Rasuras e Reescrituras do Rio: Cais do Valongo

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Rasuras e Reescrituras do Rio:

Cais doValongo Trabalho de Conclusão de Curso Graduação em Arquitetura e Urbanismo PUC-Rio

Aluna: Esther Rosas Orientação: Antônio Sena Coorientação: Lígia Saramago



Agradecimentos Dedico este trabalho a minha mãe e avó, Thereza e Celina, apesar de não estarem aqui fisicamente, estarão sempre enraizadas em mim e em meus irmãos, Isabel e Vitor, aos quais agradeço imensamente pelo apoio e amor de sempre. Agradeço muitíssimo ao meu orientador, Antônio Sena, pela paciência, amizade e servir de âncora em tempos tão complicados. Sou grata as conversas enriquecedoras com a minha coorientadora, Lígia Saramago, que me guiaram no início desta jornada toda. À minha prima, Luíza, pelas conversas e visita ao Cais. Dedico também a todos os amigos que cultivei ao longo da faculdade, o processo árduo de graduação se fez um pouco mais leve com a ajuda e parceria desses. Principalmente a Gabriella, que nesse final a parceria se entrelaçou ainda mais. Às integrantes da banca, Ana Paula Soares e Tainá de Paula, que além de servirem de inspiração ao longo da graduação, me felicitam com participação atenta e dedicada neste final. À PUC-Rio pela bolsa cedida, sem a qual este trabalho e finalização de curso não seriam possíveis.


í ndic e

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Introdução

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palimpsesto feito de pedras 8

pedras pé - de - moleque

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pedras lavradas

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o roçar das pedras: as Docas de D. Pedro II e André Rebouças

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o rio republicano: as pedras portuguesas


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ruas. nomes. placas. 48 54

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o barão de tefé a placa descritiva, de 1990

cartografar as evidências entre violências tantas e afetos vários

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pedras polidas, desenhadas e globalizadas

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pequena grande áfrica

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o desfecho


introdução

Desde 2017, o sítio arqueológico do Cais do Valongo no bairro da Saúde na região central do Rio de Janeiro, é considerado Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO. A região do Valongo foi palco do triste passado escravocrata; nela funcionava um complexo e lucrativo sistema de comércio escravocrata. Tal negócio foi tão próspero que o Cais se tornou o maior desembarcadouro de escravizados das Américas, visto que um total aproximado de quase um milhão de vidas escravizadas entraram no país através dele. O número de escravizados era tão grande que no censo feito pelo império em 1872, a população escrava era 30% maior do que a população livre. O intuito deste trabalho teórico é explorar o território e paisagem do Cais do Valongo a partir da análise de certas ocorrências históricas que implicaram em transformações na região, partindo da constatação de que essa região se configura como detentora de grande patrimônio material e imaterial; como um importante lugar de memória e resistência afrodescendentes. Levando em consideração que o Rio de Janeiro, atualmente, é a segunda cidade do país com o maior número de habitantes pretos e pardos, segundo o censo do IBGE, entender tais fragmentos do Valongo, é também compreender a ancestralidade desse grande número de pessoas e buscar trazer à tona a maneira com que certas formas de poder lidaram com tal memória. Para tal entendimento do lugar, utilizo o conceito de palimpsesto urbano (retirado de André Corboz), como método de compreender as camadas e fragmentos do lugar. Parto do entendimento do território como um palimpsesto, ou seja, camadas sobrepostas como o que ocorria com


os antigos papiros - que recebiam sobreposições de camadas de tinta, permitindo novas escritas, sem que, no entanto, as antigas se perdessem completamente (CORBOZ: 2010). Aqui pretendo pensar o palimpsesto como uma metáfora complexa que ajude na construção de leituras das intervenções ocorridas ao longo da história da região do Cais do Valongo, transformações do tecido urbano, nas edificações e outros fenômenos arquitetônicos. Proponho que essa leitura não fique presa somente à concretude do contexto escolhido, mas alcance as disputas que determinaram a construção de tal palimpsesto; buscando entender, quando possível, quem são os agentes que pintaram (e ainda pintam) as novas camadas; quem são os que escolhem o que fica aparente e o que será encoberto; quem raspa as camadas novas, fazendo as antigas reaparecerem. Neste sentido, ultrapasso - sem descartála - a proposição de Claude Lévi-Strauss de que as cidades brasileiras teriam uma sede de novidade, sendo, portanto, “construídas para se renovarem com a mesma rapidez que foram erguidas”, resultado de lhes faltar “séculos de história” (LEVI-STRAUSS: 2019, p.103). Proponho que há, sim, uma busca por constante transformação da cidade, mas, não coloco como agente de tal transformação, no caso da região do Cais do Valongo, unicamente a cultura do novo ou uma “mentalidade de fronteira”, como proposto por Alexis de Tocqueville para Nova York (Apud in SENNETT, Richard: 2018, p.56). Assumo aqui que tais processos de rasuras e pinturas respondem aos interesses de certos grupos de fazerem valer suas narrativas e apagar outras. Ou seja, este trabalho procura explorar um palimpsesto lido de forma a entender os constantes processos de disputa da memória, gerando apagamentos, rasuras, reescrituras, rastros e traços no tecido urbano. 7


palimp sesto de pedras 8


A região na qual existia o Cais do Valongo e, posteriormente, o Cais da Imperatriz foi aterrada no ano de 1906. Tal ação ocorreu durante as “reformas modernizantes” executadas no governo de Rodrigues Alves, concomitantemente àquelas de Pereira Passos. Após 105 anos soterrado, o lugar vivenciou mais uma grande reforma no ano de 2011, durante as obras do Porto Maravilha1, levando ao ressurgimento das pedras de que formavam esses dois cais na urdidura que compõe a paisagem da cidade do Rio de Janeiro. Essas pedras - nas suas respectivas aparências e materialidades – revelam o caráter de ofício urbano e simbólico que cada cais possuía em sua determinada época. As diferenças e, principalmente, a sobreposição entre cada pedra, fazem alusão a dois mundos e memórias distintas em conflito. Logo, pode-se tecer analogias entre o talhar de cada pedra com as dinâmicas do tecido urbano planejado para cada cais. 1 Projeto de parceria público/privado, que teve como objetivo a renovação e revitalização da área portuária do Rio de Janeiro. O projeto fez parte das diversas obras que a cidade sofreu para sediar as olimpíadas de 2016.

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10 tografia

Escrava de ganh o vendedora, Fo no J u

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pedras pé-de -mole que


“O papel do negro escravo foi decisivo para o começo da história econômica de um país fundado, como era o caso do Brasil, sob o signo do parasitismo imperialista. Sem o escravo, a estrutura econômica do país jamais teria existido. O africano escravizado construiu as fundações da nova sociedade com a flexão e a quebra da sua espinha dorsal, quando ao mesmo tempo seu trabalho significava a própria espinha dorsal daquela colônia. Ele plantou, alimentou e colheu a riqueza material do país para o desfrute exclusivo da aristocracia branca. Tanto nas plantações de canade-açúcar e café e na mineração, quanto nas cidades, o africano incorporava as mãos e os pés das classes dirigentes que não se autodegradavam em ocupações vis como aquelas do trabalho braçal. A notabilizante ocupação das classes dirigentes — os latifundiários, os comerciantes, os sacerdotes católicos — consistia no exercício da indolência, no cultivo da ignorância, do preconceito, e na prática da mais licenciosa luxúria. (NASCIMENTO, 2017, p.59) A técnica construtiva conhecida como “pedras pé-demoleque” tinha como principal característica a irregularidade. Esse tipo de calçamento, comum nos tempos do Brasil Colônia, constituíase a partir de pedaços de pedra que, em sua maioria, resultavam de quebras brutas, sem que a eles fossem impostos quaisquer formatos pré-estabelecidos, e que eram assentados de maneira a não estabelecerem relações retilíneas entre si e sequer alcançassem um nivelamento de grande precisão. Assim, a grande violência necessária para quebrar a rocha em pedaços menores ficava marcada na rudeza de suas superfícies, sem ser obliterada por um acabamento delicado e de precisão geométrica, que poderia levar ao esquecimento do gesto violento inicial que inaugurava todo esse procedimento. Ao assumirmos que as pedras do Cais do Valongo não eram lavradas, não eram talhadas a fim de alcançarem maior precisão em seu formato, podemos deduzir que tal característica provavelmente se refletia na prática de outras construções presentes nessa região, que era ocupada por edificações que, em sua maioria, tinham como intuito abrigar e organizar os escravizados dentro de um ciclo de comércio no qual eles eram a mercadoria. Ou seja, ainda que o sistema escravista fosse um dos principais sistemas estruturantes da colônia, como acima exposto na citação de Abdias do Nascimento,

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servindo como espinha dorsal da mesma - sem a escravidão não haveria o sistema colonial em sua plenitude – a classe dirigente não pensava a atividade como meritória de uma arquitetura executada com maior rigor e cuidado, ou talvez intuísse que a violência, que permanecia registrada em cada pedra, era adequada e pertinente. A criação do Cais do Valongo resultou de um processo de evolução urbana da cidade do Rio de Janeiro, que, a partir da segunda metade do século XVIII, passou por mudanças constitucionais e na esfera dos ofícios - além de se tornar o novo polo jurídico do Brasil (1752) -, sendo proclamada Capital da Colônia em 1763. Logo, tais mudanças levam ao crescimento da população urbana em níveis exponenciais, como relata Cláudio Honorato: “O crescimento da população entre o período de 1760 e 1780 é de 29%, já entre 1799 e 1821 esse índice dispara, alcançando o percentual de 160%. Esse aumento indica um crescimento que faz o número de habitantes pular de 169 mil habitantes em 1789 para 591 mil em 1830, um crescimento de 250%” (HONORATO, 2008, p.63) No início do Século XIX, a cidade, agora capital da Colônia, vivenciaria novo impulso de desenvolvimento ao abrigar a Família Real Portuguesa em seu território - assim como um enorme contingente de membros da corte. Apesar de existirem serviçais no grupo trazido pela corte portuguesa, um número significativo dos novos habitantes da cidade era de nobres que preferiram manterem-se próximos ao Rei D. João VI em sua fuga das tropas napoleônicas. À vista disso, a grande maioria dos recém-chegados à cidade era requisitante de serviçais. Desta forma, a demanda por escravizados na cidade, assim como a população, também aumentou exponencialmente. Posteriormente, o sucesso das políticas implementadas pelo Rei para ativar a economia brasileira requereu igualmente o aumento de trabalhadores para as diferentes atividades que então surgem no país, o que leva a um novo impulso no tráfico de pessoas pretas. A chegada e o comércio dos escravizados eram feitos, até final do século XVIII, nos arredores da atual Praça XV, na área central da cidade. O vice-rei Marques de Lavradio expôs na época seu incômodo com a presença desses corpos na região central da cidade, por serem, como descreve, “animais selvagens, nus, cheios de moléstias”, que faziam com que “as pessoas honestas não se atrevessem a chegar às janelas, e os inocentes, vendo-os, aprendiam o que ignoravam” (GERSON, 2015, p.172). 12


Somando esse desconforto do vice-rei às constantes reclamações por parte da pequena elite urbana, determina-se a construção de um outro cais na região do Valongo, que, na época, era periférica à cidade. Sendo assim, em 1775, começa-se a erguer um cais que teria como principal atividade ser a porta de chegada do tráfico negreiro na cidade. Como tal atividade era considerada vergonhosa, ainda que usufruída pelos diferentes grupos dominantes da colônia, podemos concluir que tal construção não foi pensada como merecedora de apuro técnico e, muito menos, estético. Assim, na sobreposição de pedras brutas, inaugura-se este triste capítulo da história dessa região da cidade. A escolha da área do Valongo para abrigar o novo cais não foi por acaso. A nova alocação da porta de entrada do comércio negreiro deu continuidade a um processo de desvalorização e de marginalização dessa região já anteriormente existente. Era ali, na Prainha (atual Praça Mauá), que fora construída a forca da cidade, assim como a prisão (Aljube). Assim, o Governo da Cidade determina que seja também essa área - que englobava a Pedra Prainha (atual Largo de São Francisco da Prainha), Gamboa e Valongo, e era pensada como externa à cidade – que abrigasse as atividades do tráfico negreiro. Cria-se, portanto, uma espécie de um exclave (na oposição à enclave) - do qual se tem vergonha e por isso se esconde -, no qual são alocados cais, cemitério, locais de cura, de venda e transporte para os corpos negros. Isolada da cidade pelos morros de São Bento, da Conceição e do Livramento, essa região, não por acaso, receberá posteriormente o nome de Pequena África. “(...) A fim de que não sejam conservados nessa cidade os negros novos, que vêm dos portos da Guiné e Costa da África, ordenando, que tanto os que se acharem nela, como os que vieram chegando de novo daqueles portos, de bordo das mesmas embarcações que os conduzirem, depois de dada a visita da Saúde, sem saltarem a terra, sejam imediatamente levados ao sítio do Valongo, onde se conservarão, desde a Pedra da Prainha até a Gamboa e lá se lhes dará saída e se curarão os doentes e enterrarão os mortos, sem poderem jamais saírem daquele lugar para esta cidade (...)” (CAVALCANTI, 2005, p.48). O novo cais da Praia do Valongo foi construído com pedras grosseiras, adequado, portanto, a receber o nome e as qualidades do que aqui chamamos de “pé de moleque”. Ocupava um trecho pequeno da linha d’água e não tinha uma amurada e profundidade que permitisse uma aproximação direta dos navios negreiros. Os procedimentos de embarque e desembarque permaneciam os mesmos utilizados nos demais cais que serviam a cidade: os navios fundeavam ao largo, 13


nos trechos mais profundos da Baia da Guanabara, e pequenos barcos faziam o transporte das mercadorias entre os navios e os cais. Não era um cais de passageiros; por ali não transitavam europeus curiosos com o Novo Mundo, diplomatas ou nobres portugueses. Era um cais exclusivo para o comércio escravagista e, portanto, face ao absurdo que o sistema escravocrata representava, à violência necessária para manter os escravizados controlados e à repulsa já explicitada da cidade diante da mera visão dos escravizados recém-chegados, podemos concluir que as pessoas que atuavam nesse comércio tampouco demandavam refinamentos, cuidados ou delicadezas: eram elas mesmas igualmente brutais e grosseiras. Logo, a técnica do ‘pé de moleque’, não só se adequava a esse cais pela sua maior velocidade de execução e menor custo, como também parece melhor responder, em outras chaves de leitura, à violência que ali ocorria e à relação que se desejava estabelecer com a mercadoria que ali chegava. E no caso do Cais do Valongo, a mercadoria eram corpos pretos escravizados. Fossem eles príncipes, rainhas, estudiosos pretos, quando desciam dos barcos e pisavam sobre as superfícies irregulares formadas pelas pedras grosseiras com suas juntas largas e não retilíneas eram todos reificados; submetidos e violentamente transformados em coisas. Como já mencionado, o sistema escravocrata era um complexo prático e logístico. Ou seja, a região do Valongo não contava apenas com o cais recebendo os escravizadoss, existia o mercado do Valongo, com diferentes estruturas urbanas presentes arquitetonicamente na região. Dentre elas destacamos o lazareto, no qual eram cuidados os escravos que chegavam adoecidos; o cemitério dos pretos novos, onde se enterravam aqueles que chegavam já sem vida à terra firme; além de grandes galpões para compra e venda de escravizados. Segundo Luis Araújo, podemos chamar tais complexos de necroarquiteturas: “Esses espaços, antes de serem a manifestação de um estilo arquitetônico ou elementos específicos que identificam as construções a uma categoria histórica da arquitetura eram a expressão arquitetônica do necropoder2. (...) O Valongo manifestava-se espacialmente como a materialização de uma forma de controle de corpos e mentes de negro-africanos transformados em escravizados, que tinha como objetivo a sua total eliminação simbólica e/ou física. (...) O complexo comercial do Valongo pode ser um exemplo de necroarquiteturas, ou seja, era a expressão material dos interesses necropolíticos que o sustentavam.” (ARAÚJO, 2019, p.127) 2 Conceito desenvolvido por Achille Mbembe (2011), um filósofo, teórico político, historiador e atualmente professor de ciências políticas do instituto Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul e na Duke University, nos Estados Unidos. Com base no debate sobre biopolítica e biopoder de Michel Foucault, Mbembe defende o conceito de necropoder, ou seja, o poder de ditar quem deve viver e quem deve morrer.

