(c) 1991 – SENECA SMITH Editora Monterrey - Série Chumbo Grosso 177 370112
UM Era sua maneira de ser... Rock Bolth era alto, esguio, enxuto, moreno de cabelos revoltos. Tinha trinta anos, um revólver bem cuidado e uma chácara sem reses, praticamente abandonado. Naquela manhã, estava sentado no degrau da varanda com uma perna encolhida e a outra estendida, encostado numa coluna de madeira. Na mão esquerda, um cigarrinho fumegante e, na direita, uma garrafa de uisque. Fazia dois minutos que vira o cavaleiro aparecer numa elevação do terreno, ao longe, e desde então não o perdera de vista, — Que diabo vai querer desta vez? — murmurou, tirando o chapéu sovado. Seus cabelos rebeldes lhe caíram ao redor da cabeça, cobrindo o lado esquerdo do rosto, incluindo o olho. Coçou a cabeça desgrenhada e enfiou de novo o chapéu quase até as orelhas, sem se importar com o fato de a maior parte dos cabelos ter ficado de fora. Em tudo e por tudo, um relaxado. Não teve de esperar muito para saber que desejava, daquela vez, o cavaleiro, pois este se aproximou e parou diante dele, sem desmontar. — Bom-dia, Rock. — Bom-dia senhor Lucas. A que devo a visita? — Negócios. — Que tipo de negócios? — Bom para ambos, Rock. Posso desmontar? — Naturalmente — sorriu Rock, sem levantar-se. — Esteja quase em sua casa.
Lucas desmontou e só então pareceu atentar para o detalhe: — Quase?... — Quase — confirmou o rapaz. — É bem acolhido como visita, mas a casa continua sendo minha. — É precisamente disso que lhe queria falar. Rock. Como vão seus negócios?. — Muito mal — sorriu de novo o rapaz. — O senhor já sabe que não tenho uma única vaca, meus currais estão vazios de potros, mais, se quiser alguns grãos de bom milho, eu os venderei a bom preço. — Não me interessa o seu milho, mas a sua chácara, Rock. — Para quê? — Quero comprá-lo. Quanto quer por ele? — Um milhão de reais, senhor Lucas — rebateu prontamente Rock, com a cara mais deslavada. Marcos Lucas franziu a testa, olhando-o com dureza. — Você não ignora que eu e os demais fazendeiros do lugar estamos sem pastos para os nossos rebanhos. Por favor, não leve a coisa na brincadeira, pois estou falando sério. Rock Bolth inclinou ligeiramente a cabeça para o lado direito e sorriu amplamente, parecendo ter feito grande descoberta. — Que coincidência, senhor Lucas: os senhores não têm pastos e eu não tenho reses. Até parece brincadeira. — De fato — admitiu Lucas, sem se alterar. — Justamente por isso quero comprar sua chácara.
— Está bem. Já sabe o preço. Marcos Lucas respirou fundo. — Rock, todos queremos viver às boas com você. Estou disposto a pagar um bom preço e não uma enormidade por sua chácara. Com esse dinheiro poderá viver bem e procurar uma atividade mais adequada. Assim que a chácara for minha, o problema dos pastos estará resolvido, pois consentirei que os fazendeiros vizinhos os usem — Mas cobrará por isso. — Naturalmente. — Seria um grande negócio, bem, senhor Lucas? — Nem tanto mas, se considera bom negócio, por que não nos aluga os pastos? Assim, todos teríamos para onde levar os rebanhos e eu pouparia o dinheiro que teria de gastar na compra. — Escute, senhor Lucas, o senhor é um homem fino e não quero enganá-lo; não venderei minha chácara. Sei que não pareço ter muita sorte mas... Sabe? Posso fazer uma contraproposta. Tive azar com as reses por causa da peste que aniquilou meus rebanhos. Para que ambos ficássemos satisfeitos, o senhor me emprestaria alguns reais para eu comprar um pequeno rebanho e eu consentiria que os seus pastassem em minhas terras. Naturalmente, além dessa permissão. eu lhe pagaria o empréstimo. Marcos Lucas ficou boquiaberto. — Você está me pedindo dinheiro emprestado. Rock Bolth?! — Exatamente. Tenho o mesmo direito de todos para sair das dificuldades, não lhe parece?
— Sim, claro que tem, mas acontece que pede dinheiro emprestado quando lhe oferecemos boa soma pelo rancho, em caráter de aluguel dos pastos. — Não alugarei os pastos, senhor Lucas. — Então, venda-me o rancho. — Um milhão de reais. — Não me faça perder a paciência! — quase se exaltou o fazendeiro. — Está há vários meses sem tirar um centavo de suas terras, que são, sem favor, as melhores da região. Prefere ficar sentado nesse degrau, como sempre, vendo o rancho caminhar para a ruína, em vez de tomar uma providencia inteligente? Prefere ficar aí, fumando e bebendo? Em vez de se irritar. Rock Bolth tomou um gole de cachaça diretamente pelo gargalo da garrafa, deixando-a a seu lado. — É a minha maneira de ser — disse, por fim. — Não me faça perder a paciência! Rock encolheu os ombros, murmurando; — Ninguém o chamou aqui. Portanto, se não tem paciência ou calma para me ver e me aturar. dê o fora. Marcos Lucas cerrou os punhos. — Senhor Rock, nós vamos meter os rebanhos em seus patos! — Está bem. Lucas pestanejou, surpreso. — Está bem? Quer dizer que nos autoriza? — Eu disse que está bem, que metam os rebanhos em meus pastos. Cheguei há três anos, comprei estas terras e
um rebanho, mas não tive sorte. Sei que surgirá outra oportunidade e aproveito para deixar os pastos se desenvolverem. Por que deverei ajudá-los, se ninguém me ajudou quando fracassei? Metam os rebanhos, em meus pastos, caso se atrevam, mas arquem com as conseqüências. — Você está nos ameaçando, Rock? — Claro. — Então... — enfureceu-se Lucas, — não passa de um assassino! Rock Bolth ficou olhando para ele, perplexo. — Assassino? Talvez... Possivelmente qualquer de vocês também seria matador, caso tivesse aprendido a atirar como eu aprendi quando não havia, por estas bandas, outra coisa para se fazer. Confesso que pratiquei bastante, sempre que tive o dinheiro para as balas. Por isso, atiro razoavelmente bem. — Vamos expulsá-lo do vale, Rock. — É? Com que direito e por que motivo? — Porque não quer ser razoável com os seus vizinhos. Rock encolheu de novo os ombros. — Está bem, que tentem fazê-lo. Terão muito trabalho, senhor Lucas, porque, como disse, andei praticando bastante a arte de atirar. Minha chácara e minha vida me pertencem e faço de ambos o que me aprouver. Sei que não prospero, mas estou vivendo e isso me parece suficiente. Sabe como chamo esse vale? — Como? — murmurou Lucas, intrigado. — Vale Paraíso. Agora, por favor, saia de minhas terras.
Tomou outro trago e Lucas, olhando-o entre irritado e desconcertado, advertiu: — Escute, Rock, não queremos transformar esse Vale Paraíso num inferno. — Seria um antimilagre, senhor Lucas — tornou a sorrir Rock. — Onde já se viu transformar um paraíso num inferno. Que mau gosto! — De acordo, ninguém conseguiria uma coisa dessas, mas se você não for razoável poderá mergulhar em verdadeiro inferno. — Está desperdiçando palavras com tolices — rebateu o rapaz, agora sério. — Se têm a coragem necessária para me incomodar, que o façam. Meu bom companheiro — bateu na coronha do revólver — e eu os estaremos esperando. Eu os receberei com um sorriso e vocês decidirão se preferem o sorriso ou o revólver. Adeus, senhor Lucas. — Adeus, Rock Bolth — rosnou Marcos Lucas, trincando os dentes. — Creio que nos veremos muito breve. — Quando queiram. Passo a maior porte do dia nestes degraus. Marcos Lucas montou e partiu com o cavalo a trote fácil. Rock tomou mais um gole e começou a enrolar um cigarro, sem a menor pressa. Seu visitante chegara de novo à mesma elevação do terreno quando uma voz comentou, às costas do rapaz: — Não acha que foi muito grosseiro com o meu pai, senhor Rock?
DOIS Havia outros motivos Rock Bolth virou-se para o lado da varanda de onde lhe viera o comentário e sorriu. Ali, emoldurada na porta, estava uma loura de olhos castanhos e modos sensuais, vestindo trajes de vaqueiro, incluindo as botinhas de montaria com esporas. — Grosseiro, senhorita Lisa? Ela avançou dois passos. — Exato. — Não sei o que dizer. De qualquer forma, terá de admitir que ele não me deixou outra alternativa. — Ele não lhe propôs um negócio desonesto, senhor Rock. — É inegável — admitiu o rapaz. — Mas as pessoas do meu feitio não costumam aceitar imposições nem ameaças, senhorita Lisa. Seu pai olha apenas as suas conveniências, não as minhas. Julgo tê-lo tratado à altura. Lisa Lucas pareceu refletir, sendo fácil adivinhar, por sua expressão fisionômica, que estava de acordo com Rock. Deu mais alguns passos, sentando-se ao lado dele, no degrau da varanda. — Vão querer expulsá-lo do vale — lembrou. Rock pareceu divertir-se com a coisa. — Não têm coragem para tanto, nem mesmo reunindose todos. Apesar das ameaças do seu pai, verá que ninguém, isoladamente ou em conjunto, se atreverá a me expulsar de minha casa.
— Não lhe parece estar confiando demais em sua habilidade com o revólver? — sorriu Lisa. — Não tenho culpa de atirar tão bem e que eles sejam incapazes de acertar numa vaca a quatro passos de distância — também sorriu Rock. Lisa Lucas olhou ao redor durante quase um minuto, analisando as condições lamentáveis do rancho de Rock. Tudo com aspecto de abandono, excetuando-se apenas uma pequena lavoura de milho, justificando-se a pergunta sobre como ele conseguia viver ali, sem gado, sem carne, sem leite, sem nada. No entanto, ali estava ele, sempre amável e sorridente, com seu revólver bem azeitado. — Quer dizer que não partirá? — sondou, por fim, Lisa, — Não. — Se eles decidirem realmente expulsá-lo, acontecerão coisas desagradáveis. — Talvez. Mas acontece que estou em minhas terras e não incomodo nem prejudico ninguém. Assim sendo, não tenho por que partir. Ela virou o rosto, fingindo interessar-se por algo inexistente, para ocultar uma possível expressão de alegria motivada pela afirmativa de Rock de que não abandonaria o rancho, o lugar que ele chamava de Vale Paraíso. — Por que bebe tanto, senhor Rock? O senhor se embriaga todos os dias e... — Um momento! — cortou Rock, agora sério. — Quem lhe disse que eu me embriago? Lisa enrubesceu. Fora imprudente. — Bem, sempre que venho o senhor está bebendo...
— Que tem isso a ver com bebedeira? — Senhor Rock, eu... — Entenda que qualquer homem pode beber sem que se embriague inevitavelmente. Eu bebo cachaça até onde posso suportar e jamais me embebedei. Alguma vez me viu embriagado? — Não. Claro que não. — Então? — Creio que empreguei mal as palavras. Eu queria perguntar por que está quase sempre bebendo. — Isso é da minha conta. — Sim, naturalmente — desconcertou-se Lisa. — Mas todo homem que bebe tanto acaba tornando-se desagradável. — E perigoso, Lisa — acrescentou Rock, olhando-a nos olhos. Ela desviou o olhar, murmurando: — Não quer revelar por que bebe tanto? — Já disse que é da minha conta mas, na realidade, bebo por não ter outra coisa para fazer, Tem algo concreto contra a bebida? Não me diga que a cachaça é um mal. Errados são os que bebem demais e os que os criticam por não se sentirem bem com o álcool ou por orgulho. — Por orgulho? — murmurou Lisa. — Sim, por orgulho. Temem embriagar-se e ficar ridículos aos olhos dos demais; ficar “por baixo”, como se costuma dizer. — Bem... — fez Lisa, sem jeito.
— Não sou orgulhoso, ou melhor, não tenho esse temor e a cachaça me cai maravilhosamente bem, Lisa. Em suma, eu me sinto bem. — Mas pode tornar-se desagradável e perigoso. Rock virou-se no degrau para encarar Lisa Lucas, — Se o fato de eu beber como entendo lhe desagrada tanto, por que vem tão amiúde à minha casa? Para testemunhar minha decadência? As faces de Lisa ficaram carmesim. — Está me atribuindo maus sentimentos! — protestou baixinho. — Está bem, senhorita Lisa, se não é esse o motivo, por que me visita quase diariamente? — Bom, eu... Por nada. — Ora vamos, senhorita Lisa, não me tome por tolo. Posso ser considerado um fazendeiro relaxado, alguns podem até me acusar de alcoólatra, de intransigente e de irônico, havendo os que me classifiquem como pistoleiro, mas ninguém até hoje me tachou de imbecil. Sinceramente, eu gostaria de saber por que uma garota bonita e atraente como você, Lisa, me visita quase todas as tardes valendo-se de desculpas infantis. Lisa Lucas estava encarnada como uma papoula. Além de elogia-la, ele a pusera em xeque. — Por favor, senhor Rock... Por favor... — foi o máximo que conseguiu balbuciar. Ele pegou a garrafa e tomou um gole pelo gargalo. Depois enrolou e acendeu um cigarro, deliciando-se com a tragada.
— Deixe-me continuar — sorriu. — Posso ser tudo isso que os outros dizem ou pensam, mas tenho o privilégio de sua visitinha diária. Por quê? Pôr que sugere, discretamente, que eu deveria fazer a barba e pentear os cabelos, vestir-me com decência como os demais fazendeiros, não beber como bebo? Por que me sorri encantadoramente e não perde a menor oportunidade para arrumar a minha casa? — É... é para o seu bem... — Inegavelmente. Mas é isso que me intriga, Lisa. Como consegue suportar minha presença e até ser gentil e útil? — Não o considero tão desagradável... — Eu gostaria de estar absolutamente certo disso. Lisa. — Certo de quê? — enrubesceu de novo a loura. — De que não está mentindo. — Como assim? — Não vejo como uma criaturinha atraente possa interessar-se tanto por um sujeito., diferente dos demais, a menos que movida por segundas intenções. Já me perguntei algumas vezes se tanta consideração nada tem a ver com o assunto discutido há pouco entre seu pai e eu. — Não entendo... — Muito fácil. Talvez, compreendendo que nada conseguirá de mim com suas ameaças, sua força e seu dinheiro, Marcos Lucas tenha decidido empregar a mais terrível de todas as armas: o sorriso fascinante de uma mulher bonita. Lisa ficou séria, levantando-se do degrau. Rock continuou sentado e até tomou outro gole de cachaça.
