A Ăşltima
Carta
ESTHÉFANIE VILA MAIOR NATHÁLIA LIMA
A última
Carta
Relatos de vidas marcadas pelo suicídio
Este livro ĂŠ dedicado a todos aqueles que, de alguma forma, sobreviveram ao suicĂdio e seguem na busca por novas maneiras de curar a dor da perda.
Agradecimentos Agradecemos a Deus, em primeiro lugar, por conceder-nos a oportunidade de escrever sobre um assunto tão complexo de maneira leve. Às nossas famílias que serviram e servem de suporte desde o início de nossas vidas e também durante este período de faculdade. Aos amigos que, através do apoio, ajudaram a manter-nos fortes persistindo neste trabalho. Aos nossos entrevistados que, de forma tão carinhosa, confiaram a nós suas histórias de superação, tornando este trabalho possível. Ao nosso orientador por visualizar e sonhar conosco desde o início deste projeto e aos professores do curso que, nestes quatro anos de curso, ajudaram a transformar-nos em melhores profissionais, visando o trabalho e o cunho social do Jornalismo.
Editoração: Esthefanie Vila Maior e Nathália Lima Projeto Gráfico e Diagramação: Nícolas Venefrides Capa: Nícolas Venefrides Imagem de Capa: Mariana Gouvêa
SUMÁRIO 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9.
Introdução Cada pessoa é um mundo O diagnóstico errado O pianista Sobrevivente A separação Um triste sorriso Medo sufocante Referências
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“Nunca falta a ninguém uma boa razão para suicidar-se.” Cesare Pavese
Introdução Uma pessoa comete suicídio a cada 40 segundos no mundo.
Introdução
O número de casos de mortes por suicídio tem aumentado e já é considerado um problema de saúde pública. Nos últimos dez anos, as taxas de autoextermínio cresceram 10,4% no país. De acordo com o relatório “Prevenindo o suicídio: um imperativo global” publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), existem mais de 800 mil casos de suicídio no mundo por ano. Ou seja, cerca de uma pessoa tira a própria vida a cada 40 segundos. O Brasil é o oitavo país com maior índice de suicídio. Atualmente, cerca de seis pessoas a cada 100 mil habitantes tiram a sua própria vida. Um dado alarmante, visto que, no mundo, esse número dobra para 12 pessoas a cada 100 mil habitantes. Etimologicamente falando, a palavra suicídio tem origem no latim. Sui significa próprio e caedere, ou cidium, matar. De acordo com o dicionário Michaelis, suicídio pode ser definido como ação ou efeito de suicidar-se; ruína ou desgraça, procurada espontaneamente ou por falta de juízo. 13
A Última Carta
Para o sociólogo Émile Durkheim, o suicídio é todo o caso de morte resultado direta ou indiretamente de um ato consciente praticado pela própria vítima, seja ele positivo ou negativo. A tentativa de suicídio é a interrupção do feito, antes que resulte em morte. De acordo com a psicóloga e especialista em saúde mental Patrícia Poletti, o autoextermínio é a escolha deliberada de tirar a própria vida. Ela explica que a maioria dos casos são planejados. “Existem situações em que a pessoa morre em um momento de surto onde coloca sua vida em risco. Entretanto, o suicídio é um ato consciente”, afirma. Segundo o psiquiatra Dr. Luiz de Oliveira Santos Neto, o suicídio é quando o indivíduo, normalmente por desejo de escapar de uma situação de sofrimento intenso, decide morrer. Suicídio, por quê? A psicóloga Patrícia Poletti explica que para cada caso, existe um fator que levou a escolha do suicídio. Crises pessoais, situações de perdas, depressão, uso de bebidas alcoólicas e consumo de drogas, transtornos mentais são alguns dos fatores que podem levar a pessoa a se matar. Entretanto, existem aqueles que simplesmente não querem viver, apenas por uma questão de escolha. Para o Dr. Oliveira o suicídio é uma questão sem resposta. “Pode ser uma fuga do sofrimento, um alívio para dores emocionais, psicológicas ou físicas, uma resposta às alucinações, uma maneira de renascer ou um método de preservação da honra da família”, afirma. A idade também pode ser um fator de risco. De acordo com dados da OMS, pessoas acima de 70 anos são as que mais cometem suicídio. Aproximadamente, 10 a cada 100 mil habitantes desta faixa etária se matam por ano no Brasil. “A segunda taxa mais alta está entre os adolescentes e jovens. Mas existe muita dificuldade de encontrar estes dados, pois como o assunto ainda é um mito, muitas vezes são colocados nos laudos outras causas de morte”, esclarece Patrícia. 14
Introdução
A psicóloga ainda explica que tudo pode ser pretexto para suicídio. “Os motivos são diferentes para cada um. A dor, os sentimentos a maneira de lidar com uma situação são diferentes para cada ser humano. Cada um aguenta até um ponto”, afirma. Mesmo que a escolha não seja esta, todos já cogitaram ao menos uma vez, nem que seja por alguns segundos, tirar sua própria vida.
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Desmistificando o assunto Existem diversos mitos sobre o comportamento suicida na sociedade. O manual “Prevenção do suicídio: um recurso para conselheiros” cita os mais comuns: • Quem fala sobre suicídio quer chamar atenção. Pessoas que falam sobre suicídio não querem chamar atenção. Quando um indivíduo demonstra intenção ou comenta sobre um plano suicida, é porque tem um problema real e deve ser levado a sério. A psicóloga Patrícia Poletti explica que tem como prevenir uma tentativa quando nota-se que a pessoa tem um problema. “Ela ter a coragem de falar sobre isto já é um grande passo. O simples fato dela conversar sobre o assunto é um indício de que existe algum problema que precisa ser resolvido”, afirma. • O suicídio é sempre impulsivo e acontece sem aviso. O suicídio nem sempre é um ato impulsivo. Mesmo que pareça ter sido repentino, o autoextermínio pode estar sendo planejado durante algum tempo. Suicidas comunicam de alguma maneira, seja verbal ou comportamental, sua intenção de morrer. De acordo com Patrícia, o suicida escolhe o método que, na visão dele, vai obter maior êxito. • Os suicidas estão decididos a matar-se. Existem pessoas que realmente querem tirar sua própria vida. Entretanto, a maioria dos suicidas compartilha seus pensamentos com alguma outra pessoa, ligam para linhas de emergência e apoio, ou para um médico, o que demonstra dúvida e não empenho em morrer.
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Introdução
• Quando alguém sobrevive a uma tentativa de suicídio está fora de perigo. Sobreviver a uma tentativa de suicídio não significa estar fora de risco. Os momentos mais perigosos são aqueles que sucedem a crise, normalmente quando se está no hospital. Quem tentou tirar a própria vida pode vir a cometer tal ato novamente. • O suicídio é hereditário. O suicídio não é hereditário. Entretanto, um histórico familiar de comportamento suicida pode ser um fator de risco. Existem casos de autoextermínio que estão associados a transtornos mentais. A psicóloga Patrícia explica que tais transtornos podem ser hereditários e a forma que determinada família lidou com isso foi através do suicídio. “Não é porque o pai ou a mãe de alguém se matou que este indivíduo também vai fazer a mesma coisa. Mas, muitos casos de suicídio ocorrem devido a transtornos mentais, que podem ser hereditários. Mesmo assim, não significa que a pessoa vá escolher a morte como solução do problema”, esclarece. • Quem tenta ou comete suicídio tem sempre alguma perturbação mental. Pessoas com algum tipo de transtorno mental estão em um grupo com maior risco ao comportamento suicida. Estes tipos de problema potencializam qualquer sentimento, tornando-os mais complicados de lidar. Mas nem todos que cometem o autoextermínio tem, necessariamente, algum distúrbio ou fazem uso de substâncias como álcool ou drogas. Existem muitos casos em que não foi detectado nenhum tipo de perturbação mental, depressão ou consumo de álcool e outras drogas. • Após uma tentativa de suicídio, o indivíduo não tentará 17
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matar-se novamente. Não há regra. É possível que alguém que tentou tirar sua vida e não obteve êxito, venha a concretizar o ato posteriormente. O psiquiatra Dr. Oliveira ressalta a importância de encaminhar o caso para profissionais da área, para que os problemas que estão levando aquela pessoa a escolher o suicídio sejam tratados. • O suicídio só acontece “àqueles tipos de pessoas,” não a nós. O suicídio pode afetar qualquer um, independente da sua classe social, faixa etária ou nacionalidade. Não existe um perfil determinado para o comportamento suicida. • Crianças não cometem suicídio por serem incapazes cognitivamente de entender a morte e se empenhar em um ato suicida. Crianças também podem escolher o autoextermínio, embora sejam raros os casos no Brasil e no mundo. Qualquer ato, em qualquer idade, deve ser levado em consideração. • Falar sobre o assunto pode estimular a ideia de suicídio à pessoa. Conversar com alguém sobre suicídio não significa incentiválo a cometer o ato. Um diálogo sobre o assunto não causa um comportamento suicida. Na realidade, é necessário reconhecer o problema existente e falar sobre ele com a intenção de ajudar a melhorar a situação. Quebrando tabus Apesar do número elevado de casos, o tema ainda é tratado como tabu e causa polêmicas. Segundo o manual “Prevenção do Suicídio: um manual para profissionais da mídia” da OMS, a principal justificativa 18
Introdução
dada para a falta de conteúdo jornalístico é que a maneira como os meios de comunicação tratam casos públicos de suicídio pode influenciar a ocorrência de outros autoextermínios. Entretanto, o mesmo manual explica que abordar o assunto não provoca o comportamento suicida em populações vulneráveis, mas sim a maneira como é tratado. Alguns tipos de cobertura podem ajudar a prevenir a imitação do ato. Para o psiquiatra Luiz de Oliveira Santos Neto, é papel do jornalista, como formador de opinião, levar conhecimento e informação de forma responsável para a sociedade, inclusive quando se trata de suicídio, visto que é um assunto de extrema importância. Informar a população a respeito do suicídio pode trazer melhorias à sociedade. Existem algumas objeções para que o tema seja tratado da maneira correta. O manual “Prevenção do Suicídio: um manual para profissionais da mídia” orienta que não se deve publicar fotografias do falecido ou cartas suicidas; dar detalhes específicos do método utilizado; fornecer explicações simplistas; enaltecer o suicídio ou fazer sensacionalismo sobre o caso; usar estereótipos religiosos ou culturais; atribuir culpas. O Conselho Federal de Psicologia define como sobreviventes de um suicídio indivíduos que tiveram suas vidas marcadas por este evento fatídico. Além da família, podem ser incluídos no grupo amigos próximos, colegas de escola ou trabalho, vizinhos. O livro-reportagem “A última carta: relatos de vidas marcadas pelo suicídio” conta histórias destes sobreviventes e mostra, através de perfis, as consequências e impactos que o autoextermínio pode trazer, o processo de luto e a dor da superação daqueles que ficaram. Além de retratar histórias de sobreviventes, o objetivo do livro é informar a população sobre as atuais estatísticas alarmantes sobre o tema e desmistificar os tabus presentes na sociedade acerca do assunto.
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Cada pessoa ĂŠ um mundo Fernando passou a enxergar as histĂłrias tristes e mundos diferentes existentes por trĂĄs de um sorriso.
A discriminação contra subgrupos dentro da população pode levar à contínua experiência de eventos estressantes da vida, como a perda de liberdade, rejeição, estigmatização e violência que podem causar o comportamento suicida. Alguns exemplos de ligação entre a discriminação e o suicídio incluem pessoas que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais. (Fonte: WORLD HEALTH ORGANIZATION: Preventing suicide: a global imperative, 2004)
Fernando e Andrey eram amigos há mais de dez anos. Cresceram na mesma rua em Juiz de Fora, Minas Gerais. Estudaram na mesma escola, frequentavam a casa um do outro. Com o tempo, a relação evoluiu de amizade para irmandade. Na visão de Fernando, Andrey sempre foi um cara de bem com a 23
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vida. Segundo ele, era possível ver a alegria estampando o rosto do amigo. Companheiro, estava ao lado de quem precisasse de apoio. – Lembro de quando tive problemas na minha família, era ele quem estava do meu lado. Quando conheci meu pai e meu irmão, ele que me deu suporte – conta Fernando, com um tom saudoso na voz. Andrey, os pais e o irmão sempre foram muito unidos. Apesar de aparentar ter a vida perfeita, passavam por diversos problemas dentro de casa. Os pais eram evangélicos, recriminavam e julgavam muitas coisas, como a homossexualidade. Também não permitiam que o jovem, aos 21 anos de idade, frequentasse bares e badalas ou tomasse bebidas alcóolicas. – Ele teve que mentir para os pais na nossa festa de formatura. Disse que estava indo viajar comigo e minha família, para poder ir escondido a própria festa. Eles não aceitavam que Andrey estivesse em um ambiente com músicas que não fossem da sua igreja e onde tivesse bebidas. Já era o segundo vestibular de Andrey para medicina. Seu tempo era dedicado quase que integralmente aos estudos. Era um cara inteligente, estava prestes a realizar seu sonho e corria atrás para conquistá-lo. 15 de março de 2006, Fernando recebeu uma ligação do amigo por volta das nove horas da manhã, perguntando se podiam conversar. Na época, Fernando trabalhava no setor administrativo de uma loja e como estava em seu horário de expediente, combinou de encontrá-lo durante o almoço. Andrey disse que mandaria uma mensagem, que nunca chegou. Já era hora do almoço. Angustiado, Fernando ligou para o amigo, duas, três vezes, mas o celular encontrava-se desligado. Pensando que Andrey estivesse em horário de aula no cursinho, resolveu falar com ele depois. Mas, Fernando recebeu outra ligação no final da tarde. Desta vez era a mãe de Andrey. – Como éramos muito amigos, ela me perguntou se havia falado com Andrey, pois também estava tentando ligar para ele. Expliquei que havia conversado pela manhã, mas que também não conseguia contato depois disso. Disse para ela que passaria na casa deles antes de ir para o hospital. 24
Fernando trabalhava pela manhã em uma loja de roupas. No período da noite era enfermeiro em um hospital. Quando ele chegou em casa, a mãe de Andrey já havia o encontrado. Ao reparar uma grande movimentação de pessoas na rua, Fernando foi até a casa do amigo, preocupado. – Foi quando eu descobri. – Afirma Fernando, com um nó na garganta. – A mãe dele já havia achado a carta que ele deixou e enlouqueceu com o que leu e viu. Andrey estava morto e sua mãe o encontrará em seu quarto. Fernando ajudou a família a tirar o corpo de dentro da casa e prosseguir com os procedimentos necessários. Como trabalhava no hospital, ajudou em todo o processo de limpar e preparar o corpo do amigo para ir para o caixão. – Foi uma das piores sensações da minha vida. Foi assim... – Fernando faz uma pausa e reflete sobre o assunto. – Eu acho que nunca mais vou sentir o que senti naquele dia. Não tem sensação ou sentimento que explique. Para mim era uma mentira, era um boneco. Eu não conseguia enxergar o Andrey naquele corpo. Apesar de trabalhar na área de saúde e ser treinado para lidar com situações assim, o conhecimento e a ética profissional pareciam ter evaporado para Fernando. Foi completamente diferente daquilo para o que estava preparado. Cuidar de alguém que amava transformou Fernando em um leigo naquela situação. – Até hoje eu não sei como consegui cuidar do corpo dele. Sabe quando você tem a sensação de estar meio dopado? – Pergunta retoricamente, com um olhar distante. – Foi assim que eu fiz. Andrey deixou uma carta e uma foto ao seu lado. Na carta ele revelava ser homossexual e manter um relacionamento de longa data com um homem. Com o tempo, a afeição pelo seu parceiro foi tomando proporções gigantescas e se tornando cada vez mais forte. Seu sentimento de culpa e martírio por acreditar que não seria aceito pela família crescia proporcionalmente ao seu amor. Agoniado, a morte pareceu ser a única saída. A foto era do seu namorado, um amigo em comum. – Eu descobri apenas pela carta que ele era homossexual. Mesmo 25