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Araújo, em diálogo com o conceito de necropoder de Mbembe, ressalta a importância do caráter coercivo desses espaços para manutenção da governabilidade e poder da colônia. Os ditos complexos, do mesmo modo que constituem uma ordem logística, conjuntamente funcionavam - de maneira perversa - como elementos a enfatizarem as relações de poder existentes - atuando em conjunto - no corpo e na mente do escravizado. A violência e o terror, além de serem os meios para tal controle, tornam-se a finalidade da construção desses espaços (ARAÚJO, 2019, p.115). “O espaço era, portanto, a matéria-prima da soberania e da violência que ela carregava consigo. Soberania significa ocupação, e ocupação significa relegar ao colonizado a uma terceira zona, entre o estatuto de sujeito e objeto” (Mbembe, 2018, p.39). Diante dos conceitos explorados anteriormente, entende-se que a violência na trajetória dos escravizados é presente em praticamente todos os estágios do processo, e se faz importante para a lógica colonial porque relega cada vez mais a humanidade do indivíduo, o induzindo ao lugar de objeto. Portanto, além da percepção do isolamento e marginalização da região, que apontava para uma clara narrativa de exclusão e, portanto, de não pertencimento à cidade, analisar o mercado do Valongo espacialmente, principalmente em seus três pilares do complexo escravocrata – lazareto, armazéns e o cemitério dos pretos novos –, pode nos ajudar a pensar como a arquitetura e a configuração do espaço público foram utilizados como produtores de violências, controle e mortes. lazareto e armazéns Os escravizados, assim que chegavam, eram contados na alfândega e passavam por uma vistoria dos oficiais de saúde a fim de determinar se estavam liberados para serem comercializados ou se deveriam passar por uma quarentena, antes entrarem na fase de comercialização. Não encontramos referências espaciais ou arquitetônicas sobre essa alfândega, que supomos, frente a todo o processo de exclusão que já apontamos, ser exclusiva para o comércio negreiro. Talvez, não existisse sequer uma edificação com este fim; talvez, tal vistoria acontecesse no largo do Valongo, assim que os escravos desembarcavam. Sabe-se, no entanto, que a quarentena acontecia no lazareto, espaço destinado a tratar, alimentar, melhorar a aparência dos escravizados e curar possíveis doenças adquiridas ao longo da travessia do Atlântico. É sabido também que o lazareto foi um espaço construído para era este fim (e, portanto, projetado para essa função), diferentemente do que ocorria com as outras estruturas do complexo do Valongo, que eram, geralmente, apropriações de edificações já 15


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existente, adaptadas a novas funções. Podemos deduzir que houve o planejamento de uma edificação específica muito por conta da pluralidade de programas aos quais o edifício devia acomodar, e, a partir de estudos feitos na documentação da época, percebemos que tal edificação foi construída muito posteriormente ao cais, o que aponta, novamente, para um caráter inicial muito precário de todo cais e demais estrutura escravagista: “(...) ficou decidido que o Lazareto seria construído atrás do monte de Nossa Senhora da Saúde, custeado pelos negociantes, mas dentre eles apenas três tomaram para si esse encargo: João Gomes Valle, Jose Luiz Alves, e João Álvares de Souza Guimarães e Companhia. A planta do prédio foi aprovada por Sua Alteza Real, que o tornou público através do aviso régio de 23 de setembro de 1810, e autorizou o Provedor-Mor da Saúde a arbitrar quanto os negociantes deveriam receber por cada escravo recolhido no Lazareto.” (HONORATO, 2008, p.106) Sabemos igualmente que o Lazareto foi construído por três negociantes: João Gomes Valle, José Luiz Alves e João Álvares de Souza Guimarães, que recebiam o valor de 400 réis por individuo escravizado, custo esse que ressarcia a manutenção do local, e que, além de tratar os recémchegados, deveria haver no Lazareto toda uma estrutura controladora dos corpos escravizados, não facilitando fugas e rebeliões e estabelecendo controles administrativos e de taxação. Ou seja, eram necessárias áreas de administração do espaço, assim como áreas internas para uma gama complexa de funcionários, como podemos perceber na citação abaixo. “(...) os proprietários do Lazareto eram responsáveis por toda a despesa de administração que abrange tanto a edifício como os seus utensílios, como tinas, caldeiras grandes e outros materiais importados que não são poucos, pois além do seu custo tem ainda as despesas de seu conserto e manutenção. Cabe ainda aos proprietários do Lazareto as despesas com água, lenha e azeite para luzes. Empregam-se ali também pessoas de diferentes ministérios.” (HONORATO, 2008, p.107) Infelizmente, hoje em dia não se tem resquícios físicos do espaço designado ao Lazareto, apenas teorias e descrições da sua estruturação. Porém, torna-se evidente a importância do local pelo fato de ter sido um espaço que demandou, provavelmente, um projeto pensado e calculado. Deveria haver a designação de espacialidades específicas e, frente ao volume que tal comércio representou, pode-se imaginar que não era uma edificação pequena. 18


Afinal, para servir os requisitos que esta construção deveria conter, a fim de manter o complexo escravocrata funcionando da maneira mais pragmática e lucrativa possível, e sendo uma construção erguida com a autorização real, podemos deduzir que era um edifício de certo porte. Os armazéns eram destinados à compra e venda dos escravizados. Segundo Araújo, existiam dois tipos de armazéns: os de área aberta e os de área fechada. No primeiro, os escravos eram mantidos em pátios abertos no interior das casas. No segundo, a tipologia mais frequente, os escravizados eram alocados e mantidos até suas respectivas vendas, em áreas fechadas no térreo das casas. Possibilitar conforto e recuperação aos indivíduos escravizados não eram preocupações dos comerciantes. Por outro lado, havia a atenção desses em relação à disposição espacial das “mercadorias”: o espaço se organizava como um verdadeiro depósito, com bancos longos e de pequena largura que eram dispostos rentes às paredes da construção, nos quais se acomodavam os escravizados à espera de clientes para a aquisição. A descrição anterior e mais outros detalhes desses espaços são provenientes do relato de Maria Graham3 (1956, p.254), que visitou o Valongo em 1823, conforme citado por Araújo (2019, p. 130): “Vi hoje o Val Longo [Valongo]. É o mercado de escravos do Rio. Quase todas as casas desta longuíssima rua são um depósito de escravos. Passando pelas suas portas à noite, vi na maior parte delas bancos colocados rente às paredes, nos quais filas de jovens criaturas estavam sentadas, com as cabeças raspadas, os corpos macilentos, tendo na pele sinais de sarna recente. Em alguns lugares as pobres criaturas jazem sobre tapetes, evidentemente muito fracos para sentarem-se. Em uma casa as portas estavam fechadas até meia altura e um grupo de rapazes e moças, que não pareciam ter mais de quinze anos, e alguns muito menos, debruçavam-se sobre a meia porta e olhavam a rua com faces curiosas. Eram evidentemente negros bem novos.” (GRAHAM, 1956, p.254) O relato de Graham nos fornece algumas informações interessantes, como por exemplo, a proliferação desta tipologia de edificação na região, quando ela diz ser uma “rua grande”4 em comprimento e quase todas as casas serem armazéns de compra e venda, ressaltando mais uma vez a potência e importância do comércio negreiro na época colonial. 3 Maria Graham (1785 - 1842) foi uma escritora, desenhista, pintora e historiadora inglesa que nos anos de 1821, 1822 e 1823 fez viagens ao Brasil. Dessas visitas, relatou suas observações a cerca do país no livro “Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821, 1822 and 1823” onde também publicou gravuras de própria autoria que ilustravam o país no século XIX. Outro fato interessante sobre Graham é o papel que desempenhou como preceptora de Maria da Glória, filha de D. Pedro II. 4 Hoje em dia, essa rua recebe o nome de Camerino.

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Outra informação exposta por Graham é o fato de todos estarem de cabeças raspadas, fato esse que os igualiza como um todo, ou seja, age neutralizando a individualidade de cada um. A cena vista por Graham se assemelha a cena desenhada por Jean-Baptiste Debret: Mercado do Valongo.

Mercado da Rua do Valongo, Rio de Janeiro, século XIX, Jean-Baptiste Debret (1813 - 1831). Fonte: Domínio

Mercado mercado de escravos da Rua do Valongo, Rio de Janeiro, século XIX, Jean-Baptiste Debret (1813 - 1831). Fonte: Domínio

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“É na rua do Valongo, no Rio de Janeiro, que se encontra especialmente a loja do mercador de negros, verdadeiro entreposto onde são depositados os escravos chegados da costa africana. Às vezes, pertencem a vários proprietários e são diferenciados pela cor do pedaço de pano ou sarja que os envolve; a forma de chumaço de cabelo poupado em sua cabeça inteiramente raspada. Essa sala de venda, comumente silenciosa, está sempre infectada pelo miasma de óleo de rícino que exala dos poros enrugados desses esqueletos ambulantes, cujo olhar curioso, tímido, ou triste, lembra o interior de uma coleção de feras. Esse mercado, algumas vezes, entretanto, convertido em salão de baile, pela permissão do patrão, agora retumba os urros cadenciados de uma fila de negros girando sobre si próprios e batendo palmas para marcar o compasso; tipo de dança muito semelhante àquela dos índios do Brasil. Os ciganos (boêmios vendedores de negros), verdadeiros traficantes de carne humana, não perdem em nada para seus confrades negociantes de cavalos; por isso, deve-se tomar a precaução de se acompanhar por um cirurgião, para escolher um negro nessas lojas, e submetê-lo às provas que devem seguir à visita de inspeção. Reproduzi aqui uma cena de venda. Reconhece-se pelo arranjo da loja, a simplicidade do mobiliário de um cigano de pequena fortuna, vendedor de negros recém-chegados. Dois bancos de madeira, uma poltrona velha, uma moringa (pote para água) e o chicote (espécie de gravata de couro de cavalo) suspenso ao seu lado, formam o mobiliário de seu entreposto. Nesse momento, os negros aí depositados pertencem a dois proprietários diferentes. A diferença da cor dos panos que lhes cobrem serve para distingui-los; um é amarelo e o outro vermelho escuro.” (DEBRET in BANDEIRA & CORREIA DO LAGO, 2009, p.1840) Debret é outra das testemunhas a registrar o Rio de Janeiro colonial. Além de mapas, desenvolvia com muita frequência rápidas aquarelas, nas quais registrava cenas cotidianas que presenciava. A descrição acima, de um desses depósitos, aumenta a compreensão das atividades existentes nesses espaços. Como exemplo, a nítida e constante preocupação dos comerciantes com a dinâmica de compra e venda, para a viabilização que o processo ocorresse de modo rápido e do agrado do cliente. Conforme descrito, o armazém citado possuía o cheiro de óleo de rícino, esse era utilizado na tentativa de amenizar quaisquer machucados ou aparência cansada dos escravizados. Afinal, fazia-se necessário melhorar a aparência dos escravizados a fim de provar para os clientes a qualidade da mercadoria humana. 21


Para o mesmo fim, a alimentação dos cativos se tornou algo necessário. Alguns armazéns dedicavam parte do espaço para preparo e armazenamento de comida ou tal atividade era feita na mesma cozinha que preparava as comidas dos comerciantes (ARAÚJO, 2019, p.133). O pintor, também, narra o fato de os cativos estarem diferenciados por panos coloridos, esses fazendo o papel de etiquetas, simbolizando a qual comerciante pertenciam. A setorização também ocorria no espaço por categorias como idade, nacionalidade e sexo: “Quando organizados por idade, os menos valiosos, isto é, os mais velhos, entre trinta e quarenta anos, sentavam-se na fileira de trás; os mais qualificados, entre quinze e vinte anos, ocupavam assentos do meio; as crianças ficavam nos assentos mais baixos ou no chão. Quando organizados por sexo, os homens ficavam nos bancos dispostos ao longo das paredes; as mulheres acocoravam-se no chão e as crianças de ambos os sexos sentavam-se na frente.” (KARASCH, 2000, p.82, apud. ARAÚJO, 2019, p.130) Percebemos, então, que os negros eram expostos como mercadorias, etiquetados e disposto no espaço dependendo de sua atratividade comercial, e que, portanto, o espaço e o mobiliário deveriam permitir tal exposição e tal flexibilidade de organização. Ou seja, como já descrito anteriormente, esses armazéns possuíam várias atividades e funções - espaço de compra e venda, acomodação dos escravos, habitação do comerciante, espaço para preparo dos alimentos, etc. -, e estas ações se davam, geralmente, em ambientes compartilhados, parecendo, portanto, razoável atribuir a esses armazéns um caráter flexível ou, talvez, até de certa precariedade de instalações, visto as condições de certa simplicidade narradas e representadas por Jean-Baptiste Debret. Porém, segundo Araújo, não é uma regra de que todos os armazéns funcionavam assim. Ou seja, não existia uma única tipologia espacial desses lugares a ser seguida. Afinal, em geral, tudo dependeria do comerciante dono da casa, sendo que alguns nem chegavam a acomodar os escravos no térreo; faziam-no em outro depósito, onde também eram alimentados (id, 2019, p.136), sendo que a casa era destinada unicamente para o processo de exposição e venda.

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Contudo, havia sim uma doutrina seguida por todos esses espaços: a da violência. Esta se faz presente tanto na forma física – como um dos inúmeros exemplos: o chicote representado na pintura de Debret – quanto na forma mental – a relegação de individualidade ao cativo que se estende ao caráter de precariedade, que não permitia ao escravo criar qualquer vínculo (por mais rápido e fugaz que fosse) com o lugar. A espacialização da violência nos armazéns se torna imprescindível para a manutenção do controle dos corpos escravizados e por conseguinte, a conservação do mercado do Valongo.


. E tal violência ultrapassava o chicote e os grilhões: estava marcada em todo processo de exclusão da região, na precariedade desses espaços e na técnica construtiva empregada. E, porque não dizer, a violência estava até mesmo no olhar “civilizado’ e curioso de Debret e Maria Graham. cemitério dos pretos novos Esse era o nome que recebia o espaço destinado ao sepultamento dos corpos de escravizados mortos ao longo da travessia pelo Atlântico ou que padeciam recém-chegados. O cemitério existiu em dois locais distintos: antes de 1772, funcionava no Largo de Santa Rita, próximo de onde, na época, funcionava o mercado de escravos, quanto ambos ainda dividiam espaço com as demais atividades da cidade. A segunda versão ocorreu na região do Valongo - após a já mencionada ordenação de Marques do Lavradio – fora da cidade. Em 1830, o cemitério é fechado em consequência das queixas de moradores que, aos poucos, haviam ocupado os arredores, depois do tratado de extinção do tráfico negreiro, imposto pela Inglaterra em 1827. Entre 1824 até o encerramento das atividades, contabiliza-se que mais de seis mil corpos escravizados foram enterrados no local. (CARVALHO, 2004, p.9). “Próximo à rua Valongo está o cemitério dos que escapam para sempre da escravidão. Em companhia do meu amigo dr. Schaeffer, que chegou aqui a bordo do russo Suvarow, em maio de 1814, em viagem ao redor do mundo, visitei este triste lugar. Na entrada daquele espaço, cercado por um muro de cerca de 50 braças em quadra, estava assentado um velho com vestes de padre, lendo um livro de rezas pelas almas dos infelizes que tinham sido arrancados da sua pátria por homens desalmados, e a uns 20 passos dele alguns pretos estavam ocupados em cobrir de terra seus patrícios mortos e, sem se darem ao trabalho de fazer uma cova, jogam apenas um pouco de terra sobre o cadáver, passando em seguida a sepultar outro. No meio deste espaço havia um monte de terra da qual, aqui e acolá, saíam restos de cadáveres descobertos pelas chuvas que tinham carregado a terra e ainda havia muitos cadáveres no chão que não tinham sido enterrados. Nus, estavam apenas envoltos numa esteira, amarrada por cima da cabeça e por baixo dos pés. Provavelmente procede ao seu enterramento apenas uma vez por semana e como os cadáveres facilmente se decompõem, o mau cheio é insuportável. Finalmente chegou-se a melhor compreensão, queimando de vez em quando um monte de cadáveres semidecompostos.” (FREIREYSS, 1982, p.134)

