Evandro Alves Maciel.:
VE NENO dE OR NI TORR INCO.:
edição do autor 2014.:
Entre-Fim.: Como se pendesse, de repente, distraído sobre o chão imenso, em sonho tornado; vendo mentalmente o símbolo perdido de uma existência um tanto miserável; rodavam, liquefeitos, os feitos memoráveis e outros que a lembrança não mais alcançava. Pássaros ferviam suas asas sob o céu revelando, assíduos, um desenho tenebroso; cortavam o ar como se minha pele fosse enquanto eu dormitava feito pedra, vagaroso; mármore extinto, grande rocha lapidada, mergulhado no silêncio da mesma e velha estrada. Este quadro, assim, tragicamente apresentado como um rio correndo em círculos de forte correnteza; - vazio de qualquer matéria organizada desfazia em suas águas o meu olhar perplexo, perfazendo eternamente o trabalho ancestral de sugar o que eu não fora, para o mar abissal. Não houve luta em meu sonho-tornado. Em sua última volta, solo avesso, entrevi, claramente, num átimo, tal beleza: o meu de mim, o mais próprio, o singular recolhido para cima e reparado, refluía enfim recompondo-se com o todo que o conserva, entendia: era meu almejado fim.
Poema Infantil.: Segura minha mão, que estou a cair ou não a segure, mas não me deixe refluir para dentro do escuro do qual emergi no tempo em que era, ainda, um colibri. Agora não tenho asas, amor meu rastejo feito cobra, feito rato estou. O horizonte que presumo é o fio da calçada retumbando os passos daqueles que a ferem. Eu não sei pra onde vou. Me custa saber, já, e muito, o que hei de comer neste dia cansado e intruso que estou a tecer com a fome de uma multidão desenganada. Eu não sei nem se vou! Meu halo de convicção desvaneceu desavergonhadamente omiti o que era meu e fui esmagado exemplarmente sob o peso do nada. Não sei o que fazer de mim Não sei o que é feito de mim Não sei o que será feito em mim. Sei apenas que minha fome é tanta que, mal eu engulo a janta já quero voltar à jaula tornado animal ou criança à espera de alguma esperança traduzida num prato bem quente que lembre, do peito, o leite com o qual, outrora, me alimentava. Segura minha mão, que estou a cair...
Tão Longe, tão Perto.: Depois do dia nascido das trevas do meu olvido, ofendeu-se-me os olhos por ter te oferecido o frio deste meu deserto a flor deste meu desejo o rasgo de minha carne! Não era sonho criado do fogo do meu espasmo, ofendeu-se-me a boca por saber malogrado o morno da tua língua o ruído do teu estio o fel deste teu ardil. As águas em que me banhei eram lava e lama espessa. O ar que eu respirei, veneno e fios de sombras. O corpo que me partiu era cobra de pedra e sal. A angústia que me seguiu, refugo do esquecimento. Bendito esquecimento! Tão longe, tão perto, te quero. Tão perto, tão longe, te reclamo! Maldito entorpecimento! tão longe, tão perto, te excluo. Tão perto, tão longe, te lanço!
Fanopéia.: "uma obra sobredita por sombras e sobras infinitas".
I a sombra do vale me vela a sobra de um velho me queima garganta agrúrio manto
espanto
destino: o ultrapassamento do último passado esquecido no lamento estranho de mais um estranhamento a sobra me vela no vale a sombra de um velho me teima "parte de mim é uma rocha, parte de mim é uma fenda”.
II espero e quero querendo espirro um ai deveras esquisitíssimo tanto e tão... que não espero o quanto quero em ti contido
"se amor não der jeito, que há de?”
III meu forte é desaguar de frente pro mar sou rio e rio de tanto gostar em seu amor a morte amansa "porque sentimos e experimentamos que somos eternos". (Espinosa)
IV equilíbrio é não se cortar no fio da navalha é não se ceder à beira do abismo é só morrer se assim for preciso
"depois do depois do depois do depois..."
V mundo mundo que vai fundo em mim infunde seu fole falido em parte encrespa os pelos pelo que vou ao mundo e fundo, fundo a pedra fundamental. em parte encerra o cerro pelo que serro os ares espalmadas palmas de alturas desiguais. mundo mundo que vai fundo em mim infunde seu fole falido
MelopĂŠia.: os as os os
dias que passam horas que ficam sonhos que logram, sonhos que logram.
as noites que deito instantes que deixo os sonhos que busco, os sonhos que busco. os dias que, horas as noites que busco? os sonhos sĂŁo sonhos sĂŁo sonhos, os sonhos. instantes que passam as noites que ficam dos sonhos que sonho dos sonhos que sonho. as os os os
horas que deito dias que deixo sonhos, os sonhos, sonhos, os sonhos.
instantes que, noite as horas que logram os sonhos sonhados, os sonhos sonhados...
Logopéia.: Ah tristeza és inevitável. Pois se alegre estive com paz sobrando cantava o mar tão até quando! Chegado o dia de ir'me'imbora embora desejasse espraiar-me na praia eternamente... Mais não pude tive que voltar. Quem sabe seja isso mesmo, a vida momentos de extrema intensidade rasgando o véu do comum? Tornando a saudade um desejo nômade e o desejo, um esperar constante pelo dia em que, evitável, a tristeza possa eu despedir por justa causa.
Balada Noturna Para Alguém Musicar.: O que fora de mim resplandece é o que dentro de mim desalinha O que fora de mim amanhece é o que dentro de mim solicita. O que fora de mim é vestígio é o que dentro de mim irradia O que fora de mim estremece é o que dentro de mim... se cala. E unindo meus dias, o dia que vem do que sobra da noite o que ao dia convém o que cresce liberto e se prende ao incerto respondendo à tarde nua de tempo, não sei... O que sinto em mim derreter é o que dentro de mim cristaliza O que sinto em mim soletrar é o que fora de mim realiza. O que sinto em mim descender é o que dentro de mim egoniza O que sinto em mim germinar é o que fora de mim poetiza. E abrindo meus dias ao dia que vem do que demanda a noite o que ao dia faz bem o que livre entardece e se soma ao mar perguntando ao tempo, deserto de tempo, virá? (descabida noite, noite insone, percorre meu corpo tão absurdo, desalmando o que já está morto inflamando de fogo o fogo que trago; desavisada noite, noite insone, percorre meu corpo preso e lento, desalmando o que já não é dança inflamando de fogo o fogo que me faz dançar).
