Evoé! n.01

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Revista Evoé nº1 2014

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eVOÉ

revista digital da Cia. Bacante de Teatro

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Processos de criação contemporânea no teatro de grupo


Revista Evoé nº1 2014

APRESENTAÇÃO

foto: Karina Couto

EVOÉ!

O grito alegre de saudação ao deus Dionísio ecoa de nossas bocas anunciando que algo novo vai surgir! Concebida por um sonho pessoal tornado desejo coletivo. Filha de muitas mães (e pais), a novidade gestada por longo período nasce tendo passado da hora. Como Baco, teve de lutar bravamente para vir à luz. Mas, também como ele, surge jubilosa, cheia de alegria dançando a vida e celebrando a arte.

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É com imenso prazer que lançamos o primeiro número da Revista EVOÉ!, uma publicação online votada à reflexão sobre o fazer artístico, especialmente o teatro, deixando portas e janelas abertas às outras linguagens. Alimenta o desejo de se fazer espaço propício à discussão aprofundada sobre os mais variados temas pertinentes às práticas artísticas desenvolvidas no Brasil e no mundo. Repercute tanto a produção teórica, de orientação mais acadêmica, quanto os projetos criativos de indivíduos e coletivos interessados em contribuir para a diversidade e enriquecimento da prática e do pensamento em arte. Projeto editorial da Cia. Bacante de Teatro, este primeiro número da EVOÉ! fora desenvolvido totalmente com recursos próprios e com a inestimável colaboração de parceiros aos quais agradecemos muito: Ana Caldas Lewinsohn, Eduardo Okamoto e Giuliano Tierno de Siqueira que integraram o conselho editorial, realizando a leitura e seleção dos artigos; Julio Giacomelli pela diagramação; Karina Couto pela documentação fotográfica dos trabalhos da Bacante; a todos os artistas-pesquisadores que submeteram seus artigos ou que cederam seu tempo dialogando conosco e, especialmente, a todos os integrantes da Cia. Bacante de Teatro que somam esforços na luta diária.

A EVOÉ! é uma revista temática organizada em seções direcionadas a objetivos específicos: REFLEXÕES traz artigos que desenvolvem investigações, estudos de caso ou relatos de experiências; DIÁLOGOS apresenta o pensamento de importantes artistas por meio de entrevistas/conversações; IMAGENS DA CENA mostra ensaios fotográficos representativos do olhar e do pensamento de fotógrafos que se dedicam às artes cênicas; ENCENAÇÕES visita processos e espetáculos relevantes ouvindo seus criadores; e CIA. BACANTE socializa pesquisas, processos e espetáculos criados pela companhia e seus integrantes. Por meio de tal amplitude de olhar, pretende-se dar conta de abordar o tema de cada edição da forma mais horizontalizada possível, sem deixar de aprofundar as questões chave. Evoé! Evoé! É a voz de Dionísio que, brandindo seu tirso, retribui ao grito alegre e conclama a todos: sátiros, bacantes, artistas e amantes da arte a socializarem o gozo, o prazer e o aprendizado que emana da arte.

A todos, ótima leitura! Adilson Ledubino

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foto: Karina Couto

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expediente REVISTA EVOÉ! Idealização e Edição Adilson Ledubino

Jornalista Henrique Cesar Vieira (MTB 46871/SP)

Fotógrafas Seção IMAGENS DA CENA Carolina Engler

Seção CIA. BACANTE Karina Couto

Conselho Editorial Ana Caldas Lewinsohn Eduardo Okamoto Giuliano Tierno de Siqueira

Realização

Projeto Gráfico e Diagramação Giacko Studio

Autores Seção REFLEXÕES Leandro Augusto e Silva Miranda Cavalcante Mayra Montenegro De Souza Nadia Recioli

Seção CIA. BACANTE Adilson Ledubino

Entrevistados Seção DIÁLOGOS Sérgio de Carvalho

Seção ENCENAÇÕES Nelson Baskerville Verônica Gentilin Virginia Iglesias

Adilson Ledubino, Aline Archangelo, Amanda Moreira de Oliveira, Cleyton Carneiro, Eduardo Virgilio, Gleice Severo, Henrique Cesar Vieria, Letícia Frutuoso, Mariana Dias Jorge, Nadia Moralli, Vitor Paranhos.

Contatos Editor (19) 99678-5508 (19) 3203-0679 Cia. Bacante (19) 99142-9159; (11) 95450-4465 evoeartescenicas@gmail.com www.ciabacante.com

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foto: Karina Couto

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sumário

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APRESENTAÇÃO

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EXPEDIENTE

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EDITORIAL Cleyton Carneiro

SEÇÃO ENCENAÇÕES

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Luíses, Antonios e Gabrielas

Adilson Ledubino

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Humano, demasiado humano.

Entrevista com o elenco do espetáculo Luís Antonio-Gabriela Entrevista com Nelson Baskerville diretor do espetáculo Luís Antonio-Gabriela

SEÇÃO DIÁLOGOS

Entrevista com 34 Sérgio de Carvalho

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SEÇÃO REFLEXÕES

A Contundência do Real como

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Fissura na Ficção do Artista

Nádia Recioli

Bem Como Ratos de Hamelin, Marginais de Camarão

66

Leandro Augusto e Silva Miranda Cavalcante

84

O Ator que Canta um Conto

SEÇÃO IMAGENS DA CENA

98

Carolina Engler

SEÇÃO CIA. BACANTE

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Cia Bacante de Teatro Histórias e desafios da prática teatral colaborativa

Adilson Ledubino

Mayra Montenegro de Souza

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editorial

foto: Karina Couto

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por Cleyton Carneiro

A Revista Evoé! chega à sua primeira edição com uma linguagem clara e acessível aos olhos de seus expectadores. E tal como em cena viva de teatro consistente, a revista propaga muito mais que um simples grito de saudação. Em suas páginas ecoam informações, vivências, imagens e sensações, trazidas por múltiplas fontes: reunidas, catalogadas, revisadas e editadas especialmente para esse público que admira, pratica ou vivencia as artes cênicas. Duas entrevistas compõem esta edição.

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Na seção Encenações, Nelson Baskerville, Verônica Gentilin e Virgina Iglesias falam sobre experiências de criação, montagem e circulação da peça Luís Antônio-Gabriela. O espetáculo, inspirado em uma história de família, seguiu todo um curso de pesquisa e elaboração de material cênico, transformados em uma obra que encanta ao diverso público. Na seção Diálogos, o dramaturgo e diretor Sérgio de Carvalho discute sobre o processo do fazer teatral em grupo.