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Este é um relato do naturalista alemão G.W. Freireyss 5 em visita ao local em 1814. A partir dessa descrição, é possível termos noção de como o cemitério impunha-se a essa região da cidade. O único elemento arquitetônico descrito pelo viajante seria o “muro de cerca de 50 braças”, que tem o comprimento estimado em aproximadamente 110 metros. Dividindo essa medida por quatro, imaginando um terreno quadrado, cada aresta teria 27,50 metros, totalizando aproximadamente 750 metros quadrados de área. Essa dimensão abrigava pilhas e pilhas de negros já sem vida, que de tempos em tempos, devido à grande demanda diária do cemitério na contenção de novos corpos, se fazia necessário incinerar os existentes a fim de dar lugar a novos mortos. Afinal, o pleno funcionamento do complexo escravocrata implicava na sucessiva produção de cadáveres. Como já dissemos, a região do Valongo foi escolhida por sua posição marginal à cidade, por não ser quase habitada – ou, pelo menos, não ser habitada por pessoas importantes na estrutural social do Rio de Janeiro de então. Porém, com o passar dos anos, a área sofreu um aumento na sua ocupação, tornando o cemitério um grande estorvo para os que ali frequentavam, constituindo a vivência descrita por Freireyss, a realidade dos habitantes da região (PEREIRA, 2007). Inicialmente, houve uma tentativa de expansão da área do cemitério, principalmente após 1810, quando ocorreu um aumento do fluxo do tráfico negreiro: “Que se ordene ao vigário da freguesia da Santa Rita, a cujo distrito pertence o cemitério, que contrate o terreno que lhe fica contíguo para aumentar o cemitério existente, que o cerque todo de muro alto pelos quatro lados; que ponha pessoa capaz, que cuida em fazer enterrar bem os corpos; e finalmente que olhe para a decência, e decoro do cemitério como deve, e é de esperar do seu caráter, conhecimentos e probidade.” (BN. Ofício de João Inácio da Cunha Op. Cit., (doc 9). Apud: PEREIRA, 2007) Essa ordenação, também se caracteriza como uma possível solução para as constantes reclamações feitas pelos moradores dos arredores. Não há registro que documentem se a ampliação foi realmente feita. Porém, é sabido que as reclamações dos habitantes da região só aumentavam. O impacto do cemitério na cidade se tornou também uma questão de saúde pública, fazendo com que em 1824, o provedor-mor da saúde, Francisco Manoel de Paula, fosse ao local fazer suas considerações:

5 G.W. Freireyss fez uma passagem ao Brasil entre os anos de 1814 e 1815, com suas anotações e observações ao longo de sua estadia, surgiu o livro “Viagem ao Interior do Brasil”. Inicialmente, o naturalista se restringiria a descrever a botânica observada no país, mas após sua vivência, expandiu para observações socioeconômicas das regiões visitadas.

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“O dito cemitério no lugar em que se acha causa prejuízo à saúde, e comodidade geral dos moradores do mesmo bairro [...] pela sua situação local ser muito baixa, e receberem os vizinhos próximos imediatamente a evaporação emanada do cemitério, o que deve atacar muito a saúde dos mesmos vizinhos; por ser muito pequena a superfície do cemitério relativamente ao número de cadáveres, que ali se enterram anualmente; por ser muito baixa a situação do terreno, e cercada de casas, que embaraçam a corrente do ar necessária para conduzir as emanações do cemitério para fora da povoação; por ter o terreno muito pouca altura de terra sobre o pântano, de maneira que a pouca profundidade ficam os cadáveres mergulhados em água, sendo um terreno desta natureza não só impróprio para consumir os corpos, mas muito apto para aumentar a putrefação dos mesmos, e finalmente por se achar cercado de casas habitadas por todos os lados; sendo além disso de crer, que haja descuido do modo de fazer as sepulturas por ser isso entregue a um negro coveiro, e que portanto deve ser removido para lugar competente.” (Relatório de Francisco Manoel de Paula a João Severino Maciel da Costa, 10 de outubro de 1824, Arquivo Nacional, maço Is 4.2. Apud: RODRIGUES, Jaime. De costa a costa. p. 303. Apud: PEREIRA, 2007) Nesse relatório, De Paula reforça o grande inconveniente que é gerado pelo cemitério aos vizinhos; também descreve o local tendo “muita pouca altura de terra sobre o pântano” fazendo com que os corpos “ficassem mergulhados em água”. Ou seja, não havia condições mínimas para que os corpos se decompusessem adequadamente, o que se torna muito alarmante por serem, em média aproximada, 1.019 enterramentos por ano, como aponta o historiador Julio César Pereira (2007, p.87). Não há registros, ainda segundo este mesmo autor, de grandes mudanças entre a visita de De Paula até o ano de 1830, quando o cemitério teve suas atividades encerradas: “(...) em 4 de março de 1830, o cemitério foi fechado, pois nesta data se deu o último sepultamento. Um escravo novo do qual não sabemos nem nome nem origem, muito menos o navio que o transportou, foi lançado à flor da terra da mesma sorte que todos os seus antecessores. Sem nenhum outro documento localizado, nem nenhuma menção ao fato nos jornais da época, nem gazetas, nem ofícios, o Cemitério dos Pretos Novos cessou os seus trabalhos de inumação e os moradores do entorno enfim se viram livres do indesejado local de sepultamentos” (PEREIRA, 2007, p.96).

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A partir de tais descrições, podemos deduzir que o cemitério não possuía uma estrutura arquitetônica marcante, sendo formado basicamente pelo muro que o cercava e o separava dos terrenos vizinhos, ainda que, urbanisticamente, assim como grande parte do complexo do Valongo, ele causasse grande impacto e ganhasse, com isso, valor de fato urbano - como exemplo de sua importância, a nomeação da rua adjacente ao logradouro em questão, que recebeu o nome de “Rua do Cemitério” 6. Representava também um grande dilema com os vizinhos por ser um lugar muito insalubre. As casas ao redor mantinham as janelas constantemente fechadas devido aos odores exalados, fato esse descrito por moradores vizinhos nas constantes reclamações ao local (PEREIRA, 2007, p.83). o sobrepor das pedras pé-de-moleque: conclusão A camada pé-de-moleque, explorada acima, pode-se dizer que é o primeiro fragmento constituinte do palimpsesto urbano formado na região do Cais do Valongo. Tal camada se constitui, assim como as pedras homônimas, de maneira grosseira, guardando um aspecto pautado na precariedade das construções, no pouco acabamento e na violência que, sugerimos, ficava implícita até mesmo na própria forma de cada um dos pedaços de rocha. Tais características estabelecem certo nível de contraponto à aparente busca de uma especificidade programática que as edificações – e mesmo o espaço urbano - desempenhariam neste grande complexo escravocrata. Ou seja, apesar da precariedade do modo construtivo ou da violência que ele guardava, a lógica que guiava o funcionamento e organização do complexo como um todo era razoavelmente sofisticada. Todos os prédios e instalações eram pensados para possibilitar a otimização do fluxo do comércio escravista a fim de se obter a maior quantidade possível de lucro. O complexo ocupava grande parte das áreas hoje conhecidas como os bairros da Saúde e Gamboa, tendo, portanto, uma superfície considerável, ainda que numa região periférica à época. Esse fato torna mais notável e significativo o quase total apagamento desses espaços e arquiteturas, tornando plausível pensarmos que ocorreu um processo muito veloz – em muito facilitado pelo caráter precário presente em parte significativa dessa camada – que buscou soterrar, demolir e apagar a memória do local. Sabemos que, logo após 1830, com o decreto dando fim legalmente7 ao comércio escravista, as construções nas que os armazéns de compra e venda ocupavam, rapidamente, deram lugar a galpões e trapiches para armazenamento de outras mercadorias (TAVARES, p.93, 2012).

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6 Hoje em dia, acredita-se ser a rua Pedro Ernesto, no bairro da Gamboa 7 O fim do Mercado do Valongo, não significou o fim da venda de escravos na cidade do Rio de Janeiro, a diferença é que se fazia o tráfico em praias mais distantes e com um tratamento ainda mais carrasco aos escravizados (ARAÚJO, p.98, 2019).


Existem registros de tais transformações: desenhos técnicos de parte dessas reformas, destinados a conseguir permissões junto aos órgãos públicos para demolir o existente e edificar novas estruturas por cima. Até o próprio lazareto, que, como já mencionado, possuía um volume construído considerável, foi desmontado sem deixar quaisquer evidências físicas (os historiadores não conseguem sequer precisar o lugar onde ele existiu). Tal apagamento parece ser parcialmente um movimento da própria cidade – e, aqui, não necessariamente do Estado – que buscou não deixar memórias do local, e das ações ali desempenhadas, minimamente vivas. Afinal, tais memórias, além de vergonhosas, poderiam atrapalhar o comércio tanto de produtos outros quanto dos próprios imóveis, que talvez fossem desvalorizados frente à lembrança de terem abrigado aqueles outros usos. Mercadoria substituindo mercadorias; negócios sobrepondose a antigos negócios. Mas, o total desaparecimento do lazareto, construção pública de bom porte, e a futura escolha do Cais do Valongo para receber a Princesa do Reino das Duas Sicílias parecem responder a um claro desejo de apagamento da memória escravocrata. O caso do cemitério parece ser ainda mais simbólico. Toda área foi rapidamente submetida a processos de soterramento, recebendo construções em cima dos locais onde os corpos eram enterrados. Aparentemente, foi esquecido numa enorme velocidade. Contudo, no ano de 1996 foram achados, na casa de número 36 na Rua Pedro Ernesto, durante uma obra de reforma, uma grande quantidade de ossos humanos. Interpretou-se que a casa, assim como boa parte das adjacentes, fora construída em cima do antigo Cemitério dos Pretos Novos. Atualmente a casa se tornou um centro cultural8 de mesmo nome. Obviamente, construir-se sobre um cemitério não parece ser somente a substituição de certo uso do solo por outro, como podemos acreditar que ocorreu no caso das casas que abrigavam o comércio de escravizados. E, para analisarmos melhor tal ocorrência, podemos pensar em um outro cemitério existente ali perto, ainda na região da Gamboa: o Cemitério dos Ingleses. Fundado por D. João VI, em 1810, como parte do tratado de amizade e comércio Portugal-Inglaterra, foi também descrito e representado por Maria Graham. Na época, antes dos aterros na região, o cemitério era próximo do mar, tendo um atracadouro próprio, facilitando o sepultamento de ingleses que morriam na travessia até o Brasil. Sua área era valorizada, possuindo uma capela dedicada a São Jorge e São João; era cenário para artistas devido à paisagem; assim como recebia o sepultamento de pessoas que faziam parte da elite inglesa local. 8 O Instituto Pretos Novos (IPN), existe desde 13 de maio de 2005, tendo como missão estudar, investigar e preservar o patrimônio material e imaterial africano e afro-brasileiro. Este instituto faz parte do circuito de celebração da herança africana na zona portuária do Rio de Janeiro. Ressalto aqui a importância da existência do instituto na preservação e manutenção da memória, se constituindo como um local de grande resistência as constantes tentativas de apagamento da narrativa do Cais do Valongo ao longo dos anos.

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Cemitério dos Ingleses no Rio de Janeiro, desenho de Maria Graham - Gravura de Edward Finden (1824)

Seu uso como cemitério diminui ao longo do Século XIX e praticamente acaba na primeira metade do Século XX. No entanto, ainda que sem a ocorrência de novos sepultamentos, ele foi tombado pelo Governo Federal (GERSON, p. 173, 2014). Logo, parece interessante perceber que interesses de preservar ou de esquecer certos fatos históricos podem levar equipamentos urbanos de mesma função – cemitério – receberem tratamentos completamente opostos por parte da cidade e dos governos. Um é exaltado, existe e é bem conservado até hoje. O outro teve sua narrativa, por anos, soterrada, rasurada e silenciada e os restos mortais ali abrigados esquecidos e desrespeitados (ainda que numa sociedade que se declara intensamente cristã). Porém, apesar de grande e constante o movimento de rasura e apagamento da região, é importante ressaltar que, nas últimas décadas, surgiram, em direção oposta, diferentes movimentos de preservação da memória atuantes nessa região. Como exemplo, o próprio IPN já citado, assim como o CCPA (Centro Cultural Pequena África), entre alguns outros. Apesar das rasuras, existe também um movimento de reescrita do lugar relacionados à resistência.

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Vozes-mulheres por Conceição Evaristo

A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. Ecoou lamentos de uma infância perdida. A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela

A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância O eco da vida-liberdade.

(In: Poemas de recordação e outros movimentos, 3.ed., p. 24-25)

Cercanias de Val-Longo. Aquarela de Thomas Ender, 1817. Em primeiro plano, a pedra da Prainha,

29 desmontada alguns anos depois; e, no segundo plano o pontal do Valongo.

Acervo Kupferstichkabinett der Akademie der bildenden Künste, Viena.


Imperatriz Tereza_Cristina, Pintura de José Correia de Lima (1843)

pedras lavra das

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Assumimos aqui o termo pedras lavradas para nomear uma outra camada do palimpsesto urbano no contexto do Cais do Valongo. Tal nome é designado às pedras que foram utilizadas para dar forma ao Cais, agora, da Imperatriz, que foi sobreposto à ferida urbana da preexistência escravocrata. Sessenta centímetros é a medida que distancia fisicamente as pedras lavradas das pedras pé-de-moleque. Porém, ao contrapor as pedras dessa camada agora a ser analisada, com aquelas da camada anterior, a distância simbólica entre as duas se torna muito maior. Diferentemente da maneira bruta com que as pedras do Valongo foram tratadas, as pedras lavradas foram trabalhadas de forma cuidadosa e esmero técnico, tendo sido serradas seguindo um rigor de tamanho e forma, a fim de responder a novos padrões estéticos. Submetida a uma abstração geometrizante, podemos pensar que essa técnica não só representa um desejo de refinamento, como implica a adesão aos processos racionais que pouco a pouco foram dominando a alta cultura europeia desde o Renascimento. Toda a concepção de restruturação da região no ano de 1843 - para a chegada da então princesa e futura imperatriz do Brasil, futura esposa de D. Pedro II, Thereza Cristina de Bourbon - buscava se distanciar ao máximo das memórias ali existentes. Afirmando e apostando em um novo imaginário brasileiro, progressista, mais racional e moderno, essa nova camada buscava apagar tudo que não se encaixasse nesse padrão. Podemos assumir que a reforma do Cais do Valongo, para se transformar no Cais da Imperatriz, inaugurou a forma de rasura através da qual as instâncias de governo agiram – tanto no Século XIX quanto no início do Século XX, durante o mandato de Rodrigues Alves e Pereira Passos – em relação à memória, ainda muito fresca, da escravidão nessa região. O objetivo principal parece ter sido o de “embelezar” a área. E, não só o cais foi reformado, mas a região como um todo recebeu remodelações. Grandjean de Montigny9 – na época, um dos arquitetos mais expoentes da cidade - foi convidado a fazer o projeto da primeira praça monumental do Rio: a Praça Municipal (GERSON, p. 175, 2014). O arquiteto desenvolveu o projeto de um chafariz comemorativo da chegada da Imperatriz para a atual Praça Jornal do Commércio, assim como, posteriormente, foi chamado a fazer um projeto de decoração para as fachadas das construções nos arredores da praça, de maneira a garantir que estariam “em harmonia ao que se acha apropriado para o chafariz” 10. O interessante a se notar é que esse novo arranjo que caracterizou o Cais da Imperatriz possuía um certo caráter cenográfico. 9 Grandjean de Montigny (1776 - 1850) foi um arquiteto e urbanista da missão artística francesa, precursor da arquitetura neoclássica na cidade. 10 (DAD-PUC, p. 277, 1979)

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Tal leitura se torna ainda mais plausível pela presença de Montigny no projeto. O arquiteto, além de ter participado, juntamente com Debret, do esforço da Corte para enfeitar a cidade para a festa de chegada da Imperatriz, criando cenários festivos para certas áreas da cidade, recorreu, por vezes, em suas obras feitas no Rio de Janeiro com caráter definitivo, à utilização de elementos arquitetônicos com certo caráter cenográfico, mascarando o uso de materiais menos nobres a fim de alcançar a aparência de outros. O melhor exemplo estaria na atual Casa França-Brasil11 , originalmente Praça do Commércio (1819), na qual o arquiteto francês ‘encena’ colunas dóricas respondendo à linguagem neoclássica adotada para a edificação. A partir de uma planta baixa cruciforme de grande rigor formal e dimensional, Grandjean aloca 24 colunas no trecho central sustentando o edifício. Tais colunas possuem forma que remete à tradição arquitetônica grecoromana e aparência de mármore, porém, são feitas de madeira e recebem como acabamento uma camada de pintura na técnica de trompe-l’oeil (engana olho). Portanto, podemos assumir que tal atitude cenográfica não era nova à Montigny, já estando familiarizado ao jogo de aparências que, provavelmente, lhe foi requisitado quando da intervenção na praça. Podemos pensar, então, que essa camada de rasura era quase que uma ação cosmética, maquiando o preexistente, encobrindo-o, para que aquilo que não se desejava exposto nem lembrado desaparecesse do alcance dos olhos, numa ação engana olho. Além da nova camada de pedras lavradas, do chafariz e da adequação das fachadas do entorno, outros elementos decorativos foram adicionados ao Cais da Imperatriz: quatro estátuas, em mármore carrara, que tinham a mitologia romana como tema. Elas representavam os deuses Ceres, Minerva, Mercúrio e Marte ( JORDÃO, p.16, 2011). Como não encontramos em nossa pesquisa uma justificativa para a escolha de tais deuses e como os atributos simbólicos comumente designados a eles tampouco explicam muito (Ceres era a deusa das plantas que brotam – particularmente dos grãos – e do amor maternal; Minerva era a deusa da sabedoria e das artes – por vezes, também da guerra-; Mercúrio era o deus do comércio, da eloquência e era pensado como o mensageiro dos deuses; Marte era o deus da guerra (GRIMAL, 1993), deduzimos que, tal qual o projeto do chafariz e a reforma nas fachadas vizinhas à praça, as estátuas faziam parte da ação cosmética do contexto. E que, mais do que transmitir uma mensagem especifica através da simbologia específica dos deuses, respondiam a uma intenção de imbuir certo valor simbólico e narrativo genérico que a cultura europeia clássica implicava para o Brasil.

