mas pelo desejo de resolver a situação concordou em participar dos pré-círculos. Desta forma, se descobriu de onde vinha a água que causava a infiltração. A moradora do local de origem da umidade se responsabilizou em chamar um técnico para avaliar a situação, mas declarou estar muito triste com os vizinhos. Não entendia por que não a tinham procurado para conversar antes e por que a vizinha de baixo lhe tratava tão mal nos últimos seis meses. Ela pediu um tempo para pensar se conseguiria conversar com a outra, já que estava muito magoada. Um Círculo com a participação de todos ainda não ocorreu, embora não tenha sido possível a restauração imediata do relacionamento entre as vizinhas, a solução para a infiltração foi alcançada ainda no pré-círculo, o que serviu para minimizar o conflito. (Facilitadores: Cristiano Vitali e Marien Andreazza)

“A nossa expectativa é que esse Círculo ocorra e o resultado seja positivo. As pessoas se ofendem muito por pouco e criam mágoas profundas. Neste

50 Caxias da Paz


caso, queriam dar início a um processo judicial por causa de uma coisa tão simples de resolver”, avalia Susana. Por essas e outras situações comuns que podem facilmente encontrar um desfecho positivo, se forem tratadas nos Círculos, as primeiras ações da Central foram desenvolver atividades de sensibilização na comunidade. O objetivo foi tornar o trabalho conhecido entre as organizações governamentais e não governamentais e os serviços de saúde da região. “Explicamos a metodologia, a proposta e mostramos que os conflitos podem ser resolvidos de forma não violenta. As pessoas não precisam concordar uma com a outra, mas podem manter o respeito”, propõe Susana.

Desafio Palavras que destroem Uma mulher procurou a Central Comunitária de Práticas Restaurativas para buscar ajuda: segundo ela, o marido a agride frequentemente com palavras de desprezo. Ele lhe diz diariamente que ela é burra, que não sabe ler nem escrever e que sem ele não conseguiria sobreviver... A vítima tomou conhecimento da metodologia dos Círculos de Construção de Paz e procurou ser ajudada. Até outubro de 2013, dois pré-círculos com ela e um com o esposo haviam sido realizados. O trabalho tem o objetivo de fortalecer a mulher para que ela seja capaz de falar diretamente para o marido como se sente. Embora ela não queira o divórcio, não gostaria mais de conviver com a rotina de desmotivação. Por sua vez, o marido acha que não há nada de errado no que diz. Os Círculos realizados com ele tem o objetivo de fazê-lo avaliar as próprias atitudes e, a partir da análise de sua história de vida, incentivá-lo a compreender por que age assim. O Círculo com a participação de ambos está marcado. A esperança da equipe da Central é que ela consiga, frente a frente com o marido, falar o que está sentindo e que, a partir disso, mulher e companheiro consigam, juntos, identificar seus sentimentos e necessidades. Desta forma, a Central acredita que juntos, o casal poderá ressignificar e restabelecer os vínculos fragilizados para construir um futuro sem violência verbal e psicológica. (Facilitadora: Marien Andreazza) “O caminho é esse: o diálogo e o fortalecimento dos laços familiares”, afirma Susana. O objetivo da Central Comunitária de Práticas Restaurativas para o próximo ano é aumentar o número de atendimentos. “Queremos divulgar essa alternativa para além da Zona Norte e ver cada vez mais adeptos dessa metodologia”, visualiza. A esperança da coordenadora é de que, a partir disso, os jovens se envolvam menos com a criminalidade.

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Entretanto, o crescimento trará consigo o desafio de administrar o aumento da demanda de trabalho. “Nossa equipe parece grande, mas ninguém é dedicado integralmente, então esperamos que mais voluntários se envolvam com o trabalho da JR. Eles serão sempre muito bem-vindos!”, convida a coordenadora.

Critério territorial Amplo espectro de situações conflitivas Perfil de usuários aberto (adultos, crianças e adolescentes) Alternativa à criminalização de conflitos Resolução na própria comunidade Redirecionamento de ocorrências policiais (relações familiares, vizinha, proximidade) Encaminhamentos espontâneos (partes, lideranças, profissionais do território)

Aplicações em situações conflitivas Conflitos envolvendo crianças, adolescentes e seus entornos familiares e comunitários Conflitos de vizinhança Conflitos de violências intrafamiliares Conflitos relacionados ao atendimento familiar a idosos Situações conflitivas entre usuários e serviços de atendimento

Aplicações em circunstâncias não conflitivas Círculos de Construção de Senso de Comunidade Círculos de Diálogo, de Planejamento, de Reflexão e outras aplicações circulares Foco no coesionamento familiar, comunitário e institucional

“Piloto de Justiça Comunitária”

52 Caxias da Paz


Voluntariado pulsa no coração da JR em Caxias do Sul Ajudar a criar um mundo de paz e um planeta mais seguro é apenas uma fração do orgulho que um voluntário sente ao doar seu tempo para uma causa em que acredita 53


O

movimento da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul deve-se

muito ao compromisso de pessoas que participaram de capacitações e se engajaram voluntariamente para levar a Cultura da Paz à comunidade caxiense. O voluntariado não é uma qualidade que distingue apenas aqueles que se dedicam à Justiça Restaurativa de forma não remunerada. Também são inúmeros os profissionais de vários setores das políticas públicas de Caxias do Sul que, mesmo atuando em seus horários de trabalho, o fazem de maneira engajada e imprimem nisso o caráter de compromisso pessoal que caracteriza o voluntariado. A busca pessoal e o desejo de contribuir para que essa nova forma de lidar com conflitos alcance um número cada vez maior de pessoas é o que motiva os voluntários a se engajarem e servirem como facilitadores na mediação de conflitos. “Percebi que era uma maneira de ajudar as pessoas de uma forma que eu jamais tinha conseguido alcançar em outros trabalhos como voluntária”, conta Fátima De Bastiani. Hoje coordenadora do Núcleo de Justiça Restaurativa, Fátima teve o primeiro contato com a proposta dos Círculos em agosto de 2010, quando foi contratada para traduzir as palestras das canadenses Brenda Morrison e Liz Eliott em Caxias do Sul. Em outubro daquele ano, Fátima também traduziu dois treinamentos ministrados pela americana Kay Pranis, em Porto Alegre e Caxias do Sul, por ocasião da sua primeira vinda ao Brasil. O encantamento surgiu quando Fátima ainda se preparava para as traduções. “Li materiais na internet, li o livro ‘Trocando as lentes’, do Howard Zehr, e os polígrafos do programa Justiça para o Século 21, além de assistir a vídeos da Kay Pranis sobre seu trabalho com Círculos de Construção de Paz”, relata Fátima. Ela conta que, após as duas semanas acompanhando Kay Pranis, se ofereceu para atuar como voluntária junto aos facilitadores formados em Caxias. Durante este período, Fátima impactou-se com a Justiça Restaurativa e com a metodologia dos Círculos de Construção de Paz. “Foi a simplicidade de Kay que me cativou. Ela transmite muita confiança sobre o que fala e a sua proposta faz diferença na vida das pessoas”, afirma. Mudança que Fátima observa hoje em cada caso submetido à prática dos Círculos de Construção de Paz. A coordenadora do Núcleo afirma que não seria possível, nem mesmo pretendido, contratar e remunerar todos os facilitadores capacitados em

54 Caxias da Paz


Caxias do Sul (75 pessoas participaram das 3 formações para facilitadores ministradas por Kay Pranis, 90% delas de Caxias), mas que a atuação dos voluntários é tão importante quanto a dos profissionais que hoje dedicam tempo integral ao desenvolvimento da JR em Caxias e são remunerados para isso. A oportunidade de dedicar-se e sentir-se útil na promoção da paz estimula Alceu Wanderlei Valim de Lima, bancário que se aposentou como gerente da Caixa Econômica Federal. “Me considero um irmão mais velho, faço parte da história, da origem do processo de implantação da JR em Caxias do Sul. Encaro com muita responsabilidade as atividades de apoiar e orientar os facilitadores que iniciaram essa caminhada depois de mim”, garante. Alceu atua como facilitador, apoiador, incentivador e divulgador voluntário da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul. Chamado para ajudar colegas ou por solicitação de pessoas em conflito, ele desenvolve atividades nas Centrais, escolas, instituições e comunidades. Há muitos anos já atuava no Juizado de Pequenas Causas, onde era o conciliador mais antigo. Foi em 2010, no curso de formação ministrado por Kay Pranis em Caxias do Sul, que conheceu a Justiça Restaurativa. Desde então, mudou o foco do seu voluntariado. “Encontrei uma metodologia muito mais eficiente do que a conciliação e tudo o mais que eu conhecia até então. Acredito que a Justiça Restaurativa é uma ferramenta adequada em todas as relações humanas, desde o conflito mais difícil até os momentos sublimes de confraternização e celebração”, explica. Hoje, além de facilitar Círculos no CASE – unidade onde adolescentes cumprem medidas privativas da liberdade – e nas três Centrais de Práticas Restaurativas, Alceu tem apoiado iniciativas de Círculos de Construção de Paz na Comunidade de Santo Homo Bom e na Penitenciária do Apanhador. O voluntário também já facilitou Círculos em escolas de Garibáldi e Flores da Cunha. Consciente da importância do trabalho voluntário, Juceli Rita Cemin Negretto – que é pedagoga, especializada em Supervisão Escolar e pós-graduada em Psicopedagogia – atua como facilitadora voluntária da Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude. Ela também realiza Círculos de Construção de Paz com as mulheres que cumprem pena em regime fechado na Penitenciária Industrial de Caxias do Sul. A pedagoga também participou do curso com Kay Pranis em 2010. Após a formação, Juceli começou a fazer Círculos nas Escolas da Rede Estadual, envolvendo alunos, professores e pais, direção das Escolas e pessoas da comunidade. Ela começou esse trabalho enquanto ainda

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atuava na 4ª Coordenadoria Regional de Educação, mas continuou a realizá-lo depois de aposentada. Para Juceli, um dos casos de Círculo mais comoventes aconteceu em uma escola da região.

“Uma funcionária estava proibida de frequentar a cozinha da Escola. Ela fora acusada de abrir a válvula do gás para incriminar uma colega. O fato tinha ocorrido há 12 anos, mas a proibição se mantinha. Desde aquela época ela nunca mais tinha entrado na cozinha. Tudo estava registrado em ata. Um Círculo de Construção de Paz foi realizado com a equipe daquele colégio. Foi um Círculo com muitos desafios e desfechos, mas no final tivemos um bom resultado. Hoje a funcionária tem acesso à cozinha, apenas com restrições iguais às de todos os demais funcionários”, relata Juceli. (Facilitadores: Alceu Valim de Lima e Juceli Rita Negretto)

Por detrás da história, o Círculo facilitado por Juceli, com a colaboração de Alceu, revelou um poço com 12 anos de mágoas acumuladas. Há 12 anos a merendeira fora trocada de função e colocada para cuidar das crianças no pátio da escola. Pouco tempo depois, um vazamento de gás na cozinha alvoroçou todo o colégio. Suspeita de sabotagem e mesmo sem ter sido formalmente julgada, a ex-merendeira acabou condenada a 12 anos de ressentimentos e estigmatização. Presumida culpada, a situação gerou sentimentos de exclusão e muita raiva contra a colega que passou a trabalhar na cozinha da escola, local em que ela nunca mais pôde entrar, sequer para aquecer sua refeição. Sentimentos que persistiam e infectavam o ambiente escolar, até serem tratados por meio de uma prática restaurativa. A coordenadora pedagógica da Escola Estadual de Ensino Fundamental Dante Marcucci, Glaci Maria Harz Durante, também atua como facilitadora voluntária da Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude desde que se aposentou de um dos seus dois cargos de professora da rede pública. Ela considera que as práticas restaurativas são ferramentas importantes para a resolução de conflitos em escolas. “A suspensão de alunos, assim como a transferência de escola, não resolve o problema, e muitas vezes os adolescentes deixam de frequentar as aulas”, lamenta. A coordenadora promove Círculos de Construção de Paz no colégio onde trabalha. “Diariamente sou procurada por alunos para resolver pequenos conflitos que poderiam gerar problemas graves, caso não fossem resolvidos”, conta. Durante este ano, Glaci realizou diversos Círculos com turmas de alunos, normalmente com a presença de um professor. Glaci acredita que as práticas restaurativas também podem ser eficientes para combater a evasão escolar. “Hoje, o Conselho Tutelar não dá conta dos casos de

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alunos que estão fora da escola. Se tivermos condições de fazer Círculos com esses estudantes, com o aval do Conselho Tutelar, muitas crianças que estão nas ruas certamente serão resgatadas”, propõe. “Se quisermos encontrar uma maneira de resolver nossos conflitos, precisamos aprender a lidar com nossas emoções e possibilitar a transformação das pessoas envolvidas”, defende Glaci. O primeiro contato de Glaci com a Justiça Restaurativa foi em 2004, quando participou do Curso de Lideranças em Cultura de Paz, realizado na Universidade de Caxias do Sul. “O tema de um dos encontros, ministrado pelo Juiz Egberto de Almeida Penido, foi: Rumo a uma Justiça Restauradora”, lembra. Glaci também participou dos Seminários de Valores Humanos, promovidos pela Biblioteca dos Direitos da Criança da UCS e do primeiro curso de formação em Justiça Restaurativa ministrado por Kay Pranis em Caxias do Sul em 2010. A professora conta que uma das experiências mais significativas que teve ao aplicar as concepções da Justiça Restaurativa foi o encontro que promoveu para resolver o conflito entre duas meninas acolhidas institucionalmente, que eram colegas na escola:

“Uma das alunas jogou uma cadeira na outra. As duas saíram correndo da sala, uma chorando e a outra gritando, querendo brigar. Antes que chegassem à direção, levei-as para minha sala. Solicitei que se acalmassem. Pedi licença para que eu pudesse terminar um trabalho (pretexto) enquanto comecei a falar sobre outros assuntos. Perguntei como estavam se sentindo. A aluna ‘A’ começou a manifestar seu desejo de voltar a morar com a avó, onde ela havia passado o fim de semana. Na sequência, a aluna ‘B’ também falou do seu desejo de voltar para casa e cuidar do bebê da irmã. Percebi uma ligação entre os dois casos: aluna ‘A’ estava sendo cuidada, nos finais de semana, pela avó idosa e um dia ela poderia cuidar da avó, enquanto a aluna ‘B’ queria sair do abrigo para ajudar a irmã a cuidar de um sobrinho e assim a irmã poderia trabalhar fora de casa. Depois de alguns minutos as duas começaram a conversar. Aproveitei e perguntei sobre o ocorrido e, se a aluna ‘B’ estava machucada. Ela mostrou a perna e disse: ‘só está um pouco vermelho’. A aluna ‘A’ pediu desculpas e disse estar muita nervosa. As duas perceberam que tinham as mesmas necessidades e desejos e criou-se uma empatia entre ambas”, relata Glaci. (Facilitadora: Glaci Harz Durante)

A professora conta que as meninas continuaram colegas e convivem muito bem. Ela acredita que, embora não tenha realizado formalmente um Círculo, já que a dinâmica da vida escolar nem sempre possibilita ou

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faz necessário que se proceda assim, sua intervenção seguiu os princípios restaurativos. Esta habilidade vai sendo incorporada conforme se utiliza das práticas estruturadas e se mostra útil também para soluções informais. Um diálogo restaurativo aplicado naquele momento evitou a suspensão das alunas das aulas e a vinda dos educadores dos Abrigos, como normalmente acontece nesses casos. “Certamente a aluna ‘A’ perderia o direito de passar o fim de semana com a avó, o que a deixaria ainda mais revoltada”, explica Glaci.

Representada por um novelo de linha formando o símbolo do infinito, a identidade visual do projeto convoca para uma tecitura social também infinita.

Um exemplo de como as concepções restaurativas e os Círculos de paz podem se tornar uma ferramenta comunitária vem sendo dado pelo Padre Renato Ariotti, da Paróquia Santa Catarina. Desde que se aproximou do Juizado para acompanhar a situação dos quatro adolescentes que colocaram fogo no papeleiro Carlos Miguel, morto em 23 de setembro de 2012, o Padre Renato se tornou de certa forma um representante da vítima, de quem inclusive adotou os dois cachorros e ainda guarda o carrinho de coletar papelão. Um Círculo para que os quatro adolescentes possam ouvir do Padre Renato o relato do sofrimento que causaram para a vítima ainda não foi possível, porque os adolescentes não se mostraram maduros o suficiente. Mas desde 27 de abril de 2013, a comunidade da paróquia realiza mensalmente Círculos de Paz, facilitados pelo voluntariado de Alceu Lima e Paulo Moratelli. Os encontros, que seguem a metodologia dos Círculos de Diálogo e Construção do Senso de Comunidade, promovem reflexões sobre o que pode ser feito para garantir a segurança e a paz na comunidade e também têm servido informalmente como espaço de escuta de pessoas vitimizadas – como a mãe de um jovem morto por um bonde na Avenida Júlio de Castilhos, na madrugada do feriado de 1º de maio de 2013.

As histórias de Fátima, Alceu, Glaci, Juceli, que integram a lista dos primeiros facilitadores formados pela Justiça Restaurativa em Caxias, ilustram a dedicação de vários outros facilitadores voluntários que contribuem, junto às Centrais e nos seus próprios ambientes profissionais ou comunitários, para que o trabalho do Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul se fortaleça e se consolide. Todos

58 Caxias da Paz


os facilitadores da última turma capacitada na cidade, formada com recursos do Tribunal de Justiça em 2013, assumiram o compromisso de prestarem 300 horas de voluntariado junto ao projeto. Não é apenas como facilitadores de Círculos de Construção de Paz que os voluntários podem se dedicar à pacificação da cidade. Exemplo disso é o grupo de profissionais que vêm atuando voluntariamente em outras frentes, como a informatização de uma guia de registro, que formará um banco de dados onde serão armazenadas todas as informações sobre os casos trabalhados pelos Círculos de Construção de Paz promovidos nas Centrais ou em qualquer outro local. A implantação de uma comunidade virtual para multiplicar formações e possibilitar a supervisão das práticas também está sendo viabilizada por profissionais voluntários da área.

Para o Juiz Leoberto Brancher, profissionalização e voluntariado são atuações complementares. “O pessoal remunerado forma a base, eles asseguram a sustentabilidade do trabalho. Mas eles atuam por convicção, são ‘voluntários em serviço’. Antes de serem escolhidos, eles já estavam engajados. De certa forma, também são voluntários. Voluntários e pessoal remunerado atuam lado a lado, o que reforça o senso de compromisso de todos. Por isso esse movimento nunca vai perder a vitalidade, não vai virar uma burocracia. Por isso sonhamos com um futuro que passa pelo voluntariado. As três Centrais já criadas, ou quantas mais pudéssemos criar, jamais poderiam absorver todos os conflitos da cidade. As Centrais devem servir como inspiração, para fazer e mostrar que é possível resolver de outra maneira, para contar os casos e partilhar reflexões sobre como podemos fazer melhor. As Centrais integram o Núcleo, que tem a missão de formar novos facilitadores. Precisamos formar voluntários para levar as práticas restaurativas não só para os presídios, para as unidades da FASE, para os abrigos, mas para todas as escolas, as unidades básicas de saúde, centros comunitários, igrejas, pastorais, fábricas... Precisamos mobilizar legiões de voluntários para construir uma Cidade da Paz. Mesmo profissionais atuando no próprio local de trabalho, quem se escolher para a tarefa, será bem-vindo como voluntário. Precisamos que as técnicas do diálogo restaurativo estejam ao alcance das pessoas nos lugares onde elas convivem, se encontram e, por isso, entram em conflito. Conflito faz parte. Como ouvi numa palestra, o conflito não é o problema. O problema é não ter saídas. E os voluntários são as pessoas que facilitarão essa saída”, defende Brancher.

59 Teia da Paz


60 Caxias da Paz


Desmistificando os Círculos de Construção de Paz Um processo que parece ser demorado mas que é, na verdade, mais econômico e rápido que o tradicional e na maioria dos casos promove resultados estáveis 61


C

onsiderada por alguns uma filosofia, a Justiça Restaurativa já chegou a ser

definida como “uma prática à busca de uma teoria” – mostrando que a grande vocação das ideias restaurativas é a de serem colocadas em prática. As práticas restaurativas podem seguir diferentes metodologias, como a mediação vítima-ofensor, as conferências neozelandesas e australianas, as reuniões restaurativas norte-americanas, ou os Círculos de comunicação não violenta. O objetivo dos Círculos é propor

Os Círculos de Construção de Paz são o método restaurativo até aqui utilizado pelas

uma nova forma de pensar os

Centrais do Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul. A metodologia é uma

conflitos, além de solucionar casos que correm risco de enfrentar uma longa fila de espera nos fóruns para concluir seus trâmites, alcançar resultados incertos e

das mais difundidas no mundo e foi desenvolvida a partir do final dos anos 70 pelo Juiz canadense Barry Stuart, quando jurisdicionava territórios indígenas cujos povos mostravam resistência em participar dos processos da justiça tradicional. Stuart partiu então das práticas de justiça adotadas nas tradições desses povos, modernizando-as e adaptando-as à aplicação judicial através do que inicialmente

nem sempre satisfatórios. A pro-

denominava de “Círculos de Prolação de Sentença”. Nesses procedimentos, os

posta parte da certeza de que é

processos seguiam o percurso normal até o julgamento, mas ao final o juiz, promotor

preciso resolver as desavenças por

e advogado se reuniam num Círculo com a participação do ofensor, da vítima, suas

intermédio da responsabilização

famílias e comunidade, para decidirem juntos qual seria o conteúdo da condenação.

dos ofensores e da valorização dos sentimentos da vítima.

Essa experiência originou os Círculos de Construção de Paz como atualmente são praticados. Um Círculo de Construção de Paz é uma “roda” formada por pessoas que buscam, por meio do diálogo, alcançar um determinado propósito (compreensão, restabelecimento, sentenciamento, apoio, construção de senso comunitário, resolução de conflitos, reintegração ou celebração). De acordo com Kay Pranis, precursora na aplicação desta prática restaurativa nos Estados Unidos, o formato espacial do Círculo (os participantes se sentam em cadeiras dispostas em roda, sem mesa no centro) simboliza liderança partilhada, igualdade, conexão e inclusão. Também promove foco, responsabilidade e participação de todos. A conversa entre o grupo é conduzida por um facilitador, que tem a função de propor o debate. O facilitador não deve agir como professor ou impor uma solução ou proposta. A ideia é que a solução, decisão, medida ou acordo, surja a partir da contribuição de cada participante do Círculo. Para Kay, em um Círculo chega-se à sabedoria por meio das histórias pessoais. Ali, a experiência vivida é mais valiosa do que conselhos. “Círculos são uma forma de estabelecer uma conexão profunda entre as pessoas, explorar as diferenças ao invés de exterminá-las e ofertar a todos igual e voluntária oportunidade de participar, falar e ser ouvido pelos demais sem interrupção”, explica Kay.

62 Caxias da Paz


Os Círculos usam cinco elementos estruturais para criar um espaço seguro onde as pessoas se ligam às outras de modo positivo, mesmo em circunstâncias de conflito, dano ou dificuldades. Esses elementos incluem: cerimônia, orientações, o objeto da palavra, coordenação/facilitação e decisões consensuais. O objeto da palavra passa de mão em mão, de pessoa para pessoa, dando a volta na roda. O detentor do objeto tem a oportunidade de falar enquanto os demais escutam sem pensar numa resposta, ou pode decidir oferecer um período de silêncio. “O objeto da palavra desacelera o ritmo da conversa e estimula interações refletidas e cuidadosas entre os participantes. Em virtude de somente uma pessoa poder falar de cada vez e de o objeto de fala se

Kay Pranis defende que os Círculos

mover sucessivamente por todas as pessoas, duas pessoas que estejam em desacordo

podem ajudar adultos e jovens

não podem entrar numa altercação durante o momento da raiva”, explica Kay.

a se relacionarem superando os

No Brasil os Círculos já vêm sendo identificados como ferramentas de suma

conflitos com base no diálogo e

importância para as práticas restaurativas, com aplicabilidade em inúmeras áreas,

na construção de relacionamentos

por promoverem o encontro de seres humanos em sua essência e na mais profunda

para promover a solução dos

expressão da verdade.

problemas. O processo envolve

Na Central Judicial de Pacificação Restaurativa, casos envolvendo crimes, disputas e conflitos judicializados são tratados em Círculos. Para o psicólogo Paulo Moratelli, coordenador da Central, embora seja um procedimento sofisticado, se comparado com as audiências judiciais ou mesmo as reuniões de rotina dos serviços da rede socioassistencial, é preciso colocar em perspectiva que um processo judicial demora muito mais do que um processo circular, já que precisa seguir o passo a passo previsto no Código de Processo Penal. “O Círculo envolve um atendimento pessoal demorado, mas no curso do tempo, ele alcança uma solução muito mais rapidamente. Às vezes em um único Círculo você resolve e pronto, enquanto um

todas as partes afetadas no intuito de pacificar alguma situação de desavença, e segue um roteiro estruturado que assegura a autoexpressão e facilita a aproximação das pessoas, gerando um ambiente seguro e protegido onde é possível abordar e propor solução para as questões mais difíceis.

processo pode demorar anos”. Ele destaca ainda que alguns processos judiciais encaminhados para a Central são casos que estão envolvidos com a rede socioassistencial há 10 anos, sem solução. “As pessoas perceberam que investir algumas horas em um Círculo não é uma perda, mas sim um ganho”, compara. Moratelli afirma que hoje a própria rede socioassistencial de Caxias do Sul tem solicitado a realização de Círculos.