— Está insinuando, que tenho vindo para tentar convencê-lo, com tolices, a vender sua chácara ao meu pai? — Nunca mais porei os pés nesta casa! — Como queira. Ela saiu andando depressa, dobrou a esquina da varanda e reapareceu pouco depois, montada. Quando passou diante de Rock Bolth, a caminho da porteira, ele empunhou a garrafa de cachaça e, agitando-a à guisa de despedida, disse: — Até amanhã ou depois, Lisa. TRÊS Eles tinham a pinta da profissão Serra Mansa era uma diminuta aldeia perdida no fundo do vale, cercada pelas boas terras a que Rock Bolth chamava de Vale Paraíso. Eram maravilhosas terras de pasto rodeadas de espessa mata cerrada. Além das poucas casas residenciais que formavam a única rua, impropriamente chamada Rua Principal, o povoado contava apenas com uma venda em estilo de taberna, uma agência telegráfica, um prédio que alojava a prefeitura e a delegacia, minúscula igreja católica, um banco, a cocheira-ferraria e, naturalmente, a funerária, O único médico local atendia em sua residência. Excetuandose os dias festivos, pouco mais de dez pessoas circulavam diariamente pela Rua Principal. O marasmo não poderia ser mais deprimente.
Um punhado de homens discutia acalorada-mente na venda, à porta fechada, com Marcos Lucas falando mais que todos. — Escutem todos! — quase gritou, a certa altura. — Pela manhã visitei Rock Bolth. Conversamos amavelmente, a principio, mas acabei por ameaçá-lo de expulsão e confesso que me arrependo. — Por quê? — não gostou um dos fazendeiros. — Simplesmente porque não temos o direito de ameaçálo, Costa. — Bem... — desconcertou-se este. — E que direito tem ele de não nos franquear seus pastos? — O direito de propriedade, Costa. — Mas nós lhe pagaríamos... — É inútil — murmurou Lucas, com um suspiro de enfado. — Rock Bolth foi bem claro: não aluga, não troca nem vende seus pastos. — Diabos! — estourou outro fazendeiro. — Nós lhe fizemos boa oferta, não fizemos? Pois se não aceita nossas propostas, levaremos os rebanhos por nossa conta aos seus pastos. Houve um murmúrio de assentimento, porém Marcos Locas alteou a voz, impondo silêncio para continuar: — Já lhes disse que cheguei a ameaçá-lo de expulsão à força. Também afirmei que usaríamos seus pastos contra a sua vontade. Sabem o que ele alegou? Que foi à falência por causa da peste que atacou seu rebanho e não movemos uma palha em seu favor, que não o socorremos quando mais necessitou de nós e, portanto, não se considerava na
obrigação de retribuir ajudando-nos nesta situação calamitosa para nossos rebanhos. — Não precisamos de sua ajuda! — rosnou Jaime Martins. — Usaremos seus pastos, custe o que custar. — Deveras, Martins? — murmurou Marcos Lucas, em tom zombeteiro. — E quem será o primeiro? Você? Jaime Martins empalideceu, olhando em torno. — Bem... Isso não me parece assunto para um homem só, entende? — continuou, após analisar as reações fisionômicas dos demais fazendeiros. — Suponho que, juntos, conseguiremos dominar facilmente esse Rock Bolth. Lucas sorriu. — Duvido muito... Mas estou certo de uma coisa, rapazes: não conseguiremos acovardá-lo. Ele disse que caberia a nós a decisão de invadirmos seus pastos, mas deveríamos arcar com as conseqüências. Novo murmúrio, interrompido pela revolta de Costa: — Esse rapazola não tem o direito de nos ameaçar e duvido muito de sua valentia. — É — fez Lucas, irônico. — Vocês conhecem meu compadre Josué, padrinho de Lisa? Talvez ele tenha exagerado mas, quando lhe disse que era vizinho de Rock, deu-me um conselho nada animador. Afirmou que eu não me metesse com esse rapaz, pois fora informado de que ele se batera em duelo à bala mais de setenta vezes e nenhum adversário vivera para contar a história. E o pior de tudo é que sempre em defesa de causas justas, ou para não ser assassinado.
Agora o silêncio foi profundo e durou quase um minuto, quando Lucas prosseguiu: — Desta vez Rock Bolth está de novo bem escorado na lei. — Diabo! — resmungou Jaime Martins — Tem razão, Marcos. — Vejam! — olhava pela janela da venda. — Aí vem ele, com a sua maldita mula birrenta. Todos se aproximaram curiosos da janela. De fato, Rock entrava na Rua Principal cavalgando sua velha mula teimosa. Muito ridículo, pois a mula era baixinha e ele tinha as pernas muito compridas, de modo que seus pés quase roçavam o chão. Montava com o animal em pêlo. E seu aspecto não poderia ser mais desolador. Imundo, botas acalcanhadas, sem esporas, calças e camisa surradas, chapéu velho de abas amassadas, suado em toda a volta da carneira, os cabelos revoltos, saindo por todos os lados. E barba de vários dias. Em vez de freios como rédeas, usava apenas uma corda atada ao focinho do animal. O diabo era que, a despeito de tudo isso, e de ser sabidamente dado à bebida, Rock Bolth possuía uma espécie de magnetismo que lhe granjeava a simpatia de todos e irritava os pistoleiros. Os próprios rancheiros ali reunidos para tomar decisões contra ele não se puderam furtar a um sorriso de simpatia quando ele passou diante da venda, ridiculamente escanchado em sua velha mula parda, horrorosa. Rock Bolth sorriu ao ver aqueles rostos nas portas e janelas da venda e tirou o chapéu suado para dizer, com amplo sorriso:
— Bom-dia, cavalheiros. Conspirando contra mim? Isso irritou os fazendeiro, mas não a ponto de anular a simpatia. — Aposto como vai à casa do juiz Pedro Chaves invocar seus direitos legais — declarou Lucas. — Ei! — fez Costa, olhando para o outro extremo da Rua Principal. — Estão chegando alguns forasteiros. Todos olharam na mesma direção. De fato, enquanto Rock Bolth desmontava da mula diante da casa do juiz, cinco ou seis cavaleiros entravam em Serra Mansa, não sendo imprescindível muita vivência para saber tratar-se de pistoleiros. Os fazendeiros se olharam, apreensivos. Os pistoleiros percorreram a Rua Principal e pararam as montarias ao lado da mula de Rock. Marcos Lucas ficou preocupado e comentou: — Se não vieram em busca de Rock, que diabo pretenderão na casa de Chaves? *** Letícia Chaves tinha quase sessenta anos. Era miúda, de cabelos completamente brancos e olhar manso, bondoso. Esposa do juiz Chaves, que ultimamente nada tivera para fazer como representante da justiça, tal a harmonia até então reinante em Serra Mansa, Letícia era puritana, quase intransigente em assuntos morais. Não obstante, olhava com extrema simpatia, quase carinhosamente para o rapagão que se conservava respeitosamente diante dela, rodando devagar o chapéu surrado nas mãos, pela aba, num gesto de timidez.
— Sinto muito, senhor Rock, mas meu marido não está. — Hum... Eu necessitava de sua mediação num assunto seria. — Mediação. — O senhor Lucas me visitou há cerca de uma hora por causa da questão dos pastos, entende? — Ah... — fez a velhinha, com um sorriso encantador. — Já ouvi falar a respeito. — O senhor Lucas chegou a fazer ameaças. Não creio que se atrevam a me atacar pessoalmente, mas suponho que tentarão meter seus rebanhos em meus pastos. — Oh, não creio que façam uma coisa dessas! — exclamou mansamente a senhora Chaves, incorrigível cristã. — Pode estar certa de que serão capazes, dona Letícia. — Mas isso seria ilegal! Como poderiam pessoas tão honestas, educadas e bondosas cometer tamanha arbitrariedade? Por favor senhor Rock, lembre-se do que disse Nosso Senhor Jesus Cristo sobre. — Desculpe interrompê-la, dona Letícia, mas foi justamente para evitar que muita gente ofenda as Sagradas Escrituras, inclusive eu, se esses cavalheiros esquecerem onde terminam seus direitos e começam os meus, que vim aqui. Lamenta pedir-lhe que transmita a seu marido um recado impiedoso, dona Letícia. mas, por favor, diga-lhe que estou disposto a usar meu revólver para impedir tal invasão de minha propriedade. Sei que me considera violento e impulsivo mas..
— Só o Senhor pode julgar os atos humanos com todo o acerto, senhor Rock. Meu pobre Pedro consulta muito as Escrituras antes de dar as sentenças e, após cada julgamento, pede a Deus Nosso Senhor que lhe perdoe suas injustiças em nome da justiça dos homens, O senhor não costuma ler a Bíblia, senhor Rock? — Bom... — desconcertou-se por completo o rapagão. Estava num beco sem saída. Se dissesse que não, estaria decepcionando; se dissesse que sim, estaria mentindo. E ninguém, num raio de muitas milhas, tinha coragem para desgostas ou enganar aquela jóia humana. Foi salvo por um triste acaso, quando bateram com força na porta e Letícia Chaves se moveu como se flutuasse, para atender. — Bom-dia, cavalheiro. Que deseja? — Onde está o juiz? Letícia Chaves olhou para os acompanhantes do homem rude que lhe respondera com uma pergunta e ficou visivelmente assustada. Não poderiam ter aspecto mais aterrador. — Sinto muito, cavalheiro, mas o juiz viajou ontem. — Para onde? — Bem... Ele me disse que iria até a Capital, onde tinha assuntos a tratar. — Que assuntos? — Alguns, porém o mais importante seria, creio eu, renunciar ao seu cargo de juiz de Serra Mansa. Meu pobre velho se sente muito cansado, entende?
Um dos pistoleiros soltou uma risadinha e Rock olhou para ele. Não diferia dos demais, todos do tipo que está sempre fugindo da lei e vive como pode. — Que está olhando? — rosnou o pistoleiro. Rock encolheu os ombros. — Nada. — Então, trate de dar o fora! — De acordo. Rock se encaminhou para a porta e, quando já pusera o pé direito na varanda, o mesmo pistoleiro rosnou: —Espere! Rock parou e virou-se devagar. — Como se chama? — Rock Bolth. O pistoleiro tirou do bolso um papel imundo, dobrado em quatro, olhou de novo para Rock e desdobrou o papel, consultando-o ligeiramente. Dobrou de novo o papel, meteu-o no bolso e autorizou: — Pode sair. Sem nada dizer, Rock virou-se e saiu, fechou a porta e se afastou da casa do juiz. Lá dentro, o mesmo pistoleiro encarou a velhinha para indagar: — Que mais foi seu marido fazer na Capital? — Coisinhas quase sem importância, de interesse particular. Disse que compraria um chapéu novo e, para mim... — Onde se hospeda quando vai lá? — cortou o individuo.
— No Atlanta. — Está bem. Somos amigos de sai marido, senhora Chaves, de modo que ficaremos esperando por ele. Hotel Atlanta. hem? — Isso mesmo — tentou sorrir a velhinha, conseguindo apenas fazer os lábios muito finos tremerem. — Obrigado. Nós nos veremos de novo. Os seis pistoleiros saíram da casa do juiz e, da varanda, ainda puderam ver Rock Bolth entrando na única venda da pacífica Serra Mansa. Nada disseram, mas se olharam significativamente. Eles eram profissionais do gatilho e não se enganavam a respeito de homens hábeis na mesma arte QUATRO Bom era não estar na lista — Após tomar um gole de cachaça na venda, sem sequer olhar para os fazendeiros reunidos a um canto, saiu e foi até a cooperativa do povoado, onde o aguardava a mais agradável surpresa: Lisa Lucas. Tirou o chapéu e se inclinou ligeiramente, sem dar bola para o dono da loja, que atendia a jovem. —Bom-dia, dona Lisa. Esta manhã eu falei com seu pai, mas faz muito que não a vejo. Como está passando? Ela enrubesceu ligeiramente, pois captara a ironia. — Muito bem, obrigada, senhor Rock. — Eu estava ansioso por vê-Ia. — Pois já está vendo.
Rock arqueou as sobrancelhas, simulando desconcertarse com essa resposta. Só então se lembrou do atendente: — Olá, Queiroz. Como vão as coisas nesta loja simpática? — Não posso me queixar. — Meus parabéns. Estou precisando de uma caixa de balas. — Pois não. São três reais. — Acontece que não disponho desse dinheiro. — Três reais, Rock — repetiu Queiroz, com a caixa de balas na mão esquerda e a direita estendida. Rock sorriu. — Escute, Queiroz, creio que chegaremos a um entendimento. Em poucos dias colherei o milho para lhe entregar e você terá de me pagar cem reais. Assim sendo... — Até aí, não disse nada de novo — cortou Queiroz. — Espere, homem! — sorriu mais amplamente Rock. — Se tenho comigo uma coisa sobre a qual você tem exclusividade e pela qual terá de pagar cem reais, nada nos impede de fazermos uma transação vantajosa para você. Quero um adiantamento de dez reais por uma partida de milho que valerá cem. Queiroz ficou pensativo e Rock se impacientou: — Não seja mais negociante que amigo, Queiroz! Afinal, são apenas dez reais e você ganhará noventa de juros em poucos dias ajudando-me a sair de uma enrascada. — Está bem, você sempre sai ganhando com essa sua conversa fiada. Explora meu coração mole e... Ora, de que vale continuar falando. Terá os dez reais e, quando entregar
o milho, receberá os noventa. Mas não ouse pedir nem mais um centavo adiantado! Meteu a mão no bolso, para tirar o dinheiro, mas Rock segurou-lhe o braço, por cima do balcão. — Um momento, Queiroz. O negócio lhe será duplamente vantajoso. Além de se garantir a exclusividade do milho, me adiantará os dez reais em mercadoria, ganhando o lucro da venda. — Que sujeito complicado... Está bem. Que vai querer, desta vez? Comprando a caixa de balas, ainda lhe restarão sete reais de crédito. — Cachaça, amigo Queiroz. Um homem sem cachaça é o mesmo que uma rês sem pasto. Morte certa! Queiroz achou graça e pegou duas garrafas da prateleira. Nesse instante, Rock voltou-se para Lisa e agiu como se não a visse por muito tempo: — Dona Lisa! Não imagina como me alegra revê-la! Sabe que está cada vez mais bonita? — Obrigada. — Que rispidez! Tem alguma queixa de mim? — O que tenho, senhor Rock, é muita pressa e pouca vontade de conversar. — Ara! — exclamou o rapagão, voltando-se de novo para o armazeneiro. — Creio que vou andando, Queiroz. Parece que as coisas não estão boas para o meu lado em sua loja tão simpática. Olhou distraidamente para fora e viu os seis pistoleiros se encaminhando para a agência telegráfica. ***
Barnabé, o telegrafista, levantou a cabeça quando os seis homens entraram. Era miúdo, de rosto chupado e inteiramente calvo. Sentiu a garganta seca, pois também reconhecia, à simples vista, um pistoleiro de última catadura. — Em que... posso?... — começou. — Queremos passar um telegrama — cortou uni dos bandidos. — Oh, sim, sim, às suas ordens... — Papel e lápis. Barnabé pegou um formulário e um lápis, colocando-os cm cima do balcão, diante do pistoleiro. — Nada disso. Você escreverá — rosnou o indivíduo, certamente analfabeto. — É urgente. Portanto, comece. — Sim, senhor. — Correia. E nada de senhor. — Sim, senhor Correia — murmurou Barnabé, pálido como cadáver, sem omitir o tratamento respeitoso. — Que deve escrever? — O telegrama será endereçado ao juiz Pedro Chaves, no Hotel Atlanta na Capital. — Pronto... — murmurou o telegrafista, após escrever com espantosa, velocidade. — Que mais? — Escreva: “Volte imediatamente Ponto Assunto importantíssimo Ponto Assinado...” Como se chama a mulher do juiz? — Letícia Chaves. Por quê, senhor Correia? — Não faça perguntas “...Assinado Letícia”.