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Assim, a retomada histórica da criação coletiva no Brasil é apresentada como um movimento de oposição à mercantilização da cultura. Em sua fala, destaca que o processo criativo deveria estar aliado a uma identidade crítica e política, o que nem sempre é alcançado pelos grupos de teatro. A experiência adquirida com a Cia do Latão bem como a relevância da música ao processo criativo, a influência de grandes autores para a criação com foco em questões sociais, a abordagem do processo criativo de grupo em universidades do país são questões trazidas sob a ótica lúcida e coerente do entrevistado. Na seção Reflexões, três artigos configuram espaço para leitura, observação e análise crítica. No primeiro deles, Nádia Recioli relata a experiência de quatro anos de imersão em trabalhos do Grupo do Trecho, desenvolvidos em zonas marginais da esfera urbana, de onde relata o envolvimento, a fragilidade e a humanidade do artista ante às relações humanas ora construídas. O segundo artigo, de Leandro Augusto e Silva Miranda Cavalcante, traz em linguagem poético-etimológica, a experiência de construção da identidade cultural associada a atividades teatrais em zonas urbanas tidas como periféricas. No terceiro artigo,

Mayra Montenegro de Souza demonstra a importância da formação musical aliada ao trabalho do ator, uma vez que o processo de composição pode ser facilitado quando aliado ao processo de criação das partituras vocais. Em seu primeiro número, a revista Evoé! traz ainda fotografias de Carolina Engler (seção Imagens da Cena) e Karina Couto (seção Cia. Bacante). Uma representação clara de que a arte está, além de tudo, na imagem e no olhar. Em um panorama histórico, a Cia Bacante é apresentada pelo seu idealizador e diretor, Adilson Ledubino. A partir de uma narrativa parental e proximal, os projetos desenvolvidos pela companhia são descritos em proposta, essência e forma de construção. Nesse conjunto, elementos como o fazer colaborativo, o ator propositor, a musicalidade, o encontro revelador com o público infantil e o cuidado técnico e pedagógico para com este, a proposta crítica aliada à reflexão social nos mais diversos projetos desenvolvidos são elementos marcantes atribuídos à companhia de teatro que completa 10 anos de criação. Uma boa leitura, repleta de belas imagens e que essa experiência possa ecoar além do som. Evoé!

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foto: Bob Souza

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ENCENAÇÕES

Luíses, Antonios e Gabrielas Humano, demasiado humano. Adilson Ledubino

O espetáculo termina. Aplausos longos de uma plateia em pé que reverencia a experiência vivida e compartilhada por hora e meia. No entanto, perduram as sensações, os soluços que já se faziam ouvir ao longo de trechos da peça/vida de Luís Antonio Gabriela e as reflexões trazidas à tona. Olhos marejados são provocados a olhar pra si mesmos e entrar em contato com facetas pessoais que muitos tentam deixar adormecidas. Bobagem se prender

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a classificações, sejam do tema ou da linguagem da peça. Os críticos de plantão que se deem a esse trabalho. Mais do que tratar da homossexualidade, o espetáculo fala sobre o ser humano e suas formas de se colocar diante da vida. Falemos, portanto, das sensações e, por sermos uma revista sobre teatro, dos meios de que lança mão a encenação para mexer com a plateia da forma que faz. O público entra e se depara com os ato-


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res já no palco, concluindo aquecimento vocal, andando de um lado para outro ou mexendo em alguns adereços da cena. Todo o aparato técnico no palco revela a intenção de se assumir como teatro feito às claras. Provavelmente o que mais confere profundidade à peça é a simplicidade que, direta, não escamoteia a complexidade de seu tema. Ainda que, à primeira vista, a cenografia pareça carregada, com TVs em alguns cantos da cena, soros que pendem do teto em profusão, mesas de luz e som no palco, o espaço é do ator. Mais ainda. O espaço é de um elenco justo, que, num excelente trabalho coletivo, conta uma história importante para os dias que correm e busca uma forma que se funde perfeitamente ao assunto de que trata. Mérito também de Nelson Baskerville, que dirige um jovem elenco, fazendo saltar aos olhos o que tem de mais rico: a força do conjunto. É aí que reside o maior valor do trabalho, independente de grandes interpretações, e vale dizer que o protagonista Marcos nos presenteia com uma excelente. Sem se prender a uma linha de interpretação única, o elenco narra a história de um ser colocado à margem, estigmatizado pela sociedade e pela família numa época em que assumir-se diferente, em qualquer esfera, seja sexual ou política,

trazia consequências marcantes, sentidas quase sempre na própria pele e na alma. E para retratar esse ser, lança mão ora da representação realista, ora do distanciamento brechtiano, do depoimento, do vídeo, da música cênico-narrativa, do “choque”, do humor. O público ri e, ao mesmo tempo, quase constrangido, se questiona: “do que é que se está rindo?” Esse ser desvelado, escancarado aqui diante da plateia é uma pessoa de verdade. Isso realmente aconteceu e torna a acontecer diuturnamente. Esse ser tornado personagem tem nome: Luís Antonio Gabriela. Ao mesmo tempo em que o ato de nomeá-lo o individualiza como personagem, o torna depositário de tantos que, como ele/ela, ainda hoje tem de enfrentar o preconceito e a intolerância. Vivemos assim, a rica experiência de nos sentirmos tão próximos e íntimos de Luís e Nelson que compartilhamos sua condição e as reflexões nascidas de suas memórias compartilhadas com sinceridade e desprendimento ímpares. O espetáculo merece ser visto e revisto, discutido e debatido, sobretudo sentido e experienciado pelo público mais amplo possível, a fim de se dar a conhecer os problemas vividos por tantos Luíses, Antonios e Gabrielas aprendendo talvez que “o amor não se regula”.

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ENCENAÇÕES

Entrevista

com o elenco do espetáculo Luís Antonio-Gabriela

EVOÉ! A Revista EVOÉ! se encontra com o elenco do espetáculo “Luís Antonio Gabriela” da Cia. Mungunzá de Teatro no espaço SESC Campinas pra bater um papo sobre teatro. Estamos aqui com a atriz Verônica Gentilin. Verônica, a Mungunzá foi fundada em 2006. É uma companhia relativamente jovem. É possível elencar as características que são pilares do trabalho do grupo? Quais os objetivos e projetos? Como vocês veem a trajetória do grupo? Como é o cotidiano da companhia atualmente? VERÔNICA: Então, quando a gente conheceu o Nelson, eu, particularmente, e o Lucas e a Virginia entramos na Cia., a companhia a gente entrou pra substituir três atores no espetáculo “Por que a criança cozinha

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na polenta?”. Então eles já vinham estreando essa linguagem com esse espetáculo. Os fundadores, o Marquinho e a Sandra fundaram a companhia com o Nelson. Eles conheceram o Nelson nesse espetáculo e teve aquele momento de engatar e falar “Ah, é isso...” e casar, teve esse casamento, esse primeiro momento de descobrir essa nova linguagem. Então a gente entrou e nesse primeiro trabalho conjunto (Por que a criança cozinha na polenta”) a gente foi se identificando com essa linguagem. E a gente ia pra festivais e a gente falava: “Ah, então o que a gente faz é teatro contemporâneo... é pós-dramático e tinha o lema, as referências que o Nelson trazia e aí uma vez a gente pegou o Mate, de jurado ou debatedor, eu não lembro e ele falou: “parem de conceituar. Façam e a gente, aqui, embarca. Se vocês começam a tentar conceituar é como se vocês quisessem justificar...A gente faz, mas é porque é aqui...a gente sabe o que a gente está fazendo. E às vezes não precisa saber um porquê de tudo”. Então é assim, a linguagem, a estética, ela é...tem elementos do pós-dramático, tem muita coisa do distanciamento, mas também tem muita catarse, e não é uma catarse pela identificação... O Nelson diz que com o “Luís AntonioGabriela” ele entendeu... eu não queria que o espetáculo fosse catártico e aí ele descobriu que no “Luís Antonio” isso acontece, mas não pela identificação, que seria no naturalismo/realismo. Ele queria que fosse uma catarse mais sensorial por causa da soma de elementos. A gente mistura, ao mesmo tempo, vídeo, uma música muito alta, tem técnico em cena, tem dança, tem

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“ A partir desse momento o Nelson falou: “Agora vocês vão pegar esse personagem e vão defender”. (...) Então se esse personagem, por acaso deixar de aparecer em algum momento ou não ficar claro, a culpa é única e exclusivamente de vocês porque vocês é que estão inserindo eles.