Mar-ritmo.: I amar o mar tão raro amor amaro ardor a rebentar. arrebentar ardor amaro amor tão caro o mar amar. II algas na água gozam sua dança algas n’água medem suas tranças. algo na água parece vivo lançam seus dados como crianças. água-vida. III o sal dissolve meu corpo no céu que intenso arde teu cio ensandece a calma do sol que meu sul invade.
IV maresia parecia que tu ias mar azia teu calor não conhecia mar, ais, ia não sabia que fazias maresia teu calor me despedia. V troa trovão! na treva que traz a tromba: Tupã. VI montanha te miro à distância montes de vales me pensam montanha te ocupa minha ânsia montes aquosos demudam – – sais do tempo : mont’ânsia. VII ser seara enseja meu desejo; que dê na enseada imensa do teu beijo.
VIII norte mira noite noite rompe norte norte estampa a noite ferida deste corte. IX do leste este feixe expresso nas vestes azul esse peixe d’oeste me despe. X ah, mediterrâneo! medito as terras que tu animas: mediterrânimo! XI onda, andas onde areia ou rua? me oceano ando a buscá-la tal qual Orfeu. anda onda, ainda é tempo de transformar este ocre ano em apogeu. XII Iemanjá o meu manjar trouxe do mar: o sorvi. Janaína da baía deu-me comida: a bebi.
XIII gesto gerado do vento assalto ao golfo grito gerido no tempo do garfo ao gozo. guerra de guelras arfantes golfinhos ao mar gestos gerados do grito grilhões do amar. XIV fruo a falta de freio fluo a febre da flauta danço deriva a que tendo densa tensão que me acalma. fluo do freio a falta fruo da flauta a febre denso tendo à deriva danço tensão dos caminhos. XV luz fria em minha tenda luz fria em meu lagar recebe meu corpo aquece meu corpo exijo flor de lis.
XVI teu calor me cola ao teu pescoço como colar teu cais me cala em teu colo sou cor. XVII navio navega na neve dos nãos nave viaja os espaços, sou nau argonauta do novo de novo, sou neo criando espaços e tempos ao léu. XVIII perto do porto paro parto no porto: nasço parto do porto, ido para não mais parar. XIX flutua no mar um frasco cheio da luz que ofusca fremente o abro e a brisa assoma da bruma frescor almado meu rosto incendeia em brasa frescura aflora cheio de lusco-fusco. XX o som diz sim ao sem que são sum.
XXI se respiro é que espero num espirro vencer o apuro. XXII saliente silêncio silente cilício. XXIII valer o que vale um veleiro que se move vale o mesmo que um valeiro em que se morre sem lutar. morrer estando farto deste vale que miramos vale tanto quanto vela que se queima sem ninguém para velar. XXIV no céu eu vi, airosa dançar essa neblina tão linda não sei se colina ou nebulosa. XXV mar marítimo mar ritmo mar ótimo mar átimo mar último.
XXVI tempestade o mar varre tem parte com as alturas tempestarde no céu arde eleva a temperatura. tempestade o mar varre a mil pés de altura tem parte com a tarde me rebaixa à sua altura. XXVII maremoto revolve a terra mar morto a revolver sangra maremoto devolve a vida não é mais morto o mar, é meta. XXVIII a viração dos ventos fazem vir a ser o que sou e fui o vir a ser me faz vir a sim me ergo sum. XXIX vento venta ventando: avante ventre! XXX mar: fluxo e refluxo do meu reflexo. XXXI ontem caos havia hoje calmaria amanhã calma e ria.
XXXII redemoinho ĂŠ desafogo que me desafoga rodamoinho roda moinho roda moinho roda ao invĂŠs do afogo o afago.
Oração Pagã.: quisera eu um tanto de luz, um tanto mais de luz para obter um pouco mais de paz; quisera nós um muito mais de luz para conciliar os desiguais. porque igual, igual mesmo ninguém é de ninguém isso é claro como a diferença entre os dias mas lutamos, enormes em fazer parecer que um e um são dois quando na verdade um é um e dois são outros quinhentos.
Pequena Cidade.: Na pequena cidade em que vivo encolho meus pés sob o sol roçando paredes estranhas movendo as mãos sobre a lama. Na pequena aldeia em que morro meu uivo não chega ao céu meu sopro sequer abocanha um palmo à frente da boca. Mas só porque respiro ainda (re)xisto.
Ao deus inexistente.: deus, deus, deus três vezes chamo o nome que te deram a ver se me aparece escultura no vazio e me dê a tanta paz que a outros tu concedes. Reverbera a minha voz eco oco ocaso à foz sem trazer tua presença; reverbera a minha voz oco eco ocaso à foz sinto só a tua ausência; reverbera a minha voz oco eco oco eco oco eco sobre este silêncio atroz.
Soneto Inconsciente.: eu canto a extrema pobreza ocaso colidido com fumaça meu nó chamuscado de tristeza fere mais que o comprido da desgraça. eu saio, ressecado excremento, de um cu com odor de alfazema na testa um poderoso diadema no peito, um valioso sentimento. e busco a custo partir, extraditado cumulado de riquezas desprezíveis só tangíveis para os que não têm respostas ou "sou"! ou "vou"! ou "fui"!, vertentes ao acaso sintomas da perícia dominante em calar a voz noturna com a voz diurna.
