Bom de Ver Bom de Viver - Volume II

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MAGNAIR BARBOSA - VILSON CAETANO DE SOUSA JUNIOR - FABIO VELAME



Mapa Geral das Comunidades Quilombolas


©2013 Estaleiro Enseada do Paraguaçú Todos os direitos reservados Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte

Coleção

Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver Volume 2 AUTOR: Vilson Caetano de Sousa Junior (Org.), Magnair Barbosa e Fabio Velame Fotografia: Rodrigo Siqueira Pesquisa: Marina Bonfim Cleidison Carvalho Revisão: Maria Verônica Capa e Projeto Gráfico: Ton Friche Obra financiada pelo Estaleiro Enseada do Paraguaçú Ficha Catalográfica elaborada por Cátina M. Santos Cerqueira - CRB5/1440

S729 Barbosa,Magnair. Guerém, Baixão do Guaí, Girau Grande, Tabatinga, Guaruçu e Porto da Pedra/ Magnair Barbosa; Vilson Caetano de Sousa Junior; Fábio Velame. Fotografia: Rodrigo Siqueira, - - Salvador: Brasil com Artes, 2013 92p.: il.

ISBN: 978-85-66694-11-6-Coleção Quilombos bom de ver e bom de viver; v.2

1. Contos Brasileiros. 2. Quilombos . 3. Cultura Negra. 4. Comunidade Negra. l. Sousa Junior, Vilson Caetano de. ll. Velame, Fábio. lll. Título

CDD: B869. 3


Apresentação

Quilombos, bom de ver e bom de viver é uma publicação fruto da parceria entre o Projeto Brasil com Artes e o Estaleiro Enseada do Paraguaçu em atendimento às Condicionantes da Anuência n°08/2010 da Fundação Cultural Palmares. Nela, o leitor irá encontrar informações sobre a história, economia e aspectos sócio ambientais de comunidades quilombolas do município de MaragojipeBa. Trata-se de um trabalho produzido em oficinas, realizadas por uma equipe multidisciplinar contendo caracterização, trajetórias e relações territoriais destas comunidades a partir de seus próprios percursos históricos vividos. É um trabalho de registro do patrimônio cultural destas comunidades, entendido como o modo de ser, viver e permanecer que inclui suas criações, obras e edificações. Quilombos, bom de ver e bom de viver visa contribuir com a documentação básica referente aos remanescentes de quilombos e fornecer materiais para fortalecer politicas públicas e ações voltadas para as comunidades historicamente invisibilizadas e excluídas. Entendendo as comunidades quilombolas como “grupos sociais cuja identidade étnica os distingue do restante da sociedade”, este trabalho contribuirá com a luta pela garantia do direito a terra e manutenção de seus modos tradicionais de vida e produção. Neste volume o leitor irá encontrar informações sobre as comunidades quilombolas do Guerém, Baixão do Guaí, Girau Grande, Tabatinga, Guaruçu e Porto da Pedra.


Introdução

Maragojipe é uma cidade do Recôncavo baiano localizada a menos de 150 km da cidade de Salvador, capital do Estado. O significado do nome “Maragojipe” divide opiniões. Há os que defendem a expressão “no rio dos maraús”, mas há também aqueles que optam pela explicação “rio dos mosquitos”. Fato é que, tanto em uma quanto em outra, na palavra indígena, faz-se menção ao “rio”. Desta maneira, Maragojipe está mesmo associada ao caminho feito pelas águas dos rios Paraguaçu e Guaí. Essas águas, ainda hoje, alimentam manguezais, fertilizam suas terras, sustentando famílias negras, cujas histórias confundem-se com as da própria cidade, que, no século XIX, conseguiu chegar ao máximo da sua vida social, política e econômica, graças à participação dos africanos e seus descendentes.


Quilombos do Brasil Quilombo é uma palavra originada das muitas línguas africanas como tantas outras que conhecemos como camarada, quitanda, calunga, canga, dendê, samba etc. No Brasil, como em outras partes do mundo fora do continente africano, passou a significar a história de luta pela liberdade e resistência dos africanos e seus descendentes ao redor de dois conceitos: terra e ancestralidade.

Os quilombos são espaços coletivos construídos pelas pessoas tendo como referência a natureza. Nestes lugares, homens e mulheres mantêm-se vivos, graças às redes de solidariedades construídas ao longo de suas vidas. Em todas as partes do Brasil e da América onde houve escravidão, surgiram também quilombos. Quilombos, que atravessaram gerações enfrentando os filhos dos senhores de engenho, agora, enfrentam também fazendeiros que, com seus jagunços, de forma violenta, tentam intimidar trabalhadores e trabalhadoras

rurais, marisqueiras e pescadores, insistindo, assim, em manter uma das formas mais cruéis de atentado à dignidade humana, a escravidão. A realidade quilombola no Brasil assemelha-se a situação dos palenques da Colômbia e Cuba, dos cumbes da Venezuela e dos marrons do Haiti e Ilhas Francesas. Em todos estes lugares nos deparamos com populações vivendo à margem da sociedade, na linha da pobreza, expostos a situações de riscos. Trata-se de comunidades marcadas por problemas sociais ocasionados por fatores econômicos, políticos, ou simplesmente situações que veem lhes impulsionando ao longo da história para abaixo da linha da pobreza, representada pela ausência de condições básicas para sobreviver, analfabetismo, problemas de saúde, educação, saneamento básico, acesso a terra, água potável, luz elétrica, violência etc.


Coleção Quilombos bom de ver e bom de viver. Volume 2

Guerém Baixão do Guaí Girau Grande Tabatinga Guaruçu Porto da Pedra



Baixão do Guaí


Guerém e Baixão do Guaí


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Mapa Geral do Guerém e Guaí

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Localidade Sede


Brejo


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“A gente ganhava o ouro, ficava o couro” esta é a lembrança de Maria Bispo dos Santos Barbosa, 75 anos, mais conhecida por Dona Nina, que remete aos tempos de labuta no quilombo do Guerém. Vários são os caminhos que levam ao Guerém, terrestres e fluviais, num deles basta sair de Maragojipe, pegar a BA 026 que leva a São Roque, cruzar um caminho de terra bastante íngreme que se inclina à vila de Capanema. Na passagem, há outras comunidades também quilombolas que estão ligadas por um processo comum de usurpação territorial e de resistência, por laços de parentesco e de compadrio. E como se não bastasse uma rede identitária tão imbricada, descendo o Guerém, seguindo o curso do rio Guaí, desemboca-se no quilombo Baixão do Guaí. Todos esses quilombos, com exceção de Porto da Pedra cuja propriedade pertencia a um dono diferenciado, além de serem vizinhos faziam parte de uma única propriedade, a Fazenda Guaí. Era um só e lá de Tabatinga até lá no Baixão, pra pegar aí por cima tudo, Guaruçu. Alcancei. [...] Olhe essa fazenda, lá o lado de lá oh, tudo é Guaí, tudo era Guaí, por esse mundo todo, sobe por aqui acima, era muita terra mesmo, que eu mesmo não sei onde é o fim. Agora são divididos. (D. Nina, marisqueira, 75 anos) A fazenda é uma fazenda que tem dois mil e quatrocentas hectares, mil hectares. Conta alta, eu nem sei dizer as siglas que tem esses pontos, que hoje está dividido em umas duzentas fazendas. (Nivaldo de Brito Correia, lavrador) Antes de ser desmembrada a Fazenda Guaí compreendia uma grande extensão territorial cujos moradores ainda mantêm contatos estreitos. Era comum os moradores deslocarem suas casas dentro da propriedade ao longo dos anos, até porque durante a vida construía-se várias casas devido a pouca durabilidade do adobe ou das furquias tiradas do mangue, cobertas com andaiá.

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No Guerém e no Guaí se escolhia o local de construção considerando a distância para a maré e para o rio, respectivamente, devido à necessidade de acesso ao manguezal e a água doce utilizada para o consumo e para os serviços domésticos. Com o passar do tempo esses quilombos do território de identidade foram definindo suas fronteiras, entretanto por causa da proximidade espacial e das relações sociais mantidas entre os moradores do Guerém e do Guaí, “um quilômetro” apenas, esses costumam não entrar num consenso quando se trata de identificar onde começa e termina o outro. Por conseguinte, as famílias também foram crescendo e se subdividindo, migrando assim para outros espaços quilombolas dentro da região. Tanto Guerém quanto Guaí são nomes indígenas que indicam para o passado dessa região, um tempo onde predominava a “capoeira”, ou seja, a mata fechada. Os quilombolas lembram que ainda na época de seus pais era constante a degradação ambiental através do corte de frondosas árvores. Retiravam-se madeiras que eram transportadas por caminhões até o porto e deste pelas embarcações. Numa época em que nem se conhecia automóveis, o lugar passou a se chamar Caminhão. Os fazendeiros, herdeiros de um passado colonial, exploravam as riquezas das terras assim como as


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Desenho de Ana Leda


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Maristela Nascimento e Maria do Carmo Nascimento