” artes plásticas...Então, tudo isso, eu acho que gera um outro tipo de entendimento no espectador que não necessariamente se dá pelo intelecto. Então ele vai sendo bombardeado por impressões...É uma linguagem que não tem nome, mas que parte do pós-dramático. EVOÉ! É interessante te ouvir falando porque na criação a gente vai partindo de sensações e a teoria pode vir depois ou mesmo é bom que nem venha tão no início para se evitar rotular logo de saída. Lemos numa matéria sobre o espetáculo que dava conta de que, até por uma necessidade externa de clas-


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sificação, optou-se por chamar de “um documentário cênico”... Eu queria que você falasse um pouco sobre o processo de criação, os estudos teóricos, as experimentações, as conversas que vocês tiveram com Maria Cristina (irmã de Nelson e Luís Antonio), as entrevistas, as fotos... Como foi a abordagem desse material no processo de criação do espetáculo? VERÔNICA: A gente se reuniu pra uma pizza na casa do Nelson e aí a gente estava buscando fazer... ele trazia vários textos do Tenesse Willians e “o que a gente vai fazer?”. E ele resolveu contar a história da sua família. E contou e a gente falou: é isso! Não tem como a gente fazer Tenesse Willians agora, depois de a gente ouvir isso. Então ele falou: “Então vamos. Vamos pegar os relatos das pessoas que estão vivas e vamos entrar em contato com essas pessoas.” Aí, a gente marcou uma segunda pizza e convidou a Maria Cristina. Ela foi a primeira pessoa que sentou...e a gente filmou isso. Ela abriu toda a visão dela sobre a história que a gente decidiu contar. A partir desse dia a gente se dividiu e começou... A gente foi em Santos e conversou com o Serginho (cabeleireiro e amigo do BolotaLuís Antonio), e a gente gravava os relatos de cada um. A gente conversou com a madrasta do Nelson... Com a madrasta, com o Serginho, com a Maria Cristina e aí dos que estavam mortos a gente tinha as cartas. Do pai tinha muitas cartas... do Luís Antonio muita carta e as versões tanto dos amigos quanto da família e aí a gente começou a montar. Então a gente transcreveu tudo e aí o Nelson falava: “agora vamos, em sala de ensaio, mostrar pra

gente aquilo que motivou cada um de vocês”. Então é livre, não tinha personagem ainda. A gente tinha relatos e cada um ia pra casa e pensava “nossa eu me emocionei com isso” e ia levando material. Cada um nesse projeto acabou se identificando com um tipo de situação. Eu, por exemplo, acabei me identificando muito com as situações do Nelson. Por isso que eu trazia muitas situações que eram dele criança e acabou virando o “Bolinho”. A mesma coisa, o Marquinhos veio focando no Luís Antonio, o Lucas foi no “Pascoal”, então foi assim que foi se delimitando os personagens. Aí, até que, naturalmente, bateu-se o martelo. A partir desse momento o Nelson falou: “Agora vocês vão pegar esse personagem e vão defender”. Então a dramaturgia vai ser construída assim. Vocês vão pegar todos aqueles relatos que vocês têm sobre o seu personagem e vão ver o que cabe em qual parte dessa história. Então se esse personagem, por acaso deixar de aparecer em algum momento ou não ficar claro, a culpa é única e exclusivamente de vocês porque vocês é que estão inserindo eles. Então a gente foi nesse processo de dramaturgia conjunta, inserindo e aí o Nelson ia mudando, fazendo esse trabalho muito importante de olhar de fora e dizer não, tira isso aqui, esse final inverte... Foi muito coletivo. EVOÉ! E quando você fala de defender o personagem, isso passa por um processo do realismo stanislvskiano e depois é que vieram as outras referências (Brecht, Craig e Artaud) ou como é que foi isso? VERÔNICA- Nâo, na verdade quando ele fala em defender a personagem é quase como: “contextualiza ele nesse processo

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pra que ele não seja nem vilão e nem mocinho. Então, assim, humanize esses personagens, traga ele simplesmente como ele é. Descubra a essência dele e inclua ele como se fosse um fato neutro pra gente não cair numa coisa que poderia acontecer numa história dramática realista que seria uma auto punição, uma auto comiseração. Ou ter o vilão. Então era no sentido mais neutro. Tragam esse personagem pra que eles sejam simplesmente entendidos enquanto ser humano. Aí depois a gente começou a pensar em termo de distanciamento, mas não foi pensando antes. Isso veio depois. EVOÉ! Então, a gente está falando um pouco de rótulos, de classificações...e pelo o que você está dizendo e o que se pode ler do trabalho, a gente pode dizer que foi um processo colaborativo de criação? VERÔNICA: Foi. EVOÉ! Esse processo colaborativo foi uma opção para esse espetáculo ou era um desejo, um projeto do grupo de trabalhar com esse espaço de criação para o ator? Como é que foi a escolha do processo colaborativo como modo de produção? VERÔNICA: Como eu não acompanhei o processo anterior de criação da “polenta”...o que eu sei é que os atores que já estavam dizem que nesse processo do Luís Antonio em comparação com o anterior foi deixando os atores muito mais livres. Eles não esperavam que fosse ser assim. O Nelson trabalha muito em cima da criação do ator. Dificilmente ele vai falar: “olha, você vem aqui, dá dez passos, fala nesse tom e a gente vai estudar junto o subtexto”. Não. Ele tem uma coisa que ele confia muito no

que você tem pra dar e aí ele trabalha em cima disso. Só que ele tem um pulso que vai delimitando. No Luís Antonio o que aconteceu foi que, acho que por ser uma história dele, ele não conseguia nem estar presentes em todos os ensaios porque ele ia e dizia: “poxa, toda vez que eu venho aqui eu “mato” minha mãe, eu...acontece isso, acontece aquilo...”. Então, ele precisou se distanciar pra não interferir. Então a gente ensaiou e às vezes tinha três vezes na semana que ele não vinha, as outras duas ele vinha. Ou ele ia oscilando. Então foi um processo muito rico. Tudo o que a gente trazia ele foi fazendo o trabalho de mestre que é alinhavar. Mas ele deixou a gente muito livre pra criar sem pudor em cima da história dele. Então o dele estava na reta, literalmente. Então foi um processo mais livre, mas que eu acho também que aconteceu por conta da história ser pessoal. EVOÉ! Continuando nessa mesma linha, então, eu gostaria que você falasse mais detalhadamente sobre como foi esse espaço que os atores tiveram...você até já respondeu isso, mas eu queria que você burilasse um pouco mais a questão. Como é que foi o espaço que os atores tiveram na criação do espetáculo exatamente por ser uma história pessoal, algo muito forte, com foco especial na história do irmão do Nelson. E a partir disso, que dificuldades surgiram? Porque eu fico imaginando o ator pensando: poxa, o cara de quem eu vou falar está ali...você inclusive que ficou com o personagem que é o Nelson, o Bolinha, imagino que às vezes dá uma travada...