Runas.: depois do depois de minha morte vão pegar nos meus cadernos como jóias esculpi-los nas paredes dos museus produzir vários estudos sobre o nada porque, garanto amigo, escrevo sobre o nada. depois de minha morte, nunca antes vão beijar minhas palavras como chuva decidi-las arte fina e outras runas sacudi-las para jovens indefesos trovejando: eis um poeta de merda, mas de valor. e eu riria, se pudesse mas como sabem os mortos não riem a não ser que estejam certos esses loucos que criam nuvens habitáveis (só pra poucos) e eu riria, se houvesse outro canto; mas não há.
Risco.: tudo o que é vivo cumpre um destino se se quer ou se resiste, não importa: a vontade é o que nos mata. tudo o que é vivo lança-se na vida saibamos ou não não importa: o saber é sempre à parte. às avessas, somos nobres às escuras, somos luz incorrigíveis, somos sal tudo o que é vivo é o que existe se se quer ou se resiste, a vontade é o que nos mata. tudo o que é vivo se cumpre em vida saibamos ou não, o saber é outra parte.
Microssentidos.: I me diz uma palavra qualquer que estrago ela toda no vão da minha boca II dá pra mim como esmola a tua fome? III esquizo eu esquizo tu esquizo você esquizos nós esquizos vós esquizos vocês IV no torpor desta calma vale menos minha alma que o soar de minha palma V sou poeta de gabinete (mas nem tenho um gabinete) gosto de Drummond pois ele era velho e bom e sabia que a vida embora fosse uma desgraça teve lá a sua graça VI o acaso causa cor ao necessário
VII ontem fui rude roí ruínas me sobrou a sede VIII minhas mãos se movem ao vento entoando um mantra silencioso e dizem: “meu, meu, meu” caçando no vazio dos teus olhos um amor imaginado. IX amo com meus olhos o aviso de felicidade espalhado enormemente no teu sorriso-almado. X dormi um tempo sonhando um campo vasto, com o sol iluminando a grama extrema. nós, deitados, flutuantes, em silêncio, saboreando, juntos, um desejo perdido. XI a porta bateu sonora a chuva soou austera o chão tornou-se informe enquanto nos despedíamos. XII a festa terminada após rios de risadas afetos turvos, encontros e desencontros... restou o azul de uma alegria concreta, e o estranho sentimento de um amor perdido.
XIII se se foi, não pode ser já. acabado, impreciso e simples, o desconexo humor (embora o espelho o tenha prendido). algum resquício da febre haveria, mesmo breve, mesmo breve... a alegria é como o despertar de um sonho ruim. XIV Quando? não soube Onde? não importa O quê? não se define Por quê? porque sim... XV Fiz de mim um estranho que eventualmente me visita. Bebemos cerveja, cantamos canções, nos alegramos. Mas a estranheza prevalece. XVI Agora tudo está calmo e me compete ouvir o som do silêncio. Sou uma criança sorrindo ao vento, dançando uma dança de amor solene. Cruzei o limite entre a vida e a morte Rompi tantos laços, perfiz um caminho. Com muitos rumores, venci o destino e tudo está calmo, tudo está calmo.
XVII CUIDADO: pode ser perigo ou afago. SURPRESA: pode ser espanto ou certeza. XVIII No dia em que eu me for, meu amor, cante a minha música preferida, vista a tua roupa mais bonita porque a festa será eterna. XIX Seria, seria Não fosse a mais temida hora do dia Apresentar-se, de repente, Com seu ar irrespirável Causando em meus olhos de flor dormente A grande dor irresponsável. XX Desci a montanha que me formou. Sou rocha desprendida e dura. Pode crer. O chão mal me suporta E enquanto caminho, aliviado de não ser leve Como pluma, como folha, como dente de leão, Eu vejo o rosto dos homens, e cismo. XXI No tempo em que éramos fortes Quando o medo era uma cócega morna, Havia nos sonhos, um gosto doce E o amanhã era uma certeza densa. XXII Ah, sol tardio! Chegasse antes, encontraria meu rosto ainda alegre, sedento ainda, desejando que esta tarde jamais acabasse.
XXIII hoje te deixo com o rumor de já ter visto, em algum lugar o rosto que deixo. XXIV O medo assola a alma - perplexa. Sem solução de fome nada come - anda. XXV A vida dança sobre a terra E eu sou como os braços dela. Cortando os ares com meus dedos - delicadamente; Criando estrelas, luminares - distraidamente. XXVI A flor descreve no espaço suas mil voltas resplandecentes sob o fogo que a consome. Rígida e fértil, sem sobras, sem nome. A flor respira no ar o mesmo ar que eu respiro sob a chuva que a distorce. Transe informe, moldura líquida. A flor é.
Foz.: A terra em que sou consumido Lambe meu tronco rígido Explicitamente. Deito meu corpo altivo Lançando no ar meus fluídos Ardentemente.
Ao Pai.: Lembro dos teus olhos quando, nos meus olhos fixo firme a altivez com a qual supomos manter nosso corpo em segurança. À tua grandiosidade – que digo? À grandiloquência dos teus ombros vertidos, largos, robustos, rendo homenagens. Um passeio incrível, longo e alto como em viagem estivéssemos: um país distante? Onde, no silêncio de nossas risadas comunicássemos, enfim, o amor esperado e tido sob um tropel de estrelas. Dançando como nós dois, cá embaixo estrelas distraídas de brilhar e vivas, no entanto, como a luz, como o luar.
Modernidade.: "...estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu". (Álvaro de Campos)
A modernidade acabou com o sonho da modernidade. Feriu-se como uma cobra enlouquecida que enrolasse à própria garganta sua calda venenosa. Subsiste enfeitiçada com seu próprio rumor e nada faz que não seja chocar-se contra si; desejando poder desejar ser o mesmo em outro lugar. Mas não há outro lugar. Há apenas esta boca gigantesca, esses dentes afiados a destilar seu caldo, a entorpecer seus olhos com o fumo do nada. O deus das cobras (esta cobra infinita) é o primeiro a debater-se, lastimando: "mas era o plano perfeito, perfeito"! ... Agora faz um tempo ameno não me entristeço com o calor que me sobra nem me aconchego ao frio que me cobre. Apenas o possível dentro do improvável: esquecer.