Pré-Círculos O pré-círculo é um encontro separado entre facilitador e cada uma das partes (que podem estar acompanhadas de seus familiares ou outras pessoas que as apoiam) envolvidas para conhecer seu ponto de vista e sua disposição frente ao conflito, a

63 Círculos de Paz


“Percebo que, em todos os casos,

fim de avaliar se valerá a pena colocá-la frente a frente com a outra parte. Katiane

os Círculos conseguem trazer à luz

Boschetti da Silveira, coordenadora da Central de Práticas Restaurativas da Infância

uma forte expressão de sentimen-

e da Juventude, percebe que muitas pessoas têm dificuldade em compreender que

tos e sensações que normalmente

preparar o Círculo demanda tempo. “Às vezes é necessário realizar vários pré-

são contidas. O grupo permite

-círculos, antes de promover um Círculo com todos os envolvidos”, explica.

uma construção de espaço seguro e de confiança que consegue ser

Em algumas situações, depois do pré-círculo, chega-se à conclusão de que ainda não

continente para a expressão do

é o momento de reunir aquele grupo de pessoas, que algo mais precisa ser feito antes

afeto, seja doloroso ou amoroso.

disso, ou até que a reunião geral não será necessária. “Por exemplo, uma briga

Embora a expressividade de afeto

entre adolescentes com soqueiras. Os pais já estavam se ameaçando. Eu precisava

seja profunda e intensa, os Círculos

estar segura de que no espaço do Círculo não iria acontecer nada. Nos pré-

também criam uma síntese indivi-

-círculos outras pessoas envolvidas foram indicadas, por fim precisei fazer sete

dual e única para cada indivíduo

pré-círculos. Para ter qualidade, esse trabalho demanda tempo de preparação”,

que consegue ancorar-se em uma síntese mais ampla e coletiva produzindo Integração e Unidade. Os eixos da Razão/Emoção/ Sensação/Intuição são utilizados e despertados, abrindo recursos dinâmicos nos indivíduos participantes, promovendo um amadurecimento individual e das relações. Tenho 29 anos de profissão e posso garantir que poucos instrumentos conse-

explica Katiane. “Para você sentar em um Círculo e fazer com que as pessoas se abram é preciso criar um relacionamento, criar valores, estabelecer limites... depois se fala do problema”, descreve. Paulo Moratelli, coordenador da Central Judicial de Pacificação Restaurativa concorda que o pré-círculo é sempre importante para avaliar interesses, disponibilidade e segurança do procedimento e se o encontro vai ser produtivo. “Uma das coisas que aprendemos é que não devemos pular etapas. Isso comprometeria todo o processo. Muitos casos terão uma condução melhor e serão mais resolutivos se as pessoas tiverem tempo para absorver o que aconteceu. Assim elas terão mais clareza do que estão fazendo no Círculo”,

guem gerar resultados curativos e

justifica Moratelli. O psicólogo defende que o que pode parecer uma demora

eficazes para tantas situações tão

no atendimento é na verdade uma medida de precaução para fazer com que o

diferentes”. Denise Maria Tartarotti Postay, psicóloga, voluntária do projeto

Círculo seja mais rico e mais efetivo. Kay Pranis afirma que, embora tome tempo para construir relacionamentos no Círculo, no final, esta aparente perda de tempo poderá render maior eficiência, pois a saúde dos relacionamentos é a base para criar soluções eficazes e sustentáveis.

Empatia facilita Acordo Para Paulo Moratelli, os processos restaurativos funcionam especialmente quando existe alguma relação entre vítima e ofensor que justifique restabelecer algum vínculo. Cada caso é único. “Praticamente em todos eles podemos usar o Círculo. A questão é para onde direcionar os esforços. E já sabemos que a resposta melhor para os Círculos é onde há uma relação continuada”, explica Moratelli. O psicólogo garante que o foco é relacional. “Esse é o grande ponto em que podemos intervir.

64 Caxias da Paz


A Justiça Restaurativa vem da Justiça Criminal e propõe dar atenção à vítima. Se a vítima tiver a ganhar com o Círculo, tendemos a realizá-lo”, avalia o psicólogo. Katiane Boschetti, coordenadora da Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude relata que busca encontrar o que as pessoas têm em comum. “Tento criar empatia. Quando se conhece outro ser não se quer mais feri-lo. O resultado é permanente”, afirma. “Todo processo envolve significado e pertencimento. Se as pessoas não se sentem parte, a coisa não funciona. Por isso o Círculo funciona,

“O que me envolveu desde o

todo mundo ajuda a controlar o grupo. A decisão tomada é fruto da participação de

início foi perceber que era muito

todos”, completa Moratelli.

resolutivo. Muitas vezes envolver

Para Kay Pranis, no cerne dos Círculos está a importância de reconhecer o impacto

as mesmas pessoas da rede em

de nosso comportamento sobre os outros, bem como a interconexão de nossos

reuniões não resolve as coisas

destinos. “O mal praticado contra um é um mal para todos. O dano de um é um

por um motivo ou por outro.

dano para todos. O bem praticado a um é um bem para todos”, afirma. Kay explica

Eu percebi que no Círculo essas

que o Círculo é um espaço distinto porque convida seus integrantes a entrarem em

mesmas coisas se resolviam, muito

contato com o valor de estarem profundamente ligados entre si. O Círculo incentiva

por causa do objeto da palavra que

as pessoas a deixarem cair as máscaras e defesas que normalmente usam para criar

permite que todos falem, equilibra

uma distância em relação aos outros.

as vozes. Como as perguntas tam-

Kay diz ainda que o Processo em Círculo se baseia num conceito simples: pelo fato de todos desejarem ter um bom relacionamento com os outros, quando se cria um espaço respeitoso e reflexivo, as pessoas conseguem encontrar um terreno em comum, vencer a raiva, a dor e o medo, e por fim chegar a uma condição em que o cuidado mútuo é natural. No Círculo os integrantes partilham experiências pessoais de alegria e dor, luta e conquista, vulnerabilidade e força, a fim de compreender a questão que se apresenta. “Quando alguém conta uma história, mobiliza as pessoas à sua volta em muitos níveis: emocional, espiritual, físico e mental. Os ouvintes absorvem as histórias de modo muito diferente do que se estivessem ouvindo conselhos”, afirma Kay. Kay acredita que os Círculos utilizam o forte desejo de se estar ligado a outros de

bém são dirigidas e objetivas, as resoluções são combinadas, e não impostas. No Círculo restaurativo, além de obter informações, as pessoas podem conversar sobre seus sentimentos e tudo que passaram e estão passando. Eu sei que isso será muito mais eficaz, eficiente e efetivo para essas pessoas do que apenas conversar”. Paulo Moratelli, psicólogo, coordenador da Central Judicial de Pacificação Restaurativa

uma forma positiva como plataforma para desenvolver relacionamentos. “Isso possibilita às pessoas explorarem as questões de modo mais profundo, o que resulta afinal em soluções mais poderosas para problemas ou conflitos difíceis”, afirma. Para Paulo Moratelli, o Círculo proporciona a compreensão de que é impossível ter total razão, ou conseguir que as coisas sejam 100% como se quer. “A forma de resolução dos conflitos é o consenso. Isso é essencial para o Círculo. Quando conseguimos mostrar para as pessoas que raramente se consegue ganhar tudo e que às vezes devemos abrir mão de algo em nome de um bem maior... a paz passa a ser possível”, explica Moratelli.

65 Círculos de Paz


Círculos não fazem milagres O coordenador da Central Judicial de Pacificação Restaurativa e a coordenadora da Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude alertam para a “Quando as pessoas partilham histórias de dor e erros, e deixam cair camadas protetoras revelando-se como seres humanos vulneráveis e batalhadores, nós nos identificamos mais com essas

necessidade de compreender que o Círculo de Construção de Paz pode não ser adequado para resolver certos tipos de problemas. “Não vamos dar conta de uma criança que tem transtornos psicológicos, por exemplo. Podemos fortalecer e organizar a família, mas é uma questão de saúde mental”, explica Katiane. Ela cita também que casos que envolvem dependentes químicos não têm apresentado bons resultados nos Círculos. “A drogadição vai muito além da vontade da pessoa em

pessoas. Fica muito mais difícil

mudar. Então essas duas questões (saúde mental e dependência química) é que não

manter distância daquele outro e

estão ao nosso alcance. O Círculo não é uma varinha mágica”, explica a pedagoga.

deixar de sentir a ligação existente em função da humanidade comum que nos une”. Kay Pranis

Moratelli afirma que, para conseguir resultados em uma situação de dependência psíquica e física de drogas, é necessário mudar todo o entorno social da pessoa. “Isso é um trabalho gigantesco, e sem isso não há solução. Estamos refletindo profundamente sobre isso, mas ainda não temos um caso feliz para contar”, lamenta o psicólogo. Outro grande desafio para facilitadores e coordenadores são situações em que o Círculo revela algum crime. “Temos que ter muito cuidado quando, por exemplo, nos deparamos com uma situação de abuso sexual intrafamiliar. Não podemos permitir que essas pessoas voltem a conviver. É preciso encaminhar a situação para medidas protetivas judiciais”, afirma Moratelli. Susana Córdova Duarte, coordenadora da Central Comunitária de Práticas Restaurativas, compartilha da convicção do psicólogo. “Não podemos nos omitir: se tivermos que passar um caso para a rede, não podemos fugir a essa responsabilidade. Se o Círculo revela uma situação de violência grave, temos o dever de comunicar à rede socioassistencial”, afirma Susana.

66 Caxias da Paz


Entrevista

Kay Pranis avalia processo de implantação de JR em Caxias do Sul Referência mundial em Círculos de Construção de Paz mostra-se impressionada com a amplitude da utilização das práticas restaurativas na cidade 67


A

entrevista concedida pela referência mundial em Círculos de Construção

de Paz, Kay Pranis, ao Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul* foi realizada em novembro de 2013. De Washington D. C. (EUA), Kay avaliou o processo de adoção da Justiça Restaurativa como política pública na cidade, falou sobre sua compreensão a respeito do ser humano e do potencial da aplicação dos Círculos de Construção de Paz como instrumento de pacificação social:

Núcleo: Faz um ano que o Núcleo de Justiça Restaurativa começou a operar aqui em Caxias. Você veio várias vezes promover formações de facilitadores. Como você avalia a evolução do que está sendo realizado aqui em Caxias do Sul? Kay: Eu falo muito sobre o que está sendo feito em Caxias quando eu dou treinamentos por aqui (EUA). Acho incrível que faça apenas três anos desde a primeira vez que eu estive em Caxias do Sul para falar sobre Círculos de Construção de Paz. É impressionante ver o desenvolvimento do projeto em tão pouco tempo e constatar o número de pessoas envolvidas e engajadas em realizar Círculos. Eu acho tudo isso maravilhoso. Acredito que será um modelo para outras cidades, e isso inclui cidades norte-americanas – o que me deixa muito animada!

Núcleo: Ao ouvir falar da Justiça Restaurativa pela primeira vez, algumas pessoas resistem à ideia de que ela possa funcionar no Brasil. O argumento é que o tipo de violência que enfrentamos aqui é muito pior do que, por exemplo, nos Estados Unidos, ou na Nova Zelândia (países que têm aplicado a Justiça Restaurativa), então isso não vai funcionar para o Brasil… Kay: Quanto mais violenta for a situação, quanto mais complicados forem os problemas é exatamente onde temos que promover uma mudança maior na cultura de resolução de conflitos. O processo do Círculo é uma ferramenta para criar transformação social. Então eu acho que o Brasil vai se beneficiar mais ainda do que os Estados Unidos e a Nova Zelândia, por exemplo. As expressões de violência de vocês podem ser mais intensas que as que enfrentamos aqui; os problemas podem se manifestar de formas diversas, mas a natureza humana é a mesma. As possibilidades positivas fundamentais dos Círculos permanecem. Esse tipo de processo tem sido usado por nações em circunstâncias mais violentas que o Brasil, por exemplo em Serra Leoa, na África, onde as comunidades tiveram que receber e reintegrar os garotos-soldados que haviam feito coisas horríveis.

68 Caxias da Paz


Existem também algumas semelhanças entre os Estados Unidos e o Brasil: ambos lidam com uma história de escravidão e com a desigualdade econômica. Somos dois países vibrantes e criativos. Se a Justiça Restaurativa tem produzido resultados surpreendentes aqui e em Serra Leoa, isso significa que o mesmo pode acontecer em qualquer lugar do mundo, inclusive no Brasil.

Núcleo: Você afirma que os Círculos podem ser aplicados em qualquer situação, independente do nível de violência ou do crime que tenha sido cometido? Kay: Sim. Não importa que a situação seja muito violenta. Isso pode significar que o processo seja mais demorado. Quanto mais violenta a situação, mais devagar e cautelosamente você precisa proceder, mas as ideias e propósitos fundamentais não mudam.

