RAÍZES DA JUREMA: A ÁRVORE SAGRADA
COMO SÍMBOLO DA IDENTIDADE CULTURAL AFRO-INDÍGENA
Everton Estevão de Melo
SUMÁRIO
IDENTIDADE, CULTURA & ORALIDADE
A CIÊNCIA DA JUREMA SAGRADA
ELEMENTOS SAGRADOS DA JUREMA
IDENTIDADE, CULTURA & ORALIDADE
A
IDENTIDADE CULTURAL DOS POVOS DE MATRIZ AFRO-INDÍGENA TEM SE CONSTITUÍDO ATRAVÉS DAS RELAÇÕES COM A NATUREZA
SUSTENTADA POR
SABERES, FAZERES, MODOS, TÉCNICAS E PRÁTICAS VIVENCIADAS COM BASE NA ORALIDADE.
O universo espiritual e tradicional da Jurema Sagrada, assim como seus mitos, compõe a memória ancestral das comunidades de terreiros de matriz afro-indígena
A continuidade dessa memória ancestral tem se dado através da transmissão dos saberes e fazeres, com base na oralidade, na escuta, na observação e no diálogo entre gerações. A árvore, conhecida como jurema (mimosa tenuiflora), é um elemento central do culto ancestral preservado pelas comunidades de terreiros, utilizada originariamente por povos indígenas, e também por povos negros, que fazem uso de suas cascas, raízes e folhas para finalidades diversas, sobretudo no cuidado da saúde física e espiritual, como por exemplo em forma de bebida em rituais sagrados, banhos de limpeza, infusões e na produção de cachimbos Para as juremeiras e juremeiros, assim como para as discípulas e discípulos da tradição, a Jurema, além de uma árvore - símbolo da identidade -
igualmente se expressa como uma ciência encantada, transmitida pelas mais velhas e mais velhos através da oralidade Dessa maneira, no culto, a árvore assume um protagonismo que se percebe tanto nas referências contidas nos pontos cantados quanto no uso dos seus troncos na preparação dos assentamentos dos Encantados e Encantadas e da própria bebida, essencial em determinados rituais A jurema, portanto, não é apenas um elemento ritual, abarcando uma dimensão tão central que corresponde a sacralização mesmo à árvore como divindade Todavia, o culto à jurema-árvore alcança um caráter duplo, referindo-se tanto ao seu reconhecimento enquanto espécie sagrada, a partir de suas propriedades ou pela fundamentação nos mitos e amplo uso na preparação da bebida de mesmo nome; quanto à sua utilização no processo de iniciação dos discípulos, ou como representação dos Encantados e Encantadas
A CIÊNCIA DA JUREMA SAGRADA
AO
CONSIDERARMOS A JUREMA COMO SÍMBOLO IDENTITÁRIO A ÁRVORE ASSUME DENTRO DO UNIVERSO DA TRADIÇÃO UM PODER DE REALIZAÇÃO E DE COMUNICAÇÃO COM O MUNDO DOS ENCANTADOS E ENCANTADAS.
A ciência da Jurema é a chave que abre e reúne em um só todos os sentidos e segredos, exercendo, portanto, um papel de conexão entre a realidade e as cidades encantadas Assim sendo, ela compreende saberes da dimensão material, como a realização de rituais e os conhecimentos relacionados às propriedades das folhas, dos pontos e outros componentes, como o cachimbo, o fumo e a fumaça enquanto elementos de comunicação com o mundo dos Encantados e Encantadas Desse modo, a ciência da Jurema corresponde tanto aos elementos sagrados quanto às correntes espirituais presentes no universo da tradição Nesse sentido, cada corrente é portadora de saberes que se traduzem na ciência dos Caboclos e Caboclas, dos Mestres e Mestras, dos Trunqueiros e Trunqueiras, dos Pretos e Pretas Velhas, e assim por diante Isso evidencia que a ciência da Jurema, além de consistir em um elemento constitutivo da identidade afro-indígena, é ainda imanente às representações dos
juremeiros e juremeiras, bem como dos discípulos e discípulas da tradição Existe, portanto, uma relação de mútuo pertencimento entre ciência e identidade Portanto, a ciência da Jurema, evidentemente, encerra saberes, propriedades materiais e espirituais de elementos utilizados no culto, e força que permite a ligação entre a realidade e o mundo espiritual. O juremeiro e a juremeira, por conseguinte, são portadores de ciência não apenas por terem experiências e saberes mas também por suas identidades afro-indígenas Todos estes aspectos contribuem para o entendimento da Jurema Sagrada enquanto uma tradição única e singular, o que é relevante, pois historicamente o seu culto foi desqualificado e deslegitimado pela violência estrutural do racismo e do Estado, o que trouxe consequências, sobretudo de ordem política e social para as comunidades de matriz afro-indígena que preservam essa cultura ancestral
ELEMENTOS SAGRADOS DA JUREMA
EM LINHAS GERAIS,
A BEBIDA, A FUMAÇA SOPRADA DOS CACHIMBOS, O MARACÁ E OS PONTOS CANTADOS SÃO ELEMENTOS COMUNS A QUASE TODAS AS CERIMÔNIAS
REALIZADAS NO CULTO À JUREMA SAGRADA.
Os pontos cantados nos terreiros são alguns dos elementos mais fortes de preservação da tradição da Jurema Neles, podemos entender a história de cada Encantado e Encantada, através de cantigas que revelam a sua identidade Já a fumaça é um dos elementos de força mais importantes no culto. Ela é a responsável pela comunicação com o mundo espiritual e por ser uma forma poderosa de contato com a espiritualidade é utilizada para diversos fins Nesse contexto, o cachimbo desempenha um papel central É a partir dele que se buscam respostas e recados, trabalhos são feitos e desfeitos, e tratamentos espirituais de cura são realizados Assim, a composição do fumo de ervas utilizado no cachimbo varia de acordo com a resposta que se quer alcançar Das raízes e cascas da árvore é produzida uma bebida, o vinho da Jurema, que é consumido ritualmente durante o culto O preparo da bebida é um segredo dos Encantados e Encantadas, reservado aos mais velhos e mais velhas
A sacralização pela árvore da Jurema se estende para um cuidado com as matas Como uma tradição constituída por forte ancestralidade indígena, os mais velhos e mais velhas, e mais novos e mais novas compreendem as matas e as árvores não apenas a jurema como uma manifestação divina. Porém, em espaços tão urbanizados na contemporaneidade, realizar os rituais e oferendas dentro de florestas tem representado um desafio crescente para as comunidades de matriz afro-índigena Por essa razão, é indispensável destacar que, para os povos de terreiros, o culto à Jurema Sagrada é uma cultura viva e em constante transformação, envolvendo ancestralidade, saberes, identidade, tradição e interação com cada comunidade que vivencia seus ritos Nessa perspectiva, a tradição e a cultura são fundamentais para a preservação da memória e da identidade das comunidades afro-indígenas, e devem ser respeitadas e valorizadas como tal