Flui.: Fui o que já não lembro Embora algo insista. “Deixe-me comigo mesmo, Eu quero a liberdade da vista”!
Derredor.: A noite n達o passa nem com a luz do dia. E eu me encolho inteiro deitado sob a noite fria. Vejo: passa o vento rumando feito alegria. Indo para longe Do rosto que o acaricia.
Vida.: A vida queima A vida teima A vida inteira É vida que cheira A flor de cacto.
Paixão Bravia.: Paixão bravia barco sem porto breve, tão breve bem. Boca que espia as fibras do corpo entorpecida pele a vibrar também. Paixão barata berro sem poder breve, tão breve paz. A promessa porca, esperança besta de romper o pobre tempo que lhe apraz. Que símbolo-sopro obstinadamente procuro abrir, oh, fabuloso Abril? Bastião de pétalas rubras ou bosque de brumas – (...) paixão bravia! Que obscuro mapa, brilhante lápide busco possuir oh, absurdo espectro? A febre de um beijo roubado ou atemporal sepultura? Paixão barata! Bem me basta!
Troféu.: Eis que meu canto se perdeu não sabia mais quem era eu se verdade alcançada à força, se ilusão cobiçada à parte! Eis que o meu mundo emudeceu não mais ouvia quem era eu se inglórias destinadas antes, se amores conquistados tarde... Mas sei - se é que sei que fui tarde atada a esta parte partida antes; e que fui força ficção desgovernada - mas fui e foi-se: a verdade alcançada, foi-se a cobiçada ilusão, foi-se as inglórias destinadas; foi-se a conquista deste não.
Flor Fóssil Fosse.: Este berro indigesto, guerra de peles Esta febre tropel. É deserto de neve, mulher, te espero. Este resto de zeros, pérfido agreste Este afeto tão céu. É floresta que fere, mulher, te espero. Se espectro incrédulo Dissesse: quero! Num alegre escarcéu. Se teu sexo lépido Dissesse: quero! Ah, mulher... Este Este Este Este Este Este Este
berro de peles, guerra indigesta resto agreste, pérfido zero afeto que fere, tropel na neve cedro de ferro, aberta veste mérito déspota, cruel oferta quero teu sexo, lépido e alegre gozo tão céu...
Aí, sim... mulher.
Mutação.: Desfez-se o ar em tempestade Como sangue em minhas mãos. Desfez-se a terra em mel e bílis Como seiva entre meus dentes. Desfez-se a água em vendaval Minha garganta obrando lama. Desfez-se o fogo em rocha e pó E o meu pulso em pus e bruma. Tornei-me rato em cada célula Tendo meus pelos como teia Tornei-me porco até meus ossos O meu suor em gota espessa. Tornei-me rio sem onda ou nervo Tendo uma pedra entre meus olhos. Tornei-me brisa, folha morta A minha nuca como chuva. Depois morri sem minha barba Com os meus pés sobre a maré. Depois morri vendo meus lábios Deitarem campos sem raiz. Depois morri, a pele aberta Dedos ausentes sobre o peito. Depois morri, face no ninho, Era colina...
Natureza Naturada.: Sou o nervo exposto, sol obtuso. Confuso oásis, pântano inerte. Escondida lua sob o véu espesso deste meu deserto: o meu fígado, estranhamente, vivo. Sou a tempestade, glorioso galho. Vendaval assíduo, íris desmentida. Ovo chocado entre fios de cobre deste meu inferno: a minha garganta, impassível. Eu fui nevoeiro, ar contaminado. Contraí meus ossos, face recolhida. Cosmos transmutado em floresta cinza, transpus meu deserto: o meu peito, reconhecidamente, morto. Eu fui caule seco, ninho destroçado. Flor de ferro, fonte impetuosa. Anéis de sonho em formação ambígua, venci meu inferno: as minhas mãos, fendidas. Quando era espaço, água em demasia – dentes virgens; quando era seiva, raiz nova, maré. Furação intenso mergulhado em chuva, ainda não sabia o mar...
Quando era lago, puro pulso, ilha – sangue lava; quando era campo, cabelos ralos, vulcão. Nuvens de sabores, pulmões premiados, minhas pernas, satélites das coisas... Descobri meu rosto, fruto suculento Minha pele quente e fria, Bosque inexplorado, areia convicta; Minhas rugas, potencial lonjura. Descobri minha nuca, supernova clara Minhas coxas, cometas d’alegria; Pasto sem sementes, caverna sem brisa Os meus olhos, cegos como o tempo. Mas nasci rochedo, ombros de marfim Fenda entre meus dedos, pés desalojados. Mas cresci montante, mosca pavorosa Marte em pé-de-guerra, estrela porosa. Sim, sou pedra. A diligente bruma minha praia acalma. Sim, sou gruta. O fabuloso orvalho meu trovão assanha. Sou aranha, Tecendo com seu ouro uma gota nova...
Gris.: Entre Entre Entre Entre
o golpe e o grito, o gozo o encontro e o ocaso, encanto a casa e o campo, a culpa o ganho e o engasgo, o galho.
Entre Entre Entre Entre
o o o o
Entre Entre Entre Entre
o quero e o queres, recusa a gruta e o garfo, angústia as costas e o encosto, incômodo o grau e o gole, agrura.
cálice e a queda, o canto gueto e o golfo, a guerra grave e o agudo, o gosto cume e o custo, acácias.