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pessoas que estavam afetivamente ligadas as mesmas. No Guaí, foram instalados serraria, alambique e cerâmica que fabricava tijolos. Os trabalhadores eram majoritariamente os moradores dos quilombos do Guerém e do Baixão que em contrapartida recebiam pagamentos irrisórios, isso quando recebiam em dinheiro. Trabalhava-se “avulso”, sem nenhum direito trabalhista, em troca de mercadorias variadas, a exemplo da cachaça, mantimentos e “roupa porta de loja”. Eu me lembro, não era muito fácil não, ele trabalhava, ganhava por produção e não dava como, não tinha como a gente se manter direito [...]. O dinheiro ficava na própria fazenda, recebia de mercadoria. É, não era propriamente também, aí comprava um quilo de uma coisa, duzentas e cinquenta de outra e aquela coisa, um litro de cachaça e tudo mais, aquela roupinha ruim, um cortezinho de pano, o pior que podia existir, pra fazer aquele saco pra colocar dentro. Não tinha como receber, se não dava bem pra comer, ia receber o que mais?! A produção era pouca. (D. Nina, marisqueira, 75 anos) Na olaria a rotina de trabalho era carregar e descarregar lenha e argila, “cortar o barro” sendo o mesmo que sovar e preparar a argila para sua utilização, “arrochar o fogo” atividade exercida por pessoa responsável pela queima, que dosa a temperatura do forno e aumenta no momento certo, enfornar e desenfornar. São atividades com grande risco de acidentes de trabalho, como o que acometeu um trabalhador lhe amputando a mão, segundo informações de Dona Nina. Essas comunidades acreditam que o choque térmico provocado pela exposição a altas temperaturas, nesse caso o manuseio do forno, pode “estoporar” os pulmões podendo levar a morte. Diante desse receio recorria-se a saberes tradicionais: não se tomava banho, apenas fazia o “asseio” com água morna e evitava sair no sereno. Existia, todavia uma prática realizada pelos ceramistas que quisessem fugir a este resguardo: pegava um bloco de argila vermelha assim que saísse do forno e mergulhava-o na água fria, depois tomava banho com aquela água. O filho de Dona Nina, Hélio, ceramista experiente, afirma que feito isso podia inclusive tomar vento ou chuva sem causar nenhum problema à saúde. Nesses quilombos as pessoas que não trabalhavam nos empreendimentos dos fazendeiros não estavam livres de serem exploradas de outras formas, visto que estas pagavam a “terça” ou a “meia”, ou seja, repartiam com estes tudo que tirassem da terra ou que produzissem. Atualmente, estas pessoas sobrevivem da agricultura de subsistência como a plantação de mandioca e hortaliças e de atividades artesanais ligadas à pesca e a apicultura. Especialmente as mulheres e crianças dedicam-se a mariscagem, muitas vezes utilizando uma técnica tradicional de captura onde se tapa os buracos com folhas: Já marisquei muito desde a idade de 10 ano, agora esses dias que eu num tô indo que eu tô com a pressão alta aí eu num tô indo, mas eu marisquei muito, peguei siri, peguei caranguejo, muita lambreta, vendi muito e muito caranguejo nesse braço, tapava e ainda escolhia o da boca

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JuscĂŠlia de Jesus


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grande e o da boca pequena. Aí enche de folha aqui e aí na hora você vai, vai tirando e pegando eles, eles sobe, é. (Maria de Preto, Yalorixá, 52 anos) Maria do Carmo Nascimento, mais conhecida por Maria de Preto de Sumido, reside no Baixão do Guaí há cerca de 20 anos, onde mantém um terreiro de candomblé. Antes de fixar residência nesse lugar ela morava em Caboto, uma região de Maragojipe próxima a Nazaré das Farinhas para onde se dispersou diversos moradores do quilombo do Zumbi. Mãe Maria de Preto afirma que realiza diversos trabalhos espirituais que auxiliam e socorrem a população do entorno, embora muitos afirmem desconhecer a sua casa de santo e participar de suas celebrações. Ela diz que: “Pensando eles que é uma coisa ruim né, mas pra eles é uma coisa boa. E até da cadeia já tirei e tudo, quarquer hora com a fé em Ogum”. A lei do silêncio mantida pela comunidade quanto à existência desse lugar sagrado remonta ao processo de marginalização pelo qual foram expostos os cultos e práticas afro-brasileiras. Desatualizada dos atuais debates realizados pelos movimentos sociais acerca dos direitos quilombolas, Mãe Maria de Preto teme ser retirada da terra onde cultua os ancestrais, visto as constantes abordagens sofridas por sua família. Frequentando ou não este ou outros terreiros, os moradores do Guerém e do Baixão do Guaí estão cercados por um mundo mágico-religioso, habitado pela Vovó do Mato, Vovó do Mangue e pela Sereia, esta última segundo uma crença local reside num poço do rio Guaí, conhecido por ‘Poço da Sereia’. Algumas das festas que aconteciam nesses quilombos se apresentavam como verdadeiros rituais antes que a modernidade os congelasse, tal como a que tornava pessoas comadres ou compadres de fogueira, realizada durante os festejos juninos. Cada um de um lado da fogueira, de mãos dadas, trocava de lugar ao tempo que diziam: “São João dormiu, São João acordou, vamos benzer fogueira que São João mandou”. As rezas, as novenas, os sambas e as festas do arroz, todos estes rituais que entusiasma a oratória daqueles que afirmaram ter participado desses eventos são exemplos disso. A festa do arroz não tinha data definida, bastava se acordar sua realização com a comunidade. Não podia faltar a panela do arroz doce e a radiola para motivar o baile. O convite para uma dança vinha acompanhado de um copo de arroz pago pelo rapaz cortês, entretanto, algumas moças aceitavam o arroz, porém davam “taboca”, fato que causava um certo fuxico no salão, rendendo repertório para subsequentes rodas de conversas. [...] ‘lá vai arroz’, enchia a mesa de arroz, parava tudo, era o som pra os besta pagar, aquele arroz pra aquelas menina, as vezes as menina levava uma panela acabar a barriga não cabia tudo [...] aí dançava, quando as menina se escorava, ‘eu pedi a sua mãe pra você vim dançar’ e tomar o arroz, as menina tava quase debaixo de ordem, compromissada aqui, e aí mas era umas festa boa. (D. Nina, marisqueira, 75 anos) Para além dos tempos idos restam aos quilombolas do Guerém e do Baixão do Guaí desafios a serem superados, embora a comunidade que possui cerca de 300 casas tenha sido contemplada com o Programa do Governo Luz para Todos entre 2008 e 2009, falta infraestrutura, tal como a água tratada, rede de esgotamento sanitário e instalação de escolas já que a mais próxima fica no prédio desativado da Fundação Estadual da Criança e do Adolescente – FUNDAC, para onde se dirigem mesmo com a distância e as dificuldades de acesso boa parte dos estudantes de todo o território do Guaí. O desejo que eu tenho, oh meu amor eu agora não tenho mais sonho de nada, eu só o que eu tenho que eu não sei se eu vou ter possibilidade de alcançar um bocado de ano de vida. Eu tô bem, eu gosto muito daqui. E pelo tempo que moro aqui eu estou muito feliz e não quero nem pensar em sair daqui. (D. Nina, marisqueira, 75 anos)

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Só mesmo a espiritualidade desses homens e mulheres que deram o “couro”, batalhando noite e dia para tirar da terra o “ouro” que alimenta seus filhos é capaz de sustentar suas aspirações e anseios. O sonho quilombola só pode se transformar em realidade quando, de fato, obtiverem a posse da terra respaldada pelas leis dos homens, porque aos encantados eles já recorrem, mesmo que silenciosamente. Curiosidades Capanema - Distrito de Maragojipe foi uma região muito importante economicamente porque abrigava um porto onde era constante o translado de saveiros da região, dentre eles o Sombra da Lua, que abastecia de mercadorias, principalmente farinha e dendê, indo descarregar na sede e em outros municípios como Nazaré das Farinhas, Jaguaripe e Salvador. No período colonial abrigava o Engenho Capanema que ficava entre o Guerém e o Girau Grande. Casarão do Guaí – As memórias locais dão conta que D. Pedro II tenha pernoitado nessa residência. Segundo o memorialista maragojipano Osvaldo Sá, o imperador esteve em Maragojipe em 1859 para visitar o Engenho Novo nas terras do quilombo Salamina Putumuju, tendo sido recepcionado por batalhões uniformizados em Capanema (atual Guaí). Estoporar – Choque térmico ocasionado após exposição às altas temperaturas. Festa do arroz – Festa regional realizada esporadicamente em alguns quilombos de Maragojipe que tinha por objetivo integrar a comunidade através da dança e venda de arroz doce. Porta de loja – Expressão quilombola que se refere à roupa considerada de qualidade inferior, vendidas no armazém pelo fazendeiro. Quilombo do Zumbi – Está localizado próximo a região conhecida por Tabuleiro, sendo suas terras entrecortada pela estrada de Nazaré das Farinhas. Devido à opressão sofrida a maioria dos seus moradores se dispersaram para outras regiões próximas, embora muitos ainda mantenham relações de trabalho neste lugar. Taboca – Expressão quilombola que se refere ao ato de ser rejeitado.

