VILSON CAETANO DE SOUSA JUNIOR - MAGNAIR BARBOSA - FABIO VELAME
Mapa Geral das Comunidades Quilombolas
©2013 Estaleiro Enseada do Paraguaçú Todos os direitos reservados Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte
Coleção
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver Volume 3 AUTOR: Vilson Caetano de Sousa Junior (Org.), Magnair Barbosa e Fabio Velame Fotografia: Rodrigo Siqueira Pesquisa: Marina Bonfim Cleidison Carvalho Revisão: Maria Verônica Capa e Projeto Gráfico: Ton Friche Obra financiada pelo Estaleiro Enseada do Paraguaçú Ficha Catalográfica elaborada por Cátina M. Santos Cerqueira - CRB5/1440
S729 Sousa Junior, Vilson Caetano de. Dendê, Quizanga, Topá de Cima e Pinho / Vilson Caetano de Sousa Junior; Magnair Barbosa; Fábio Velame. Fotografia: Rodrigo Siqueira, - - Salvador: Brasil com Artes, 2013 76p.: il.
ISBN: 978-85-66694-12-3-Coleção Quilombos bom de ver e bom de viver; v.3
1. Contos Brasileiros. 2. Quilombos. 3. Cultura Negra. l. Barbosa, Magnair. ll. Velame, Fábio. lll. Título CDD: B869. 3
Apresentação
Quilombos, bom de ver e bom de viver é uma publicação fruto da parceria entre o Projeto Brasil com Artes e o Estaleiro Enseada do Paraguaçu em atendimento às Condicionantes da Anuência n°08/2010 da Fundação Cultural Palmares. Nela, o leitor irá encontrar informações sobre a história, economia e aspectos sócio ambientais de comunidades quilombolas do município de MaragojipeBa. Trata-se de um trabalho produzido em oficinas, realizadas por uma equipe multidisciplinar contendo caracterização, trajetórias e relações territoriais destas comunidades a partir de seus próprios percursos históricos vividos. É um trabalho de registro do patrimônio cultural destas comunidades, entendido como o modo de ser, viver e permanecer que inclui suas criações, obras e edificações. Quilombos, bom de ver e bom de viver visa contribuir com a documentação básica referente aos remanescentes de quilombos e fornecer materiais para fortalecer politicas públicas e ações voltadas para as comunidades historicamente invisibilizadas e excluídas. Entendendo as comunidades quilombolas como “grupos sociais cuja identidade étnica os distingue do restante da sociedade”, este trabalho contribuirá com a luta pela garantia do direito a terra e manutenção de seus modos tradicionais de vida e produção. Neste volume o leitor irá encontrar informações sobre as comunidades quilombolas do Dendê, Quizanga, Topá de Cima e Pinho.
Introdução
Maragojipe é uma cidade do Recôncavo baiano localizada a menos de 150 km da cidade de Salvador, capital do Estado. O significado do nome “Maragojipe” divide opiniões. Há os que defendem a expressão “no rio dos maraús”, mas há também aqueles que optam pela explicação “rio dos mosquitos”. Fato é que, tanto em uma quanto em outra, na palavra indígena, faz-se menção ao “rio”. Desta maneira, Maragojipe está mesmo associada ao caminho feito pelas águas dos rios Paraguaçu e Guaí. Essas águas, ainda hoje, alimentam manguezais, fertilizam suas terras, sustentando famílias negras, cujas histórias confundem-se com as da própria cidade, que, no século XIX, conseguiu chegar ao máximo da sua vida social, política e econômica, graças à participação dos africanos e seus descendentes.
Quilombos do Brasil Quilombo é uma palavra originada das muitas línguas africanas como tantas outras que conhecemos como camarada, quitanda, calunga, canga, dendê, samba etc. No Brasil, como em outras partes do mundo fora do continente africano, passou a significar a história de luta pela liberdade e resistência dos africanos e seus descendentes ao redor de dois conceitos: terra e ancestralidade.
Os quilombos são espaços coletivos construídos pelas pessoas tendo como referência a natureza. Nestes lugares, homens e mulheres mantêm-se vivos, graças às redes de solidariedades construídas ao longo de suas vidas. Em todas as partes do Brasil e da América onde houve escravidão, surgiram também quilombos. Quilombos, que atravessaram gerações enfrentando os filhos dos senhores de engenho, agora, enfrentam também fazendeiros que, com seus jagunços, de forma violenta, tentam intimidar trabalhadores e trabalhadoras
rurais, marisqueiras e pescadores, insistindo, assim, em manter uma das formas mais cruéis de atentado à dignidade humana, a escravidão. A realidade quilombola no Brasil assemelha-se a situação dos palenques da Colômbia e Cuba, dos cumbes da Venezuela e dos marrons do Haiti e Ilhas Francesas. Em todos estes lugares nos deparamos com populações vivendo à margem da sociedade, na linha da pobreza, expostos a situações de riscos. Trata-se de comunidades marcadas por problemas sociais ocasionados por fatores econômicos, políticos, ou simplesmente situações que veem lhes impulsionando ao longo da história para abaixo da linha da pobreza, representada pela ausência de condições básicas para sobreviver, analfabetismo, problemas de saúde, educação, saneamento básico, acesso a terra, água potável, luz elétrica, violência etc.
Coleção Quilombos bom de ver e bom de viver. Volume 3
Dendê Quizanga Topá de Cima Pinho
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
10
Catando siri
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
DendĂŞ 11
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
Mapa Geral do DendĂŞ
12
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
13
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
14
Localidade Sede
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
15
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
O sítio Dendê como é chamado pela comunidade, é o quilombo mais próximo à cidade de Maragojipe, se comparado às outras comunidades. Pode-se dizer que fica dentro de Maragojipe, bastando passar por bairros de nomes curiosos como capa gato e angolá. O sítio Dendê fica distante a pé, uma hora de Maragojipe, distancia considerada razoável pelas pessoas que se acostumaram a caminhar por estradas que em alguns dias do ano tornam-se inacessíveis pelos buracos e pela lama. Outra característica desta comunidade é o fato de que, se comparada com as demais, possui o menor número de famílias. Segundo Genilson de Jesus Pinheiro, pescador, 41 anos, o sítio Dendê possui em torno de 10 famílias unidas por laços de consanguinidade e histórias comuns. As terras do dendê, em torno de 10 tarefas, teriam sido recebidas de doação por seu avô Rogaciano Barbosa como pagamento de serviços realizados na fazenda. Assim Preto, como é conhecido, traça os limites da sua comunidade dizendo, “o Dendê começa num pé de árvore chamado mulungu e vai até aquele poste.” E segue refletindo: Está é a parte que o meu avô recebeu como uma indenização após muitos anos de trabalho. Como Seu Dudu, Manoel Guedes. Para a pessoa que trabalha a vida toda isso é pequeno. Se essas 10 famílias fosse trabalhar nesta terra ela ia fica pequena. O meu avô recebeu, mas o meu outro avô continuou na terra pagando a terça. E as outras pessoas que não receberam nada? As pessoas tem que pensar nisso. Genilson Pinheiro é a principal liderança da comunidade do Dendê, ele demonstra que não é simplesmente a posse da terra, mas também romper com a escravidão contemporânea, denunciar casos de abusos e violência e garantir um conjunto de direitos para as comunidades tradicionais. Em outras palavras, a questão quilombola não pode ser restringida apenas à posse da terra. Entendimento que divide opiniões dentro da comunidade. [...] nem todo mundo da comunidade tem essa visão. Acha porque alguns tem a posse da terra- porque uns conseguiram com sacrifício, outros já herdaram de outros que herdaram de outros, uns conseguiram a posse- então, eles não conseguem ver além disso. Eles dizem: eu já tenho minha terra, eu não preciso mais... Mesmo se referindo apenas às 10 tarefas de terras doadas ao seu avô, situadas entre um pé de mulungu e um posto de luz elétrica, as terras do Dendê, batizadas com esta denominação certamente pela presença significativa da palmeira de onde se tira de tudo, no dizer dos quilombolas, que já nos ocupamos num trabalho especifico, vão mais além, estendendo-se pelo lado do rio até o Quilombo Porto da Pedra, no sentido Maragojipe, até a Ribeira e acima, á Luz, Marianga e o Engenho Velho, localidades que se na atualidade foram divididas em fazendas, outrora no esplendor da economia açucareira ou no auge da produção de cerâmica, constituíam uma única terra sobre a qual, além de senhores e donos de engenhos, se guarda a lembrança de fazendeiros que iam buscar trabalhadores que fugiam de suas terras a força, e lhes traziam “amarrados com as mãos para traz, no lombo do burro.”