Núcleo: Recentemente um profissional que trabalha com adolescentes infratores em Caxias soube que o caso seria tratado por meio de práticas restaurativas e lamentou: “que pena que tal adolescente foi encaminhado para procedimento restaurativo, porque ele não tem solução”. Como engajar os servidores, ou passar-lhes segurança sobre os métodos restaurativos? Kay: As pessoas viveram a vida toda de outra forma e elas não mudam da noite para o dia. O processo circular assume como princípio fundamental que todos nós nascemos com o impulso de ter bons relacionamentos com os outros e que todos nascemos com o conhecimento do que é necessário para que isso aconteça. O que acontece é que, na verdade, as pessoas têm experiências de vida que as desconectam desta visão. O nosso sistema atual nos ensina a acreditar que algumas pessoas são ruins. Somos convencidos de inúmeras formas que precisamos ferir os outros quando eles nos ferem. Se você tem pessoas céticas em meio à comunidade, em primeiro lugar você não as julga. Você respeita que essa é a forma como elas estão se sentindo naquele momento. A partir disso, você procura criar oportunidades para que elas participem dos processos circulares. Ao participar dos Círculos, descobrimos que a principal necessidade do ser humano é pertencer de uma forma positiva a outro ser humano, então tentamos apelar a isso. Então é nisso que focamos. No processo circular contam-se histórias: isso humaniza a todos e essas classificações de bom ou mau acabam se dissipando, porque a pessoa pode ter feito uma coisa ruim, mas aquilo não é tudo que ela é. O Círculo proporciona a visão integral do ser humano. Temos que dar ao cético a oportunidade de participar de um Círculo e ver como o processo funciona e o que acontece. Não significa tentar convencer. Quando as pessoas são forçadas

69 Entrevista


a fazer algo, não funciona; elas precisam voluntariamente experimentar alguma coisa que contraponha a sua crença. Se elas acreditam que aquele jovem é muito mau, você cria oportunidade para que vejam que o jovem já fez algo bom. Outro ponto a ser considerado é que muitas pessoas em sua raiva e no seu julgamento estão falando por si. Então é importante criar espaços onde funcionários do sistema tenham a oportunidade de experimentar os Círculos para tratar de si, de seus relacionamentos. É preciso proporcionar-lhes um lugar onde eles tenham plena liberdade para falar, onde todos estejam escutando cuidadosamente o que eles têm a dizer. Muitas pessoas em suas vidas e no seu trabalho sentem que nunca são ouvidas. Precisamos criar essas oportunidades. Essas são algumas estratégias para trabalhar no nível individual. É um processo que precisa ser promovido com muito cuidado. Devemos pensar em como promover essa mudança e não apenas dizer para as pessoas que elas estão erradas. O ideal é criar espaços para que as pessoas experimentem mudanças em suas vidas…

Núcleo: Basicamente os Círculos são fundamentados na ideia de que as pessoas são boas? Kay: Bem… os Círculos assumem que as pessoas têm o potencial para o bem e para o mal. Não estamos tentando negar o mal e as coisas horríveis que as pessoas fazem. Mas todos também têm o potencial para o bem. A pergunta é: qual destes dois potenciais vamos alimentar? O que nós vamos fazer nas nossas interações com os outros? O nosso contato com os demais nutre o potencial positivo do ser humano ou o negativo? Com certeza as culturas modernas tendem a nutrir o negativo. A competição, as formas com que retaliamos as coisas que não gostamos, a desconexão, o egoísmo… Tem muito potencial negativo sendo operado no nosso sistema… Nós podemos mudar isso. Nós podemos ser mais intencionais ao incentivar o potencial positivo nas pessoas e essa é a proposta dos Círculos. Ser intencional na procura do melhor nas pessoas e ajudá-las a encontrar o melhor em si. As duas principais necessidades do ser humano são: significado e pertencimento. Os seres humanos farão qualquer coisa para tentarem se afirmar ou pertencer. Muitos dos comportamentos que causam dano são tentativas de suprir a necessidade de pertencer e de ter significado na vida. Eles sentem que não têm lugar, que não têm voz para ninguém… e tentarão criar isso de uma forma negativa se não tiverem a oportunidade de fazê-lo positivamente. O Círculos promovem um senso positivo de significado e pertencimento. Se promovermos essas sensações de significado e pertencimento de uma forma positiva, então menos seres humanos se envolverão em comportamentos violentos e danosos para os seus semelhantes.

70 Caxias da Paz


Núcleo: Este é um momento chave para o Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul. Estamos estabelecendo processos, fixando procedimentos, elaborando questionários de avaliação… O que você sugere para mantermos um trabalho duradouro e eficaz em Caxias do Sul e não cairmos na burocratização? Kay: Algumas coisas são muito importantes para manter um projeto de longo prazo. Antes de mais nada, o trabalho tem que ser fortemente fundamentado em valores. Precisamos falar sobre os valores frequentemente. O formato do Círculo e os procedimentos padrão não podem ser usados apenas para resolver problemas, mas precisam ser usados para criar relacionamentos. Devemos incentivar que eles aconteçam em todos os lugares: em meio à comunidade, entre as famílias, vizinhos… Essa ideia de conversarmos de forma significativa precisa tornar-se uma norma em nossas vidas. Uma vez que isso se solidifique como um padrão de ação, você vai recorrer a esse tipo de conversa nas situações mais difíceis. Não podemos fazer Círculos sempre que aconteça algo horrível. Se o processo for utilizado em todos os tipos de contato e na construção de relacionamentos, vamos aumentar nossa capacidade de conversar pacificamente, mesmo envolvidos em uma circunstância terrível. Precisamos ter muitas conversas sobre equilíbrio. O que é equilíbrio e como queremos nos posicionar no mundo. Um outro aspecto que precisa ser observado é o enganjamento organizado do cidadão comum. As pessoas precisam sentir-se responsáveis pela qualidade de vida da sua comunidade. Cidadãos comuns precisam acreditar que eles podem fazer a diferença e que eles têm a responsabilidade de se envolver. Temos que “desprofissionalizar”. Temos que entender que essa transformação não é realizada apenas pelo agente social ou pelos funcionários do sistema judiciário: é dever de cada cidadão. As pessoas precisam trocar informações sobre como o seu comportamento afeta os outros. É preciso estrutura no sistema formal, mas essa estrutura deve estar sempre envolvendo pessoas da comunidade. Isso não é fácil. Ninguém pode dizer o que funciona para uma comunidade na qual não está inserido. Cada comunidade precisa descobrir por si.

* Entrevista e tradução livre: Caroline Pierosan

71 Entrevista



Sociedade Civil

Fundação Caxias aproxima sociedade civil da JR Entidade quer conscientizar empresários de que a promoção da Cultura de Paz é, também, responsabilidade do setor. Fundação pretende manter gestão financeira do Núcleo de JR 73


O

compromisso formal com a gestão financeira do Núcleo de Justiça

Restaurativa de Caxias do Sul foi assumido pela Fundação Caxias do Sul em novembro de 2012. Entretanto, a entidade esteve envolvida em todo o processo de elaboração do projeto, que começou em 2010. O Vice-Presidente da Fundação, Samuel Avilla, então coordenador de Projetos da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social, no período 2010-2012 participou da redação do Termo de Cooperação e posteriormente do convênio entre a Fundação Caxias, AJURIS, Universidade e Prefeitura de Caxias do Sul. “O Estado geralmente chega depois que o crime já aconteceu, até por sua função legal. Como a Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social de Caxias trabalha fortemente a prevenção, achamos por bem investir na Justiça Restaurativa”, explica Avilla. “Se queremos equipes fortes e produtivas, precisamos entender que todos estão interligados, dependem e precisam da paz em seus lares, na comunidade. Isso beneficia toda a sociedade”. Paulo Poletto, Presidente da Fundação Caxias do Sul

A Fundação é considerada o braço social da Câmara de Indústria e Comércio de Caxias do Sul e da Câmara de Dirigentes Lojistas da cidade. “Eu entendo que o chamamento dos empresários é fundamental. Todo mundo reclama da violência, mas deixam tudo para a Polícia, o Ministério Público e a Justiça. Precisamos participar de forma ativa nessa questão, e a Justiça Restaurativa possibilita isso, além de ser uma ótima estratégia de prevenção à criminalidade. Apoiar essa ideia através da Fundação é uma forma de trazer a classe empresarial para a discussão e aplicação do projeto”, justifica Avilla. Paulo Poletto, atual Presidente da Fundação Caxias, afirma que a entidade se destaca pela capacidade de articulação através de ações conjuntas com todos os setores da sociedade. “Sabíamos que poderíamos ser úteis neste processo de implantação da Justiça Restaurativa como política pública em Caxias do Sul”, explica Poletto, que também integra o Conselho Gestor do Núcleo de JR. A Fundação Caxias do Sul recebe a verba destinada pela Prefeitura para o Núcleo de Justiça Restaurativa, administra os recursos e realiza o pagamento dos funcionários envolvidos além de ter a responsabilidade fiscal e trabalhista perante o governo. A decisão de desenvolver o trabalho gratuito de gestão financeira para o Núcleo foi tomada com o intuito de conscientizar a classe empresarial de que promover uma Cultura de Paz na cidade é, também, responsabilidade do setor. “Queremos mostrar que a Paz é um bem comum e possível. Desejamos estimular que a convivência pacífica comece nas famílias e comunidades. Isso vai refletir lá nas empresas, nos locais de trabalho”, argumenta Poletto.

74 Caxias da Paz


Poletto reassumiu a Fundação em junho de 2013, mas integra o grupo desde o ano 2000. Para ele, o setor empresarial deve ser o primeiro a pensar em segurança pública, porque os empresários sofrem diretamente as consequências da insegurança em suas empresas. “Um funcionário que é pai, e chega para trabalhar com situações de conflito dentro de casa, com um filho preso ou envolvido com o crime: qual o nível de produtividade que essa pessoa vai ter?”, questiona.

“A Fundação Caxias do Sul tem integrado o grupo que compõe a Justiça Restaurativa com o intuito de aproximar a classe empresarial de nossa cidade de uma proposta

O Presidente da Fundação acredita que, se a classe empresarial investir em

que vai além de discutir segurança

uma sociedade de paz, em melhorar a qualidade de vida das pessoas que

pública. Queremos auxiliar na

compõem a comunidade, vai sentir os reflexos positivos em suas empresas.

adoção da metodologia da

“Se queremos equipes fortes e produtivas, precisamos entender que

Justiça Restaurativa em Caxias

todos estão interligados, dependem e precisam da paz em seus lares e na

do Sul, buscando estratégias

comunidade. Isso beneficia toda a sociedade”, conclui.

de prevenção, de modo que as soluções cheguem antes do crime e/ou do delito”. Paulo Poletto, Presidente da Fundação Caxias do Sul

Continuidade na Gestão A Fundação Caxias do Sul foi fundada em 1969 e se autointitula o “braço social dos empresários caxienses”. A Fundação tem como característica o desenvolvimento de ações e Programas Socioassistenciais, Ambientais, Educativos e de Inclusão Social. Como entidade social sem fins lucrativos, com o objetivo de centralizar o recolhimento e a distribuição de donativos às famílias necessitadas, a Fundação Caxias ajuda na promoção da Justiça entre a comunidade caxiense. “A missão da Fundação é promover a qualidade de vida em Caxias do Sul. Acreditamos que não há qualidade de vida na segregação e na punição desumana das cadeias e dos centros de detenção de menores. Toda a desavença que separa as pessoas torna suas vidas piores”, explica Poletto. “Reconciliação e convivência pacífica também fazem parte de uma vida com qualidade”, pontua ele. O Presidente da Fundação Caxias assegura que a entidade tem interesse em permanecer vinculada ao Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul. “Somos defensores dessa área e queremos continuar. Queremos permanecer enquanto o projeto tenha vida”, projeta Poletto.

75 Sociedade Civil


76 Caxias da Paz


Academia

UCS planeja pesquisa e ensino de Justiça Restaurativa Em 2014 devem ser desenvolvidos cursos de extensão e pesquisa científica, com o intuito de produzir publicações internacionais sobre a experiência pioneira da JR como Política Pública em Caxias do Sul 77


A

Universidade de Caxias do Sul sedia a Central de Práticas

Restaurativas da Infância e da Juventude. A ideia de ceder o espaço surgiu a partir do envolvimento de alguns docentes com a JR. E não se trata apenas de espaço físico, mas principalmente espaço institucional e acadêmico. A primeira entusiasta do projeto foi a Professora Fernanda Schmidt, então Diretora do Curso de Direito, que incentivou o projeto e apoiou a professora Remi Soares, uma das primeiras a buscar conhecimento e capacitação na matéria. Professora de Direito Internacional, Remi também é acadêmica do curso de psicologia e foi a primeira coordenadora designada para gerenciar o projeto junto à Faculdade. “Remi começou a participar dos Círculos de Construção de Paz desde 2010, principalmente através de casos judicializados atendidos pelo Posto do CEJUSC (Centro Judiciário de Solução de Conflitos

e Cidadania) que funciona na UCS. A partir daí, o corpo docente teve conhecimento da filosofia e se envolveu com o movimento”, explica Cláudia Hansel, professora de Direito da UCS e coordenadora do Posto do CEJUSC. Em 2011, quando o projeto do Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul começou a ser elaborado, a Universidade decidiu se envolver efetivamente com a proposta cedendo o espaço físico e os recursos de infraestrutura hoje utilizados pela Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude, que funciona no prédio do Direito, junto ao Posto do CEJUSC. A intenção da UCS é implementar cursos de extensão a partir do primeiro semestre de 2014 e promover pesquisa científica sobre as práticas dos Círculos de Construção de Paz. “Estamos elaborando um projeto de pesquisa interdisciplinar que envolve professores do Direito, da Psicologia, da Biologia e da Sociologia. Queremos diagnosticar os efeitos da prática dos Círculos nas comunidades escolares e produzir publicações internacionais sobre a experiência brasileira com JR”, explica Cláudia. Outra meta da Universidade para o próximo ano é transmitir conhecimentos sobre JR para os acadêmicos de Direito. “Precisamos desmistificar a Justiça Restaurativa para os alunos do Direito de Caxias do Sul. Muitos têm a ideia errada de que estamos acabando com a sanção penal, e não é nada disso. Queremos mudar esta concepção, mostrar a importância da prevenção à violência e promover a Cultura da Paz. Sabemos que as medidas punitivas não têm cumprido o propósito de restaurar as pessoas, então o Direito precisa buscar um novo caminho”, conclui a coordenadora do Posto do CEJUSC.

