INTRODUÇÃO
Apesar de ter sido ocupado por mais de 150 povos indígenas, como os Tupis, os Tapuias, os Tremembés e os Caraíbas, antes da colonização e extermínio dos mesmos, o território onde hoje se localiza o estado do Piauí só foi elevado à categoria de capitania independente em 1811, quando o seu desmembramento do Maranhão foi expedido por D. João VI através de uma Carta Régia (Neves, 2006, p.46). Do Brasil Império para a atualidade, o desenho cartográfico do estado se alterou bem como seus costumes que absorveram tanto aspectos de identidade dos povos originários quanto características dos responsáveis pela sua colonização: a fala, os trejeitos, os sons e até a forma que socializamos são heranças antepassadas intrínsecas ao processo de territorialização que existiu no espaço. Sobre esse desenvolvimento Raffestin infere que o espaço precede o território sendo o último caracterizado como tal apenas quando um sujeito se apropria, de forma programada, do anterior: “ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente, o ator ‘territorializa’ esse espaço” (Raffestin, 1993, p.143).
A ação antrópica que transforma espaço em território vem imbuída de relações de poder e dominação, tornando o produto uma simbiose do cotidiano daqueles que o territorializaram: “é o conjunto das relações mantidas pelo homem, enquanto pertencente a uma sociedade, com a exterioridade e a alteridade, com ajuda de mediadores ou instrumentos” (Raffestin, 1988, p.265). A identidade territorial é estabelecida quando se reconhece uma origem comum àqueles que habitam o mesmo local bem como o compartilhamento de características entre os mesmos (mesma língua, costumes, tradições e etc)
Um dos produtos mais complexos dessa ação é a linguagem. O léxico brasileiro se fragmenta e difere de sentido em tantos lugares que, embora seja falado o mesmo idioma, a compreensão se perde muitas vezes por conta dos dialetos próprios de cada estado. Essa variância da língua que se caracteriza por particularidades (gírias, sotaques, neologismos e etc) diferentes da norma padrão do idioma oficial é um marcador cultural fortíssimo e serve não só como agente da memória oral de um povo, mas também como fator de identificação do mesmo com as suas raízes: é um produto da interação entre indivíduo e território. Um desses dialetos carregados de individualidade é o “Piauiês”: forma de falar típica do Piauí que combina sintaticamente palavras do português formal e expressões próprias do estado. Apesar de cotidianamente utilizado por piauienses para comunicação, o dialeto próprio não é explorado por extensa literatura: as dissertações, artigos e ensaios que tratam sobre linguística regional raramente se aprofundam nos estudos de aspectos identitários que fundamentam o Piauiês. No entanto, muito embora sejam mais superficiais ao demonstrar a
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linguagem, os glossários e dicionários descontraídos que desmembram o falar regional são mais comuns.
Porém essa ausência de utilização do dialeto na literatura não se aplica ás atuais mídias. Por ser um recurso de identificação cultural entre o personagem e o espectador, o Piauiês acaba sendo empregado em produções audiovisuais não só com o objetivo de popularizar a obra, mas de disseminar o nosso modo defalar para além das fronteiras e principalmente de compor a figura do piauiense que está sendo retratado. Na produção cinematográfica ‘Ai que Vida!’ (2008), de Cícero Filho, no show de humor ‘Marminino’ (2016) e no álbum ‘PIAUÍ’ (2020), do humorista Whindersson Nunes, os atores não falam Piauiês de maneira pontual ou forçada, mas sim naturalmente, como algo intrínseco ás suas personalidades e cotidianos
Em contraponto, temos a produção ‘Cheias de Charme’ (2012), escrita por Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, e distribuída pela Rede Globo de Televisão, cuja antagonista é a personagem ‘Chayenne’ (interpretada por Cláudia Abreu): uma cantora do interior do Piauí descoberta por um empresário da capital e levada ao estrelato em âmbito nacional. A controversa linguagem usada por essa figura local alegórica na novela é definida por Viana (2013, p.140) como “fruto de mediações e discursos múltiplos, que apresenta traços como baixa escolaridade, sotaque forte...” e, portanto, constitui um personagem caricaturizado.