16
A certificação do sítio Dendê como remanescente e quilombo acontecida no ano de 2006 foi assim o resultado de um amadurecimento da comunidade, em outras palavras, da apropriação de suas histórias a partir da lembrança de seus avós. Na verdade foi o seguinte, a gente já tinha a visão de que a comunidade era descendente de negros, né? E que viveram aqui um tempo atrás, né? no período da escravidão, que já tínhamos essa visão pela conversa do meu avô e de outras pessoas mais velhas da comunidade [...] meu avô falava muito, ele falava de quando eu era menino, que o pessoal na época que existia os engenhos ,né? Que um dos donos do engenho daqui do lado aqui, vizinho a nossa comunidade, do outro lado do
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
17
Crianรงa mostrando peixe
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
18
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
19
Vista do Sítio Dendê
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
rio, o cara era cruel, eles trabalhavam com essa questão, do cultivo da cana, né? fazia o açúcar, esse tipo de coisa e, dizia que o cara era impiedoso. Teve uma época, que o cidadão pegava, até os filhos do pessoal e quando o forno do engenho tava ligado, tava o fogo acesso, ele pegava e espetava os meninos e jogava no fogo [...] mais a uns 10 anos atrás ou mais, chegou uma turma da pastoral dos pescadores, ai a gente conversando dos costumes, da historia da comunidade assim, ele disse: vocês possivelmente são remanescentes, são descendentes dos negros da época e tal, ai que a gente veio saber né? que existia todo um processo desse de reconhecimento pras comunidades negras, ai a gente começou a fazer essa discussão e acompanhar a discussão em outras comunidades e ai a gente veio descobrir o que foi passado aqui nessa comunidade no período da escravidão e até um período depois, que assim os pescadores e os agricultores tava livre por um lado, mais não tinham a posse da terra e sempre ficavam preso aos donos de fazenda, né? As pessoas que tinham maior poder aquisitivo e que exploravam também a questão da mão-de-obra escrava, que até hoje no município ainda existe isso, que a pessoa trabalha a semana toda e na semana, as pessoas que tivessem assim dois filhos ou três filhos cada um e mais o pai de família e aqueles dois ou três filhos que trabalhassem pagava um dia de trabalho ao dono da fazendo e era dessa maneira. E tiveram pessoas que fizeram fortuna com a coisa desse trabalho escravo e sem as pessoas terem o direito de plantar aquilo que queria, né? Aquilo da necessidade. E ai recentemente, mais recente a gente foi vendo as coisas, que era que tinha na comunidade, mais la pra frente, na área da Marianga, a gente tinha um local que era um cemitério, tem o cais onde tinha um engenho, né? Já do outro lado, lá no lado de Capanema, ali naquela região do rio Guai, subindo a gente vê as ruínas do engenho, de um outro engenho, né? Aqui na lagoa, aqui em cima, a gente também vê ,né? E assim meu avô veio dessa área e vivia aqui de pesca, mais também vivia, viveu muito nessa região, nasceu nessa região aqui pra cima, pra cima da lagoa, né? Em um local mais distante lá do lado do Topá de Cima, outro quilombo. Aí a gente veio, veio juntando as coisas, né? daquilo que os mais velhos falavam e a gente viu também que era uma comunidade remanescente de quilombo... Com o declínio da economia açucareira, o sítio Dendê teria se tornado num polo ceramista para onde acorreram muitos trabalhadores. Ainda hoje, um olhar mais curioso e atento com a ajuda dos membros da comunidade podemos encontrar vestígios de olarias em ruínas que produziam desde utensílios domésticos a outros utilizados em construções como lajotas, telhas, blocos e manilhas usadas em redes de esgoto. Juntava-se a isso a extração do azeite de dendê, ou como se diz, “lavar dendê”, o preparo da farinha, ou “cozer farinha” e o trabalho na roça, como lembra Dona Maria José Sacramento, marisqueira, aposentada, 83 anos.
20
Vivia de limpar roça, tinha enxada, aí limpava a terra, fazia aquela terra, aprontava, limpava toda, quando acabava, era os homem que cavava cova, fazia as covas. Quando a mandioca tá macia, que tá deste tamanho, aí eu ia com a enxadinha, limpava tudo, limpava a roça toda, limpava. E aí eu limpava a terra! Limpava terra, plantava mandioca. Ah, minha filha eu cosei muita farinha na vida, saia madrugada pra casa de farinha longe. Meu pai fazia, juntava 4, 5 cangalha de mandioca botava na casa de farinha, a gente raspava toda, botava toda no fogo. Quando era de madrugada a gente levantava, eu e ele, ia pra casa de farinha de meu tio. Meu tio tinha casa de farinha, irmão do meu pai, aí a gente ia, chegava lá ele desarrochava a prensa. Aí enchia de massa, pra arrochar, pra enxugar. Tirava a massa aí ia peneirar aquela massa que naquele tempo não tinha motor pra ceivar, hoje em dia tem motor e naquele tempo era todo assim oh, na mão, sabe como é? Peneirava a massa toda, quebrava toda, assim oh, pra cabar peneirar, cessar toda assim, aí ia botar fogo no alguidar, eu ia mexer, ficava o dia todo mexendo, torrando farinha, o dia entrando por a noite, tinha vez sair, até meia noite a gente sair da casa da farinha, era assim. Aí torrava na casa de farinha, tinha dia, tinha vez que a gente não vencia ficava pra o oito dia. Ah! pro lado de farinha eu sofri muito. Eu trabalhei muito na roça e gostava. Ave Maria! Falar de casa de farinha, raspar mandioca, acho que se achasse ainda fazia. Quando vejo passar aí todo domingo de manhã, na televisão o povo torrando farinha, raspando mandioca, ensacando, tudo, né. Digo assim ‘êta’, eu lembrando do meu tempo!. Raspava mandioca, torrava farinha, hoje em dia é tudo de vantagem. Farinha, aquele alguidar enorme de bichinho né, aquela farinha num instante faz, 30 sacos, mas
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
hoje em dia, naquele tempo oh a gente trabalhava pra fazer 2 saco ou 3 de farinha. Era trabalho, era trabalho. Eu já trabalhei muito em dendê também. Esse negócio tudo eu sei fazer, não faço hoje em dia porque num, num tem né e a idade não dá, mas eu já fiz muito azeite, farinha. Trabalhava na roça... Todavia, a principal atividade econômica do sítio Dendê é a pescaria e a mariscagem. A localização privilegiada da comunidade conforme descrição de Roberto, pecador, 37 anos, à beira do mangue, torna a localidade num verdadeiro porto pra mariscar. “ Você está com fome agora, daqui a pouco está com a barriga cheia. Então a gente mora na beira da riqueza, tem água na porta.” A mariscagem ajuda resumir a vida da comunidade: Desde a idade de 7 anos que eu trabalho no mangue. É brinquedo? Muitas vezes ia mariscar pra quando chegar em casa escaldar o marisco pra aprontar pra os filho comer, que não tinha nada, a dificuldade era terrível. Quando mariscava mais, vendia. Quando mariscava pouco a gente tinha que comer. Que se não comer não ia achar que comprar né, eu não podia. Já pensou, sem marido com 13 filho na costa pra dar o que comer. No mangue e na enxada, já pensou? Ah! ah ! sol quente, duas maré, e manhã e de tarde, entendeu? (Maria Dormelinda, marisqueira, 87 anos) A vida de marisqueira? Ai ai !!! Tantas vezes eu tava mariscando e chorando dentro do mangue. (Jair Sacramento, marisqueira, 58 anos) Nascida e criada aqui com marisco. Sou marisqueira. Tiro ostra, tio sururu, tiro mapá, tiro mirim, pesco siri. Aratu é mais difícil. Quando dá, a gente pega. As veze peco de rede, de camarãozeira (Maria Catarina, marisqueira, 47 anos)
21
Marisqueira do Sítio do Dendê
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
Na comunidade Dendê todos os dias se chega peixes de todos os tipos, principalmente os chamados “peixes de fundo,” como vermelho, carapeba, robalo etc, embora se pesque de tudo. Pesca na maioria das vezes iniciada a noite, quando se sai em grupo, pesca na camboa, espécie de armação feita com as taliscas do dendê na qual o peixe e alguns mariscos entram e não saem e pesca de munzuá, um tipo de cesto inicialmente trançado com a talisca do dendezeiro, substituído pela armação de ferro e tela de plástico, mas durável e de manejo mais fácil. O “progresso” iniciado na região na década de 70 com a instalação do canteiro de obras São Roque do Paraguaçu e nos anos 80 com a Barragem Pedra do Cavalo, que impactaram sensivelmente o rio Paraguaçu, a Bacia do Iguape e a Baía de Todos os Santos é apontado pela comunidade como uma das principais causas da diminuição sucessiva do pescado. Soma-se a isso, o desmatamento na cabeceira dos rios e a poluição das águas. Vizinha ao quilombo Porto da Pedra, separados apenas pelo rio, a comunidade vem sofrendo com a poluição das águas decorrente da aplicação de herbicidas na plantação de Eucalipto. Além de envenenar o solo, os herbicidas estão poluindo os rios e acabando com as poucas nascentes que servem como única fonte de água potável para as duas comunidades, sem falar na morte de algumas espécies de tartarugas que já aparecem à beira dos rios ou enroladas nas redes. Embora seja a comunidade mais próxima do perímetro urbano de Maragojipe, o sítio Dendê está para o centro da cidade como qualquer comunidade da periferia, marcada por pobreza e contradições. A comunidade não dispõe de estradas calçadas ou asfaltadas, fato que dificulta o seu acesso. Consequentemente não se tem como ter um transporte regular, restando mesmo caminhar durante uma hora até o centro da cidade em meio à lama, saltando os buracos, percurso feito pela maior parte dos estudantes todos os dias em épocas de chuva. O sítio Dendê possui uma escola municipal que se chama Emídio Dativo. Todavia, a escola não é considerada “escola quilombola.” O quilombo possui luz elétrica e água encanada, porém de qualidade muito ruim. As pessoas evitam até lavar roupas claras. Assim, atravessa-se o rio e vai até um minadouro que fica localizado na comunidade vizinha, o quilombo Porto da Pedra, chamado “Zóio D`agua” Água tem, só não é tratada. Eu queria que fosse porque essa água é só pro gasto. Então não tem como a gente beber, mas a gente tem que dar graças a Deus que essa que tem, porque não tendo nenhuma essa ainda serve né? Mas pra gente beber tem que panhar do outro lado lá, é no rio, no Zóio D´agua, uma fontinha que tem. A gente, ontem mesmo atravessou. Atravessaram todo mundo, foram de pé, de canoa, os vaso tá tudo cheio aí, de água de beber, entendeu? Porque essa água não tem como beber. É uma fonte chamada esse nome aí. (Maria Catarina, marisqueira, 47 anos)
22
A comunidade quilombola do Dendê não possui rede de esgoto. Também não tem posto de saúde. Genilson Pinheiro é agente de saúde e na maioria das vezes, a comunidade conta apenas com o seu carro numa emergência. A comunidade do Dendê foi o local onde mais recolhemos histórias, rezas, orações e informações de “remédios caseiros”, elementos constituintes do complexo sistema de classificação de curas e doenças elaborado pelas comunidades tradicionais que desenvolveram ao longo do tempo uma medicina mágica religiosa. Neste sentido, destaca-se a presença de Dona Jair, 58 anos, rezadeira da comunidade e principal informante da publicação intitulada “medicina quilombola.” Dona Jair, leva horas contando histórias e lembrando pessoas como o velho Antônio Zeferino que “rezava e a cobra morria na boca do buraco”. Pode-se ainda encontrar na comunidade uma Associação dos pescadores e marisqueiras. Algumas poucas pessoas plantam ainda mandioca, aipim, milho, feijão e amendoim para consumo próprio. Não há igreja católica no sitío Dendê.