78 Caxias da Paz


O Diretor do Curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul, professor José Carlos Monteiro, considera que a mediação de conflitos e a ótica restaurativa são caminhos inevitáveis para a sociedade hoje. “A FIERGS assinou com a CIC um convênio criando a mediação de conflitos entre indústrias, comércio e empresas de serviços. Se até na área econômica isto já está acontecendo, é claro que no âmbito social é imprescindível. Com a demora dos processos no sistema judiciário, a sociedade toda caminha para a mediação”, explica Monteiro. Ele salienta que a Universidade, além de abrigar uma das Centrais, também participa ativamente da iniciativa integrando a Comissão Executiva do Conselho Gestor. “Vamos promover os cursos de extensão, no futuro pretendemos colocar uma disciplina eletiva de JR no curso de Direito e planejar uma pós-graduação nesta área. Também queremos oferecer estágios em JR na Central Restaurativa da UCS para os alunos do Direito”, afirma o Diretor. Monteiro avalia que até então a repercussão social da implantação da Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude na UCS é muito positiva. “Eu percebo que a população se sente segura em saber que temos essa iniciativa na Universidade de Caxias do Sul”, comemora o Diretor. De acordo com o Vice-Reitor da UCS, José Carlos Köche, é importante que a Central funcione junto à Universidade. “A negociação e a cultura do diálogo deverão sempre sobrepor-se à cultura do conflito. Produzir a paz em vez da pena é ganho para todos”, explicou. Köche destacou ainda que, apoiando a Central, a UCS cumpre um dever para com a sociedade e para com a academia, visto que a Central funciona como laboratório do Centro de Ciências Jurídicas.

79 Academia



Poder Executivo Municipal

Município assume a JR como Política Pública de Pacificação Social Prefeito e Secretário de Segurança reafirmam a importância de uma Lei Municipal para que a Justiça Restaurativa se torne prática permanente na cidade e asseguram suporte ao projeto 81


Programa Municipal de Pacificação Restaurativa vem sendo denominado, na comunicação com a comunidade local, “Caxias da Paz”

P

ara a Administração Pública Municipal a avaliação do primeiro ano do

convênio entre Prefeitura de Caxias do Sul, UCS, Fundação Caxias e Judiciário para sustentar o Núcleo de Justiça Restaurativa na cidade é positiva. “É um projeto-piloto. Somos pioneiros no Brasil, não temos referência nacional para compararmos o que vem sendo feito. Como estamos criando tudo novo, precisamos de mais tempo para avaliar profundamente a atuação da Justiça Restaurativa na sociedade caxiense, mas, até então, estamos satisfeitos e entusiasmados”, afirma Alceu Barbosa Velho, Prefeito de Caxias do Sul. O Prefeito afirma que durante a atual gestão o governo tem intenção de sustentar o Núcleo de Justiça Restaurativa continuamente. “Desde o primeiro momento em que tive conhecimento dos princípios da Justiça Restaurativa, ainda enquanto Deputado Estadual, planejei que, se um dia me tornasse Prefeito de Caxias do Sul, eu traria essa proposta para a cidade”, conta. “Por isso acredito que o projeto de lei que vem sendo elaborado pelas lideranças do Núcleo de JR tem grande potencial de aprovação”, afirma Barbosa Velho. O Diretor-Geral da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social e responsável pela gestão do Programa, José Francisco Barden da Rosa, assegura a renovação do convênio e a continuidade do projeto em 2014. O acordo executado em 2013 contou com subsídios de R$ 267 mil reais. Além de financiar o Núcleo e dispor de servidores para atuarem no programa, a Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social conta com apoio de outros setores do Município, como a Secretaria Municipal da Educação e

82 Caxias da Paz


a Fundação de Assistência Social (FAS), e Secretaria Municipal da Saúde, que designaram profissionais do quadro de carreira para atuarem como facilitadores. Ao final do primeiro ano de atividades, são 13 as pessoas disponibilizadas pela Prefeitura para atuar no programa, sendo 10 profissionais de nível superior e 3 administrativos, alguns do quadro de carreira e outros contratados, uns com carga horária integral, outros parcial. Diretamente junto ao Núcleo e Centrais atuam 2 profissionais na Coordenação do Núcleo, 2 facilitadores e 1 secretária na Central Judicial, 3 facilitadores e 1 secretário na Central da Infância e da Juventude, 4 facilitadores e 1 secretária na Central Comunitária. Além desses, profissionais das diversas secretarias e da FAS aplicam práticas restaurativas nos seus locais. A expectativa é de que, em todas as áreas, os servidores apliquem cada vez mais os princípios da JR em sua rotina de trabalho. “Estamos capacitando em Justiça Restaurativa não apenas os nossos, mas também os servidores da Brigada Militar que atuam no policiamento comunitário. Os 35 novos guardas municipais que devem começar a atuar no próximo semestre também receberão formação nesta filosofia”, explica o Coronel Roberto Louzada, Secretário Municipal de Segurança e Proteção Social de Caxias do Sul. “Temos acompanhado com muito entusiasmo as ações do Núcleo. Ainda não podemos medir a relação direta dos efeitos das práticas, mas o número de homicídios, que é o principal dado indicador da violência em uma cidade, caiu. No ano passado foram registrados 137 crimes deste gênero. Em 2013, acreditamos que vamos terminar o ano com menos de 100 homicídios em Caxias do Sul”, prevê Louzada. O Secretário de Segurança também apoia a aprovação da Lei Municipal que garantirá que a Justiça Restaurativa se torne prática permanente na cidade. “Eu não vou estar aqui para sempre, o Prefeito também não, então precisamos, nesta gestão, colaborar para que esta Lei seja criada e aprovada. Queremos deixar este legado da Cultura da Paz para Caxias do Sul”, afirma Louzada. “A participação do Município no embate à violência e a busca de uma Cultura de Paz se faz, também, por iniciativa arrojada e articulada, procurando novos modelos que funcionem e produzam resultados alternativos para uma sociedade mais justa e compreensiva. A implantação de Centrais de Justiça Restaurativa em Caxias do Sul em parceria com o Poder Judiciário é um projeto de referência como política pública voltada à Pacificação e à Restauração de conflitos, onde a harmonia, o diálogo e o equilíbrio criam oportunidades e acordos de convergência social. Nosso comprometimento com o projeto através de um envolvimento objetivo e prático é a nossa meta. Acreditamos nos princípios e práticas da Justiça Restaurativa e nos resultados para nossa sociedade, os quais certamente teremos brevemente”. (Roberto Soares Louzada, Secretário Municipal de Segurança Pública e Proteção Social)

83 Poder Executivo Municipal



Poder Judiciário

Judiciário gaúcho institucionaliza e expande a JR como alternativa de solução de conflitos Artigo de Leoberto Brancher, Juiz de Direito 85


A

construção da Justiça Restaurativa no Rio Grande do Sul é fruto de

um processo histórico, que veio se consolidando na prática e de baixo para cima, para pouco a pouco ganhar institucionalidade. Desde as primeiras experiências, iniciadas em 2002 no Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre, até 2012, quando a Lei n. 12.594/2012 dispôs sobre a aplicação de medidas restaurativas no atendimento a adolescentes em conflito com a lei, ou 2013, quando o Conselho

Nacional de Justiça incluiu a Justiça Restaurativa na política nacional de solução de conflitos, um longo caminho vem sendo trilhado. Desde 2005 funcionava experimentalmente uma Central de Práticas Restaurativas no Juizado da Infância e da Juventude da Capital. O serviço foi oficializado por ato do Conselho da Magistratura em abril de 2010. No final de 2011, avaliada e aprovada a experiência da capital, a Corregedoria-Geral da Justiça passou a estudar meios de difundir essas práticas para todo o Estado. Em 2012, a Justiça Restaurativa foi incluída no Planejamento Estratégico do Tribunal de Justiça, por decisão do Conselho de Administração. Ato contínuo, o NUPEMEC – Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos aprovou a parceria com a Prefeitura de Caxias do Sul para que se iniciasse uma nova experiência piloto de implantação das práticas restaurativas, agora numa concepção ampliada – não mais restrita a um serviço judiciário voltado à infância e juventude, mas, enquanto tal, abrangendo todas as áreas de competência. E, mais do que como um serviço judicial, como uma política pública interinstitucional da qual o Judiciário é mais um dos protagonistas. Nesse processo foi decisivo não só o apoio institucional do Poder Judiciário, mas também a contribuição efetiva da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS, e da sua Escola Superior da Magistratura. Essa combinação de fatores gerou resultados tão propícios que a introdução da Justiça Restaurativa no Judiciário do Rio Grande do Sul muitas vezes se entrelaça e, às vezes, até se confunde com a trajetória da proposta no Brasil. Por certo muito desses resultados são devidos à responsabilidade social, ao senso de compromisso institucional e à compreensão de que a novidade restaurativa é tão promissora que merece ser amplamente socializada. Por isso os magistrados gaúchos e suas instituições avançam agora na formulação de um modelo organizacional que permita a expansão e a sustentabilidade das práticas restaurativas em todo o Estado. Nesse sentido, parte-se do reconhecimento de que o Judiciário não pode mais absorver e, menos ainda, esgotar em si toda a gama de conflituosidade social – que hoje reverte em imensos índices de litigiosidade, sendo o Rio Grande do Sul o Estado com maior número de demandas judiciais “per capita”. A compreensão

86 Caxias da Paz


POLÍTICA JUDICIÁRIA

POLÍTICA MUNICIPAL

de que a “função de justiça” não se confunde com a “instituição da justiça”, e que portanto a missão de pacificar conflitos pode e deve ser compartilhada entre diferentes segmentos do Estado e da sociedade civil, é definição exemplar assumida pelo Poder Executivo de Caxias do Sul e retratada neste relatório. É preciso convir ainda que, se o Judiciário sozinho não haverá de exaurir a missão de pacificação social, demandando para isso o concurso e o protagonismo integrado das demais políticas públicas, tampouco apenas o Poder Público haverá de dar conta de tamanha tarefa, por melhor que arregimentadas e articuladas as suas forças. Necessário portanto que a sociedade civil, por seus mais diversos agrupamentos associativos, e os cidadãos voluntários se engajem na tarefa de marcarem presença na pacificação dos conflitos ali, onde e quando eles acontecem, em tempo real, conferindo ao processo uma plasticidade criativa compatível com os desafios da vida tais quais eles se apresentam. E uma inteligência ética e complexa assim não surge por lampejos, senão que se constrói a partir da experiência vivida e da lição aprendida. Trata-se de uma nova “ratio” que se constrói pela dedicação ao campo do conhecimento teórico e pela instauração de comunidades de aprendizagem das práticas, criando oportunidades para explorar e difundir não somente os novos conceitos, mas sobretudo as novas competências operacionais relacionadas à facilitação dos conflitos. Poder Judiciário, Poder Executivo, Sociedade Civil e Academia estão postos aí os quatro pilares da arquitetura restaurativa sistêmica a que a experiência de Caxias do Sul se propõe e se desafia a testar.

87 Poder Judiciário


Por outro lado, é nossa intenção declarada que possamos seguir um modelo organizacional que possa ser acolhido e, quanto possível, até mesmo subsidiar a replicação dessas práticas em todo o País, através da sua integração à política nacional de solução de conflitos do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Para isso é preciso ter em vista a Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que formulou essa política nacional, originalmente com ênfase na conciliação e mediação, aplicáveis a casos cíveis e de família. Com essa medida, o CNJ determinou também a criação de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) em todas as comarcas, a começar pelas mais populosas. Inicialmente denominados Centrais de Conciliação e Mediação, seguindo um modelo que já existia em Porto Alegre desde 2008, os CEJUSCs chegaram às principais cidades do interior gaúcho – Passo Fundo, Pelotas, Santa Maria e Caxias – as quatro comarcas de entrância final, em 2011. Em Caxias do Sul, o serviço foi instalado oficialmente em julho de 2011. Em janeiro de 2013, quando a Resolução do CNJ recebeu uma emenda que, entre outros aprimoramentos, passou a prever também o uso da mediação penal e outras práticas da Justiça Restaurativa nos casos judiciais ou extrajudiciais atendidos pelos CEJUSCs, o Tribunal de Justiça gaúcho já se adiantava a passos largos nesse caminho. O CEJUSC de Caxias do Sul, em parceria com o Município, a Universidade de Caxias do Sul e a Fundação Caxias, seria o primeiro do Estado a oferecer o atendimento mediante as práticas restaurativas. Estava-se definindo aí um modelo organizacional a ser utilizado nas demais comarcas, a exemplo do que passou a acontecer em Pelotas e, mais recentemente, também em Porto Alegre, onde o Tribunal de Justiça estuda um plano para que a Central de Práticas Restaurativas do Juizado da Infância e da Juventude seja absorvida pelo CEJUSC do Foro da Capital. Estão dadas aqui as primeiras pinceladas para o desenho de um organograma tridimensional, idealmente apto a potencializar a atuação integrada e sinérgica de três vetores de impulsionamento do movimento restaurativo, simultaneamente como política pública e como movimento social. No eixo vertical, a política nacional judiciária; no eixo horizontal, as políticas públicas atuantes no âmbito municipal. E no eixo transversal, dando profundidade e perspectiva, os cidadãos que se responsabilizam ativamente pela pacificação de cada cidade.