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Cachoeira do Baixão do Guaí

Vista do Guaí


Tania Calheiros


Girau Grande


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Mapa Geral do Girau Grande

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Localidade Sede


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PresĂŠpio



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A comunidade quilombola Girau Grande está localizada na proximidade da rodovia BA 026 e à antiga Escola Agroindustrial de Menores, atual prédio da Fundação Estadual da Criança e do Adolescente – FUNDAC. Aliás, parte paterna da família Calheiros, ao que tudo indica fundadora desse quilombo, foi remanescente de dois quilombos vizinhos: Tabatinga e Guaruçu. Já o lado materno provém de São Felipe, depois mudou para Água Fria, região do Guaí, e sucessivamente para o Girau Grande. A “parenteza” do quilombo compõe cerca de 30 famílias, mas mantém estreitos contatos com todo o território de identidade. Até mesmo o quilombo da Salamina Putumuju, mesmo separado pela maré, recebe visitas esporádicas de moradores do Girau Grande para retirar o fruto da palmeira africana – o dendê. Das ladeiras vicinais do Girau Grande pode-se avistar parte exuberante da região. Daí vem o nome do quilombo. Girau é uma estrutura de madeira onde se colocava panelas e outros utensílios domésticos para secar, que também podia ser utilizado como estratégia de caça, do local se observava e sorrateiramente acertava o alvo. Lugar de observação, portanto, que possibilitava espiar a movimentação ao redor, inclusive dos engenhos. Diante dessa ótica seria então o Girau Grande um quilombo na semiologia antiga da palavra, ou seja, esconderijo de escravos fugidos, já que a memória local indica aspirações de liberdade: [...] a parte da minha mãe que vivia do engenho dizia que o tio do meu avô trabalhava de dia pro senhor do engenho e de noite trabalhava pra ele e ficou juntando dinheiro pra comprar a carta de euforria e no dia que ele comprou com que quinze dias a lei áurea foi assinada. (Lenira Calheiros, marisqueira e jurista leiga) Inegável a existência de engenhos na região do Guaí, tal como o Engenho São Francisco de Capanema, cujas terras deram origem posteriormente a Fazenda Capanema e a Fazenda Guaí, e o Engenho Santo Antônio de Capanema, nas atuais terras do quilombo Guerém, produtores em pequena escala de cana-de-açúcar e fumo, porém grandes produtores de mandioca. Os engenhos de Maragojipe produziam para abastecer o mercado interno e a agricultura de subsistência era praticada principalmente pelos lavradores arrendatários, ou mesmo “rendeiros”. A utilização da mão de obra livre coexistia com a prática da escravização indígena e africana.

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A reminiscência do passado aponta para uma região exposta a escravidão, como revela a seguinte fala: ‘Aqui tem muita gente que foi pega pra escravidão, principalmente os índios e eles maltrataram muito os índios’. Porém, este não é o único motivo que faz do Girau Grande, nem de nenhum outro da região, um quilombo. Mas a patrimonialização do lugar, ou seja, o valor estabelecido à terra onde moram e moraram os antepassados, valor este que transcende as barreiras do tangível. E por falar em propriedade, a prática de “dá renda” faz parte de um tempo recente dos quilombolas, visto que pagavam anualmente aos fazendeiros pelo fato de estarem usufruindo da terra. Todavia, nem sempre conseguiam angariar os recursos financeiros necessários para fazê-lo. Para não ser perseguido pelo não pagamento da “renda” muitas famílias recorriam a algumas estratégias como a compra de animais para ir engordando durante todo o ano, vendendo-os no “derradeiro” mês para conseguir ficar livre dessa dívida. “Dá a terça” também fazia parte da economia das fazendas, que obrigava a repartição da terça parte de tudo que era extraído, até mesmo a argila.


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Jardim


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Vista de casa quilombola


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Meu avô e meus pais trabalhavam nessa fazenda. Assim, minha vó quando era 4 de janeiro, ela comprava um filho de porco e colocava no terreiro e dava comida pra dezembro e vendia e dava o dinheiro ao fazendeiro, porque minha vó vivia lá só fazendo panela, meus avós faziam panela e ai eles trabalhavam na maré também e só porque eles extraíam o barro da terra onde eles viviam, o fazendeiro fazia eles pagavam a terça parte. E fomos vivemos nessa beira [...] a comunidade se tremia porque fazendeiro queimou casas, derrubou casas, fez sucesso, mais hoje não, hoje a gente tá amparado na lei, ciente que a lei tá longe, nem lenha a gente não tem como pegar e quando panhava, era escondido, até o dendê que eu cortava, eu cortava de noite. (Lenira Calheiros, marisqueira e jurista leiga) No Girau Grande as pessoas vivem da pesca artesanal, da apicultura e do extrativismo do dendê, da andaiá, do nicuri, do jenipapo e outros frutos. Parte deles somados as pequenas safras agrícolas são vendidos nas feiras de Maragojipe. A comercialização de produtos do quilombo nas imediações já faz parte da tradição da família Calheiros, o avô materno, Guilherme Gonçalves, “Papai Véio”, que faleceu com 105 anos, era um exímio mestre dos ofícios e saberes, os produtos confeccionados por ele eram vendidos nas viagens que fazia em saveiros e em animais. Comercializa os seguintes produtos - cadeira, cama, cocho, cangalha, panacum, pilão, prensa, cofo, balaio, jiquim, fogos de artifício, candeeiro, cachimbo, agulha, linha de algodão, roupa, esteira de perí, chinelo e chapéu de couro. Consertava utensílios domésticos (colava pratos e copos), fabricava letreiros, cruzes e até um caixão chegou a fazer. Produzia fumo de corda e pó de fumo, esse bastante utilizado nos tratamentos das doenças das vias respiratórias. Aglutinava conhecimentos de diversas áreas – carpintaria, ferraria, alfaiataria, arquitetura e medicina. Fez um parto e era bastante requisitado para rezas, novenas e aconselhamentos familiares, exercendo atividades equivalentes a um juiz de paz. Já o trabalho com a argila era uma referência da parte paterna da família, que mantinha a técnica indígena de confecção de objetos cerâmicos, panelas e potes, hoje não mais feitos pelos quilombos. Essa era uma característica que identificava o grupo familiar, por isso que tia Maria Brito era conhecida por Maria Maceta, referência ao pilão que utilizava para amassar o barro junto aos irmãos. Meu pai sempre fez panela, a gente tinha panela na cozinha, o preconceito era tão grande que a gente tinha de cozinhar na panela de barro, tinha que cozinhar e ficar escondido, porque os outros tinham suas panelas brilhantes, usavam e ariava e colocava no girau pra mostrar e a gente não ia ariar a panela de barro pra ficar brilhando em cima de um girau, mais a gente ainda cozinha na panela de barro. (Lenira Calheiros, marisqueira e jurista leiga) Infelizmente, não encontramos a arte da cerâmica exposta no girau, entretanto, alguns conhecimentos técnicos foram resguardados, como a extração do barro onde observa-se o movimento lunar para retira-lo. O barro deve ser tirado no quarto minguante, na “lua fraca” e depois que o sol se “escravar”, ou seja, quando não estiver presente no céu a olho nu, isso garante liga a argila. Essas experiências são empregadas atualmente no período natalino quando a comunidade confecciona presépios com a argila, conhecimentos estes expandidos para outros momentos da vida cotidiana: tirar nicuri para fazer a vassoura, descascar cipó, retirar madeira (para não “bichar”) e chocar ovos de galinha, tudo isso deve ser feito na “lua fraca”. Já a “lua

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forte” ou cheia é propícia para a mariscagem devido à extensão de tempo que a maré fica seca, facilitando a captura de mariscos. A lua e o sol são observados atentamente pelos moradores de Girau Grande. Com certeza a “lua forte” devia fazer parte da rotina das parteiras, momento em que eram requisitadas às pressas, auxiliando as mulheres que davam as dores do parto. Elas não apenas faziam os partos como acompanhavam a mãe e o filho por longos dias, cuidando dos remédios e resguardos apropriados. Eram normalmente mulheres com algum vínculo familiar que realizavam os partos no Girau Grande. Dentre elas destaca-se Maria dos Anjos, Adélia da Anastácia, Crispiniana (Mamãe Piani) da Tabatinga. Mulheres estas que davam o socorro físico, mas também inseria o novo membro da família numa atmosfera espiritual, através de rezas e orações. A religiosidade afro-católica sempre foi muito forte no Girau Grande, afinal de contas “Papai Véio” fazia questão de rezar o terço e o ofício de Nossa Senhora toda semana junto ao seu núcleo familiar, além de percorrer a redondeza exercendo atividades de rezador e tirador de novenas. Merece destaque a devoção a dois santos católicos: São Benedito e São Bartolomeu. Em louvor ao primeiro, os fiéis percorrem as casas durante o mês de janeiro visando angariar recursos para realização de sua festa, ao tempo que cantam e sambam. A esmola cantada perpassa a funcionalidade religiosa quando assume um caráter social de integração e agregação do grupo. Já a festa do padroeiro de Maragojipe, São Bartolomeu, acontece durante todo o mês de agosto, para onde deslocam-se muitos moradores do quilombo, para as alvoradas, novenas, procissão e lavagem do templo. No passado era comum as pessoas seguirem alguns preceitos cristãos como: não comer carne vermelha na semana santa, nem festejar durante a quaresma, muitos deles já não mais seguidos, como a prática do interdito de pentear os cabelos as Marias durante a páscoa, provavelmente um indicativo a passagem bíblica onde Maria Madalena lava os pés de Jesus Cristo e os seca com o cabelo. “Papai Véio” era tão apegado às rezas que dizia existir uma oração capaz de tornar pessoas invisíveis aos olhos indesejáveis. Sabedor desta oração teria sido o avô da quilombola Maria do Carmo Nascimento, moradora no quilombo Baixão do Guaí a quem já nos referimos anteriormente. Seu Sumido, como era conhecido, graças à “ciência” que tinha de entrar e sair dos lugares sem ser visto; estar em dois lugares ao mesmo tempo, “passar na chuva” sem se molhar, foi pai de um quilombola chamado Preto, pai de Mãe Maria que herdou o nome de seus ancestrais: Maria de Preto de Sumido, ou simplesmente, Maria de Preto.