Com a intensidade e a velocidade que esses meios se alteram ao longo do tempo, também são produzidas sensações mais efêmeras, contudo não menos significativas e agregadoras. Segundo Stuart Hall (1997, p.02) “estes são os novos ‘sistemas nervosos’ que enredam numa teia sociedades com histórias distintas, diferentes modos de vida, em estágios diversos de desenvolvimento e situadas em fuso horários diferentes” que muito embora nos bombardeiem constantemente de informações, também nos apresentam aquilo que é novo, diferente e, portanto, despertam o nosso interesse. O retrato de uma outra realidade é importante não só para quem a desconhece e deseja aprender sobre essa, mas também é vital para que o sujeito produto daquela existência reproduzida se sinta representado.
Alguns dos motivos que justificam essa pesquisa estão na compreensão do uso do dialeto como algo mais profundo que simplesmente uma troca de mensagens obra espectador: a que se deve essa dimensão identitária do Piauiês que agrega ao falante características tão específicas que permitem a ele se reconhecer, mas também se diferenciar e entender o outro como diferente? Por que a construção da figura do piauiense utilizando o falar local é distinta entre as obras ainda que o dialeto seja o mesmo? Qual o papel do processo de identificação de quem consome na popularização dessas obras? Quais características diferenciam o conceito de caricatura de representatividade e por que esse último é de suma relevância para desconstruir parâmetros coloniais sociais?
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Ao estudar conceitos como identidade, territorialidade, linguagem, memória oral, representatividade e novas mídias objetiva se apontar aspectos que tornam o Piauiês como recurso de identificação cultural, mas também analisar a relação popularização identificação das obras que utilizam o dialeto, investigar a construção da figura do piauiense sob a dualidade da representação verossímil ou caricaturizada e pesquisar acerca de questões de preconceito linguístico e decolonialidade associadas ao uso do dialeto. Para isso recorreu se a pesquisa exploratória bibliográfica através do estudo de caso das obras escolhidas, bem como conceitos teóricos de Raffestin (1993), Hall (1997), Haesbaert (1997), Saussure (2006), Viana (2013) Por conseguinte, foram interpretados temas associados cujo conhecimento é substancial não apenas para responder as indagações que justificam esse trabalho, mas também para abrir precedente para discussões mais profundas sobre os assuntos abordados
1. Territorialidade
1.1 “O lugar de origem é xiscom1 a individualidade do sujeito!”
A territorialidade como fábrica de identidade e cultura
Segundo verbete escrito por Brandão (2015) é consenso entre as ciências sociais pensar que nem o sujeito se constitui alheio ao seu contexto e nem a sociedade é um conjunto externo ás peculiaridades individuais de cada um. No entanto apontar a relação dialética entre identidade e sociedade é um estudo posterior ao entendimento de que o espaço/território é sua base fundadora. O conceito de territorialidade é constantemente associado a um sentido de apropriação ou a um sentimento de pertencimento, sendo que esta primeira dinâmica de posse pode ser entendida tanto como um controle palpável sobre uma dada seção do espaço por meio de instituições ou conglomerados e a segunda, na perspectiva de Haesbaert (2004, p. 42), apenas um apoderamento afetivo simbólico da identidade territorial. Desta forma, se aponta o caráter dual que a dinâmica territorial comporta:
Sempre e ao mesmo tempo, mas em diferentes graus de correspondência e intensidade, uma dimensão simbólica e cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais como forma de ‘controle simbólico’ sobre o espaço onde vivem e uma dimensão mais concreta, de caráter político disciplinar: a apropriação e ordenação do espaço como
1 Expressão piauiense que significa “em diagonal com”. Forma inteligente que o piauiense encontrou para ensinar um endereço. Ex: "A casa de João fica ‘xis com’ o Bar do Marcos”. Nesse caso, utilizou se a expressão para inferir que a territorialidade é um conceito transversal a identidade.