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VERÔNICA: Eu vou falar um pouco da missão que eu tive nesse período que era igual pra todo mundo, era tudo muito ativo ali dentro. Então, assim, ele contava muita história. Ele chegou e contou a história de que a madrasta deu um cardigan que ele falou: “mas cadê o coelhinho? Tem um coelhinho aqui no meu olho. Tá vendo? É pra costurar um cardigan pra ter um coelhinho...” Ele contou essa história que ficou marcada pra mim e aí eu cheguei em casa e escrevi. Falava, acho que eu vou tentar com isso aqui e escrevi. Era assim: ele chegava e falava hoje a gente vai trabalhar tal cena, a cena do leite. Dez minutos pra vocês pensarem e me propor alguma coisa. Então era tudo muito lacaz. Então eu lembro de pensar em usar aquilo que eu escrevi...a gente tinha um camarim com coisas que a gente não usava mais... que a gente encheu de coisa, viu que não ia precisar e entulhou tudo. E eu vi que tinha uma coisa, uma máscara do Mickey e falei, ah, vou usar isso aqui mesmo agora e depois eu vejo o que faço. Peguei, inventei um negócio e falei, ah, vou fazer isso. Saiu e ele falou “é isso”! Alinhavou e depois, claro, ele deu o toque de mestre, mas a essência ficou. De uma coisa que saiu de um acaso, de objetos que estavam ali por acaso, que não foram pensados pra isso, mas que deu certo. Então, com essa liberdade que a gente tinha de criar em cima, ali na hora e ele alinhavar...então o processo foi assim o tempo todo. Também trazer coisas de casa... Agora essa coisa de, a Sandra pode falar, porque toda a vez que Maria Cristina vinha aqui, e ela vinha muitas vezes e trazia todo mundo. Ela amava

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“ Peguei, inventei um negócio e falei, “ah, vou fazer isso”. Saiu e ele falou “é isso”! Alinhavou e depois, claro, ele deu o toque de mestre, mas a essência ficou. De uma coisa que saiu de um acaso, de objetos que estavam ali por acaso, que não foram pensados pra isso, mas que deu certo.

“ vir, é que agora a gente está viajando, mas ela vinha muito. Ela (a atriz) falava que ficava tensa no começo. Quando foi o primeiro ensaio aberto que a Maria Cristina viu, a Sandra falou que ela não conseguia fazer o espetáculo porque tinha uma coisa de “será que eu estou fazendo...eu estou ofendendo, o meu tom...Passa mil coisas, né? Então, aí foi muito particular pra cada um. O meu, o fato de ser o Nelson, eu não pude ter muito pudor pra mexer na história dele porque senão eu não conseguia criar. Então eu falei, tá, hoje eu vou propor a cena em que ele foi violentado. Violentado não, não foi. Foi seduzido. Eu vou propor essa cena. Vamos lá! Aí eu criei uma cena sem pensar no que ele poderia achar. Se ele ia ficar triste, magoado, que eu lembrasse assim dele...Difícil. Então isso deixa a gente muito à vontade pra


foto: Bob Souza

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brincar em cima de uma coisa séria. E com relação a eu fazer ele também. Eu acho que...às vezes ele vinha e “Verônica, não! Não é assim. Essa cena parece que eu to querendo dar logo. Eu não to querendo dar logo. (risos) Está alegre demais. Então, assim, ele ainda brincava. “Você vai ter que aguentar todo o espetáculo...” eu dizia: lá vem...acabava, ele vinha falar. E é porque eu faço ele. Então tem isso também.

EVOÉ! Como vocês têm lidado com a repercussão do espetáculo, especialmente após os prêmios APCA e Shell? Qual retorno vocês têm recebido do público e como isso pode influenciar no próprio espetáculo? Vocês reveem o trabalho ao longo das temporadas? VERÔNICA: A gente não fazia ideia que esse espetáculo ia virar o que virou. A gente criou, a gente fez com muito amor e acreditava muito nisso e no dia da estreia o Nelson falou: “olha, se o público não gostar é normal porque o que a gente tá fazendo ou vai dar muito errado ou vai dar muito certo. Não vai ter meio termo”. Tá, a gente... no dia da estreia...tá, ele veio todo querendo acalmar e aí teve uma reação no final que a gente não esperava...os aplausos, semana seguinte lotado, no dia seguinte lotado e aí isso, a gente não foi ...a gente tinha acabado de fazer a polenta que em São Paulo não tinha vingado, mas fora, nos festivais vingou. A gente ganhou muito prêmio com a polenta. E aí quando isso começou a acontecer com o “Luís Antonio” a gente não tinha muita dimensão do que era. A gente sabia que era uma coisa boa porque a gente fez acreditando, mas como bate no publico a gente não tem essa noção. Então ia pras indicações, a gente ia. E aí as pessoas falavam: qual é a sensação de ser indicado pra um Shell, um APCA? Pra gente não tinha, engraçado, não tinha uma coisa assim. Só que quando os outros chegam em você e te falam parabéns! Você fala: Ah, é...é por isso. A gente não está acostumado. Talvez se isso começar a ser uma constante, a gente já vai ter aquela coisa... não sei se a gente deve perder isso ou não,

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mas é uma coisa de “ah, já sei do que eles estão falando”. Ah, a gente tem um espetáculo que é bom, mas eu acho que é bom a gente manter sempre nessa dúvida, né? Deu certo, mas isso é uma coisa como continuar fazendo um trabalho do jeito que a gente faz. E o retorno do público sempre foi incrível, assim, sempre tem mensagem, às vezes em...no facebook é muita gente, muita. Sempre falando do trabalho, propondo. Teve um grupo que propôs até da gente se reunir e trocar ideia porque eles estão começando agora e eles queriam começar um processo colaborativo e entender como é que funcionava, como que a gente começou. Então eu acho que também acabou entrando meio que nessa parte... não pela peça, mas como que vocês começaram? Acho que isso gerou muita curiosidade. Po, vocês são como a gente e vocês estão fazendo um espetáculo que virou isso. E aí a gente olha de fora e fala: Nossa, é verdade. O espetáculo virou isso. A gente ainda é muito novo, né? EVOÉ! Mas já acaba se tocando que já é referência pra alguns...e daí a responsabilidade, inclusive. VERÔNICA: Daí a responsabilidade. E o que a gente quer fazer, a gente até propôs de ter esses encontros com esse grupo pra ter uma troca. Isso tem acontecido muito em oficina. Quando a gente da oficina, a gente faz uma oficina que tem haver com o nosso processo de criação, foi o que nasceu com a gente. E a gente sempre senta e conversa. E acho que, a cima de tudo, o que a gente sempre propõe é que o espetáculo está muito vinculado a como você leva a sua vida. A arte ela está imersa

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numa vida. Não tem como dar errado se você acredita na vida, se você tem vida e você quer comunicar isso. Então, a gente sempre partiu muito disso. Não se preocupem lá na frente. Acredita no que você está fazendo hoje porque isso vai vingar se for algo sincero e se tiver estudo em cima também do seu desejo. Acho que é nesse sentido, mas a gente ainda não tem essa autoreferência. Isso é difícil. EVOÉ! A formação da Companhia passa pelo Teatro Escola Macunaíma e pela Oficina de atores Nilton Travesso, não é? Em que medida o trabalho de grupo e a escolha do processo colaborativo e a parceria com o Nelson Baskerville contribuíram para a formação de vocês como artistas, como atores, como pensadores da arte e da cultura? VIRGÍNIA: Na realidade, na verdade, eu acho que além da companhia...uma coisa que a gente presa muito na companhia, é uma característica bem forte ...eu me lembro do nosso primeiro trabalho que foi “Por que a criança cozinha na polenta” as pessoas, na plateia costumavam dizer que a gente parecia...que é a história de uma família, né? Uma família romena. E as pessoas diziam “nossa, parece que vocês são uma família, mesmo. É impressionante”. É uma energia familiar. Então eu acho que isso ajuda muito a suportar o processo criativo. Porque todo processo criativo, você que é do teatro sabe que não é fácil. Tem uma coisa aí que você mexe, há um mergulho interno. Da coisa realmente de buscar coisas que a gente não quer encontrar e acaba encontrando. Então eu acho que essa questão familiar ajuda bastante nessa energia


foto: Bob Souza

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familiar. E toda família tem as pessoas que são de boa, prestativas que buscam soluções e, logicamente, isso deixa o grupo, vamos dizer assim, muito mais potente, né? Você consegue explorar o máximo, do interno você consegue com muito mais facilidade expressar para os outros. Se você consegue se conhecer, se descobrir fica muito mais fácil você expressar. E buscar dentro de você muitas vezes coisas que você... que vão favorecer a criação do trabalho. E essa imposição é que deu muito certo na nossa com-

panhia, né? É feito pela gente, por cada um e sua potencialidade. A Verônica, por exemplo, com sua inclinação à dramaturgia, de escrita, né? E isso vai favorecendo, cada um na sua... o músico, o criador na parte de vídeo, então eu acho que é uma coisa que ainda vai render muito... EVOÉ! Pelo que se pode ver também, a música tem um papel importante no espetáculo. Em uma das entrevistas com o Marcos que lemos ele dizia que não tocava acordeão, e foi atrás e se virou...