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Os presépios natalinos representam a exteriorização da religiosidade no Girau Grande. Em quase todas as casas, miniaturas de anjos e animais, detalhadamente arrumados, demonstram o espírito festivo do nascimento de Jesus Cristo, reis magos dividem espaço, em alguns casos, com Iemanjá, seus búzios e presentes. Alguns presépios são maquetes da própria comunidade. Outros reúnem instrumentos e objetos do dia a dia que resumem a labuta das marisqueiras nos rios e manguezais. [...] e minha tia tinha isso, ela dizia que as águas ela tinha dono. A água ela não vive sozinha, ela tem dono, tem o protetor natural das águas doces e das águas salgadas. E aí ela dizia olhe todas as vezes que vocês forem pra maré pescar, vocês tem que rezar, levar flores pra Dona das águas. Ela dizia a Dona das águas. (Eliete Calheiros, professora, 40 anos) Os presépios ficam expostos a até o Dia de Reis, 06 de janeiro, quando se inicia um novo ciclo festivo, prevalecendo sambas durante os sábados do mês. Para “armar um reis” faz-se necessário escolher a casa e manter segredo para pegar a pessoa de surpresa. No local consensualmente acordado pedia licença ao dono da casa, cantava “o reis” que


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virava em samba e depois em baile. Enquanto o dono da casa não abre você repete a cantiga até ele abrir. E como as casas geralmente só tinham dois quartos e as pessoas tinha-se muito filho, então todo mundo dormia no chão [...]. Então as pessoas começavam a tirar a cama do chão, a esteira do chão que dormia, então tinha que dá um tempo pra o dono da casa acordar assustado né, vestir roupa, que a pessoa vestia roupa, se ajeitava né, pentear o cabelo, botar o lenço na cabeça, tirar a cama do chão, é tirar os móveis que estivessem na sala. O dono da casa antes de abrir já fazia isso, tirava a mesa, tirava a cadeira, tirava a banca que tivesse na sala e aí enquanto esse tempo, enquanto a pessoa tava se ajeitando (risos) a gente tava cantando na frente da porta dele. Aí ligava a luz e tal e aí a gente abria a porta, abria a janela, abria a porta e aí a gente entrava já fazendo samba e cantava a música de samba, cantava, cantava, pedia a bença ao dono da casa com música e fazia aquele, aquela festa, aquele fuá com ele e aí depois ligava a radiola e dançava-se. (Eliete Calheiros, professora, 40 anos) Numa época de difícil acesso a equipamentos eletrônicos possuir uma radiola conferia status perante a comunidade, considerando que em torno dessa pessoa se planejava as festas de Reis, São João, Natal e Ano Novo. As pessoas só se conduziam ao local da festa acompanhadas pela radiola e pelos discos, não importava a distância que precisassem percorrer, logo o trajeto se transformava num verdadeiro carnaval. Por sinal, os carnavais no Girau Grande deviam ser bastante animados, tirando pelas caretas que circulavam pelo quilombo e redondezas, roupa sobreposta, cofo de marisco na cabeça e amarrado ao quadril, uma máscara de fronha, olhos pintados com a semente roxa da quarana ou com carvão, um pé de salto, outro de sandália. Era de fato um personagem capaz de inverter a ordem e os padrões sociais, embora os quilombolas já estivessem acostumados a enfrentar os estereótipos impostos pela sociedade cotidianamente. A gente assim, quando você fala dos escravos, eu sentia a maior tristeza de ser dessa cor porque você ia à igreja, você via só os branquinhos se vestir de anjo, ofertar flores e nunca tive acesso a fazer nada na igreja e nem minha família, era negro e não tinha acesso. A gente tinha medo da nossa cor, a gente é tão descriminado por causa dessa cor e eu nunca imaginei que existisse gente mais longe daqui, achei que era só a gente mesmo, que negro só era a gente mesmo [...] (Lenira Calheiros, marisqueira e jurista leiga) A articulação da comunidade não é recente, os sucessores da família Calheiros, por exemplo, seguem os passos de “Papai Véio” e tio Batula falecido recentemente no ano de 2013, ambos professores, responsáveis por alfabetizar e alimentar o sonho de muita gente na região. Provavelmente foi partindo dos sonhos comuns, numa tentativa de superar desafios que a comunidade se engajou politicamente, negociando políticas públicas, de moradia, emprego, saúde e habitação. A participação em cursos de apicultor e de jurista leigo, a inserção em programas sociais e a eletrificação do lugar só foi possível quando se pode ter acesso aos direitos que cabiam aos quilombolas, prova que a instigação de mudança provocada pelos mestres dos saberes está desabrochando. Eram através de histórias que os mais velhos convidavam os mais novos a participar do mundo mágico do quilombo. No Girau Grande, histórias de seres místicos (Caipora, Vovó do Mato, Vovó do Mangue, Sereia, Lobisomem), míticos, como de Seu Sumido que fugiu de um engenho para não pagar “renda”, convivem com outras cruéis e perversas como a do Senhor de Engenho que aquecia a fornalha da caldeira jogando um negro ou uma negra no fogo. Para enfrentar toda ordem de exclusão, os quilombolas criaram estratégias de ajuda mútua baseadas em laços

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solidariedade, tal como dá “adjitório” nas plantações de roças, construção de casas e telhados. Para amenizar as condições sociais, o Girau Grande tomou de empréstimo uma iniciativa realizada no Quilombo Salamina Putumuju, a realização anualmente de um evento beneficente de roupas. Aqui em casa a gente sempre fez roupa, uma vez no ano, duas vezes no ano. É Natal e São João. A gente fazia uma roupa no natal e uma outra no São João. Então você vestia véspera de São João, guardava, quando era dia de São João você vestia de novo a mesma roupa pra sair. Então a gente fazia roupa duas vezes no ano. E aí a roupa da gente nessa época era complicado porque aí você tinha que segurar seu vestido de Natal até São João, você indo pra todas as missas, pra todas as novenas, pra era missa, novena, ofícios, que a gente ia, festa mesmo de aniversário das pessoas que fazia. Então a gente pra ir em Maragojipe, pra ir pro médico, então a gente tinha que segurar com aquela roupa e as que a pessoas davam pra gente. Então no São João a gente fazia uma nova, então aquela que a gente, aquela do Natal já tava bem russada aí a gente podia ir em lugares mais perto, ir na igreja ali, ficar vestido. (Eliete Calheiros, professora, 40 anos) Embora já tenha chegado a luz elétrica, ainda existem muitos outros problemas a serem revolvidos no quilombo Girau Grande, que são constantemente discutidos perante o Conselho Quilombola, tal como a melhoria das estradas, que levam inclusive a outros quilombos da região, a instalação de rede de água, a efetivação de todas as etapas dos programas de habitação e a construção de novas escolas, visto que a única escola de ensino fundamental instalada na FUNDAC atende boa parte dos quilombos de Maragojipe. O quilombo Girau Grande se fortalece enquanto grupo identitário a medida que enfrenta as dificuldades. Na atualidade, as pessoas têm consciência que as coisas estão melhorando, no entanto, muito ainda precisa ser feito para compensar cada gota de suor deixado cair na terra, cada novo ser que veio ao mundo pelas mãos das parteiras e se fez homens e mulheres através do trato dos mais velhos, cada artefato construído pelos mestres, cada experiência compartilhada e por cada esperança depositada no amanhã.

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Curiosidades Anastácia – Quilombo extinto na antiga Fazenda Guaí, localizado entre o Baixão do Guaí e a Quizanga. Seus moradores se dispersaram nos últimos dez anos, quando um antigo prefeito de Maragojipe comprou as terras da fazenda e passou a indenizá-los por quantias irrisórias, os que não aceitaram o acordo foram pressionados a deixar a terra. Armar um reis – Preparar a realização do terno de reis, no dia 06 de janeiro e durante o mês. Derradeiro – Expressão quilombola que refere-se ao último. Esmola Cantada – Peditório feito para organizar a festa de algum santo padroeiro utilizando músicas ritmadas, principalmente sambas. Muitas vezes o grupo leva a imagem do santo que visita às casas, abençoando-as e anunciando a proximidade da festa. Escravar – Refere-se ao poente. Jiquim – Espécie de armadilha feita de talisca do bambu ou dendezeiro utilizada na pescaria, também chamado de munzuá. Parenteza – Expressão quilombola que refere-se aos parentes ou a família extensa cujo vínculo entre os pares não são necessariamente consanguíneo. Perí – Planta oriunda de lugares alagadiços, bastante utilizada na confecção de esteiras e abanos.