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
As pessoas preferem participam no mês de agosto das festividades em homenagem a São Bartolomeu, padroeiro de Maragojipe. Não obstante este fato, a comunidade relembra as festas feitas a São João, as novenas dedicadas a Santo Antônio, o Terno de Reis em Janeiro, bem como o caruru aos santos mabaços, os gêmeos, Cosme e Damião, sempre regados com muita bebida, comida e samba. Fazia pra Santo Antônio, todos os santos. Era samba até o dia amanhecer. Era noventa de licor que nós secava na noite, o povo secava. Os noventa litros e ainda vinha pra aqui secar o barzinho de Preto e o restante pra lá. Noventa litros de licor a novena de lá de casa. Era fortona! Amanhecia o dia. Era muito samba.... Papai morreu, acabou. Era muito samba no pé. O pessoal da maré que tava pescando não aguentava vinha pro samba. (Jair Sacramento, marisqueira, 58 anos) O carnaval também é outro momento lembrado pela comunidade revestido de particularidade, ocasião onde se estreita e reforça laços de solidariedade: Que aqui é só a gente mesmo, família, os vizinho assim, vizinho próximo que vem. Ai vem pra casa da gente, convida e a gente vai pra casa deles. Aí fica aquela coisa, vai e volta, vai e volta. Aqui sai, ainda sai aí, só corre aqui, só a gente mesmo. Criança e adulto, as criança cai no meio também, já tem 4 ano, 5 ano, cai no meio. Careta agente faz de pano mesmo e a gente compra também. Algumas pessoas têm... Uma vez até eu comprei duas pros menino brincar, tá guardada lá, foi o ano passado. Antigamente pegava mamão descascava, abria os dentes, fazia a boca e o nariz e o zóio e botava no rosto, não comprava não, a gente que fazia. Não andava comprando assim não. (Roberto, pescador, 37 anos) Na comunidade também não se tem igrejas evangélicas ou pentecostais. Genilson lembra que seu avô falava que a mais de cinquenta anos havia uma casa de candomblé, pertencente a antigos moradores que há tempo já haviam ido embora. O sítio Dendê é uma comunidade remanescente de quilombo que vem ao longo do tempo à sua maneira, mantendo características próprias como a pesca artesanal, bem como seu modo de viver e ver o mundo. Sua certificação foi fruto de um processo histórico que resultou na conscientização das principais lideranças desta comunidade. São estas que quando indagadas quando começa e onde termina o sitio Dendê, para além de limites espaciais, evocam locais que estão para além de qualquer território, afirmando: “O sítio dendê é o local aonde a gente vive, tira o nosso alimento e cria os nossos filhos.” Curiosidade Ilha Santana – ilha que fica situada em frente dentro da comunidade. Não é habitada. Segundo alguns relatos em tempos atrás era local que possui muitos trabalhadores e muito utilizada como porto e canal de escoamento de produtos. Pescar de andarilho- um tipo de pesca noturna comum na comunidade. É a única pesca em que a rede não vai dentro da água. Realizada sempre em grupo, as pessoas se dividem em canoas que sobem o rio emparelhadas. Atrás da canoa é colocada uma lata de querosene acessa. Dai o outro nome desse tipo de pescaria ser fachiar. Quando o cardume passa os peixes começam a pular para a frente e vão batendo na rede que esta esticada na horizontal presa a duas varas na canoa. Os peixes batem na rede e caem na canoa. Chega-se a pescar de dez a trinta quilos de peixe.
23
Folhas de mandioca
Quizanga
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
Mapa Geral da Quizanga
26
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
27
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
28
Localidade Sede
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
29
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
Nos dicionários de língua portuguesa, assim como na linguagem coloquial, a expressão quizanga não remete a nada positivo, antes significa “coisa ruim,” “energia negativa,” “algo que deixa o corpo pesado”. Sabedora deste fato, a comunidade quando indagada sobre o significado deste nome, faz um trocadilho de palavras a fim de produzir uma leitura positiva sobre o grupo, respondendo jocosamente: “Chama Quizanga, mas aqui ninguém zanga não.” Desde que me entendo como gente que vejo as pessoas chamar Quizanga, Quizanga.... É o nome da fazenda, só depois fiquei sabendo que é uma palavra africana. ( Alexandro Diego da Cruz, professor, 27 anos) De fato, a expressão “quizanga” deve mesmo ser buscada na língua kimbundo e kikongo. O kimbundo é uma das línguas africanas mais faladas em Angola em especial em Luanda. O kikongo é falado no norte de Angola, na região de Cabinda, Zaire e Congo. Na verdade, kimbundu e kikongo são duas das inúmeras línguas trazidas para o Brasil pelos africanos chegados das regiões sub equatoriais, a saber: dos antigos reinos de Congo e Angola, aqui denominados de benguelas, cabindas, angolas, moçambiques, etc. Bem próximo dali, pode-se encontrar mais palavras provenientes destas línguas que tanto influenciaram o português, denominando localidades, objetos, expressões ou mesmo passagens do cotidiano tais como: Mutamba- nome de uma localidade próxima ao Quilombo Porto da Pedra. É também nome de uma planta utilizada nas religiões afro-brasileiras. Marianga – nome de outra localidade, vizinha ao quilombo Dendê e ao quilombo Girau Grande. Samambaia- outra localidade que fica entre o Quilombo Dendê e o Porto da Pedra. Também é o nome de uma planta, fala-se Sambambaia. Se junta a estas localidades, as palavras: capoeira ( mata fechada), caruara (fraqueza), fuanga (bagaço), cambanca (velha), caborongo (ruína).
30
Quizanga é também nome de um bairro africano da cidade de Malage, província de Angola. Todavia, quizanga também aparece como designação de um prato, um “cortado de folhas de mandioca,” comum em algumas feiras em Angola. Talvez se não seja de fato este o significado do nome que desde o inicio designou a fazenda, ele serve para nos ajudar produzir leituras positivas sobre a comunidade, uma comunidade que diferente das demais vive especialmente da terra, do plantio da mandioca e da produção de farinha. Nascida aqui, aliás que eu fui nascer, nasci lá em cima, mas eu criei ali oh, ali, fui criada aqui na Quizanga, não tem outro lugar. [...] Aqui é Quizanga de Baixo e a de lá, o meio de lá todo é Quizanga de Cima, [...]. Aqui ninguém vive de marisco não. Eu mesmo já marisquei muito lá no Guaí. Saia cedo, colocava o cofo na cabeça, saia para mariscar, mas aqui não tem não. Hoje to aposentada. Negócio daqui é roça. Sempre foi roça de mandioca, coser farinha, pronto. (Maria da Conceição da Paixão, aposentada, 56 anos) Atualmente, a comunidade da Quizanga possui cerca de noventa famílias, pulverizadas pela área. Esta comunidade
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
31
Mandioca cevada
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
certificada como remanescente de quilombos pela Fundação Cultural Palmares no ano de 2006 a semelhança de muitas outras onde há um intervalo entre a certificação e o inicio do processo feito pelo INCRA para realizar a demarcação e titulação definitiva da terra, passou por um processo de “fragmentação do movimento quilombola”. Em outras palavras, assim que a comunidade é certificada, os proprietários criam estratégias para retirar as famílias da área, alguns loteiam a terra, deixando os quilombolas a mercê dos novos proprietários, que juntamente com estes oferecem uma “indenização” a fim de que os membros da comunidade saiam daquele lugar. Tudo isso feito com ameaças e violências, sem falar nos estigmas de “ladrões de terras” impressos no homem e na mulher quilombola. Este processo pode ser observado na comunidade Zumbi praticamente desaparecida e lacrada onde a antiga vila, hoje é um complexo de casas abandonadas que servem como depósito de piaçava. Isso vale também para a comunidade do Anastácia, próxima do quilombo Quizanga, onde no ano de 1998, as famílias foram “indenizadas,” em outras palavras, expulsas de suas terras e migraram para áreas vizinhas mais uma vez pagando a terça parte ao proprietário da terra ou apenas vivendo como empregados. Algumas das pessoas que atualmente residem na Quizanga foram expulsas de suas terras várias vezes pelos fazendeiros locais.