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Como é que vocês veem a função da música nesse espetáculo, como foi o trabalho musical, a preparação dos atores, como é que foi isso? VIRGÍNIA: Na verdade, ninguém tocava instrumento nenhum. VERÔNICA: Nem cantava. VIRGÍNIA: É, ninguém...A exceção do diretor musical que é o Sassa e a Fabiana, os demais foram mesmo aprendendo e fazendo, né? Então as músicas, apesar de serem...tem algumas que tem uma ligeira facilidade, um dom que já vem com a pessoa, né? E pra nós foi, acho que a dramaturgia musical que se criou para o “Luís Antonio” foi uma coisa muito verdadeira porque o próprio diretor acompanhou todo o processo, não todo o processo, mas grande parte do processo de criação que foi em conversas com o diretor, né? Porque o Nelson, ele foi... eu acho que foi totalmente orgânico. E isso veio pra nós também muito orgânico, então, quer dizer, é um execução porque acaba sendo, é quase uma coautoria, né? Então é uma parte que todos falam...ai, não tem aquela rabeca? VERÔNICA: E é engraçado porque ninguém tocava nada mesmo. Tinha uma cantora que é a Day. Não é que a gente teve aula, né? O Marquinho falou pro “Caipira” que é o diretor da peça...ele teve aula particular, foi e aprendeu. Mas todo o resto foi em sala. A gente viu que tinha disponibilizado lá esses instrumentos e começou a fuçar. Pegava e agora vamos ver como é que é isso aqui. O Marquinhos, o Pedrinho, eles foram...que é o técnico. Então foi muito de ir fuçando e ir jogando junto numa grande brincadeira. Então não é que a gente teve aula. A gente teve sim um pouco de canto

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pra gente aprender o mínimo do que a gente poderia fazer aqui, mas a gente, ainda assim, não é o nosso forte. Até o Nelson, eu adorei quando ele falou num debate, que a gente é, como é que é? Que a gente canta que nem japonês no samba, ele brinca. A Day canta e a gente, e a Vi também, mas nós, a gente faz o que tem que fazer. VIRGINIA: A maioria são atores cantando... EVOÉ! Nesse espetáculo vocês falam de um tema que não é um tema simples, é um tema muito árido, inclusive, recentemente foi motivo de uma polêmica que rolou na internet, a temática da homossexualidade, uma entrevista com a Marília Gabriela... VERÔNICA: Ah, do Malafaia. EVOÉ! É. E é um tema árido, polêmico e não é só esse. Tem a questão da relação familiar. Como é que tem sido pra vocês? Você acabou de falar que “é um contato da vida, que nos põe em contato com facetas de nós mesmos que, às vezes a gente nem imagina”. E como é que tem sido e como é que foi durante o processo lidar com esses temas? Que repercussão isso tem causado? Eu soube que houve um cuidado muito sério pra não cair no clichê da representação da “bicha” simplesmente...e de novo a gente está aqui falando de classificação, de gênero artístico, de gênero humano, e o que importa é o ser humano vivendo...como vocês lidaram com essa temática tão árida? VERÔNICA: Eu estou lembrando de novo do processo de ensaio. Que a gente entrou... porque, engraçado, ouvindo assim, e acho que pra gente isso pega no público, antes


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de ser a história de um travesti, é a história do irmão do Nelson. É a história do Luís Antonio- Gabriela logo depois. Então eu acho que isso pegou muito. É uma família que teve questões com esse tipo de problema, que é considerado um problema, né? Que foi muito mais na época. Pela época, pela situação da ditadura...Mas se as pessoas se identificam, é porque todas elas tem algum tipo de dificuldade, não porque, não é só com relação a gênero, com sexualidade. Tem outros milhares de problemas em cada família que elas não conseguem lidar. Então a questão familiar pegou muito. Quanto à relação com o clichê, teve um ensaio que o Nelson, a nossa figurinista, a Camila, chegou e jogou um monte de sapatos, plumas, paetês, e falou brinquem. E aí o Nelson falou que ele via a gente, ele olhava e falava não, isso tá um zoológico, não. Tira, tira. Ele falou que foi a única vez que ele olhou e falou: “eu só tenho certeza de uma coisa: não é isso!” e aí ele, pra gente ensaiar, ele queria ver o máximo possível do corpo pros ensaios. Então a gente ensaiava tudo com a segunda pele. E isso foi ficando, foi ficando que acabou e a gente falou “não tem nada pra por em cima”. Então o figurino partiu daí. Até porque a gente está falando do nú, do ser humano, independente das classificações. Então, de um ser humano que tinha esse olhar em cima dele: é bicha, é dado. Ou pro pai: é preconceituoso, é violento. Ou pro Nelson: é foi violentado, é foi seduzido. A gente queria por cada coisa nua pra...porque acho que é isso que bate. Ninguém nem sai da plateia tendo um julgamento. Isso é que é bonito. As pessoas saem meio que em estado de redenção. A gente sabe por-

que a gente pede pras pessoas escreverem depois do espetáculo. Então muitas coisas que elas deixam escritas, a gente percebe que não tem nada haver com julgamento, né? De “ah, entendi por esse lado”. É outra relação. E eu acho que tem esse poder por isso. Embora a temática seja importante, e a gente quis sim, quis trabalhar, quis que isso fosse visto por essa ótica, não é só isso. Ele tá em conjunto com uma outra questão que é familiar, que é o humano, acho que é isso. VIRGINIA: Eu achei interessante porque, a questão do figurino, ele dá uma leitura, inclusive, a própria característica de uma peça tão lúdica dá uma leitura do que é o remendo, do que é a vida de coisas sofridas. Por exemplo o uso de calcinha por cima..... então tudo é, então como que a gente pode passar isso pra relação familiar. Então como ficou essa família? No que a vida se transformou depois dessa situação vivida, né? De algo tão forte familiar? E uma coisa que eu costumo dizer e acho que torna o espetáculo tão potente é que ele não é...lógico, é uma questão super atual, lógico, é modo de falar, é... mas eu acho que fala das dinâmicas familiares e das relações humanas. E, sobretudo, de tolerância. Uma peça de...intolerância, nessa história de família, em questão, a questão do Luís Antonio não em relação à homossexualidade, mas em relação à postura de outras pessoas da família, entre o pai e a madrasta, entre pai e filho, madrasta e filho...então quer dizer, que é o grande problema que a gente até... então tudo é o “caber aí”, então é tolerância. Aí você pensa assim: poxa vida... e vai muito pra história de cada um. Todo mundo fala, olha eu não tenho nenhuma história na família, de