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com a liberdade e confiança que tínhamos um no outro, ele não conseguiu se abrir por medo. – Fernando para por alguns segundos e se questiona sobre o porquê do amigo não ter revelado nada. – O Andrey se achava uma aberração, acreditava que seu comportamento era errado, dada sua criação. Quando li a carta, parecia uma pessoa completamente diferente da que eu conhecia. Ele nunca demonstrou a tristeza que tinha dentro dele. Foi muito assustador para mim. Seis meses antes, ele namorava uma menina. Eles terminaram por causa do novo relacionamento de Andrey. Por mais que tentasse fugir, ele gostava do cara. Apesar das tentativas, por parte dela, de reatar o namoro, o casal que aparentava ser feito um para o outro se separou sem volta. Andrey não parecia ser o tipo de pessoa que cometeria suicídio, se é que existe um perfil traçado para isto. O único indício dado foi a ligação para seu amigo. Fernando sentiu que o amigo estava agoniado, mas não imaginava que estava prestes a tirar sua própria vida. Para ele, era a pressão por ser seu segundo vestibular ou problemas com a família, já que ele dependia dos pais financeiramente para viver. Era notável seu cansaço e sobrecarga, mas inimaginável a possibilidade do autoextermínio. Foi a primeira pessoa que Fernando amava de verdade e perdeu. Para ele, era inevitável se deixar levar por alguns momentos em pensamentos de culpa. Fernando sempre se questionou por que o amigo não contou nada para ele. – Eu pensei: cara, um dos meus melhores amigos morreu. Ele precisava de mim e não achou isso em mim, onde eu errei? Onde não demonstrei que não era confiável? Tínhamos tantos segredos, fizemos tanta merda juntos, por que ele não me falou? Por que escondeu de mim? Isso que bate muito na minha cabeça. Por que você não veio falar comigo, sabendo que eu poderia ter feito algo? – pergunta Fernando, como se estivesse falando com o amigo. Na época, Fernando fazia acompanhamento psicológico, devido à depressão, e tomava remédios. Por já estar em processo de tratamento, a recuperação do luto foi mais rápida. Isso não significa que tenha sido menos dolorosa. 26
Como era espírita, tentou por diversas vezes entrar em contato com o amigo para entender o porquê do suicídio e principalmente para saber por que nunca houve aquela conversa. – Eu entrei em desespero, precisava saber o porquê dele não ter confiado em mim, me culpei por isso. Comecei a ficar meio louco – afirma Fernando, com a dúvida ainda na cabeça. Apesar das tentativas, Fernando não conseguiu nenhuma resposta do falecido amigo. Segundo ele, no espiritismo, depois que uma pessoa morre, ela não consegue voltar durante um tempo, ainda mais no caso de suicídio. A crença afirma que o seu espírito fica preso, impedindo o contato com qualquer pessoa do “mundo dos vivos”. – Mesmo sem conhecê-lo ou sequer terem visto uma única vez na vida, várias pessoas falavam que o viam perto de mim com um semblante triste e com a roupa que foi enterrado. Explicavam-me que, por mais que ele tentasse, ele não conseguia falar. Um mês depois, o pai de Andrey também se suicidou. Quem mais uma vez, anestesiado, cuidou do corpo foi Fernando. Era inevitável para ele não reviver a morte do amigo. Seis meses depois, sua mãe também se matou, utilizando o mesmo método que o filho. Neste caso, Fernando não conseguia mais ajudar e optou por sequer ter contato com o corpo. Ninguém nunca mais teve notícias do irmão de Andrey. Para Fernando, a atitude da família foi em consequência do remorso que sentiam pela morte do filho. – Foi muito doloroso para eles conviverem com o fato de que o Andrey se matou por não se sentir aceito. Eu via o desespero nos olhos deles durante o velório. Saber que seu filho se suicidou por ser algo que você julga. Saber que você é o culpado, é muito difícil lidar com isso. O contato de Fernando com a família de Andrey tornou-se pequeno após sua morte. Mas era nítido para ele que os pais do seu amigo estavam definhando, como em um dos seriados que costumava assistir, Desperate Housewives. Na trama, uma das personagens tenta passar a imagem de família perfeita para a sociedade, assim como a de Andrey. No desenrolar da história, o filho é homossexual e diversas outras coisas acontecem. – Eles queriam ser a família perfeita, mas tinham muitos problemas 27
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por trás e eram extremamente preconceituosos. Os pais dele não aceitavam minha amizade com ele no começo, por eu ser filho de mãe solteira. Somente com o tempo começaram a se acostumar – conta, como se ainda estivesse indignado com o preconceito que sofreu. Após o suicídio de um dos seus melhores amigos, Fernando passou a enxergar as histórias tristes e mundos diferentes existentes por trás de um sorriso. Aprendeu a colocar em prática a máxima de “não julgar o livro pela capa”. Ele também começou a dar mais valor a vida e passou a cuidar mais das pessoas que ama. Além do acompanhamento psicológico, o que deu base para Fernando seguir adiante foi entender que o amigo estava doente e precisava de ajuda, mas escolheu se fechar. Para ele, Andrey estava tão mal que ficou cego. Ele havia chegado ao fundo do poço. – Eu sei que ele não conseguia voltar. A doença o deixou tão atônito que o impedia de ver o que podíamos fazer por ele, ou pelo menos tentar. Fernando também já cogitou e tentou o autoextermínio, por consequência da depressão. Mas através do acompanhamento psicológico, sua decisão hoje é outra. Por ter vivenciado tantos episódios possui uma visão sobre o tema diferente da sociedade em geral, que teme falar qualquer coisa a respeito. Para ele, o suicídio deveria ser abordado de maneira aberta e até mesmo retratado nas novelas brasileiras. Como trabalhou na área da saúde, conhece com os tabus por trás do suicídio e também a necessidade de um tratamento diferenciado. Quando trabalhava no hospital, Fernando acompanhou de perto não só os casos daqueles que amava, mas também de desconhecidos. Por se tratar de pessoas que tentaram tirar a sua vida, mas que não consumaram o ato, nunca sabia que consequências ou sequelas a escolha delas poderia deixar. A atenção para que uma segunda tentativa não ocorresse dentro do hospital era redobrada e qualquer pequeno movimento ou algum comportamento que fugisse do normal era motivo de desconfiança. Fernando e os outros profissionais precisavam manter distância e se envolver o menos possível com este tipo de paciente, para poder ter uma visão analítica do caso e realizar 28
o trabalho da maneira mais saudável possível para o paciente suicida. – Reza a lenda que pacientes suicidas são deixados às traças para morrer no hospital. As pessoas confundem essa distância necessária para um melhor tratamento com a negligência. – Afirma, indignado com este tipo de pensamento por falta de conhecimento de algumas pessoas. – Uma mexida na maca, alguns segundos há mais no banheiro, tudo é motivo de suspeita. Precisamos ficar atentos a isso, ir checar se está tudo bem. Essa preocupação extra acaba sendo vista como negligência. Quase dez anos depois, a ferida deixada pela morte de Andrey se encontra aberta. A mãe de Fernando ainda mora na mesma rua. A antiga casa do seu melhor amigo continua lá, abandonada. Os olhos de Fernando sequer cogitam se dirigir na direção daquilo que um dia foi o lar de seu melhor amigo. Pelo menos não sem voltar todo e qualquer sentimento ruim ao reviver um filme de lembranças e sensações aterrorizantes em sua cabeça. Fernando sempre irá carregar consigo a dúvida do porquê seu melhor amigo não ter conversado com ele. Apesar da decisão fatídica de Andrey, o único sentimento que prevalece é a saudade. Fernando também não sente raiva ou culpa pela escolha do amigo. – Ainda me pego ligando para ele quando preciso de apoio ou quero contar algo que sei que ele entenderia. Mas vem aquele insight e me lembro de que não vai rolar, de que o Andrey não está mais aqui comigo. Ele faz muita falta na minha vida – revela Fernando, que deixa escapar uma lágrima dos olhos. Hoje, com alguns machucados que a vida causou, Fernando optou por morar no interior de São Paulo. Ele escolheu deixar a enfermagem um pouco de lado e trabalhar na área administrativa. Apaixonado pelo que faz, não se imagina trabalhando em outra coisa, muito menos voltando para a enfermagem. Sua visão de vida mudou bruscamente, em partes pelo amigo que perdeu. Fernando não faz questão de muito para viver e busca apenas o necessário para ser feliz. A morte lhe ensinou a sinceridade consigo mesmo. Como uma espécie de trauma ou defesa, para Fernando não existe meio termo ou fingimentos. Ou ele gosta, ou não gosta. 29
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– Não faço nada pra agradar os outros e essa atitude veio depois do suicídio do Andrey. Ele tentava agradar muito aos outros, vivia uma farsa. Ele não está mais aqui hoje – explica Fernando, com vários machucados no coração. Ele possui sua própria filosofia de vida e evita fazer planos. Não por algo ruim ou por medo, mas porque a vida já o surpreendeu muito. Aos quase 30 anos de idade, se tivesse seguido seus planos, não teria chegado aonde chegou. A ausência de planos não significa ausência de sonhos. Fernando tem o desejo de fazer um mestrado e um doutorado para se especializar na área que gosta. – Tenho minhas metas, meus objetivos e sonhos. Mas nada que me obrigue a seguir um roteiro fixo.
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A última carta Cara, você foi uma das pessoas mais importantes da minha vida. A primeira pessoa que me senti confortável para me abrir e contar que fui abusado sexualmente durante boa parte da minha vida, foi você. Você é uma das poucas pessoas em quem eu confiaria, se ainda estivesse aqui. Eu tenho muita saudade de você, Andrey. Daquelas que chegam a dar um vazio no peito. Depois de cada perrengue que passamos juntos e daquilo quae vivemos, depois de tudo eu só consigo me perguntar por que você não se abriu comigo? Se você precisava conversar com alguém, por que não falou nada para mim? Eu vou levar esse questionamento para o túmulo. Eu também queria te contar muitas coisas. Cara, eu realizei boa parte dos meus sonhos, aqueles que você sabia que eu tinha. Eu vivi o que eu queria viver. Queria que você tivesse do meu lado em tantas situações. Inúmeras, na verdade. Eu sempre me pegava pensando onde você estava. No show da nossa banda preferida cheguei a te procurar, mas lembrei que você não estava presente. Queria você aqui para ir na minha formatura ou te contar sobre a primeira viagem que fiz sozinho, os lugares que visitei e o meu primeiro emprego depois de formado. Passei por muitos perrengues, sabia que se te ligasse você me atenderia na hora. Algumas vezes até liguei, mas você não atendeu. Muita coisa aconteceu, não consigo te contar tudo em uma carta. Se nos encontrarmos um dia no céu, a gente coloca a conversa em dia. Eu sinto sua falta, da vivência, da nossa irmandade, de estar sempre junto. Ainda penso “vou comprar pro Andrey também”, quando estou comprando algo para mim e sei que você iria gostar. Quando estou em algum lugar me vem a mente “cara, tenho que trazer o Andrey aqui”. Não tenho o que falar, além de dizer que você fez e ainda faz falta demais. Dentro de mim você ainda está vivo. Essa carta, essa entrevista, esse livro é uma forma de te falar que eu não me esqueci de você. Estou fazendo isso para te honrar de alguma maneira. Também para prevenir, para que outras pessoas não façam o mesmo e que entendam as consequências que ficam quando você escolhe o suicídio.
O diagnóstico errado O problema parecia ter sido resolvido. Todos nós estávamos muito felizes por causa do resultado negativo pra câncer, mas meu pai não voltou ao normal.
A taxa mais alta de suicídio no Brasil está entre a terceira idade. Aproximadamente 13 homens a cada 100 mil habitantes, entre 50 e 69 anos de idade, tira sua própria vida por ano no país. (Fonte: WORLD HEALTH ORGANIZATION: Preventing suicide: a global imperative, 2004) A semana havia sido corrida para Daniela. Tudo o que ela queria era descansar e aproveitar o final de semana. No sábado, uma prima próxima faria aniversário de 15 anos. Convites cor de rosa foram entregues pela própria debutante à família e amigos. Nada passaria em branco. Daniela e sua família eram convidados confirmados da festa. O presente estava embalado, o vestido comprado, tudo certo. Menos o sapato de jovem. – Mãe, meu vestido é lindo, mas não tenho sapato que combine com ele – exclamou Daniela, sem saber o que fazer. – Acho que vou comprar um amanhã e parcelar no cartão. 35
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O Diagnóstico Errado
– Pergunte ao seu pai, filha. Vai que ele te ajuda a comprar este sapato – respondeu dona Elza, mãe de Daniela, sem prestar muita atenção no assunto. A moça preferiu não comentar com seu pai, um senhor chamado Irineu, que andava meio quieto nos últimos dias. Seu Irineu dos Santos vinha de origem humilde. Sempre muito trabalhador, constituiu, com dona Elza, uma família estruturada e feliz. Tinham um casal de filhos e um relacionamento estável. De acordo com Daniela, ele era um homem sempre bem-humorado. – Meu pai era sempre muito amoroso com todos. Bem estilo “povão” de ser. Não havia tristeza onde ele estivesse. Todos ficavam felizes perto dele, pois, acredito eu, esse era o seu propósito de vida – explica Daniela, a filha caçula do casal. Thales, esposo de Daniela, comenta que tudo era motivo de piada e gracejos para seu Irineu, até mesmo na época que namoravam. – Ele era um cara muito engraçado. Sempre fazia todo mundo se sentir à vontade. Meu sogro era um homem muito atencioso, não deixava nada passar. Irineu era um homem caseiro. Saía apenas com seu amigo Renato, um vizinho de longa data, que o acompanhava semanalmente ao barzinho perto de casa. Lá, eles jogavam bocha, um esporte que requer uma cancha de areia, algumas bolas pesadas – geralmente de cimento – e dois times. A teoria é simples. Uma bolinha menor é lançada. Os dois grupos devem arremessar as pelotas maiores o mais perto possível da menor. Por fim, quem conseguir deixar mais próximo, ganha. Na prática, o jogo se intensifica, pois o peso das bolas e a precisão com a qual os jogadores devem arremessá-las são o diferencial, o que dificulta. Mas como a dupla já estava acostumada a jogar e ganhar de todos, não havia porque ficarem receosos. Para ambos, a ida semanal ao bar era de praxe. – Meu pai não gostava muito de estar na rua, mas não trocava o barzinho por nada. Era um momento sagrado – explica Daniela. No entanto, depois de um tempo, o barzinho, ponto de encontro daqueles dois amigos fiéis, fechou as portas. Talvez por falta de lucro, 36