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Sr. Nailton


Tabatinga


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Mapa Geral de Tabatinga

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Localidade Tabatinga de Cima


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Localidade Tabatinga de Baixo


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Na mesma estrada que leva ao quilombo Girau Grande, pode-se pegar uma descida bastante íngreme de barro, entrecortando caminhos estreitos que darão no quilombo Tabatinga. São cerca de 40 famílias dispersas em núcleos, unidas, todavia, por laços de parentesco. Existe uma história mítica que aponta para uma índia por nome Leandra que teria deixado descendentes espalhados pela Tabatinga, Guaruçu e Girau Grande. Seria então grande parte dos moradores desses quilombos parentes consanguíneos, fato comprovado quando se observa as redes parentais na região. Por ventura, a reminiscência indígena desse quilombo se encontra também na semiologia, já que tabatinga é o nome dado a argila branca bastante utilizada na decoração de objetos cerâmicos de tradição indígena. Não é atoa a fala dos seus moradores de que “esse nome vem de longe”. Era a essa argila que os quilombolas tempos atrás recorriam para colorir a fachada de suas casas. Quando houve o processo de demarcação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, o território do quilombo foi dividido em Tabatinga I, próxima ao Guerém, e Tabatinga II, vizinha ao Girau Grande. Eu não sou criado e nascido aqui, eu fui nascido e criado quer dizer na mesma Tabatinga, mas a Tabatinga I, lá em baixo, não passa assim a ponte indo pro Guaí, eu nasci pra cara aquela ponte assim em cima, nasci ali. [...] Eu nasci lá embaixo, agora depois meu pai comprou aqui esse pedacinho de terra com um sacrifício danado e a gente passemos pra aqui, mas nasci lá embaixo. A minha primeira casa que eu fiz ficava ali atrás daquele morrozinho. Mais ou menos isso, é fica próximo, fica próximo o Guerém. A Tabatinga II, Girau Grande e a Tabatinga II, lá embaixo é a Tabatinga I, fica tudo agarrado com a outra, certo. Isso aqui é a fazenda Guaí, quando a gente compramos isso aqui, que meu pai comprou, o nome disso aqui mesmo é Sítio Coração de Jesus, Sítio Coração de Jesus, agora depois que começou esse negócio dos quilombolas e tal, aí botou o nome Tabatinga II, porque lá embaixo é a mesma Tabatinga né, aí pra deferençar uma coisa, aí botou lá Tabatinga I e aqui Tabatinga II. Rapaz, esse nome vem, vem de longe, esse nome passa lá em cima no, esqueci o nome, lá pro lado de Rosalina, pra esses mundos, de lá da Quizanga, esse nome vem de longe. Então ele daqui pra cima tem nome tá entendendo, vai deferençando os nomes. Então a gente conhece a Tabatinga e um lugar que tem aqui em cima que tem uma barragem pra baixo, pra cima só vai mudando de nome. (Nailton Costa, pescador e lavrador, 63 anos) A mãe de Nailton, Firmina da Mata Costa, mais conhecida por Sosó, mulher guerreira, centenária, egressa de Cabuçu, distrito de Saubara, casou-se e construiu família na Tabatinga. Ele se lembra da vida de trabalho que manteve desde criança junto a família, quando as atividades da roça e da pesca eram divididas respectivamente entre homens e mulheres. Sendo assim, acompanhava seu pai na camboa, rezando para pescar o alimento do dia. Muitas vezes conseguia pegar uma “moqueca” e outras mesmo sem sucesso “tinha que vortar pra casa contente”, mantendo a esperança no dia subsequente. A vida não era fácil, nos momentos de aperto chegava a ralar o buri e comer, mesmo com o sabor amargo das sementes.

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Com 17 filhos, Nailton Costa mostra as mãos calejadas do “jejume” diário prestando serviço nas roças alheias, esse tipo de trabalho era chamado “alugado” porque recebia o pagamento entre 8 e 10 reais por dia trabalhado e por uma atividade definida, nesse caso no trato da mandioca, limpando roça e fazendo covas. O dinheiro que conseguia ganhar tinha que suprir as primeiras necessidades da família, mas não podia esquecer de guardar a “renda” que seria paga ao fazendeiro anualmente. Para diminuir as despesas as famílias ainda fazem sua própria farinha, atividade majoritariamente feminina, e o azeite de dendê, normalmente utilizando o sistema da “terça”, dividindo a produção com o dono da casa de farinha ou a pessoa que extraiu o cacho de dendê. Cinco dos seus filhos morreram fato que era bastante comum num tempo onde o único socorro provinha dos conhecimentos resguardados e transmitidos por rezadores, curandeiros e


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Planta medicinal


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parteiras. Aliás, até os dias atuais a assistência médica não chega aos quilombos de Maragojipe, os doentes precisam se locomover para a sede ou para municípios vizinhos, e até Salvador, em busca de atendimento. Com as condições de vida no quilombo várias enfermidades acometiam seus moradores, algumas delas inacessíveis a ação das ervas medicinais, tal com a doença de chagas, que deve-se as casas de taipa que facilitam o acesso do barbeiro. As casas de taipa tem durabilidade máxima de 15 anos, caso não sejam acometidas por temporal, o que depende muito da qualidade da madeira utilizada. Algumas famílias chegavam inclusive a amarrar as madeiras com palha da bananeira devido a vulnerável condição econômica para obter material mais resistente. O processo de construção pode levar até dois meses, porque as etapas são feitas lentamente, considerando que as pessoas tinham que dividir o tempo com o mundo do trabalho na maré, “arrastando lama” no manguezal e na roça. Muitas casas da Tabatinga ainda são de “adrobe”, embora Nailton lembre-se de uma época que era preciso tirar “furquia de buri” para fazer os pilares, varas do mangue para encher entre os pilares e palhas de andaiá para cobrir o telhado das residências. Tudo era feito com a ajuda dos vizinhos, considerando as experiências acumuladas. Por exemplo, tinha que saber escolher a madeira da “cumieira”, caso contrário ela não sustentava a estrutura do telhado. Já o telhado, devia saber amarrar as palmas da andaiá “no compasso certo” para não causar vazamento. Aos poucos as residências que refletem o labor do quilombo estão sendo substituídas por estruturas de tijolo e cimento, com rede de esgotamento sanitário, através do programa de habitação do Governo Federal, entretanto, permanece o caráter solidário já que sem essa atuação a finalização das obras se arrasta por anos. [...]a primeira casa que eu fiz que foi ali embaixo onde tô dizendo a senhora era de palha, até furquia de buri eu não vou negar pra senhora, eu botei. [...] O buri a gente enfincou, nós fez um dente nele aqui assim viu, botei na trevessa, pra sugurar a trevessa, pra da trevessa aí agora a gente ir botando os pau que chama enchimento, pra do enchimento então a gente botar as vara, tudo isso foi da até, enchimento e vara foi da maré. Uns pedaço de pau, é de mangue, tirava aquele pedaço de pau do mangue, pra botar assim em pé na parede, depois botava uma vara de um lado, uma vara do outro, pra então bater o barro. [...] Nesse tempo ninguém fazia adrobe ainda não. (Nailton Costa, pescador e lavrador, 63 anos) São muitos os conhecimentos carregados pelos mestres da Tabatinga. Mamãe Piani, parteira e mãe de umbigo de muita gente na região era vizinha e tia da esposa de Nailton, cujas maiores informações podemos obter no trabalho intitulado Medicina Quilombola, ela fez o parto dos seus filhos. No momento do parto, os homens ficavam do lado de fora da casa aguardando o choro da criança para daí começar a comemoração. Para receber as pessoas que vinham saudar o mais novo integrante da família oferecia a meladinha, bebida à base de cachaça, mel e jenipapo, outras receitas também adicionam variadas folhas. O nascimento se transformava em festa no quilombo.

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As festas do arroz na Tabatinga eram embaladas com “sanfona, violão, pandeiro”, já nas novenas de Bom Jesus da Lapa, terno de reis e caruru de São Cosme e Damião prevalecia o samba. A devoção a Bom Jesus da Lapa está presente em todos os quilombos do Guaí, de onde saem frequentes excursões para pagar promessas e agradecer preces alcançadas. O apreço ao santo é latente na Tabatinga, como demonstra um dos benditos cantados nas suas novenas regadas à café, bolacha, pão e canjica: A igreja da Lapa é feita de pedra e luz Vamos todos para a Lapa visitar meu Bom Jesus


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Meu Bom Jesus da Lapa é um santo de caridade Ele dá esmola os cego e aos pobres e os aleijados A novena era seguida pelo samba, cujas músicas também fazem menção ao santo louvado: Oh viva, viva Bom Jesus da Lapa Viva Bom Jesus da Lapa Viva, viva Bom Jesus da Lapa Viva Bom Jesus da Lapa Que eu agora vim da Lapa Atualmente, essas festas são escassamente realizadas, tendo como maior impasse a “modernagem” que não consegue entender seus significados, nem se identificar visto que associam a um “tempo do cafona”. Os mais jovens não se adequam a tradição de que após rezar o santo, de fazer a oração do Senhor Deus, só pode sambar, já outros repertório apenas podem ser tocados após a meia noite. Diante disso, restou para os mais velhos as memórias e a saudade expressa na fala entusiasmada ao narrar esses momentos festivos – “tempo bom era esse tempo”. As expressões que mais marcaram na Tabatinga foram justamente a fé no Bom Jesus e os olhos admirados que acompanharam cada palavra anotada pelo entrevistador. Cada palavra escrita no caderno de campo era seguida de um movimento do corpo e dos olhos rumo ao papel, o interlocutor se calava porque algo mais forte lhe motivava, a vontade de ter aprendido a escrever. O direito garantido a todo e qualquer cidadão, todavia, fora furtado a grande maioria dos quilombolas. Bem pouquinho, pra falar menina a verdade eu estudei até um bandinho, até um bandozinho né, mas só que eu fui muito rude que até o meu nome eu não faço direito, e pra quê dizer assim ‘eu sei ler’, não eu não sei ler, quando eu vou fazer assim um negócio de um documento ou quarquer coisa eu boto o dedo. Que fazer pra não fazer certo não adianta né. [...] Vontade eu tenho né, agora só que eu não posso mais ir né, o problema não é de nada, é que eu não posso tá subindo ladeira, não posso subir ladeira, carro não vem panhar aqui e trazer. Mas dizer assim eu não tenho vontade mais de aprender, não, tenho que dizer que enquanto há vida há esperança né. (Nailton Costa, pescador e lavrador, 63 anos) As crianças da Tabatinga estudam no Guaruçu, enquanto que os alunos do ensino fundamental se encaminham ao prédio da FUNDAC, próximo ao Girau Grande. O acesso a qualquer uma das duas escolas é feito à pé, por estradas precárias, sendo intransitáveis em períodos chuvosos. Outra dificuldade enfrentada é o acesso à agua potável tirada de um minador na região, já as roupas e utensílios domésticos são lavados diariamente no rio Tabatinga. A energia elétrica chegou no quilombo às vésperas do natal de 2005, entretanto, são constantes as queixas ligadas ao valor das contas, já que as residências possuem poucos equipamentos eletrônicos. A trajetória de vida de Nailton e sua família se aproxima a de tantos outros homens e mulheres da Tabatinga, famílias inteiras que tem na terra o seu maior bem. Os quilombolas nutrem a vontade de viver muito mais tempo e transcendem felicidade perante o sonho de serem donos das suas próprias casas, não precisar estarem a mercê de outrem e não serem vulneráveis a mudanças repentinas sem vontade. Sendo assim, ser o dono da terra onde mora significa ter a liberdade para definir o futuro.