— Mas dona Letícia nem sequer veio à agência hoje! — ousou lembrar o telegrafista. — E daí? Vamos, mexa-se! Transmita o telegrama. Barnabé demonstrou ser perito na transmissão em código Morse, transmitindo num instante. — Pronto — disse, esboçando um sorriso. Correia tirou do bolso o mesmo papel dobrado, consultou-o e, sem nada dizer, sacou do Revólver, metendo três balas no peito de Barnabé, quase à queima-roupa. O miúdo telegrafista foi lançado para trás, chocou-se com a mesa e desabou morto. — Inutilizem essa porcaria! — ordenou Correia, sendo prontamente obedecido. Seus capangas saltaram o balcão e reduziram as instalações telegráficas a pedaços inúteis. Depois, os seis saíram tranqüilamente do pequeno escritório dos correios. Lisa Lucas, Rock e o armazeneiro Queiroz, que tinham saído à rua ao ouvirem os disparos, viram os seis pistoleiros saírem da agência. Marcos Lucas e os outros fazendeiros estavam na outra calçada, diante da venda. —Estão vindo para cá — murmurou Rock. De fato, tudo indicava que o objetivo seguinte dos seis bandidos era o armazém. Enquanto eles avançavam, Lucas e os fazendeiros, após hesitarem, se encaminharam para o escritório do correio. Rock, Lisa e Queiroz entraram de novo no armazém e Rock recolheu do balcão a caixa de balas e as duas garrafas de aguardente. Depois, o rapaz segurou Lisa pelo braço, advertindo:
— Será prudente sairmos agora mesmo, dona Lisa. — Não tenho por que ir com você a lugar algum! — reagiu Lisa, desvencilhando-se de sua mão. — Não é momento para discussões, dona Lisa. Venha comigo. Poderemos discutir à vontade depois. Nesse instante entraram os seis pistoleiros, os quais. parecendo nem notar as presenças de Rock e Queiroz, olharam com grande interesse para Lisa. Depois, olharam ligeiramente para Rock e Correia encarou o armazeneiro. indagando: — Como se chama? — Queiroz. O pistoleiro consultou o papel que trazia no bolsa, guardando-o de novo. — Sei. Tem café? — Tenho. — Tem? Ora, não vou ficar perguntando. Queremos boas provisões de café, açúcar, farinha, banha, toucinho.., tudo que se possa comer, e munições para revólver “44” e “45”. — E pra já. — Espere! Faça dois ou três embrulhos com tudo e não se importe com o preço. Compreendeu? — Sim, naturalmente. — Viremos buscar as provisões amanhã, talvez pouco depois do meio-dia. Queremos que tudo esteja preparado, Queiroz. — Fique tranqüilo, pois tudo estará em ordem. — Ótimo. Até amanhã.
Correia já se virava para sair, quando Rock indagou: — Que aconteceu na agência de correio? — Os seis pistoleiros olharam para ele e Correia rebateu com dureza: — Se está tão interessado, faça como os demais: vá ver. — Oh, eu não pretendi irritá-lo — tentou sorrir Rock. — Foi mera curiosidade, — Pois desvie sua curiosidade de cima de nós. Esta é a segunda vez que topo com você. Se tiver juízo, faça que não haja uma terceira. — Por quê? Correia armou um sorriso felino. — Porque se houver essa terceira vez eu o matarei. — Ah... — fez o rapaz sem expressar humildade nem atrevimento. — Dê o fora e trate de evitar um terceiro encontro. — Ara, quase me esqueço! — sorriu Rock, segurando Lisa de novo pelo braço. — Eu estava com muita pressa; isto é, tenho muitas coisas para fazer. Levando as duas garrafas debaixo do braço e a caixa de balas na mão esquerda, empurrou suavemente Lisa para a saída. Ela só então compreendeu que deveria tê-lo atendido da primeira vez e se deixou levar docilmente, saindo os dois de armazém. O armazeneiro Queiroz continuou imóvel, atrás do balcão, aguardando novas ordens dos perigosos fregueses. Ignorava que seu nome também estava na lista imunda de Correia e, igualmente, que o pistoleiro decidira poupá-lo enquanto necessitasse de seus serviços.
CINCO Boa saída estratégica Na agência de correio e telégrafo, o fazendeiro Marcos Lucas e seus colegas contemplavam, perplexos, o espetáculo de vandalismo. Lucas ficou de tal forma desnorteado que comunicou desnecessariamente: — Barnabé está morto... — Por quê?... — exclamou Jaime Martins, consternado. — Esse tipo de gente necessita de pouco motivo para matar — lembrou o fazendeiro Costa, igualmente abatido. — Vejam o que encontrei — disse o fazendeiro Torres, exibindo o formulário telegráfico preenchido. — um telegrama para o velho Chaves, no Atlanta Hotel da Capital. — De que data? — quis saber Lucas. — É de hoje! Não compreendo. E está firmado por Letícia. Eu seria capaz de jurar que ela não esteve por aqui está manhã. Fiquei na venda desde cedo, esperando vocês para a reunião, e não vi Letícia passar. — Que diz o telegrama? — perguntou Martins. — Bem... — fez Torres, lendo de novo. — Pede que ele volte imediatamente por causa de um assunto importantíssimo. — Assunto importantíssimo aqui! — murmurou Lucas, intrigado. — Só pode ser uma brincadeira. Deixe-me ver isso. Recebeu o telegrama e leu atentamente, franzindo a testa.
— Não entendo... — murmurou. — Ei, Marcos, sua filha está saindo do armazém de Queiroz, nada mais, nada menos que com Rock Bolth — comunicou Costa. Lucas meteu no bolso o telegrama e foi à janela, comentando: — Aí está uma coisa pela qual serei eternamente grato a esse maluco teimoso. Só me pergunto que aconteceria se Rock não estivesse com ela. Que diabo fazia Lisa no armazém? — Poderíamos perguntar a Rock — sugeriu Batista, outro fazendeiro. — Talvez ele tenha alguma idéia, do que está acontecendo. — Por que deveria ter? — perguntou Lucas, intrigado. — Bem. Ele já topou duas vezes com esses foragidos. A primeira na casa de Chaves e a segunda na loja de Queiroz. Talvez os pistoleiros tenham falado e Rock tirado conclusões. — Vamos sair daqui — propôs Torres. —Antes de mais nada, temos de providenciar o enterro de Barnabé. Depois, creio eu, devíamos pedir satisfações a esses estranhos. Todos olharam para ele como se o considerassem irreparavelmente louco. Torres compreendeu que sua idéia era fácil de apresentar mais difícil de concretizar e se limitou a um resmungo, insistindo: — Devemos cuidar agora mesmo do enterro. Com isso, todos estavam de acordo e logo saíram da agência de correio. ***
Rock, viu o grupo sair da agencia telegráfica mas continuou puxando Lisa Lucas pela mão até onde deixara sua mula ‘Tia Juana”. — Oh... — fez Lisa, tentando livrar-se da mão dele. — Lá está o meu pai. Será melhor... — Cale-se! — cortou Rock. — Venha comigo e não faça nada sem minha ordem. E não se vire, nem olhe para trás. Chegaram onde a mula pastava e ele chamou-a carinhosamente: — Ei, “Tia Juana”, trate de se mexer. Não pense que ficará aí enchendo essa barriga grande enquanto necessitamos de você. Venha... Após mexer as orelhas, a velha mula horrível obedeceu mansamente. Rock encarrapitou Lisa em “Tia Juana” e se ouviram gargalhadas. — Não se vire para olhar nem demonstre alterar-se por causa dessas risadas — ordenou Rock, também montando, com a loura em sua frente. “Tia Juana” saiu andando como se não carregasse peso algum e se ouviu um disparo. A bala cravou-se no chão, entre as pernas da mula, que apenas se contraiu ligeiramente e continuou andando. Seguiram-se vários disparos, que levantaram nuvenzinhas de terra ao redor do animal, e desta vez “Tia Juana” demonstrou certa inquietação, apressando o passo e movendo-se para um lado e outro, pretendendo instintivamente esquivar-se. Era evidente que os atiradores não pretendiam balear o animal, pois lhes teria sido
facílimo. Queriam apenas divertir-se. As risadas tornaramse mais ruidosas. Rock Bolth conseguiu dominar a mula e fazê-la trotar em linha reta, o que deve ter estragado a brincadeira dos pistoleiros, visto eles pararem de atirar, passando a remuniciar seus revólveres. Correia olhou para o grupo de fazendeiros que continuavam no alpendre da agência de correio e perguntou, aos gritos: — Que estão fazendo aí? Ninguém respondeu e Correia atravessou a rua, plantando-se diante do grupo. — Cada qual para o seu ninho — ordenou. — A coisa se tornará muito divertida em Serra Mansa, mas por enquanto não quero ver ninguém na rua. Vamos, desapareçam. Ninguém aguardou a segunda ordem. Todos foram até a barra diante da venda à qual haviam atado as rédeas de seus cavalos, montaram e se afastaram do povoado. Afinal, enterrar um simples telegrafista não era missão que justificasse riscos de vida. Martins Lucas separou-se dos demais e fez a montaria galopar na mesma direção seguida pela mula de Rock, alcançando-a a pouca distância de Serra Mansa. Cavalgaram emparelhados sem se falar, até que cruzou com eles uma bonita charrete tirada por belo animal castanho de trote elegante. Na boléia, uma mulher ruiva atraente, de olhos verdes, vestida com luxo, e um cavalheiro moreno que rondaria os quarenta anos, atarracado, de ombros largos, feições sinistras e olhos cruéis. Muito bem vestido.
Os dois personagens passaram alheios e continuaram rumo a Serra Mansa. Lucas olhou fixamente o casal e franziu a testa, mas não disse nada a respeito, limitou-se a virar-se para Rock e agradecer: — Obrigado por ter afastado minha filha do povoado. Rock. Passou maus momentos, bem? — De fato, senhor Lucas — sorriu Rock. — Confesso que não me agarrei bem e não caí de “Tia Juana” por causa de sua filha. — Não foi... Como assim? — Duas garrafas de cachaça... dona Lisa teve a gentileza de segurá-la para mim e se eu tivesse caído, os dois iríamos ao chão, com risco de quebrar as garrafas. Lucas ficou boquiaberto e Lisa reagiu se sacudindo para livrar-se dos fortes braços do rapaz, que a envolvia para segurar a corda usada à guisa de rédea. — Você por vezes se torna muito irritante, Rock! — só então protestou o fazendeiro. — É verdade. Mas creio que todos devem ser tolerantes comigo, pois não passo de um bêbado inveterado, como opinam certas pessoas. Que aconteceu na agência de correio? — Mataram Barnabé e destruíram as instalações. — Por que terão feito isso? — murmurou Rock. — É evidente: não querem que Serra Mansa mantenha comunicações com outras localidades. O seu Vale Paraíso está isolado, Rock. — Eu nunca usei o serviço telegráfico, senhor Lucas. Por mim, nem precisa existir. E como nada disso é da
minha conta. “Tia Juana” e eu continuaremos bebendo nosso cachaça em paz. Ela adora cachaça. sabe? Costumo despejar um pouquinho em sua água. Em vez de achar graça ou criticar, Lucas murmurou, pensativo: — Eu seria capaz de jurar que já vi esse homem... — Qual deles? — Esse que acaba de chegar de charrete com a ruiva escandalosa. Sim, eu conheço aquela cara, mas não me lembro de onde. — É possível, mas será melhor o senhor não ir cumprimentá-lo e dar as boas-vindas agora, senhor Lucas. A julgar pela cara desse homem, ele não é melhor do que aqueles seis e bem podem ser aliados. Talvez até já estejam reunidos. Pararam as montarias diante da porteira do rancho de Lucas e Lisa passou para a garupa do cavalo do pai. — Bem, está na hora de nos despedirmos — sorriu Rock, olhando para ela. — Até a vista. — Até nunca — rebateu a jovem. — Não serei eu quem sairá perdendo — zombou Rock. Marcos Lucas se irritou e, esporeando o animal, grunhiu: — Adeus!
SEIS Uma das coisas mais simples A charrete havia parado diante da venda de Serra Mansa, sendo imediatamente rodeada pelos homens de Correia. A Rua Principal estava absolutamente vazia, de portas e janelas fechadas. O homem atarracado de feições cruéis chamava-se Oséias Gomes. Ele e sua bela acompanhante ouviam explicações de Correia. Ela se chamava Beatriz Mendes tudo indicava que não ousaria confessar a maioria dos lances empolgantes de seu passado. — ... além disso, se apenas destruíssemos o telégrafo, ele talvez o reparasse e nossos planos seriam estragados — comunicava Correia, após revelar que matara Barnabé. — Certo — aprovou Gomes. — Oh... — fez Correia, com amplo sorriso. —O telegrafista se chamava Barnabé e seu nome constava da lista que você me deu. — Ótimo — aprovou de novo Gomes. — E as demais? — Não será difícil identificá-los e acabar com eles, conforme você ordenou, Oséias. — O telegrama foi passado e creio que o juiz não tardará a chegar — continuou Correia, satisfeito com a aprovação de Gomes. — Está em Capital, a uns vinte quilômetros daqui, sendo provável que chegue amanhã de manhã. — Teremos muito tempo, Correia. Vamos levai as coisas com calma, para que os acontecimentos não se
precipitem antes da chegada de Pedro Chaves. Ficaremos hospedados na pensão do dono da venda. — Está bem. — Vá expulsar quem esteja lá dentro e, se alguém bancar o valente, mate. Quanto ao proprietário, deixe-o em paz, ainda que seu nome conste da lista. Afinal, necessitamos de alguém que nos sirva bebidas e comida: — É você quem manda, Oséias. Estamos aqui para fazer tudo que nos mandar. — Certo — sorriu Gomes. — Você, Renato — apontou pata um dos pistoleiros, — vá à casa do juiz e fique dia e noite junto da mulher dele. Se não estivermos aqui quando o juiz chegar, mantenha os dois em casa, à nossa espera. Entendido? — Entendido, chefe. —Pode ir. Os demais, esvaziem a venda. Depois Batista nos fará companhia, a mim e a Beatriz, enquanto os outros se inteiram de tudo relacionado com a lista. Certo? — Certo, Oséias — sorriu de novo Correia. Renato rumou para a casa do juiz e as demais entraram na venda, com Correia na dianteira, constatando que somente o proprietário ali se encontrava: Correia fez um sinal a Gomes, que entrou com a ruiva. — Eles nos pouparam trabalho — declarou Correia. — Tornamos bem claro, logo de início, que seria melhor para todos nos deixarem em paz. — Bom trabalho, rapazes — aprovou Gomes. — Assim, temos todo um asqueroso povoado à nossa inteira
disposição. — Você, vendeiro, tem acomodações para gente fina no sobrado? — Sim... sim, se... senhor... — gaguejou Inácio, de pernas bambas, sentindo o cheiro da morte. — Ótimo. Subirá conosco e arrumará tudo para nos instalarmos comodamente. Será por apenas vinte e quatro horas. — Com muito prazer, senhor. Gomes sorriu com desprezo, segurando pelo braço a ruiva para subirem a escada de madeira. Inácio olhou para os pistoleiros e compreendeu que, durante aquelas vinte e quatro horas citadas pelo sujeito bem vestido, todos os demônios do inferno andariam soltos em Serra Mansa. *** Ao anoitecer, Oséias Gomes reuniu-se de novo com os pistoleiros em seu próprio quarto, faltando apenas Renato, que continuava vigiando Letícia Chaves. — Tudo indica que você sabe fazer as coisas, — Você paga bem, Oséias; por que fazer as coisas mal? — Tem razão, Algum de vocês teve alguma dificuldade? Todos negaram com a cabeça. — Ótimo. Agora, revelem o que conseguiram averiguar. Temos o suficiente para começar esta noite? Correia assentiu com a cabeça, especificando: — Já localizamos todos, Oséias. Sabemos exatamente onde encontrá-los e atacá-los. Monteiro, Lourenço, Chileno, Batista e eu agimos ligeiro pela manhã e à tarde por todo o vale.