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forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos (HAESBAERT, 1997. p. 42)
Ao analisar a territorialidade sob a vertente mais simbólica cultural, tem se como definição que a sua existência é “produto da apropriação feita através do imaginário e/ou da identidade social sobre o espaço” (HAESBAERT, 1999. p. 39), portanto essa se torna indissociável da figura humana que se apropriou e dos costumes e valores que ali nasceram Segundo Lefebvre (2000, p. 191 192) quando ocorre “a dominação do espaço natural para servir as necessidades de um grupo, este se apropria dele” dando origem ao que conhecemos como sociedade. Sendo território indivíduo elementos intrínsecos, posto que precisam um do outro para surgir e sobreviver, o lugar de origem deixa de ser só um palco para o cotidiano e toma dimensão de suporte para a identidade cultural de uma sociedade que é constituída não só na relação com territórios físicos, mas também:
Por relações com os territórios abstratos como línguas, religiões, tecnologias, etc. Esta relação é então organizada segundo uma série de regras, comunicabilidade que está implícita na mesma relação societária (RAFFESTIN, 1988. p. 266)
O sentimento de cultura partilhada que conecta um povo ao seu lar é pauta desde o Estado Novo, década de 1930, onde o país buscava implementar uma política cultural que promovesse essa ideia de identidade nacional unificada. Àquela época a personalidade atribuída ao Brasil promovia um passado colonial e se esquecia dos regionalismos que caracterizavam a identidade nacional como diversa e original. A memória familiar, a linguagem e as tradições que existem pelo Brasil fundamentam de forma mais fidedigna sua identidade do que um passado distante repleto de estrangeirismos. Segundo Halbwachs (2006) a memória não é apenas uma questão interna e individual, mas uma construção da sociedade, uma espécie de fenômeno coletivo que, diante dos pontos de contato entre as memórias individuais, se constitui uma base comum para o todo e essa base está intimamente ligada ao lugar, pois “não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial” (p.98). Diante do exposto, entende se que território, memória e identidade fazem parte de um mesmo conjunto que compreende vivências, tradições e linguagens e podem definir a essência de um agrupamento de pessoas. O contexto sociocultural do indivíduo se reflete assim em seu léxico posto este é produto das experiências anteriormente mencionadas e vínculo vitalício entre sujeito e sociedade:
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O universo semântico se estrutura em dois polos opostos: o indivíduo e a sociedade. Dessa tensão em movimento se origina o léxico (BIDERMAN, 1978. p. 139).
2. Língua/Linguagem
Num tô dizendo?
A linguagem como forma de conexão com as raízes
Ao compreender que a língua é a forma de conexão de indivíduos de uma mesma sociedade entre si e com o seu próprio território, faz se necessário explicar as questões que a compõem.
O estudo da Gramática que privilegia as normas e regras cultas da língua portuguesa acaba por excluir outros tipos de comunicação os considerando incorretos. No campo da Sociolinguística já se tem uma visão mais flexível: essa se preocupa com o uso da linguagem em uma perspectiva social cotidiana onde o principal objetivo é a comunicação humana. As relações sociais possibilitadas pelo falar são mais valiosas do que a norma, considerando o ‘certo’ ou ‘errado’ apenas uma questão de desentendimento na recepção da mensagem no contexto daqueles que conversam.
Por conseguinte, há a diferença entre língua e dialeto: segundo Saussure (2006) a língua é um fato social distinto dos outros fatos sociais da humanidade, posto que ela é um sistema de signos usados pelo ser humano para emitir conceitos, ideias, dar sentido aos fenômenos. O sujeito faz uso da língua para o diálogo, mas não pode criá la ou modificá la pois a mesma segue uma convenção implementada por uma comunidade linguística através dos conceitos e dos signos pré estabelecidos, e são esses preceitos que possibilitam a compreensão da mensagem.