talvez por falta de clientela, mas nunca por falta da presença da dupla dinâmica Irineu e Renatinho. Foi neste momento que as saídas tiveram de ser remanejadas para outros lugares. Um dia na casa de um, outro dia na casa de outro. Mas não durou muito tempo também. Seu Renato precisou de mudar. Não iria mais acompanhar seu Irineu às sagradas idas ao bar, agora feitas nas salas de estar da casa do amigo. Seu Irineu, como era um feliz senhor, não demonstrou sua tristeza, mas recolheu-se cada vez mais em casa. Não havia mais companhia nem lugar para ir. A solução era permanecer na redoma do lar. E assim o fez. Aquele pai de família trabalhava na área de manutenção de um pronto socorro de sua cidade, na região metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Aos 60 anos, era o braço direito da administração e era observado com bons olhos pela chefia. – Ele era muito querido por todos nós, tanto técnicos quanto médicos. Sempre prestativo, ajudava no que era necessário – explica Cristiano, técnico de enfermagem que conheceu e trabalhou durante cinco anos com seu Irineu. Uma das facetas que poucos conheciam eram as preocupações que tirava o sono daquele senhor simpático. – Meu pai era um homem muito angustiado. Tudo precisava ser da maneira como ele queria, se não, ele perdia a paciência. Principalmente quando o assunto envolvia saúde – conta a filha. Seu Irineu, desde muito cedo, tomava remédios fortes para controlar seus “nervos”. Ia ao psiquiatra regularmente para tratar deste problema. Quando não tomava os tais comprimidos, sua cabeça costumava explodir de dor. A dependência química dos calmantes fazia com que uma enxaqueca tomasse conta dele. Por isso, não ousava deixar de tomá-los nunca. Em abril de 2007, como parte importante da vida de qualquer homem maduro, seu Irineu foi fazer um exame de próstata. Não era a primeira vez fazendo aquilo. Nada muito confortável, mas como sempre dava tudo certo, não haviam apreensões no coração de seu Irineu. No entanto, naquele dia, algo foi diagnosticado no exame. O 37
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O Diagnóstico Errado
médico estava com as feições diferentes. A preocupação era explícita. De primeira vista, Irineu não entendeu bem o que poderia ter dado de tão preocupante, mas como de costume, ficou aflito. “Se o médico está preocupado, devo ficar também”, provavelmente pensou. Depois de 15 minutos de pura inquietação e nervosismo, veio a facada na alma. Seu Irineu poderia estar com câncer. – Olha, seu Irineu. Não tenho certeza, mas o que geralmente acontece quando este tipo de exame apresenta alteração é algum tipo de câncer. Só vou conseguir te afirmar, com mais precisão, depois de outro exame mais específico – contou o médico. Não precisava de mais nenhuma palavra. O que foi dito pelo médico já era suficiente para armar, dentro do coração de seu Irineu, uma tremenda apreensão, que não seria resolvida assim tão facilmente. As idas ao psiquiatra, que era responsável por tratar da agitação e preocupação de seu Irineu, se tornaram mais específicas. Ele estava interessado em novos assunto. Seu irmão, Adroaldo, que havia cometido suicídio anos antes, estava corriqueiramente em pauta nas conversações. Não que ele tivesse essa ideia, assim como dizia para o médico, mas a curiosidade não tinha fim. Enfim, em setembro, cinco meses depois do primeiro, o tão esperado exame “mais específico” foi feito. Constatou-se que o problema era bem menor do que o tal câncer suposto pelo médico que o examinou. Uma simples medicação seria suficiente para normalizar a situação de seu Irineu. Remédio receitado, atestado em mãos. Estava pronto para ir pra casa. Só que agora o problema não era mais esse. – O problema parecia ter sido resolvido. Todos nós estávamos muito felizes por causa do resultado negativo pra câncer, mas meu pai não voltou ao normal – comenta Daniela. O resultado errôneo afetou demais seu Irineu, que já era um senhor com muitas preocupações. No período após último exame, seu Irineu trocou de psiquiatra e de remédios. A dor de cabeça por causa da mudança do medicamento era recorrente. Como gesto de “escape”, comprou um ar condicionado e pediu para instalarem no quarto que dividia com dona Elza. A partir daquele momento, nada o fazia sair daquele lugar arejado e pacífico. O filho mais velho, Fernando, casou-se antes mesmo de Daniela 38
completar 15 anos. Era ligado à família, mas por causa do casório, não conseguia dedicar tempo integral aos seus pais, responsabilidades de quem sai de casa para constituir uma nova família. Fernando sempre foi muito bem relacionado com todos. Parecia seu Irineu na maior parte do tempo. A caçula Daniela, em contrapartida, sempre foi mais reservada. – Eu sou do tipo de pessoa que não socializa muito, mas geralmente dou altas risadas com quem conheço – diz Daniela. Em 2007, Daniela trabalhava e estudava durante a semana. Cursou administração e dizia ter uma vida normal. O relacionamento com seu atual esposo já existia há quase um ano. Sua vida amorosa estava engatilhada. Thales, o dono do seu coração, convivia bastante com a família de Daniela e era bem quisto por todos. “Minha rotina era puxada assim como a de todo jovem da minha idade. Eu tinha 19 anos e tinha ingressado no mercado de trabalho. Tudo era bastante corrido, mas não acho que minha vida tenha sido pesada naquela época” relembra a jovem. Daniela ainda diz que além de trabalhar e estudar, sonhava com seu casamento e tinha como objetivo de vida dar aos pais e à família que constituiria, uma vida tranquila e feliz. Depois daquela longa semana de jornada dupla, faculdade e trabalho, Daniela finalmente tinha um dia para descansar. A ideia de comprar o sapato novo para a festa da prima estava fresca em sua mente. “Não vou com aquele sapato preto desbotado. Não mesmo”, repetia ela, mentalmente, desde o momento em que acordara. – Filha – resmungou Irineu, com carranca de quem havia dormido mal. – Fala, pai – retrucou Daniela, que lavava a louça do café da manhã. – Ontem, eu escutei você dizendo pra sua mãe que não tem sapato pra ir à festa da sua prima. Como seu aniversário está chegando, pegue esse dinheiro aqui e vá ao centro da cidade comprar um de salto alto bem bonito. – esticando a mão, entregou 200 reais à caçula. Daniela já tinha planos de parcelar o sapato. Não precisava do dinheiro de seu querido pai. E sua mãe tinha que fazer o almoço. Não tinha como as duas irem até o centro comprar o sapato. Atrasaria a 39
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vida daquela família que era pontual até no horário das refeições. – Pai, não precisa. Eu vou passar o cartão e ir pagando devagar. Não precisa gastar dinheiro com isso. Dá até pra dividir em quatro vezes no cart… – A jovem nem conseguiu terminar a frase. Antes mesmo que ela falasse todas as suas justificativas para que o pai desistisse de pagar aquele sapato, seu Irineu a interrompeu e disse: – Não, minha filha. O pai está te dando isso de presente. Sem mais argumentos, Daniela apenas agradeceu e abraçou seu pai. Meia hora depois, mãe e filha estavam prontas para sair de casa. Não era sempre que as duas tinham tempo de sair juntas. Algo, no fundo do coração de Daniela, não fazia sentido. O sentimento que tinha é de que algo estava errado. “Não sei por que, mas sinto que tem alguma coisa diferente acontecendo”, repetia ela, em silêncio. Para não preocupar sua mãe, não disse nada. O pressentimento poderia ser mero devaneio. Nada que um sorvete não ajudasse a passar. Como última cartada para tirar aquele pensamento insano da cabeça, resolveu perguntar ao seu pai se estava tudo bem. Na medida do possível, e no novo estilo de vida de seu Irineu, respondeu, meio calado, que estava tudo certo. Daniela ainda perguntou se ele queria sair de casa, colocar o par de alpargatas nos pés e vestir a bombacha para “arejar a cabeça”. Afinal, sair de casa às vezes, é necessário. Mas ele recusou o convite também. – Vão vocês duas. Eu quero descansar um pouco mais. Estou com um pouco de dor de cabeça e prefiro não ir pra não piorar. Mas não se preocupem, vou ficar bem – finalizou seu Irineu. Suas últimas palavras foram para tranquilizar suas mulheres. Daniela acreditou no que lhe foi dito. Afinal, seu pai não era de mentir. Se disse que ficaria bem, na volta estaria tudo certo. E lá foram as duas, que eram parecidas em fisionomia, rumo ao centro da cidade, em busca de um sapato decente, um presente de aniversário adiantado de Daniela. No centro da cidade, com a ajuda de dona Elza, Daniela escolheu rapidamente o calçado. Na primeira loja em que entraram havia promoção. As sandálias estavam com desconto e eram todas bonitas. Foi fácil de escolher, não demoraram muito tempo. 40
Dona Elza, na loja em que estavam, observou um relógio que também fazia parte da promoção. Era masculino. Combinava com a blusa nova azul anil que havia comprado para o marido dias antes. Logo de cara lhe veio seu Irineu à mente e teve vontade de levar o agrado para o marido. Mas ele não gostava de surpresas. Resolveu então ligar, mas não teve sucesso. Ninguém atendia. Suspeitou, então, que o marido estivesse dormindo. Mas ele tinha hábitos diurnos. Limpava o pátio, arrumava o telhado, organizava a garagem. Não dormia assim cedo. Não tinha como estar dormindo. Comentou com Daniela que sentia que algo estava errado. A filha logo lembrou do pressentimento que teve, mas preferiu mudar de pensamento e disse à mãe que voltasse para casa. Dona Elza acatou e decidiu pegar o primeiro ônibus que passasse. No entanto, Daniela tinha outras coisas para fazer no centro e preferiu ficar mais um pouco. Voltaria para casa um pouco depois. – Filha, vou só fazer companhia pro seu pai, ok? Quando você chegar, o almoço já vai estar pronto. Se cuida! – e lá foi dona Elza. Poucos minutos depois, dona Elza chegou em casa. Ela queria apenas ver que Irineu estava bem, deitado na cama deles, com o ar condicionado ligado e o sorriso de canto de boca de sempre. Mas a imagem foi outra. A casa estava silente, tudo parecia de luto. O celular em cima da mesa fazia contrapeso sobre um pequeno pedaço de papel escrito “Perdão minha filha e minha véia”. Aquela senhora gritou por seu Irineu, mas continuou sem resposta. A casa era espaçosa. Ao fundo do pátio havia um galpão. Dona Elza, ao ler o bilhete, não entendeu bem o que estava acontecendo. “Seria aquele um bilhete de adeus? Mas como?”, pensava, sem saber o que fazer. Até que lembrou do galpão. Quis pensar que era bobagem imaginar algo trágico acontecendo ali. Então resolveu ir aos fundos checar se tudo estava normal. Mas nada estava normal, tudo havia mudado de figura. Seu Irineu, seu companheiro, seu marido, pai de seus filhos havia feito algo sem volta: um ato de extrema inconsequência, um atentado contra a própria vida. O pedido de perdão não era à toa. Não dizia respeito à toalha molhada em cima da cama, muito menos ao humor inconstante de 41
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ultimamente. Dizia respeito à decisão que mudaria a vida e o futuro de toda uma família para sempre. A dor do luto, a saudade precoce, a partida repentina. A cena era mais do que dona Elza conseguiu suportar. Saiu gritando por socorro. Um vizinho, seu Alfredo, veio correndo e acudiu dona Elza. Daniela continuava no centro da cidade, terminando o que precisava fazer. – Minha mãe não me ligou pra avisar o que tinha acontecido com meu pai. Só fiquei sabendo que ele não estava bem quando cheguei à rua de casa – explica. Isto aconteceu porque seu namorado, Thales, havia sido avisado por dona Elza pelo telefone. Ela preferiu contar para o genro e que ele avisasse Daniela. – Eu estava na rua de casa quando o Thales veio me encontrar e dizer o que tinha acontecido. Fiquei em choque. Não conseguia acreditar – relembra Daniela. Ao chegar em casa, tudo estava estranho. Vizinhos preocupados rodeavam dona Elza. – Tudo aconteceu muito rápido. Nada parecia real – comenta Thales, que viu o sogro morto no galpão dos fundos. Embora algumas pessoas tenham visto o corpo desfalecido de seu Irineu no fundo do pátio, Daniela foi proibida de chegar perto do local. Ninguém a deixou presenciar o que tinha acontecido. Para dona Elza, esta foi uma maneira de proteger a imagem do marido na cabeça de sua filha. – Depois que meu pai morreu, toda a nossa rotina mudou. A casa estava pela metade. Os corações tinham rachado ao meio. Tudo estava diferente. A válvula de escape que Daniela usou para se desligar desta realidade foi sua mãe, dona Elza. – Eu não tinha como deixar minha mãe passar por aquilo tudo sozinha. Tinha que dar força a ela. Era tudo o que eu, como filha, deveria fazer. E fiz – comenta. A nova rotina ainda incluía faculdade e trabalho. Apesar do que havia ocorrido, a vida deveria seguir. Por completo. 42
À noite, a cama dos pais era o refúgio de Daniela. O abraço de dona Elza se tornou seu porto seguro. Seu antigo quarto era usado apenas para guardar suas coisas e empilhar velharias. Tudo aquilo fazia parte do plano de não lembrar do acontecido e sarar a ferida de ambas através do apoio mútuo. – Minha mãe e eu nos tornamos muito mais próximas nesta época. Nós fazíamos tudo juntas – conta Daniela. Ela ainda comenta que esta foi a maneira que usou para não pensar a respeito do que tinha acontecido com seu pai. A fuga, naquele momento, foi o que a ajudou a permanecer de pé. Embora Daniela estivesse destruída por causa de tudo, não podia deixar com que isso afetasse sua vida por completo. Então, ela decidiu levar novamente uma vida normal, junto de sua mãe, que não tomou a mesma escolha que ela. – Naquele momento, o suporte que ela precisava, podia encontrar em mim. Assim foi durante muito tempo. A jogada de mestre funcionou até 2012. Foram vários momentos em que elas puderam se abraçar e receber alento uma da outra. Fizeram tudo que estava ao alcance para apoiarem uma a outra. – Não creio que exista outro meio para curar uma dor tão amarga – afirma Daniela. Neste ano, aconteceu um dos momentos mais importantes na vida de Daniela. O tão esperado casamento com Thales. Seis anos de namoro e então chegou o grande dia. Depois do casório, muita coisa mudou. Daniela e Dona Elza começaram a sentir mais a ausência de Seu Irineu. A cama, que antes era preenchida pelo corpo da filha caçula, agora voltara a ficar vazia. Seu Irineu, aos 60 anos, deixou seus dois filhos e sua esposa. A decisão que tomou não apenas afetou seu futuro, mas o daqueles que o amavam. Daniela conta que não sente ódio, não tem mágoa, nem raiva de seu pai. – O único sentimento que tenho é tristeza. Ele perdeu tanta coisa. Eu me formei, me casei, construí tantas coisas que ele não presenciou. As consequências da decisão do patriarca que permanecem hoje influenciam simples decisões tomadas pelo jovem casal. Ambos 43
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exercem cargos de supervisão na empresa em que trabalham e passam muito tempo fora de casa. A rotina que, esporadicamente, inclui dona Elza, é corrida. No entanto, por causa da ausência da filha, dona Elza se sentido sozinha. – Minha mãe, nos últimos tempos, tem lembrado bastante do meu pai. Ela chora bastante e questiona os motivos de ele tê-la deixado sozinha – complementa. A falta que o ente querido faz não é preenchida por nenhuma outra pessoa. As marcas que são deixadas por pessoas que cometem suicídio não somente resultam momentos após o ato, mas por toda a vida de quem se importa.
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A última carta Pai, existiam outras saídas. O seu suicídio não foi a melhor opção, pelo menos para mim, para a mãe e para o Fernando. A sua escolha de tirar sua própria vida não resolveu nada. Apenas criou mais problemas para aqueles que se preocupavam contigo, principalmente para a mãe. Eu sinto pena por tu teres tomado esta decisão. Pai, eu me casei com o Thales, sabia? Tanto para mim quanto para ele, a sua escolha foi tomada por causa daquele exame. Eu percebi que a notícia de um suposto câncer te abalou muito e, apesar do diagnóstico errado, que você nunca mais se recuperou. Sempre me questiono se eu poderia ter feito algo para que isto não tivesse acontecido. Eu não fazia ideia de algo estava completamente errado e que você tomaria esta decisão. Aliás, ninguém tinha noção disso. Você aparentava ser alguém de bem com a vida, sempre empenhado em tirar um sorriso dos outros. Eu queria ter feito alguma coisa. Eu ficaria do seu lado, pronta para ajudar da maneira que fosse necessária. Eu me sinto impotente por não ter feito nada. Tu estavas lá, deitado na sua cama. Mas eu não sabia o que se passava na sua cabeça. Eu não sabia que devia ter feito algo. Hoje, o seu sorriso, que não tinha preço, é o que mais me faz falta. Para mim, para a mãe, para o Fernando, para todo mundo que te amava. Eu sinto muita saudade de você pai. Com amor e um espaço vazio no peito, Sua filha, Daniela.
O pianista Ao decorrer dos anos a mĂşsica foi sua melhor amiga, algumas vezes a Ăşnica.