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homossexualidade...mas tal momento me tocou demais. Eu acho que é a grande força da peça. EVOÉ! E a história biográfica em si tem algo muito forte num tempo passado, podemos considerar. Não tão distante, na década de 1960, 1970. E o falecimento do Luís Antonio é algo não tão remoto assim, mas ainda hoje o espetáculo tem a sua atualidade e penso que não seja só pela linguagem multimídia, que junta vários elementos de várias linguagens, mas o espetáculo fala muito pros dias de hoje. Vocês já falaram bastante sobre esse contato com o público. Queria saber de vocês, fugindo até um pouco do espetáculo e da linguagem especifica, mas pensando no teatro de grupo hoje, e a gente convive com algumas dificuldades que são comuns no teatro de grupo. Eu queria saber como é o cotidiano, como vocês lidam com a conjuntura das políticas culturais hoje, como é a realidade dos meios de produção da companhia? Conversando com a Day, inclusive, ela disse “não, nós não temos uma sede. A gente agora nem ensaia mais porque está circulando muito com o espetáculo”, mas até por princípios do Nelson, inclusive, e parece ser um consenso entre o grupo a ideia de não ter uma sede. Pelo menos não nesse momento. Como é que vocês lidam com as questões práticas do dia-a-dia... Precisamos fazer teatro. Ou a gente vai ensaiar na rua, ou na garagem de um dos integrantes do grupo... Como é que é isso pra vocês nesse momento?

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a gente não chegou assim, ah vamos fazer isso...com a convivência foram se percebendo as pessoas que tinham facilidade, e as habilidades individuais pra que cada um fosse organicamente assumindo as suas responsabilidades.

” VIRGINIA: É, na questão do ensaio, a gente sempre acaba chegando num momento, a gente se organiza...a gente já conseguiu, vamos dizer, ter uma certa reserva financeira pra, de repente se a gente vir que há a necessidade, de locar um espaço. Às vezes a gente consegue até a seção de alguma outra forma, mas existe essa possibilidade, né? Então, quer dizer, agora que a gente está um pouco mais estabilizado, em relação à questão do grupo, que cada um tem a sua especificidade, cada um tem a sua atribuição, uma pessoa fica com a atribuição de divulgação, a outra com a questão de distribuição, de ver o que precisa, de mandar projeto, um fica atento, o outro fica contactando os vários órgãos pra ver...eu, por exemplo, fico com a parte financeira, então quer dizer, a gente não chegou assim, ah vamos fazer isso...com a convivência foram se percebendo as pessoas que tinham facilidade, e as habilidades individuais pra que cada um


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fosse organicamente assumindo as suas responsabilidades. Então se tem uma função que a pessoa não gosta, isso foi sendo respeitado. Cada um fazendo aquilo que tem mais condição de fazer. Então...

EVOÉ! Quanto tempo foi o processo do Luís Antonio?

EVOÉ! Pra terminar, porque eu sei que daqui há pouquinho vocês tem de se preparar, aquecer e se maquiar, como é que está a agenda do espetáculo, vocês tem intensão de desbravar mais pro interior, apresentar mais pro interior paulista o “Luís Antonio”? Existe perspectiva de ir pra fora do país com o espetáculo? Como é que está a agenda?

EVOÉ! E quantas vezes vocês ensaiam por semana? E vocês tem outros afazeres, outros trabalhos também...

VERÔNICA: Pra esse ano, pro Brasil, a gente já está com o Myriam Muniz, agora o palco giratório, então a gente vai rodar muito, muito, muito. De norte a sul. Acho que só não vamos pro Amazonas...

VIRGINIA: Não havia necessidade de ensaiar porque a gente estava de quinta a domingo, então...

VIRGINIA: Vamos pra Palmas, Porto Velho. VIRGINIA: Então, no Brasil, a gente vai andar muito. Agora pra fora, a gente tentou até Frankfurt, né? O Ano do Brasil na Alemanha, mas acabou não dando também... pra fora acho que não. A gente está com plano de cumprir essa agenda do palco (giratório), do Myriam Muniz, algumas vendas a parte que o Marcos faz. E estamos esperando se sai temporada ou no Rio ou Belo Horizonte pra outubro ou novembro. Senão, a gente já começa processo de ensaio do próximo espetáculo pro final desse ano. EVOÉ! Vocês já tem projeto, então? VERÔNICA: A gente tem a ideia, uma leve inspiração de começar a pesquisar um tema, mas ainda é bem...

VERÔNICA: Um ano. VIRGINIA: Nove meses de prática e três, dois meses de pesquisa, viajar...

VIRGINIA: Tem gente que tem duas ocupações, mas na época dos ensaios... VERÔNICA: Os ensaios acontecem, na realidade, no período de criação. Depois que estreou...

VERÔNICA: Agora, no processo de en-saio era de segunda a sexta, né? Todas as noites. Tinha que ter essa prioridade. Eu lembro que na época eu estava em três companhias e as três entraram em processo de criação e aí não consegui... tinha que escolher um lugar pra ficar. Então tem isso em processo de ensaio, porque quando a gente não está fazendo não tem condição. Cada um tem outras profissões e tem que dar conta. VIRGINIA: Não dá pra viver só de teatro... a gente fala do plano A e do plano B... de dia é o trabalho, à noite é o teatro.

EVOÉ! A Evoé! agradece pela disponibilidade e pela simpatia com que vocês nos receberam pra esse bate papo sobre teatro e sobre a carreira do “Luís AntonioGabriela”. Evoé!

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ENCENAÇÕES

entrevista com

Nelson Baskerville diretor do espetáculo Luís Antonio-Gabriela

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EVOÉ! Nelson, gostaria de começar com você contando um pouco da sua trajetória no teatro e como se deu o início na direção. Quais desejos, necessidades e objetivos te levaram a essa função? NELSON: Comecei no teatro amador, 1978, em Santos, no colégio Primo Ferreira, tínhamos um grupo chamado “Farsa” e fizemos 2 peças infantis, a primeira sobre um palco de carteiras escolares amarradas com cordas e com um tapete por cima. Foi só aí, com 17 anos, que descobri que existia uma Escola de Arte Dramática e, escondido do meu pai, me inscrevi e passei em 1980. Fiz minha primeira peça profissional em 1981 e dez anos depois comecei a dar aulas. Foi dando aulas que percebi o diretor em mim. A escola foi um grande laboratório, onde, ao longo de 20 anos dirigi mais de 60 peças e exercícios com alunos. EVOÉ! Em outras entrevistas, você já afirmou que não é afeito a espetáculos voltados simplesmente ao entretenimento e que tem no Brecht uma influência importante no seu trabalho. Especificamente no “Luís AntonioGabriela” nota-se o recurso da narrativa, a utilização da música e a intensão de provocar reflexão sobre aquilo que se

dá em cena. Como o Brecht se fez presente ao longo do processo e quais outras influências nortearam o trabalho do grupo? NELSON: A descoberta do Brecht como instrumento de encenação veio também na escola, (fui professor de interpretação no final dos anos 90) no contato com Alexandre Mate, Marco Antonio Rodrigues e Iná Camargo Costa. Não que eu não conhecesse antes, eu não o entendia. A noção do distanciamento era uma coisa impossível de se entender como ator no teatro dramático. Tive muitas dificuldades. Acho que a descoberta como encenador foi o gatilho para entender o distanciamento, o estranhamento e outros conceitos inseridos ali. Eu me sentia muito preso como ator e diretor e o contato com essas pessoas e, mais tarde, a descoberta do Frank Castorf, da Shauburne, Peter Brook, Ariane Mouschiquine; o Antunes e Zé Celso, que passei a entender. Sobre o entretenimento acho que temos que ter espaços para todos os teatros, gosto das experiências enriquecedoras, onde as pessoas levam alguma coisa para casa, que discutam depois, que vão além do “gostei” ou “não gostei”.