11 Obra encomendada por D. João I ao arquiteto francês. Considerado o primeiro edifício neoclássico do Rio de Janeiro.

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Ocultando o passado escravagista cruel e pouco refinado em sua execução, fantasiava-se uma cidade ideal a ser alcançada; apoiados na cultura de matriz clássica europeia, apontava-se para uma cidade branca, europeizada e ‘civilizada’. As pedras lavradas - doces, planas e das quais as marcas dos grandes gestos de violência de sua quebra já foram apagadas – eram tão adequados aos pés da nova rainha como se encaixavam perfeitamente ao novo futuro desenhado para o país. Nessa mesma época, outras mudanças urbanas ocorreram. A alteração do nome de parte da Rua do Valongo para Rua da Imperatriz é a mais fácil de perceber. Além dela, na Rua Camerino, em 1833, foi inaugurado o Teatro São Pedro; um pouco mais distante dali, na antiga Rua do Cemitério, atual Pedro Ernesto, existiu mais um teatro, inaugurado em 1863, e recebendo o nome Santa Carlina ou Carolina (GERSON, p. 175, 2014). Estes são apenas alguns dos exemplos de remodelações do espaço físico e simbólico do local, sendo que a inserção de teatros na área pode ser interpretada como uma tentativa de mudar radicalmente a tradição local, impondo um uso de certo ‘refinamento’ cultural para a região, atraindo um outro frequentador. Apesar de não termos conseguido acesso a imagens ou aos projetos de tais teatros, podemos deduzir que eram construções que também deveriam responder à estética das pedras lavradas, visto pertencerem a um campo mais erudito e mais claramente europeu de cultura, corroborando, portanto, para a transformação da área, e, assim como a mudança do nome da rua, tentando rasurar o passado recente.

Esquema Hidráulico Chafariz, desenho por Grandjean de Montigny

Projeto de Chafariz comemorativo a chegada da Imperatriz D. Tereza Cristina por Grandjean de Montigny.

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A camada lavrada: as constantes rasuras Essa camada, é representada pelo esmero técnico tanto relacionado às pedras que estruturavam o novo chão do local, como as próprias construções mencionadas. É um dos primeiros esforços de maior amplitude e claramente planejado de apagamento do passado escravocrata. Levando em conta a história tradicional, o processo de rasura parece ter funcionado razoavelmente bem. Apesar da região continuar abrigando grande parte da população negra da cidade, recebendo posteriormente o nome de Pequena África, os indícios materiais do comércio negreiro foram rapidamente apagados. Porém, a pretensão de tornar a área mais aprazível e próxima ao novo modo de fruição do espaço público, que fora se consolidando ao longo do Século XIX em algumas cidades europeias, não ocorreu no entorno do cais. O trompe l’oeil12 arquitetônico não conseguiu impor à região um novo uso ou modo de fruição, e, as pedras lavradas foram substituídas, como veremos à frente, pela praticidade e modernidade do tijolo. O Cais da Imperatriz não teve, portanto, um longo período de relevância na região. Segundo Araújo (p.99, 2019), em 1850, já se encontrava em esquecimento para a cidade como forma de fruição estética pretendida. Tal fato pode ser justificado pelo espaço do Cais da Imperatriz em si e talvez todo seu caráter cenográfico e, portanto, altamente superficial, precário e frágil, não acompanhando a velocidade e a nova aptidão da região como grande polo comercial. A vocação de região portuária impôsse à fantasia polida anterior. Toda a região ganhou importância enquanto região de comércio marítimo, como explicita Soares no trecho abaixo, mas o embelezamento do Cais da Imperatriz tornou-se até mesmo inadequado para a dinâmica portuária que ali se estabeleceu. 12 Recurso técnico-artístico empregado com a finalidade de criar uma ilusão de ótica, como indica o sentido francês da expressão: tromper, “enganar”, l’oeil, “o olho”.

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Estátuas Grecohoje localizadas no Jardim

ceres

marte

minerva

mercúrio

romanas,

Suspenso do Valongo.

“Por mais que o cais da Imperatriz cada vez mais ficasse para trás a medida que as precárias pontes de madeira estendiam, o entorno da Praça Municipal [construída em 1843 como parte do projeto de remodelação do antigo Valongo] não perdia sua importância no conjunto portuário do Rio. Em 1899, no limiar do novo século – e já com vários projetos ameaçando claramente sua existência – um novo trapiche é erguido ao lado da praça: o Trapiche Ipiranga. Era um trapiche incomum, pois boa parte era de alvenaria, com rebuscado estilo neoclássico na fachada, e longa ponte construída, colado na antiga Praça Municipal. Nenhum trapiche privado do Rio, em toda história da rede portuária, teve tão grande área construída com alvenaria. Tudo isso reforça a ideia que o entorno da Praça Municipal, incluindo o Valongo, depois o Cais da Imperatriz, a Doca Pedro II e o Trapiche Ipiranga, formam a região mais importante de todo litoral norte do Rio no Século XIX, como um imenso campo de provas das mais modernas tecnologias das suas respectivas épocas.” (SOARES, 2013, p.28 apud ARAÚJO, p. 99, 2019). Vista panorâmica Cais da Imperatriz, em litogravura do século XIX de Frederico Pustkow editada G. Leuzinger

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o roçar das pedras as Docas de D. Pedro II & André Rebouças 36


A pouco menos de vinte metros de onde atualmente se situa o Cais do Valongo, existe um edifício que se configura, proponho eu, como mais um fragmento emblemático referente ao palimpsesto aqui explorado: as Docas de D. Pedro II. Construído em 1871, o edifício foi idealizado por André Rebouças, um engenheiro negro. Devido ao contexto histórico, tanto da região do Valongo quanto do edifício e de seu idealizador, esses parecem fazer, metaforicamente, alusão a um movimento do roçar das pedras lavradas e pé-de-moleque - ali existentes. Rebouças nasceu em 1838 na Bahia, filho de Carolina Pinto Rebouças, mãe branca, e Antônio Pereira Rebouças, pai preto e filho de africana liberta, Rita Brasília dos Santos13, avó de André. A família de Antônio Rebouças vivia uma situação de exceção dentro da Província da Bahia: eram uma família de pretos com uma certa ascensão social. Antônio teve, além de si mesmo, mais três irmãos que se casaram com mulheres brancas e atingiram sucesso em suas vidas profissionais: dois se formaram na Europa tendo um se tornado médico e o outro violinista. Porém, foi o pai de André Rebouças quem atingiu um nível de ascensão social mais alto, chegando a fazer parte da Corte de D. Pedro I como um dos heróis das lutas pela independência do Brasil. Ao longo de sua vida profissional, o autodidata Antônio Rebouças exercia advocacia sem diploma, até ganhar a permissão de exercer essa atividade de forma plena graças a uma petição feita por um grupo de advogados de renome na cidade do Rio de Janeiro. O pai de André Rebouças era liberal, monarquista e abolicionista – certamente influenciando o filho a seguir ideologias similares - e foi reconhecido por figuras importantes como José Bonifácio e o Imperador D. Pedro I. A família Rebouças se mudou para a capital em 1846, onde anos depois, André e seu irmão se formaram engenheiros militares pela Escola Militar. Em 1861, foram à Europa em uma viagem de estudos financiada pelo pai, permitindo, assim, que estivessem em contato com construções executadas com base nas técnicas mais modernas de engenharia até então. Alguns anos após essa viagem, Rebouças atuou como engenheiro militar na Guerra do Paraguai, onde também começa uma relação de amizade muito próxima com D. Pedro II (SPITZER, 2001). O engenheiro, ao longo de sua vida, se tornou um dos grandes nomes do movimento abolicionista. 13 Em 1808, mais de 70% da população da Província da Bahia era composta por pretos, escravos ou livres. Estes possuíam atividades diversas na sociedade, até como proprietários de terras, portanto, experimentavam uma mobilidade social mais evidente. Porém, é importante salientar que tal mobilidade social ainda era muito limitada e com exceções, como salientado pela historiadora Kátia Matoso no livro “Bahia – século XIX. Uma província no império” em 1992.

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Acreditava que a plena integração dos escravos alforriados só se daria após uma reforma tendo como fundamentos indissociáveis a liberdade e propriedade de terra aos recém libertos. Ao longo dos anos de engajamento no movimento, estreitou relações com figuras notórias como Joaquim Nabuco, com quem fundou a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão; publicou artigos de cunho abolicionista em diversos jornais e revistas, buscando fazer uma mediação entre classes e convencer parte da elite retentora da mão de obra da maior produtividade em trabalhadores assalariados, além do evidente desrespeito aos escravizados. André Rebouças nutria pelo Brasil uma esperança fundamentada na ideia do progresso e da modernização (CASTRO, 2000); acreditava que o país tinha grande potencial, mas ainda era muito atrasado. Por isso parecia se pensar como um agente transformador e agia com certa pressa, fazendo o possível a fim de executar sua visão de Brasil, esboçando um país do futuro. Porém, tais crenças foram diminuindo a cada entrave apresentado pela dinâmica social e burocracia brasileiras e pelo preconceito que sempre precisou enfrentar. Ao ponto de no final de sua vida, Rebouças se referia ao país como uma civilização extinta. O engenheiro morreu em Funchal, Cabo Verde, em, 1898, suicidando-se. Proponho, então, que Rebouças ocupava um lugar entre mundos na sociedade; entre camadas de pedras, para utilizar a analogia já estabelecida. Por um lado, era pertencente à elite da época – representada pela camada de pedras lavradas –, sendo um intelectual da Corte, posição alcançada por influência paterna e por seus próprios êxitos, convivendo e fazendo parte, desde cedo, desse grupo social do Império. Ao mesmo tempo, na contramão, era preto – tinha em sua ancestralidade a representação das pedras pé-de-moleque – e criticava o sistema que mantinha a ex-colônia funcionando. Logo, o engenheiro se caracterizava como uma figura de tensão – movimento de roçar - entre as camadas. Rebouças vivenciou um “mundo compartimentado”, termo cunhado pelo filósofo Frantz Fanon14 propondo que as restrições perceptíveis no mundo do colono e no mundo do colonizado não são iguais, mesmo que ambos os corpos ocupem o mesmo espaço: “A zona habitada pelos colonizados não é complementar da zona habitada pelos colonos. Essas duas zonas opõem-se, mas não ao serviço de uma unidade superior. Regidas por uma lógica puramente aristotélica, obedecem ao princípio da exclusão recíproca: não há conciliação possível, um dos termos está a mais.” (FANON, 1968, p. 28) 14 Frantz Fanon (1925 - 1961) foi um psiquiatra e filósofo da colônia francesa da Martinica. Fanon teve obras influentes no campo do pós-colonial, tentando entender os efeitos e consequências deixados na mente e no corpo dos colonizados.

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A vivência de André Rebouças não foi muito diferente da conceituada por Fanon. O próprio se queixa de tal vivência em seu diário com anotações e escritos pessoais: “[...] quando em dezembro de 1860, por malditos preconceitos de cor, negaram a mim e ao Antonio o prêmio de viagem à Europa e até o concurso aprovado pelo regulamento da escola redigido pelo liberal ministro J. Francisco Coelho, disse meu pai: “Minha Carolina (sua mãe), venderei os meus livros, mas os meninos hão de terminar sua educação na Europa” ( JUCÁ, 2001, p.42). Tal relato reforça novamente o carácter simbólico do engenheiro ao roçar das pedras, elucida que apesar de Rebouças ser um intelectual, frequentar e vivenciar espaços designados a elite social da época - simbolizando aqui as pedras lavradas – não era plenamente parte desta, já que o seu corpo, mesmo sem ter sido escravizado, carregava tal ancestralidade, colocando o engenheiro nesse constante “não pertencimento” na sociedade. A partir da compreensão do contexto histórico e social no qual se inseria André Rebouças, podemos interpretar melhor sua obra Docas D. Pedro II. O ímpeto da construção de tal edifício fazia parte de um projeto de melhoria na infraestrutura do porto, devido ao aumento de demanda na região que vimos no final do capítulo anterior. A exportação de café tornara a região portuária do Rio de Janeiro altamente d e m a n d a d a . Rebouças, desde 1866, trabalhava na construção de um novo cais de atracação. Porém, desde aquele momento, não considerava as novas instalações suficientes para o fluxo de navios do local. Tendo isso em mente, Rebouças se associa à empresa britânica “Liverpool Brazil and River Plate Mail Steamers” – que era responsável por grande parte das importações que chegavam ao Rio de Janeiro - visando a construção de docas modernas e eficientes (LENZI; SANTOS, 2005). A viabilização das novas docas ocorre em 1871, tendo como uma de suas condições a recusa de uso de obra escravizada ao longo de toda a sua construção, como salientado na cláusula de número dezenove: “A companhia não possuirá escravos e só empregará nas construcções de suas obras e no seu custeio pessoas livres.” (REBOUÇAS, André Pinto, [18--], p.8) 39


Tal item está presente no documento “Projecto de contracto da empreza das Docas de D. Pedro II”, redigido, em 1869, por Rebouças, no qual constam outras cláusulas iniciais para a organização tanto do projeto quanto da empresa. Além de reivindicar a inexistência de mão de obra escravizada na construção do edifício, o engenheiro era também muito criterioso no pragmatismo e na eficiência do edifício, especificando metragens e dimensões exatas, assim como proposição de uma futura expansão: “[...] teria uma extensão útil total de 2.386m: na Saúde, entre as ruas Pedra do Sal e da Saúde, 1.643m; na Gamboa, em todo o perímetro da enseada, 743m. No futuro, pensava-se em desapropriar o litoral do morro da Saúde para reunir as duas docas. As docas da Saúde comportariam três pontes, dois telheiros e um Armazém Central, enquanto as da Gamboa, dois armazéns, 3 telheiros e uma ponte.” (LAMARÃO, 2006, p. 62). O projeto fora aprovado e a autorização concedida para a sua construção em março de 1870, porém, as obras começaram somente no ano seguinte visto que a Câmara Municipal foi contrária a alguns itens do projeto. O principal empecilho foi a extinção da Praça Municipal, do Cais da Imperatriz e da Praça da Harmonia no projeto do engenheiro. Interessante observar o entrelaçamento dessas diferentes infraestruturas urbanas, principalmente no contexto deste trabalho. Não fosse pelo embargo da Câmara Municipal, as novas docas poderiam ter sido mais uma camada sobreposta ao Cais do Valongo/Cais da Imperatriz, estabelecendo com estes uma dinâmica de apagamento ainda mais veloz. Foi o veto da Câmara que permitiu, involuntariamente, o quase mutualismo entre o antigo cais e as novas docas, colocando-se, portanto, em prol da memória e simbolismos do contexto. Como já mencionado, Rebouças era muito criterioso, um grande apreciador da técnica, como ele mesmo demonstra no seguinte trecho: Lisboa é um dos mais bellos portos de Europa. O qualificativo – bello – deve aqui ser comprehendido no ponto de vista exclusivamente technico. Não há lugar neste escripto para o bello pitoresco; nem há neste momento lazer para mostrar como são encantadoras na primavera as verdes collinas das margens do Tejo.” (REBOUÇAS, 1862) O relato acima, descreve uma doca observada por Rebouças na cidade de Liverpool, na Inglaterra. Interessante perceber como a descrição dessas docas na cidade industrial inglesa se aproxima muito da materialidade utilizada no edifício das Docas de D. Pedro II, que também possui os mesmos componentes tectônicos: estrutura em ferro e paredes em tijolos. 40


A utilização tanto dos tijolos quanto dos pilares de ferro como componentes do edifício, salienta a busca do engenheiro por materiais industrializados, pragmáticos, já prontos para a construção. Assim como denota, mesmo que não tenha sido a intenção, uma praticidade para os trabalhadores que nela atuam, permitindo um trabalho mais fluido e ritmado e sem um cunho artesanal tão forte, onde todos os processos deveriam serem feitos na obra. As viagens à Europa, do ponto de vista referencial, foram de extrema importância para Rebouças, como pode-se perceber pelas descrições metódicas e técnicas de construções do local. Logo, podemos deduzir que é igualmente de tais viagens que vem a matriz estética europeia do léxico espacial de Rebouças, que lhe permite criar um espaço pragmático, eficiente e de grande apuro técnico. Tal matriz é muito presente no projeto das Docas: além dos elementos construtivos como o tijolo e os pilares de ferro, a forma na qual o edifício se configura também denota ser pertencente do mesmo léxico de construção. Parece que tal forma resulta tanto da tradição tipológica quanto da utilização de tal tipologia para usos renovados pelo surgimento da produção industrial. De tais operações resulta uma espacialidade próxima do galpão industrial adequado à função de serviços portuários. A planta é basilical, com uma grande nave ao centro e ladeado por outras naves com alturas mais baixas. A edificação é configurada, como já mencionado, por uma estrutura de pilares de ferro (suportando uma estrutura de telhado também em ferro) e paredes periféricas em tijolos maciços que são estruturadas e perfuradas por arcos também de tijolos formando amplas portas e janelas, que possibilitam uma grande troca entre interior e exterior. O projeto foi pensado para atingir grande amplitude, permitindo um espaço flexível para diferentes formas de configuração das mercadorias.