32
Meu pai morava aqui mesmo ali onde se chama Tabuleiro. Minha chamava Antônia, morava no Tabuleiro, mas depois que me criaram me mudei aqui pra Anástacia, casei me mudei pra Anastácia. Fiquei grande mas depois passei pra Anastácia, da Anastácia voltei agora na gestão do fazendeiro que chegou pra aqui, indenizou a gente... Eu vendi minha parte, uma parte, uma indenização que ele me deu e comprei aqui, passei pra aqui, não quis ficar mais lá não. Tem o documento aí, não sei onde anda, era no nome da mulher, ela morreu. Tava, tá aí o documento agora não sei. Aqui tem documento aqui, ela fez os papéis, só não fez INCRA, porque o INCRA encrencou porque essa fazenda aqui é de muito herdeiro, quando comprou aqui foi na mão do herdeiro, quando ela comprou aqui 10 tarefa, ficou, foi fazer, passou todos papel, pra fazer, pra pagar todo atrasado da fazenda, aí muito morador, não ia se sujeitar a isso aí encrencou o INCRA . O pessoal da Anastácia foram morar, uns foram pra Salvador, outros morreram, outro, eu lembro aqui outro [...] Ninguém mora lá, depois foram saindo, foram embora muitos pra Salvador e muitos ficou aí, depois foi quando o homem veio e indenizou o povo. Ele disse que deixava num lugar mais próximo, achamos por bem sair. Eu mesmo achei por bem sair que eu fui criado ali dentro mais trabalhava pra outra pessoa. Pagava aí, plantava rocinha pouca. Trabalhei na cerâmica um bocado. Depois, trabalhava de fazer, cortar barro, pisar barro, arrancar barro do mato pra trazer, mato, lenha de caminhão, trabalhava aí de botar barro na olaria, trabalhar o barro. O barro nós pegava pra botar na boca da máquina pra fazer o bloco né. Depois trabalhei de roça. De roça, trabalhava de roça, desde que me criei na roça, naquele tempo ruim, nem comer nós num comia, trabalhava dobrado, assim trabalhando mesmo muito, naquela época comia aquela farinha de mão, era na enxada, cortando a mandioca, limpar e ir pra casa de farinha, pra fazer uma farinha, uma farinha de mão, arrancava aquela mandioca, relava no braço, aí cozia. Pegava o tapiti, botava no pau para espremer. Desde pequeno, idade de 12 anos peguei batalhar, arranjar o pão de cada dia, [...] o dos zotro, ganhando o trocozinho pra não vê, e aí mas que Deus é bom me deu força que até hoje tô aqui vivo e quero viver mais, só por isso que eu peço.
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
O depoimento de Sr. Marciano Ferreira, agricultor, aposentado, 77 anos é bastante ilustrativo da questão da expropriação das terras quilombolas. Ele assim como outras pessoas que foram “indenizadas” adquiriram parte de terra na Fazenda Quizanga, embora não seja regularizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Este fato cria uma falsa realidade nas pessoas. Em outras palavras, associando os quilombolas aqueles que não possuem a posse da terra, ou ainda a ladrões de terras e reduzindo a questão quilombola apenas a posse coletiva da terra e algo que não pode ser vendido, as pessoas perdem o principal foco que gira em torno da questão agraria no Brasil: criar oportunidade de acesso a esta para reverter situações de desigualdade sociais em que vivem homens e mulheres que na maioria possuem a pose da terra, mas continuam tendo direitos violados e se submetendo a condições mínimas de vida. Chega-se a comunidade Quizanga através de uma estrada de barro que parte da BA 026 que liga a cidade de Maragojipe ao Distrito de São Roque do Paraguaçu, entrando na estrada que dá aceso a cidade de São Felipe. Há um pequeno núcleo central na comunidade composto por uma casa, apontada como a dos “primeiros donos que compraram a terra”, uma igreja e uma casa de farinha motorizada. Na comunidade há ainda pessoas que vivem na terra pagando a terça. O sistema de produção de farinha também é dividido. Quem não possui a casa de farinha, divide a produção com o seu dono.
Maria da Conceição
A Quizanga sobrevive da produção de farinha. Desta maneira, as casas de farinhas se multiplicam ao longo da área. Casas mais simples, feitas de palha onde mantem-se uma produção manual, como se chama, mais artesanal, alternam-se com casas de farinhas feitas de bloco e cimento, motorizadas onde o processo tradicional de ralar a mandioca, zazá e coser a farinha, é substituído pela máquina que além de ralar, após a massa prensada para retirar o acido cianídrico a fim de evitar intoxicação é torrada sobre uma chapa de ferro com o auxilio de paletas industriais.
33
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
O método de produção de farinha manual, ao contrário do motorizado. É algo muito demorado que além de destreza exige mais de dez horas de trabalho. Trabalho iniciado no dia anterior quando a mandioca é raspada, ou seja, descascada, ralada e colocada numa prensa para “ceuvar”, como se diz. Na verdade trata-se de acomodar a massa ralada em sacos a fim de retirar o acido cianídrico da raiz. No dia seguinte o trabalho recomeça antes do amanhecer, geralmente das duas às três horas da manhã. Enquanto o trabalho de arrancar mandioca envolve a mão de obra masculina, o plantar e o raspar envolve mulheres e crianças. Aos homens cabem colocar a massa no cocho para “ceuvar”. Uma vez seca, mais uma vez entra o trabalho das mulheres. É a hora que exige mais dedicação e demanda mais tempo de pé no calor do forno de lenha. Geralmente, há mulheres que ao longo de suas vidas a exemplo de Dona Maria Conceição, atualmente com 57, se especializaram em coser farinha. Coser farinha possui dois momentos, o primeiro chama-se zazá. Zazá é colocar a massa ainda úmida sobre o alguidar de barro a fim de deixá-la no ponto de torrar no outro alguidar. Zazá a farinha com o auxilio de rodos feitos de madeira. Esta fase, uma espécie de pré cozimento é considerada muito importante pois dela depende a cor, a textura, o sabor e a qualidade da farinha. Depois de zazá, a massa enxuta vai passar para o outro alguidar onde braços hábeis manipulam paletas de madeiras fazendo movimentos em forma de S, escrevendo uma espécie de texto imaginário conhecido por pessoas mantenedoras de saberes ancestrais indígenas e africanos. Antes, durante e depois de “coser” farinha reveste-se de particularidade para os quilombolas. Evita-se tomar água gelada, banho de água fria, atravessar rio e ficar exposto ao vento. Na produção motorizada, o trabalho de coser a farinha pode ser concluído em duas horas e possui maior rendimento. Todavia, o cheiro do acido cianídrico exalado sobre a placa de metal é mais forte e faz arder os olhos e amargar a boca do visitante desacostumado. Na Quizanga planta-se ainda aipim, batata, milho e feijão para consumo próprio. A luz chegou na comunidade a cinco anos atrás. A água não é tratada e como nas outras comunidades não possui rede esgoto. As estradas íngremes e de barro da comunidade dificultam o acesso. A Quizanga conta apenas com transporte particular. Não há posto de Saúde e as emergências são encaminhadas para a cidade de São Felipe, Nazaré ou Santo Antônio de Jesus. O santo mais festejado ainda hoje na Quizanga é Santo Antônio, para quem é dedicado uma trezena. Há ainda no mês de maio, ladainhas à nossa Senhora da Conceição. Ainda é possível encontrar na comunidade a função de rezador. O rezador é alguém que geralmente possui leitura, as vezes pouca, e dedica alguns dias a dizer rezas e ladainhas na casa de alguma pessoa.
34
Chamam também de rezador ou rezadeira homens e mulheres que se especializaram na arte de curar, de benzer contra o ar do vento, (acidente vascular cerebral), fogo santo (tipo de infecção na pele), olhado (indisposição) e outras doenças. São Cosme também era celebrado no mês de setembro. Na atualidade, o caruru dedicado aos “santos meninos” é realizado de forma modesta em algumas casas que mantém esta devoção. A comunidade da Quizanga possui uma tímida escola municipal que funciona de primeira a quarta série de forma irregular.
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
35
Cozendo farinha
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
A Associação Quilombola da Quizanga foi desarticulada, a sua principal liderança foi morar na cidade vizinha de São Felipe. Porém, algumas pessoas quando indagadas sobre o significado de ser quilombola, relembram dias felizes, “quando se viajava com uma turma para vários lugares para falar coisas da gente”, um tempo “que era bom”, “bacana,” que se tem saudade, uma espécie de banzo, outra palavra kimbundu que continua alimentando o sonho de ter um dia um pedaço de terra onde se possa plantar, viver e descansar dentro da Quizanga. Curiosidades Balaia – Tipo de cesto com mais de um metro e meio de diâmetro utilizado para acomodar as raízes de mandioca. Bonga – Designação das raízes de mandioca que não se desenvolveram.