88 Caxias da Paz


Anexo

RELATÓRIO DE MONITORAMENTO A Introdução da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim1 1 – Pesquisadora Responsável (Mestre em Serviço Social – PUCRS; professora da Universidade de Caxias do Sul e pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisas em Ética de Direitos Humanos da PUCRS coordenado pela professora Beatriz Aguinsky).

89


1. Apresentação No Município de Caxias de Sul2 (RS), a Justiça Restaurativa está sendo desenvolvida a partir de um conjunto de iniciativas que envolvem o Poder Público Municipal, o Poder Judiciário, a Universidade de Caxias do Sul (UCS), a Fundação Caxias e a comunidade com o objetivo da pacificação de conflitos e violências. Assim, construiu-se um projeto inicial, o qual está em fase de implementação e é executado pelo Poder Público Municipal, através da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social, em parceria com a Fundação Caxias3. O projeto é fruto de convênio entre o Poder Judiciário e a Prefeitura de Caxias do Sul. Conforme Leoberto Brancher, Juiz responsável, “[...] o convênio trata-se da primeira Política Pública de Pacificação Social fundada com princípios e práticas de Justiça Restaurativa com colaboração do Poder Judiciário”. A Segurança Pública, conforme o artigo 144 da Constituição Federal de 1988, é “[...] dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, [e] é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (BRASIL, 1988, s/p). Nesse sentido, as ações em Justiça Restaurativa reforçam o papel desta, sobretudo no âmbito das ações locais, objetivando garantir à população “[...] programas de acesso à justiça e a mecanismos de resolução pacífica de conflitos” (GUINDANI, 2004, p. 82). A interface entre Segurança Pública e Justiça Restaurativa corresponde a “[...] um direito social à coletividade, favorecendo, como não poderia deixar de sê-lo, uma maior participação da cidadania” (PAZINATO, 2012, p. 97). Neste contexto, destaca-se o papel das atividades de monitoramento das práticas de Justiça Restaurativa, as quais – no Município de Caxias do Sul – fazem parte do projeto em seu escopo inicial e decorrem da aplicabilidade do conhecimento socialmente produzido, especialmente no que se refere a sua contribuição para a qualificação das ações. A pesquisa com foco no monitoramento em Justiça Restaurativa está respaldada pela ONU, uma vez que: O Conselho Econômico e Social da ONU, ao definir “Princípios Básicos para Utilização de Programas de Justiça Restaurativa em 2 – O Município de Caxias do Sul, localizado na Região da Serra Gaúcha, conta atualmente com uma população de 435.564 habitantes, em uma área de 1.644,296 km2, possuindo uma densidade demográfica de 264,89 habitantes por km2. Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. 3 – A Fundação Caxias do Sul “[...] é uma entidade social sem fins lucrativos, fundada em dezembro de 1969, por um grupo de empresários caxienses com o objetivo de centralizar o recolhimento e distribuição de donativos às famílias necessitadas, desenvolvendo assim a MISSÃO de Promover a Qualidade de Vida em Caxias do Sul. A partir deste trabalho passou a desenvolver Ações e Programas Socioassistenciais, Ambientais, Educativos e de Inclusão Social”. Fonte: <http://www.fundacaocaxias.org.br/institucional>.

90 Caxias da Paz


Matéria Criminal”, encoraja os Estados-membros, em cooperação com a sociedade civil, a promoverem pesquisas e avaliações sobre programas de justiça restaurativa. A importância de pesquisas e avaliações na área, segundo a Resolução 2002/12, de 24.7.02, estaria relacionada à possibilidade de aquilatar-se em que medida os programas avaliados alcançam resultados restaurativos. (AGUINSKY et al., 2008, s/p)

Entretanto, é notório que no Brasil tal prática de monitoramento ainda ocorre de modo incipiente: “[...] são recentes os estudos e avaliações sobre esses programas” (AGUINSKY et al., 2008, s/p). Tendo por base tais considerações, entende-se que o monitoramento implica não apenas examinar o impacto dos resultados, mas, sobretudo, a partir de sua feição longitudinal, acompanhar o processo que está em curso. Nesse sentido, a abordagem desenvolvida privilegiou a observação participante e o acompanhamento de todo o projeto, no período de novembro de 2012 a outubro de 2013, propondo-se alcançar a processualidade da experiência. Destarte, este documento tem por finalidade a apresentação de dados compilados e analisados durante o período mencionado.

1.2 Apresentando a pesquisa “[...] a realidade é uma construção social da qual o investigador participa” (MARTINELLI, 1999, p. 35). A proposta do monitoramento da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul foi projetada desde a construção do projeto, de modo que as ações referentes a esta pesquisa passaram a ser executadas com a assinatura do convênio. A participação da pesquisadora teve seu início na reunião de planejamento geral do projeto (dezembro de 2012), na qual estavam presentes todos os atores sociais envolvidos na sua construção e implementação. O percurso da pesquisa4 objetivou acompanhar a experiência de implementação, caracterizando-se por seu recorte longitudinal, consoante as referências de Selltiz, Wrightsman e Cook (2004), considerando que o projeto está em seu primeiro ano de execução.

4 – Registra-se que, na etapa de coleta de dados, inseriu-se na pesquisa a acadêmica do Curso de Serviço Social da UCS, Carla Graziela Brambatti Batista.

91 Anexo


Orientando-se por uma abordagem sistemática e continuada na coleta de informações, a pesquisa se caracterizou como uma abordagem qualitativa do tipo intencional e exploratória5, utilizando, em algumas etapas, dados quantitativos. Na fase exploratória, o levantamento consistiu na identificação dos dados necessários à pesquisa (CRESWELL, 2010), proporcionando levantamento quantitativo e interpretação qualitativa. Sob o ponto de vista metodológico se salienta que os procedimentos adotados conformam o que Minayo (1992) denomina de “prática exercida na abordagem da realidade”. Neste percurso a pesquisa, do tipo monitoramento, foi trabalhada a partir de sua finalidade, que consiste no acompanhamento da implementação de uma política social, programa ou projeto. Conforme plano de trabalho, construiu-se a seguinte delimitação de pesquisa: estudo longitudinal sobre o processo de implementação da Justiça Restaurativa no Município de Caxias do Sul, no período de novembro de 2012 a outubro de 2013. O objetivo foi estabelecido nos seguintes termos: investigar quais as repercussões da aplicação de princípios e referenciais teórico-metodológicos da Justiça Restaurativa no Município de Caxias do Sul, com vistas a subsidiar o aprimoramento destas iniciativas enquanto política pública de pacificação social.

1.2.1 Procedimentos metodológicos Diferentes procedimentos metodológicos – conforme síntese apresentada no QUADRO 1 – foram utilizados, agregando-se coleta de dados primários e secundários. Os dados primários referem-se àqueles produzidos no percurso da pesquisa e foram obtidos por meio da observação participante6 e do diálogo reflexivo com os diferentes atores envolvidos. Os dados secundários se relacionam com a pesquisa documental de informações já existentes, a partir da sistematização e análise de documentos, tais como os instrumentos de registros utilizados pelas equipes que desenvolvem práticas nas instituições envolvidas. Assim, o conteúdo da pesquisa documental foi composto por textos já produzidos e que serviram de matéria-prima ao exercício de análise.

5 – Marconi e Lákatos (2003) referenciam a pesquisa do tipo intencional como sendo aquela em que o pesquisador se interessa pela opinião, ação e intenção que determinada realidade apresenta. 6 – A observação participante “[...] não é um simples olhar, mas destacar de um conjunto aquilo que é específico, prestando atenção em suas características, abstrair de um contexto suas dimensões singulares” (PRATES, 2003, p. 08).

92 Caxias da Paz


QUADRO 1 – Procedimentos metodológicos adotados durante o percurso da pesquisa OBJETIVO

PERÍODO

Análise documental: sistematização e análise de informações documentais.

Levantamento e sistematização dos instrumentos de registro e informação utilizados pelas equipes que desenvolvem práticas de Justiça Restaurativa nas instituições envolvidas.

A atividade de análise documental teve início em agosto de 2013 (coleta de dados referentes ao período de novembro de 2012 a outubro de 2013).

Observação participante (MINAYO, 1992; PRATES, 2003) no Núcleo e nas Centrais Restaurativas.

Conhecer a rotina e os procedimentos que foram adotados pelo Núcleo e pelas Centrais Restaurativas.

Atividades desenvolvidas desde a assinatura do convênio até o mês de outubro de 2013.

ATIVIDADE

Fonte: a autora

2. As ações em Justiça Restaurativa: aspectos de sua processualidade histórica A concepção contemporânea de Justiça Restaurativa está implicada em uma dimensão ética, ou seja, em um posicionamento ético-político frente às manifestações de conflitualidade e violência que perpassam a sociedade contemporânea. Tal concepção apresenta distinções quanto ao modelo clássico que sustenta as chamadas práticas tradicionais – e legitimadas pela sociedade – para se fazer justiça. Pode-se afirmar que O que se concebe como Justiça Restaurativa moderna tem suas origens em uma ética, ou seja, em uma tomada de posição crítica e irresignada em relação à violência subjacente ao modelo retributivo, às falhas do modelo reabilitador próprios da justiça criminal convencional e à punição que o sustenta. (AGUINSKY; JARDIM; et al., 2008, s/p)

De modo a materializar a perspectiva de uma tomada de posição crítica e irresignada em relação à violência, a Justiça Restaurativa se baseia em valores que estão orientados à compreensão das necessidades de todos os envolvidos em um conflito. Para tanto, em um espaço seguro, serão escutados vítimas e ofensores, bem

93 Anexo


como a comunidade na qual se inserem, o que favorecerá a participação social e responsabilização, como pressupostos para a redução da conflitualidade social. Considerada como prática e movimento social, as origens da forma moderna da Justiça Restaurativa são localizáveis na década de 70, quando seus primeiros proponentes (John Braithwaite, Howard Zehr, Mark Umbreit, entre outros) defendiam uma alternativa para um sistema penal considerado excessivamente duro, que nem efetivamente vinha repercutindo na diminuição do crime nem satisfatoriamente reabilitava ofensores. A concepção contemporânea de JR foi sendo construída apostando no potencial transformativo de práticas de justiça capazes de promoverem ambientes seguros para que os envolvidos em situações de violências possam expressar suas necessidades, tendo por objetivo a pacificação de conflitos. Nesses encontros, através de um diálogo facilitado, são surtidas soluções criativas e específicas, portadoras de responsabilidades partilhadas e de uma visão de futuro em relação à situação em concreto subjacente. (AGUINSKY; JARDIM; et al., 2008, s/p)

Em Caxias do Sul a metodologia adotada se fundamenta nos Círculos de Construção de Paz, com inspiração nos ensinamentos de Kay Pranis. “A metodologia dos Círculos de Construção de Paz mostrou-se de fácil apropriação e capaz de produzir resultados concretos imediatos” (BRANCHER, 2011, p. 06). Para Pranis: “O círculo é um processo de diálogo que trabalha intencionalmente na criação de um espaço seguro para discutir problemas muito difíceis e dolorosos, a fim de melhorar os relacionamentos e resolver diferenças” (2011, p. 09). Através dessa metodologia, objetiva-se fomentar a restauração das relações sociais e a reparação do dano causado, colaborando à diminuição da cultura punitiva que caracteriza a sociedade contemporânea, e, ao mesmo tempo, construir respostas eficazes e eficientes na resolução de conflitos. “[...] o círculo não se destina a apontar culpados ou vítimas, [...] mas a percepção de que nossas ações nos afetam e afetam aos outros, e que somos responsáveis por seus efeitos”. (Justiça para o século 21, 2013, s/p) De modo a visualizar as reflexões apresentadas, o QUADRO 2 demonstra a síntese da trajetória da Justiça Restaurativa em um contexto global, bem como em sua aplicabilidade na realidade brasileira.

94 Caxias da Paz


QUADRO 2 – Origens da Justiça Restaurativa: marcos legais e intencionais ANO/LOCALIZAÇÃO

PRINCIPAIS ATIVIDADES

1970/EUA

O Instituto para Mediação e Resolução de Conflito (IMCR) usou 53 mediadores comunitários e recebeu 1.657 indicações em 10 meses.