Vista Docas D. Pedro II no século XIX fotografia de Juan Gutierrez

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O constante roçar das pedras: o desdobrar Ao concluirmos essa camada, podemos interpretar as Docas de D. Pedro II, como um importante fragmento constituinte do palimpsesto do Valongo, já que possui vários significados imbuídos a esse. O edifício representa parte da memória e resistência do lugar, apesar de não ter sido concebido com esse propósito em mente. As Docas carregam em sua concepção a memória e ofício de um engenheiro negro, que lutava por um país que, acreditava ele, sairia de seu atraso, inadequações e injustiças sociais através do desdobramento das ações racionais. Rebouças, obviamente, tinha grande crença na ideia de progresso. Por isso apostava na industrialização do país, e, especificamente, na industrialização dos modos de construção. Ideal esse que foi presente na construção do edifício em questão, vide a materialidade de tijolos e estrutura metálica. Há nesse prédio uma mudança estética para a região, como também, e, mais importante, uma mudança de pensamento. Pressionado entre a violência da camada das pedras pé de moleque e o cenográfico refinamento da camada de pedras lavradas, Rebouças aposta em um outro modo; aposta que a saída estaria no pensamento liberal, na racionalidade econômica e de produção. Seus tijolos representam a sistematização, a padronização, a praticidade e pragmatismo de um mundo mais moderno, que recusaria explorar a mão de obra escravizada e entenderia todos como participantes desse desdobrar racional sobre o mundo. Infelizmente, a solução não era tão simples como ele pensava e o pensamento liberal não se mostrou, em lugar nenhum do mundo, tão viabilizador de justiça social como ele previra. A figura de Rebouças – assim como a de Machado de Assis e outros intelectuais pretos - foi sendo embranquecida ao longo dos anos.

Docas D. Pedro II e embarcações,

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fotografia Marc Ferrez & Cia, 1885


No caso de Rebouças, houve também certo esquecimento de seu papel pioneiro na história tida como oficial da cidade. Tomo-me aqui como exemplo: eu só soube da negritude do engenheiro ao realizar as pesquisas para este trabalho, apesar de conhecer seu nome e ter alguma noção de sua ação como engenheiro. Hoje em dia, uma grande parte do edifício persiste na camada urbana da cidade, mesmo tendo sofrido algumas mudanças em sua fachada, ele segue presente ao lado do cais e tombado pelo IPHAN desde 2016 e sob a responsabilidade da Fundação Cultural Palmares. Há o intuito de transformar o lugar no centro de referência da celebração da herança africana; os centros de Interpretação do Valongo e de acolhimento turístico; e o laboratório aberto de arqueologia urbana, que também prospecta camadas da cidade.

Docas D. Pedro II atualmente,

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fotografia de acervo próprio, 2021


O Rio Republicano:

as pedras portu guesas 44


A tentativa de polir, lavrar e embranquecer a área do Valongo não foi exclusiva da construção do Cais da Imperatriz. Em 1906, dá-se a adição de mais uma camada à região do Valongo, quando, após 63 anos, o Cais da Imperatriz recebe o mesmo tipo de rasura urbana do antigo Valongo. Ou seja, o Cais é soterrado e dá lugar ao novo e moderno porto da cidade. Essa ação ocorre paralelamente às famosas reformas modernizantes do Rio de Janeiro, desenvolvidas pelo prefeito Pereira Passos. Ao longo dos anos de 1902 e 1906, a cidade sofreu grandes reformas como alargamento de vias, aterros diversos, construções várias e desapropriações muitas. Todas seguiam o conceito similar ao por aqui já mencionado: matriz estética europeia. Contudo, o prefeito tinha em mente um lugar da Europa mais específico: Paris, mais especificamente o plano Haussmann15 em Paris. Ao se espelhar na capital da França, Passos almejava conquistar um ideal de cidade mundializada, para usar os termos de Paul Ricoeur (RICOEUR, 1965), e moderna, próspera e com foco no futuro. Foi Pereira Passos que introduziu na cidade o uso do calçamento de pedras portuguesas. Já usado em cidades europeias, como Lisboa e em Paris, esse tipo de calçamento permite o desenho de padrões gráficos delicados e razoavelmente precisos, com o uso de diferentes cores de pedras. Mas, demanda mão de obra especializada, e, por isso, um grupo de calceteiros foi trazido de Portugal para ajudar a substituir nossas calçadas de lajes de pedras pela delicadeza das pedras brancas europeias. Tal procedimento, inaugurado pelo governo de Passos, ganhou a cidade rapidamente, tornando-se padrão para todo Distrito Federal em poucos anos. A região do Valongo, o entanto, não foi abarcada no projeto do prefeito. Sua transformação, em estreitos laços com as ações municipais e com os mesmos desenhos simbólicos, resultaram da percepção do Presidente da República da necessidade de modernizar as atividades comerciais do porto da cidade. Lembremo-nos que os transporte marítimo era o principal meio de exportar o produto brasileiro mais valorizado e que rendia maiores divisas ao país naquele momento: o café. Rodrigues Alves une-se, então, ao esforço municipal e planeja e executa um enorme e moderno porto que receberia navios de grande calado em seus cais, viabilizando, assim, a aceleração de todos os processos de exportação e importação que dominavam a economia brasileira da época. O novo porto demandou a criação de um enorme aterro, que tornou regular a linha da beira d’água, acabando, portanto, com as pequenas enseadas que compunham aquela parte da costa carioca. Nesse processo, todo o trecho que ia da antiga Prainha até a Ponta da Saúde perde sua geografia original. 15 George-Eugène Haussmann (1853 - 1882), assumiu o cargo de prefeito de Paris em 1853, durante seu mandato, executou uma remodelação da cidade de Paris no século XIX, e a transformou na cidade como se conhece até os dias atuais. .

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O Cais da Imperatriz, enterrado, dá, então, lugar a uma grande praça, agora distante do mar, devido ao grande aterramento e alinhamento do novo porto. A Rua da Imperatriz, muda de nome para Camerino, permanecendo com esse nome até hoje. A largura da via também mudou e passou a ter dezessete metros ( JORDÃO, p.16, 2011). Tal alargamento deve ter colaborado muito para destruir quaisquer das antigas construções que abrigavam os armazéns de comércio dos escravos que por acaso ainda existissem. Nesse mesmo movimento, em uma adição às reformas da região, foi criado o Jardim Suspenso do Valongo, na encosta do Morro da Conceição. Formalmente, o jardim se situa em um platô a oito metros acima do nível da Rua Camerino. Seu acesso principal acontece através de uma escadaria localizada, aproximadamente, no seu eixo. Possui um altíssimo muro de arrimo para sustentação, que é estruturado em cantaria e painéis de argamassa. Estilisticamente, ele segue preceitos pitorescos do paisagismo francês da segunda metade do Século XIX. É composto por formas curvas e orgânicas, cenários com mirantes, aleias e rocailles16, estes possuem caimento d’água (SALOMON, p.143, 2016). As estátuas romanas existentes no, agora, antigo Cais da Imperatriz, foram transferidas para este jardim suspenso, sendo assim, agregadas a estética idílica projetada no local. Como é comum no estilo pitoresco, os elementos paisagísticos são articulados de maneira a simular um ambiente natural, em cenário. Fato esse que se assemelha ao exercício cenográfico produzido por Grandjean de Montigny no projeto de remodelação da Praça Municipal, antes mencionado. Essa conjuntura semelhante, que torna mais intrigante a nova camada/escritura urbana feita na região do antigo Valongo, no início do século XX. Como se, analogamente, a camada preexistente foi coberta com o mesmo tipo de tinta e o mesmo pincel. Não por acaso, a camada das pedras portuguesas coincide com a ampliação dos esforços do governo brasileiro para atrair imigrantes europeus, que substituiriam a mão de obra escravizada. A política de imigração voltada para europeus, que começara no final da década de 1860, ganhou enorme importância para os diferentes governos a partir da Proclamação da República, em 1889, sendo que, no final do século XIX, o Brasil se transformara no principal receptor de contingentes desses imigrantes. O contraste entre o tratamento dado a esses trabalhadores e aquele dado aos ex-escravizados é significativo. Enquanto a população preta foi abandonada à própria sorte, sem ser objeto de políticas específicas que viabilizassem sua educação e introdução no mundo capitalista do trabalho, sendo ainda proibidos de adquirir terras por algumas décadas, aos imigrantes europeus 16 Obra ornamental que imita rochas e as pedras da natureza. (Disponível em: <https://dicionario.priberam.org/rocaille>).

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foram oferecidas, em certos momentos, diversas facilidades, que incluíam financiamento dos custos de viagens e na compra de propriedades. O governo brasileiro pretendia seduzir agricultores e artesãos brancos exigindo em troca somente “boas condições de saúde e a preocupação em limitar a idade até 45 anos, à exceção dos chefes de família” (GONÇALVES: 2020, p. 98). A imigração europeia se apresentava como a solução para “os males do país, instituindo uma nova configuração social dignificadora do trabalho”, e facilitando o processo de ‘branqueamento’ da população, a que seria lentamente e naturalmente imposto à população brasileira de maioria preta e parda (IDEM: p.106). Ou seja, desejava-se não somente esquecer a escravatura como apagar a negritude do país. Queria-se que o Brasil se tornasse branco como as pedras portuguesas de suas novas calçadas.

Largo da Harmonia, originalmente Cais do Valongo, depois Cais da Imperatriz fotografia de Augusto Malta, 1904

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ruas. no mes.

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pla cas.


Essa próxima camada é abstrata; não se refere a características materiais da região do Cais do Valongo. Porém, ainda assim, constitui-se igualmente a partir das construções de narrativas e memórias, assim como da ação de rasura. Como o movimento black lives matter17, assim como tantos outros antes também, que indagam a permanência de elementos urbanos como estátuas, placas e nomes de ruas que prestam homenagem a figuras racistas e escravocratas do passado, desejo explorar outros fragmentos: a toponímia na cidade. As narrativas de um lugar estão contidas em vários elementos materiais e imateriais que o constroem. Assim sendo, podemos considerar os nomes das ruas - assim como as placas descritivas e comemorativas - elementos do enredo. Tais componentes são tão intrínsecos ao repertório urbano que os naturalizamos e tornamo-los neutros, não desenvolvendo, geralmente, uma análise crítica em torno de seus conteúdos, símbolos e significados. Porém, eles são importantes personagens da escrita urbana. Afinal, foram redigidos de modo oficial. Ou seja, o autor dessas falas é o poder estabelecido, que, através delas, reafirma e torna pública as suas narrativas. No caso do Cais do Valongo, existem diversos elementos passíveis de análise. Por exemplo, o nome que é dado à praça no logradouro do Valongo: Praça Jornal do Comércio, jornal esse que esteve em circulação na Cidade do Rio de Janeiro por 189 anos, de 1827 a 2016. Seria passível de análise, também, a via que beira o final da praça: Rua Sacadura Cabral. Antes, era conhecida como Rua da Saúde e, a partir de 1922, seu nome é modificado para prestar homenagem ao aviador e marinheiro português Artur de Sacadura Freire Cabral, que, no mesmo ano, realizara a primeira travessia aérea do atlântico (GONÇALVEZ, 2012). Fácil perceber que nem o Jornal do Comércio (que foi homenageado ao darem seu nome à praça criada na área resultante do aterramento do antigo cais) e nem Sacadura Cabral constroem relações diretas com a história do cais, com a história do tráfico de escravizados ou sequer com a história do próprio bairro. Essa ausência de relações pode ser pensada como proposital; como um modo intencional de apagar, concretamente e simbolicamente, o Cais do Valongo da memória da cidade. Os enredos lidos no nome que a rua do Cais do Valongo possui atualmente e em uma placa descritiva do passado da região, a fim de destrinchar partes da história oficial contada ao longo dos anos que parecem não buscar mero apagamento (ou rasura, nos termos que aqui adoto) mas, estabelecer operações mais complexas (ou, quiçá, perversas). Para tal fim, analisarei a escolha do nome do Barão de Teffé para a rua que levava até o cais e a placa colocada pela Prefeitura do Rio de Janeiro, em 1990, no local onde era a amurada do cais. 17 O movimento teve início após a morte do cidadão negro norte americano George Floyd por uma ação truculenta da polícia, em Mineápolis nos Estados Unidos, em junho de 2020. Em reação a tal tragédia, grandes manifestações ocorreram em todo o país, se expandindo para movimentos negros ao redor do mundo.

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foto de acervo próprio, 2021

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O Barão de Tefé


“Durante o período de sua vida activa, foi o Barão de Teffé distinguido com títulos e honras. As condecorações que brilham no seu peito glorioso são capítulos da história de uma vida de lutas: bravura, sacrifício, dedicação, tenacidade, perseverança e saber. A pátria agradecida venera o seu nome.” (Revista da Liga Marítima Brasileira. Memórias do Almirante Barão de Teffé. Livraria Garnier, 1865. Rio de Janeiro.)