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Curiosidades Adrobe – O mesmo que adobe, argila utilizada para revestir as paredes das casas quilombolas. Arrastar lama – Expressão quilombola que refere-se a mariscagem. Bendito – Oração cantada de forma pausada, o tom de voz lembra uma súplica. Camboa – Ísca com varas tiradas do mangue, colocadas na maré para pegar camarão e peixes. Camboeiro é o pescador que trabalha com esse método de captura. Jejume – Expressão quilombola que refere-se a rotina. Modernagem – Expressão quilombola que faz referência à modernidade, aos ritmos musicais e expressões contemporâneas que não se adequam a ritualística das festividades realizadas nos quilombos. Tempo do cafona – Expressão quilombola que denota como os mais jovens enxergam e qualificam as festas tradicionais do quilombo.

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Dona Iรก


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Vista do Quilombo Guaruรงu


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Guaruรงu 55


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Mapa Geral de Guaruรงu

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Localidade Sede


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Arquitetura do Guaruรงu


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Passando a Tabatinga chega-se ao Guaruçu, que também possui nome indígena, além de batizar rio no quilombo. Muitos moradores assumem a descendência indígena ao afirmar “tenho parente, minha avó, minha bisavó é de índio”. Na entrada do quilombo nos deparamos com um jardim florido, embora as pessoas carreguem trajetórias de um “tempo escuro”. São histórias que se conectam com outras contadas nos quilombos vizinhos, considerando inclusive que muitos dos seus moradores fazem parte de uma rede complexa de parentesco dentro do território de identidade. Alguns são familiares consanguíneos, mesmo sem conseguir mensurar o grau de parentesco, outros afetivos, como os compadres, sem falar nos compadres d’ alma. Lindaura Calheiros Neves, mais conhecida por Darinha, faz parte da “parentela” da família Calheiros do quilombo Girau Grande. Seu avô se chamava Epifânio Calheiros, sua avó Antônia dos Passos e sua mãe Pocina Calheiros dos Passos, esta por sinal era rezadeira. Ela não sabe dizer ao certo de onde provém seu parentesco com o Girau Grande, apenas diz “sou parente de tudo, tudo é meus primos”. Esse é um dos inúmeros casos de famílias que se subdividiram em regiões próximas identificados nos quilombos de Maragojipe. Com os moradores do quilombo vizinho, a Tabatinga, não se faz diferente, as pessoas sempre se referem ao outro enquanto compadre, demonstrando vínculo, proximidade e respeito. As pessoas dos quilombos do Guaí se conhecem porque frequentam ou frequentaram os mesmos ambientes: a maré, a feira de Capanema, as “vendas” de “roupa porta de loja”, o alambique, a olaria e as terras utilizadas pelos fazendeiros, no momento de pagar “dia”. Os quilombolas compactuam experiências do mundo do trabalho, momentos divididos entre a roça de aipim e mandioca, a feitura da farinha e a mariscagem. No Guaruçu, prevalecem as roças de aipim e mandioca cujos muitos pés são utilizados para alimentar alguns escassos animais, como bois. Eles são engordados para serem vendidos num abatedouro local, cujas carnes são comercializadas em Capanema. As mulheres passam horas seguidas no “pé de assento”, cozendo a mandioca de terceiros em troca de parte da produção ou algum recurso financeiro, no quilombo chamam esse serviço de “cozer farinha de ganho”. Já as pessoas que possuem a matéria-prima, mas não a estrutura de uma casa de farinha com prensa, cocho, tacho, peneira e forno, realizam uma espécie de locação informal do espaço e dão por pagamento a “meia”, metade da produção.

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No Guaruçu mesmo, nasci e aqui mesmo estou, e aqui mesmo chego o dia seguinte né minha fia. (pais) Aqui também. (pai) Era Manuel Pompilho de Barros, ele trabalhava de enxada, mas era um tempo mesmo duro mesmo da pessoa, a gente foi criada assim mais criado minha fia com banana pisada, a gente comia banana verde, pisava no pilão pra comer. Era um tempo de margura mesmo, meu pai, minha mãe sofria muito, bastante, porque não existia, não tem nem condição de comprar as coisa, aí vivia assim da maré assim, pegava o marisco fazia aquelas moquecazinha e comia com banana pisada. Era mapé, sururu, tinha uma redezinha que ele pescava, pegava camarão, pegava peixe, mas era uma coisa que nego, que quem tinha mais nem trocava a farinha por peixe, não trocava não. (Joana Muniz, marisqueira, 62 anos) A maré era a principal fonte de alimentação no Guaruçu. Duas falas são elucidativas nesse ponto, a primeira de Joana e a segunda de Darinha: “o meu tempo foi vivido na maré, fui criada na maré, eu mariscava na maré”; “tinha dia da gente sair sem nada, sem nada, nem uma pedra de sal não botava na boca, pra maré”. Para realizar a captura dos mariscos era necessário se dirigir a pé ou em animais até o Guerém, na imediação da casa de Dona Nina. Por causa da distância os animais eram bastante utilizados no transporte dos mariscos, na “cangalha” ou no “panacum”, caso a mariscagem fosse boa era possível vendê-los em Capanema para intermediários que os revendiam


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em Salvador. Entretanto, os preços eram baixos, visto que os moradores do Pijuru, comunidade próxima a Capanema, também sobreviviam da comercialização de variados crustáceos. As famílias, normalmente, eram grandes o que aumentava ainda mais a preocupação com o alimento que iria à mesa. O dendê, a mandioca (farinha), a banana e o marisco, todos eles elementos essencialmente oriundos da natureza foram fonte de alimento e a valência nos momentos mais emergenciais na vida dos quilombolas. Foram muitas as famílias que padeceram devido às dificuldades econômicas, exploradas pelos fazendeiros. Quando esses homens “mal procedidos” decidiram vender parte das terras eles o fizeram aos próprios moradores, que foram liquidando a dívida lentamente com recursos ou animais. Dona Joana lembra que o Guaruçu “era tudo Guaí, depois foi vendendo, vendendo os pedaço, cada um ficou com o seu”. Os compradores dividiram as terras com seus pares familiares, mas muitos acabaram dando continuidade às relações de trabalho anteriormente pactuadas, com o sistema da “terça”, da “meia”, da “renda” e do “dia”. [...] nesse tempo era um tempo escuro, que eu não sei não, era quando minha mãe comprava um roupinha pra gente, quando minha mãe comprava um roupinha pra gente aquela do corpo já não se guentava mais, era minha fia nesse tempo era um tempo escuro, não se tinha nada. E quando eu peguei entendimento, fiquei moça, tomei conta de família, peguei ter filho, meus filho foi criado mais com marisco do mangue, era. Eu era trabalhando na roça, viajando mariscando pra ajudar a criar meus filho e pé de assento cozinhando farinha de ganho, era. (Lindaura Calheiros, marisqueira e lavradora, 70 anos)

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Dona Joana


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Os quilombolas carregam códigos identitários, que se tornam visíveis em diversos momentos da vida, como já citamos acima, no mundo do trabalho, mas também no mundo da festa. O “tempo escuro” do quilombo era, todavia, amenizado com o nascimento de crianças através dos conhecimentos centenários das parteiras, embora algumas não vingassem, ou na concepção quilombola nascessem “pecas”. Este era outro momento de encontro no quilombo, já que muitas pessoas iam visitar o recém-nascido ou participar da sua “sentinela”. As festas são responsáveis por aliviar os constantes pontos de conflitos enfrentados no âmago do quilombo, mesmo sem apaga-los elas assumem a função social de ditar um novo ritmo a vida cotidiana, caráter primordial quando uma comunidade é acometida por períodos de crises. As rezas, as devoções a Santo Antônio, a Santa Bárbara e a Nossa Senhora Aparecida, as festas juninas, as rezas para Bom Jesus da Lapa e o caruru de São Cosme e Damião, esses dois últimos realizados normalmente em outubro seguiam a ordem – “rezava, sambava, vadiava, dançava, tudo”, fazem parte de rituais de renovações de laços fraternais no quilombo Guaruçu, bem como nos demais de Maragojipe. Acontecem esporadicamente carurus para os santos gêmeos, visto que são muitos os “mabaços” nascidos no Guaruçu. Dois trechos de sambas cantados na comunidade dão conta da realização dessa festividade, momento em que todos são convidados a participar do “samba duro”: Caruru de São Cosme tá na cozinha Noé Caruru de São Cosme tá na cozinha Noé Dois, dois é meu liá, ele come a galinha não me dá Dois , dois é meu liá, ele come a galinha não me dá Comeu caruru lavou a mão Todo mundo comeu só eu não Só eu não, só eu não Todo mundo comeu só eu não No Guaruçu não existem terreiros de candomblé, mas alguns dos seus moradores afirmam ter frequentado alguns nas imediações em algum momento da vida, no Baixão do Guaí, cuja “mãe” Maria Antônia era tia e parteira de Dona Darinha, no Tabuleiro das Navalhas, numa região conhecida por Santo Antônio da Aldeia, caminho para o Terreiro do Pinho, que tinha por zeladora Maria do Rosário, assim como no Camarão, cuja dirigente mora no Guaruçu. Nesses “encantes” os quilombolas recorrem aos orixás para desfazer feitiços e realizar limpezas.