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EVOÉ! Você é ator, diretor e educador teatral (além de artista plástico). Como essas facetas dialogam no trabalho direto com o elenco? E em que medida a opção pelo processo colaborativo contribuí para a formação, sempre em curso, do ator? NELSON: Primeiro eu gosto de esclarecer que, em se tratando de teatro todo o processo é obrigatoriamente colaborativo. Não existe a não colaboração no teatro. O que precisamos entender é qual é a contribuição de cada parte envolvida. É obrigação do ator colaborar criativamente com o espetáculo e isso não o torna diretor do espetáculo. Adoro quando perguntaram ao Ziembinsk se ele tinha colaborado com o texto de vestido de noiva e ele responde: “Fiz minha parte”. Mexer no texto é parte do encenador e isso também não o torna autor do texto. O verdadeiro processo colaborativo é quando cada um faz sua parte ouvindo e atuando com a parte do outro e se modificando a partir disso. Descobri, depois de uns 15 anos de atuação como ator que outras manifestações vinham de forma muito forte em mim. A vontade de escrever uma cena, de desenhar, pintar e até fazer musica , eu que nunca relei num instrumento. Na verdade, aprendi com meu mestre Fauzi Arap que quando você entra em sintonia com aquele trabalho as “coincidências” passam a acontecer. Você começa ver aquele tema que martela sua cabeça se manifestando no universo de várias formas. Acho que você sabe que é um artista quan-

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Mexer no texto é parte do encenador e isso também não o torna autor do texto. O verdadeiro processo colaborativo é quando cada um faz sua parte ouvindo e atuando com a parte do outro e se modificando a partir disso.

” do você começa a perceber isso e usar a favor do seu trabalho. Costumo fomentar isso nos artistas que trabalham comigo, que criem, independente se aquilo vai virar alguma coisa ou não. Meu processo é o da liberdade e potência de criação. EVOÉ! Aprofundando a questão, como você vê a formação do ator brasileiro, considerando a passagem pela universidade e o trabalho dos grupos e companhias? NELSON: O teatro está mudando e muita gente ainda está insistindo na aprendizagem do drama burguês. Um vício que os próprios alunos/atores cobram por não saberem a diferença de linguagem entre teatro, televisão e cinema – e infelizmente a maioria vem para escola de teatro aprender fazer televisão. Não tenho nada contra. Mas esses mesmos artis-


foto: Bob Souza

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tas saem das escolas fazendo tv no teatro e no cinema, o teatro passa a ser um estagio pro aluno “chegar lá”. Aprendemos gêneros teatrais nas aulas teóricas e nas práticas continuam cobrando uma interpretação para televisão. O clichê da preguiça chama-se “o menos é mais” inventado para atores que passam por oficinas de televisão. Sou avesso a isso. Não gosto. O

ator de teatro de hoje “é mais”, ele canta, dança, interpreta, conhece o pensamento por traz da obra, sabe o tipo de idéia que está veiculando; toca instrumentos e ainda faz contra-regragem e acende a luz que vai iluminá–lo. Acredito que agora estamos ouvindo falar de atores que vem da “comunicação e artes do corpo” com certa noção da performance aplicada ao teatro, como

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coisa viva e fresca. Isso é benéfico. Porque a verdadeira improvisação acontece todas as noites durante o espetáculo e todos os dias na sala de ensaio. É improvisação porque você nunca sabe o que o outro vai fazer e se você reagir ao que o outro fez no dia anterior você está contracenando com uma forma e , como diz Pirandello, “toda forma está morta”. Na época de ouro da EAD, onde me formei, éramos treinados para integrarmos o TBC e quando saí o TBC nem existia mais, então pra qual teatro as escolas estão formando esses atores? Nós professores precisamos trabalhar mais fora, para, dentro da escola, oferecermos a eles uma formação ampla, sem preconceitos, sim, mas não com hipocrisia. EVOÉ! O “Luís Antonio-Gabriela” nasce da sua própria história de vida. Como foi pra você entregar esse “arquivo pessoal” nas mãos do elenco para que o transformassem em obra de arte? De que forma a ficção penetrou a biografia e em que medida o “Bolinho” entrou em conflito com o diretor em relação ao espetáculo criado? E, nisso tudo, como algo tão pessoal torna-se universal? NELSON: Eu tinha uma história pra contar e queria fazê-lo de um determinado jeito, na linguagem que eu já vinha experimentando há alguns anos. Por força da natureza e minhas convicções anteriores ao espetáculo não me deixei sucumbir pela auto comiseração e contei com um grupo de atores e colaboradores que entraram nisso de forma rica. Sobre a exposição pessoal que a peça trata, não sinto desse

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“ Porque diminuiu tanto o público? Eu acredito que foi no momento em que nós deixamos de ser interessantes para as plateias, que o teatro deixou de falar sobre quem estava assistindo. Quando criamos o outro clichê cínico - “o público não gosta disso” toda vez que um texto propunha alguma questão relevante.

“ jeito, teatro pra mim sempre foi exposição. Errado está aquele que não se expõe. Que trata aquele tema ou personagem distante dele, que não se deixa penetrar e invadir pelo que está passando sobre aquele tablado. Coitado de quem diz, “é apenas uma profissão como qualquer outra”. Não é. Um dos primeiros estudos, nas primeiras páginas do livro da americana Stela Adler ela já avisa: “é impossível querer esconder alguma coisa e querer ser ator.” Porque teatro é uma arte de exposição. Ser de teatro é ter oportunidade única de discutir o mundo onde estamos inseridos e da forma mais gostosa que pode existir: experimentando na própria pele. Então a exposição em Luis Antonio foi “fichinha”.


foto: Bob Souza

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“ O teatro forma opinião. Derruba tabus. Combate a hipocrisia e é capaz de oferecer uma viagem única, ao vivo, que acontece diante dos seus olhos e pode mexer com todos os seus sentidos. Pode fazer você rir de si mesmo. Desconfiar de si ou do seu conforto. Desconfortar.

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E o espetáculo tornou-se universal pela discriminação que todo mundo sofreu um dia. No caso do meu irmão/irmã, uma tragédia que poderia ter sido evitada. Estamos, como raça, completamente equivocados sobre a quantidade de gêneros e o que os definem no mundo. Estamos impingindo sofrimentos desnecessários a essas pessoas, por pura ignorância. E alguns setores da sociedade, vide esse pastor perigoso (Silas Malafaia) que deu aquela entrevista risível para a Marilia Gabriela, e o outro pastor nomeado para presidir a comissão de diretos humanos do congresso nacional (Marcos Feliciano) que com seus discursos facistas, retrógrados e reacionários, reforçam o preconceito e a discriminação, justamente num lugar (igreja) que deveria pregar a igualdade e a tolerância. Nossa arte hoje deve combater isso, como combateu a ditadura na época da ditadura. Essa é a nossa nova luta e nossos novos inimigos. Acredito que “Luis Antonio-Gabriela” é um espetáculo que combate isso. EVOÉ! Que provocações você pretendeu trazer ao público com esse espetáculo? E como você vê o resultado até o momento? Qual a repercussão do espetáculo após os prêmios recebidos (Shell e APCA)? NELSON: Acho que os prêmios lançaram luzes sobre nós e nos ajudaram a mostrar o espetáculo para mais gente. Estamos indo para o terceiro ano de peça e viajando o Brasil todo, com uma ida a