Já o dialeto pode ser classificado como uma mudança sincrônica diatópica da língua, isto é alterações do falar que dependem de determinadas situações. No caso do dialeto abordado por este artigo: o Piauiês é uma linguagem alterada devido a sua região ou território geográfico. Bizzochi (2006, p.12) classifica o dialeto como qualquer outra forma da língua que “não seja a oficial de um país” Em abordagem mais profunda: as nuances sociais, culturais e históricas de um determinado local são vitais para sua construção cultural como um todo Sendo o falar também parte importante dessa constituição, a língua ganha características próprias, provocando no sujeito falante um processo de identificação que ao tempo que o
2 Expressão piauiense que significa “ora essa, onde já se viu?”. Ex: “quer corrigir meu Piauiês só por que é do Sul, mas eu num tô dizendo!”. Nesse caso, utilizou se a expressão como trocadilho para inferir que se fala a língua da forma que se sabe e nem por isso ela é incorreta
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2.1. “
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diferencia dos demais, também compõe sua percepção como parte integrante da sua identidade regional. Sobre o dialeto, Pretti aponta:
...É uma das mais imediatas marcas de identidade social [...] a fala incorpora a identidade das pessoas, trazendo lhes maior ou menor prestígio, no contexto social que se envolvem (PRETTI, 2003. p. 49)
Portanto o modo de falar segmentado a determinada região não só confere características específicas a linguagem do falante, mas também representa uma identidade individual e coletiva que evoca mais que um sentimento de pertencimento ao local de origem, mas também um modo de pensar específico e uma memória oral afetiva. A cultura, para Carvalho (2014, p. 38 39), é transmitida pela língua ao tempo que também é o seu resultado, o meio para operar e o modo de sobrevivência da mesma.
2.2 “Que diabéisso?”3
O Piauiês e a expressão genuína do ser piauiense
Por ser um organismo vivo, a língua simplesmente não tem uma descrição de origem correta, mas ela pode ser descrita de outras formas a fim de que não falantes compreendam seu surgimento. Erroneamente acredita se que o nordeste do Brasil fala uma língua só: um estereótipo cansativo que sempre provoca polêmicas quando abordado de maneira errônea. Enquanto no Ceará se fala ‘Cearencês’ e na Bahia se fala ‘Baianês’, no Piauí se fala ‘Piauiês’: um dialeto típico do estado que varia seu vocabulário de acordo com famílias, faixas etárias e cidades, mas mantém sua unidade em expressões “universais” como ‘mermã’ que intitula esse trabalho e quer dizer, dependendo do contexto, exatamente o que parece ao pé da letra:‘minha irmã’, mas que pode ser, ao mesmo tempo, sua mãe, sua prima, sua sobrinha ou qualquer pessoa do sexo feminino a quem você queira se referir.
A primeira vez que o vocabulário piauiense foi concatenado em forma de dicionário/glossário foi em 1995 através do professor e autor da ‘Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês’ Paulo José Cunha. Segundo o mesmo em entrevista ao GShow:
A enciclopédia de Piauiês nasceu da percepção que eu tive de que existe um jeito específico do piauiense se manifestar, se
3 Expressão piauiense que significa indagação com deboche “que diabos é isso? O que é isso”. Ex: “elas chegaram aqui falando de girl power, vamos meninas, e eu falei gente, que diabéisso? É um filme?”. Nesse caso, utilizou se a expressão no sentido de indagação, para perguntar o que seria o Piauiês e em seguida explica lo, da perspectiva desse der uma língua desconhecida
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expressar. Por que quando a gente mora no Piauí é mais difícil, estamos convivendo com essas expressões no dia a dia e já nem se percebem mais. Mas como eu moro em Brasília e vou ao Piauí, ou aqui mesmo quando escuto uma palavra diferente, me recordo que só escuto no estado (CUNHA, 2018).
Publicado em 1995, a enciclopédia possui 240 páginas com a maior variedade de termos e expressões tipicamente piauienses em formato de dicionário: com ordem alfabética e significado após a palavra. Outro exemplar que descreve expressões utilizadas pelo “idioma” piauiense é ‘Leriado Piauiense: Expressões e adagiário da nossa vivência’ de Wilson Seraine (2020). Nesse quadrinho, o professor piauiense conta a história da sua família utilizando o Piauiês com bastante intensidade, tornando a leitura complexa para quem não está acostumado com o falar. Expressões mais joviais como ‘doido’, que tem significado semelhante a ‘mermã’ e podem se referir a qualquer um (dependendo do contexto), se misturam com ‘qualira’ um termo utilizado por pessoas mais velhas e com alvo bastante específico e maldoso por assim dizer, tornando o livro ilustrado bastante diverso. Para os cidadãos piauienses a linguagem cotidiana é uma forma de identidade cultural tão significativa que no ano de 2013, por força de lei, as expressões que formam o Piauiês se tornaram Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Piauí. O projeto de lei da deputada estadual Margarete Coelho foi sancionado pelo governador Wilson Martins e tinha no artigo 1°, como parágrafo único, que a pronúncia da língua portuguesa característica do Piauí seria denominada Piauiês, bem como outras palavras e expressões típicas do estado. A lei ainda reforça a indispensabilidade do dialeto para a identidade dos cidadãos do Piauí.