36 Bonga
Balaia
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
37
Farinha torrada
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
38
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
Topรก de Cima 39
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
Mapa Geral do Topรก de Cima
40
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
41
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
Localidade de TuĂca
42
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
43
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
44
Localidade do Braรงo Seco
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
45
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
46
Localidade Sede
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
47
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
48
Localidade Sr. Vavรก
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
49
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
De todos os quilombos de Maragojipe o Topá de Cima é o mais distante da sede do município, fica localizado para lá da Quizanga, ainda no Guaí, porém já perto do município de São Felipe. É frequente o deslocamento para as localidades fora das dimensões do quilombo, como Piedade e do Socorro, devido à proximidade, onde existem igreja, escola e posto de saúde, bem como aos municípios vizinhos. Os moradores não identificam de onde provém o nome do lugar, no entanto, ao observar sua geografia fica evidente referir-se ao “topo”, a altura do lugar, por causa da variação de morros que circundam a região que divide Topá de Cima e Topá de Baixo. Os quilombolas sobrevivem predominantemente das roças de aipim, mandioca, inhame, amendoim, milho, tangerina, laranja e feijão. Há alguns anos deixaram de pescar por causa da poluição dos rios. A maré fica muito distante e não existem transportes que façam a conexão entre os quilombos da região, ônibus mesmo apenas na quinta-feira, dia de feira em Maragojipe, fora disso só fretando um carro que possa realizar o transporte. A localização e as condições de vida no quilombo faz com que as famílias se mantenham ligadas ao território e ao extenso núcleo familiar. Ao visitar a comunidade encontramos boa parte das famílias dispersas na vasta extensão territorial realizando tarefas de plantio, mas todas unidas em torno da terra. Várias famílias que atualmente residem no Topá de Cima são egressas de outros quilombos do Guaí. Algumas diante de estratégias construídas em algum momento da vida conseguiram negociar a compra de terras, que foram com o tempo sendo repartidas entre os novos grupos familiares que se formaram. Então, na região, as casas desses grupos são delimitadas pelas roças, árvores frutíferas e medicinais, e casas de farinha. Além da produção de farinha voltada para o consumo e a venda, as casas de farinha do Topá de Cima produzem iguarias, como a tapioca e o beiju. As casas de farinhas ficam localizadas no núcleo central das famílias e utilizadas por um grande número de pessoas ligadas a ele. A quantidade de mandioca produzida depende das condições climáticas próprias ao cultivo, por isso, nem sempre se obtém quantidade suficiente de farinha para vender. O aipim também é vendido, já as raízes que não se desenvolvem são chamadas de “tamboeiras” e podem ser usadas na feitura da farinha. Segundo D. Antônia Cristina, 67 anos, a tamboeira é “a mandioca pequena que transforma em farinha, mas se tiver em grande quantidade ainda é vendida, e dá farinha boa”. Muitas são as mulheres do Topá de Cima que alimentaram seus filhos com a finíssima e crocante farinha do quilombo.
50
D. Antônia, 78 anos, uma das matriarcas da região teve dezoito filhos, quatro deles “pecos”, recorda que trabalhou arduamente para alimentar e criar os que sobreviveram. Todos os seus filhos nasceram pelas mãos da parteira Maria Periquita, que morava no Topá de Baixo, que lhe transmitiu uma série de recomendações que deveriam ser seguidas à risca por 40 dias, tal como não comer nada que fosse “remoso”, por exemplo, verdura, feijão e “peixe de couro”. Mesmo grávida, as mulheres não se furtavam ao trabalho rotineiro, talvez por isso o parto não fosse considerado sofrido para muitas delas. Quando elas fosse, a parteira chegasse já tinha nascido. Oía, não eu não dava tempo não minha fia, que chegasse assim eu dá a dor agora né, dizer vou arrumar o carro, antes de chegar na rua já tinha nascido, era assim, graças a Deus, graças a Deus minha fia, só sentia uma dor só, começava a dor pronto. Só foi um menino que me deu trabalho só foi Pedro que eu levei 5 dias, o mais velho, 5 dia de dor de Pedro, mas graças a Deus o resto oh. Graças a Deus não sentia nada, meu marido ia pra feira quando chegava, deixava eu lutando, quando chegava tava parida em cima da cama. Até farinha, eu tava mexendo farinha tinha um caçula, botei fogo no forno, botei fogo no forno duas hora da manhã mais Periquita, mais a parteira
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
51
Descascando amendoim
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
Igreja de Topรก de Cima - Escola desativada
52
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
53
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
mesmo, botei fogo no forno eu e ela, fui torrar farinha, que quando terminou meio dia, onze hora eu entrei pra dentro, peguei uma galinha matei, digo vou entrar, entrei pra dentro peguei a galinha matei, vortei fiz comida pra ele, fiz comida pra ela, mexi o de todos dois, vortei, digo agora vou fazer o meu, tinha uma lata de manteiga aberta, manteiga gasta, que eu já comprava, que quando chegava no mês ele ia se arrumando, aí eu digo vou comer logo essa manteiga nesse escardaldo, fiz em pé o escardaldo, sentei e comi, da galinha com a manteiga, que quando acabei de comer sai na porta da cozinha fui vomitar, quando acabei de vomitar a dianteira quebrou, oxem quando a parteira chegou eu já tive, da casa de farinha pra casa, hã Carlos já tinha nascido. [...] quando eu cabei de dar banho nos menino e tudo, botar o siri pra escaldar, pra guardar pra fazer a moqueca, eu fui sacudir a panela a dianteira quebrou no pé do fogão. A dianteira, a água, quebrou água no pé do fogão, sacudindo o siri. Aí minha fia, entrei pra dentro ela nasceu e a panela ficou no fogo (risos). (Antônia Bispo Santos Silva, lavradora, 78 anos) O parto era uma etapa natural na vida de toda mulher no quilombo, aliás, muitas etapas, já que se engravidavam sucessivas vezes, conforme depoimento de D. Antônia: “eu não levava um ano, seis meses se não tivesse um filho”. Quando ocorria alguma complicação no parto recorria-se a orações feitas principalmente a Nossa Senhora e quando faltava fôlego acreditava-se que era possível ganhar força ao soprar a boca da garrafa. Para os males do corpo e da alma existem nos quilombos sempre remédios capazes de curar, graças às folhas e as rezas, às rezadeiras e curandeiros. Os santos davam o auxílio espiritual nos momentos do parto, uma das orações era essa: Minha Santa Margarida Não tô prenha nem parida Tô nos braço da parida Jesus, José e Maria seja minha vida O seguinte provérbio proferido no Topá de Cima denota o lugar ocupado pela religiosidade no quilombo: “A cisma que mata e a fé que cura”. A religiosidade aglutina o grupo social, até porque são muitos os eventos que ocasionam o encontro da comunidade: novena de São Cosme e Damião, terço de Bom Jesus da Lapa, missa e procissão de Nossa Senhora Aparecida que saem do povoado Socorro e Piedade e percorrem o Topá de Cima. Nos terços para o Bom Jesus costumam entoar: Meu Bom Jesus da Lapa Vosso milagre é maior E juntinho da vossa sombra, nasce a lua e raia o sol
54
Os santos são recorrentemente requisitados no Topá de Cima tendo como principal motivo a cura de doenças, mais informações sobre as mesmas podem ser obtidas no trabalho intitulado Medicina Quilombola. Caso precisem de atendimento médico os moradores costumam se deslocar até Cruz das Almas e São Felipe, ou ainda mais distante, para Maragojipe e São Félix. Além da dificuldade de acesso e transporte outro problema afeta a vida dos moradores do Topá de Cima, a inexistência de água encanada. Todas as casas possuem cisternas ou casimbas, que são poços artesanais instalados nas nascentes de riachos, mas com pouca profundidade. Desses poços são puxadas canalizações que levam às casas.
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
55
Dona Ant么nia
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
56
Amendoim
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
A rede elétrica foi instalada em 2003 e a comunidade tem acesso aos programas do governo. Existe uma Associação no quilombo, mas a construção da sede se arrasta por anos, já que faltam recursos financeiros para fazê-la. Os moradores do Topá de Cima demonstram através das narrativas o sentimento de pertencimento e mantém o desejo de permanecer no quilombo enquanto vivos forem. Essa patrimonialização do lugar, visível na relação que os quilombolas mantêm com o território e o apego às tradições se faz evidente em todos os quilombos de Maragojipe. Graças a Deus, eu mermo pretendo ficar aqui até quando Jesus me mandar buscar, gosto de viver aqui, aqui é um lugar bom eu posso plantar, viver da roça. Os moradores são sempre unidos e a violência que acontece aqui não é daqui, é de fora, é um lugar tranquilo e muito bom. (Antônia Cristina, lavradora, 67 anos) Curiosidades Arrancador – Diz-se do local onde se colhe o amendoim. Beiju de Massa – Beiju frito de farinha assada na folha de banana.