Cerca de 11 adolescentes do sexo masculino, a cada 100 mil habitantes, cometem suicídio por ano no Brasil. A taxa de suicídio entre adolescentes e jovens e a segunda mais alta do país. (Fonte: WORLD HEALTH ORGANIZATION: Preventing suicide: a global imperative, 2004) Compositor, pianista, produtor, músico. Para Thomas, 20 anos, a música se tornou sua melhor amiga e companheira. O tímido músico de Rondônia gostava de tocar piano desde criança, e aos cinco anos se apaixonou por aquilo que posteriormente se tornaria sua profissão. A vida um tanto quanto nômade, por causa da profissão do pai, um pastor, era inevitável e às vezes, solitária. Ossos do ofício, quando se mudavam para uma cidade com menos habitantes, seu único e melhor amigo era o irmão Phil. Apesar da pouca diferença de idade, ambos sempre foram completamente diferentes. Enquanto Thomas possuía uma alma introvertida de artista, o caçula, onze meses mais novo, era descontraído. Nas palavras do primogênito, Phil sempre foi o irmão 49
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mais bonito da família. – Ele tinha pinta de galã, todas as meninas queriam namorar com ele – relembra Thomas de maneira orgulhosa, exibindo uma foto do irmão. Phil também teve contato com a música durante a infância. Tentou piano, violino e canto. Mas acabou escolhendo outra área que o interessava mais, a dos esportes. A proximidade e cumplicidade entre os dois era tanta que Thomas esperou um ano para estudar na mesma sala do irmão. Eram como gêmeos, porém de idades diferentes. Entre os dois não existiam problemas ou brigas, apenas a diversão de brincar o dia inteiro e de fazer “coisas de irmão”, como explica o filho mais velho. A rotina da família mudou quando foi descoberto um tumor no cérebro de Thomas, aos doze anos de idade. Na época moravam no Acre, mas acabaram mudando para Brasília. Desta vez, pela necessidade de um tratamento melhor. O câncer também impactou a vida do caçula, que sempre teve uma ligação muito forte com o irmão mais velho. Os tratamentos tiveram sucesso e o dia a dia da família voltou ao normal. Durante a adolescência, o sonho de Thomas era estudar em um internato. A família concordou com a decisão, já que os irmãos não tinham muitos amigos e acreditavam que o convívio com pessoas da mesma idade seria o melhor para ambos. Agora, com 14 e 13 anos de idade, os irmãos tomaram um novo rumo juntos. Sua nova casa seria um internato no interior de Goiás. O caçula não tinha gostado tanto assim da ideia, mas acabou indo por causa de Thomas. – Ele foi comigo porque meus pais acreditavam ser a melhor opção e porque tudo o que eu fazia, ele devia fazer. Coisa de irmãos. O mais novo sempre tem que fazer o que o mais velho faz. O colégio era o paraíso para eles. Lá haviam diversas pessoas da mesma faixa etária, um conservatório musical, um complexo esportivo e a independência idealizada por todo adolescente. Thomas e Phil moravam no mesmo quarto, juntamente com dois amigos. Apesar de serem novos na escola, não passaram pelo temido ritual de trote e rapidamente estavam inseridos em um grupo de amigos. No internato acabaram se distanciando um pouco. Eles conviviam 50
na sala de aula e durante as refeições. Mas Thomas ficava mais no conservatório do que em qualquer lugar, dedicando horas do seu dia à sua paixão pela música. Na mesma intensidade, Phil passava grande parte do seu tempo praticando esportes. Na última semana do semestre, que aconteceriam as provas finais, tudo começou a mudar. No final de semana, Thomas viajou com o coral. O caçula ficou no internato, já que não tinha mais tanto interesse pela música e não participava de nenhum dos grupos musicais do colégio. No sábado à noite, quando retornou da apresentação, Thomas observou um “clima estranho” no quarto. Todos os meninos que moravam com ele e o irmão se davam bem e confiavam muito um no outro, eliminado muitos dos problemas de convivência comuns em internatos. O quarto tinha alguns pequenos luxos, como um banheiro apenas para eles, não sendo necessário usar o banheiro coletivo, que era dividido entre os alunos. Era um quarto típico de internato, cada um com sua cama, seu guarda-roupas e sua própria escrivaninha. Durante o domingo, aquele “clima estranho” entre os amigos mudou e a rotina seguiu normalmente. Thomas e Phil fizeram o simulado antes das provas, almoçaram, jantaram e realizaram suas atividades como era de costume. Na manhã de segunda-feira, 15 de junho de 2009, iniciaram-se as provas finais. Como de praxe, Thomas e Phil foram para a aula juntos e, após as provas, foram almoçar. Durante a janta sentaram separados, cada um com seus amigos. Por se tratar de um internato confessional, era comum realizarem pequenos cultos durante a semana, onde algum dos alunos ou professores compartilhava uma pequena meditação. Naquele dia, 15 de junho, o culto das meninas e dos meninos era junto, Thomas sentou-se ao fundo do auditório, já que sempre gostou de observar a expressão das pessoas. Viu seu irmão de longe. Ele parecia bem e, como sempre, estava sorrindo. – Esta foi a última imagem que tive do meu irmão feliz, ele estava sentado na capela. Eu nunca vou esquecer isso – conta o primogênito, emocionado. 51
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Naquela noite, Thomas ficou até dez e meia da noite trabalhando no conservatório, envolvido com sua música. Ele deveria voltar cedo para estudar, não poderia ficar até mais tarde no seu local de trabalho. Quando chegou ao residencial, ele foi informado de algo estranho havia acontecido em seu quarto e que seu irmão estava trancado no banheiro. Naquela época, havia apenas uma chave por quarto, que ficava no quadro de chaves, na sala do preceptor. Thomas, diferente do resto dos alunos, tinha sua própria chave, então se dirigiu ao seu quarto. Apesar do que todos falavam, para ele, estava tudo aparentemente normal. Ele bateu na porta do banheiro que estava trancada, mas ninguém respondeu. – Eu sabia abrir com a tesoura, mas pensei em não abrir. Não imaginava que algo grave poderia ter acontecido. Thomas foi procurar um professor, que era muito amigo de Phil, no complexo esportivo para saber se havia acontecido algo que o houvesse chateado. Quando retornou ao residencial, havia carros da polícia e ambulâncias no local, o que começou a preocupá-lo. – Dei a volta pelo lado de fora do prédio e fui até a janela do meu quarto, estava tudo normal. Dava pra ver alguma coisa pela janela do banheiro, quando olhei vi a cabeça do meu irmão. Assustado, Thomas se dirigiu a recepção do dormitório. Lá, levaram ele e os demais alunos para o conservatório, onde falaram que passaria um filme. Era normal passarem filme nos finais de semana à noite. Mas, em uma segunda-feira durante a semana de provas, fugia completamente às regras do internato. Thomas sentia que algo havia acontecido, no fundo ele já até sabia o que era. Era quase onze e meia da noite quando o buscaram no conservatório, avisando que seus tios, que eram muito próximos de ambos os irmãos, estavam no colégio. Como havia sido convidado para ir a casa deles, Thomas foi buscar algumas roupas em seu quarto e perguntou de seu irmão. Falaram que ele havia desmaiado e ido para o hospital. Já não havia mais nenhuma ambulância quando entrou no carro. – Tomei um suco de uva com um gosto forte e adormeci. Quando 52
acordei estava em Brasília. Na terça-feira pela manhã, sua tia sugeriu um passeio em um parque da cidade. O passeio não durou muito tempo e logo pegaram o caminho que dava no aeroporto da cidade, com o suposto fim de ver os aviões decolando e pousando. – Estávamos na área de desembarque quando ouvi meu primo perguntando “cadê o tio João e a tia Silvia?”. Vi uma aeromoça trazendo minha mãe. Ela se encontrava em uma cadeira de rodas, chorando. O meu pai estava ao seu lado, sua aparência era de desolado. E não era somente aparência. Eu não entendia o que estava acontecendo. Elisa, a prima mais velha de Thomas, o levou em um cantinho e contou a notícia fatídica de que seu irmão havia cometido suicídio na última noite. Ele sabia da morte do irmão, havia visto seu corpo no banheiro. Foi o primeiro da família a saber e o único a presenciar tal cena. – Eu já sabia, apenas não queria acreditar. Eu fiquei em choque. Phil foi enterrado no cemitério da família. Thomas e seus pais foram para uma clínica em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, para se restabelecerem psicologicamente. Entretanto, o primogênito não aceitou nenhum tipo de tratamento. Thomas, agora sem a companhia do irmão, mudou-se para uma cidade no interior do Mato Grosso, com 40 mil habitantes, onde os pais moravam e passou o semestre seguinte com eles. No começo, ele relutou em voltar para a casa, mas a união entre ele e seus pais estava abalada. O autoextermínio de Phil havia desunido uma família que sempre construiu um relacionamento de cumplicidade. Naquele semestre aconteceram muitas brigas pelo fato da relutância do caçula em ter ido para o internato e querer ir embora para casa. Não era apontado ninguém como culpado, mas existiam discussões sobre o assunto. – Eu me culpo até hoje. Eu deveria estar no meu quarto naquela noite. Eu poderia ter sido mais presente na vida dele. A estadia na casa dos pais não durou muito tempo. A reação de Thomas perante o suicídio do caçula foi ocupar-se o máximo possível com suas atividades, para não sofrer o luto e a dor de perder seu melhor 53
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amigo e irmão. Durante uma visita com o primo ao antigo colégio, optou por continuar o ensino médio no interior de Goiás. Apesar dos tristes acontecimentos, ele ainda se sentia acolhido. Lá, ele mergulhou em todos os projetos possíveis na área de música. Thomas acabou passando mais três anos em um lugar que lhe proporcionou um grande crescimento musical, mas também lembranças bastante dolorosas. – Eu nunca senti a morte do meu irmão. Não tive depressão ou algo assim. Eu não quis tratamento e até hoje não aceito. Vou levando assim minha vida – conta Thomas, refreando seus sentimentos. Apesar de admirar o trabalho dos psicólogos e psiquiatras, Thomas nunca sequer conversou sobre a morte de Phil com algum profissional. Para ele é algo difícil de permitir por se tratar de um assunto íntimo demais. A escolha de não lidar com seus sentimentos em relação ao suicídio de seu irmão teve um preço caro para Thomas. Isolado em sua dor reprimida, ele abriu mão de muitas coisas. Amizades, companhias, atividades que o colégio proporcionava ficaram de lado. Até hoje as consequências são presentes em sua vida. – Tenho dificuldades com relacionamentos. Perdi a sensibilidade. Não me arrependo e me arrependo ao mesmo tempo pela maneira como escolhi lidar com tudo isso. As consequências do suicídio de Phil também não afetaram somente Thomas. Seu pai, João, enfrentou uma grave depressão e problemas com a profissão, mesmo após muitos anos de trabalho. Na visão de Thomas, a morte do irmão não foi um autoextermínio. Sem compreender a atitude de Phil, Thomas afirma que isto precisa ser esclarecido quando Jesus voltar. Dada a sua fé, ele tem esperanças de ainda encontrar com o irmão no céu. Para ele, Phil não tinha motivos para tirar sua própria vida. – Até hoje eu tento procurar, mas não acho nada. Ele não teria forças para fazer isso. Para uma pessoa se matar, ela deve estar muito sem saída. Ele não aparentava nada. Mas quem somos nós para ver o interior do outro. Eu nunca vou entender isso. Para Thomas, o irmão cometeu o ato, possivelmente, em um 54
momento de raiva e tomou uma decisão que não queria realmente. Quando percebeu, já era tarde demais para voltar atrás. As lembranças e o espaço vazio deixado por Phil são coisas que Thomas aprendeu a conviver e crescer com isso. Os dejavús e o desejo da presença do irmão são inevitáveis. – Quando eu vou sair com os amigos, fazer algo, sinto muita falta dele. Gostaria que ele fosse junto como era antes. Ao decorrer dos anos a música foi sua melhor amiga, algumas vezes a única. Não tem como esconder a alegria que Thomas sente de enrolar um cabo de som, tocar piano, compor uma música ou reger. Após concluir o ensino médio, prosseguiu com seus planos de ir para o internato no interior de São Paulo, onde iniciou a graduação em música, em 2012. Os momentos de tristeza são incontáveis e há momentos em que se pega pensando no assunto também. Ele explica que quando está nas madrugadas trabalhando em seus projetos, muitas vezes, se pega um pouco mais emotivo e deixa algumas lágrimas escaparem. Mas, por causa da sensibilidade musical, Thomas transforma qualquer sentimento ruim em combustível para fazer sua música. – Eu vivo em decorrência da música, ela foi uma amiga que sempre esteve e ainda está ao meu lado. Os momentos de choro incontrolável são mais raros. Seis anos após a morte do irmão, foram poucas as vezes que ele se permitiu sentir e transbordar por causa da perda. A última vez foi no final do primeiro semestre de 2015. Thomas estava em uma viagem com um grupo de música e sua mãe ligou avisando que seu pai estava internado na UTI com pneumonia. – Fiquei desesperado, não podia perder outra pessoa. Não podia perder meu pai – afirma, demonstrando medo de encarar a morte outra vez. A paixão musical é tamanha que Thomas assume vários projetos e áreas diferentes ao mesmo tempo. Hoje, ele afirma estar frustrado e confuso academicamente por ter que decidir qual caminho seguirá daqui em diante. As decisões agora se baseiam em focar na parte técnica, na regência, no piano ou na produção musical. 55
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Para ele, muitas vezes falta humildade nas pessoas desta área. Dada a sua criação em um lar religioso e cheio valores cristãos, a humildade, em sua perspectiva, está relacionada a servir o próximo. Entre os planos futuros está incluso um período fora do Brasil e dedicação ao trabalho na música de forma plena, servindo ao próximo. Ele também tem o sonho de ser um grande pianista de palco. Thomas aprendeu a lidar com tantos sentimentos reprimidos e transformá-los em sua força para prosseguir e não desistir da vida, dos seus sonhos e dos sonhos dos seu pais. Na sua visão, possui a responsabilidade de ser o Phil para eles, ao mesmo tempo em que também tem que ser ele mesmo. Continuar o legado do caçula é uma honra para ele. A maior preocupação dele agora é a conquista do diploma. Seu desejo é um dia poder chegar em casa e dizer “aqui está meu diploma”. Para Thomas é importante dar continuidade ao trabalho dos pais servindo as pessoas, mesmo que seja através da música. – Eu quero que meus pais tenham orgulho de mim. Hoje eu vejo que tudo o que tenho são eles. As pessoas dizem que sou forte. Eu tento ser forte por causa dos meus pais. A lacuna deixada pelo irmão é proporcional ao seu amor e dedicação pela música, que acabou ocupando o espaço que Phil deixou na vida de Thomas. Ele explica que sente saudade “das coisas de irmão”. A falta de ter alguém para contar segredos, coisas que, segundo Thomas, não pode falar para outras pessoas, o afeta muito. – Eu não tenho melhor amigo, ele era meu melhor amigo. Eu tive um amigo, que foi meu mestre na música. Eu converso muitas coisas com ele, é como um paizão para mim. Mas com meu irmão era diferente. Thomas não sente raiva do irmão ou da sua escolha. Entretanto, para ele é difícil encontrar uma palavra que defina seu sentimento sobre o suicídio de Phil. – Eu sinto... Eu não o culparia. Quem sou eu para medir ou colocar parâmetros para uma pessoa que teve um momento como esse? É a mesma coisa que falar para um viciado parar de usar drogas. Hoje, o que mais prevalece é a saudade e o desejo de abraçar seu melhor amigo e irmão. 56
A última carta Eu gostaria de te dizer que... Bom, eu nunca parei para pensar nisso. Sinto muito sua falta. Me emociono quando lembro de você. Mesmo quando estou trabalhando bastante, seja cantando, tocando, regendo, qualquer coisa que eu faça, me pego olhando para trás e te imaginando. Imagino você me assistindo toda vez que uma apresentação acaba. Você era descontraído e sempre teve um bom relacionamento com todo mundo. Nunca teve problemas, não que eu tenha reparado. Você sempre se deu bem com as meninas, era um galã. O irmão mais bonito era você. Eu me sinto culpado. Sei que você foi para o internato com suas relutâncias. Eu deveria estar no quarto com você naquele dia. Eu poderia ter sido mais presente naquele semestre, ter permanecido mais próximo de você. Eu não te acuso e nem quero falar nada sobre seu desejo de tirar sua própria vida. Quero apenas que saiba que entendo seu lado, que você está perdoado. Não tem motivo para eu me magoar. Eu sei que você está salvo. Vejo sua morte como a mão de Deus permitindo por algum propósito maior. Você acabaria se afastando dos caminhos Dele. Nossos pais também sabiam disso. Lembra do nosso primo que tinha um jeitão parecido com o seu? Ele estressou muito nossos tios, deu muito trabalho para eles. Nossa mãe tinha receio do mesmo acontecer com você. E, infelizmente, Deus permitiu que isso acontecesse com você para que o futuro não o fizesse perder a eternidade. Hoje, a única coisa que quero é te abraçar, porque tenho muita saudade.
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Sobrevivente Criança por fora, madura por dentro. Cozinhou, limpou, lavou, deu banho em seus irmãos durante aquela meia semana. Fez sem reclamar e de bom grado. Não precisava ninguém pedir. Ela fazia por amor.