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Mídia
3.1 “Caçando conversa
O processo de identificação cultural do sujeito através das mídias
Desde o período Paleolítico o homem busca artifícios para narrar histórias da maneira mais detalhista possível: pinturas na parede, gestos, sons, imagens e escritas se reuniam em prol de provocar sensações diversas no espectador. Com o desenvolvimento dos meios essas formas de comunicação foram alteradas e adaptadas para se adequar ás necessidades das sociedades que as consumiriam. Esse fenômeno apesar de ser atribuído constantemente apenas a modernização das mídias é, na verdade, característica pertencente a constituição da sociedade cujo principal traço é ser um organismo em constante mudança. Ao internalizar essa construção como fenômeno social o “entendemos como um processo que está em constante ressignificação e reconstrução, e não como um dado previsto por um sistema automatizado” (Miége, 2009).
A mídia surge em primeiro momento como instrumento de comunicação, mas tem seu papel dinamizado com o seu processo evolutivo: seu objetivo deixa de ser só a entrega de uma mensagem a ser interpretada ganhando uma dimensão que busca provocar entretenimento, produzir arte, gerar lucro, entre outras questões. Com o aumento de vários seguimentos diferentes de mídia (o rádio, a TV e posteriormente a internet) essas tiveram que agregar diferenciais de modo que nenhuma ceifou a anteriormente existente, mas continuamente traziam novos artifícios para captar consumidores. Balogh (2002, p.140) afirma que “a cultura pode ser concebida como uma vasta rede de relações entre os diferentes textos que a compõem” e foi através da representação dessas diferentes culturas sob variadas óticas que os meios puderam se apoderar do discurso do cotidiano e torná lo um bem de consumo interessante:
Desde os primeiros curtas de Thomas Edison e dos irmãos Lumiére, o cinema tem demonstrado verdadeiro fascínio pela representação do cotidiano. Além disso, os primórdios do cinema tem a vantagem de se apresentar, notadamente, como um gênero cotidiano, uma forma popular de espetáculo (COHEN apud CHARNEY, SCHUARTZ, 2004, p. 259 260).
4 Expressão piauiense que significa provocar Ex: “elas caçaram tanta conversa comigo na aula que precisei falar com a professora” . Nesse caso, utilizou se a expressão no sentido de criar provocações sobre a discussão a ser tratada no capítulo, bem como no aspecto de puxar assunto para iniciar uma conversa
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Portanto, ao desenhar os contornos de nosso cotidiano, qual a dimensão identitária e cultural das representações feitas pela mídia? Reconhecer o nosso dia a dia em produções audiovisuais que incluem nossas características é uma forma de nos conectarmos com nossa cultura e identidade, além de um artifício eficiente para o consumo: se me vejo representado ali, quero saber mais sobre. Os responsáveis pelo desenvolvimento desse tipo de entretenimento nos estudam e desenvolvem representações que, sendo ou fantasiosas ou mais próximas da realidade, acabam por se conectar com nossas experiências prévias culturais. O processo de criatividade parte não só do repertório pessoal de quem produz, mas também objetiva provocar sensações específicas em quem assiste. Desse modo, não é possível separar mídia de cultura e identidade, posto que o ponto de partida desta é a representação das outras duas.