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O imaginário do Guaruçu é permeado por “visagem”, ou seja, seres mágicos: “aqui tinha essa estrada que passava era coisa, passava era visagem”. Acredita-se na aparição de um animal de “lombo todo vermeaço” entre a “capoeira fechada”, na “mata vilgem” e numa luz que “andava abaixo e acima aí” circulando as casas. O ambiente do quilombo era propício a essas visões, visto que tem apenas três anos que a energia elétrica chegou no Guaruçu. A comunidade já superou muitos problemas tal como a energia elétrica e a água. Hoje são utilizadas cisternas, cuja agua é bombeada para tanques, embora não seja tratada. Grande parte dos moradores é aposentada pelo fundo rural, o que gera uma fonte de recurso mensal para várias famílias, junto à participação a programas sociais do Governo, diminuindo, portanto, contextos de extrema pobreza.


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Hoje graças a Deus não tem quase problema nenhum, porque graças a Deus a gente veve tudo, os vizinho mais velho tudo bem, graças a Deus. Nenhum precisa de uns aos outro assim sobre negócio de tá nas casa, de casa em casa, catando uma coisa, catando outra. Mas naquele tempo você não via, se amanhecesse o dia dissesse vou na casa de fulana vê se eu acho uma colherzinha de café porque não achava, porque era tudo pobre, tudo fraco, tudo puro, era. E agora graças a Deus ninguém precisa ir numa casa, quando chega a tomar um quilo de açúcar, um pacote de café emprestado, pega agora de manhã quando for de tarde já tem, graças a Deus. (Lindaura Calheiros, marisqueira e lavradora, 70 anos) A comunidade do Guaruçu anseia por um posto de saúde, por acessibilidade nas estradas, por transporte que garantam a frequência de alunos na escola abrigada no prédio da FUNDAC e o deslocamento de moradores, e pela substituição das casas de taipa por outras de tijolo, através do Programa de Habitação do Governo, que ainda não contemplou o quilombo. Atualmente são cerca de 70 casas espalhadas em torno da única escola primária do quilombo. Nada mais justo que ao lado das histórias de lutas e resistências daqueles que trabalharam arduamente para sedimentar cada pedra do Guaruçu possam surgir outras capazes de amenizar as marcas deixadas pelo “tempo escuro” vivido no quilombo. Curiosidades Compadre d’alma – Pessoa da família, por exemplo, irmão, genro ou cunhado, escolhida para padrinho. Homem mal procedido – Expressão quilombola que refere-se ao caráter e aos códigos morais. Mabaço – Gêmeos. Parentela – O mesmo que “parenteza’. Refere-se aos parentes ou a família extensa cujo vínculo entre os pares não são necessariamente consanguíneo. Peco – Expressão quilombola que se refere a algo que não vingou.

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Vista do Quilombo Porto da Pedra


Porto da Pedra


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Mapa Geral do Porto da Pedra

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Localidade Sede


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Localidade Taquandiba


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Arquitetura do Porto da Pedra


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Primeira comunidade dentro do território de identidade a receber a Certidão de Remanescente de Quilombo pela Fundação Palmares, e única dentro do distrito do Guaí que faz divisa com os quilombos de Salamina Putumuju e Buri é o quilombo Porto da Pedra. Ela está separado de Capanema pela maré, todavia, para chegar via terrestre a esta vila que fora importante centro comercial no século passado faz-se necessário percorrer os demais quilombos tratados nesse volume. Como nos dá conta as coordenadas geográficas do experiente Sr. João: Esse mundo inteiro era uma fazenda, tá vendo lá, ali ó, naquele lado lá forão? Ali dobra pro outro lado. Esse local abriga cerca de 40 famílias espalhadas pela extensão do quilombo sem contar a Mutamba, morada daqueles que afirmam que no Porto da Pedra “cada um é rei da sua casa”. A frase proferida evidencia as batalhas travadas no dia a dia pelos quilombolas para superar o estigma de ladrão e invasor, e, por conseguinte criar dentro da comunidade uma nova identidade do que é ser quilombola e dos direitos que lhes cabem. Infelizmente, alguns ainda não se deram conta, mesmo diante de todo processo de extorsão e opressão, que são “os verdadeiros” donos da terra. Sendo assim, persiste, em menor grau, a visão de que vivem “de favor”, o que afeta a autoestima desses que foram colocados, ao longo de anos, numa condição de submissão. Porto da Pedra é o único quilombo do Guaí que não possui nome indígena, mas isso não deslegitima a reminiscência nativa do lugar, afinal de contas todo o município de Maragojipe era habitado por diversos grupos indígenas. O seu nome provém do porto bastante utilizado no quilombo, que servia de entreposto entre Capanema e Maragojipe, ponto de parada e onde se abastecia saveiros de mercadorias de toda região trazidas por animais. Esse porto era, contudo, obra da natureza, “todo feito de laje”, por isso, a região foi denominada Porto da Pedra. Olhando do núcleo habitacional do quilombo para o porto, pode-se apreciar uma beleza natural exuberante, que até parece envolta a uma película de tão intocada que se encontra. Por outro lado, até chegar nesse núcleo nos deparamos com um crime ambiental sem precedente, já que as terras exploradas pelos fazendeiros locais tiveram sua vegetação completamente devastada para abrigar o cultivo do eucalipto. Sendo assim, aqueles que se dirigem ao quilombo pela estrada que leva à São Roque, primeiro ficará chocado com a poeira provocada pelo agrotóxico usado nos eucaliptos que se espalha de um lado a outro, tornando a paisagem cinzenta, depois, será contemplado por uma obra prima do patrimônio natural. Esses são contrastes que se fazem visíveis a léguas de distância, inclusive da Samambaia, região que separa o quilombo Sítio Dendê do Porto da Pedra. A preservação do ambiente natural nos quilombos condiz com a relação de respeito mantida entre quilombolas e a natureza, já que para eles esta é a morada de seres que protegem o seu espaço e tal como eles lutam para defender a terra onde vivem. Diante disso, cada lugar do quilombo tem seu dono:

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Ali, ó. Aí eu dormia no mato, caçava, hoje em dia eu não caço mais, pegava paca, tatu. Agora esses dias que eu não tou mais, me enjoou, enjoou não. Se a gente cria nossas famílias, então vamos deixar os bichinhos de lá do meio do mato também se criar. É a casinha dele, olha, tem as cobras ai no mato, uma cobra eu vou e piso em cima dela e ela me pica, aí o que é que eu vou fazer? Vou caçar o pau e matar ela? Não, porque a cobra me mordeu, isso é uma comparação, é sobre assim. Ela me mordeu porque a casa dela é lá, a minha é de cá. Eu fui e pisei em cima dela, então eu fui provocar ela né? Aí ela diz assim: “ô, tá me pisando”. Se alguém vier de lá pra cá e pisar no meu pé, vai ficar doendo né? Então os bichinhos também são assim. “Ah, mordeu”, mordeu porque é perversa? Não, mordeu pra se livrar. Por que eu corro delas? Elas também têm medo da gente, não é certo? Aí eu não quero pisar nela não que ela me morde. Ela diz assim: “eu nunca vi essa pessoa, essa mulher,