Conflitos de relacionamento, por exemplo, separação; brigas e disputas de custódia; ou perda, como a morte do parceiro podem causar tristeza e estresse psicológico, que são associados a um maior risco de suicídio. Relações pouco saudáveis também podem ser um fator de risco. (Fonte: WORLD HEALTH ORGANIZATION: Preventing suicide: a global imperative, 2004)
Dia de semana. Tudo parecia normal. Os cinco filhos de dona Ana estavam em casa e ela, como de costume, aos berros, chamou a primogênita para ordenar-lhe que fizesse algo exatamente como dissesse. Era importante que Luana seguisse a risca a ordem de sua mãe, sem questioná-la. E ela sempre o fazia desta maneira. Entendia que não tinha como discutir. Obedecia e pronto. No entanto, aquele não foi um dia usual. Algo parecia estranho em 61
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dona Ana. Algo nela mostrava desespero, contido, porém descarado. Sua falta de delicadeza estava mais forte do que nunca. Mas, ao mesmo tempo, se mantinha pensativa, algo que acontecia pouco. Quase nunca, na verdade. Dona Ana era uma mulher difícil de lidar. Daquelas que nota-se de longe. Sua vida era rodeada de problemas e provações e ela nunca procurou ajuda para se tratar. – Minha mãe tem um histórico desequilibrado. Não se sabe o que é porque ela não vai ao psicólogo. Diz que não é louca. A gente, nossa família, acha que é algo muito grave, pois ela não consegue se relacionar bem com ninguém. Nos últimos meses, a tristeza havia tomado conta de sua vida. Ela, que não se sentia amada por ninguém, estava mais certa de que isto era verdade após se divorciar do terceiro marido. O relacionamento, aos trancos e barrancos, durou oito anos e resultou em três dos cinco filhos daquela mulher. Por causa destes problemas de relacionamento, ela também não parava em trabalho nenhum. – Minha mãe nunca conseguiu trabalhar fora por causa de relacionamento. Passava muito tempo em casa, cuidando do jardim que tínhamos. A família morava no interior do Paraná, na cidade Marechal Rondon. Os irmãos de dona Ana também residiam na cidade e era comum que, nos finais de semana, os primos se reunissem para brincar juntos. A tia Malu, mãe de Ana e Renata, não era muito de visitas, e restringia as filhas a se divertirem com os primos apenas aos fins de semana. Fora isto, o dia a dia era da casa para a escola e da escola para casa. Com Luana e seus irmãos, funcionava exatamente do mesmo jeito. A diferença é que dona Ana nunca recebeu visitas em casa. Nem os primos, nem os irmãos, nem os vizinhos. Ninguém era bem-vindo lá. Nada a fazia mudar de ideia. Não era hábito, nem fazia questão que fosse. Naquela terça-feira, dona Ana havia acordado diferente. Luana, que tinha 12 anos na época, percebeu a ansiedade da mãe. Preferiu não comentar, pois qualquer palavra era motivo de xingamento. Ela já estava acostumada e resolveu deixar de lado sua intuição. 62
– Luana, vem cá – chamou dona Ana, com a voz meio trêmula. A filha veio de pronto, como sempre o fazia. – Quero que você pegue seus irmãos e vá para a casa da tia Malu – disse em tom de ordem, esperando que ninguém revidasse. Malu não gostava de receber ninguém sem se preparar. Aquela ordem era, no mínimo, sem cabimento. Luana, preocupada com o que estava acontecendo, resolveu retrucar. Nunca fazia isto, mas a situação parecia ser diferente. Não podia deixar de falar algo. E, aos 12 anos de idade, retrucou dona Ana sem medo. – Mas mãe, a tia Malu não gosta de receber visita durante a semana. Por que todo mundo tem que ir para lá agora? O que está acontecendo? Dona Ana revirou os olhos e, como se fosse fulminar a primogênita, respondeu rispidamente: – Faça o que eu mando sem resmungar, Luana. Eu disse que é para levar seus irmãos para lá. Vá de uma vez! A cabeça daquela criança começou a imaginar possibilidades esdrúxulas para o que haveria de acontecer com sua mãe sozinha em casa. De início, pensou que dona Ana estava de namorico com alguém. Afinal, era solteira há quase um ano e, se tivesse a intenção de namorar às escondidas, cinco filhos em casa não ajudariam a esconder o suposto amante. – Pensei que ela queria privacidade e fiquei muito curiosa para saber o que ela estaria fazendo sozinha dentro daquela casa. Os pensamentos de Luana só a preocupavam mais. Não sabia o que pensar. Nem por onde começar. Só sentia que algo estava errado. Para não causar nenhum problema com sua mãe, Luana obedeceu. Pegou seus quatro irmãos mais novos e foi até a casa da tia Malu. Ao chegar lá, a reação da tia foi perguntar os motivos de eles estarem lá. Ela não sabia o que responder. Não fazia sentido, e sua mãe não era de explicar os motivos de suas decisões. Por conhecer os devaneios da cunhada, meio a contragosto, tia Malu resolveu deixar os cinco entrarem. Afinal, eram crianças e estavam apenas obedecendo à ordem de sua mãe. Luana continuava meio apreensiva, meio preocupada. Passou-se meia hora, e a agonia só aumentava. Foi neste momento que decidiu 63
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voltar até sua casa e “desmascarar” sua mãe. – Eu queria pegar ela no flagra. Não importava o que estivesse acontecendo. Queria saber e entender porque nos mandou sair de lá. Desde sempre, dona Ana foi diferente. No relacionamento com seus pais, as brigas eram frequentes. O seu dia a dia sempre tinha algum problema, e não era do seu feitio resolver nada que lhe acometesse. Afastou, desde pequena, a companhia e presença de sua mãe. A culpava por não estar nunca por perto, mas sempre que teve a oportunidade de usufruir da companhia dela, a tratava mal. Foi casada três vezes. Todos os problemas que teve com seus maridos eram resultado de sua falta de tato com gente. Não conseguia se relacionar. Para ela, todos a estavam maltratando e ninguém prestava. – Nós, filhos, sempre tivemos que “pisar em ovos” com ela. Não podíamos pensar em desacatar qualquer coisa que ela dissesse. Os momentos de lucidez que dona Ana tinha eram rodeados de alegria e piadas. Quando era o centro das atenções, fazia com que todos rissem. Contava piadas, tinha aquele brilho no olhar de quem não se preocupava com nada, nada além do sorriso alheio. Pena que tudo isso durava tão pouco. Bastava um olhar diferente, um comentário meia boca, uma pisada fora da “linha imaginária” que dona Ana tinha em sua mente que tudo voltava a ser como antes. As grosserias, a arrogância, a severidade. – Uma das únicas vezes que me senti realmente amada pela minha mãe foi quando tive pneumonia, aos meus nove anos de idade. Ela atravessou a cidade comigo no colo. Não tínhamos carro e esta era a única saída para que eu fosse o médico. A família de Luana não tinha muito dinheiro. Dona Ana passou trabalho para conseguir sustentar os cinco filhos. Era metódica e grosseira, mas não deixou nada faltar para sua prole. Em 1982, dona Ana ainda vivia com seu ex-marido, o seu Jonas. Ele era o pai dos três últimos filhos dela, mas tratava a todos como seus próprios filhos. Jonas não tinha os mesmos problemas de comportamento que Ana e sempre tratou muito bem a todos. Seu único defeito era a bebida. Bebia diariamente. Porres de deixá-lo na sarjeta. Luana afirma 64
que teve de juntá-lo do pátio de casa diversas vezes e era ela quem esquentava seu almoço. Ana já havia desistido do vício do marido. Ela desistia de tudo mesmo. Não seria diferente neste caso. Por este motivo, não fazia questão de esquentar a comida de Jonas. Suas refeições eram preparadas por Luana, que amava o padrasto como seu próprio pai. Em um determinado dia, daquele mesmo ano, Ana entregou um frasco contendo um pó branco para sua primogênita, a Luana. Ela deu informações sobre o tal pó e explicou que aquele seria o segredo para seu pai parar de beber. – Todas as vezes que você esquentar a comida do seu pai misture uma colher disto no feijão. Era simples. No entanto, a responsabilidade de medicar alguém sem consentimento não deveria ser dada a uma criança de nove anos. – Eu era muito pequena e não entendia nada de medicamentos. Mesmo assim, fiz como ela mandou. Dias se passaram e Jonas só piorava. A bebedeira era tanta que Luana, em sua mente infantil da época, teve a “brilhante” ideia de colocar todo aquele pó no feijão de seu padrasto. “É hoje que ele para de vez com a bebida”, pensava ela, cheia de esperança de que sua ideia mirabolante surtisse resultados rápidos. Mas o que aconteceu foi totalmente o oposto do esperado. Jonas teve uma intoxicação por causa do excesso de medicação e foi parar em coma, no hospital. Luana não entendeu os motivos de ele ter ficado doente. Para ela, a lógica na qual o remédio funcionava era quanto maior a quantidade, mais rápido o efeito. Depois de muitos cuidados médicos, seu padrasto acabou se recuperando do susto. Dona Ana não tocou no assunto e tirou “o corpo fora”. Não se preocupara se a filha ficaria com algum trauma por causa do acontecido. Afinal, não tinha consciência do mal que poderia ter causado à sua própria filha. Jonas, após sair do hospital, teve uma conversa longa com a filha. Pediu explicações, ficou triste, mas entendeu tudo e não culpou Luana pelo que passou. O assunto deu-se por encerrado. Nunca mais ninguém falou sobre aquilo. Luana estava preocupada com o que sua mãe podia estar fazendo. 65
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Não entendia os motivos de ela ter mandado os filhos pra fora de casa em pleno dia de semana. Havia alguma coisa errada. Em um momento de insensatez e desespero, deixou seus irmãos e suas primas na casa dos tios e correu. Como se não houvesse amanhã. Correu para sua própria casa, imaginando que descobriria o envolvimento da mãe com outro homem. – Quando cheguei a minha casa, estava tudo fechado. Corri para a marcenaria do meu tio, que ficava uns 500 metros dali e pedi que alguém me emprestasse um martelo ou um pé de cabra para arrombar alguma janela. A preocupação dela comoveu um dos funcionários da marcenaria e este a acompanhou até sua casa. Ele arrombou uma das janelas da sala e Luana entrou. Tudo estava fechado. A porta que separava a cozinha dos outros cômodos da casa estava, estranhamente, serrada. Não era comum fechar aquela porta. Luana sentiu o clima pesar. Não fazia ideia do que estava acontecendo, mas teve a certeza de que não se tratava de algum amante de sua mãe. O cheiro era insuportável. Gás de cozinha exalava por toda a casa. O perigo de explosão era grande, mas Luana precisava saber onde estava sua mãe. Tomou coragem e abriu a porta. A cena que encontrou foi a pior das cenas que presenciou em toda a sua vida. – Minha mãe estava deitada no chão. Eu era uma criança, mas sabia que minha mãe estava tentando dar um fim na própria vida. Ao ver aquela cena, a primeira reação de Luana foi fugir. Como moravam em uma chácara no limite da cidade, existia muito mato por perto. A redondeza toda é rodeada por campos e plantações. Luana correu o mais depressa que pode em direção a uma das plantações de milho. Chorava desesperadamente. Não sabia se sua mãe iria morrer, mas teve medo de estar por perto para ver. Ao final daquele campo de milho havia uma estrada. A menina não tinha calculado exatamente para onde estava correndo. Seu impulso era fugir, não importava para onde. Ao se dar conta de que estava em um caminho conhecido, andou mais alguns minutos e chegou à casa de sua madrinha, Dona Mônica, uma mulher muito simpática que 66
conhecia os problemas da família de Luana mesmo antes dela nascer. A primeira reação ao ver a afilhada, coberta por lágrimas e sangue – proveniente das folhas da plantação que, ao entrarem em contato com a pele em movimento, cortam como facas afiadas – foi perguntar o que tinha acontecido. Luana não conseguia falar nada. A única frase desconexa que saía de sua boca era “minha mãe”. Com toda a meiguice do mundo, dona Mônica acolheu a menina no colo e a ninou. Não tinha o que fazer. Precisava acalmar a pequena antes de qualquer coisa. Luana perdeu a noção do tempo no colo da madrinha. Não sabia se tinham passado horas ou minutos. Sentia apenas a paz de não presenciar a tragédia que a acometia. Sua primeira reação foi fugir e não poderia ter tomado decisão melhor, pensava. – Eu fiquei desatinada ao ver aquela cena. Minha mãe, caída no chão, era mais do que eu conseguia suportar. Depois de respirar fundo e de ter sido amada por sua tia Mônica, conseguiu colocar a cabeça no lugar e explicar para ela o que tinha acontecido. Cada detalhe daquele dia estranho foi citado. Não podia deixar nada passar. Estava tudo tão fresco em sua mente, que não seria possível esquecer qualquer minuciosidade. Tia Mônica recebeu a história como alguém que já sabia que, mais cedo ou mais tarde, aquilo aconteceria. Não demonstrou muita surpresa. Ela conhecia Ana desde a infância. Sabia que seu fim seria aquele. Depois de ouvir a afilhada e acalentar seu pequeno coração, Mônica pediu que ela voltasse para sua casa. Que buscasse seus irmãos e não se preocupasse com o que tinha acontecido. Com voz de quem não acreditava nas próprias palavras, disse que Ana ficaria bem e que não havia razões para se preocupar. Era apenas um susto. O momento da volta para casa foi o mais agoniante na vida de Luana. Apesar das palavras de sua madrinha, sabia que algo grave havia acontecido e se perguntava os motivos de sua mãe para tomar aquela trágica decisão. “Como assim ela ia fazer isso com a gente? Ia deixar nós cinco sozinhos?” pensava, em voz alta. Não conseguia entender o que havia acontecido. – Eu não estava entendendo nada. Minha mente infantil apenas me 67
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dizia que estávamos sozinhos. Não tínhamos mais ninguém. Minha mãe afastou todos de nós e as únicas pessoas com quem podíamos contar éramos nós mesmos. Chegando à rua de casa, sua tia Malu, de moto, a encontrou. Logo de cara deu-lhe um sermão. “Onde já se viu sumir deste jeito? Deixou seus irmãos sozinhos na minha casa e desapareceu”, resmungava ela. Luana tinha medo de perguntar qual teria sido o desfecho da história de dona Ana. A possibilidade de estar sozinha no mundo, com quatro irmãos para criar, a deixava apavorada. “Quem vai cuidar da gente?” questionava ela. Mesmo sem querer saber o que se procedeu em sua casa, tia Malu contou. – Sabe onde sua mãe está? Levamos ela ao hospital e ela vai sobreviver. Fez lavagem no estômago e está tudo bem. O alívio de Luana era notório. Apesar das faltas de amor no falar e agir de dona Ana, a mãe deles estava viva. Não estariam sozinhos. Poucos instantes após a alegria, uma tremenda indignação tomou conta de Luana. Queria sacudir dona Ana e saber direito seus motivos. O que estaria acontecendo na vida dela para que tal decisão fosse tomada? Luana não visitou sua mãe. Era criança. Não podia entrar em hospital. E também tinha que ficar cuidando de seus irmãos. Dona Ana permaneceu internada durante três dias. Este tempo serviu de reflexão para aquela menina de 12 anos. Criança por fora, madura por dentro. Cozinhou, limpou, lavou, deu banho em seus irmãos durante aquela meia semana. Fez sem reclamar e de bom grado. Não precisava ninguém pedir. Ela fazia por amor. Na sexta-feira pela manhã, sua mãe teria alta. Seu tio João veio avisála e pediu que deixasse as coisas em ordem para quando ela chegasse. Luana havia pensado muito sobre o episódio daquela terça-feira traumática. Havia tirado conclusões sobre tudo o que tinha acontecido e resolveu fazer uma faxina na casa. Lavou banheiro, varreu chão, limpou cozinha, trocou roupa de cama. Tudo para que sua mãe se sentisse confortável na volta. – Eu tive a consciência de que aquilo não podia acontecer de novo. Se eu ficasse culpando ela pelo que tinha feito, não ia melhorar a situação. Ela estava passando por algo muito difícil em sua vida, e eu, 68
como criança, não entendia o que era, mas preferi não piorar as coisas. Depois do almoço, pouco antes de dona Ana chegar, Luana foi até o quintal de sua avó. A velhinha gostava de cultivar lindas flores. Colheu várias delas e fez um arranjo para colocar em cima da mesa. Era a cereja do bolo, o desejo de boas vindas, a aceitação do pedido de desculpas que nunca aconteceria. Meia hora depois, dona Ana chegou em casa com o corpo cansado por conta da medicação – e obviamente pela tentativa do autoextermínio. Não comentou quase nada sobre o que havia feito. Luana não fez muita questão em saber seus motivos. Para ela, estava claro que o silêncio seria a melhor opção naquela situação. Ao entrar em casa, observou tudo. Luana não esperava que fosse receber elogios. Não era do feitio de dona Ana e ela o sabia muito bem. Apenas ficou feliz em acalentar o coração ferido de sua progenitora. Queria acreditar que as flores tiveram um papel muito importante neste momento. Até hoje não se comenta sobre o assunto. Dona Ana continuou sendo a mesma mulher desbocada e mandona, e a história ficou guardada dos irmãos de Luana até meados dos anos 1990. Os problemas de relacionamento com os filhos nunca tiveram fim. Todos saíram de casa antes de completarem 18 anos. Não conseguiam conviver, pois tudo se transformava em briga. Luana casou-se e teve o primeiro filho aos 21 anos de idade. Até então, ninguém sabia do episódio da tentativa de suicídio. Para todos, as peripécias de dona Ana não ofereciam perigo. – Meus irmãos não aguentavam mais conviver com minha mãe. Ela sempre foi muito dura com todos nós, mas tinha piorado com o tempo. O problema é que ninguém sabia sobre aquele episódio de 1985. Foi aí que decidi contar para eles. Em um último esforço para tentar salvar o relacionamento de dona Ana com seus filhos, ou até mesmo para conscientizá-los de que ela era uma possível “bomba-relógio”, marcou reunião com todos e decidiu abrir o coração. A história caiu como uma faca no peito de todos. Não acreditavam que o desequilíbrio de dona Ana fosse tão grande. A história serviu apenas de exemplo para que eles entendessem o 69
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que se passava com sua mãe. Não resolveu nenhum dos problemas de relacionamento que ela tinha com todos, mas fez com que eles pensassem muito bem antes de brigar ou discutir com ela por qualquer coisa. Luana é casada com Calebe há 21 anos e tem dois filhos com ele, Henri, 20, e Theo, 10. Sua vida foi marcada por diversos episódios de impacto. Além da tentativa de suicídio da própria mãe, outros tipos de situações a acometeram, mas Luana não desistiu. – Sobrevivo diariamente. Minha mãe não faz tratamento psicológico e não sabemos o dia de amanhã. Cada dia é uma luta diferente, cada ligação é uma novidade relacionada à dona Ana. No passado, antes de compreender a doença de dona Ana, Luana se sentia culpada pelos surtos e pelos barracos. “O que eu estou fazendo para causar isso?”, questionava. Não havia explicações plausíveis para tudo o que acontecia dentro de casa e, como filha mais velha, pensava ser responsável por ajudar a mãe a mudar e se sentir mais amada. Luana é estudante de Psicologia. Entrou no curso por causa dos problemas que passou dentro de casa e por acreditar que, aprendendo a lidar com estes tipos de problemas psicológicos, poderá finalmente ajudar sua mãe e outras pessoas que passam por situações parecidas as que ela enfrentou. – Meu maior desejo é poder ajudar pessoas que não sabem o que fazer em momentos difíceis, como os que presenciei em minha vida. Entendo que o tratamento não deve ser feito apenas com aqueles que são causadores dos problemas, no meu caso, a minha mãe. Mas também com aqueles que são atingidos por eles. Filhos, parentes, amigos, todos precisam de orientação para lidar com tipos de problemas como este.