— Muito bem. Continue. — Bom. Podemos começar por dar os nomes dos fazendeiros. São eles: Costa, Valério, Lobato, Bento, Martins, Telheiro, Haroldo e Lucas. Todos residem fora do povoado. — E os outros? — Tem também a tal Novais. — Que há de especial com esse Novais para que o cite em separado, Correia? — É médico, o único do povoado... —Nesse caso, não nos interessa matá-lo por enquanto. Quem sabe se poderemos necessitar de seus serviços mais adiante? Ouve risadinhas: — Continue. — Temos Inácio, o dono da venda, que você mandou poupar a fim de nos servir bebida e comida... Oséias gostou e sorriu até as orelhas. — A seguir, vem Cardoso, proprietário da estrebaria e único ferreiro do lugar. — Esse também nos poderá ser útil ferrando nossos cavalos, pelo que continuará respirando até eu decidir em contrário. — Bem... Só resta... Só resta o telegrafista Barnabé, que já mandei para o inferno com algumas libras de chumbo no peito. — Ótimo. Fica decidido que, por enquanto, pouparemos o médico Novais, o vendeiro Inácio e o ferreiro Cardoso, que nos poderão ser úteis de um momento para outro. Os
fazendeiros Costa, Valério, Lobato, Bento, Martins, Telheiro e Lucas serão os primeiros a sentir a inconveniência da minha volta. Correia deu uma risadinha de aprovação. — Todo povoadozinho como este sempre se transforma em palco de combinações para liquidar alguém — continuou Gomes. com cara de ódio. — Certo dia, forma-se um júri improvisado, presidido por um juiz insignificante, e são tomadas decisões que às vezes têm conseqüências desagradáveis para os participantes desse arranjo entre “compadres”. O condenado pode voltar anos depois e preparar as coisas de modo a ter os doze canalhas à sua disposição para matá-los. Isso está acontecendo agora. Não é divertido? Os seis pistoleiros riram bajuladoramente, pensando no dinheiro que estavam ganhando para concretizar a vingança de Oséias Gomes. — E quanto ao banco local, Oséias? — lembrou Correia. — Tudo muito fácil — sorriu Gomes. — Durante esta noite convenceremos todos os estúpidos deste lugarejo que nosso único objetivo é vingança. Assim que esta esteja consumada, nós cuidaremos do banco. Será unir o útil ao agradável... Novas risadinhas de aprovação. — Boa idéia. Oséias — opinou Correia. — Ninguém pensará que assaltaremos o banco. — Claro que não. O diabo é que não deve haver muito dinheiro guardado lá. Como disse que se chama? Banco Barreiro
— Hum... Deve ser o nome de algum sujeito rico e suficientemente maluco para estabelecer por conta própria um banco neste maldito lugarejo. Enfim, não nos custará nada meter mais alguns reais nos bolsos, não acham? —Claro — disseram todos, em coro. — Uns quinze ou vinte mil reais não podem ser chamados quantia insignificante — lembrou Correia, aguçando mais a cobiça de seus comparsas. — De fato — concordou Gomes. — Amanhã, depois de consumada a vingança, assaltaremos o banco e dividiremos igualmente entre nós o que encontrarmos no cofre. Isso, sem contar com o pagamento que lhes devo por este trabalho. — Boas falas, Oséias — aprovou Correia, pelos demais. — Está bem, agora dêem o fora. Eu os avisarei quando estiver pronto para sair esta noite... de visita. Os pistoleiros riram de novo e foram deixando o quarto que Gomes ocupava com Beatriz. O último a sair foi Correia, que fechou a porta. — Não acha arriscado confiar tanto nesses homens, Oséias? — perguntou Beatriz, assim que ouviu distanciarem-se, pelo corredor, os passos de Correia. — Por quê? Que lhe parece arriscado, Beatriz? — Não sei. Esse tipo de gente não gosta muito de obedecer até o fim. — Eles fazem um trabalho para mim, eu lhes pago bem, e pronto. Isso de não obedecer até o fim é muito relativo, porque nem eles nem eu sabemos em que consistirá precisamente o fim. Na verdade, tipos como Correia,
Renato, Monteiro, Lourenço, Chileno, Batista e outros iguais a eles vivem exatamente disso: encontrar alguém disposto a pagar bem para que pratiquem canalhices. — Admite que vai fazer uma canalhice? — Sim. — Então, por que não desiste? — Por vingança. Você está cansada de saber que tomei essa decisão. — Sim, mas... — Que será desta vez, Beatriz? — rosnou Gomes, encarando-a com dureza. — Não está contente de ter vindo comigo? — Não se trata disso, Oséias. É que matar doze pessoas e um juiz, ou seja, treze pessoas... Isso me parece uma chacina. — Sabe o que tem a fazer e será melhor para você? Vou dizer: ocupe-se de seus assuntos e não se intrometa nos meus. Assim que eu me vingar viveremos bem, muito longe daqui, esquecidos de tudo. Isso de eu matar ou mandar matar treze pessoas não lhe deve tirar o sono, Beatriz. — A mim, não, porque não serei eu quem as matara ou mandará matar, Oséias. Gomes deu uma risadinha. — Está insinuando que terei remorsos? — Não, claro que não, Oséias. Seria tolice... — Uma grande tolice. Vamos tomar uns goles e nos entregar a uma coisa muito mais gostosa que a própria vingança. De acordo, Beatriz?
— Que remédio... Afinal, estou com você porque decidi servi-lo incondicionalmente. — E assim que eu gosto — sorriu Gomes. — Não esqueça nunca: incondicionalmente. Enquanto for obediente e carinhosa tudo lhe sairá às mil maravilhas. — É o que espero. — Fique tranqüila, porque minha cabeça vale pelo menos cem vezes mais do que as seis desses estúpidos, juntos. Terminada a vingança, estaremos livres deles e disporemos de pequena fortuna para começar vida nova em algum lugar agradável. Já imaginou? O fazendeiro Oséias Gomes e senhora, gozando a vida, sem pensar em nada... — Tomara que dê certo. — Claro que dará certo, mulher! — impacientou-se Gomes. — Não entende que a coisa é simples? Será uma questão de matar treze pessoas e livrar-me de seis canalhas que cobram para matar, Muito simples. Fez uma breve pausa e sorriu. — Agora, esqueça isso e seja carinhosa.
SETE Era o tipo de cabeça dura Naquela noite, como em quase todas, Rock Bolth encontrava-se na varanda de sua casa, saboreando bem espaçadamente a sua cachaça. Sentia-se, a contragosto, intrigado e irritado com o que se passava em Serra Mansa, pois lhe era impossível fugir a uma realidade: o povoado ficava encravado em um trecho do vale com suas terras pelo sudoeste, e aquela região era, para ele, a melhor do mundo, destinada, segundo imaginara, a jamais ser importunada por malfeitores. A idéia de Vale Paraíso se transformar em Vale Inferno por culpa de alguns pistoleiros lhe dava cócegas nas palmas das mãos, fazendoo alisar amiúde, instintivamente, as coronhas dos revólveres. Um detalhe muito significativo: ele sempre usava apenas um cinturão de balas, com o coldre direito livre, isto é, sem atar suas tiras de couro à coxa, mas agora exibia os dois cinturões cruzados nos quadris, os coldres direito e esquerdo bem atado às coxas, com 35 dois Revólveres perfeitamente azeitados. Seus instintos faziamno pressentir a vizinhança do perigo. Não obstante manter sua “artilharia” em forma e confiar em sua habilidade para manejá-la, Rock não tinha nada de tolo, compreendendo que seria irracional defrontar-se sozinho com seis homens que faziam do revólver sua “ferramenta de trabalho”.
Meteu a mão por trás do chapéu, para coçar a. nuca, chateado com o que via. Aquelas labaredas vermelhas, ao longe, só podiam ser de incêndios. Nesse instante “Tia Juana” saiu da arruinada cocheira e se plantou diante dele, distendendo as beiçolas para relinchar. Rock considerava a velha mula pelo menos tão inteligente quanto ele e, por falta de outra companhia, adquirira o hábito de lhe falar como a um semelhante. — Que acha daquilo, sua velha preguiçosa? A mula continuou imóvel, olhando-o com olhos que pareciam injetados de brejeirice. Rock encolheu os ombros e continuou: — Não vai dizer que não viu aquelas chamas! Na minha opinião, aquilo é mais que simples fogueiras e... Escute, sua interesseira. Aposto como só veio pedir cachaça... “Tia Juana” aprendera a associar o som da palavra cachaça ao prazer de beber água dopada. Suas orelhas enormes, antiestéticas, moveram-se para frente, em direção ao rapaz, como se ela esperasse a repetição da palavra mágica, e Rock, com uma risadinha, levantou-se para recolher um balde com água, à qual acrescentou o equivalente a uma dose de cachaça. Escusado dizer que “Tia Juana” acompanhou-o até a bomba manual e ficou aguardando, não se fazendo de rogada quando Rock colocou diante dela o “néctar”. Sorveu-o ruidosamente e o rapaz seria capaz de jurar que ela por duas ou três vezes estalara a língua de satisfação. Rock voltou para o degrau da varanda, tomou uma golada dó gargalo e enrolou um cigarro, deliciando-se com
as tragadas, enquanto analisava, pela enésima vez, a situação criada pelos fazendeiros por causa de seus pastos. — Não me ajudaram quando eu mais precisei deles e agora... — resmungou. — Não creio que se atrevam a invadir meus pastos, nem a tentar me expulsar do que é meu. Ouviu aproximar-se um galope, que se interrompeu de súbito atrás da casa, e ficou tenso. Apurou os ouvidos e captou os passos se aproximando, até chegarem à esquina da varanda. Sua reação foi espantosa. De sentado que estava, saltou qual felino e se plantou no meio da varanda, algo inclinado para frente, as pernas ligeiramente separadas e os revólveres firmementes empunhados. — Rock! A exclamação de Lisa Lucas levou-o a devolver prontamente os revólveres aos coldres sorrir. — Da próxima vez que me visitar à noite, por favor, chegue cantando ou assobiando, ou, pelo menos, grite por mim, ouviu? — É que... — gemeu Lisa, que recuara para trás da parede. — Vamos, saia daí, pois não gosto de falar com quem não posso ver, nem mesmo quando essa pessoa mereça minha confiança. Lisa Lucas reapareceu, muito desconcertada, aproximando-se. — Pensei que fosse morrer...
— Não esteve longe disso — sorriu de novo Rock. — Por que desta vez preferiu vir à noite? — Vim... Vim para ficar. O queixo de Rock quase lhe caiu ao peito. — Para ficar comigo! — murmurou, incrédulo. — Sim, senhor Rock. — Se meteu essa idéia na cabeça, comece por acabar com essa história de senhor Rock para cá, senhor Rock para lá. Pode me chamar de Rock. Sinceramente, Lisa, não lhe gabo o gosto... Se tiver juízo, dará meia-volta e sumirá de minha vista, enquanto é tempo. — Não me deixará ficar?... — Bem. Não sou propriamente um tolo capaz de repelir tão tentadora companhia, mas minha consciência me diz que... — Está vendo aqueles incêndios, Rock? — cortou a loura. — Naturalmente. — Ranchos incendiados. Ele se havia sentado de novo e dispunha-se a tomar mais um gole de cachaça. Ficou com a garrafa erguida, olhando interrogativamente para Lisa. — Que disse? — Vários ranchos estão queimando. As chamas ainda não passaram dos celeiros e demais construções, mas será coisa de minutos. Rock parecia realmente perplexo, pois chegou a largar a garrafa no chão, levantando-se. — Afinal, que está acontecendo por lá? — quis saber.
— Oséias Gomes. — Oséias Gomes? Não entendo. — Lembra-se daquele homem que chegou de charrete, com uma ruiva, quando nos afastávamos do povoado, a quem meu pai afirmou conhecer, sem saber de onde? — Sim, sim. E daí? — Pois esse Gomes, com aqueles seis pistoleiros, estão ateando fogo a todos os ranchos do vale. Quando chegaram ao nosso, meu pai se dispôs a resistir e me mandou vir para cá, ficar com você. — Seu próprio pai? — exclamou Rock, boquiaberto. — Ara! Eu pensei que ele fizesse péssimo juízo de minha humilde pessoa! — Bem... Não foi propriamente ele quem decidiu... Quero dizer, especificamente... Ele mandou que eu buscasse um lugar seguro e eu resolvi... — Que esse lugar seguro é a minha ruinosa morada... — É. — Hum... Então, quando me disse “até nunca mais”, estava falando da boca para fora, bem? — Seu vingativo! Seu... adeus, senhor Rock! — Espere! Não sairá daqui sem me explicar, direitinho, por que esses homens estão incendiando os ranchos da região. — São ordens daquele que chegou de charrete, chamado Oséias Gomes. Cometeu um delito e ficou decidido que, em vez de ser enviado a Capital para julgamento, seria julgado aqui mesmo. Foram eleitos doze jurados do lugar, inclusive o meu pai, e o julgamento foi presidido pelo juiz Pedro
Chaves. Aconteceu há seis anos, tempo da pena que Gomes recebeu. — Agora, começo a compreender. E quais foram os outros jurados? — Os fazendeiros Haroldo, Telheiro, Bento, Martins, Valério, Lobato, Costa, o telegrafista Barnabé, o taberneiro Inácio, o ferreiro Cardoso e o doutor Novais. — E todos estão sofrendo, agora, as conseqüências do tal julgamento... — Até o momento, somente Barnabé, que foi morto, e os fazendeiros. — Certo. E, ao que tudo indica, esse Oséias Gomes também pretende vingar-se no juiz Pedro Chaves. — Meu pai está convencido de que pretende matá-lo. Só se lembrou de sua fisionomia à noite, pouco antes de começarem os incêndios. — Bom... — sorriu Rock, inclinando-se para alcançar a garrafa de cachaça. — As vinganças são muito comuns hoje em dia. — Mas Oséias Gomes quer vingar-se da lei e a lei só pune os criminosos ou infratores, Rock! Ninguém pode vingar-se da lei. — De fato. Mas como nada disso me afeta diretamente, isto é, nenhum desses pistoleiros terá motivos para incendiar meu pobre rancho nem matar minha linda mula, continuarei afastado dessa encrenca, saboreando o meu cachaça — e meteu na boca o gargalo da garrafa. — Como sabe que não será atingido?