Garganta engula devagar o gris agrado Aqueça meu caule incauto Incólume alegria a divagar, incrédula; Garganta! Engula, a divagar, o agosto quente Esqueça os críticos cúmulos Incólume alegria a, devagar, descrer-se.
Signo.: Foste mar A explodir teus sons desiguais Rebentando em fúria heróica Nossas rochas sobrantes de sais. Foste mais Tantas terras tornadas leões Lutas injustas e guerras demais Imagens perdidas dos céus. Foste amor Depois de um inverno tão frio Dormindo o respiro do tempo Calando e fruindo teu cio. Foste rio Criando do nada teu fluxo Cuidando do mesmo destino Desde o nascimento do sol. Foste fel. O que se perdeu nos vãos da terra Diluído na superfície dos poderes; Deformado sob o véu da hipocrisia; Destruído pela dadivosa ignorância; Eu guardei no meu chapéu.
Vencido.: Quando venci, não houve festa Não houve cantos de honra ao mérito Não houve discursos emocionados Não houve fogos de artifício. Quando venci, não houve abraços Não houve beijos de parabéns Não houve palmas que me acalmassem Não houve luzes de holofotes. Quando venci, Éramos eu e minha parede Ambos perplexos em refletir A mesma vida de sempre. Quando venci, Era como vivesse, tão somente.
Lucidez.: Nessa hora dura em que a luz do sol me parece escura tal qual perdição; e desfaz o feito, e deforma a forma que antes animava o coração. Nessa hora tola em que o próprio som sói ser tão surdo quanto deus; e me larga ao largo, e me marca à margem deste célebre e estúpido apogeu... ...eu me entrego. Me entrego ao sono, me entrego ao sono manso que nada responde, pois nada pergunta. Esperando do silêncio apenas mais silêncio, multiplicado no escuro do próprio pensamento com o intento de anular qualquer possibilidade de cura posto que já tem anulado - mais diretamente - a própria doença. De resto, A vida é bela.
Febre.: Deixe-me amá-la, assim, à distância Sem que me perturbe a tua voz contrária Sonhar teu rosto, iludir tua boca Mesclar nossos corpos numa união imaginária. Deixe-me sorvê-la, então, sem alcançá-la Sem que te ressintas do meu toque doce Sondar tuas coxas, beber teu pescoço Brincar nossos corpos como se amor fosse. E que este muro que se ergueu alto seja demolido; já que sou tão baixo pra tanta altura! e o meu voo faz-se impossível. E que esta porta, ora fechada seja espedaçada; já que, ao que parece, eu perdi a chave e o meu chamado é menos que nada.
Hoje.: Hoje estamos cansados Como se nossos olhos permutassem, no sono Uma luz ambígua e de todo incerta, Por uma escuridão maior que nos dotasse De uma falsa impressão, de uma falsa plenitude. Creio que tudo tenha morrido. Nossos sonhos, nossos valores, Nossas metas, nossos anseios... Temos o desejo endurecido como uma rocha negra, Como um diamante potencial ainda em forma de carvão. Hoje, hoje estamos amaldiçoados Pelo próprio poder do espírito que carregamos. Rápidos e perdidos, caminhamos a esmo Ou estacamos feito sábias mulas. Sabedoras da profundidade do rio que nos ocorre atravessar, sem termos aprendido, no entanto, as artes da navegação.
Pérola.: A coragem de tecer uma roupa que nos caiba A alegria em permanecer tão sóbrio quanto antes A sorte de não morrer a meio passo desta pérola. Está ali, ali! Bem à frente do nariz Esteve, um dia, mais distante do que deus Estará, ainda, se desistirmos de retê-la? Sorver o fruto e deliciar os sabores que nela dormem Úmidos de fome, recobrirmos os espaços, dentes agressivos. Sabendo sem-nome, a pérola que se esconde No oco dos nossos olhos vermelhos de não dormir. Melindrados, vítreos, assegurados pela aparência. Que a genialidade se dane! Não há tempo para tanto, Porque a morte vem, certa como o risco Singular como o traço Avesso como o céu! Mas antes dela, existe o mundo.
Semi-deus.: Toma em tuas mãos essas estrelas Abissais em seus contornos, e nobres; Fazes delas múltiplas correntes Flua, enfim, tuas marcas heroicas. Porque a sorte nada mais é do que a força Tão mais constante quanto mais te fias nela Porque azar é somente o mau momento Em que supões ausente o próprio brilho que adormeces. Não acreditai, não acreditai, não acreditai... Repetem frenéticas e úmidas, tuas mulheres frias. Afasta tuas mãos do fio negro que assegura O equilíbrio imaginário perpetuado pela cruz; Isola o teu vento e o teu sopro desta luz Constante e áspera que renova tua tristeza. Refreia amigo, teu cândido pudor Herdado de séculos e séculos de depreciação e fugas! “Não habitarás casa alguma... dorme apenas”. O sono que renega a casta planta Insistente planta que carregas em teu bolso. Toma em tuas mãos o teu grito O deixe ressoar por horas. Melhor. Agarra-te ao som do teu corpo O deixe eternamente refluir, refluir, refluir... Até que o silêncio se torne audível Até que possas ouvir o estrondo rouco de uma folha que cai. Até que o silêncio se torne tangível E que distingas o suspiro das nuvens em contínuo deslocamento no céu.
Toma em tuas mãos, igualmente, o teu destino E o deixe repousar sobre o teu colo. Ou bem Acolha esta criança em teu ventre E a deixe eternamente sorrir, sorrir, sorrir... Até que tua raiva se torne em paz Até que possas sentir o instante preciso em que se dê o amor Até que tua raiva se torne foz E tu decidas beber a água do mar variada de sais. Porque é certo que o momento assim o exige.