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A última carta Mãe, Eu sei que a senhora não entenderia o que vou lhe falar, mas mesmo que não leve a nada, preciso dizer que tudo podia ter sido diferente. Entendo que você tenha sofrido muito. Nós todos sofremos junto com você. Procurar o tratamento necessário teria sido a solução, se você não estivesse contaminada pela doença que não acredita ter. Orgulho sempre esteve presente em sua vida. Isso não faz bem para ninguém, mas entendo que você talvez não compreenda direito o que isso quer dizer. E não sinta o que faz com os outros. Do fundo do coração, tento diariamente não guardar mágoas de coisas que você me disse durante a vida. Queria te ver completa, mãe, mas parece que falta um pedaço. Falta ter consciência das próprias atitudes. Isto tudo por causa da doença. Essa doença que não sabemos o que é. Que tenho certeza que é tratável. Que queria muito que você mesma entendesse. Mas estou de mãos atadas. O que podia fazer eu fiz. Dei-te todo o suporte que pude, durante toda a minha vida e não me arrependo. Lamento muito tudo o que aconteceu na sua vida. Tenho um misto de sentimentos dentro de mim. Raiva, por passar pelo que passei ainda quando criança. Culpa, por não como fazer nada a respeito do que acontecia com você, por não conseguir entender, às vezes, que você não está em seu estado normal e não faz o que faz por mal. Nosso relacionamento sempre foi conturbado. No nascimento dos meus filhos, precisava de você do meu lado, mas não tinha como. Não havia liga entre nós. Sairíamos machucadas e esta não era a melhor opção para ninguém. Reconheço seus esforços para cuidar de nós, seus filhos. Embora não tenha sido a infância dos sonhos, nós crescemos e nos criamos graças à você. Tenho uma frustração imensa ao perceber que passei a vida inteira sem poder desfrutar da tua companhia por inteiro. Sinto sua falta, mãe. Falta de quem você seria se não estivesse fora de si. Se eu pudesse fazer um único pedido seria o seguinte: deixa eu te ajudar. Por favor! Não quero passar todos os dias imaginando que, a qualquer momento, posso receber uma ligação e o motivo dela ser a sua morte. Te amo, mãe.
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A separação Hoje eu entendo que para ajudar as pessoas, eu precisei ser ajudada antes.
Os distúrbios mais comuns associados ao comportamento suicida são depressão e transtornos relacionados ao uso de álcool. (Fonte: WORLD HEALTH ORGANIZATION: Preventing suicide: a global imperative, 2004) O ano de 2013 começava bem para Amanda. Pelo menos, não seria pior que o último, imaginava a jovem. Ela estava indo para um colégio interno no interior de São Paulo, onde seu irmão mais velho já estudava. Apesar da mudança drástica, trocar a cidade grande por uma fazenda entre duas cidades pacatas e respirar novos ares parecia uma boa saída. O último ano havia sido difícil para Amanda. No final de 2011 seus pais decidiram encerrar o casamento de anos. Além dos conflitos da adolescência, provas finais e vestibulares, agora ela tinha que lidar com o divórcio dos pais. 75
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A Separação
O ano seguinte não tomou um rumo muito diferente. Toni, seu irmão mais velho estava fazendo faculdade a quilômetros de distância no interior do estado de São Paulo. Os familiares de Antônio, pai de Amanda, moravam todos em Brasília. Após o divórcio ele resolveu mudar-se para lá e ficar mais próximo deles e voltou a morar com sua mãe, avó de Amanda. Mariza, mãe da jovem, queria ir para o Rio de Janeiro. A maioria dos seus parentes estava lá. Mas por algum tempo acabaram ficando em Curitiba. Amanda passou sua vida toda na cidade paranaense, nasceu e foi criada naquele lugar. Aquela jovem estava acostumada com uma família unida. Mas, do dia pra noite viu a sua despedaçar-se e cada um ir para um canto. A sensação de estar sozinha em meio a tantos problemas era inevitável. – Foi muito difícil para mim. Meu irmão estava no internato, então eu acabava tendo que lidar com tudo sozinha. Ela não queria mais lidar com tudo aquilo sozinha. Para ela, a melhor saída na época era mudar-se para o internato onde seu irmão estudava. Pelo menos ficaria próxima de Toni e faria novos amigos. Amanda prestou o vestibular para o curso de Direito no final de 2012. Logo, recebeu a resposta de que havia passado no processo seletivo e ganhado uma bolsa de estudos. As malas estavam prontas, a matrícula feita e a passagem comprada. Já era fevereiro de 2013 e suas aulas iriam começar. Pegou um voo para Campinas e de lá viajou de carro mais alguns bons quilômetros até chegar ao seu destino final. Amanda finalmente havia chegado naquilo que, nos próximos meses, seria seu novo lar e a fuga de seus problemas. Tudo era diferente para ela. As ruas movimentadas e barulhentas foram trocadas por gramados espaçosos e cheio de árvores. O quarto, que antes costumava ser somente seu, agora era dividido com mais três meninas. E a casa, que era habitada apenas por Amanda e Mariza, foi substituída por um dormitório com várias meninas. As refeições solitárias tornaram-se barulhentas em um refeitório com mais de mil alunos. No começo foi um pouco esquisito para ela um monte de mesas com pessoas estranhas espalhadas e fila para servir a comida. 76
Como havia conseguido a bolsa de estudos trabalhava durante meio período no campus da faculdade. Seus dias solitários tornaram-se uma rotina repleta de atividades. Durante o período da manhã assistia as aulas. A tarde cumpria suas horas da bolsa de estudo, ela ajudava a preceptora, responsável por cuidar de todas as meninas do internato, no residencial feminino. Nas suas horas livres Amanda estudava e fazia os trabalhos da faculdade, ia para a academia e praticava esportes. Ela gostava de jogar vôlei. Amanda passava os finais de semana com seus novos amigos. Assistia filmes e seriados com suas amigas ou saiam para comer algo ou tomar açaí. Ela gostava da companhia delas e do tempo que passavam juntas, mesmo que fosse apenas conversando. Haviam se passado três meses desde que Amanda mudou-se para o internato. Era uma tarde de domingo, em meados de maio, estava tendo um brunch no colégio que estudava. O refeitório ficava aberto durante todo o dia e serviam batatas fritas, pizzas, hambúrguer, milk-shakes, sorvete. Vários brinquedos ficavam espalhados pelos gramados: touro mecânico, cama elástica, futebol de sabão. Era um dia diferente no internato. – Eu gostava dos brunchs, da comida e dos brinquedos. Era bom pra sair da rotina, esquecer as provas da faculdade. Amanda ainda não sabia que o dia seria diferente. E não era apenas por causa do brunch. Ela havia esquecido algo em seu quarto e precisava buscar. Foi com suas amigas para o residencial. Ela entrou e as outras ficaram na recepção. Amanda ficou surpresa ao encontrar seu irmão na sala da preceptora. Junto com ele estava o preceptor responsável pelos meninos. Seu irmão estava chorando, o que a deixou com o coração apertado e uma sensação de algo estava errado. – Quando vi o Toni chorando já imaginei que era algo ruim. Ela avistou um comprimido em cima da mesa, mas não imaginava o por quê. Os preceptores a deixaram sozinha com seu irão. A jovem estava nervosa, mesmo antes de saber do que se tratava e Toni tentava acalmá-la. Seus amigos e todos que estavam na recepção do dormitório 77
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feminino ouviram um grito incessante. Amanda havia recebido a pior notícia da sua vida: seu pai havia se matado. – Eu não conseguia fazer outra coisa além de gritar e chorar. Me deram um remédio, tentaram me acalmar. Quando sai da sala, meus amigos estavam do lado de fora. Fomos para a capela e ficamos lá por algum tempo. Toni soube do acontecimento pela manhã. Sua tia Mariana, irmã de seu pai, ligou para contar a notícia fatídica. A tia Mariana havia ido visitar seu irmão e sua mãe. Estava tudo quieto quando chegou à casa de sua mãe. Chamou por seu irmão Antônio, mas ninguém respondeu. Resolveu ver se estava em seu quarto. Bateu na porta, não ouviu nenhum som. Tentou abri-la, porém estava trancada. Após muito esforço, conseguiu entrar no quarto, onde encontrou o corpo de Antônio caído no chão. Naquele momento Mariana desejou não ter destrancado aquela porta. Abalada com o que havia acontecido, e ainda incrédula, Amanda se recusava a ir ao velório, que aconteceria em Brasília. Entretanto, ela sabia que seria a última vez que veria o rosto do seu pai. Sua tia havia comprado as passagens. Amanda e Toni embarcaram no mesmo dia no primeiro voo disponível para a capital brasileira. Lá, encontraram o restante da família que, assim como eles, ainda não haviam assimilado o morte de Antônio. Após aquele dia, a família não tocou mais no assunto por um bom tempo. Amanda e Toni retornaram para o internato. Sua rotina agitada ocupava sua cabeça e tirava o foco do suicídio de seu pai. Ela, por alguns momentos, conseguia esquecer que aquilo estava acontecendo na vida dela. A jovem procurava se distrair o máximo que podia para não pensar no assunto. Seus amigos a ajudavam nessa tarefa. Assistir filmes e seriados enquanto comiam e fofocavam já havia se tornado um costume dela e suas amigas. Amanda também saia com amigos, na tentativa de esquivar-se de seus pensamentos e sentimentos. Ela estava cumprindo com êxito a missão de terminar o semestre sem lidar com a morte do pai. Aqueles meses, apesar de terem sido um pouco dolorosos, foram fáceis quando comparado com o que ela 78
ainda enfrentaria. Antônio sempre foi bem humorado e piadista. Gostava de fazer brincadeiras e tirar sarro de tudo e todos. Para os filhos, era o homem mais engraçado do mundo. Sempre foi muito querido e não havia uma pessoa que passasse alguns minutos ao seu lado sem simpatizar com ele. Gostava de cozinhar para a família e fazia isto de maneira magnífica. Como pai sempre foi muito carinhoso e presente na vida de Toni e Amanda, mesmo após o divórcio. Apesar das circunstancias e da distância ente ele e os filhos, Antônio fazia questão de continuar sendo o mesmo pai exemplar de antes. Quando os filhos escolheram mudar-se para o internato, ele sempre ligava para saber como estavam e conversava horas com eles por vídeo conferência. – Até quando estávamos longe ele era presente. Quando conversávamos pela internet, ele me fazia rir. Meu pai sempre fez o possível e o impossível por mim e pelo Toni. Entretanto, o pai de Amanda começou a consumir bebidas alcoólicas em doses muito grandes. As suas idas ao bar eram frequentes. Após o divórcio, o álcool não era o suficiente para lidar com suas dores. Antônio começou ficar depressivo. Seus sentimentos e problemas eram muito bem escondidos da família e dos filhos atrás do seu bom humor e de cada piada ou palhaçada que ele fazia. – Ele nunca aparentou nada. Mas hoje vejo que o baque da separação e o fato de estarmos todos longes afetou muito ele. Ele não conseguiu superar isto. O semestre seguinte a morte de Antônio foi complicado para Amanda. – No começo, eu não me afetei muito com o que havia acontecido. Até julho de 2013 eu estava conseguindo lidar bem com o suicídio dele. Com o início das aulas, Amanda retornou para o internato. Mas sua rotina, que antes ocupava seu tempo e prendia sua atenção em outras coisas, parecia não a distrair mais. O cenário na vida de Amanda havia mudado. Ela não frequentava mais as aulas, não trabalhava mais, se quer ia ao refeitório para comer. 79
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Suas colegas de quarto buscavam comida para Amanda e tentavam fazê-la comer. Mas suas tentativas, na maioria das vezes, era em vão. – Emagreci sete quilos naquele semestre. Minhas amigas tentavam me animar, mas eu estava muito depressiva. Levantar da cama passou a ser uma tarefa quase impossível para ela. Amanda estava com a mesma doença que havia afetado seu pai antes de sua morte. Ela estava com depressão. A preceptora do internato, preocupada com o estado de Amanda, a encaminhou para uma psicóloga e um psiquiatra. Ela começou a tomar remédios, sob prescrição médica, e a fazer terapia. Os amigos também tentavam ajudá-la. Eles sempre a apoiavam e tentavam fazer o possível para não vê-la mais daquela maneira. O processo de recuperação foi longo e o apoio deles foi fundamental. No começo, Amanda culpava sua mãe pela morte do pai. Na cabeça dela, era responsabilidade de Mariza a escolha que Antônio havia tomado. Muitas vezes, também se achava responsável pelo suicídio dele. Se culpava por não ter notado os problemas dele, por não ter feito nada para ajudar. Com o tempo e ajuda da psicóloga, Amanda começou a entender que seu pai estava doente. Ela, Toni e nem mesmo sua mãe poderiam ter feito algo para evitar o suicídio de Antônio. O problema com bebidas alcoólicas, fruto de influências do passado, não era o único na vida de Antônio, que também sempre teve problemas com ansiedade e insônia. A depressão estava presente na sua vida há anos, porém escondida atrás das suas risadas. Ele não estava bem a muito mais tempo do que a família acreditava. – Na terapia eu entendi que muito daquilo que somos vem da nossa criação e da influência que tivemos no passado. Ele teve problemas que causaram danos que nós não imaginamos. O tratamento seguiu durante os meses seguintes, o que ajudou na recuperação de Amanda. Além dos remédios, da terapia e do apoio dos amigos, ela encontrou auxílio na colportagem, um projeto realizado em sua universidade. Durante o período das férias, os alunos têm a opção de dedicarem seus dias a venda de livros, cujo valor é revertido em uma bolsa de estudos 80
e o dinheiro utilizado para pagar o semestre na faculdade. O projeto visa orientar a população acerca de temas como qualidade de vida, prevenção e tratamento de doenças, problemas emocionais. Os livros também contêm orientações de especialistas da área. Na colportagem, Amanda conheceu várias pessoas e histórias. Em cada casa que ela visitava descobria uma história de vida e problemas diferentes. Muitos deles eram piores do que aqueles que ela enfrentava. Conhecer pessoas que lidavam com um câncer terminal, outras que passavam necessidade, algumas que estavam em depressão, como aconteceu com seu pai e com ela, causou um impacto muito grande na vida dela. – Conheci muitas pessoas com problemas mil vezes piores que os meus. E mesmo assim elas não desistiam. Apesar de todo sofrimento, elas tentavam passar por aquilo. Ajudar os outros passou a ser a motivação de Amanda. E isso também passou a ajudá-la a superar seus problemas. Para ela era prazeroso ir na casa das pessoas, ouvir suas histórias, compartilhar o conhecimento que tinha adquirido através de treinamentos e deixar informações em forma dos livros nas casas que visitava. Férias após férias Amanda dedicava seu tempo na colportagem, cada vez em uma cidade diferente. – Algumas pessoas tomavam mais remédios do que eu e lidavam com perdas piores que as minhas. Eu tinha que superar tudo isso. Não tinha que desistir de viver, apesar da tristeza. Na colportagem, Amanda também fez vários amigos por todo o Brasil, que a apoiavam com seus problemas. Além disso, o projeto ocupava seu tempo durante as férias e evitava que ela retrocedesse e pensasse coisas ruins, como se culpar novamente pela morte do pai. Apesar de aceitar a escolha do pai, nunca superou por completo o suicídio dele. – Entendi e aprendi a conviver. Mas sinto muita saudade dele. As datas comemorativas como aniversários, dia dos pais, natal, ano novo são mais difíceis para Amanda. Ela costumava passar esses dias com Antônio. Sãos os momentos em que ela mais sente falta da presença do pai. 81
A Última Carta
A Separação
Por ser cristã, o apego a sua fé muitas vezes pareceu ser a única coisa que preenchia o espaço deixado pela ausência do pai. Quando a saudade é muito grande, uma das poucas coisas que supre a lacuna deixada por Antônio é a sua família. Eles sempre conversam e lembram com alegria de como ele era divertido e de como sua presença alegrava a todos. – Sempre nos lembramos dele com uma nostalgia boa, com saudade. Sinto falta da presença dele, da alegria que ele trazia. Sinto falta das conversas que tínhamos por Skype. Atualmente, Amanda não sente mais raiva ou culpa pela decisão que Antônio tomou. Apesar de ser difícil entender seus motivos e aceitar tal escolha, ela se lembra do pai com carinho e saudade. Dois anos depois da maior perda de sua vida, Amanda decidiu deixar o internato em que estudava e voltar para Curitiba para ficar mais próxima da família. Os planos dela são de terminar a faculdade de direito. Durante as férias, mesmo estudando em outra universidade, ela continuou visitando casas, levando informações e ajuda para as pessoas. Após da morte do seu pai, começou a se interessar por psicologia. Para ela, a motivação é a melhor coisa para ajudar alguém a superar um trauma assim. Depois que terminar sua faculdade, quer trabalhar na área. Pretende cursar psicologia para ajudar as pessoas a lidarem com os problemas. Seu objetivo é trabalhar em hospitais na área forense e ajudar em casos de problemas mentais ou distúrbios. – Hoje eu vejo que para ajudar as pessoas eu precisei ser ajudada antes. O tratamento foi muito importante. Foi devido a isso que decidi fazer psicologia depois do direito e me especializar nessa área. Amanda quer ajudar as pessoas que sofreram como seu pai e evitar que façam a mesma escolha dele.