— Muito simples: não fui jurado no julgamento desse Gomes e, portanto, o meu nome não consta da lista que eu vi um desses pistoleiro consultar na casa do juiz Chaves. — Mas sua atitude não poderia ser mais... — Egoísta? — concluiu Rock, com um sorriso irônico. — Que mais fizeram os fazendeiros deste vale quando meu rebanho morreu doente? Nenhum me estendeu sua mão amiga. Por que retribuir com a minha ajuda? — Para se garantir legalmente contra as pretensões dos fazendeiros de invadir seus pastos terá de contar com o pronunciamento do juiz Chaves e esse Gomes também pretende matá-lo — lembrou, com muita perícia, Lisa Lucas. — Que ele pretenda liquidar o juiz, embora moralmente condenável, tem a sua lógica. Afinal, foi senhor Chaves quem ditou a sentença. Lisa ficou boquiaberta. Após alguns segundos, murmurou, muito abatida: — Um desses bandidos mantém Letícia Chaves prisioneira em sua própria casa. Todos tememos pela segurança da boa velhinha. — Como disse! — quase gritou Rock, saltando para trás, de olhos arregalados, como se houvesse deparado com uma cascavel. — Eu disse que um desses pistoleiros está vigiando dona Letícia como meio seguro de dominar o juiz. Se ele reagir, ela será morta. Rock Bolth surpreendeu inicialmente Lisa Lucas com a transformação que apresentou. Relaxando os músculos,
sorrindo e se inclinando para alcançar a garrafa de cachaça, deu-lhe a impressão de que a segurança da velhinha não lhe importava. Porém, assim que sorveu uma golada e jogou longe a garrafa vazia, declarou, ainda sorrindo. — Parece que teremos de ir até lá. — Até lá?... — Sim, até lá. Até a casa do juiz. Afinal, não podemos deixar aquela santinha à mercê de um anormal. — Está declarando disposição para ajudar Letícia Chaves? — balbuciou Lisa, incrédula. — Exatamente. — Mas... não havia dito que não se meteria nessa encrenca? Rock alisou as coronhas dos revólveres e sorriu amplamente. — Para ajudar aos fazendeiros, não, mas dona Letícia é o tipo da criaturinha que leva a gente a se meter no inferno para enfrentar o próprio Satanás. Quer saber de uma coisa? Eu amo aquela velhinha! Lisa Lucas ficou de olhos marejados. Afinal, Rock Bolth não demonstrava ser nada daquilo que diziam e até demonstrava capacidade para amar uma velha por suas qualidades de coração. Bastante animador para quem estava de olho nele. — Fique aqui e não se deixe ver, entendeu? — Irei com você! Rock ficou sério. — Não banque a criança, Lisa. Aquilo se tornou um ninho de serpentes. É bem provável haver tiroteio e...
— Se você for, irei com você! — Teimosinha, hem? — Eu também quero ajudar dona Letícia. Se partir sozinho, irei logo atrás e será muito pior, porque estarei... — Está bem! — grunhiu Rock, sacudindo a cabeça. — Será mais trabalho para mim, mas não vejo como evitar. Que está esperando? Vá buscar o seu cavalo.
OITO Um sujeito movido a cachaça Lisa Lucas virou-se para obedecer, mas Rock segurou-a pelo braço, dizendo: — Mudei de idéia. Se você for em seu cavalo chamará muita atenção, parecendo estar sozinha. Indo comigo na “Tia Juana” será diferente. — Por quê? — Muito simples — sorriu Rock, ainda segurando-a pelo braço. — Esses pistoleiros já nos viram juntos na mula e por certo imaginaram que você seja minha. Se não têm nada contra mim, não terão por que se voltarem contra você, a não ser atraídos por seus encantos. Lisa enrubesceu intensamente. Aquilo de “seja minha” e a referência aos “seus encantos” fora demais para quem estava embeiçada peio rapagão. — Está bem — concordou, baixinho, sem ousar encarar Rock.
Foram a Serra Mansa cavalgando “Tia Juana”, que demonstrou especial aptidão para se mover no escuro. Rock obrigou a mula a parar quando estavam a uns cem metros do povoado, deixou-a solta entre umas árvores e continuou a pé, levando Lisa pela mão. O povoado só não estava completamente às escuras porque chegava até ele o clarão vermelho dos incêndios. Parecia uma cidade fantasma. Ou o centro de um inferno rodeado por seis ou mais fogueiras enormes, que marcavam o começo da vingança de Oséias Gomes. Em vez de entrar pela Rua Principal, o rapaz entrou em Serra Mansa pelo norte, caminhando pelos fundos das casas. Graças a isso, em poucos minutos estavam no quintal da residência do juiz Pedro Chaves. — Tem certeza de que há somente um bandido com ela? — perguntou. — Não, mas é o que ouvi dizerem por ai. — Dizerem por aí... — repetiu Rock, muito serio. — Temos de nos certificar antes de tomar qualquer iniciativa. Muito bem, cale essa boquinha linda e não desgrude de mim, ou terei que de lhe dar uma surra antes de morrer. Lisa não soube se exultava o elogio à sua boca, realmente linda e provocante, ou reclamava por causa da promessa da surra. Preferiu calar-se e obedecer, aferrandose com força à mão do rapaz. Caminharam quase colados até alcançar a cerca dos fundos da casa e, demonstrando uma potência muscular que ninguém seria capaz de prever, ele agarrou Lisa pela cintura, ergueu-a e deixou-a do outro lado, saltando a cerca como um felino. Caminharam nas
pontas dos pés e chegaram diante da porta da cozinha, a qual Rock experimentou com absoluta cautela. A porta cedeu. Rock segurou Lisa pela nuca, puxou sua cabeça até seus lábios quase se tocarem e sussurrou em tom imperativo: — Vou entrar sozinho e não ouse protestar. Se concluir que as coisas estão más para mim, trate de fugir para bem longe, sem fazer ruído. Entendeu, ou devo repetir? — Entendi. — Sabe que se não lhe causasse tanta repugnância eu a beijaria? Além disso, talvez se embriagasse com o meu hálito de cachaça. Ela sentiu as pernas tremerem violentamente e pensou que fosse desabar. Fechou os olhos. — Está tornando a coisa ainda mais difícil para mim, Lisa. Ela estremeceu. — De lábios entreabertos e olhos fechados, está prontinha para ser beijada. Mas não vou beijá-la. Lisa sentiu o coração dar pinotes. Por que ele não a beijaria? Por quê! Antes que pudesse chegar a uma conclusão, percebeu o movimento brusco de Rock e, ao abrir os olhos, viu-o entrar, sumindo de sua vista. Assim que entrou, Rock viu a luz na outra dependência da casa e imaginou Letícia Chaves morrendo de medo, encolhida no sofá, com o bandido aboletado numa poltrona, olhando impiedosamente para ela enquanto brincava com o
seu Revólver, girando-o no indicador direito pelo guardagatilho. Como arrancar daquela situação a pobre velhinha? Evidentemente, se irrompesse de surpresa na pequena sala, o bandido faria uso da arma e o disparo atrairia os outros seis bandidos, incluindo o próprio Oséias Gomes. Sete contra um, caso não abatesse de imediato o pistoleiro naquela salinha. Após meditar com a devida seriedade, sorriu com ares demoníacos, tirando do cano da bota a sua faca de campo e colando-se ao portal. Tentara inutilmente ver pelas frestas da porta de tábuas o bandido e situá-lo bem para dar o bote. Com a vista já acostumada à penumbra ambiente, pode ver outra porta e abriu-a, sentindo o coração bater forte. Era o quarto do casal, cuja janela dava para a varanda. Abriu silenciosamente a janela, saiu à varanda, bateu na porta da frente e voltou correndo nas pontas dos pés para junto da porta interna da saleta, após saltar de novo a janela e atravessar o quarto. — Vá ver quem é, velhota! — rosnou o bandido. — Deve ser um dos nossos trazendo boas notícias. Tomara que tenha vindo para me render neste cubículo. Letícia Chaves caminhou com passos miudinhos mas seguros e abriu a porta da rua, tendo o bandido às costas, alisando a coronha do Revólver. Ninguém. Quando ela se virou para comunicar o fato, empalideceu intensamente e se apoiou no trinco para não cair de espanto, pois o bandido estava caldo nos braços de seu conhecido
Rock Bolth. Imóvel, com um punhal cravado até o cabo na garganta. Rock depositou o cadáver no chão e, sorrindo quase com amor para a velhinha, pediu: — Por favor, dona Letícia, tenha a bondade de me acompanhar. Devemos sair daqui imediatamente. — Santo Deus! Quanto... quanto sangue!... — Por favor, vovó, esqueça isso. Os outros podem surgir aqui e seis pistoleiros é demais para mim. Ela começou a andar em direção à porta que dava para o corredor interno, de comunicação com a cozinha, e murmurou, muito assustada: — Não compreendo... Não sei por que tudo isso... — Muito simples, vovó: esses malfeitores são amigos de um homem chamado Oséias Gomes, o qual, segundo me consta, seu marido condenou a seis anos de prisão. Agora, Oséias Gomes voltou para se vingar, trazendo seis revólveres de aluguel. Segundos depois atravessavam o pequeno quintal e Rock erguia a velhinha nos braços, pondo-a de pé do lado de fora da cerca. Saltou e Lisa Lucas se lançou em seus braços, em prantos. — Oh, Rock, você conseguiu! Você conseguiu! — Além de teimosa. chorona — brincou Rock, afastando~a com delicadeza. — Não devemos perder tempo. Apóie-se em mim, vovô. Não, espere... Tomou nos braços a velhinha, como se erguesse uma pluma, e, seguido por Lisa, caminhou ligeiro para onde deixara a mula.
— Sabe de uma coisa, “Tia Juana”? Você vale ouro. Assim que chegarmos em casa eu lhe darei um balde de água com cachaça. Parecendo entender, a velha mula partiu a trote fácil, levando na garupa Lisa e Letícia, com Rock quase correndo para acompanhá-la. — O senhor vai ficar muito cansado, senhor Rock — preocupou-se a esposa do juiz. Rock Bolth deu uma risadinha. — Sou movido a cachaça. vovó. Quer apostar como essa velha mula entrega os pontos se eu correr mais um pouco? Apesar da situação que estava vivendo, a velhinha sorriu. Lisa também sorriu e, sem conter, atirou um beijinho para Rock. — Ara! — exclamou o rapaz. — Agora, terei forças para atravessar o país inteiro a pé! As duas riram e “Tia Juana” agitou as orelhas enormes, peludas, como se também houvesse entendido.
NOVE Era preciso ganhar dinheiro Embora “Tia Juana” demonstrasse estar muito aquém da genialidade instintiva que lhe atribuía Rock Bolth e, por isso, não desse o menor sinal de estranheza, ele percebeu que havia novidades em sua casa, talvez perigosas. Por isso, deixou as duas mulheres e a velha mula sob uma árvore e, após examinar as cargas de seus Revólveres, aproximou-se cautelosamente, pé ante pé, entrando por uma das extremidades da varanda após saltar a balaustrada. Moveu-se colado à parede da varanda após soltar a balaustrada. Moveu-se colado à parede e, quando chegou à janela aberta, disposto a saltar e transformar a sala num inferno de chumbo e chamas ouviu a voz de Marcos Lucas: — É você, Rock? Ele andou sem pressa, entrou pela porta e respondeu desnecessariamente, pois era bem visível pelo fazendeiro: — Sim, sou eu. — Podem sair, rapazes. — Um momento! Que história é essa de “podem sair”? — Bem... é que, não sabendo quem se aproximava, mandei os outros se meterem no quarto e fiquei sozinho na sala. Caso fosse um dos pistoleiros de Gomes, ou ele próprio, com os seus homens, os nossos os atacariam de surpresa. — Não fosse pela invasão de minha casa, eu diria que foi um truque bem pensado. Podem sair, senhores. Boa-
noite — acrescentou, assim que os fazendeiros surgiram na sala. — Por que me honram com sua visita? Todos permaneceram calados, olhando para Lucas, que se adiantou um passo e, como sempre, foi o porta-voz do grupo: — Rock, você tem de nos prestar um grande favor... — Com muito prazer. Mas que poderei eu, um vadio dado à bebida, fazer por todos os senhores? Vender-lhe meu rancho, ou lhes alugar meus pastos? Refletirei com simpatia se revelarem seu propósito. Os fazendeiros se entreolharam e, como sempre, voltaram os olhos para Marcos Lucas, a espera de que ele falasse. — Você é o único capaz de fazê-lo... — murmurou Lucas, de cabeça baixa, levantando-a para soltar a bomba: — Tem de nos ajudar a enfrentar esses bandidos. — Ara! Por que “tenho” de ajudá-los? — Rock, entenda que... — Não entendo nada, senhor Lucas. Já se completaram três anos que estou aqui, a maioria dos quais falido, sem que qualquer dos senhores me estendesse a mão ou sequer me perguntasse se passo fome! Não fosse o amigo Queiroz. que me compra milho e me adianta algumas coisas de que necessito para continuar respirando, eu já estaria debaixo da terra. Consultem sua consciência e respondam, honestamente, se prestariam ajuda a quem os tratasse como me vêm tratando — olhou para os fazendeiros, movendo a cabeça em leque. — Afinal, que pretendem realmente de mim?
— Esses seis homens que chegaram a Serra Mansa e... — Sete — corrigiu Rock. — Chegaram sete, senhor Lucas, mas, sem saber, citou o número dos restantes. Um deles, chamado Renato, já está descansando de suas canalhices. — Você... você o matou, Rock? — balbuciou Lucas. — Bem. Eu lhe dei uma punhalada na garganta e ele preferiu morrer. — Como pode falar assim, tão friamente, depois de haver... — Acha que falei “assim, tão friamente”, senhor Lucas? Esperava que caísse em prantos, lamentando ter livrado a humanidade de um dos seus piores representantes? Marcos Lucas sorriu amarelo e, dando mais um passo à frente, afirmou: — Essa sua firmeza é mais uma prova de termos encontrado a única pessoa capaz de enfrentar com êxito esses seis desalmados. — Admite tão descaradamente que, de nós todos, sou o único homem de verdade? A pergunta teve o efeito de uma bomba psicológica, fazendo os fazendeiros empalidecerem intensamente, inclusive Lucas, que custou a admitir: — Exatamente, Rock. Em se tratando de enfrentar esses anormais, é a pura verdade. — Ara! Homem... — Eles destruíram os telégrafos e se um de nós for a cavalo em busca de ajuda não chegará ao destino. Esta é a dura realidade, Rock: assim que amanhecer, esses
matadores profissionais nos caçarão como a coelhos e nos liquidarão a todos. — Pois lutem. — É que... bem... Durante toda a vida fomos apenas fazendeiros’ e nada mais, Rock — murmurou Lucas, de cabeça baixa. — A verdade é que não sabemos lutar... — Pois aprendam. Não quero contar prosa, mas aprendi em horas. Possivelmente tive a coisa muito facilitada por meus maus instintos, como sempre opinaram certos cidadãos de Serra Mansa, mas os senhores terão a falta desse defeito substituída pelo desejo de viver. Qualquer um aprende a matar para não morrer. — Por favor, Rock, não nos humilhe tanto! — pediu Costa, também se adiantando um passo. — Afinal, o fato de virmos pedir ajuda é uma demonstração de que nos penitenciamos... Rock Bolth continuou inexpressivo, olhando-os sem ódio, desdém ou simpatia. Nenhum deles seria capaz de adivinhar o que ele estava pensando e Marcos Lucas não se conteve: — Por favor, Rock, diga-nos o que está pensando. — Em ajudá-los. — Oh! — foi o coro geral. — Isso é maravilhoso! — exclamou Lucas. — Calma... Vamos com calma. Eu os ajudarei sob certas condições. Eis a minha condição: comprometer-me a que ao meio-dia de amanhã, o mais tardar, todos esses homens estejam mortos ou tenham fugido daqui, apavorados. — Ótimo! E a nossa condição? — indagou Lucas.