3.2 “Só quer se aparecer”5
A produção audiovisual que incorpora o dialeto
Partindo do pressuposto de que mídia, identidade e território são questões indissociáveis, algumas produções audiovisuais buscaram remontar a figura do piauiense sob óticas diferentes obtendo grande destaque dentro e fora das fronteiras do estado. Lançado em 2008, sob a direção de Cícero Filho, o filme ‘Ai que Vida!’ é classificado como uma “dramédia” e tem enredo simples: nos idos dos anos de 1990, em uma cidade fictícia no Piauí chamada Poço Fundo, está acontecendo um verdadeiro caos. O prefeito Zé Leitão é um corrupto que faz tudo pelo retorno financeiro e tem o egoísmo como sua principal característica. Após quatro anos de mandato sem provocar grandes mudanças no município, uma empresária do ramo funerário, chamada Cleonice, decide fazer a população acordar e se candidatar para as próximas eleições. O filme também conta com um triângulo amoroso entre Jerod, um rapaz rico que nunca está na cidade, Valdir, funcionário mulherengo da funerária e filho de Cleonice, e Charlene, moça bondosa que faz trabalhos sociais.
O sucesso de bilheteria do filme é impressionante: em sua semana de estreia em um dos cinemas da capital piauiense a película ultrapassou blockbusters como Harry Potter e a Ordem da Fênix. Em estreia no Cine Praia Grande, no Maranhão, o longa teve que ganhar uma sessão extra para os espectadores. Além de 300 cópias oficiais, o filme foi distribuído através da ação da pirataria e em poucos meses se popularizou e consagrou como um clássico do
5 Expressão piauiense que se utiliza para criticar uma pessoa que quer se passar pelo o que não é, ou alguém muito cheio de si. Ex: “A filha de Joana depois que voltou de São Paulo só quer ser”. Nesse caso, utilizou se a expressão no sentido de criticar produções que remontam a figura piauiense de maneira errônea, ao tempo que é um trocadilho para os atores das produções que gostam de aparecer.
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cinema local em âmbito nacional. Migrando para mídias diferentes, outras produções que fazem uso do dialeto clássico piauiense são o show de humor ‘Marminino!’ (2016), do comediante piauiense Whindersson Nunes, e o seu álbum musical intitulado ‘PIAUÍ’ (2020). Atualmente o show, que explica de maneira descontraída sobre a infância do comediante no seu estado de origem, conta com mais de cem mil visualizações no YouTube (plataforma em que foi distribuído) e nove das onze canções lançadas no disco figuraram no Top 200 do Spotify, uma lista que elenca as músicas mais escutadas no país.
Em contrapartida, uma produção que buscava retratar a figura do piauiense usando não só o Piauiês, mastrejeitos e citações de cidades do estado, foi a novela ‘Cheias de Charme’ (2012), escrita por Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, e distribuída pela Rede Globo de Televisão, cuja antagonista é a personagem ‘Chayenne’ (interpretada por Cláudia Abreu): uma cantora do interior do Piauí descoberta por um empresário da capital e levada ao estrelato em âmbito nacional. Segundo o colunista Tony Goés, do site F5 Folha UOL, a estreia do folhetim fez com que o Ibope voltasse a bater 30 pontos, marca não atingida desde a novela ‘Sete Pecados’ (2007), ou seja, uma marca bem relevante para o horário das 19h que costuma ser, segundo Balogh (2002), um horário de “experimentação”. No entanto, apesar da ótima aceitação do público nacional, a novela reforça estereótipos piauienses atrelados a seca, a fome e principalmente a baixa escolaridade, onde a personagem principal muitas vezes mescla palavras do dialeto com expressões incorretas do português, associando o falar piauiense a falar de maneira errônea e exagerada.
Lambança
A representatividade, a caricatura e a decolonialidade
Apesar das quatro produções mencionadas utilizarem o Piauiês como recurso de identificação cultural para o espectador, posto que criam um vínculo entre si, nem todas obtêm sucesso na construção da figura do piauiense verossímil. Em ‘Cheias de Charme’, apesar de Chayenne ser uma personagem nascida no estado, sua interpretação é feita por pessoas do sudeste do país que, apesar de estudarem as características, não possuem a dimensão identitária: não nasceram no estado, não tem memórias atreladas a ele e se apegam a estereótipos preconceituosos na composição da personagem. O tom jocoso exagerado poderia até ser um artifício para provocar humor, já que o objetivo do folhetim é ser uma comédia, no entanto o
6 Expressão piauiense que significa bagunça, esculhambação, serviço mal feito. Ex: “Olha aí menino, te botei pra comer só e olha a lambança que tu fez”. Nesse caso, utilizou se a expressão no sentido de mostrar a bagunça que foi feita dentro das produções audiovisuais abordadas e também a quantidade de conceitos discutidos ao longo do texto.