57
Vista da Comunidade do Pinho
Pinho
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
60
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
61
Dona Rita, atual responsรกvel pelo Pinho
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
Saindo de Maragojipe em direção à vila de Santo Antônio da Aldeia, o visitante deve seguir à direita, rumo à comunidade da Fonte Grande, logo à sua frente ele encontrará caminhos que se estreitam e se alargam, sobem e descem por variantes rasgados no barro por máquinas particulares, depois que ele descer uma segunda ladeira, ele já começa adentrar nos limites da comunidade. Ou caso prefira, diante da dureza das estradas que em boa parte do ano não possuem fácil acesso, ele deve seguir pela BA 260 em direção à São Félix e tomar uma estrada que fica na entrada chamada “entrada do bambu”, e fazer o restante do percurso caminhando, passando pelo sitio de Raimundo, depois, pelo sítio de Sr. Roque. Após este sítio, o visitante vai se deparar com uma cerca. Adentrando esta cerca, já é possível avistar as primeiras casas de pessoas ligadas à comunidade e mais para frente, o visitante enfim chega ao Pinho, “na terra de Daomé.” O antigo reino do Danxomé corresponde à região sul da atual República Popular de Benin, situada no Golfo do Benin, na África Ocidental. Constituiu-se na primeira metade do século XVII, fundado por um grupo de Ajá que saíram de Allada e instalaram-se no planalto de Abomey. Lá encontraram uma sociedade de linhagens que vivia da agricultura em nível de auto-subsistência, dividida em minúsculos reinos governados por reis ou chefes da terra, que eram descendentes dos fundadores das primeiras comunidades. A tradição diz que os imigrantes compraram dos chefes locais o lote de terra que foi o embrião do futuro reino do Danxome, pelo preço de 200 búzios. ( LÉPINE, 2000, p.7) O Pinho reúne 10 famílias e agrega aproximadamente 250 pessoas em torno de uma comunidade religiosa afro-brasileira. Na década de 50, abaixo de um busto do poeta Castro Alves, foi colocada uma placa alusiva à data de sua fundação: 25 de dezembro de 1658. Segundo a comunidade, a história do Pinho liga-se diretamente a luta contra a escravidão e a construção de espaços criados pelos africanos e seus descendentes para viver a liberdade. Segundo relatos, um grupo de africanos teria chegado até a localidade liderados pelos ancestrais e constituído um verdadeiro quilombo, ou instaurado uma nova terra, a terra de Daomé, conforme pode-se ver escrito nas camisas de algumas pessoas que transitam pela casa em dias de festa. Na cidade de Salvador, os vários povos embargados nos portos localizados na região chamada Costa da Mina vão receber a denominação de jeje. Trata-se de uma grande área cultural, denominada “área dos falantes gbe, que engloba o antigo Reino de Benin, os reinos de Ardra, Oyó, Achante e Daomé. Um estudo mais detalhado sobre esta terminologia foi elaborado pelo Professor Luís Nicolau Páres no trabalho intitulado: A formação do Candomblé, história e ritual da nação jeje na Bahia. Segundo ele, dentre os demais grupos, os de língua fon tornaram-se dominantes a partir de meados do século XVI até finais do século XIX a partir da expansão do Reino de Daomé.
62
As primeiras levas de escravos da área gbe para o Brasil datam, portanto, desse período, que vai de 1570 a 1647. São esses os escravos que, vindos de Allada, foram recrutados em regimentos paramilitares durante a guerra da independência contra os holandeses em Pernambuco. (PÁRES, 2006, p. 42) Em cidades como São Luís do Maranhão, Salvador e Recôncavo Baiano a denominação jeje aparece com frequência ao lado de outros termos formulados pelos traficantes ou adotados pelos africanos em seu diálogo com a sociedade. Um estudo sobre estas autodenominações, ou divisões entre os próprios africanos no Brasil Colônia foi realizado por Mariza de Carvalho Soares no trabalho Devotos da Cor, identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, o século XVIII, ao analisar os “pretos minas” da cidade do Rio de Janeiro.
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
A autora demonstra que mesmo não havendo uma homogeneidade nos nomes de procedências dos africanos uma vez que a denominação era regida pelo trafico, indo de nomes de ilhas, portos, reinos a pequenos grupos étnicos, os africanos eram capazes a partir de sua cultura de criar novas configurações de identidade. Assim, na documentação das irmandades da Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia estudados por ela, a autora observa dentre os negros mina três classificações: makki, sabarus e os dagomés. (SOARES, Mariza de Carvalho, 2000,p. 121) Dagomé refere-se provavelmente aos fons ou a outros grupos já sob o domínio do reino de Daomé. Os makki são os mahis. Savaru corresponde a Savalu, uma cidade vizinha da região dos mahis. (PARÉS, 2006, p.80) Os jejes trouxeram consigo tradições culturais ligadas a terra, aos reis, vistos como verdadeiros pais e chefes da linhagem e aos ancestrais que por sua vez eram representados pela natureza e pelas dinastias, ou simplesmente religiões estruturadas em torno dos voduns, princípios universais que explicavam o devir e a própria vida. A partir destes conceitos, no momento de constituição de modelos religiosos, conforme bem demonstrou Vivaldo da Costa Lima, homens e mulheres profundamente conhecedoras de suas culturas foram redefinindo alguns aspectos étnicos a fim de construir algo contemporâneo às suas tradições, nos ajudando a entender o que convencionamos chamar nações de candomblé. O terreiro do Pinho se autodeclara jeje daomé, denominação conhecida pelo povo de candomblé que afirma que embora o jeje seja um só, ele se divide em Daomé Savalu, Mahin e Mudumbi, conforme ouvi do antigo Prior da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da cidade de Salvador, Sr. Pedro Soares. No reino do Daomé, o culto ao vodun estava imbricado na organização social e política. Eram os voduns quem conferiam autoridade aos reis e lhes legitimavam. Segundo um dos mitos fundantes, o próprio reino teria sido fundado sobre o corpo de Dan, chamada também de Dange, a serpente que morde a própria cauda, símbolo do crescimento, desenvolvimento e fertilidade. A imagem da cobra ocupa lugar central nos candomblés de nação jeje, no terreiro do Pinho chamado de “terras das cobras” é na cidade de Maragojipe, terra de São Bartolomeu, também chamada pelo povo jeje de terra do Daomé. Bartolomeu teria sido um dos apóstolos de Jesus. Seu nome que ora é apresentado como sendo Bar Talmay, ou Bar Ptolomeu, significaria também aquele que suspende as águas. Grande propagador do Evangelho teria partido para Arábia, Pérsia, Ásia Menor e Índia onde enfrentou vários deuses. Bartolomeu teria sido crucificado e ainda com vida esfolado, motivos pelo qual Michelangelo teria pintado na capela sistina sua imagem representada com um manto vermelho, cor do seu martírio, um alfanje numa de suas mãos e na outra a sua própria pele. Em Portugal, São Bartolomeu era padroeiro dos carniceiros, daqueles que trabalhavam com couro e “profissões relacionadas com a indústria de peles ou de animais relacionados a elas.” Talvez este fato nos forneça pistas para entender a relação estabelecida, a menos em Maragojipe, entre São Bartolomeu e a Serpente, ou entre este santo católico que pode um dia muito bem representar reis africanos e Dan, seu vodun principal que morde a própria cauda, à semelhança da serpente que se acredita contornar a ilha de São Luís do Maranhão, ou a cobra prateada que brilha como o sol e às vezes tem uma crista de galo que ainda hoje pode ser avistada de longe em algum descampado da cidade de Maragojipe.