1976/Canadá/Noruega

Criado o Centro de JR Comunitária de Victoria (Canadá). No mesmo período, na Europa, verifica-se mediação de conflitos sobre propriedade.

1980/Austrália

Estabelecidos três Centros de Justiça Comunitária experimentais, em Nova Gales do Sul.

1982/Reino Unido

Primeiro serviço de mediação comunitária do Reino Unido.

1988/Nova Zelândia

Mediação vítima-agressor por oficiais da condicional da Nova Zelândia.

1989/Nova Zelândia

Promulgada a “Lei sobre Crianças, Jovens e suas Famílias”, incorporando a Justiça Restaurativa na Justiça Penal Juvenil.

1994/EUA

Pesquisa Nacional localizou 123 programas de mediação vítima-infrator no País.

1999/mundo

Conferências de grupo familiar de bem-estar e projetos-piloto de justiça em curso na Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, Grã-Bretanha, África do Sul.

2001/Europa

Decisão-quadro do Conselho da União Europeia sobre a participação das vítimas nos processos penais para implementação de lei nos Estados.

2002/ONU

Resoluções do Conselho Econômico e Social da ONU. Definição de conceitos relativos à JR, balizamento e uso de programas no mundo.

2005/Brasil

Ministério da Justiça e PNUD patrocinam três projetos de JR em Porto Alegre, São Caetano do Sul e Brasília. Início do Projeto Justiça 21.

2007/Porto Alegre – Brasil

Em três anos de implementação do Projeto Justiça para o Século 21, registram-se 2.583 participantes em 380 procedimentos restaurativos realizados no Juizado da Infância e da Juventude. Outras 5.906 pessoas participaram de atividades de formação promovidas pelo Projeto.

2010/Caxias do Sul – Brasil

Assinatura de protocolo – Município de Caxias de Sul, AJURIS e instituições Caxienses para iniciar a difusão da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul, segundo diretrizes do Projeto Justiça 21.

2012/Caxias do Sul – Brasil

Implementação do Projeto Justiça Restaurativa, por meio de convênio entre a Fundação Caxias e a Prefeitura de Caxias do Sul.

Fonte: a autora.

95 Anexo


2.1 Princípios e valores que orientam a Justiça Restaurativa O conceito mais difundido de Justiça Restaurativa foi desenvolvido por Marshal e Roche (2004), que a consideram como um processo que une os grupos afetados por um incidente ofensivo para, coletivamente, decidirem como lidar com suas consequências e com suas implicações para o futuro. Referente à realidade Brasileira, como visto no QUADRO 2, no ano 2005 o Ministério da Justiça e o PNUD patrocinaram três projetos de Justiça Restaurativa (em Porto Alegre, São Caetano do Sul e Brasília). Tais iniciativas foram fomentadas pela: [...] procura por amparo às vítimas e ao atendimento de suas necessidades, dando-lhe um papel ativo na condução das negociações em torno do conflito. De outro lado, buscava não apenas a responsabilização do causador do dano, valendo-se de recursos outros à punição e à sua estigmatização, mas também, pelo encontro que se dá entre um envolvido e outro no conflito, dar ocasião para o confronto de todas as questões que, a ver de cada qual, o determinaram e para o encaminhamento de possibilidades de sua superação ou transfiguração (REZENDE, 2005, s/p).

O encontro proporcionado pela metodologia restaurativa se constitui por três momentos distintos e complementares, pois suas práticas se desenvolvem a partir de um conjunto de ações que compõe o que se pode chamar de procedimentos restaurativos (etapas de intervenção): pré-círculo, círculo e pós-círculo.

3. A Justiça Restaurativa em Caxias do Sul Mesmo antes da assinatura do convênio que implementou as práticas restaurativas em Caxias do Sul, várias ações foram realizadas pelas instâncias envolvidas. De modo a proporcionar visibilidade a este conjunto de atividades, apresenta-se o QUADRO 3, o qual registra uma síntese que permite que se perceba o envolvimento e os esforços intencionais da comunidade e dos Poderes Públicos para sua materialização.

96 Caxias da Paz


QUADRO 3 – Principais atividades realizadas antes e depois da assinatura do convênio 2010-2013 PERÍODO

ATIVIDADE

2010: O Início da difusão da JR em Caxias do Sul ocorreu por meio de protocolo firmado entre a Prefeitura de Caxias do Sul, a AJURIS e a Justiça para o Século 21, o qual foi assinado no dia 18-06-2010. Junho

Seminário de lançamento do termo de cooperação entre os atores envolvidos.

Junho

Curso de iniciação em Justiça Restaurativa para 70 pessoas.

Junho

Curso de práticas em comunicação não violenta para 20 pessoas.

Agosto

Seminário de justiça restaurativa com a participação das canadenses Liz Elliot e Brenda Morrison.

Outubro

Capacitação com Kay Pranis para 25 pessoas. 2011

Durante todo o ano

Encontros quinzenais – casos encaminhados pelo JIJ, práticas. avulsas. 2012

Durante todo o ano

Encontros quinzenais – casos encaminhados pelo JIJ, práticas avulsas.

Outubro

Capacitação com Kay Pranis para 20 pessoas.

Outubro

Kay Pranis capacita grupo de 10 multiplicadores para formação de facilitadores em Círculos de Construção de Paz.

Novembro

Simpósio internacional de Justiça Restaurativa na Universidade de Caxias do Sul.

Novembro

Assinatura do convênio entre o Poder Judiciário, Prefeitura de Caxias do Sul e a Fundação Caxias.

Novembro

Início oficial do projeto.

Novembro

Instalação do Núcleo de Práticas Restaurativas e da Central Judicial de Pacificação Restaurativa, ambos com sede no Fórum. 2013

Junho

Instalação da Central de Pacificação Restaurativa da Infância e Juventude com sede na UCS.

Julho

Instalação da Central Comunitária de Pacificação Restaurativa com sede no CRAS Zona Norte.

Julho

Assinatura do convênio do Município de Caxias do Sul com o Poder Judiciário.

Fonte: Sistematizado a partir de informações do Núcleo de Práticas Restaurativas de Caxias do Sul.

97 Anexo


3.1 O Núcleo de Práticas Restaurativas e as Centrais Restaurativas em Caxias do Sul O projeto, em sua operacionalização, conta com um Núcleo de Práticas Restaurativas, o qual agrega três Centrais de Práticas Restaurativas: a Central Judicial de Pacificação Restaurativa; a Central de Pacificação Restaurativa da Infância e Juventude; e a Central Comunitária de Pacificação Restaurativa.

QUADRO 4 – Organograma funcional da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul NÚCLEO DE PRÁTICAS RESTAURATIVAS Sede: Fórum Composição: 1 coordenadora; 1 representante da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social. CENTRAL

INAUGURAÇÃO

RECURSOS HUMANOS

APLICAÇÕES

Central Judicial de Pacificação Restaurativa Sede: Fórum

Anterior ao início oficial do projeto, pois já estavam sendo realizados procedimentos restaurativos com processos judicializados.

1 coordenador e 1 facilitadora (ambos com carga horária de 33h semanais de trabalho), 1 agente administrativa que também atende ao núcleo (com carga horária de 40h semanais) e 4 facilitadoras que atuaram junto à Central Judicial, desde setembro a novembro de 2013, vinculadas à Fundação de Assistência Social, com uma carga horária de 10h semanais e em período de estágio para que posteriormente possam atuar em seus locais de trabalho.

Infrações Penais (atos infracionais) Conflitos Familiares – Jurisdição Protetiva Juizado Especial Criminal Juizado Especial Cível 2ª Vara Criminal (Lei Maria da Penha) Varas Criminais Varas de Família Demandas espontâneas

Central de Pacificação Restaurativa da Infância e Juventude Sede: UCS

Junho de 2013

1 coordenadora (com carga horária de 40h semanais), 1 facilitadora (com carga horária de 40h semanais), 1 facilitadora

Situações conflitivas de natureza não infracional envolvendo crianças e adolescentes

98 Caxias da Paz


Central Comunitária de Pacificação Restaurativa Sede: CRAS Zona Norte

Julho de 2013

(com carga horária de 20h semanais) e 1 secretário (com carga horária de 40h semanais).

Situações conflitivas eventualmente relacionadas a infrações de menor potencial ofensivo Situações conflitivas familiares Situações conflitivas entre as famílias e serviços de atendimento Situações conflitivas no ambiente escolar: implementação de cultura de paz

1 coordenadora (com carga horária de 30h semanais), 1 facilitador (com carga horária de 40h semanais), 2 facilitadoras (com carga horária de 10h semanais), 1 facilitadora (com carga horária de 20h semanais) e 1 secretária (com carga horária de 40h semanais).

Conflitos envolvendo crianças, adolescentes e adultos em seus entornos familiares Conflitos de vizinhança Conflitos e violências intrafamiliares Conflitos relacionados ao atendimento familiar a idosos Situações conflitivas entre usuários e serviços de atendimento

Fonte: Sistematizado a partir de informações do Núcleo de Práticas Restaurativas de Caxias do Sul.

A partir do QUADRO 4, percebe-se que a atuação restaurativa abrange os mais diversos tipos de conflitos, desde aqueles já com processo judicial, até situações que se caracterizam por sua dimensão preventiva, conformando uma cultura de pacificação. Esta amplitude está em consonância com os preceitos de Llewellyn e Howse, na medida em que estes permitem compreender a Justiça Restaurativa como não apenas vinculada ao âmbito do crime, mas também em conflitos e disputas extrajudiciais, dentre os quais situações que dizem respeito às violências nas escolas, à administração de conflitos organizacionais e coorporativos, aos conflitos de vizinhança, nas comunidades e nas famílias (LLEWELLYN; HOWSE, 1998).

99 Anexo


3.2 Casos atendidos e procedimentos realizados sob o referencial da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul O contexto quantitativo das ações desenvolvidas neste primeiro ano do projeto foi desmembrado em categorias distintas, de modo a compreender os níveis de abrangência daquilo que chamamos de procedimento restaurativo. Este é composto por encontros restaurativos, os quais são momentos distintos e complementares: pré-círculo (encontro preparatório anterior ao círculo), círculo (encontro reunindo todos os sujeitos envolvidos) e pós-círculo (encontro de acompanhamento). Quando aqui se fala em práticas restaurativas, entendem-se estas como quaisquer encontros onde tenham sido aplicados princípios metodológicos advindos do referencial restaurativo. Os casos atendidos são as situações-problema em sua unidade complexa e relacional de sujeitos em conflito. Uma vez que as práticas restaurativas em Caxias do Sul abarcam não apenas situações envolvendo conflito, adotamos a categorização diferencial entre encontros restaurativos (situações que envolvem resolução de conflitos e/ou tomada de decisões), que acontecem nas três Centrais, e encontros restaurativos não conflitivos (círculos de sensibilização e prevenção), os quais fazem parte do escopo das Centrais da Infância e Juventude e Comunitária. Cabe ainda destacar que as práticas restaurativas, quando aplicadas a situações onde exista um conflito, demandam a realização do procedimento restaurativo completo (mesmo que nem todos os casos completem a tríade pré-círculo/círculo/pós-círculo); já os encontros de sensibilização e prevenção podem prescindir dos encontros preparatórios e/ou de acompanhamento. O QUADRO 5 apresenta estes dados em conjunto e por Central, agregando o número de sujeitos envolvidos.

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QUADRO 5 – Número total de casos, procedimentos e sujeitos envolvidos: novembro de 2012 a outubro de 2013 NÚCLEO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA CATEGORIAS

Central Judicial de Pacificação Restaurativa Sede: Fórum

Central de Pacificação Restaurativa da Infância e Juventude Sede: UCS

Central Comunitária de Pacificação Restaurativa Sede: CRAS Zona Norte

TOTAL

Casos atendidos e procedimentos envolvendo sujeitos em conflito

131

27

13

171

Encontros restaurativos (pré-círculo, círculo e pós-círculo) envolvendo situações de conflito

321

88

23

432

Encontros restaurativos não conflitivos envolvendo Círculos de sensibilização e prevenção

0

32

22

54

Total de práticas restaurativas realizadas em cada Central

321

120

45

486

Sujeitos envolvidos nas práticas restaurativas realizadas em cada Central

1.235

749

178

2.162

Fonte: Sistematizado a partir de informações das Centrais Restaurativas de Caxias do Sul.

101 Anexo


3.2.1 A Central Judicial de Pacificação Restaurativa A Central Judicial de Pacificação Restaurativa registrou um total de 131 casos atendidos no período, com a realização de 321 encontros restaurativos, todos estes envolvendo situações conflitivas. Estes alcançaram um público de 1.235 pessoas. Os casos atendidos nesta Central, dada sua configuração Judicial, demonstram preponderância de vínculo com processos forenses. No entanto, já se pode inferir um reconhecimento, por parte da comunidade, na Justiça Restaurativa como forma preventiva, uma vez que é significante o número de casos que não se atrelavam a processos judiciais e se caracterizaram como meio de prevenção à judicialização do conflito, ainda que na esfera judicial.