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3.3 “
”6
problema está em motivar a piada pela figura representada, e não por suas ações serem de fato engraçadas.
A personagem constantemente atribui nomes de animais á pessoas remetendo ao estereótipo já utilizado pela mídia quando se trata de personagens nordestinos: a visão ruralista, de um lugar não desenvolvido, onde tudo é baseado no coronelismo, na pecuária e na falta de educação. Durante a análise dos episódios, foi ponderado que Chayenne se utiliza apenas de cinco expressões cunhadas na ‘Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês’, o que comprova que o estudo linguístico feito para criar a personagem na verdade é fruto de influências da ideologia que sudestinos tem do Piauí, sem ocorrer um estudo ou preparo mais profundo dos atores para interpretarem os personagens naturalizados piauienses. Apesar de ter sido observado o esforço dos atores em reproduzir o sotaque local, o resultado se tornou desastroso: os outros personagens da trama oriundos de Lagoa do Sobradinho (PI) tinham sotaques que em dado momento pareciam de outros estados (como Bahia) ou regiões do estado distantes do local onde se pretendia abordar.
A maior diferença entre as obras elencadas está justamente em naturalizar a figura do piauiense, com seu dialeto e trejeito, ao invés de tornar isso o alvo do humor. O comediante Whindersson Nunes em entrevista para o PODPAH Podcast (2022) explica de onde surgiu a ideia de falar do seu cotidiano “eu olhava ao meu redor e onde eu estava não tinha nada, então eu precisava de informações para cair no gosto de quem me assistia”. Essa forma de humor chamada “de identificação” é estratégia utilizada no stand up comedy: são narradas situações cotidianas para provocar no espectador um reconhecimento e assim criar, de maneira muito natural, uma piada com aspecto identitário. No caso de ‘Marminino’ é assim: entre vocábulos típicos da região como ‘doido’, ‘caatinga’ e ‘fi di rapariga’, Whindersson explica situações cotidianas comuns a infância de qualquer piauiense, provocando a sensação de identificação que é engraçada não pelos trejeitos do humorista, mas sim pelo espectador ter passado por algo parecido.
Ao fazer sucesso por todo Brasil, Whindersson provoca sorrisos em quem não conhece a realidade piauiense não pelo estereótipo (evitado ao máximo), mas pela sensação de disparidade entre realidades. No álbum ‘PIAUÍ’ o calor característico da região meio norte do Brasil ganha batida e colaboração com o rapper Hungria, natural de Brasília, e tem na letra expressões como ‘zoada’, ‘muriçoca’ e ‘inhaca’ que apesar de fazerem parte do léxico piauiense, não são empregadas como chacota: a letra faz sentido, o tema é comum a quem nasce no estado e para quem é de fora o desconhecido é interessante, pois representa uma realidade diferente da sua, advindo daí o sucesso da obra dentro e fora do estado. “O humor não é um estado de espírito, mas uma visão de mundo” (SALIBA apud Wittgenstein, 2002, p. 15) e é através das trivialidades e dos fatos sociais transmitidos pelo humor que a valorização
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acontece, pois o sujeito ao reconhecer suas especificidades, passa a ter mais apego a elas e as suas origens
Esse mesmo argumento explica o sucesso de ‘Ai que Vida!’: o filme caiu nas graças não pelas construções estereotipadas mas pelo reconhecimento da figura do piauiense pelo espectador através do dialeto naturalizado (muitos ‘nams’, ‘mermãs’ e ‘deixe isso de mão’) e situações cotidianas retratadas. A antropóloga e arqueóloga Kelma Gallas, em entrevista á revista RevesTrés (2020), explica que:
O filme é o homem do interior que gesticula de uma maneira, que fala de uma maneira e não é nada falso ou forçado. Por isso a obra se tornou referencial e ganhou notoriedade: por trazer a visão que o homem nordestino tem de si (GALLAS, 2020).