Duas Guerras.: Há uma guerra do lado de fora Os mortos matam os vivos Com seu olhar oco; Seus passos descompassados. Há uma guerra do lado de dentro Meu andar arrefece longamente Eu me vivo, me vivo, me viro E não me encontro, e morro. O mundo já acabou O deserto é a nova realidade A humanidade se evadiu Compreendendo o ar dentro de suas camas Inflaram e sumiram, juro. Mas eu fiquei. Feito escorpião, feito lagarto Roendo o chão quente No desejo único que sobrou: ir-me.
Deambulante.: Ouve: Houve um minúsculo tempo - desmedido. Sentido como quem sente o vento remexer sob as unhas. "Que susto". Voltando à brincadeira, já não pôde contentar as próprias pernas que paravam a cada passo, pensando o que sentiam enquanto eram livres. Mas em seguida, vagueava a terra determinada em que pisava e ora voava, tocando apenas ar, mais nada. Ouve. Houve um momento infinitesimal. Infinito? Sentia que sob a pele, bem debaixo das unhas dos pés, o vento arrebentava; "que susto"... Voltando à brincadeira, demudou em uma postura mais séria, segredando às pernas que corriam livres: acaso o que seria a liberdade? Em seguida, definhava em terra fixa, determinando que o que girava em torno dos seus pés, era apenas ar, mais nada. Ouve! Houve um momento de sonho. Sonhava? E como se as unhas dos pés sentissem um vento intenso e austero, aumentava o atrito enquanto corria. "Que susto". Voltando à brincadeira, repuxava a poeira balançando no ar os dedos soltos e livres, perguntando: acaso é isso, a liberdade? A terra fria comovia, sem ânimo, seu próprio sentimento, fixando a impressão de que o ar e seus pés eram isso, e mais nada. Ouve. Houve um momento estranho. Passado um tempo, sondava o vento frio e corrente que desgastava as unhas dos pés como areia. "Que susto"! Voltando a si, levitou sobre a terra úmida, espargindo casualmente no ar, seu suor de milênios, longínquo e livre. Era isso? Depois refrescava seu rosto nas estrelas que brincavam, pasmo por ter descoberto o ar, mais nada.
O Eterno Retorno.: Através das vistas travestidas de sono Recendendo a lume, véu de grossas névoas, A fina luz, repartida em mil feixes Desenhava no céu formas novas e densas: O passado cantava atrás de mim (eu mesmo sendo em sopro e tempestade), um canto de saudade tão logo esquecido assim que sua boca o cantava. O presente obrava ao lado de mim (eu mesmo revestido num corpo de pedra), monumental obra. Destruída, porém, assim que o monumento se erguia. O futuro silenciava à minha frente (eu transmudado no hábito do silêncio), um tal sacrifício de vozes e gritos engolidos pelo mesmo silêncio que os emitia. Assim fora o sonho vencido pela vida; Assim, a vida vencida pelo sono. Assim fora o sono superado pela vida; Assim, a vida superada pelo sonho.
Augúrio Oblativo.: “e por ter perdido o bonde tive que andar mil milhas sangrando os pés em cada esquina”.
Quedam os sonhos sob o auspício dos enganos. O meu assombro é como a máscara da noite. Cada subúrbio, um universo Cada viela, um horizonte Quedam os sonhos sob o auspício da noite. Calam promessas sob o agouro do dia. Minha fortuna é como o rosto de um deus. Cada resto, uma sobra Cada sobra, uma reza Calam promessas sob o agouro de um deus. A minha sorte é ter sono.
A Casa.: Sou livre nas distâncias Nelas prendo-me com rubor Meu olhar tem curto alcance Mas neles, tenho amor. Meu olhar tem curto alcance Guarda mal o meu mistério Sou livre nas distâncias No viajar, me espelho. Minha casa tristealegre Tem o céu noturno por parede Tem a lua luminando - l'astro lento Leve fios de ondas curtas e ausentes. Minha casa belafeia Tem uma rede feita de teias Tem insetos concorrentes Urros ratos réus ruínas. Tem palavras que ecoam circularmente O meu pedido de socorro Tem palavras que se riscam, fatalmente Para começar de novo, de novo, de novo...
A Canção do Amor Possível.: Contra o meu despertar Sou rei que durmo Contra o gozo do amor Sou deus que berça Contra a espera de ser Sou faz de conta Contra as flores do mal Sou paciência. Contra a angústia sem fim Sou paz pra sempre Contra a febre e o labor Sou alegria Contra a raiva e o rancor Sou chuva intensa Contra o que há de vir Sou natureza. E bebo o meu sentido Nas águas que me salgam Na terra que me vale No olhar que me conduz. Contra o medo atroz Guerreiro antigo Contra o raso e o menor Às vezes liso Contra o fogo maior Sou combustível Contra o leão feroz Sou carne fresca. Contra o gosto do fel Eu pulo o muro Contra o seco do rio Silêncio escuro Contra este arrepio Tesão profundo Contra o afã em lhe ter Sou solidão.
E bebo o meu sentido Nas รกguas que me salgam Na terra que eu posso Na chama que me teima.
Alguma Coisa Estranha.: Nada me vem... E como viria? A noite está quente O ar, sufocante. Nada de vez... Nem mesmo o sono Equivale dizer Que hoje, sou morto. Mas, não! Eu vivo, Apesar do desejo contrário Vivo, apesar do querer destruído! O corpo interroga os céus A mente desnuda a terra. Nada em vez...