— Cada um dos senhores me pagará mil reais. Os fazendeiros ficaram atônitos, consultando-se rapidamente com o olhar, cada qual à espera de que o outro expressasse discordância. Enquanto isso, Rock começou a enrolar um cigarro. — Você disse mil reais? — Por cabeça. De fazendeiro, é lógico. Ou suas cabeças não valem essa ninharia? — Isso... isso faria de você um revólver contratado, um matador profissional! — comentou Lucas, muito sério. — Se fracassei como fazendeiro, vejo-me na obrigação de tentar outra atividade para a qual esteja mais qualificado, não concorda? — Bem... Matar em legítima defesa, protegendo os direitos de pessoas honradas, é uma coisa; matar por dinheiro. — Quer saber de uma coisa, senhor Lucas? Eu estava disposto a exercer o meu direito de legítima defesa e matar todos os senhores, caso invadissem minha propriedade. — Pretendia... — murmurou Lucas, perplexo. — Por quê se espanta? Não é partidário da legítima defesa? — Bem... — Estamos perdendo um tempo precioso, senhor Lucas. Não se envergonhe por mim de ser um revólver contratado e livrem-se da enrascada aceitando minha condição. Marcos Lucas olhou para os demais fazendeiros e todos moveram a cabeça afirmativamente,
— Está bem, Rock. Mil reais por cabeça — concordou. — Que pretende fazer? Isso exige muita ponderação, senhor Lucas. Afinal, matar seis profissionais do gatilho não é o mesmo que eliminar uma meia-dúzia de fazendeiros atrevidos. Lucas engoliu em seco. — Está bem. E que devemos fazer? — Nada. São os que pagam e tem o direito a não fazer nada enquanto o seu revólver contratado faz tudo pelos senhores. Porém não imaginem que ficarão nesta varanda, refestelados em minhas cadeiras, enquanto arrisco a pele. Partirão imediatamente e se plantarão a meio caminho entre Serra Mansa e Capital, ocultando-se em algum lugar perto da gruta de Livramento, ficando atentos para evitar que o juiz Chaves chegue ao povoado. Ah... E levarão com vocês dona Letícia e a senhorita Lisa. Afinal, não poderei a um só tempo matar seis pistoleiros e cuidai de duas garotas simpáticas — olhou carinhosamente para Letícia Chaves, que lhe sorriu com doçura maternal. — Combinado? — Combinado — aprovou Lucas. — Ficarão onde lhes indiquei até que eu lhes. mande alguém avisar da nossa vitória. Se até o anoitecer de amanhã ninguém chegar com a boa noticia, será porque as coisas não foram bem para o meu lado e... Bom, nesse caso, eu não gostaria de estar na pele dos senhores. Sem mais, saiu à varanda e, saltando a balaustrada, caiu enganchado no lombo de “Tia Juana”, que viera seguindo Letícia Chaves e Lisa Lucas quando elas se aproximaram,
após constatarem que os “intrusos” não eram outros senão os próprios fazendeiros. — Sinto muito, sua velha manhosa, mas terá de ser mais uma vez útil a este seu bom amigo — disse, batendo com os calcanhares no barrigão da mula, que se pôs a andar. — Talvez você se livre de mim para sempre esta mesma noite. — Rock! — gritou Lisa, dos degraus da varanda. — Por favor, não vá! Rock apenas virou a cabeça para responder com um sorriso: — Não posso perder esses milhares de reais, Lisa. Acompanhe os demais até Livramento. Boa viagem. DEZ Um falido que sabia das coisas Eram dez da manhã quando Rock Bolth, escanchado no lombo da feiosa “Tia Juana”, apareceu no alto de uma das elevações do terreno que dominava Serra Mansa. Permaneceu durante alguns minutos montado, com a mula parada, pastando, Desmontou, deu uma palmada carinhosa na anca peluda de “Tia Juana” e lhe disse, quase com doçura: — Bem, sua velha manhosa, aqui nos separamos. Só Deus sabe se por minutos, horas ou para sempre — sorriu. — Se eu não voltar, vá para os campos e seja independente. Espero que não seja mula a ponto de não haver entendido que ninguém, em Serra Mansa, vai com a sua cara. E não encontrará outro pau-d’água para alimentar o seu vício de
bebida. Antes de nos separarmos, talvez para sempre, devo ter a coragem para admitir que fui eu que lhe transmitiu esse gosto pelo cachaça. Não foi por mal, sabe? É que ninguém gosta de beber sozinho e só você simpatizou comigo, aceitando de bom grado minha companhia. Creio já ter falado demais. Adeus. Deu meia-volta e se afastou, iniciando a descida em direção ao povoado. Escolheu o caminho que ia ter aos fundos das casas de um lado da Rua Principal, para não ser visto. Nunca Serra Mansa parecera tanto uma cidade fantasma, com todas as portas e janelas fechadas e ninguém na rua. Nenhum arraial brasileiro se mostraria, no despertar da madrugada, tão ermo quanto aquele arraial mineiro. Rock Bolth concluiu que Oséias Gomes e seus pistoleiros de aluguel, tendo dominado plenamente a situação em Serra Mansa, estariam comemorando o êxito de sua sanha incendiária noturna. Fora muito andejo antes de se fixar naqueles confins do oeste e sabia que geralmente tipos como aqueles, ao invadirem um povoado insignificante a ponto de não ter um hotel, decidiam alojar-se no único local possível para se garantirem comida e bebida à vontade. Deu uma volta para entrar em Serra Mansa como se estivesse a passeio, caminhando tranqüilamente pelo meio da rua, sabendo que por trás de muitas vidraças dezenas de olhos o observavam. E seus donos certamente já estariam convencidos de que ele só podia estar tomado da maior
bebedeira. Caso contrário, não ousaria entrar em Serra Mansa estando as coisas tão feias, Sorriu ao pensar que todos aqueles curiosos deveriam estar muito intrigados por não o verem cambalear. Rock Bolth jamais ficara bêbado e naquele instante gozava do pleno domínio de suas faculdades embora sua atitude imediata justificasse sua classificação como algo mais irreparável que a de embriagado: a de maluco. Ele simplesmente se deslocou para a calçada de tábuas e, assobiando e pisando firme, se dirigiu para a porta escancarada da venda. Empurrou-a e, após dar uma olhadela em leque, falou bem alto: — Bom-dia, cavalheiros. Estará por aqui um tal Gomes? Quase instantaneamente a massa de mira do revólver de Correia parou diante de seu nariz. — Ora vejam só! — ironizou o pistoleiro. — Não é que nos encontramos de novo, amigo Rock? — E o que parece. Mas não quero assunto com você e sim com esse tal Gomes. — Deveras? — sorriu amplamente Correia. — E que assunto tem para Gomes? — Eu disse com Gomes e não com você. — Bem... Eu sou Correia, homem de confiança e braçodireito de Oséias Gomes. Vá soltando a língua e lhe transmitirei a história. Rock sacudiu negativamente a cabeça. — Negativo, Correia. Será Gomes, ou ninguém mais. E não ameace meter-me uma bala na cabeça porque isso não me assustará. Tenho uma proposta de mútuo interesse para
Gomes e para mim. Ele poderá exercer mais depressa sua vingança e eu meterei alguns reais nos bolsos. Muito simples. Correia apertou as pálpebras. — Que história é essa, Rock? — Fiquei sabendo dos verdadeiros, motivos para Oséias Gomes e vocês estarem aqui. Pensei seriamente no assunto e concluí que lhes agradaria muito saberem prontamente onde se encontram os homens que conseguiram escapar... — Sabe, mesmo, de que está falando? — rosnou Correia, apertando ainda mais os olhos, com desconfiança. — Naturalmente, Caso não se interessem por um acordo, só me restará dar meia-volta e partir em minha boa amiga “Tia Juana”. — Tia Juana?... — Minha mula, Correia. Reconheço que é velha e feia, mas nos damos muito bem, talvez por gostarmos tanto de cachaça. Correia, em vez de achar graça, abriu os olhos e foi abaixando o Revólver. — Espere, Rock. Você sabe, mesmo, onde estão esses fazendeiros? — Sei. — Tem certeza? — Imagina que vim de longe para contar histórias? — Você nos dirá onde estão esses homens? — A você, não, Correia. Somente a esse Gomes. — Quer vender esses homens, hem?
— Não sou propriamente um Judas, mas sabe como são as coisas... Meu gado morreu de peste, fiquei arruinado e ninguém me ajudou quando eu mais precisava de auxílio. — Hum... — fez Correia, distendendo os grossos lábios em amplo sorriso canalha. — Também quer se vingar, hem? — Pense o que quiser. Estou primeiramente interessado em arranjar dinheiro para endireitar meu rancho mas, se com isso me vingar, estarei unindo o útil ao agradável. — Entendo — murmurou Correia, apertando de novo os olhos. — Espere aqui enquanto falo com Oséias. — Certo. Prefiro esperar aqui fora. Sem opor objeção a essa escolha, Correia atravessou os sacos de mercadoria da venda e meteu-se pela escada para o sobrado, reaparecendo apenas dois minutos depois. Aproximou-se do rapaz e lhe falou secamente: — Pode vir. Oséias está esperando. Rock Bolth atravessou o salão guiado por Correia e seguido pelos olhares dos pistoleiros Monteiro, Lourenço, Chileno e Batista, que jogavam cartas e bebericavam cachaça a uma das mesas de canto. Os bandidos compreenderam que não havia motivos para intervir e continuaram manuseando as cartas. Rock subiu precedido de Correia, que transpôs o pequeno corredor e parou diante de uma porta, batendo de leve. — Entre! — rosnou Gomes. Correia abriu e deixou Rock entrar. Imediatamente o rapaz viu Beatriz Mendes e Oséias Gomes. Ela, atirada de qualquer jeito no sofá, deixando à mostra boa parte das
pernas muito brancas, lisas e atraentes; ele, de pé no meio do quarto, encarando com dureza o recém-chegado. — Correia me disse que tem uma proposta interessante, senhor... — Rock. Rock Bolth. Correia não lhe disse meu nome? — Disse, mas eu me esqueci — rebateu secamente Gomes. — Muito bem, senhor Rock, diga qual é exatamente sua idéia, — Não entraremos em detalhes a respeito de sua presença em Serra Mansa, com os seus auxiliares, porque já me contaram toda a história nos mínimos pormenores. Sei que foi condenado por um júri de doze homens e o juiz Chaves ditou uma pena de seis anos na prisão. Também não ignoro que, cumprida a pena, o senhor contratou meia-dúzia de — olhou zombeteiramente para Correia — auxiliares para exercer vingança contra os que o condenaram aqui mesmo em Serra Mansa. Ontem à noite atacou algumas dessas pessoas, enquanto que outras continuam no povoado, sendo que nenhuma, segundo imagina, poderá escapar. Porém não vim falar dessas poucas que já estão sob seu controle e sim das que conseguiram desaparecer de seus ranchos. — Muito bem. E daí? — Acontece que meus negócios andam mal e estive pensando... Creio que com... digamos, dois mil reais, eu conseguiria endireitar a minha situação e o senhor se livraria mais depressa desses homens que pretende matar. — Entendo: pode me dizer onde estão essas pessoas.
— Exato. Ontem à noite o senhor e seus homens não foram muito eficientes e todos os fazendeiros conseguiram fugir. — Não tenho por que escutar sua opinião a respeito de minha maneira de fazer as coisas, senhor Rock. Portanto, limite-se ao que possa ser do interesse mútuo. — De acordo. O senhor me dá dois mil reais e eu lhe revelo onde se ocultam essas pessoas. Muito simples. — Bem pensado... — murmurou Gomes. — Dois mil, hem? — Nem um centavo a mais nem a menos, senhor Gomes. Com esse pouco eu conseguiria reformar minha casa, comprar umas reses e ainda guardar um dinheirinho para qualquer eventualidade. Como bem pode ver, nem a minha própria pessoa é agradável ao olhar. As roupas custam caro e tenho de comprar cachaça para me manter vivo. Beatriz Mendes soltou uma risadinha, porém Rock, olhando para ela, viu em seus olhos uma chispa de simpatia. — Alimenta-se de cachaça? — meteu-se a ruiva. — Fique fora disso! — cortou Gomes, e a ruiva deu de ombros, calando-se. Rock Bolth sorriu e disse, olhando para a mulher: — Não quero passar por cima de sua autoridade, senhor Gomes, mas justamente por consideração pela sua pessoa eu me considero na obrigação de responder à sua esposa. Oséias Gomes franziu a testa e Beatriz deu outra risadinha.
— Eu não me alimento precisamente de cachaça, senhora, mas essa bebida prodigiosa me engana o estômago, espanta a fome. Com o dinheiro que talvez me pague seu esposo, comprarei alguns alimentos e menos cachaça. — Coitado do rapaz. Oséias. Acho que você deve... — Cale-se! Você não acha nada! Ela encolheu os ombros de novo e Gomes decidiu: — Está bem, senhor Rock, eu lhe darei os dois mil reais e o senhor nos levará até onde se esconderam essas lebres assustadas. — Não! — Não? — murmurou Gomes, arqueando as sobrancelhas. — Não os levarei até onde se encontram as pessoas. Refiro-me ao seu grupo. O senhor me dá os dois mil reais e eu o levarei, ou a um de seus homens, até onde se escondem os fazendeiros. Na verdade, eu me limitarei a mostrar o local, desaparecendo em seguida. — Compreendo — sorriu Gomes, com evidente desprezo. — Não quer ser visto por eles segundos antes de morrerem. Certo? — Mais ou menos. Creio que ficarei mais tranqüilo não os vendo avariados. Prefiro que me acompanhem dois de seus homens. Eu lhes mostraria o lugar e, como disse, desapareceria. — Aceito. Correia, vá com ele. E leve Monteiro. Veja onde estão os coelhinhos medrosos, deixe Monteiro vigiando e venha buscar os outros rapazes. Aqui estão os seus dois mil reais, senhor Rock.
Tirou do bolso uma carteira polpuda e dela algumas notas, estendendo-as ao rapaz, que se adiantou alguns passos e recebeu o dinheiro, metendo-o no bolso da calça. — Bem, creio que isso me tira da má situação, senhor Gomes. De agora por diante eu o verei como meu benfeitor. Podemos ir? Oséias Gomes sorriu, satisfeito, fazendo um gesto para Correia, que se apressou a sair, após dar passagem Rock. O rapaz arriscou uma furtiva olhadela para as lindas pernas brancas de Beatriz, considerando Gomes um homem de sorte. Que mulher! Desceram até a venda e Correia fez um sinal a Monteiro, que prontamente largou a mão de cartas na mesa, levantando-se. O bandido derramou o copo de cachaça pela goela e se juntou a eles. Os três saíram à calçada de tábuas e Rock olhou para dentro, por cima da porta de vaivém, deparando com Gomes no patamar da escada, centro dos olhares dos três pistoleiros que haviam permanecido à mesa de jogo. Assim que partisse com Correia e Monteiro, o astuto Gomes mandaria os demais atrás deles para liquidarem depressa os fazendeiros. E por que deixar uma testemunha comprometedora? Claro que também seria mandado para o inferno durante a chacina. Sorriu discretamente e, movendo-se de modo significativo, chamou os dois pistoleiros para um lado. — Eu nunca fui ingrato, sabem? — disse, ampliando o sorriso. — Por isso lhes darei um presente inesquecível em troca da ajuda financeira que estou recebendo.