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A última carta Pai, Eu realmente gostaria de ter feito isso antes, em uma época que você pudesse ler e saber tudo que sinto. Mas, agora já é tarde demais e não tem nada, absolutamente nada que eu possa fazer para mudar isso. Olhar para trás é a melhor coisa que posso fazer, porque fica na minha memória e nas minhas lembranças a melhor parte de mim, que é você. Queria poder te olhar mais uma vez e pedir perdão por não ter estado com você nos momentos em que você mais precisou. Pedir perdão por não ter demonstrado o amor que sinto por você. Mas, agora te perdi pra sempre. Queria poder voltar atrás, para viver tudo de novo e poder ter sido uma filha melhor. Queria poder ter te dado amor. Você sempre esteve comido quando eu chorei. Mas quando você chorava, eu não fazia nada. Eu não te ligava e para você parecia que não te amava. Para mim nunca fez tanto sentido a frase “eu te amo”. Depois que a gente perde quem ama, aprendemos a dar valor. Como agora. Agora que te perdi queria demonstrar amor, te ajudar e ser uma filha melhor. Eu não me recordo da última vez que disse que te amava. Peço perdão por isso. Eu te amava muito, só não sabia como demonstrar. Se eu pudesse te ver só mais uma vez... Você era o melhor pai do mundo. Claro que tinha seus defeitos, mas eu sei o quanto se esforçava e tentava mudar. Você se foi porque pensou que não tinha mais ninguém. Pensou que, além da minha mãe, eu e o Toni também tivéssemos virado as costas para você. Mas não foi isso. Nós erramos com você e eu só queria que você tivesse entendido isso. Queria que você tivesse entendido que a gente te amava muito. É difícil para eu acreditar que algum dia vá te ver de novo. Racionalmente sei que é impossível. Mas Deus é grandioso e também sei que teremos muitas surpresas no céu. Acredito que a primeira surpresa será eu estar lá. A segunda será encontrar pessoas que eu esperava estarem lá. E também aquelas que eu não esperava. Mas a melhor delas será te encontrar lá papai. Sonho com o dia que vou poder te rever, pedir perdão e dizer que te amo. O meu maior sonho hoje é poder te reencontrar, te ver no céu. Desculpa por ter errado. Me sinto impossibilitada de demonstrar o meu amor. Queria que você realmente pudesse ler isso. Te amo, Amanda. 83
Um triste sorriso Uma das caracterĂsticas principais dele era seu sorriso. Para ele, nĂŁo tinha tempo ruim. NĂŁo era do tipo que reclamava da vida e sabia muito bem como lidar com gente.
O isolamento ocorre quando uma pessoa se sente desconectado das pessoas mais próximas do seu círculo social: parceiros, familiares, colegas, amigos e outras pessoas significativas. O isolamento é muitas vezes associado à depressão e sentimentos de solidão ou desespero. O sentimento de isolamento pode ocorrer quando uma pessoa tem um evento negativo na vida ou outra forma de estresse psicológico e não pode compartilhar com alguém próximo. Misturado com outros fatores, pode levar a um aumento do risco para o comportamento suicida. (Fonte: WORLD HEALTH ORGANIZATION: Preventing suicide: a global imperative, 2004) 1996: ano de mortes. Dos integrantes do grupo Mamonas Assassinas, do cantor Renato Russo e do irmão do meio de Cátia. Aos 22 anos de idade, participando de um intercâmbio voluntário na Inglaterra, a 87
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Um Triste Sorriso
jovem recebeu uma das notícias mais impactantes de sua vida, o irmão havia cometido suicídio. – Eu fiquei em estado de choque. Não acreditava que o Joaquim tinha feito aquilo. Nunca passou pela minha cabeça que ele estava com algum problema grave que resultasse nisso. Joaquim era o filho do meio de seu João e dona Mariana. Desde pequeno, se mostrava prestativo e conselheiro para aqueles que o rodeavam. Casou-se jovem com Júlia, com quem namorou por três anos. Cristão de berço, não tinha hábitos festeiros e era bastante caseiro. – Meu irmão era muito querido por todos. Ele era muito bom em ajudar quem precisava. Seu único problema era não se abrir com ninguém, ele guardava os problemas para si. Estava sempre disposto a ajudar os outros, deixando de lado suas próprias lutas. Joaquim trabalhava em uma empresa administrativa. Filho e genro de empresários muito bem sucedidos acabou engatilhando cedo em uma carreira que parecia de sucesso. Era ambicioso e, ao mesmo tempo, consciente da ética de trabalho. Embora fosse formado em comunicação social, gostava dos números e entendia-se bem com eles. Era um jovem acima da média e estava sempre disposto a ajudar. Joaquim trabalhava na filial de uma multinacional bastante conhecida. Era gerente geral e cada dia mais eram reconhecido pelos seus chefes. Além de bom profissional, era bem quisto por todos. Uma das características principais dele era seu sorriso. Para ele, não tinha tempo ruim. Não era do tipo que reclamava da vida e sabia muito bem como lidar com gente. – Meu irmão era um bom conselheiro. Muitos viam isso nele e o tinham como uma “rocha” firme. Ele estava sempre feliz. Em casa, dentre seus familiares, a situação não mudava muito de figura. Era o filho conselheiro. Sempre sabia o que dizer. Além disso, tinha como base de vida seus pais. Aos 24 anos de idade, Joaquim foi transferido para a matriz daquela multinacional. Seu trabalho e esforços foram vistos e recompensados pelo diretor da filial na qual trabalhava. Foi um grande passo para ele que, juntamente com sua esposa, se mudaram para uma nova cidade, procurando enfrentar os novos desafios. A nova etapa foi vista, 88
em primeira instância, como um salto para a vida profissional dele. Joaquim sabia não seria fácil, mas decidiu ver qual seriam os resultados provenientes daquela promoção. Alguns meses depois de ser transferido, o jovem empresário não parecia satisfeito com o novo trabalho. Havia mais implicações do que imaginara. Eram novos desafios a cada dia e, para aquele novo funcionário, o cinto começou a apertar. Algo estava errado com ele, mas ninguém conseguia ver o que era. – Meu irmão começou a se isolar bastante. Preferia ficar em sua própria companhia. Algo estava errado, mas não conseguíamos perceber isto, pois ele sempre respondia que estava tudo bem, com aquele mesmo sorriso no rosto. Antes de tudo acontecer, Cátia tomou a decisão de passar um ano fora do Brasil. Era uma menina cheia de sonhos e com vontade de conhecer o mundo. Para isto, foi viver em um colégio interno e trabalhar como voluntaria na mesma instituição. A experiência seria ótima para seu currículo e serviria principalmente para aprimorar sua proficiência na língua inglesa. Nada melhor do que estar arraigada à cultura local para aprender da melhor forma as nuances daquele novo idioma. – Fui para a Inglaterra aos 21 anos. Estava cheia de expectativas boas e meu plano era permanecer por lá apenas um ano. Me preparei emocionalmente para ficar este período longe da minha família. Tudo parecia normal, na medida do possível. Conhecer um novo continente, com uma nova cultura, novas pessoas, fazer novos laços sempre é um desafio. No caso de Cátia não foi diferente. Com o tempo, começou a se acostumar com as discrepâncias entre brasileiros e europeus e aprendeu a apreciar, sem julgar, a cultura deles. Conheceu gente nova de vários lugares do mundo e começou a gostar ainda mais daquela nova experiência. Era mais uma semana normal de estudo e trabalho e Cátia já se sentia em casa com a nova cultura na qual estava inserida. Suas expectativas estavam sendo supridas aos poucos. Durante o período que esteve fora, Cátia sempre procurou manter contato com sua família. Apesar da distância, conversava toda a semana 89
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com seus pais e irmãos. A família sempre foi muito unida, não seria desta vez que a distância atrapalharia aquela cumplicidade fraternal. – Esta era uma das maneiras de diminuir a saudade. Nós estávamos sempre em contato, tanto por cartas quanto por telefone, já que a internet não era um meio muito comum na época. Aquela manhã fria de inverno parecia comum. Cátia tomou seu desjejum, acostumando-se ainda com a alimentação nada parecida com a que era habituada em sua terra natal. Participou de suas atividades normalmente, estudando e trabalhando, e voltou para seu quarto. No entanto, aquele dia guardava algumas surpresas para a jovem. Dia nublado, estranho, escuro, cheio de dúvidas e nenhuma notícia de sua família. O telefone não era atendido, os e-mails sem resposta. Algo realmente estava errado, mas preferiu não se apavorar. Estava longe, todo cuidado era pouco para não fazer “tempestade em copo d’água”. – Tínhamos horários específicos em que nos falávamos e, durante alguns dias, não obtive resposta nenhuma. Pensei que pudesse estar ocupados com alguma atividade no Brasil e preferi esperar. De repente, sem aviso prévio, sua mãe e sua irmã atravessam o Atlântico, na metade do mês de março, para lhe contar algo que mudaria para sempre sua vida. Uma das piores histórias que teria o desprazer de ouvir. Ao receber o telefonema de que tinha visita para ela, Cátia, que morava no residencial feminino do colégio onde era voluntária, desceu rapidamente até a recepção do prédio. – Nunca imaginei que fosse minha mãe, acompanhada de minha irmã me esperando no saguão. Surpresa mais que compreensível, afinal, não era sempre que aquela moça recebia visitas, principalmente que se tratasse de familiares seus na Europa em pleno semestre letivo. Nem em sonho imaginaria que isto fosse acontecer. Mas lá estavam elas, dona Mariana e Vanessa, no meio da Inglaterra, visitando a caçula. Sua primeira reação foi de espanto. Mas, era maravilhoso estar com um pedaço de sua família por perto. – Elas apareceram do nada na minha casa e só podia sentir alegria em vê-las, mas sentia que algo estava errado. 90
Aquela alegria inicial do reencontro com suas queridas logo se transformou em um imenso ponto de interrogação. Logo vieram as dúvidas: Por que não avisaram? O que estavam fazendo lá? Cátia conhecia as feições de sua mãe e irmã. Sabia que algo havia acontecido, só não tinha consciência da gravidade do problema. Com muita paciência, dona Mariana e Vanessa acompanharam Cátia até seu quarto e, antes mesmo de se instalarem, sentaram para conversar. O assunto era sério, tenso, triste. Não havia surpresas boas. Não era momento de comemorar a chegada daquelas que Cátia tanto amava. O problema era sério e logo foi explicitado à caçula. Joaquim havia cometido suicídio dias antes. O enterro já havia sido feito, flores compradas, homenagens prestadas. No entanto, aquela tristeza continuava a corroer, lágrimas ainda escorriam. – Embora fosse tudo muito recente, minha mãe foi bastante cautelosa ao me contar como tinha acontecido. Sem que ninguém imaginasse, Joaquim tirou a própria vida. Sua esposa não notara que algo estava errado a este ponto. Pessoas próximas se assustaram ao saber da notícia fatídica. “Qualquer um, menos ele”, pensavam. Aquele sorriso havia se eternizado nos corações, mas nunca mais se abriria a ninguém. Não era possível que aquilo tudo fosse verdade. Aos poucos, os pontos de interrogação de Cátia foram dolorosamente dissolvidos. Aquela visita havia sido planejada de última hora por esta razão específica: Cátia não podia ficar sabendo da morte de Joaquim pelo telefone. – Quando ouvi pela primeira vez, não acreditei. Pensei que fosse um trote, que alguém estava inventando aquela história, que tudo não passasse de um sonho terrível. Aquele jovem cheio de possibilidades e com um futuro brilhante pela frente havia atentado contra sua própria vida. Os motivos? Ninguém entendia. Ele era tão sorridente e disposto. Não demonstrou nada a ninguém. Aí estava o problema: ninguém sabia como identificar os sinais que, de maneira velada, eram manifestados no comportamento de Joaquim. Aquilo caiu como um punhal no coração de Cátia. Como em um 91
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filme, viu passar pela memória a história de sua família e todos os momentos, bons e ruins, que pode compartilhar com seu irmão. Após alguns dias de luto, pensando no que fazer depois de receber esta tão triste notícia, Cátia e sua família decidiram que ela e Vanessa, sua irmã, permaneceriam na Inglaterra. Era um momento delicado para ficar longe de todos os parentes, mas voltar para o Brasil seria o mesmo que reviver a morte de Joaquim diariamente. Uma das maneiras que Cátia encontrou para aliviar a dor diante aquela situação foi escrevendo cartas. – Acredito que escrever tira fardos das nossas costas e eu precisava colocar no papel o que eu estava sentindo. Três semanas após a morte de seu irmão, a jovem escreveu o seguinte: Carta escrita em 1996: OBRIGADA, SENHOR! Ao ler esta frase, você pode pensar que existem momentos em que é difícil dizê-la. Eu também pensava assim. Sim, pensava! E o verbo está no passado, porque agora eu não penso mais desta maneira. Há três semanas, eu perdi o meu irmão, um irmão que eu amava muito. No entanto, apesar da dor, eu pude ver a mão de Deus ao meu lado, me confortando e me dando força. Por isto eu pude dizer: OBRIGADA, SENHOR! Este não é um agradecimento apenas pelo conforto que Ele estava me dando, mas sim porque meu irmão está descansando. É um agradecimento pela certeza da sua salvação. Obrigada, Senhor, pela oportunidade da VIDA ETERNA, “onde não haverá mais morte, pranto ou dor”, e onde nunca mais diremos ADEUS. Obrigada pela certeza de poder ver o meu irmão novamente, num lugar perfeito e maravilhoso. E, principalmente, obrigada porque Tu sabes o que é melhor para nós. São nos momentos mais difíceis que devemos dizer OBRIGADA, SENHOR! Porque nosso Deus não é um deus sarcástico. Se Ele permitiu que isso (o que quer que seja) acontecesse, é porque Ele sabe 92
que é MELHOR para nós.Nós podemos não entender agora. Um dia, porém, tudo será esclarecido. O que precisamos fazer agora é dizer: “OBRIGADA, SENHOR! Eu não entendo, mas confio em Ti. OBRIGADA”. Continuo confiando e esperando. Te amo muito e espero vê-lo em breve, meu irmão. Beijos, Sua irmãzinha. Durante as férias de julho daquele mesmo ano, as irmãs conseguiram algumas semanas de folga do trabalho e retornaram ao Brasil para fazer uma viagem com seus pais. – Nós estávamos muitos tristes por causa da morte de Joaquim, então decidimos fazer uma viagem em família. Precisávamos nos conectar uns com os outros novamente e espairecer. Esta foi uma das maneiras pelas quais a família optou para acalentar o coração perante aquela situação tão difícil. Os anos foram passando e a vida de Cátia tomou vários rumos diferentes. Alguns meses após a morte de Joaquim, Cátia conheceu Fred, um australiano que também fazia intercâmbio na Inglaterra. Foi nesta época que começou uma amizade que, três anos depois, se transformaria em casamento. O tão sonhado matrimônio aconteceu em 1999. Anos mais tarde vieram as crianças. Dois filhos, Mary e Daniel que, atualmente, estão com 12 e 9 anos de idade. Cátia trabalha como voluntária de algumas organizações. É formada em Pedagogia e exerceu a profissão durante vários anos. No entanto, desde 2014, desempenha o papel de voluntariado como auxiliar administrativa de organizações não governamentais na Austrália. – Senti que deveria participar desta nova empreitada como voluntária para ajudar algumas causas nobres. Os grupos que auxilio precisam de bastante contribuições e estamos conseguindo organizar o que precisamos. Embora a vida tenha seguido, a saudade que Cátia sente por Joaquim 93
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sempre esteve presente. Não há um dia que ele passe despercebido. – Meu irmão faz muita falta. Hoje em dia, eu não choro mais com tanta frequência quanto chorava logo após sua morte. Mas a falta que ele faz nunca diminuiu. Um dos projetos em que trabalha está diretamente relacionado a casos de pessoas que tem problemas com depressão, um dos fatores que levou Joaquim a optar pelo suicídio. Para Cátia, participar deste trabalho como voluntária é uma das maneiras de mostrar que a morte de Joaquim não foi em vão. – Depois que meu irmão morreu, eu comecei a pesquisar mais sobre os problemas na mente das pessoas. Para entender o que tinha acontecido com ele, mergulhei em um mundo de literatura e conteúdo que pudesse me ensinar a lidar com estes tipos de situações. Para ela, seu interesse sobre esse assunto e em ajudar pessoas que passam por este tipo de problema é um dever na vida. Cátia acredita que isto está completamente ligado ao caso de suicídio do irmão. – Na época em que meu irmão passou por estes problemas, eu não sabia como lidar, como identificar irregularidades, não tinha base para ajudá-lo. Hoje, depois de muito estudo, consigo entender e fazer alguma coisa por pessoas que passam pelo que ele passou. A morte de Joaquim teve grande impacto na vida de seus familiares, principalmente na vida da caçula Cátia, mas também serviu de gatilho para o conhecimento e a desmistificação de muitos assuntos para a família.