Fome.Saudade.: Ah, esta memória é a viva matéria com a qual me restituo. Desta altura meu horizonte desfaz-se num suspiro. Olhar para trás é descobrir-se impreciso. Mas o que me revela é a tua mão acariciando a minha em suavidade de desejo. Sim, dormir teu acalanto era sobrevoar os céus escuros, era pairar por sobre a rocha, era pousar na pobre casa, mas livre, dizer: que pão gostoso! Comia, na ânsia de uma fome insaciável, o teu olhar sereno que se espalhava em radiante beleza pelos três cantos da casa, a iluminar os nossos rostos de seda. Não era um laço, o teu abraço? Este fio de ouro, o teu sorriso, tua canção? Teus cabelos como a trama morna e azul que, urdida em amor e resolução aquecia meu frio inverno e meu chuvoso outono. Minha memória tão gasta! Relembro sabores da Itália, da Espanha, da Bahia... e era sábado em meu coração quando do bolo de chocolate, do pão caseiro, da geleia com requeijão. Era dia de mais amar! E era a manhã de domingo quando comíamos cará na manteiga, bebíamos suco de beterraba e, após, almoço com macarrão, nhoque, pizza, lasanha! Sim, a vida era um imenso fim de semana... Conheço minha respiração na lembrança de tua voz, recebo tua canção nesta viva lembrança do teu sabor. Em verdade, em verdade vos digo: quem comer desta terra sentirá esta fome para todo o sempre, graças ao deus.
Ressurgimento.: “Olhava-se na rua escura ‘rastava seu corpo intuído de febres. Molhava na chuva o rosto envelhecendo Calava o ouvido para sons discursivos”.
Então caí. Noite me envolvera num rodopiante entardecer. Via um abismo, abismado; Fogos estrelavam circundando a lua imperativa e o meu sentir confuso... Quando o chão, dores múltiplas em minha pele; sono, muito sono, a terra me acamava em sua umidade. Fui acordado por pássaros que falavam, anunciando: “a morte não lhe convém, poeta, a morte não é pra si”, cantavam agudamente, e meus olhos sem asas os acompanhavam. Arvoreci em meio à rua, a noite esfarelava seu negrume. Toquei o céu, e a chuva orvalhou-se por sobre meus ramos sedentos.
Infinitivo.: Rompera a casca que o subjugava. Como uma coisa, assim, tão fina, pode ter tanta força? Como uma coisa, assim, tão delicada, pode ser tão... ...nascer foi como morrer. Ou antes a morte era a condição para a vida... porque via e ouvia e cheirava. Os cheiros do mundo, a dama da noite? Sim. Simples, como tudo o que é definitivo! Definitivo? Existe isso? Conhecera, até então, apenas o infinitivo... Amar Comer Doer Dormir Sentir Fazer Conhecer? Falar... Não, antes, calar... Tropeçar, levantar, cair, erguer A si? Ao mundo? Como Como Como Como
sói aos desesperados de silêncio sal aos que se temperam sou, aos que apenas vivem céu, como são, como sim!
Como seu. Como meu. Como pôde?
Há certas lembranças que se apagam da memória De um modo tão abrupto. É assim um ar que vem não se sabe de onde Um ar que se vai, não se sabe ao certo. Há um véu que nos cobre de paciência... Um dia assim tão novo Só pode ser isso: alegria!
Questão.: Se eu transmudasse toda minha percepção em devaneio, a realidade tornar-se-ia em sonho?
Poema para relĂłgio de bolso.: tempo tempo passa hora passo eu passa vento passatempo passa agora passarinho voa fora! tempo tempo um minuto uma hora penso eu pensa vento passa agora passavento sopra fora!
Balada do amor ordinário.: Postos assim, chão veloz... Movimento impreciso da inalterável mudez que os consagrou. Frente a frente, rosto a rosto. Mãos austeras de um, braços esquivos do outro. E o mesmo olhar, duplicado e perplexo. O silêncio ressoava, era o amor que passava e que, passando, ia ficando no não-dito, no calado ardor de um dia mítico. Vivido e não-vivido na coragem de dizer-se. Sombra a sombra, gesto a gosto. Unhas cravadas de um, beijos sofridos no outro. De comum, o intenso-vale que é a alma. Calavam assim: "...eu não ofertei a ti essa rosa exagerada! Eu te renego a mim com a força da palavra". "...tu ressoaste em mim como estrondo-tempestade! Eu silencio a ti, tal qual mar-intensidade". Postos assim, ambos incompreendiam-se pelo muito amar.
Motor.: Passa dia gira mundo cai outono vem inverno vem silêncio cala o berro gira mundo passa dia; gira mundo passa dia fica a dor se vai o resto pedra dura sem o gesto passa dia gira mundo; passa mundo gira dia só o sono só o medo e lá fora é sempre cedo gira dia passa mundo; gira dia passa mundo se a morte se o fim? mas meu não é como o sim passa mundo gira dia. Depois que se morre, não tem jeito.
Os tesouros do rei.: Os tesouros do rei estavam guardados a sete chaves e dois cadeados. Ele se orgulhava em dizer: “sou tão rico”! Ficava tão feliz que seus bigodes se eriçavam. “sou tão bonito”, dizia o rei. Só que um dia sua rainha ralhou com ele dizendo: “ó, meu marido e senhor, os teus bigodes me pinicam tanto”! E o rei se entristeceu de forma tamanha que arrancou os bigodes com a gilete comprada do mercador que passava toda semana na rua em frente ao castelo gritando: “giletes! giletes! para barbas mal feitas e bigodes eriçados”! O rei triste ficou, porque agora o seu tesouro guardado a sete chaves e dois cadeados, não mais eriçavam seus bigodes. E dizia: “sou agora pobre, sou agora feio”.
EstĂŠreo.: A vida vale mais que o vivido? A morte vale mais que o morto? O pensamento tanto quanto o pensado? E a loucura tanto quanto o louco?
Viés.: O que sou? Vou dizer o que sou: Sou o vazio da enseada O próprio vento que se afoga Na maresia do nada. Meu olhar passeia algures Por entre flores perdidas Numa cidade cansada. O que eu sou! Vou me dizer o que sou: Sou inseto milenar Sobrevoando soturno A dança nobre do mar. Meu olhar passeia algures Por entre risos calados Pela poesia estelar. O que sou; Ah, bem sei o que sou: Sou incógnita perpétua Irresoluto feito pedra Que se afirma na terra. Meu olhar passeia algures Por entre fios e fios de cabelo A poesia oculta. E se tentar me dizer, Que o silêncio recaia sobre mim. Saberei não mais o que fui, Mas o que flui.