63
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
Outro aspecto que devemos chamar a atenção é que os próprios reis eram considerados manifestações dos voduns e portanto responsáveis pela manutenção da ordem. Desta maneira, os reis recebiam culto especial ao lado de lugares da natureza como árvores e o oceano, caminho às vezes sem volta para maioria dos africanos e fenômenos como a chuva, o trovão etc. Um minucioso trabalho etnográfico sobre esta comunidade ainda está para ser feito respeitando a sua dinâmica de vida. O Pinho é uma comunidade fechada. Trata-se de um grupo religioso organizado a semelhança de sociedades secretas. O Pinho é uma comunidade secreta, iniciática e isolada não apenas da cidade de Maragojipe, mas de todos os modelos litúrgicos de culto de origem africana encontrados na Bahia. Talvez tenha sido esta espécie de fechamento para o “olhar estrangeiro” que tenha protegido algumas práticas culturais jejes que ainda hoje podemos perceber mesmo de forma fragmentada. Esta espécie de “isolamento” proposital, facilitado, ora pela distância, ora pelas condições da estrada, ou mesmo pelos próprios voduns vem permitindo ao Pinho dar continuidade às suas tradições, muitas delas reinventadas e redefinidas o tempo todo. O documentário de cinquenta minutos do cineasta Antônio Pastori feito em 2005 sobre as manifestações culturais negro-africanas em Maragojipe constitui uma das únicas imagens sobre esta comunidade. A história do Pinho repousa em memórias, constituídas de reticências, fugas de pensamento, narrativas interrompidas pelo silêncio ou mesmo pelo segredo que cerca as “coisas do Pinho”. Trata-se de relatos de jovens que guardaram da sua infância fatos que ao serem narrados, “nem parecem que foi ontem.” Ou ainda de mulheres, hoje mães de famílias que nasceram, cresceram e conviveram com os voduns no Pinho que ainda hoje “circulam como pessoas no meio da gente”, ou pelos depoimentos de Maria Rita Miranda de setenta e um anos, Dona Rita como é conhecida e atual zeladora do Pinho ou simplesmente pelos próprios voduns que interrompem a entrevista do pesquisador o tempo todo pra contarem a sua própria história. O Pinho não era nem uma fazenda, nem um sítio, ele era mato, quando os escravos... Que ele traduzia com Caveoçu que é um orixá, já havia manifestado naquela pessoa, escolheu aquele quilombo ali, aquele lugar. Então, começou com sapé, eu via a minha avó contar. Ela contava assim: começou com palha, entendeu? pra depois ter a construção na casa, que tanto a casa, ela em geral tem parte que ela não é de bloco, ela é de taipa. Entendeu? Então taipa que foi rebocado, então ficou como uma parede de bloco. Entendeu? Então ela contava essas coisas. O fundador tem uma pedra na entrada da mata que é uma espada. Na entrada da mata tem uma espada mesmo de Oyá, a primeira que vem de frente, pra entrar na mata tem mais coisas e muitas coisas. Como lá os orixás, a casa dos orixás são tudo do lado de fora no tempo, ainda tem a mata ainda... que tem coisa pra desvendar lá dentro. (Maurisio 28 anos)
64
Neste suscito relato, Maurisio, neto de uma das filhas da casa do Pinho já falecida, “nascido e criado na comunidade”, além de trazer uma espécie de “mito fundante do Pinho”, uma mata ocupada pelos escravos, acrescenta na sua narrativa a figura de uma liderança que trazia consigo Caveoçu, certamente o vodun Heviossô ou Quevioçô. Conforme demonstrou Pierre Verger, Quevioçô ou Hevisossô é o vodun daomeano que controla os raios, trovões, ventos e tempestades. Nos candomblés jejes, Quevioçô é o nome da família de voduns considerados nagôs, demonstrando clara relação que desde cedo alguns reinos iorubás mantiveram em nível de trocas simbólicas com os povos vizinhos. Outra informação que merece ser destacada é a que diz: “a casa dos orixás são tudo do lado de fora”, outra característica
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
65
Reservat贸rio natural de 谩gua
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
preservada nos candomblés jeje, onde as representações simbólicas dos voduns abrigam-se sob árvores, chamadas de atinssá. Aquela mata toda é o terreiro. Tem a fonte de Dan. A fonte de Dan era onde eu tomava água direto, tomava cada surra da minha vó, ali é fonte sagrada. Tem Agué que é lá na mata, que lá o Agué é a mata toda, a folha toda, né? (Maurisio, 28 anos) No depoimento aparece ainda a figura de Oyá, orixá do rio Niger, que no Pinho se apresenta na forma de uma pedra em forma de espada na entrada da mata. Isso demonstra que o orixá Oyá, ancestral da atual zeladora do Pinho exerce posição de destaque na vida do terreiro desde a sua fundação. É ela quem governa todos os orixás. Ela cansa de dizer que orixá nenhum é mais do que ela, quem é mais do que ela é só Kossú. É Kossú, é Deus. Mais do que ela é só Kossú, mas orixá nenhum não é mais do que ela. Ela fica no trono dela, só sai do trono dela com necessidade. Tá vendo, só sai do trono dela com necessidade e ela só não vence o que Kossú não dá o direito a ela, o que Kossú dá o direito a ela nada empata [...] Seu Jogorobossu é o dono, mas ele cansa de dizer que ele é dono e Oyá também é, e que toda responsabilidade, ele não tem nada haver com nada ali. A responsabilidade toda está entregue na mão de Oyá. O que Oyá fizer tá feito! (Dona Rita, zeladora, 71 anos) O africano Jerônimo é apontado pela comunidade como fundador do Pinho. Ele teria chegado ao local, com a ajuda do vodun Quevioçô liderando outros africanos, e fundado “a terra das cobras”, ou o Pinho Daomé. Já vi minha avó falar... já vi uma pessoa falar de Jerônimo. Já vi minha avó falar também em Micoxê. Essa palavra, já ouvi minha avó falar essa palavra, Micoxê. Micoxê é certamente o nome africano que a comunidade guarda do fundador. Todavia, o vodun daomeano que ocupa lugar de maior destaque no Pinho é Jogoroboçu. A preservação de tal nome pela comunidade do Pinho nos ajuda a responder uma série de interrogações sobre a origem dos africanos que formaram a comunidade. Chamado carinhosamente de Vovô, no Pinho, Jogoroboçu dança com camisa de botão, de gola, camisa de homem, debaixo de uma bata. Usa também saia anágua, e pano da costa amarrado na cintura. Usa bata branca, camisa branca e saia floral. Sai na sala com um lenço na mão e um sino, conta Dona Leidijane Mendes, 41 anos.
66
O vodun Jogoroboçu vai ser também encontrado na Casa das Minas: Casa das Minas é o nome pelo qual é conhecido o mais antigo terreiro de tambor de mina de que se tem noticia no Maranhão, sendo provavelmente o que deu origem a esse culto em terras maranhenses...É também chamada de Casa Grande das Minas ou Casas das Minas Jeje por ter sido fundada por negros jeje, denominação dada a grupos étnicos provenientes do sul do Benim- o ex Daomé- vindos em grande número para o Brasil no século XIX (FERRETTI, 2009, p.10) Segundo Pierre Verger, a Casa das Minas chamada Querebentã de Zomadônu, teria sido fundada por membros da família real de Abomey vendidos ao Brasil como escravos entre os anos de 1797 a 1818. A Rainha Nã Agotimé, lembrada pela comunidade pelo nome de Maria Jesuína teria assim instaurado em terras maranhenses o culto de um vodun da família real do Daomé. Segundo Sérgio Ferretti, Zomadônu é um vodun da família real do Daomé, que é constituída por nobres, reis ou príncipes. Na Casa das Minas é o dono da casa, foi o vodum protetor da fundadora e das primeiras mães [...] No Daomé, o culto
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
de Zomadonu é o mais importante do reino dos fons. Seu nome significa “não se põe fogo na boca” [...] Vem a terra no corpo de crianças anormais, com espirito especialmente forte, que simbolizam um descontentamento. No antigo daomé, quando nascia uma criança deformada , havia o costume de joga-la no pântano. O rei Akabá (1680 -1708) e a rainha Kouandê tiveram um filho anormal, Zomadonu que tinha seis olhos e desapareceu no rio. (Ferretti, 2004,p.209) Na Casa das Minas Jeje, o vodun Jogoroboçu é um dos filhos de Zomadonu, gêmeo de Apoji. Como no Pinho, este vodun é considerado um príncipe, um jovem de 15 anos, ou ainda um menino celebrado no dia 31 de dezembro. Vovô é a gente que chama assim. Isso desde antigamente. Os ancestrais que botou esse apelido nele de Vovô, mas o nome dele não é Vovô, é Jogoroboçu. E ele não é velho, não é moderno, nem é coroa. Ele é rapaz. Ele é um rapaz, ele é um rapaz, rapazote, assim como deixa eu ver [...] E a gente chama Vovô, Vovô, Vovô, aí ficou Vovô, Vovô, Vovô. Eu tenho dito porque a mãe da zeladora que faleceu, é tia Roxa, que conversava... aí sempre quando ela tava conversando no fundo do quintal, aí eu como tava mocinha ficava cá debaixo na escada ouvindo, eu não participava da conversa, que ela tava conversando com minha mãe, mas ouvia. (Leidijane Mendes, 43 anos) O vodum principal da casa é Vovô. É o pai maior. Como minha avó dizia que Vovô é um menino, Vovô era um menino que foi brincando com o carro, carrinho de brinquedo, minha avó falava isso, que ele viveu com o carrinho de brinquedo que a mãe deixou ele brincar enquanto estava lavando roupa, então ele viu uma luz, nessa luz ele se reencarnou, sumiu, só ficou o carro. E aí ela me falava isso. Vovô foi um menino, que ele é um orixá criado por um rei, por Xangô. (Maurisio, 28 anos) No Pinho, Jogoroboçu é chamado também de “pai celestial”, era o vodun de Tia Roxa e passou antes mesmo dela falecer para a sua filha consanguínea Dona Maria, zeladora que antecedeu Dona Rita de Oyá. No Pinho, ao contrário de outras comunidades jejes, a liderança que está à frente da casa não recebe nomes especiais como gaiaku, doné, ou nandogi, a ela reserva-se apenas o nome de zeladora, ou tia. Ao lado de orixás nagôs a exemplo de Ogun, Oxun, chamada pelo nome de “a moça das águas”, Odé, Oyá, Oxala, Obaluaiyê, aparecem nomes dos voduns: Dan, Sobô, Agué, Azoani e um que não conseguimos identificar chamado Rumbadá. O Pinho é um espaço das interdições. Assim que o visitante adentra a clareira onde se avista a casa, depara-se com várias placas que diz: “Não ultrapasse”, ou ainda uma mais curiosa que reproduz o ditado popular: “o que o olho viu, a boca piu.” Trata-se de interdições impostas pelo grupo social aos “de fora” a fim de preservar a sua intimidade e sacralidade. Na porta, a zeladora aguarda com uma quartinha, espécie de pote de barro, cheia de água, que é passada em circulo sobre a cabeça do visitante e a água é logo em seguida arremessada. Trata-se de um ritual de proteção da comunidade contra qualquer infortúnio que possa ter vindo com a visita. Adentra-se ao recinto geralmente descalço. O assoalho de toda casa é de terra batida e “embostada.” Embostar significa espalhar como um cimento o esterco do gado dissolvido em água sobre o chão de terra batida. É hábito antigo e comum nos candomblés jeje e cumpre também a função mágica religiosa de proteger a comunidade. Bastante ilustrativo o depoimento de Dona Leidejane sobre o cotidiano do Pinho no seu tempo: Os homens carregavam água, as mulheres também carrega da fonte de Tino, mas os homens traz no jegue. Lá pra beber e pra comida água do rio, a gente pegava da fonte de Tino água pra gasto, pra lavar roupa, lavar prato, tomar banho,