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A última carta Querido irmão, Primeiramente, eu quero lhe dizer que sinto muito a sua falta. Sei que estávamos longe quando você se foi, mas aquela distância era para durar apenas um ano. Agora estamos longe há quase 20 anos, e ainda sinto muito a sua falta. Sei que você ia se relacionar muito bem com o meu marido, realmente acredito que vocês seriam amigos. É uma pena vocês nunca terem se conhecido... Os meus filhos adorariam conhecer você, eles sabem bastante a seu respeito, pois sempre conto muitas histórias suas. O meu filho, Daniel, é uma versão loira sua. Incrível como vocês se parecem! É como se Deus tivesse me dado um pedacinho seu de volta. Tenho tantas histórias para te contar, meu querido irmão... Acredito que quando Jesus voltar vamos nos ver novamente e é essa esperança que ajuda a superar essa saudade enorme. Gostaria também de te pedir desculpa. Hoje, depois de tudo o que eu li e aprendi sei que eu poderia ter te ajudado. DESCULPA! Infelizmente não podemos mudar o passado, então não posso voltar atrás e te ajudar a sair da escuridão que pela qual você estava passando, essa escuridão chamada depressão. Graças a Deus, com o que aprendi depois que você se foi, pude ajudar vários amigos, como você sempre dizia “se permitirmos, Deus pode transformar qualquer tragédia em benção.” Sei que você ficaria feliz de saber que Deus me usou pra ajudar outros com as lição que aprendi depois que você descansou. Não vou mentir, fiquei muito brava com você. Todos nós ficamos. Afinal, não foi justo o que você fez. A sua decisão de acabar tudo, só teve resultado mesmo para você. Para nós, foi apenas o início de muito sofrimento e dor. Acredito, também, que você não estava em uma situação em que, conscientemente, tenha tomado esta decisão de nos deixar. Realmente acredito que a escuridão era tão grande que você nem sabia o que estava fazendo. Bom, tendo consciência ou não, quero que você saiba que já te perdoei. Não porque você mereça, mas porque perdão não tem nada a ver com merecimento. Lhe perdoei porque te amo. Com amor, Cátia.
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Medo sufocante Aquela angĂşstia tomava conta dos pensamentos de Lucas e o fazia perder o sono.
• Todos os transtornos por uso de substâncias aumentam o risco de suicídio. Alcoolismo e outros distúrbios por uso de substâncias são encontrados em 25% a 50% dos casos de todos os suicídios. O risco aumenta se o uso de substâncias é combinado com outros transtornos psiquiátricos. De todas as mortes por suicídio, 22% pode ser atribuído ao consumo de álcool, o que significa que um quinto das pessoas não se matariam se o álcool não fosse consumido pela população. (Fonte: WORLD HEALTH ORGANIZATION: Preventing suicide: a global imperative, 2004) O dia era de muita festa. A família Santana estava inteira convidada para o casamento do primo mais velho, que era querido por todos, um filho exemplar. Os comes e bebes estavam prontos, as tias “corujas” arrumavam, de 99
A Última Carta
Medo Sufocante
tempos em tempos, a gravata do noivo nervoso, e a noiva, Francine, estava quase chegando. O casal era muito bem quisto e todos os seus amigos estavam presentes para prestigiá-los. Mariana, a prima caçula do noivo era uma das daminhas e, em seus longos três anos de idade, estava morrendo de medo de participar da cerimônia. – Eu estava apavorada. Não sabia direito o que fazer, embora tivéssemos ensaiado, e minha cara demonstrava o quão sem chão me sentia. Lucas, o noivo e primo mais velho da menina, percebendo o pavor no olhar de Mari, a trouxe para perto de si, como um anjo em um momento de necessidade, e lhe acalentou o coração com palavras de carinho: – Vem aqui, Mari. Não precisa ficar com medo. O primo está aqui! Era tudo o que aquela menina de vestido branco rendado precisava ouvir. Seu primo estava lá e iria protegê-la de qualquer medo que a rondasse. Falando aquilo, Lucas pegou carinhosamente a orelha de Mari e acariciou até que a cerimônia tivesse início. A igreja lotada estava em polvorosa. A noiva, depois de um pequeno atraso, chegou com seu lindo vestido branco e maquiagem simples. Era um momento mágico. Tudo precisava acontecer de maneira incrível, e aconteceu. Lucas e Francine disseram sim um para o outro, diante de Deus e fazendo votos para que todas aquelas pessoas fossem testemunhas daquele amor. A festa foi regada a bastante comida e música. Os amigos do noivo passaram em todas as mesas com uma gravata pedindo aos convidados dinheiro para ajudar o casal nas primeiras contas. As amigas da noiva também o fizeram, passando seu lindo sapato branco a todos que lá estavam. A gritaria e os festejos terminaram tarde da noite, noivos cansados, convidados empanturrados de comida boa e Mariana dormindo no colo de sua mãe. Ao fim do casamento, todos comemoraram o sucesso da festa. Tudo havia saído como o combinado. A noiva jogou o buquê, o bolo foi cortado pelo casal e agora, uma lua de mel estava esperando pelos 100
pombinhos. Tudo em seu devido lugar. Três anos depois daquele casamento, o domingo amanheceu estranho. Dona Ângela, mãe de Mariana, recebera logo cedo uma ligação que mudaria o sentimento de todos. A agitação dela, que acabara de ganhar sua última filha, Priscila, parecia ser causada por algo muito sério. Mariana, que estava na idade de perguntar o porquê das coisas, logo foi questionando o que estava acontecendo. Não dava para entender. Aquela manhã de domingo estava tão confusa quanto perguntas feitas pelas crianças. – Mamãe não sabia bem o que dizer, mas depois de alguns instantes nos avisou, meio receosa, que nosso primo não estava bem. Mariana e seus irmãos foram acordados às pressas. Precisavam ir para a cidade em que Lucas morava. Algo estranho havia sucedido, mas ninguém conseguia explicar o que era. A viagem até a casa de Lucas foi tranquila. Algumas lágrimas escorriam pelo rosto de dona Ângela, que fazia questão de escondêlas, pois as crianças poderiam se assustar ao vê-la triste. Chegando ao portão da casa de Lucas, a tia Joana veio encontrálos. Ela era a mãe de Lucas e estava visivelmente abatida e ofegante. Havia corrido muito para que socorressem seu filho, mas sem sucesso. Mariana, agora com seis anos de idade, não compreendeu o que estava acontecendo ali. O fato é que Lucas estava morto. Havia cometido suicídio e ninguém estava entendendo o porquê. Lucas era um homem engraçado. Suas maiores qualidades eram o bom humor e a simpatia. Fazia todos rirem, estava sempre rodeado de gente e gostava bastante de fazer bagunça em família. Era o típico “coração grande” e bastante ligado com seus pais. Apesar de se mostrar bastante paciente e confiante de si, Lucas tinha alguns medos. Enquanto sóbrio, era um doce de pessoa. O problema acontecia quando bebia. – Meu primo costumava beber bastante. Quando bebia, seu humor mudava completamente. Ele virava outra pessoa e brigava com sua esposa. Há menos de um ano, o primeiro filho de Lucas havia nascido. Depois deste acontecimento, um dos medos que mais rondavam os 101
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Medo Sufocante
pensamentos dele era o de perder o filho. Por ter surtos e discutir com sua esposa quando bebia, seu medo era que ela pegasse a criança e, por não aguentar os devaneios do marido, fugir levando o menino. Aquela angústia tomava conta dos pensamentos de Lucas e o fazia perder o sono. Cedo da manhã, naquele domingo diferente, Lucas havia perdido o controle depois de beber. Estava mais paranóico do que nos últimos meses e Luciana, sua esposa, ficou preocupada. O relacionamento dos dois, depois do nascimento do pequeno João Pedro, havia sofrido algumas crises. Definitivamente, não estavam vivendo em um mar de rosas. Para tentar evitar que algo trágico acontecesse, a esposa chamou um dos amigos de Lucas para conversar com ele. A família tinha dentro de casa uma arma autorizada. Atirar era um hobby que os Santana tinham em comum. Lucas e seu amigo Cristian saíram para “conversar”, a pedido de Luciana, e atirar em algumas garrafas velhas. Aquele pai de primeira viagem estava fora de si. Com aquela arma que usava para brincar com seus primos, em frente a um amigo de anos de convivência, gritava chamando sua esposa. Cristian, depois de muito insistir que seu amigo parasse de gritar, virou-se para chamar Luciana, pois entendeu que era a única maneira de acalmá-lo. No entanto, um estrondo ecoou pela casa. Lucas havia se matado. – Ninguém acreditou quando ficou sabendo que Lucas havia feito. Ele era o primo mais querido, mais amigo. Não dava para entender. Mariana e seus primos, que também foram levados às pressas para a cidade de Lucas, foram deixados em frente à casa do primo. Até que a situação fosse normalizada, crianças à volta, participando daquela correria e tristeza não seriam de grande ajuda. Elas atrapalhariam bastante, na verdade. As crianças da família tinham o costume de desvendar mistérios. Como em qualquer outra situação, a turminha resolveu entrar na casa para descobrir o que havia ocorrido com seu primo. Já era algo comum que eles resolvessem decifrar a morte de Lucas e, como eram todos crianças e não entendiam a magnitude da morte em si, adentraram a 102
casa e começaram a juntar pistas do acontecimento. – Nós não sabíamos o que tinha acontecido. Quando entramos na casa, vimos algumas marcas de sangue no chão e começamos a conversar sobre o que seria aquilo. Cada um tinha uma ideia diferente, mas no fim todos concordaram que aquelas marcas teriam sido feitas de sangue. A possibilidade de um homicídio também veio à mente daqueles pequenos. – Nossa tia entrou em casa alguns minutos depois, nos procurando. Fomos logo contar a ela nossa nova descoberta. Aquilo que estava espalhado pelo chão era sangue. A tia de Mariana prontamente explicou que aquilo não era sangue, quebrando os argumentos dos pequenos desbravadores da cena do crime. A menina tentou contestar o que sua tia estava falando, mas não teve sucesso. – Eu me lembro de ter dito à minha tia que achávamos que o Lucas tivesse sido morto por alguém, pois era muito sangue espalhado. Mas ela olhou fundo nos olhos de cada um e disse com todas as palavras que ninguém havia matado ele. Mariana conta que a família, até hoje, comenta sobre a morte e as características de Lucas. Hoje em dia, João Pedro tem 17 anos de idade e se parece muito com o pai. – Eu não sei bem o que falar a respeito da morte do Lucas. Eu era muito nova, fui entender tudo depois de alguns anos e tenho várias dúvidas a respeito. A vida de Mariana seguiu. Seus maiores planos eram se formar e conseguir um emprego decente. Em 2013, formou-se em Administração e hoje trabalha na parte administrativa de um colégio. Aos 24 anos de idade, sua jornada como prima de um suicida tem várias nuances. – Por causa dessa experiência em minha família, me preocupo bastante com amigos que talvez tenham algum problema como depressão ou outros distúrbios de comportamento. Aquilo que viveu quando era criança marcou sua vida para sempre. O interesse pelo assunto se tornou ainda mais latente depois de conhecer pessoas que podem vir a tomar a mesma decisão que seu primo tomou em 1998. 103
A Última Carta
Medo Sufocante
– Tive que lidar com a morte do meu primo depois grande. Ele era muito importante e se tornou mais ainda depois que entendi melhor tudo o que aconteceu. Para Mariana, falar sobre a morte do primo ainda é difícil e marcante. Apesar de tudo ter acontecido antes mesmo da menina ter consciência a respeito do que significa a morte e sentir de fato a perda anos mais tarde, o fato de ter perdido alguém próximo sempre causa consequências em todos. A vida de Mariana é acompanhada por este triste episódio e vários reflexos disto aparecem em seu dia a dia. – Tudo o que eu queria era saber os motivos disso. O sofrimento, depois de 15 anos, ainda é grande e dói em todos nós.
A última carta Carta para o primo que faz falta! É, Lu, quanto tempo, né? Sinto tanta saudade de você! Eu era muito pequena para entender tudo o que aconteceu e os motivos de tu ter escolhido morrer. Mas hoje, depois de amadurecer e pesquisar bastante sobre esse assunto, consigo ter um vislumbre de tudo o que você passou. Eu ainda era uma criança quando você se foi. Aquela menina cheia de medos e que apenas pensava em se aventurar pelo mundo junto com meus primos para descobrir novos mistérios. Às vezes me pego pensando em como seria se você ainda estivesse aqui, com a gente. Não há um dia que passe e você não seja lembrado, mas queria muito saber como seria te conhecer mais a fundo. Afinal, só lembro que você era o primo mais legal que eu tinha, o mais confiável e o mais carinhoso. Lembra-se do dia do seu casamento? Você realmente me acalmou pegando na minha orelha. Eu era pequena e não estava nem um pouco confortável com aquilo tudo. Você realmente me ajudou. Até hoje eu ainda tenho essa mania de mexer na orelha. Lembro-me de você toda vez que isso acontece, e é de maneira automática. Como se fosse um pedacinho de você que se prendeu a mim e continua vivo, por aqui. As nossas confraternizações de família continuam bastante divertidas. Não são as mesmas sem seu senso de humor, mas são engraçadas ainda. Sua mãe ainda faz aquela carne de panela que todos amam e continua sendo a tia 104
mais incrível que eu conheço. Ela também chora por sua causa. Sim, ainda. Tenho aprendido que o tempo não cura, apenas cicatriza as feridas que recebemos. Depois de pesquisar muito sobre suicídio, algumas dúvidas surgiram na minha mente, principalmente agora que o João Pedro cresceu. Seu filho é tão lindo, parece muito contigo, em diversos aspectos. Teu jeito de contar piada, aquela risada escachada que todo mundo ouvia de longe, o abraço carinhoso que você não abria mão de dar. Não consigo entender teus motivos. Por que acabar com sua vida logo naquele momento que o João era pequeno e precisava de você? Por que deixar todo mundo sem respostas? Até hoje, quando esse assunto surge nas conversas da família, nossas perguntas são as mesmas. Eu queria entender. Precisava sentar do teu lado e te perguntar tudo isso com calma. Você estava lidando com medos bastante particulares e tinha seus motivos, mas por que este fim? Por que esta decisão? Essa escolha foi apenas o início de uma dor muito grande que ainda machuca nossa família toda. Embora não entenda seus motivos, depois desse tempo todo, eu te perdoo. Não tenho raiva de você. Nem sei se deveria te pensar em perdão, já que essa decisão é tão pessoal, mas por via das dúvidas, meu coração não guarda nenhuma mágoa. O único sentimento que sinto é saudade. De quando você me pegava no colo, quando estava por perto para brincar com a gente. Saudade do primo que pouco conheci e tanto ouço falar. Queria ter a oportunidade de te conhecer e te amar mais ainda. Tomara que eu consiga te conhecer um dia e entender tudo o que você sentiu antes de tomar a maior decisão da sua vida, decisão esta que afetou a todos. Com carinho, Mari Mari.
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Referências CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. O suicídio e os desafios para a Psicologia. Brasília: CPF, 2013. DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Marin Claret, 2005. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Prevenção do suicídio: Um manual para profissionais da mídia. Genebra: Organização Mundial da Saúde, 2000. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Prevenção do Suicídio: Um recurso para conselheiros. Genebra: Organização Mundial da Saúde, 2006. WEISZFLOG, Walter. Michaelis: Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2012. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Preventing suicide: A global imperative. Geneva: World Health Organization, 2014.
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