Esse é o nome da rua que, hoje em dia, nos dá acesso ao Cais do Valongo. O nome atual foi designado no final do século XIX, quando o barão homônimo vence a Batalha do Riachuelo durante a Guerra do Paraguai. Mas, afinal, quem foi o Barão de Teffé? Batizado Antônio Luís von Hoonholtz, nasceu no Rio de Janeiro em 9 de maio de 1837. Filho do Conde alemão Frederico Guilherme von Hoonholtz, ex-oficial prussiano, e de Joana Cristina von Hoonholtz, integrantes da mais alta elite da cidade. Aos 15 anos, inscreve-se na Academia da Marinha e dá início a sua carreira militar. Participou de várias batalhas, sendo a mais importante a Batalha do Riachuelo18, durante a Guerra do Paraguai19. Tal feito lhe concedeu o título de Barão de Teffé, em 11 de junho de 1873. (MARY, 2009) E por que proponho que a escolha do nome de Teffé ultrapassa uma escolha de um nome se estabelecendo como uma rasura? Primeiramente, acho interessante pensar que Teffé era um criador de narrativas visuais: além de participar ativamente no campo de batalha, o Barão também fazia parte da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, que levantava e cartografava territórios. Dentre seus trabalhos está o mapeamento da Ilha de Santa Catarina e toda a costa litorânea a ela adjacente, assim como o levantamento da Baía de Guanabara. Um de seus grandes desejos era a demarcação territorial brasileira como um todo, visto que acreditava ser um desleixo que, um país de dimensões continentais como o Brasil, não possuísse uma cartografia, referente ao território, tão vasta quanto: “[...] cumpre ponderar que um país, que se preza de figurar a par das nações as mais adiantadas do globo, deve antes de tudo conhecer o seu próprio território.”20. Barão de Tefé, ilustração de Henrique Fleiuss, 1865

18 Um fato importante é perceber que a mesma batalha dá nomes a diversas outras ruas da cidade do Rio de Janeiro, não se restringindo apenas a esta aqui analisada e nem ao bairro. Tal amplitude parece ser resultado da construção intencional de uma nova memória para a cidade, apagando os antigos nomes do tempo colonial. Alguns exemplos são: Rua Riachuelo e Rua Almirante Barroso, no Centro; Rua Almirante Bittencourt, no Riachuelo; Almirante Tamandaré, no Flamengo; Rua Major João Batista de Souza Braga e Rua Capitão Pedro Afonso Ferreira, ambas na Zona Oeste. 19 Guerra do Paraguai: o conflito colocou Brasil, Argentina e Uruguai como aliados contra o Paraguai. Reconhecida por ser uma das maiores guerras da América do Sul, teve sua duração do ano de 1864 a 1870. São estimados 300 mil a 450 mil mortos, sendo cerca de 200 mil paraguaios. In: DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 93-96. 20 TEFFÉ, Barão de. “Exploração do Rio Xingu e homenagem tributada a seus exploradores”. In: BOLETIM da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Tomo 1, n. 1, 1° trimestre, 1885, p. 62.

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Ou seja, Teffé era um desses que, através de linhas, dava aos lugares formas e nomes; esses que, agora, além de existirem no território, possuem desenhos e nomes oficiais, portanto, são reais aos olhos do estado. Teffé pertencia ao grupo daqueles que tem o poder de estabelecer narrativas, de decidir o que seria revelado, o que seria esquecido. Decidira, por exemplo, que o rio considerado como nascente principal do Javari seria batizado com a data de nascimento da Imperatriz do Brasil. Assim como, relatava em seus diários de batalhas as armas adequadas para o combate com índios, armas que abriam os caminhos de conquista e provavam a superioridade do Brasil oficial21. O Barão, ao longo de toda a sua vida militar, foi somando conquistas e se estabeleceu como uma figura importante no campo bélico naval, construindo a imagem de herói de guerra, um herói da Marinha. E me parece muito significativo o fato de um oficial da Marinha ter sido o escolhido para nomear a rua que se sobrepôs ao cais. Logo um herói da Marinha. Teria sido uma tentativa de criar uma ligação entre o cais e a Marinha? Parece-me que não. A partir de tal intuição traço uma linha de contraposição com outro acontecimento: a Revolta da Chibata. A Revolta da Chibata tem seu início em 22 de novembro de 1910. A razão da insatisfação dos marinheiros é o mesmo motivo que dá nome à revolta: o uso da chibata nos marujos – homens negros em sua quase totalidade - como punição. O movimento foi liderado por João Cândido, também conhecido como Almirante Negro22. Os marinheiros fizeram um manifesto reivindicando o fim dos castigos físicos, assim como melhoria no ensino das funções dos marujos, estabelecendo, portanto, o fim de modos de controle vindos do tempo da escravidão (CAPANEMA, 2010). Ou seja, a Marinha Brasileira foi de certa maneira escravocrata até o início do Século XX. Os termos propostos pelos revoltosos foram aceitos - após grande pressão dos marinheiros e alguns políticos - por Hermes da Fonseca, presidente da época (curiosamente, casado com a filha do Barão de Teffé), acabando, finalmente, com a cultura escravagista na instituição. 21 TEFFÉ, Barão de. Op. Cit. 1888. p.182.

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22 Na década de 70, a música “O mestre-sala dos Mares” de Aldir Blanc e João Bosco foi composta para homenagear a figura de João Cândido. Após quase 100 anos depois da revolta, em 2008, foi concedida anistia ao Almirante - título este que não é reconhecido pela marinha, por o considerarem chefe do motim contrário à hierarquia. No mesmo ano da anistia, uma já existente estátua do almirante foi colocada na Praça XV, no Centro do Rio.


Hermes da Fonseca aceitou igualmente dar a todos os marinheiros envolvidos no movimento anistia plena. Porém, esta última promessa não foi cumprida, já que cerca de mil marinheiros foram dispensados da Marinha dias após o trato, sem direito a qualquer recompensa financeira. Outros foram presos, como João Cândido. Outros, ainda, foram mortos num episódio de envenenamento coletivo dentro das instalações das Ilhas das Cobras. João Cândido, sobrevivente do envenenamento, foi colocado em um manicômio, saindo anos depois quando os médicos atestaram sua total sanidade (CAPANEMA, 2010). O intuito de trazer à tona esse episódio ocorrido 37 anos depois da rua ser nomeada em homenagem ao herói naval é revelar o quão agravante é a correlação desses fatos. Não pretendo desacreditar a figura de um herói de guerra. Tampouco, desvalorizar os feitos de Teffé pela geografia brasileira. Contudo, parece-me importante e significativo observar que o Barão de Teffé dedicou sua vida à Marinha, instituição que, até a revolta de 1910, tratava seus marujos quase como escravos. Tal atitude não parece ser o modo de ação no Exército e, tampouco, nas demais instâncias governamentais. Relevante igualmente foi o modo como a Marinha tratou os revoltosos após a anistia: demissão, encarceramento, morte e internação psiquiátrica. Tal reação revela o qual pouco valiam as vidas negras dos marinheiros e quanto o grupo de comando da instituição se sentiu afrontado ao ter que mudar seus procedimentos. Logo, parece-me significativo destacar que a mesma rua que recebeu tantos corpos negros, que, ao pisarem nas pedras do Cais do Valongo, tinham a narrativa de suas vidas rasuradas e extirpadas de si - isso caso chegassem com vida no local-, recebe o nome de um barão, herói de guerra da Marinha; herói de uma guerra que ocorrera muito longe dali; o nome de um narrador e articulador de territórios igualmente longínquos. Parece-me, então, que ocorre além da rasura uma espécie de afronta: rasura-se agora tanto a memória do tráfico negreiro como se reafirma a manutenção de certo lugar para o povo negro dentro da nação. Para complexificar minha leitura, lembro que houve um herói negro na Batalha do Riachuelo: o marinheiro Marcílio Dias. Na referida batalha, Marcílio defendeu com o próprio corpo a bandeira do Brasil quando viu seu barco ser invadido pelo inimigo, tendo, por isso, seu braço decepado, morrendo dias depois (PORTO-ALEGRE, 1917). Seu nome, no entanto, não foi dado a nenhum logradouro público na Cidade do Rio de Janeiro, recebendo somente uma homenagem interna meio enviesada da Marinha, que chamou de Marcílio Dias o hospital da instituição23. 23 Importante sublinhar que o hospital, criado em 1939, substituiu a “Casa de Marcílio Dias”, instituição filantrópica criada em 1926 por esposas de Oficiais da Marinha e destinada a prestar assistência social e educacional a filhos de Praças da Marinha (informação constante do Site do Arquivo da Marinha: disponível em http://www.arquivodamarinha.dphdm.mar. mil.br/index.php/hospital-naval-marcilio-dias#:~:text=O%20Hospital%20Naval%20Marc%C3%ADlio%20Dias,de%20 Instituto%20Naval%20de%20Biologia). Ou seja, o nome do herói negro surge numa instituição voltada para dar assistência aos grupos de mais baixa patente da instituição. O nome é transferido ao hospital visto ao grande sucesso da instituição filantrópica.

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O Mestre Sala dos Mares

João Bosco & Vinícius, Aldir Blanc

Há muito tempo nas águas da Guanabara O dragão no mar reapareceu Na figura de um bravo feiticeiro A quem a história não esqueceu Conhecido como Navegante Negro Tinha a dignidade de um mestre-sala E ao acenar pelo mar na alegria das regatas Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas Jovens polacas e por batalhões de mulatas Rubras cascatas Jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas Inundando o coração do pessoal do porão Que a exemplo do feiticeiro gritava, então Glória aos piratas, às mulatas, às sereias Glória à farofa, à cachaça, às baleias Glória a todas as lutas inglórias Que através da nossa história Não esquecemos jamais

João cândido ao centro com os marujos durante a revolta da chibata, forografia da revista “O Malho” , 1910

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La, la, la, la, la, la, la, la, la, la... Salve o Navegante Negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais Glória aos piratas, às mulatas, às sereias Glória à farofa, à cachaça, às baleias Glória a todas as lutas inglórias Que através da nossa história Não esquecemos jamais La, la, la, la, la, la, la, la, la, la... Salve o Navegante Negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais Mas salve Salve o Navegante Negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais Mas faz muito tempo

Reportagem de jornal relatando a censura da letra sofrida durante a ditadura militar no Brasil, arquivo Fundação Biblioteca Nacional

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foto de acervo próprio, 2021

a placa descritiva de 1990


“Neste local existiu o Cais da Imperatriz. Em 1843 o antigo Cais do Valongo foi alargado e embelezado, para receber a futura imperatriz Teresa Cristina.”24

Os dizeres acima foram gravados em uma placa de ferro que foi fixada em um marco de pedra que compõe um monumento comemorativo, na Praça Jornal do Comércio. O historiador Rogério Jordão (2015, p.14) comenta:

“Havia, até, uma antiga placa de ferro afixada em um monumento comemorativo – uma coluna de pedra de cinco metros de altura (o resto de um chafariz do Século XIX) (...) Redigido pela Prefeitura nos arredores dos anos 1990, o enunciado contido na plaqueta era, até a redescoberta das pedras do cais em 2011, a única referência textual (escrita) à memória instituída naquele local.”

Logo, analisar os elementos gramaticais da placa como adjetivos, substantivos e verbos, nos permite dissecar a história manufaturada pela prefeitura ao redigir tal descrição. A primeira informação recebida é: “neste local existiu o Cais da Imperatriz25”. A escolha da placa anunciar, antes de tudo – com fonte em maior hierarquia e destaque (figura 1) – tais dizeres, aparentam construir um entendimento de que, este episódio, foi o marco histórico mais emblemático e importante do lugar. Mesmo havendo a menção do Cais do Valongo na plaqueta, em nenhum momento do texto é mencionado o que de fato era o desembarcadouro e suas funções. Ou seja, a preexistência do local – os quase 40 anos do cais a receber cerca de 700 mil escravizados (ib., p.14) - não possuem, na narrativa da prefeitura, a mesma magnitude quanto a recepção da princesa da casa reinante de Nápoles.

24 Placa posta em monumento comemorativo, pela prefeitura nos anos 1990. 25 Em 1843, Thereza Cristina Bourbon desembarca no país para casar-se com D. Pedro II. Para a recepção da mesma, o Cais do Valongo sofre reformas e é construído o novo Cais da Imperatriz (GERSON, 2013)

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em.be.le.zar26 1.tornar belo, aformosear; 2. encantar, envelar; vp 3. tornar-se belo; 4. Enfeitar-se

Além de tal hierarquização, há o uso de palavras que parecem apontar para o mesmo tipo de discurso: a escolha do verbo “embelezar” denuncia o enredo proposto pelo poder oficial. O uso de tal palavra nos faz correlacionar o antigo Cais com o antônimo de belo, ou seja, feio, denotando um lugar desgracioso, sem encantos e desagradável. Logo, subjaz a essa fala a ideia de que o Cais do Valongo, além de não possuir valores históricos dignos de serem mencionados, não possuía tampouco valores estéticos que merecessem ter sido preservados. Cabe lembrar que, segundo Rogério Jordão, a placa foi ali colocada na última década do Século XX, quando já estava em curso um processo de revisão da história negra brasileira. Tal maneira de se referir a região, também ocorre no livro “Morro da Conceição, da memória o futuro”, editado em 2000 pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Como destacado por Jordão, que cita esse livro em sua pesquisa (2016, p.3), há certa dubiedade na maneira como local é descrito.

“Apesar da natureza da primeira ocupação do Morro ter sido consequência da instalação de instituições prestigiadas (Palácio Episcopal e Fortaleza da Conceição), ele se viu obrigado a conviver com os equipamentos indesejados pela cidade (grifo de Jordão), que foram transferidos para as suas proximidades. Além de estar localizado num dos antigos limites da zona urbana, essa vizinhança configurou sua condição de periferia, marcando sua vocação (grifo meu) popular” (PREFEITURA, 2000, p.50).

Em outro trecho eles mencionam: “A partir de 1830, com a instalação dos armazéns de café́, proliferaram trapiches e embarcadouros, da Prainha à Gamboa. Foram feitos aterros para a construção de novos cais e as antigas atividades foram expulsas (grifo meu) – como o mercado de escravos, estabelecido no Caminho do Valongo (atual Rua Camerino) desde 1770 (...) o fim do tráfico (...) decretou o fim do mercado. A área foi nobilitada (grifo meu) com a decisão de receber ali a futura Imperatriz Teresa Cristina (...)” (PREFEITURA, 2000, p.24-25).

26 Definição retirada do dicionário: AMORA, Antônio Soares, Minidicionário Soares Amora da língua portuguesa. São Paulo: Saraiva, 2008.

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O livro citado, tinha como objetivo a valorização e a reabilitação do patrimônio urbanístico, paisagístico e arquitetônico da cidade ( JORDÃO, p.3). Entendo que é um fato importante e significativo a constância com que diferentes níveis da gestão pública da cidade trataram a região como um lugar secundário, para onde se destinava todas as atividades que a cidade não queria ter expostas aos olhos cotidianos do cidadão “europeu”. O surpreendente é que tal constatação seja feita, já chegando ao século XXI, num texto oficial no qual tanto se expõe quanto se sublinha, através do uso de certos termos, o preconceito. Na fala, nunca há uma clara condenação a esse tipo de ação. Além disso, se naturaliza tal artifício urbanístico ao afirmar esse processo de exclusão e abandono se tornou uma “vocação”.

Vo.ca.ção27 Ato de chamar; escolha; predestinação; tendência; inclinação; (por extensão) talento;

Ou seja, o uso do termo vocação, não só naturaliza, quanto dá uma conotação positiva a um violento processo de exclusão ocorrido nessa região da cidade. Torna-o uma escolha, uma tendência, um talento natural. E, por fim, ainda propõe que tal ação violenta torna-se secundária frente à nobilitação ocorrida quando da escolha do Cais do Valongo para receber a Imperatriz. Podemos pensar, portanto, que tanto a nomeação dos logradouros locais, o texto presente na placa, quanto o texto do livro – todos resultantes de ações da Prefeitura da Cidade desdobradas ao longo de mais de um século -, narram, literalmente, o senso histórico, paisagístico e urbanístico que o poder instituído deseja construir e propagar como narrativa oficial. Nesse enredo, o personagem que cabe ao Valongo tem um papel negativo, talvez o de um não-lugar. Na trama, ele não se configura sequer como coadjuvante, visto não pertencer à paisagem, nem à história, nem ao urbanismo. . Tampouco, o cais é pensado como tendo uma estética válida de ser lembrada. O Valongo, aparenta ser um personagem da cidade que restou de um tempo que a cidade oficial quer esquecer. Porém, o esquecimento, neste caso, não é uma ação neutra e acidental. Há uma intenção clara que passa pela imposição de uma história que lê o passado escravocrata como um dado menor e aponta para um presente no qual predominaria uma harmonia de raças; rasura-se o Cais para se rasurar a violência que construiu nosso país e o lugar, ainda hoje desrespeitoso, dado à população negra. 27 Definição retirada do Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (BUARQUE de HOLANDA, Aurélio. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966).

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Relembrar o porto negreiro e mencionar seu papel fundamental no funcionamento e dinâmica da colônia faria emergir uma lembrança que mancha e machuca a história oficial da cidade. Logo, percebese, em vários meios, uma ação sistemática para tentar esquecê-lo; uma clara ação de rasura. Poderíamos pensar, então, que as mudanças de nomes, as placas e certas falas oficiais, se por sua imaterialidade não compõem uma camada, fazem, obviamente, parte do processo de rasura e soterramento da história preta da região, funcionando, talvez, como o gesto final: como uma pá de cal.