GRÁFICO 1 – Procedimentos instaurados na Central Judicial de Práticas Restaurativas – novembro de 2012 a outubro de 2013

117

Com processo judicial Sem processo judicial 14 131

Fonte: Sistematizado a partir de informações da Central Judicial de Pacificação Restaurativa.

Detalhando-se os encontros realizados (GRÁFICO 2), percebe-se um maior número de pré-círculos. Tal se justifica porque este se caracteriza como uma espécie de etapa preparatória para a realização do Círculo; um mesmo caso, então, demanda a realização de mais de um pré-círculo para que todos os envolvidos possam se apropriar da proposta restaurativa, antes de sua operacionalização por meio do Círculo.

102 Caxias da Paz


GRÁFICO 2 – Número de encontros realizados na Central Judicial de Pacificação Restaurativa – novembro de 2012 a outubro de 2013

250 200 150 100 50 0

209

88 24 Círculo

Pré-círculo

Pós-círculo

N: 321

Fonte: Sistematizado a partir de informações da Central Judicial de Pacificação Restaurativa.

Nesta Central, a qual se vincula prioritariamente à pacificação de situações conflitivas, em 24 casos foi realizado o procedimento restaurativo completo, envolvendo os três tipos de encontros restaurativos. Quanto aos casos vinculados a processos judiciais, identificou-se a preponderância de origem no Juizado da Infância e Juventude (GRÁFICO 3). Tal área temática também predominou nos casos com origem extrajudicial, somando 11 dos 14 atendidos; estas situações abarcaram tanto medidas protetivas de direitos, quanto medidas socioeducativas nos casos que envolvem atos infracionais.

GRÁFICO 03 – Natureza dos casos atendidos (com processo judicial) na Central Judicial de Pacificação Restaurativa – novembro de 2012 a outubro de 2013 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0

95

11 JIJ

JECRIM

7

2

2a Vara 2a Vara de Criminal Família

1 3a Vara Cível

1 6a Vara Cível

N: 117

Fonte: Sistematizado a partir de informações da Central Judicial de Pacificação Restaurativa.

103 Anexo


3.2.2 A Central de Pacificação Restaurativa da Infância e Juventude A Central de Pacificação Restaurativa da Infância e Juventude foi inaugurada em junho de 2013 e atendeu, no período da pesquisa, 27 casos conflitivos, os quais geraram a realização de 88 encontros restaurativos, entre pré-círculos, círculos e pós-círculos. Ademais, foram realizados 32 encontros restaurativos que não envolveram situações conflitivas, os quais se caracterizaram por sua natureza de sensibilização e prevenção. Com isso, alcançou-se um número de 749 sujeitos. Em relação aos 27 casos atendidos, estes foram encaminhados por diferentes instâncias, desde o Ministério Público, o Juizado da Infância e Juventude, a Polícia Comunitária, até as próprias escolas e as instituições que compõem a rede socioassistencial. O total de práticas restaurativas que foram operacionalizadas por esta Central, somando-se tanto os casos conflitivos quanto os encontros de sensibilização e prevenção, envolveu naturezas distintas, pois entre estas práticas têm-se situações vinculadas a processos judiciais e situações não os envolvendo. Entretanto, a maior parte das práticas realizadas nesta Central, não estão vinculadas a processos judiciais. Do mesmo modo que na Central Judicial de Práticas Restaurativas, nos casos atendidos, verifica-se a incidência de um número maior de pré-círculos, uma vez que este procedimento é essencial para as etapas posteriores e se configura pela preparação necessária de todos os envolvidos. Os encontros realizados por esta Central, denominados de Círculos de sensibilização, funcionaram como uma demonstração prática, através de uma apresentação vivencial, onde foram enfocados tópicos como: o que é justiça restaurativa, como funciona, seus objetivos e finalidades. Para tal os facilitadores realizam um roteiro, onde procuram exemplificar – mesmo a partir de temáticas mais amplas – como são realizados os pré-círculos, círculos e pós-círculos. Tais encontros foram realizados nas denominadas “escolas-piloto” as quais fazem parte do entorno da UCS, são escolas Municipais de Ensino Fundamental (Alfredo Belizário Peteffi, Jardelino Ramos, Atiliano Pinguelo, Mário Quintana e Caldas Júnior) e ainda, a Escola Estadual Professor Apolinário dos Santos. Além das escolas, foram operacionalizados encontros em entidades da rede socioassistencial, as quais atendem crianças e adolescentes e compõem a rede de proteção à infância e juventude em Caxias do Sul.

104 Caxias da Paz


Os referenciais da Justiça Restaurativa foram aplicados em situações-problemas vivenciadas pela comunidade escolar; nestes Círculos, conforme relato da coordenadora da Central, Katiane Boschetti da Silveira: “[...] buscou-se como público os professores e equipe diretiva das escolas, visando estabelecer o fluxograma de atuação”. Com isso, objetivou-se construir mecanismos diferenciados para se lidar com as situações conflitivas, cujo resultado residiu na introdução de uma cultura de paz.

3.2.3 A Central Comunitária de Pacificação Restaurativa A Central Comunitária de Pacificação Restaurativa foi inaugurada em julho de 2013 e, no período, atendeu 13 casos envolvendo situações conflitivas, os quais demandaram 23 encontros restaurativos entre pré-círculos, círculos e pós-círculos. Ainda, aconteceram 22 encontros restaurativos não conflitivos de sensibilização e prevenção. Assim, as práticas restaurativas atingiram um público de 178 pessoas. Nesta Central, também devido à sua natureza, as situações atendidas não possuem processo judicial; são situações de conflitos extrajudiciais e Círculos de sensibilização nos serviços que compõem a rede socioassistencial de Caxias do Sul. Entre as instituições onde foram realizados procedimentos restaurativos e Círculos de sensibilização, bem como aquelas que encaminharam casos, destacam-se: Centro de Referência em Assistência Social (CRAS Norte); Associação Centro de Promoção do Menor Santa Fé (ACPMEN); Centro Assistencial e de Promoção Joana D’Arc; Associação Criança Feliz; Núcleo de Capacitação Canyon; Unidade Básica de Saúde Vila Ipê; Unidade Básica de Saúde Santa Fé; Unidade Básica de Saúde Belo Horizonte; Guarda Municipal de Caxias do Sul; Serviço de Assistência Jurídica (SAJU). Referente aos procedimentos realizados por esta Central percebe-se que o maior número foi de Círculos. Tal diferença – em relação às demais – ocorreu pela realização dos Círculos de sensibilização, os quais não requerem précírculo e, tampouco, produzem pós-círculo. A estratégia adotada pela CPR potencializa que instituições e profissionais tanto conheçam as perspectivas da Justiça Restaurativa, como as insiram nos seus horizontes de enfrentamento da conflitualidade.

105 Anexo


3.3 As percepções das pessoas que participaram dos procedimentos restaurativos De modo a nos aproximarmos da experiência vivida durante a participação nos procedimentos restaurativos, buscou-se, por meio da análise das informações registradas pelos facilitadores em seus relatórios, alcançar as percepções de pessoas que passaram pelos procedimentos. Para tanto, construiu-se o quadro a seguir, utilizando-se os valores que orientam a Justiça Restaurativa como categorias analíticas.

QUADRO 6 – Percepções e sentimentos expressos durante a realização dos procedimentos restaurativos NÚCLEO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA Participação

“[...] o genitor começou sua fala agradecendo todo o apoio que vem recebendo e expressou a diferença que isso fez em sua vida”.

Respeito

“[...] ao final do Círculo, o casal se emociona e agradece pela sinceridade, relatam estar se sentido melhor por terem conseguido expressar seus sentimentos, pois a audiência seria um espaço mais formal e de curto tempo”.

Honestidade

“[...] eu ainda preciso de um tempo”.

Humildade

“[...] eu tava nervoso e descontei no professor”.

Interconexão

“[...] hoje eu me sinto bem, minha mãe gosta de mim e eu gosto de morar com minha mãe”. “[...] Pode se concluir que os acordos firmados em Círculo foram cumpridos tanto pela genitora, quanto por sua família”.

Responsabilidade

“[...] sozinha eu não ia conseguir, eu ia desistir do meu filho, estou mais presente”.

Esperança

“[...] eu sentia que tinha culpa, mas estou aliviado, tirando um peso”.

Empoderamento

“[...] me sinto muito melhor ao final do Círculo, pois consegui dizer ‘coisas’ que nunca havia falado”. “[...] o Círculo tem me dado forças que eu não tinha”. “[...] a partir deste encontro vou passar pela família e olhar no olho, que era uma coisa que eu não conseguia fazer. Tô deixando aqui um grande peso”.

Fonte: Sistematização das autoras a partir de informações do Núcleo de Práticas Restaurativas de Caxias do Sul.

106 Caxias da Paz


A partir das sistematizações contidas no quadro apresentado, é perceptível que os valores que orientam as práticas restaurativas fazem parte dos procedimentos e são manifestados em falas e registros daqueles que estão participando destas ações.

4. Considerações Preliminares A partir dos dados apresentados, pode-se perceber que, em seu primeiro ano de execução, o projeto consolida resultados significativos, seja em dimensões quantitativas, como de resultados concretos e simbólicos numa transformação paradigmática em face da conflitualidade e violência. Se expressivo o número de sujeitos envolvidos – 2.162 pessoas tiveram contato com os procedimentos restaurativos – este, para além de um dado objetivo, certamente tem repercussões em diferentes âmbitos da sociabilidade no município. Também ao se constatar a diversificação das formas de aplicação da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul, percebe-se que o projeto vem alcançando a multidimensionalidade da conflitualidade social. Assim, pode-se inferir que a introdução de tais práticas possui um potencial de transformação, à medida que isto afeta não apenas aqueles que participaram de algum procedimento, mas as suas relações como um todo. Uma das contribuições fundamentais até o momento, tem sido o desenvolvimento de práticas de justiça e práticas institucionais e sociais baseadas em relações horizontais, nas quais as vozes daqueles diretamente envolvidos em um conflito e em situações de violências são consideradas e valorizadas, não os excluindo do que lhes é tão caro: participar de decisões que se referem às suas próprias vidas. Com isso, afirma-se que o projeto apresentou abrangência em sua aplicabilidade, e as ações desencadeadas deram início a construção de uma cultura de paz no município de Caxias do Sul.

107 Anexo


Referências Bibliográficas AGUINSKY, Beatriz Gershenson; JARDIM, Ana Caroline Montezano Gonsales. Et al. Introdução de práticas restaurativas através do projeto justiça para o século 21 e sua interface comunitária. In: Anais do 2° Seminário de Políticas Sociais no MERCOSUL. Pelotas: UCPel. BRANCHER, L. Apresentação. In: Círculos de justiça restaurativa e de construção de paz: guia do facilitador. Por Kay Pranis, tradução Fátima De Bastiani. [Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Artes Gráficas], c2011. BRASIL, Constituição Federal. 1988. CRESWELL, John W. Projeto de Pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2010. GUINDANI, Miriam. O processo de gestão da segurança municipal. Revista O público e o privado (Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UECE) – n. 4 – jul./dez. – 2004. JUSTIÇA PARA O SÉCULO 21. <http://www.justica21.org.br/>. LLEWELLYN J.; HOWSE R. Restorative Justice: a conceptual framework. Ottawa, ON: Law Comm. Can. 1998. LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. MARCONI, Marina de A.; LAKATOS, Eva M. Técnicas de pesquisa. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2006. MARSHALL T. F. Restorative Justice: an overview. Minneapolis, MN: Cent. Restorat. Justice Peacemak, 1998. MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento – Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: HUCITEC-ABRASCO, 1992. PAZINATO, Eduardo. Do Direito à Segurança à Segurança dos Direitos. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2012. PRANIS, Kay. Círculos de justiça restaurativa e de construção de paz: guia do facilitador. Tradução Fátima De Bastiani. [Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Artes Gráficas], c2011. PRATES, Jane. O planejamento da pesquisa social. In: Revista Temporalis, n. 07. Porto Alegre, ABEPSS, 2003. MELO, Eduardo Rezende. Justiça Restaurativa e seus desafios histórico-culturais. Um ensaio crítico sobre os fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em contraposição à justiça retributiva. In: BASTOS, Márcio Thomaz; LOPES, Carlos e RENAULT, Sérgio Rabello Tamm (Orgs.). Justiça Restaurativa: Coletânea de Artigos. Brasília: MJ e PNUD, 2005. Disponível em <www.justica21.org.br/interno.php?ativo=BIBLIOTECA>. SELLTIZ, C.; WRIGHTSMAN, L. S. & COOK, S. W. Métodos de pesquisa nas relações sociais. 4ª ed. São Paulo: EPU, 2004.

108 Caxias da Paz



A PAZ QUE NASCE DE UMA NOVA JUSTIÇA

A PAZ QUE NASCE DE UMA NOVA JUSTIÇA

2012-2013 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PODER JUDICIÁRIO

Impressão:

UM ANO DE IMPLANTAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO POLÍTICA DE PACIFICAÇÃO SOCIAL EM CAXIAS DO SUL


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