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esse homem, ou quem for lá, tou com medo dele”. Aí eles ficam com medo e podem até morder a pessoa, porque tá na morada deles. Se bulir com eles no mato aí eles vão ofender a pessoa, aí diz que ele é agressivo? Não, ele é o rei do mato, o dono do mato, ali é a casa dele. Eu sou o rei da minha casa né? Cada um é rei da sua casa. (João Marques Jesus, lavrador, 76 anos) É da natureza que os quilombolas retiram o sustento das suas famílias, realizam o extrativismo da piaçava e do dendê, a pesca e a mariscagem, o corte da lenha para cozinhar o alimento, além do cultivo de aipim, mandioca, amendoim, milho, melancia, banana e hortaliças, a feitura da farinha e a apicultura. Criam alguns animais, alguns deles recebem até nomes: “Destroi é o carneirinho, tem Mussum é o jegue, que é escurinho, Querence é o outro jegue, Julião o cavalo e Safira é uma égua”, conforme indicação de Roselita Oliveira de Jesus. Ultimamente os quilombolas que se dedicam a pescaria e a captura de mariscos se queixam de não ter tempo para cuidar das roças porque precisam se deslocar para o manguezal em outras regiões, já perto de Maragojipe, por causa da emergente escassez de crustáceos no Porto da Pedra. Talvez esse problema tenha sido ocasionado pelos herbicidas das plantações de eucalipto que descem às cabeceiras do rio. Após o dia inteiro de mariscagem, depois do caminho trilhado a remo, no retorno ainda se faz necessário à realização de todo o processo de cozimento e retirada das cascas, para daí deixar o produto em condições de ser comercializável, essas são atividades que dependem do engajamento de toda família. Os mariscos – mapé, lambreta, ostra, sururu, chumbinho, taioba, aratu e siri – são vendidos a atravessadores por cerca de dez a doze reais. O pouco recurso conseguido com a venda dos mariscos, após tanta labuta dentro do manguezal, se faz, todavia, importante fonte de renda no quilombo. Sendo assim, quando ocorre a obtenção de produtos além do necessário para a sobrevivência da família, os mesmos são vendidos no distrito de São Roque, com o objetivo de conseguir recursos financeiros que serão utilizados para a aquisição de bens não produzidos no quilombo. Diante da carência financeira as pessoas dividem o tempo com inúmeras atividades. Além das atividades destacadas, num passado recente, existia as relações econômicas e políticas mantidas como os fazendeiros tal como abordamos ao longo desse trabalho. Rapaz, de tudo eu sei fazer um pouquinho, de tudo, construção, trabalhar em roça, no mato, tirar piaçava, tirar madeira, de tudo eu sou um pouco. [...] A piaçava é chegou no pé, limpou o pé assim, o que mais, tem a piaçava, você puxa ela da tauba, ela é garrada na tauba, puxou da tauba ali, cortou e pronto. Tem o tempo certo de você tirar ela. Que no caso quando abre o mato, ai você leva o que? Leva seis meses o mato fechado, você sem voltar pra poder tirar de novo. [...] Passou o período de seis meses aí você já pode ir lá tirar de novo. Aí no caso entre esses seis meses vai pescar, quando chegar o período de tira para a pescaria e vai pegar piaçava ou se não trabalhar na roça. (Antônio Borges Conceição, pescador e lavrador) Aqui tinha um projeto de a gente tirar piaçava. O fazendeiro disse: ‘eu vou dizer que vou dar duas tarefas de terra, pra cada qual, e ninguém entra no meu mato’. [...] Entendeu como é, a sabedoria que eles fazem? Eles pensam porque vê a gente, assim, dentro dos matos, ‘ele é bobo’, mas não, nós somos experientes. [...] No meu tempo aqui era tenso, era fazendeiro escravizando as pessoas, que nem eu mesmo que fui escravo. O fazendeiro aqui pegando, que nem eu mesmo apanhei, hoje em dia tem os barões que podem ate me mandar tirar o couro. Que hoje em dia tá um negocio comum. (João Marques Jesus, lavrador, 76 anos)

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Da época dos fazendeiros, muitas são as narrativas que dão conta das humilhações sofridas pelos quilombolas. Práticas que se enquadram na escravidão moderna, que desprovê o indivíduo da liberdade a partir da ameaça de expulsão da terra e punições físicas. Entretanto, a natureza se encarrega de ser a “grande mãe” dos quilombolas. Nas imediações do Porto da Pedra existem inúmeras fontes, que são batizadas com o nome do morador mais próximo, entretanto, a maioria não está em condição de uso devido às estiagens que provocam a diminuição do volume de água. Os minadores, como a fonte de Eufrásio, a fonte de Bobó e o Olho D’agua ou Zóio D’agua, cujo minador límpido está cravado numa pedra numa região chamada Taquandiba em frente ao Sítio Dendê, são responsáveis por abastecer toda a comunidade com água potável. Os moradores costumam andar cerca de uma hora, saindo de casa às cinco da manhã, caso contrário não conseguem obter água. O quilombo Porto da Pedra é entrecortado pelo rio da Levada, passa por áreas de mata fechada e vai desembocar na maré, sua água é utilizada para lavagem de roupa e utensílios domésticos. Encontra-se poluído na proximidade da maré devido o desmatamento ocorrido às suas margens. São muitas as dificuldades enfrentadas no quilombo. A luz chegou em 2005, mas nada da água. Falta meio de transporte que possa realizar o deslocamento dos moradores a outras regiões, muitos costumam fazê-lo por meio de animais. O quilombo não possui posto médico. A assistência médica é prestada em Nazaré, Maragojipe, São Félix ou Cachoeira. Em caso de doença fica extremamente difícil realizar o socorro, já que ninguém possui carro, nem mesmo sinal telefônico é possível obter, só mesmo em alguns poucos pontos. Existe uma escola primária e os alunos do ensino fundamental e médio assim como nos outros quilombos do território precisam se deslocar para a FUNDAC ou para Maragojipe. O depoimento abaixo revela uma realidade árdua para aqueles que querem ter uma profissão além daquelas ensinadas pelos pais: E dificuldade aqui tem várias, porque a gente mora aqui, os meninos pro colégio aqui mesmo é uma dificuldade grande, que os meninos saiam daqui, de onde moro, daqui, os meus mesmo, pra pegar o carro lá na pista. Andando, sair daqui 4 horas da manhã pra pegar lá, e vinha com esse sol quente, ou chovendo ou sol quente, tinha que vir, mas agora como a prefeitura botou um carro, eles sobem aqui, ainda anda um pedacinho ainda, mas pega o carro lá em cima. Mas a dificuldade continua a mesma, não tem como dizer assim que é fácil pra nós aqui. (Marilúcia de Jesus do Carmo, marisqueira, 38 anos)

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Muitos moradores expressam o desejo de aprender a ler e a escrever o próprio nome, tal como Maria Auxiliadora Barbosa, 77 anos, mais conhecida por Dete que batiza também a ‘fonte de Dete’ no quilombo. Ela diz que “não sei nem fazer a letra do A”, mas fala com orgulho que os filhos estudam e alguns até já se formaram, embora não consigam se inserir no mercado de trabalho. Para aqueles que não tiveram o acesso a educação formal resta o arrependimento e a esperança depositada nos filhos. A falta de emprego provoca nos mais jovens a vontade de morar em outro lugar capaz de possibilitar melhores condições de vida. Quem precisa sair do quilombo rumo à Maragojipe deve andar cerca de trinta minutos na estrada de barro até a pista onde é possível pegar um transporte. Caso tenha a necessidade de fretar um carro terá que pagar cerca de oitenta reais. A dificuldade de acesso ao Porto da Pedra fez com que algumas mulheres diante das dores do parto se dirigissem de canoa a sede, passando pela Marianga, o Sítio Dendê, até chegar a Maragojipe. Mas a grande maioria das mulheres do quilombo teve seus filhos pelas mãos das parteiras, como Carlista do Pijuru e Zinha, moradora do Porto da Pedra.


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Panelas ao sol


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As mulheres quilombolas são guerreiras que nos ensinam lições de superação, porque além de enfrentar lado a lado aos maridos todas as dificuldades, trabalhar em prol do sustento familiar, ainda sofrem as dores do parto e educam seus filhos para a vida. A mãe de Roselita, D. Antônia, lembra o quanto pelejou para parir um filho que estava atravessado e lamenta ter perdido outro, por causa de tanta quentura que recebeu no “pé de assento”. Quando a gente tava de menino assim, eu, Dete aqui, esse pessoal aí, tudo, ia pra maré pra ajuntar, pra ajuntar dinheiro pra quando a gente ter menino né, pra ter sabão, um gás, não tinha esse negócio aí de luz nem nada, nós trabalhava no mangue pra gente ter, quando saía do mangue ia pro cabo da enxada. Pra juntar dinheiro minha fia pra quando eu parir, pra gente ter menino aí a gente ter dinheiro pra comprar as coisa, gás, é sabão, esses negócio, que os outro o marido ajudava em comida, mas isso que a gente não podia, que ele também era fraco também, a gente também tinha que ajudar ele. (Antônia Eulina Rebouças de Oliveira, marisqueira e lavradora, 61 anos) Ela é devota do santo que na mentalidade popular dizem ser casamenteiro, no entanto é também patrono das grávidas, agricultores e pescadores, por isso, colocou o nome de cinco dos seus filhos Antônio. Outros dois santos são bastante louvados no quilombo, ocupando lugares destacados nos altares, são eles: São Roque e São Bartolomeu. Para cada santo dedica-se uma novena e uma festa em especial, com reza, samba, às vezes caruru, e baile, tal como nos demais quilombos de Maragojipe. A nostalgia presente ao lembrar-se da constância em que aconteciam essas festas transparece a cada narrativa. O imaginário do Porto da Pedra é povoado de seres mágicos que moram nas matas e nas águas. Roselita, mais conhecida por Veinha, 34 anos, se recordou das histórias contadas pelo pai sobre sua bisavó índia, que chegou a desaparecer na mata do Porto da Pedra, foi resgatada da primeira vez e da segunda nunca mais apareceu, tendo se transformado na “Vovozinha do Mato”. Já Dete se lembrou de outra, nessa um canoeiro do Guaí de passagem para Maragojipe avistou

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Piscinas naturais


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uma mulher sentada no ‘lajedo’ que pediu que lhe trouxesse no retorno um pente, uma fita e um sabonete, tendo o mesmo esquecido se jogou na água e desapareceu. Tudo o que cerca a vida quilombola está conectado a natureza. Da terra provém o alimento, o sustento, assim como ela acolhe aqueles que não se fazem mais presentes. A mata é a própria morada quilombola – “que na hora que eu quiser deitar eu deito, na hora que eu quiser levantar eu levanto, levanto cedo vou por aí pelos mato”. A água fonte de vida, de esperança, aquela que possibilita o nascimento de novos frutos. E quanto aos frutos, esperamos que eles sejam capazes de transformar e ampliar as perspectivas de vida destes territórios de identidades. Curiosidades Laje – Superfície sólida, por exemplo, terra ou pedra. Mutamba – Povoado que fica dentro do Porto da Pedra, mas cujos moradores não aceitaram terem suas terras inseridas no processo de demarcação realizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Pé de assento – Trabalho realizado na feitura de farinha.

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