A disseminação dessas mídias que usam os falares regionais também agrega outro aspecto a representatividade pontuada: a questão da decolonialidade. Desde a colonização do Brasil muitos costumes foram reprimidos em nome das características naturalizadas pelos colonos: o que era tradição e regional no Brasil era visto como errado e inferior, enquanto os comportamentos trazidos de fora se apresentavam como corretos e superiores. Segundo Mignolo (2009) a colonialidade é uma abreviação da matriz colonial de poder que se baseia na diferenciação colonial e essa distinção atua transformando o que é estranho a um povo e normal a outro em valor, construindo uma hierarquia entre seres humanos onde existem pessoas inferiores cujas características estéticas e racionais são menores ou menos importantes.
Com a linguagem também foi assim: a língua falada pelos povos originários foi reprimida e foi ensinado forçadamente o português falado pelos colonos, considerado o “correto”. Até hoje reproduzimos esse discurso: em ambientes mais formais o sotaque e os dialetos são suprimidos em nome de se passar a ideia de “seriedade” ou até mesmo de “verdade”. Considerando que somos um país de multiletramentos, é válido refletir que essas produções com falar regional popularizadas não só são elos identitários e ferramentas úteis para a representatividade de um povo, como também decolonializam a perspectiva de que o dialeto regional nordestino é a forma “errada” de falar e o jeito sudestino, longe da neutralidade, mas mais próximo da colonialidade, é o “correto”.
A popularização dessas mídias é um degrau importante para que notícias como a veiculada na BBC em 2021 (de que crianças nordestinas estariam falando com sotaque paulista) parem de aparecer, mas isso de maneira orgânica sem forçar o consumo apenas de conteúdos regionais, mas de naturalizar os dialetos em todos os meios. A decolonialidade, na verdade,
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não busca subverter ou deslegitimar os padrões linguísticos anteriores, mas sim dar voz e legitimar àqueles vistos como incorretos e subalternos desde o início.
Considerações Finais
As reflexões desenvolvidas nesse trabalho tinham como objetivo geral apontar aspectos que qualificam o Piauiês como recurso de identificação cultural em obras do audiovisual e, através do aporte teórico estudado, se conclui que esse recurso é utilizado pois evoca o sentimento de pertencimento do espectador ao tempo que, de certa forma, o “glorifica” visto que a representação de uma figura semelhante à dele em uma mídia gera orgulho de si mesmo. A pesquisa de conceitos como território, identidade e mídia foram essenciais para compreender a dimensão de importância de um para o outro e assim aprofundar o estudo das relações do dialeto piauiense como artifício de identidade cultural. Quanto a análise da popularização das obras em consequência da identificação foi entendido que independente do público retratado se reconhecer ou não na mídia, o consumo prossegue acontecendo, mas sem atingir o público alvo regional almejado.
Com as discussões abordadas no presente artigo especificamente sobre as obras, entendemos que a construção da figura do piauiense se dá de maneira mais fidedigna e verossímil quando advém de um piauiense, uma vez que este está preocupado não só em se diferenciar de demais obras ao utilizar essa abordagem, mas com o respeito ao utilizar a sua cultura como bem de consumo midiático. O desenvolvimento de um personagem que transmita ao espectador uma comoção de identidade depende muito mais das experiências culturais nativas de quem irá produzir do que do próprio ator que vai representar
Por fim, depreendemos que a dimensão identitária do dialeto se deve a sua relação intrínseca com o território de origem e aos vínculos e experiências ali criados, e que a caricatura se difere da representatividade na medida que a primeira é a visão colonial de um povo sobre o representado e a segunda é a visão desse povo representado sobre ele mesmo.
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Referências Bibliográficas
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BALOGH, Anna Maria. O discurso ficcional na TV. 1. ed. São Paulo: USP, 2002.
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