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Placa descritiva fixada em monumento comemorativo, na Praça Jornal do Comércio, fotografia de acervo próprio, 2021

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carto grafar as evidên cias

entre violências tantas e afetos vários*

* Descrição do historiador Luiz Antônio Simas se referindo a dinâmica na qual a cultura de matriz africana se estabelece na colônia. Tal citação apareceu na coluna do autor no jornal O Globo, quando o mesmo escreve sobre o livro de ficção “O crime do cais do Valongo”. (Disponível em: <https://ipeafro.org.br/livro-o-crime-docais-do-valongo-por-luiz-antonio-simas/> Acesso em: 27 de nov de 2021.)

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Neste capítulo, pretendo concluir os ensaios e análises do palimpsesto do Valongo, finalizando, por enquanto, este trabalho. Para tal, desejo entender a camada presente, sua marca no tecido urbano, assim como os fragmentos das preexistências que permanecem no mesmo. Pretendo compreender, e, talvez, até mesmo traçar, quem são os agentes atuantes na contínua escrita da camada contemporânea, e, principalmente, como essa escrita se define em um movimento de disputa a cerca da memória do contexto do Valongo. Em convivência com as contínuas tentativas de apagamento, uma ininterrupta resistência. A fim de entender a conjuntura atual do contexto do Valongo e o que temos hoje como o lugar de memória do cais, tanto fisicamente quanto simbolicamente, é necessário entender o começo dessa atual camada: o projeto do Porto Maravilha.

Fotografia do rito de lavagem do Cais do Valongo, fotografia de Christian Dinesen

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foto de acervo próprio, 2021

pedras polidas, desenhadas

e globalizadas

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São essas as características das pedras28 (polidas, desenhadas e globalizadas) do novo Porto Maravilha que se justapõem no solo do projeto mais audacioso e dispendioso da cidade e do país das últimas décadas. Com um custo total superior a R$ 8 bilhões de reais, foi considerado o maior projeto de parceria público-privada do Brasil. O gasto, assim como o projeto, foi justificado pela escolha da Cidade do Rio de Janeiro como sede de diferentes eventos: a Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas e Paraolimpíadas de 2016. O projeto tinha como intuito explicitado “transformar a área degradada do porto em um novo polo turístico, espaço de negócios, lazer e moradia” - pelo menos, era assim descrito o projeto em texto publicitário29. Para alcançar tal objetivo, grandes transformações na infraestrutura do tecido urbano foram propostas, sendo a mais impactante para a paisagem e para o território da região – principalmente da Praça Mauá – a implosão da Perimetral, via elevada que cortava o horizonte do Centro da Cidade por aproximadamente cinquenta e quatro anos. O tráfego que acontecia no elevado implodido foi levado para um túnel de 3.382 m de extensão que atravessa o subsolo da região. O chão, livre de viadutos, foi contemplado com um VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) que une a Rodoviária Novo Rio ao Aeroporto Santos Dumond. Como é fácil de imaginar, todas essas obras foram extremamente custosas. Além das transformações já citadas, o projeto ainda contou com a construção de um aquário, o AquaRio, e uma mudança no zoneamento da região - mais especificamente a elevação do gabarito construtivo do local, que passou a ser mais alto do que os gabaritos adjacentes. Mas, o grande centro de atenções ficou para a Praça Mauá, que foi transformada num grande espaço vazio, semelhante à espacialidade adotada nas reformas modernizantes do porto no início do século XX. Ali sugiram também o Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR) – projeto de arquitetura de Bernardes + Jacobsen - e o Museu do Amanhã – projeto de arquitetura de Santiago Calatrava. Assim como feito anteriormente neste trabalho criando analogias entre camadas materiais e a vocação do lugar na qual essas foram inseridas, retomo aqui tal ação visto que, novamente, percebo o uso de pedras que possuem imbuídas em si certas narrativas.

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No caso do projeto do Porto Maravilha, a narrativa parece ser bem direta: a modernização do local; a adequação dessa parte da cidade a uma lógica material, estética e econômica que incluiria o Rio de Janeiro na lógica de cidades globais. Essa nova narrativa se inscreve nas pedras tanto em sua materialidade quanto no desenho de paginação de piso escolhido para elas. A textura proposta dessa vez é aquela resultante do polimento: uma pedra que muitas vezes ganha um aspecto até brilhante quando exposta à luz; seu desenho é longilíneo, sendo cada placa de pedra muito estreita e muito longa. Quando tais placas se aproximam de espaços de solo gramado, a pedra tende a se rarear, formando uma paginação que sugere certa gradação até dar lugar total à grama. Vale ressaltar, no entanto, que não são tantas áreas verdes assim. A praça tende a ser árida, com muita superfície coberta de pedras e pouca superfície ajardinada, além da existência de poucas árvores. Tal configuração de solo e materialidade causam um certo efeito déjà-vu em quem é familiarizado com projetos de espaços públicos das grandes cidades globalizadas como Nova York, Berlim, Londres, Paris, etc., todos esses grandes centros urbanos tendo em comum a características de serem considerados importantes pontos de referência dentro da economia capitalista liberal. Portanto, não é sem fundamento apostar que essas cidades foram pensadas como modelos para tal projeto no porto carioca. A presença de uma obra do engenheiro e arquiteto espanhol Santiago Calatrava, presente nas principais cidades globalizadas, reforça essa correlação. Interessante perceber também que estas cidades citadas são no hemisfério norte, fato esse que quando tais materialidades e desenhos de piso são importados para o solo tropical carioca, causam um desconforto térmico, pela imensidão de concreto e falta de árvores e elementos de sombra. No entanto, inesperadamente, as pedras globalizadas, polidas e desenhadas, se atritam com as pedras do Cais do Valongo. A aproximação, ou melhor, o choque entre o projeto Porto Maravilha com o Cais do Valongo se dá durante as obras de reestruturação das vias urbanas da região. No decorrer de escavações para drenagem na Av. Barão de Teffé, em 2011, foram “descobertas”30 as pedras tanto do Cais do Valongo quanto do Cais da Imperatriz. “Eduardo Paes, que, no último sábado, foi acompanhar as obras de drenagem e se deparou com a novidade. - Fui lá no sábado vistoriar as obras, e, quando vi aquilo, fiquei absolutamente chocado. Vou fazer uma praça como em Roma. Ali estão as nossas ruínas romanas” (O Globo, 2/3/2011, apud. JORDÃO, 2015, p.14)

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30 As pedras as quais aqui me refiro são as presentes em toda a área abarcada no projeto Porto Maravilha, principalmente, as da nova Praça Mauá.


Interessante destacar que a Prefeitura, nos termos de seu principal representante, “se deparou com a novidade” e ficou absolutamente chocada. Ou seja, o Cais do Valongo surge por acaso e é pensado como novidade altamente impactante. Notável pensar também que, com o desenterrar das pedras, o projeto do Porto Maravilha se depara com a própria ruptura do discurso que o regia: uma ruptura com o desígnio de construir a imagem da cidade do Rio de Janeiro em um contexto mega contemporâneo, que se encaixasse em uma matriz estética globalizada. Assemelhando-se, assim, às diversas reformas já tratadas ao longo deste trabalho, todas com o mesmo intuito modernizante e desejo de abarcar a matriz estética em voga de sua respetiva época. A Prefeitura que impõe uma nova narrativa de futuro e encontra com o passado que ela mesma ajudara a enterrar. Ou seja, enquanto as obras no porto olhavam para o futuro quase que com antolhos - até nomeando um dos espaços culturais como “Museu do amanhã” - as pedras ressurgem com uma ferida na memória da cidade mal resolvida e latente, que, apesar de soterrada, não foi cicatrizada. Com o resgate dessas pedras aos olhos da cidade, o grupo de profissionais envolvidos nas escavações buscou contato com as diferentes instanciais governamentais voltadas para os direitos e a cultura dos petros. Mais especificamente, foram contatados o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro (Comdedine), a Superintendência de Promoção da Igualdade Racial (Supir), a Coordenadoria Especial de Políticas PróIgualdade Racial (Ceppir), a Fundação Palmares e o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Negro (Cedine). Essas organizações reivindicaram, através de um documento, a importância identitária e de memória do local. Afinal, a ancestralidade de mais da metade da população do país é oriunda desse cais, ou de outros pretos que, apesar de não terem desembarcado no Valongo, passaram por processos semelhantes em outros locais do país. Assume-se, portanto, a importância simbólica e de memória tanto do cais quanto de toda a região da Pequena África, como é descrito na carta de 24 de junho de 2011. Em reuniões posteriores com o subsecretário de Patrimônio Cultural da época, o arquiteto Washington Fajardo, foi promulgado o Decreto nº 34803, de novembro de 2011, no qual foi o criado o Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana na Zona portuária e de um Grupo de Trabalho Curatorial, que trabalharia na construção e integração da memória africana e afrodescendente do contexto. O circuito foi estabelecido incluindo, além do Valongo, as seguintes localidades: Cemitério dos Pretos Novos (IPN), a Pedra do Sal, o Jardim Suspenso do Valongo, o Largo do Depósito e o Centro Cultural José Bonifácio (CICALO; VASSALO, 2015, p.249).

31 Tais objetos, em sua maioria de couro, são utilizados para delimitar a visão periférica de animais de montaria, evitando que esses se assustem.

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Síto Arqueológico do Cais do Valongo, 68 fotografia de Oscar Liberal


Em 25 de abril de 2012, o Cais é registrado como Sítio Arqueológico reconhecido e protegido pelo IPHAN (Lei Federal 3924/61). Outro fator que contribuiu para a existência do Cais como o conhecemos hoje foi o alinhamento do desenterrar das pedras com um momento oportuno no que diz respeito aos lugares de memória relacionados à escravidão, já que, desde meados dos anos noventa, a UNESCO possui um projeto de mapeamento e demarcação desses territórios. O projeto tem como objetivo dar evidência a esses lugares de memória escravocrata a fim de conjecturar como tal violência para com os povos africanos estruturou o mundo contemporâneo do modo que o conhecemos e para que tal tragédia não mais se repita. A iniciativa não só pretende discutir e demarcar tais lugares de memórias, mas também leva em consideração os movimentos de resistência desses lugares ao redor do mundo. No ano de 2010, o antropólogo e professor da UFF Milton Guran assumiu o cargo de representante brasileiro do Conselho Científico Internacional do projeto citado. Logo, quando no ano seguinte as pedras trazidas aos olhos da cidade, o Valongo se iluminou como uma das principais localidades de tal projeto de mapeamento e pesquisa em todo mundo. Após a indicação e de um trabalho em conjunto com os movimentos negros, entidades religiosas e moradores atuantes da Pequena África, o Valongo e todo o contexto simbólico e cultural atribuído a ele foi oficialmente incluído e reconhecido como Patrimônio Histórico da Humanidade em 2017. Há de se pensar que certas coisas têm um momento ideal para acontecer, as pedras do Valongo terem sido dessoterradas - e não descobertas como se foi defendido na época – justamente nesse cenário cada vez mais forte dos movimentos negros de resgate e afirmação desses lugares de memória, ancestralidade e resistência, foi o motivo definitivo para a permanência das pedras expostas como hoje persistem. O próximo passo dado após a decisão de manter as pedras expostas além de todo o trabalho de recuperação e escavação dessas por equipes de arqueólogos, geólogos e geógrafos - foi o desenvolvimento de um projeto para tal lugar de memória. O sítio arqueológico se deu na Praça do Jornal do Comércio – antigo Largo do Valongo e Praça Municipal. Propôs-se, então, que a praça ganharia em sua configuração a presença das pedras e, necessariamente, a praça e a Rua Barão de Teffé se realinhariam para viabilizar a emergência do cais. Contudo, observando o desenho da praça antes e depois do projeto que abrange o sítio arqueológico, percebemos que não houve grandes e significativas mudanças.

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Em locais de memória é importante ser pensada a relação que se quer estabelecer entre o lugar e o indivíduo que ali percorre. Ao se estabelecer essa conexão, o indivíduo entende a importância e relevância de tal lugar. Posso aqui citar o Museu Judaico de Berlim32 como um dos exemplos mais bem sucedidos nessa relação indivíduo para com lugar. Como o Cais do Valongo, o museu citado lida também com uma memória trágica e de grande ferida na história. Porém, no que se refere à relação com uma pré-existência que carrega a memória a ser destacada, há um outro projeto que parece se aproximar mais do Cais: a Musealização da Área Arqueológica da Praça Nova do Castelo de São Jorge, do arquiteto Carrilho da Graça, em Lisboa. A história desse projeto se assemelha a do Cais pelo acaso do encontro com as pedras: assim como no caso do Valongo, as pedras33 achadas no Castelo de São Jorge (uma parte foi escavada na década de oitenta e outras já no século XX) foram encontradas durante uma obra para ampliação do estacionamento do local; após a descoberta – neste caso, as ruínas foram realmente descobertas – a reforma sofreu uma paralização para que o sítio arqueológico fosse estudado e escavado pelos profissionais adequados. Após escavação e estudo das pedras ali presentes, foi aberto um concurso de arquitetura com o intuito de transformar o local em um sítio de memória. Acho importante ressaltar que aqui pretendo comparar a maneira como cada sítio arqueológico foi tratado e não explorar a simbologia e significado que cada um desses lugares carrega. Obviamente, são histórias e memórias diferentes: um representa ruínas de ocupações de civilizações passadas (Civilização Árabe), no caso das pedras encontradas em Lisboa; outro carrega memórias de luta, resistência e tentativas de apagamento, no caso das pedras do Valongo. Faço tal aproximação por notar que, apesar das circunstâncias semelhantes nas quais esses resquícios históricos ressurgiram no território e paisagem, a maneira como foram tratados foi bem diferente. Um dos primeiros contrastes é a importância dada ao sítio lisboeta, a ponto da função anteriormente destinada para o local, que seria um estacionamento, ter sido abandonada para dar lugar ao sítio histórico. Se compararmos com o projeto de reforma da Praça do Jornal do Comércio, percebemos que aqui, o sítio arqueológico é que precisou se adequar ao tráfego da cidade. Não houve mudanças no desenho dos limites da praça para ressaltar a importância do sítio arqueológico. Ou seja, as vias adjacentes à praça (Avenida Barão de Teffé e Avenida Venezuela) continuaram com seus desenhos anteriores sem quaisquer alterações. 32 O museu foi projetado por Daniel Libenskind e teve sua abertura no ano de 1999. O centro cultural é conhecido por proporcionar sensações distintas, incômodas e peculiares aos indivíduos que nele percorrem. Tais fenômenos foram pensados pelo arquiteto a fim de simular os desconfortos que o povo judeu sofreu no decorrer do nazismo.

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33 As pedras encontradas se referem a diferentes épocas, algumas seriam referentes a uma das ocupações humanas mais antigas, registrada como sendo da Idade do ferro; outras são datadas do século XI quando a região sofreu uma ocupação mulçumana. (Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/01-20123/musealizacao-da-areaarqueologica-da-praca-nova-do-castelo-de-s-jorge-carrilho-da-graca-arquitectos> Acesso em: 28 de nov de 2021.)