Os dois pistoleiros ficaram olhando bestamente para ele, muito desconcertados. Afinal, quem investira dois mil reais no trato fora Gomes e... E se aquele tolo estivesse disposto a lhes dar uma gorjeta? De fato, foram altamente gratificados. Não em dinheiro, mas em chumbo candente. Antes que pudessem sair do espanto, os dois Revólveres de Rock Bolth estavam vomitando fogo e balas. Monteiro rodopiou velozmente até bater de encontro à coluna de madeira, tombar sobre a balaustrada, girar nela e cair de costas na rua, levantando uma nuvem de poeira amarelada. Morto. Correia viu-se lançado para trás pelo impacto das balas no peito, girou, entrou de cabeça na porta de vaivém e foi estatelar-se de bruços no chão da venda. Morto. Porém Rock Bolth não se deteve apreciando essas piruetas macabras. Afinal, não pretendia acompanhar o telegrafista Barnabé nem os rancheiros Telheiro e Haroldo no outro mundo. Estes haviam sido assassinados durante o incêndio de suas propriedades, não conseguindo ocultar-se na casa de Rock. — Afinal, são dois assassinos a menos —murmurou, enquanto corria para os fundos do prédio, contornando-o pela direita. Sabia que Gomes e seus quatro pistoleiros restantes sairiam imediatamente e não estava com a menor disposição de ser o alvo de suas balas. Fez exatamente o que menos poderiam esperar os cinco bandidos: saltou a cerca dos fundos, atravessou o quintal, entrou na casa pela porta
traseira e num instante se encontrava no patamar da escada de madeira para o sobrado. Ainda pôde ver as costas de Gomes e seus homens, que se espalhavam pela rua à sua procura. Sorriu! Surgiu diante da escada, piscando o olho para o espantadíssimo Inácio, proprietário da venda. Subiu aos saltos e, segundos depois, dava verdadeira patada na porta do quarto de Gomes e Beatriz. A ruiva, que se aproximara da janela para ver o que se passava na rua, virou-se perguntando: — Que aconteceu,Oséias?... Calou-se e ficou olhando, incrédula, para o rapaz que lhe sorria com malícia. — Olá, gostosa! — Mas... — Não se assuste, gostosa, porque não sou nenhuma alma do outro mundo. Estou tão vivo quanto antes e posso explicar o que aconteceu há pouco, lá embaixo. Tive a grata satisfação de meter umas balas nos corações imundos de Correia e Monteiro. Feita essa limpeza parcial, vim em busca de cobertura para a inevitável represália de seu amante. Ou imagina que acreditei tratar-se de seu marido? Porém uma coisa é bem certa: vocês se amam profundamente. Estarei enganado? — Não. — Isso foi bom para vocês e será ótimo para mim. Podemos nos divertir um pouquinho. Vamos, aproxime-se,
ou terei o desprazer de lhe meter umas balas nessa barriguinha branca. Beatriz Mendes não vivera toda a sua vida propriamente numa igreja nem no seio de uma família decente. de modo que sabia bastante bem quando um homem era ou não capaz de cumprir suas ameaças. Aquele desleixado era o tipo do sujeito que não hesitaria em mandá-la para o outro mundo com algumas libras de chumbo no bucho. Aproximou-se dele e nem sequer apelou para o velho truque de atiçar os instintos masculinos. — Garota inteligente — sorriu malignamente Rock passando a apalpá-la em profundidade. — Vire-se. Ela obedeceu e ele concluiu a revista. — Não é para me aproveitar de seus encantos, gostosa — disse, com nauseante cinismo. — Alguns tipos de mulheres costumam ocultar pistola ou punhal nos lugares mais íntimos. — Não sou dessas! — Dessas que ocultam pistolas? — Não sou do tipo a que se referiu. — Se não é, parece. Agora, gostosa, vamos dar as caras, juntos, no terraço. — Para que? — Tomar um pouco de ar fresco, gostosa. Vamos, mexa-se. Abra a porta e saia. Beatriz abriu a porta e saiu ao terraço que servia de marquise da calçada da venda.
Agindo com absoluta tranqüilidade, Rock Bolth se plantou ao seu lado e encostou a massa de mira do Revólver esquerdo à parte inferior de seu queixo. Ela empalideceu. — Vai... também vai... Matar-me!... — balbuciou. — Não, gostosa, não me especializo em matar mulheres. Apenas quero que seu amante veja sua ruiva em situação embaraçosa, entendeu? Leve a coisa na brincadeira. — Ma... mas se a arma disparar. — Mulher de bandido não deve ser tão covarde! — pontificou Rock, com cinismo. Ela passou de extremamente pálida a rubra. — Agora, chame o seu querido. — Quer... quer que eu chame Oséias? — Você tem mais de um querido? Vamos, chame. Beatriz Mendes engoliu em seco e desceu as pálpebras, esforçando-se para olhar- para baixo sem apertar mais a base do queixo contra a massa de mira do Revólver. Afinal, aquela “coisa” podia disparar e, a despeito de tudo, a vida era tão boa... Respirou fundo, reuniu forças e soltou: — Oséias... — Aposto como esse sujeito está matando você de fome. Mais alto! Desta vez, além de respirar fundo, Beatriz Mendes pigarreou com força e conseguiu esganiçar: — Oséias! Gomes saiu de baixo do terraço com seus três pistoleiros restantes, Lourenço, Chileno e Batista, plantando-se no
meio da rua. Os quatro olharam para cima e Rock foi logo dizendo: — Olá, amigo Gomes. Tenho outra proposta, melhor do que a primeira. Um dos pistoleiros levou a mão ao Revólver, mas Gomes lhe segurou o braço com força, advertindo: — Se sacar, esse maluco pode matá-la! O pistoleiro afastou bastante do coldre a mão direita e ficou tenso, à espera de uma ordem em contrário. — Qual essa nova proposta, Rock? — gritou Gomes. — Terá de me perdoar por tê-lo privado de dois matadores, amigo Gomes. Para ser sincero, eu o enganei desde o primeiro instante. Eu quis apenas saber onde estavam você, sua amada e seus matadores, para, após liquidar um ou dois deles, esperar que o ruído dos disparos fizesse você sair à rua com esses três cretinos e apanhar esta preciosa sozinha. Suponho que você ficaria muito triste se meu revólver disparasse neste instante, não é verdade, amigo Gomes? — Sim, é verdade. — Adoro gente sincera. Se continuarmos por esse caminho, as coisas talvez até dêem certo. Vou descer daqui com a sua amiguinha e você mandará esse aí para bem longe desse lugar. Assim que eles se afastarem, lutaremos à bala. Um dos dois matará o outro... Se você me matar, melhor para a sua causa: ficará livre de mim e poderá acertar contas com os fazendeiros de Vale Paraíso; se você morrer, talvez seus pistoleiros tenham a sabedoria suficiente
para sumir de vista e nunca mais passar ao alcance de minhas balas. Lá embaixo, Oséias Gomes se esforçou para evitar uma risadinha de satisfação, antevendo a vitória definitiva. — Está bem, amigo Rock — empregou o mesmo tratamento irônico, — não precisa maltratar Beatriz. Meus homens irão imediatamente para bem longe. — Maltratá-la não chega a ser desagradável, amigo Gomes, de modo que continuarei mantendo-a sob a mira de meu revólver até me certificar de que esses aí realmente se afastaram para longe. — De acordo. Pode descer. Mantendo a alça de mira do revólver pegada ao queixo da ruiva, Rock entrou com ela no quarto e saiu ao corredor, descendo em seguida a escada para a venda. Segundos depois surgia à porta, sempre com o cano do revólver sob o queixo da amante de Oséias Gomes. Indubitavelmente, Gomes estava convencido de que a luta seria rápida e simples, a seu favor. Por sua vez, Rock, embora não se sentisse absolutamente seguro de ser mais rápido do que Gomes, confiava plenamente em sua longa experiência pregressa, no conhecimento que tinha de todos os truques possíveis nos duelos a revólver. Na verdade, durante os últimos três anos como fazendeiro falido gastara muita munição, exercitando-se no sacar e atirar, mantendo-se tão rápido quanto nos tempos de suas andanças inconfessáveis pelo sertão. Porém sentia-se absolutamente. seguro de um
detalhe: raríssimos pistoleiros teriam seu sangue-frio no momento de arriscar a vida. Oséias sorria quando ele surgiu à entrada da venda. Tivera provas irrefutáveis da astúcia de Rock, considerava-o inteligente, mas confiava bastante num detalhe que poderia fazer a balança pender, logo de início, a seu favor: segundo pensou, Rock Bolth passara os últimos três anos ordenhando vacas e plantando milho, o que teria embotado suas qualidades de atirador, por mais que se exercitasse, pois os treinos com inimigos imaginários são muito diferentes do que os encontros reais, cara a cara, com bons atiradores experimentados nas disputas de homem para homem. Por isso, seu sorriso se ampliou quando ele disse: — Muito bem, amigo Rock, meus homens se afastaram para fora do alcance de um tiro de revólver e não têm rifles. Pode soltar Beatriz e vir para o meio da rua. Bastará você ser mais rápido do que eu... — De acordo. Rock afastou o revólver do queixo de Beatriz, que respirou fundo e começou a se afastar dele. Porém, ao que tudo indicava, o duelo não seria nobre sob nenhum aspecto, harmonizando-se, portanto, com o que ocorrera minutos antes, quando Rock matara de surpresa Correia e Monteiro. Agora era Oséias Gomes quem recorria ao fator surpresa, tentando sacar ligeiro e liquidar Rock enquanto ele observava a ruiva se afastar. Rock Bolth chegou a sorrir.
Afinal, era perfeito conhecedor de todos os truques dos pistoleiros, não excluindo os mais sórdidos. Mas não censurou Gomes, pois traição com traição se paga. Ele matara Correia e Monteiro à traição. Não obstante, amava a vida, de modo que se deixou cair de costas enquanto sacava os revólveres. O primeiro disparo foi do revólver de Gomes e Rock ouviu aquele ruído chocho, muito seu conhecido, de bala entrando em carne humana. Evidentemente, não se virou para ver quem fora o alvo, pois chegaram aos seus ouvidos um gemido de mulher e um baque de corpo nas tábuas da calçada. Apertou os dois gatilhos, metendo duas balas de cada revólver no peito de Gomes quando este se dispunha a fazer o segundo disparo. Oséias Gomes chegou a disparar, mas a bala estourou a ponta de sua própria bota direita, levando junto as cabeças de alguns dedos, com meia de seda e tudo. Claro que Gomes não sentiu dor no pé nem lamentou a perda dos dedos, da botina de pelica nem da meia de seda, importada, pois, embora continuasse de pé com os olhos abertos e uma espécie de sorriso estúpido na cara, estava morto desde que a primeira bala lhe atravessara o coração. Desabou ruidosamente de costas, os braços e as pernas abertas, ainda empunhando a arma por força de contração da morte. A terra amarelada de Rua Principal foi ficando vermelha ao seu redor, empapando-se de sangue.
Rock Bolth moveu a cabeça ligeiro e viu Beatriz sentada na beira da calçada de tábuas da venda, agarrada à coluna do terraço que servia de teto ao alpendre, no momento exato em que a ruiva exalava o último suspiro e tombava para trás. Uma visão fugaz, pois ele já havia notado que os três pistoleiros de Gomes, em vez de seguirem seu conselho inicial, sumindo de vista, se haviam deixado acometer de tola bravura, correndo Chileno e Lourenço por uma das calçadas e Batista pela outra, para se colocarem à distância do tiro de revólver. Rock Bolth deu uma corridinha miúda em verdadeiro salto mortal, indo estatelar-se atrás de um bebedouro de cavalos, feito de tronco maciço. Os pistoleiros também sorriram, trocando olhares de entendimento. Como aquele rapaz pudera cometer tamanha burrice! Colocando-se por trás do bebedouro, Rock lhes dera a oportunidade de empregar um truque por eles já usado com pleno êxito em outras oportunidades: enquanto Lourenço corresse pelo meio da rua bem abaixo e atirando, Chileno e Batista se aproximariam a grande velocidade, também inclinados e pelas calçadas. Rock Bolth pensaria haver descoberto o truque: Lourenço estaria disparando furiosamente para atrair sua atenção. Teria de escolher entre uma das extremidades do comprido bebedouro, para dar uma olhadela, pois se espiasse por cima seria liquidado. Enquanto se arrastasse para um dos extremos, Lourenço se aproximaria bastante e,
assim que ele começasse a atirar contra Chileno ou Batista, Lourenço daria um salto e, encarrapitado na espessa borda do bebedouro, esvaziaria seu outro revólver contra o corpo dele. Claro que Rock descobriu o truque, mas ao contrário, pois aquilo não constituía novidade para ele, o tipo do sujeito andejo: Simplesmente se imobilizou onde estava e, quando Lourenço saltou para a borda do bebedouro, pareceu esbarrar no ar, tal o impacto da saraivada de balas dos Revólveres de Rock. Lourenço rodopiou e caiu de costas dentro do bebedouro, jogando para fora verdadeiras ondas d’água que banharam o rapaz. Restavam apenas quatro balas a Rock, duas no Revólver esquerdo e duas no direito. Teria de saber aproveitá-las ao máximo para não ser liquidado. Sua reação surpreendera de tal forma Chileno e Batista, que os dois estacaram na calçada, consultando-se com o olhar. Atiraram-se ao chão, ocultando-se aos olhos de Rock, que aproveitou a oportunidade e deu outra olhadela ao cadáver da ruiva, resmungando: — Assassinada acidentalmente pelo homem que a amava! Triste ironia. Duas balas ricochetearam no bebedouro, fazendo-o voltar à sua própria realidade. Compreendeu que se continuasse ali se tornaria alvo fácil, pois enquanto um dos bandidos o mantivesse imobilizado com seus tiros, o outro poderia dar a volta, atacando-o por trás.