67
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
68
Fachada do Terreiro do Pinho
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
69
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
entendeu. A gente também pegava São Gonçalinho pra arrumar a sala. A gente saia umas quatro horas para quatro e meia para a mata pra pegar São Gonçalinho. Cada uma vinha com um feixe de São Gonçalinho pra poder arrumar a sala. Eu por exemplo, eu fazia o quê? Eu era a parte da faxina da casa, eu limpava a casa toda, porta, janela, o nicho, arrumava pra botar a cortina, os bolos quem fazia era eu pra os menino tomar café, que dava uma pausa no meio da festa. Os homens toma café. Os tocadores e os homens toma café, e depois que os homens voltava a gente mulheres, ia tomar o café, fazia mingau, mingau de milho. Então cada um tinha uma função na casa. Pilava no pilão, fubá, tudo eu pilava, quando eu era menor era outra pessoa, depois que eu fui ficando adolescente, mocinha, 17, 18, 19 anos era eu que pilava. O chão eu embostava, ali todas as mulheres embostava, os homens traziam as bostas e a gente botava na bacia com água pra poder embostar o cimento, chamava embostar ou cimentar, ‘vai cimentar tal dia’, sempre era no mês de novembro. É sempre era no mês de novembro que embostava a casa porque no mês de novembro não faz nada lá no Pinho, então a única coisa que a gente fazia era o quê? limpar, vasculhar, embostar a casa, coisas assim, todo ano. Todo ano é embostar a casa. Do pasto, falando é simples, coisa é assim botar a mão na lida, é e o cheiro, deixa secar, fica todo sequinho, você fecha o olho assim parece que você tá no pasto. Toda, quarto, tudo, a casa toda. Já há algum tempo, a luz elétrica chegou ao Pinho e com custo conseguiu consentimento do dono da casa, porém ainda hoje não se escuta radio, nem se assiste televisão. A comunidade é alcançada irregularmente apenas por uma operadora de telefonia celular. A água, todavia continua sendo o principal desafio, água para beber e água para gasto. O acesso à água no Pinho é difícil, distante e a comunidade que mora nas imediações do terreiro quase toda ela é sexagenária. A sua atual zeladora fala com orgulho que embora com todas as dificuldades, o Pinho nunca parou de funcionar a semelhança de outras casas que soube noticia, ou viu nascer e fechar as portas por não se ter condições de dar continuidade: “O Pinho tem muitos anos. Nunca ficou parado não, de uma rumbona passava para outra, de uma rumbona passava para outra.” Rumbona é um dos nomes que as iniciadas recebem no candomblé jeje. Conforme nos foi informado e podemos perceber, no dia 25 de dezembro comemora-se o aniversário da casa. No dia 31 de dezembro para 01 de janeiro festeja-se Jogoroboçu. No dia 1 faz-se um amalá, comida à base de quiabo com azeite de dendê, cebola e camarão. Na véspera do Dia de Reis faz-se festa para Oyá. No dia de Reis, é comemorado Sobô que atualmente vem em Sr. Crispim, filho de Tia Iaiá, uma das zeladoras do Pinho e mãe de Maria, sua irmã. Neste dia também Jogoroboçu chega. A casa fecha após carnaval na quarta feira de cinzas e reabre apenas no sábado de Aleluia. Domingo de Páscoa é a festa da família de Dan. Em junho, no dia 23 para o dia 24 também tem festa. Nesta ocasião se costuma armar uma fogueira e “enfeitar” com uma árvore no centro onde se pendura milho, coco, e outros frutos da época. As pessoas ajudam preparar esta arvore e colocam juntos na fogueira. Todos tem que ao menos tocar a mão no arvoredo e fazer um pedido, depois disso, a fogueira pode ser acessa ao som de Viva São João! E músicas de orixás. No dia 29 de junho tem um amalá para os meninos e outra fogueira. Em agosto comemora-se Azoani.
70
No Pinho não há presença de culto a caboclos. Segundo relatos, anos atrás estes recebiam oferendas e cânticos numa área reservada na mata longe da casa dedicada aos voduns no dia 2 de julho, ocasião em que se arma também uma fogueira. Segundo Dona Rita, a festa do dia 2 de julho à noite com uma fogueira é uma reverência que o vodun fundador da casa, teria com Santa Isabel. O Pinho possui uma iniciação diferenciada que embora não tivemos muita informação está longe de se parecer com as descritas pelos estudos afro-brasileiros que incluem dentre outras coisas, a raspagem da cabeça. No Pinho a iniciação segue ritos próprios. O Pinho na atualidade não inicia homens, apenas mulheres. É provável que este fato tenha se
Quilombos Bom de Ver e Bom de Viver
tornado regra nas ultimas décadas, pois encontramos Sr. Crispim que já mencionamos, rodando com Sobô. O Pinho também possui uma liturgia própria onde se é possível perceber facilmente a utilização de elementos diversos tomados emprestados aleatoriamente pela comunidade como um esforço de preencher as lacunas deixadas pelo tempo, ou pelos tios e tias que foram embora e levaram o ensinamento consigo. No Pinho, os atabaques são tocados deitados e a melodia é mais cadenciada do que a dos candomblés que encontramos na cidade de Salvador. Encostadas numa parede que fica de frente a entrada do barracão, sentadas sobre esteiras, ajudando compor a orquestra e marcar as cantigas, ficam mulheres tocando cabaças de todos os tamanhos enfeitadas com búzios, instrumento chamado pelos iorubás de xequerê que na comunidade recebe o nome de gô. No Pinho, os visitantes sentam em cadeiras, enquanto os bancos de madeira são reservados aos filhos e filhas da casa. Não se é permitido fotografar, gravar áudio, nem muito menos filmagem. Não tivemos acesso também ao cardápio ritual da comunidade. Apenas fomos informados de uma pequena lista incluindo o mugunzá, bolos, acarajé, frutas, pipoca, vinho e amalá. O jogo de búzio não parece ser a forma adivinhatória por excelência do Pinho, o que pode ser explicado por um modelo de culto aonde os voduns chegam quando querem para orientar, aconselhar e advertir as pessoas. Algumas pessoas ainda lembram, porém, tios e tias que eram capazes de “dizer qualquer coisa”, “que sabiam tudo”, apenas arremessando coquinhos de dendê. Embora “apareça” para o “olhar dos de fora” como algo isolado, o Pinho está à sua maneira, integrado ao mundo dos candomblés. Isso é relembrado através da recordação de festas para onde corriam muita gente, ou do nome de casas que no momento de sua fundação contaram com a ajuda do Pinho ou ainda da curiosa história conservada na comunidade de uma de suas zeladoras que teria sido enfeitiçada por uma jaca recebida de presente de outra mulher vinda da cidade vizinha de Cachoeira. E aí minha avó contava esse negócio que a mãe de santo que matou a do Pinho, mandou uma jaca preparada [...] Nesse dia tinha a cantiga da jaca, porque tem. A jaca tem cantiga, tem a cantiga da jaca que eu num me lembro, senão eu cantava pra você escutar. É, então nessa cantiga se, quando cantava essa cantiga não podia comer a jaca e se você comesse a jaca você não podia cantar essa cantiga. Então ela comeu a jaca, então como a jaca tava preparada, nessa cantiga ela passou mal, passou mal com o preparativo que tava ali e aí foi embora. O nome eu não me lembro. E a mulé correu pela fonte por isso que se chama a fonte de Dan, com o bastão na mão. Então o povo atrás, disse que o povo correndo atrás: ‘pega essa mulé, pega essa mulé’, ela jogou o bastão pra trás. Esse bastão virou uma serpente e não deixou ninguém passar pra pegar a mãe de santo. E essa mãe de santo sumiu. (Maurisio, 28 anos) Este relato poderia ser o ponto de partida das histórias que a comunidade do Pinho conta de si mesmo. Ele nos ajuda a perceber relações de conflitos que envolvem poder e prestígio, mas também nos fornece elementos para entender o significado da jaqueira, árvore originária da Índia e largamente encontrada no Brasil no contexto afro-brasileiro. A história nos permite ainda por fim, fazermos um caminho de volta até o momento inicial quando esta comunidade foi fundada no meio do mato, por africanos escravizados liderados por um vodun ou simplesmente darmos um mergulho na fonte de Dan como a mulher que a semelhança dos reis do Daomé, foi protegida pelo seu bastão transformado na grande serpente que risca o céu na forma do arco íris e fez do Pinho Daomé, “a terra das cobras.”
71
REFERENCIAS FERRETTI, Sérgio. Querebentã de Zomadonu: etnografia da Casa das Minas do Maranhão. Rio de Janeiro: Pallas, 2009 __________ Vodus da Casa das Minas. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes (Org.) Culto aos Orixás: Voduns e ancestrais nas religiões afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 2004. LÉPINE, Claude. Os dois reis do Danxome: varíola e monarquia na Àfrica Ocidental 1650-1800. Marilia: Unesp, 2000. PASTORI, Antonio. Documentário Casa de Santo. 50’. Maragojipe, 2005. PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Unicamp, 2006. SOUSA JUNIOR. Nagô, a nação de ancestrais itinerantes. Salvador: FIB, 2005.
oriebiR
moc.rotcartarr et@or i eb ir
rb.moc.rotcartarret.www
brasilcomartes@gmail.com 071 3287-0435 / 8724-5455 / 9221-3298
6651-7564 11 6009 4565 9 11