Musealização da Área Arqueológica da Praça Nova do Castelo de S. Jorge, projeto por Carrilho da Graça Arquitectos, fotografia de Fernando Guerre e Sérgio Guerra

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Vista aérea do sítio arqueológico do Cais do Valongo


Tal escolha constrange a escavação do Cais até os limites impostos por essas vias, mesmo que se soubesse que ela abrangeria uma área maior da região. A área escavada ganhou uma lógica espacial que vem da cidade para ela e não o oposto, como seria o ideal. O cais se encontra podado, limitado e deformado pela posição constrangedora e desrespeitosa das duas avenidas. É como se o fluxo de veículos da cidade não pudesse ser comprometido, não importando o valor de memória do local. Outra característica de projeto a ser analisada, numa comparação entre a área museológica do Castelo de São Jorge e o Cais do Valongo, é a relação dos fragmentos e ruínas com o indivíduo. O projeto do arquiteto Carrilho da Graça promove um percurso entre as ruínas, que permite uma aproximação destas e, ao mesmo tempo, recria certas espacialidades, tornando a compreensão e imersão no passado histórico mais plenas. Aqui no sítio arqueológico do Valongo, o contrário acontece: mantem-se certa distância entre fruidor e materiais históricos, não se permitindo nenhum percurso controlado que aproxime o visitante das pedras originais. Como a escavação não trouxe à luz o cais inteiro, sua espacialidade tampouco se revela ao visitante. O resultado é a pouca compreensão da configuração original do local e nenhuma, ou pouca, percepção das diferentes camadas de pedras que o compõem. Fica-se com a impressão que os visitantes tenderão a não compreender a plena importância do lugar, ainda que haja placas explicativas no local. Além disso tudo, o acesso principal ao Cais do Valongo é feito através de uma escada/rampa que, hoje em dia, após quase uma década da intervenção no local, se encontra em um estado de forte degradação, com algumas pedras meio soltas. Esse fato nos leva a um outro ponto que deve ser explorado com urgência no trabalho: o descuido do poder público com o local. O pouco cuidado não é novo. Em 2018, dada a falta de manutenção e cuidado com o sítio, o Cais do Valongo quase perdeu o título de Patrimônio Histórico da Humanidade34, obtido um ano antes. Em julho de 2020, o descuido, agravado pela pandemia, foi evidenciado com a notícia do alagamento do local somada ao relato que um funcionário da Prefeitura que foi eletrocutado por fios desencapados enquanto fazia a manutenção do lugar35. Outro fato que aponta para o modo negligente com que a Prefeitura lida com o Cais e sua história está na guarde e mostra dos artefatos também encontrados durante as escavações nas obras do porto. São objetos e fragmentos que somam por volta de 1,3 milhões36 de unidades, indo desde objetos íntegros pequenos e seus fragmentos (como louças, vidros e cerâmicas), até objetos maiores, como rodas de locomotivas, canhões e âncoras. 34 (Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/cais-do-valongo-pode-perder-titulo-depatrimonio-historico-da-humanidade.ghtml> Acesso em: 28 de nov de 2021) 35 (Disponível em: <https://portalleiamais.com.br/brasil/funcionario-da-prefeitura-leva-choque-ao-tentar-tiraragua-do-cais-do-valongo-alagado-ha-dias/> Acesso em: 28 de nov de 2021) 36 (Disponível em: <https://diariodoporto.com.br/museu-do-valongo-espera-acao-do-governo-federal/> Acesso em: 28 de nov de 2021)

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Dentro dessa lista de peças estão também alguns objetos de matriz religiosa africana. Tais artefatos ficam sob cuidado do Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana (LAAU), localizado temporariamente no Galpão da Gamboa37, que foi criado, como um instituto de pesquisa, especificamente para manutenção, cuidado e análise e catalogação de tais fragmentos. O planejamento era que todos esses objetos fizessem parte do Museu do Valongo, que seria alocado no edifício das Docas de D. Pedro II. Porém, desde a criação e recolhimento dos artefatos pelo LAAU, entre 2014 e 2017, esses objetos permanecem guardados, sem ter a devida atenção e exposição ao público. As pedras polidas, desenhadas e globalizadas apontam para um desejo de transformação do Rio de Janeiro numa cidade imersa no capitalismo global, que tem tentado reduzir as principais cidades do mundo a mercadorias. Por aqui, o processo não deslanchou plenamente e as pedras polidas, sozinhas e escaldantes, esperam que os turistas globais venham visitá-las. O que precisamos entender é que um dos motivos para o Porto Maravilha ter fracassado foi exatamente sua proposta de seguir um ‘modelo’ global. Dar àquela área do Rio de Janeiro uma aparência e programas similares àqueles recém desenvolvidos em Londres, Barcelona ou Nova York transformou essa parte de nossa cidade numa cópia sem importância. Para que vir ao Rio conhecer o Museu do Amanhã se o Museu Gugenheim de Bilbao é mais perto? Para que vir a Rio conhecer a roda gigante, se a de Londres é maior? Para que vir ao Rio ver as pedras polidas, estreitas e longas, se no paisagismo da High Line, em Nova York, elas fazem sentido enquanto aqui não o fazem? Faltou ao Porto Maravilha “alma”. E é obvio que parte dessa alma poderia vir exatamente das pedras do Cais do Valongo e de toda a história e cultura preta que ficou preservada nessa região. Mas, parece que os grupos que ocupam o poder na nossa cidade não aprendem; não saem dessa posição colonialista. Os relatos anteriores apontam, infelizmente, para uma negligência e desvalorização do poder público com as memórias do local, quase que repetindo o tratamento no qual a região ao longo dos anos, veio a conhecer tão bem das autoridades públicas: o esquecimento. Porém, em um movimento radicalmente contrário do descuido público ao local, a região é povoada e ocupada por grupos de resistência fortemente atuantes, tanto nos dias atuais como no passado também.

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Construção com inspiração na arquitetura industrial inglesa, bem tombado municipal desde 1986.


fotos de Gustavo Miranda, Agência O Globo, 2016

artefatos armazenados no LAAU

cachimbos garrafas e vasos de usados por negros escravizados. vidro e stoneware

A pedra fundamental da Docas Dom âncora Pedro II, de 1871 resgatada

pedaço de chaleira resgatada

canhões, âncoras e pedaços de navio

louças e faianças do século XIX

antigo ferro de passar roupa

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pequena

Thiago Freitas e sua filha Yasmim na Ladeira do Valongo, Fotografia de João Maurício Bragança

grande

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África

*

*

Termo Inspirado na fala dita pela arquiteta e urbanista, e atualmente vereadora, Tainá de Paula ao longo de uma conversa sobre este trabalho.


Neste fragmento, que nos direciona para o encerramento deste trabalho, tenho a intenção de explorar a camada mais resistente de todo o palimpsesto formado pelo contexto do Valongo: os seus ocupantes. Ressalto que tal assunto possui grande vastidão de conteúdo, porém, neste trabalho não pretendo esgotá-lo. Pretendo, sim, através de mais essa camada, adicionar à leitura do palimpsesto do Valongo, apesar de toda a violência e dor imbuídas na memória do local, a existência de muito afeto e encantamento oriundo de quem escolheu a região como seu como lugar. Apesar de todas as contínuas tentativas de apagamentos sofridos por esse território, os pés que ali se fincam permanecem com raízes fortes, talvez por essas serem transatlânticas. A relação de pertencimento do povo preto com a região da Pequena África38, que abarca, aproximadamente, os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, se dá desde o povoamento e ocupação do território, na segunda metade do século XIX. Foi ali que ficou parte dos escravizados que conseguiam a alforria. É importante salientar que a população escravizada na época citada não se tratava de uma pequena porção dos habitantes; segundo o censo de 187239, ultrapassavam em 30% o número de pessoas livres da cidade. Com o correr dos anos, após a abolição da escravidão e o aumento da produção e venda cafeeira, a região continuou a receber e ser ocupada pela população preta, agora pessoas livres. Foi também na segunda metade do século XIX que ocorreu a diáspora baiana na região, contribuindo ainda mais para a presença da cultura afrodescente no contexto. A força desse grupo foi tamanha que organizações de trabalhadores foram criadas, como, por exemplo, a Companhia dos Pretos, que posteriormente recebeu o nome de Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, que é considerada uma das primeiras associações de trabalhadores a reunir de forma majoritária pretos em cargos dentro da organização, alguns fazendo parte também da direção. (ARANTES, 2005.) À vista de toda essa conjuntura que teve lugar na região, deixa de ser um mero espaço e se torna um lugar, com povo, memória, danças, comidas, religiosidades, todas com forte matriz africana. A região é conhecida por ser o berço do samba, graças as rodas de samba que aconteciam na Pedra do Sal, local de grande importância na memória da região; e também em festas promovidas por Tia Ciata, baiana mãe de santo e também de quatorze filhos, que veio para o Rio aos vinte e dois anos de idade. As citadas festas ocorriam em sua casa situada na rua Visconde de Itaúna, 177; festas essas que recebiam convidados ilustres como Pixinguinha, Donga, Heitor dos Prazeres, João da Baiana, Sinhô e Mauro de Almeida. Em uma destas, mais precisamente em 1916, nasceu a música “Pelo telefone”, composta por Donga, que é considerada o primeiro samba registrado. 38 Termo cunhado pelo compositor e artista plástico Heitor dos Prazeres (1898 - 1966) 39 O censo foi realizado durante o império de D. Pedro II, tal documento foi o primeiro e único a incluir a contabilização da população escravizada. O império contabilizou a população total de 9.930.478, sendo 1.510.806 desses eram pessoas escravizadas. Outra informação do levantamento foi a de que o império era formado por 58% dos residentes que se consideravam pretos ou pardos e 38% de residentes brancos, somados a 3,8% de imigrantes e 4% de indígenas.

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Tais festas, vale ressaltar, além de serem um ponto de encontro dos moradores, eram também um modo de resistência, já que o dito ritmo musical (na verdade andar com instrumentos de percussão na rua) era enquadrado como crime segundo a Lei da Vadiagem, promulgada em 1890, dois anos após a lei áurea. Outra prática de origem afrodescendente eram as Casas de Zungu, onde se preparavam comidas com angu, além da presença terem sempre outras manifestações culturais como música e o candomblé. Assim como as festas de Tia Ciata, essas casas sofriam forte repressão. Mas, pouco a pouco, foram conseguindo seus espaços. Uma das mais famosas e resistentes casas de zungu se situava no do Largo São Francisco da Prainha, abaixo do Morro da Conceição (RODRIGUES, 2013, p. 19). Mais para a metade do século XX, a região da Pequena África vê surgir um outro movimento de resistência: o grupo Filhos de Gandhi. O grupo teve origem em 12 de agosto de 1951, e permanece em atividade até os dias atuais completando setenta anos de existência. A associação foi fundada por trabalhadores da região portuária, se assemelhando a origem da Companhia dos Pretos já citada acima. Os Filhos de Gandhi, porém, possuem natureza recreativa e de manifestação da cultura afrodescendente, com o intuito de valorizar e manter os ritos do afoxé, como o próprio grupo se descreve. Com tamanha longevidade e atividade focada em enaltecer e manter a cultura de matriz africana viva, o grupo se estabelece como um dos mais importantes marcos culturais da Pequena África. As atividades religiosas são outro componente muito característico e forte na cultura preta da Pequena África, considerada uma área de grande sensibilidade e força religiosa, por carregar tantas história em suas pedras, como salienta a ialorixá Mãe Edelzuita de Oxaguian: “aqui é a raiz de tudo”. Além da figura famosa de Tia Ciata na religião, outra pessoa de notoriedade era o pai de santo João Alabá de Omulu, que comandava o terreiro considerado o candomblé originário da Pequena África.

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Tia Ciata (1854 –1924)


Hoje em dia, com as pedras do Cais do Valongo de volta aos olhos da cidade, que tinham o intuito de servirem à certos grupos da cidade e não aos moradores do local. virou tradição, desde o ano de 2012, o rito de lavagem das pedras do Cais. Esse ato tem a finalidade de homenagear a resistência, a luta e a dor daqueles que por ali passaram. A região ricamente se desenvolveu com esses personagens que fincaram suas raízes no chão da região do Valongo e afins, formando uma dinâmica única de agir e se situar no local, com sua própria cultura, ritos e lugares de memória. Enquanto o lugar se construía culturalmente encantando com esses movimentos, o poder público agia na região at ravé s de reformas, que tinham o intuito de servirem à certos grupos da cidade e não aos moradores do local.

Rito de lavagem do Cais, fotografia de João Maurício Bragança

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40 O termo (gentrification) foi usado pela soció cidade de Londres. A palavra tem o propósito de d significados de zonas antigas e/ou populares das cid moradores de rendas mais elevadas.


óloga inglesa Ruth Glass, em 1964, durante seus estudos sobre a definir os processos de mudança das paisagens urbanas, aos usos e dades que apresentam sinais de degradação física, passando a atrair

Desfile de carnaval do grupo Afoxé 81 Filhos de Gandhi


Roda de capoeira no Cais do Valongo, fotografia de Maria Buzanovsky

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Como vimos neste trabalho, tais tentativas de apagamento e de transformação dessa área se repetiu agora no projeto Porto Maravilha. Se a implantação desse projeto não resultou plena e vitoriosa como pretendiam, por outro lado, ela despertou a ganância e o desejo de novos agentes transformadores por essa região, que começa a ser ameaçada de sofrer gentrificação40. Indícios de tal fenômeno podem ser notados através do aumento dos preços de moradia do local; empreiteiras desejando construir empreendimentos; empresários querendo ocupar edificações locais. Um dos empreendimentos recentes, especificamente da construtora Cury, surpreende pelo nome “Rio Wonder Residences Cais do Valongo”. Como já abordado no trabalho, nomes contam narrativas, denunciam gestos e intenções. Nesse exemplo, se torna até sintomático a tentativa de esvaziamento de significado do local, transformando a memória em produto. Porém, o cais representa um lugar de memória em disputa, e assim, como já dito, existe na direção contrária, movimentos de luta e permanência no local.

40 O censo foi realizado durante o império de D. Pedro II, tal documento foi o primeiro e único a incluir a contabilização da população escravizada. O império contabilizou a população total de 9.930.478, sendo 1.510.806 desses eram pessoas escravizadas. Outra informação do levantamento foi a de que o império era formado por 58% dos residentes que se consideravam pretos ou pardos e 38% de residentes brancos, somados a 3,8% de imigrantes e 4% de indígenas.

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Odilon, Thainá e Jéssica, moradores da Ladeira do Valongo, fotografia de João Maurício Bragança

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o des fecho

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Este trabalho se transformou muito ao longo de sua jornada. Ele começou como resposta ao meu desejo de explorar o conceito de palimpsesto urbano na cidade do Rio de Janeiro. Por isso surgiu o Valongo, com seus fragmentos, escritas e reescritas, que pareceu ser um bom local para servir de estudo de caso, com muita potência para análise e pesquisa. Porém, pouco a pouco, o estudo sobre o Cais me levou a caminhos inesperados e surpreendentes; caminhos que foram sendo descortinados ao longo do processo, e que retiraram o Valongo do lugar de mero objeto de estudo, colocando-o como protagonista; no lugar de algo muito maior, carregado de subjetividade e de emoção. Num primeiro momento, talvez influenciada pelos tempos pandêmicos difíceis em que desenvolvi o trabalho, eu apenas assistia a história e os fragmentos do Cais se desenrolarem na minha frente, de maneira triste, com muito pesar; lendo tudo de maneira melancólica, como melancólico eu pensava ser esse lugar. Sim, a região do Valongo foi palco de uma das maiores atrocidades já cometidos pela espécie humana. E o tráfico negreiro que tinha no Cais do Valongo sua principal porta de entrada no Brasil toma uma proporção ainda mais assustadora, já que, presume-se, quase um milhão de escravizados desembarcaram ali, tornando-o o maior porto negreiro das Américas e o segundo maior do mundo. As consecutivas tentativas de apagamento dessa memória do território, através da criação de uma narrativa dita oficial, que se punha de maneira constante a pintar e rasurar todo e qualquer rastro de memória do povo africano no local, tornavam tudo ainda mais cruel e desrespeitoso. Quando fui desvelando essa narrativa, assumi realmente uma postura

sem esperanças,

quase como se a narrativa oficial fosse de fato vencedora e rasurasse tudo envolta, extirpando do lugar até mesmo seu encanto. Pensei até em citar Walter Benjamim

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quanto ele propôs que a história tradicional é aquela dos vencedores: “Todos os que até hoje venceram participam de um cortejo triunfal em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão”. Porém, aos poucos, com o desenvolvimento dessa pesquisa, entendi que a memória do Valongo está em constante disputa, enfrentamento e afrontamento. Ou seja, percebi finalmente que existe sim uma narrativa oficial, na sua constante tentativa de rasurar e apagar a memória preta, mas, ao mesmo tempo, do lado oposto, existem agentes reescrevendo e ressignificando toda essa memória e história do lugar. Ou seja, esse território é igualmente palco de resistências, afetos e muito encanto. Quando compreendi tal narrativa de ressignificação, o trabalho passou a abrir para mim novos olhares e possibilidades: não era mais uma visão cabisbaixa (e ressentida) do apagamento do local pela narrativa oficial, mas sim a percepção de que todas as tentativas de soterrar e rasurar a memória do Cais e de toda a região fracassaram e, agora, vivenciamos seu ressurgimento, não unicamente no seu mal feito dessoterramento, mas, principalmente, através daqueles que nesse território vivem e por ele lutam. 41 Walter Benjamin (1892 - 1940) foi um filósofo, ensaísta, tradutor e crítico literário alemão. A referência utizada faz parte do texto “Teses sobre o conceito da história”, de 1940.

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