— Diabo! Não é que me meti numa ratoeira! — grunhiu, optando por uma saída desesperada. Afinal, se pudera liquidar cinco bandidos, porque haveria de se deixar vencer por apenas dois? Remuniciou depressa os dois Revólveres e se ergueu de um salto, correndo para uma das calçadas e disparando furiosamente para desnortear os pistoleiros. Se conseguisse chegar a uma daquelas portas... Porém Chileno e Batista estavam atentos e assim que ele saiu rápido de trás do bebedouro, o primeiro apontou e apertou o gatilho. Nesse preciso instante Rock Bolth falseou o pé sobre uma pedrinha de rua, tentou equilibrar-se agitando os braços, tropeçou na beira da calçada de tábuas e foi bater de cara na parede de madeira da casa, caindo ruidosamente. — É nosso! — gritou Batista, sentindo-se vitorioso. Ele e Chileno se ergueram, dispostos a esvaziar os revólveres no rapaz. Foi seu azar. Além de falsear o pé, Rock recebera um tiro de raspão na coxa esquerda e perdia muito sangue, o que ajudou a levar os pistoleiros a darem o embate por terminado, arrematando-o com uma salva de tiros de misericórdia. Caído de lado, empunhando as armas, Rock Bolth se limitou a apertar os gatilhos, dando-se ao luxo de nem sequer fazer pontaria. Tudo indicava que errara os alvos, pois Chileno e Batista continuaram correndo em sua direção, só causando estranheza nas testemunhas, ocultas atrás das vidraças, o
processo repentinamente adotado por eles para correr: a pequenos saltos e tropeções, agitando os braços. Esquisito! Rock Bolth se encolheu, contraindo músculos quando os dois passaram por cima dele e, tropeçando em seu corpo, foram estatelar-se na calçada a poucos metros, de bruços, deslizando por ela até se imobilizarem. Para sempre. Só então se abriram, as portas e janelas de Serra Mansa e alguns homens ousaram sair à Rua Principal para ver de perto os resultados da façanha do “Desleixado Rock”. Todos boquiabertos, começando a desconfiar de que o rapaz não era nada do que aparentara nos últimos três anos.
ONZE Amor com amor se paga O garoto que foi mandado a Livramento para informar do resultado da luta entre Rock Bolth e Oséias Gomes com seus pistoleiros de aluguel, regressou à tardinha a Serra Mansa. Encabeçava uma verdadeira caravana formada pelos fazendeiros de Vale Paraíso, o juiz Chaves e sua esposa Letícia, que fora muito bem cuidada por Lisa Lucas enquanto estivera escondida. Graças à iniciativa de Rock, mandando-os plantarem-se a meio caminho entre a Capital e Serra Mansa, fora possível evitar que o juiz Chaves caísse na cilada de Gomes,
acorrendo às pressas ao chamado telegráfico atribuído à sua esposa. Rock Bolth já havia feito um serviço completo e agora, sentado numa poltrona de madeira da varanda do doutor Novais, outro da lista dos que seriam liquidados por vingança, apresentava rasgada a perna esquerda da calça e a coxa devidamente enfaixada. Seu ferimento, conquanto houvesse provocado muita perda de sangue, fora superficial e sem conseqüências lamentáveis: ele não ficaria defeituoso. Consultava pela enésima vez a lista elaborada por Oséias Gomes para a sua vingança, por ele encontrada no bolso de Correia, quando a caravana fez sua entrada em Serra Mansa. Excetuando-se o juiz e as duas mulheres, todos estavam de cabeça baixa, envergonhados. Tinham visto o homem que lhes salvara a vida a despeito de terem pretendido expulsá-lo de sua propriedade com a idéia de aproveitar seus pastos. Após dizer algumas palavras ao pai, Lisa Lucas volteou seu cavalo e lançou-o em furiosa disparada em direção ao rancho de Rock Bolth, que estava intrigadíssimo quando o grupo parou diante da varanda do médico. Marcos Lucas olhou-o nos olhos e baixou a cabeça para comunicar: — Ela preferiu... não continuar conosco até aqui... Rock ficou chateado, mas não deu a perceber e riu. — Está bem — murmurou, elevando a voz.
— Bem, senhores, creio que resta apenas a fase final de nosso trato, a menos que, uma vez salvos, queiram voltar atrás. — Não, Rock! — soltou Lucas, melindrado. — Ninguém pensou sequer em voltar atrás. Somos homens de palavra. — Ótimo. Tomei a liberdade de pedir ao senhor Burton, o banqueiro, que tivesse a gentileza de permanecer no banco até mais tarde, a fim de que cada um dos senhores possa cumprir a sua parte no trato, retirando os mil reais prometidos. Se forem amáveis a ponto de ir agora mesmo ao banco fazer a retirada, eu os esperarei aqui, saboreando esta cachaça que o doutor Novais teve a gentileza de me oferecer — indicou uma garrafa. Ninguém disse nada e todos se viraram para ir ao banco, inclusive o juiz Chaves, porém Rock se apoiou nos braços da poltrona para se erguer e indagar: — Onde pensa que vai, senhor juiz? — Bem... Vou buscar os mil reais que me competem... — Nada disso! Onde já se viu cobrar por defender a vida de um magistrado! — Bem, mas... Letícia me disse que foi por nós... Enfim, você só se meteu nisso por nossa causa e me considero o mais obrigado a retribuir. — Senhor juiz, eu posso ser um desmazelado, péssimo fazendeiro e, segundo muitos, um pau-d’água, mas nunca fui ingrato. O senhor e sua esposa foram os únicos, além do armazeneiro Queiroz, a me tratar com atenção. Queiroz me deu crédito financeiro, mas o senhor e sua senhora me
deram crédito de confiança moral, o que vale muito mais. Os três estão quites comigo. Mas Inácio, proprietário da venda, ficará obrigado a pagar os mil reais em cachaça. É evidente que não cobrarei tudo de uma vez... Pedro Chaves lhe sorriu com simpatia. Olhou-o demoradamente e, por fim, murmurou: — Talvez, a despeito desse aspecto... digamos, descuidado, você valha mais do que todos nós juntos. — Um momento! — sorriu o rapaz. — Talvez eu seja tudo isso que o senhor diz, mas, por favor, exclua Letícia Chaves desse grupo. Ninguém, nem mesmo o senhor se compara a essa santinha que teve a sorte de desposar. Na verdade, foi mais por ela que quase entreguei a alma a Deus há poucas horas. — Muito obrigado, filho — murmurou Letícia, de olhos marejados. — Eu gostaria que Deus me houvesse dado um filho como você. Desta vez foi Rock Bolth quem ficou comovido, não conseguindo ocultar a umidade excessiva dos olhos. Mas soube controlar-se e foi brincalhão, como sempre: — Muito fácil de resolver, dona Letícia. Considere-me seu filho honorário. Os três riram com lágrimas nos olhos e os Chaves se afastaram, rumando para a sua casa. Minutos depois, muito circunspeto, Rock Bolth embolsava os milhares de reais. Contou meticulosamente todo o dinheiro e olhou para os fazendeiros, falando:
— Certo. Agora, por favor, digam: os senhores me venderão um rebanho, para eu recomeçar, ou terei de comprá-lo fora do Vale Paraíso? Os fazendeiros se consultaram com o olhar e Marcos Lucas, que se tornara o porta-voz oficial do grupo, murmurou, ainda desconcertado: — Nós lhe venderemos as reses, escolhendo-as dentre as melhores que tivermos. Todos estamos de acordo sobre um ponto capital: você nos deu a lição de que necessitávamos. Sabe? — sua fisionomia se iluminou. — Resolvida essa tolice entre nós, esta região poderá ser com justiça chamada Vale Paraíso, como você prefere. Rock Bolth se levantou da poltrona de madeira, estendendo a mão ao porta-voz do grupo. — É precisamente isso que venho tentando conseguir, desde que a peste liquidou o meu rebanho. É na desgraça que conhecemos o valor da solidariedade. Agora, iremos todos recomeçar juntos. Caminhou mancando e se encarrapitou no lombo de “Tia Juana”, que o médico Novais mandara buscar no pasto a pedido dele. — Oh! — fez, estendendo o braço. — se esqueço seu presentinho, doutor. Quer me dar a garrafa? O médico estava sorridente quando lhe entregou o cachaça e ele, voltando-se para os fazendeiros, declarou, à guisa de despedida. — A partir de amanhã, poderão mandar um décimo de seus rebanhos, por todos, ao meus pastos. Não sei se
notaram como a grama está verdinha, pedindo para ser aproveitada. Bateu de leve no pescoço da velha mula e se afastou, a caminho de casa.
DOZE Mudaria... para uma boa cachaça Rock Bolth estava com um humor dos diabos enquanto cavalgava. Afinal, por que Lisa Lucas não quisera entrar em Serra Mansa com os demais? — Mulher é assim! — resmungou. — Quando tem algum interesse inconfessável, fica gentile acolhedora; nem bem obtém o que deseja, dá o fora e nem se lembra mais da gente! “Tia Juana” moveu as orelhas peludas desencontraidamente e depois virou-se para trás, sinal de que estava assustada. Por quê? Se não sobrevivera ninguém do grupo de Oséias Gomes, por quê aquela maldita mula pressentia algum perigo ao se aproximarem do rancho? — Vai ver, que entendeu o que eu resmunguei e ficou zangada — sorriu Rock, dando uma pancada no pescoço da mula. — Solidariedade de classe... Chegou diante da varanda, apeou e sentou-se no degrau, empunhando a cachaça presenteada pelo doutor Novais.
— A gente nunca tem tudo que quer, “Tia Juana” — dirigiu-se à mula. — Agora, tenho dinheiro, em breve terei um rebanho, conquistei a amizade e a gratidão de meus vizinhos fazendeiros mas... — Deu para falar sozinho? Rock Bolth ficou petrificado, com a garrafa perto da boca. A voz de Lisa lhe viera por trás, sem dúvida da porta da casa. Ele se virou lentamente e ficou olhando para ela, incrédulo. — Lisa,.. — Não vai largar essa garrafa? — Eu pensei que... que... — Não quis falar com você no povoado, diante de todos. Por isso, disse ao meu pai que viria para cá, esperar por você. Que coisas pensou de mim, por causa disso? — Bem... Eu pensei... Ara! Temos de comemorar! — Diga a verdade, Rock: vai deixar ou não de beber? — Não. — Nem se eu pedir? — Nem que você implore, Lisa. Por quê deixar de beber? A cachaça é boa, isto é, eu me sinto bem quando bebo cachaça. Lisa Lucas encolheu os ombros e sentou-se a seu lado. — Creio que terei de me conformar... — Se quiser. Afinal, a coisa não é tão terrível, garota. Tudo tem sua medida, sua quantidade mais ou menos certa. Enquanto vivi sozinho em meu rancho, não tive o que fazer,
além de “conversar” com a minha velha mula, beber e me exercitar com os Revólveres. — Talvez encontre outras distrações. Tem dinheiro suficiente para recomeçar. — Certo. Terei muito trabalho, no início. Começarei por consertar o curral, a cerca, as paredes do telhado... Depois, comprarei pequeno rebanho, que me dará muito o que fazer. Evidentemente, estarei tão ocupado que me sobrará pouco tempo para beber e, com o tempo, deverei estar bebendo como os outros. Porém nunca deixarei a minha cachaça, porque ele me faz bem ao corpo, entende? — Creio que sim — sorriu Lisa. — A princípio você me desconcertou bastante e confesso que ainda me surpreende com as suas reações. Estava longe de pensar que fosse tão valente e bom no gatilho... Quer saber de uma coisa? Sinceramente, não creio que seus treinos com os revólveres durante esses três anos, aqui no rancho, tenham sido suficientes para torná-lo melhor do que Oséias Gomes e seus pistoleiros profissionais. — Melhor, ou pior? — Eu quis dizer mais astuto e melhor no gatilho. — Ah... — Seria capaz de apostar que trazia grande experiência com as armas quando resolveu fixar-se em Vale Paraíso. Rock Bolth sorriu e sorveu outro gole da garrafa. — É possível. De que estávamos falando? Ah... da trabalheira que me espera. Como eu estava dizendo.
— Sei que qualquer dia desse você será capaz de aparecer barbeado, de cabelos penteados e bem vestido, desgrudado dessa garrafa de cachaça. — É possível. — Quer saber de uma coisa, Rock Bolth? Eu o conheci assim e não me importarei se continuar sendo como é. Quando a ‘gente ama... — Ara! — exclamou Rock, deixando cair a garrafa. — Admite que me ama, que gosta de um sujeito desleixado e beberrão e estaria disposta a aceitá-lo como é? — Foi o que eu quis dizer. Claro que ficaria muito contente se você se cuidasse um pouco e não cheirasse tanto à cachaça ordinária, mas estou disposta a aceitar essas coisas ruins com resignação. — Isso é muito bom, Lisa, mas me deixa numa situação bem difícil. — Não entendo. — Se todos, inclusive você, estão dispostos a me aceitar como sou, por quê mudar? Bem melhor fazer jus ao julgamento da gente do lugar, que me considera preguiçoso livrando-me do trabalho que terei para reerguer o meu rancho. Espere... Por outro lado, essa atitude me obrigaria a devolver os milhares de reais e quem viveu por tanto tempo sem um centavo custa a aceitar tal idéia... — Está perdendo tempo com tolices — Estou falando sério. Pensando bem, Lisa, por quê salvar tudo isto e ser um fazendeiro bem situado na vida? Para ser querido e admitido por meus vizinhos? Para continuar conversando com “Tia Juana”, que nem se dá ao
trabalho de me responder? Poderei continuar plantando e vendendo milho a Queiroz, como tem acontecido nestes últimos três anos, sem ter de... — E como sustentaria a família? — A... a família? — balbuciou Rock, muito intrigado. — Considera família um desleixado e uma mula velha? Sem lhe dar resposta, Lisa espiou para dentro da casa, pela janela, afirmando: — A primeira coisa que farei, enquanto você estiver consertando o curral e as cercas, será dar um jeito aí dentro. Não estou disposta a viver numa pocilga como essa, Rock Bolth — virou-se para ele. — Se papai vier nos visitar e encontrar a casa nesse estado, se arrependerá de ter consentido no casamento. Rock estava pálido, boquiaberto, olhando bestamente para Lisa Lucas. — Você... você está... está me pedindo em casamento? — conseguiu murmurar. — Mas... eu sempre ouvi dizer que é o homem quem. — Se o homem é um tímido da sua marca, a mulher tem de tomar a iniciativa, Rock. Mas não se livrará do pedido oficial ao meu pai, ouviu bem? — O pedido oficial... — Isso mesmo. E trate de tomar um banho, cortar os cabelos, fazer a barba e usar esse dinheiro para comprar roupas decentes, porque papai lhe negará a minha mão se você aparecer lá em casa nesse estado lamentável. — Lisa... — Sim, Rock...
Ela cerrou os olhos e entreabriu os lábios, à espera do beijo inevitável. — Lisa... por sua causa, quebrei a garrafa... — Oh!... — exclamou Lisa, virando-se para se afastar. Rock Bolth segurou-a pelo braço, puxou-a e lhe devorou os lábios. Depois, afastou-a delicadamente e disse, muito sério: — Será amanhã à noite. — O que, Rock? — O pedido. Sei que foi mais fácil enfrentar Gomes e seus homens, porque me bastou empregar astúcia e os Revólveres. Lisa, eu nunca pedi ninguém em casamento! Simplesmente, não sei o que dizer! Ela deu uma risada. — Deixe por minha conta, Rock. Assim que você chegar, eu direi: “Papai, Rock Bolth veio me pedir em casamento. O senhor consente?” Será fácil. — Se for assim... Bem, se for assim, será melhor convidarmos o povoado inteiro para assistir. Entrarei com as bebidas e. — Rock! Será um pedido de casamento e não uma farra! Rock Bolth ficou desconcertado. — Bem... É que eu gostaria de privar alegremente com todos os que me desprezaram durante tantos anos... Se você não quiser. Ela sorriu, feliz. — De acordo, Rock. Promoveremos uma festa de noivado e você entrará com as bebidas. Mas terá de estar limpo, bem vestido e sem feder a cachaça ordinária.
— De acordo. Compraremos cachaça de primeira. Ela sacudiu a cabeça e acabou rindo. — Você não tem jeito!