O Poeta do Descampado.: Cheguei a um ponto limite Onde a fraqueza que resiste É a força mesma que insiste; Como um desejo que se abre Cheguei a um ponto sem vida Onde a surpresa me aniquila E a rotina me transpassa; Como lança na barriga Se a minha sorte futurar, perdida Hei de encontrá-la, alegremente, Assim persisto. Se, por acaso, definhar, ausente Hei de sorvê-la, avidamente, Assim infindo. E na calma do amor, cultivar desejos inéditos...
Proibição.: Se eu confessar que te amo Tudo se perderá, prontamente. Diluído no ar insensível De mais um dia quente. Porque eu amo o amor torto E não estou preparado para tanto. Eu caibo no suor de mim mesmo Por isso o despertar é um parto! Quanto fogo cabe numa palavra? Quanta água sustenta uma pergunta? Quanta terra cabe num gesto? Quanto ar reside em minha busca? Durmo. Durmo? Durmo! E, sim, sonho secreto e sedento Sem me ater ao arriscado despertar. Vou. Vou? Vou! Voo, variado e veloz e visível Entregando-me ao instante febril. (...) E das mãos os fios ornados Em ouro e chumbo reluzente Caíam - espessas serpentes Em longos volteios esfumaçados.
Visagem.: (...) e porque meus olhos vagavam sob a luz amarelada desta noite sem sombra pensei na grande solidão dos homens em suas casas e no grande medo de todos os que se entregam à vida. mas um sono apossou-se do meu corpo quis morrer sem nenhum suspiro que me fizesse deixar rastros e marcas e vazios maiores do que aqueles acumulados nos dias de festa! só que dormir já não adiantava e morrer era uma questão de tempo; os meus olhos vagando sob a luz amarelada desta noite sem sombra que me valesse sorriram um grande desprezo pela solidão e pelo medo.
Paradoxos.: Sim. E tudo se abre, voluptuosamente Não. E tudo desanda e se desmancha Talvez. E bambeia o homem na corda bamba. Sim! E o mais já é menos e vice-versa Não! E o menos é nada, conformemente Talvez! E a esperança reacende seu lume, como fosse o primeiro. Nunca... e em seguida, vamos nós cometer o intento Sempre... e logo esquecemos do tempo e seu viço Fora... e o presente denuncia o passado reinante. Nunca! E o hábito desmente o monge Sempre! E a promessa se perde, fria Fora! E já não podemos passar adiante. Dentro. E colhemos os frutos de outro paço Fora. E cultivamos o que há de mais secreto Atrás. E à frente emolduramos o próximo quadro. Dentro! E comemos melhor sob um teto amigo Fora! E nos perdemos em ancestrais perigos Atrás! E de novo o novo de novo é velho. Assim, nossos instantes pequenos e grandes Assim, nossa eterna e feliz alegria.
Emergência.: Desci, também eu, ontem, ao Pireu O dorso estendido sob o céu Vago como as vagas a chocar rochas. No mesmo instante, percebi, não era eu Como em sonho pudera fruir Do impessoal silêncio, a bramir tochas! Tornado mar... fui vento soprando instantes de morte Flagrante em mim sol e fogo, Imemoriais em sua sorte. Vagaroso, ergui-me, torto, cansado Respirando mal todo este tormento A tarde vinha fatal, inexorável Cheirando a sal e desespero. Entoei um canto originário Dancei, sorrindo, tão sério e tenso E, delicado, toquei a terra Fundamental como um nascimento. Tornado mar... fui vento soprando instantes de vida Flagrante em mim, sol e fogo Lembrados com alegria. Bem devagar refez-se em mim Algo semelhante à unidade Que nos convoca, austera e livre A recolher sua voz, potente idade! E, de nascente, meus olhos viam, Previdentes, A criação de um novo ciclo perpetuar - o mesmo, o sempre. Tornado eu, fui mar e sou ainda agora Flagrante em mim Delírio, dor, vitória.
O Poema que não diz.: Sou antes de ter um nome? Sou antes de inscrever-me? O que sinto é muita fome O que me espanta é esta sede! Afeito ao meu desejo, suspeito Ter-me encontrado No ventre dessa palavra, em Seu seio alimentado. Ainda assim eu me vejo Tão longe mesmo de mim Como dissesse: sim! Ao ler-me no ocre do espelho. Querendo, no entanto, negar A sede, o desejo, a fome Forçado a ter de calar O que sou antes do nome.
Vazio.: Vazio (...) O limite entre - Nada e a absorção da luz Nada e a floração do escuro. Vasto !? Ilimitado como <> Tudo e a sensação do mar Tudo e a aniquilação do eu.
Redondezas.: Amar O mesmo amor Intenso-vale Montanha a-dentro. Fortifica. Rumar Um outro rumo Sedento-mar Sal amiĂşde. Gostar.
Desistência.: Onde sei que perdi, resisto Não há vento que demova o que sou Ainda que em vento eu me transforme Serei o mesmo, sempre; e sempre a mesma força. Onde sei que nasci, insisto E é bem possível que eu morra muitas vezes Ainda que, contínuo, eu me divirja Serei o mesmo, sempre; e sempre a mesma força. Delicado, como o som de um trovão inesperado Fascinante como a chuva de uma qualquer segunda-feira Infinito, como um ponto azul no céu, determinado E finito como o mar tocando a beira... Assim, Onde sei que perdi, eu vivo.
Passagem.: O salto se deu, enfim Digo: saltei! A corda rompeu-se, no fim Disse: agora sei.
Evandro Alves Maciel.: poeta, fotógrafo amador e estudante de Filosofia pela Faculdade de São Bento, de São Paulo.
Blogs.: Eloarte! http://eloarte.blogspot.com O Múltiplo Contínuo, fotopoemas.: http://omultiplocontinuo.wordpress.com