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Portugal. Acredito que a grande provocação contida ali é a tolerância. É a constatação que estamos indo pelo caminho errado e que somos responsáveis pelo o que acontece no mundo. Acho que a grande exposição em “Luis Antonio”, não foi contar que eu sofri abuso na infância, mas que eu fiz com que minha irmã, travesti, fosse abandonada a própria sorte sem defesa, sem estudo e sem condições de sobrevivência; e isso dói em mim até hoje. Existiriam duas maneiras de lidar com isso. Uma, esquecer e se justificar dizendo que é o que acontece com todos as travestis e que elas escolheram a vida que tiveram (o que é inverdade). A segunda, assumir o erro e dizer: o “que vamos fazer a partir daqui”. Fui pela segunda via. EVOÉ! Como você vê o panorama do teatro brasileiro contemporâneo? De que forma o “Luís Antonio-Gabriela” se coloca nesse cenário? Como o tradicional e o contemporâneo tem sido tratados pelos artistas do teatro? NELSON: Estamos tentando mas os inimigos são muitos. Por culpa nossa e da ditadura, tivemos uma geração que via no teatro uma coisa chata e verborrágica. Mas o teatro de Arena, o Oficina faziam peças revolucionárias e com muito público. O espetáculo era assunto nas rodas, nos restaurantes porque o que eles viam era relevante e se comunicava com eles. É claro que hoje são centenas de opções a mais e que a população aumentou muito; mas em qual momento o teatro ficou


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chato? Porque diminuiu tanto o público? Eu acredito que foi no momento em que nós deixamos de ser interessantes para as plateias, que o teatro deixou de falar sobre quem estava assistindo. Quando criamos o outro clichê cínico - “o público não gosta disso” - toda vez que um texto propunha alguma questão relevante. Devagar estamos voltando e aliando bom teatro, questões relevantes e público. Acho que Luis Antonio-Gabriela alia, além disso, uma estética inesperada, uma forma que tira o público do que ele está acostumado. O espetáculo é ousado e nós derrubamos o último clichê: ‘teatro é careta”. EVOÉ! Pra terminar, na sua opinião, qual a função do teatro na sociedade brasileira?

e cinema querem se parecer com a televisão. Porque podemos ir além. Podemos ser o espaço das grandes discussões que vão além do cotidiano. As novelas e os noticiários dão conta do cotidiano. Nós precisamos ultrapassar essa primeira camada, a casca da superficialidade tanto no conteúdo como na estética. O teatro forma opinião. Derruba tabus. Combate a hipocrisia e é capaz de oferecer uma viagem única, ao vivo, que acontece diante dos seus olhos e pode mexer com todos os seus sentidos. Pode fazer você rir de si mesmo. Desconfiar de si ou do seu conforto. Desconfortar. O teatro pode ser festa e conhecimento, o prazer do final do dia de trabalho e o incêndio das consciências, como disse Roland Barthes.

NELSON: O teatro oferece uma opção que nenhuma outra mídia pode oferecer. Por isso combato tanto quando o teatro

EVOÉ! A EVOÉ! agradece pela entrevista e deseja vida longa ao espetáculo e sucesso a você.

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DIÁLOGOS

entrevista com

Sérgio de Carvalho A EVOÉ! inaugurou a seção “DIÁLOGOS” entrevistando Sérgio de Carvalho, professor de dramaturgia e crítica da Escola de Comunicações e Artes da USP e diretor e dramaturgo da Cia. do Latão de São Paulo. Pesquisador atento ao teatro contemporâneo brasileiro, Sérgio proporciona reflexões importantes a respeito dos processos criativos no teatro de grupo, fazendo um exame crítico dos elementos em jogo no pensamento e na prática cênicas por meio de uma análise histórico-crítica tanto das tradições que influenciaram a formação da cena brasileira quanto das vertentes mais contemporâneas que se colocam: de Brecht aos dramaturgos de hoje, do marxismo ao capitalismo, da universidade à performance. Leiam a seguir as provocações de um encenador que pensa o teatro contemporâneo.

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P ( R P D D O T


foto de Luiz Cruz

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P E R G U N T A S (AFIRMAÇÕES, REFLEXÕES E PROVOCAÇÕES) DE UM ENCENADOR QUE PENSA O T E AT R O CO N TEMPORÂNEO. 35


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EVOÉ! Poderíamos começar o nosso papo um pouco com você explanando sobre a ideia de teatro de grupo? SÉRGIO DE CARVALHO: A ideia de teatro de grupo tem a ver com um tipo de organização de trabalho artístico que tenta, em algum nível, estabelecer uma dinâmica coletiva em que os participantes atuem em pé de igualdade. Isso é sempre um projeto – em parte real, em parte utópico porque a igualdade é sempre uma construção difícil. Ela procura se distinguir da companhia teatral tradicional, em que a equipe é formada para um trabalho específico: existe um núcleo de produção que contrata atores e mantem uma estrutura profissionalizada. A ideia de teatro de grupo que surge com muita força na América Latina nos anos 1970 tenta deslocar o modo de produção das companhias, que por serem de repertório, já não se pautavam por um único produto. Naquele período se difundiu o ideal da criação coletiva, que procurava suprimir funções e as distinções entre o trabalho intelectual e o braçal, sem maior diferença entre quem produz e quem atua, entre a dimensão artística e a dimensão organizacional. Num extremo, então, ainda existe a companhia profissional muito hierarquizada e muito dividida nas funções e valoração do trabalho, no outro o teatro de grupo coletivizado. O que predomina hoje em São Paulo não está nem numa ponta nem noutra, mas sim nas gradações intermediárias que existem aí. EVOÉ! Como você vê o panorama do teatro de grupo no Brasil e a relação desses grupos com a pesquisa sobre processos criativos?

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SÉRGIO: Pelo menos na cidade de São Paulo, a partir dos anos 1990 houve uma retomada muito grande da ideia de teatro de grupo como organização do trabalho entre pares. Em outros estados do Brasil, por exemplo, em Minas, não deixou de existir um movimento de teatro de grupo ativo. Mas no início dos anos 1990 isso era um conceito oscilante. Eram poucos os grupos importantes conhecidos no Brasil. A partir da segunda metade da década houve uma retomada do projeto de grupo, sem as mesmas feições da antiga criação coletiva. Os jovens ingressantes nas universidades, as pessoas que se aproximam do teatro, começam a encontrar no teatro de grupo uma possibilidade de realização do trabalho teatral. Isso também se difundiu porque houve uma movimentação política de alguns grupos nos anos 1990 no sentido de fortalecer essa ideia e de criar condições de apoio público a essas formas de trabalho de arte. Na cidade de São Paulo isso se deveu especialmente ao estabelecimento da Lei de fomento para o teatro, que foi decorrente do movimento crítico chamado “Arte contra a barbárie”. Esse movimento nasceu de uma reunião de pessoas que tentou questionar o caráter das políticas públicas quando elas são voltadas para geração de eventos e não para o desenvolvimento de processos culturais integradores. A marca forte do Arte contra a barbárie era a crítica à mercantilização da Cultura. Isso teve repercussão e acabou gerando um ambiente que permitiu a implantação de uma Lei de fomento para a cidade que ajuda na manutenção de processos artísticos de pesquisa


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“ é sempre uma construção difícil o projeto de uma arte crítica e de uma forma de trabalho igualitária porque o conjunto da vida aí fora está organizado de outro modo: para a competição, pra você atuar como agente individual no sistema produtivo, para a geração de riqueza através da exploração do trabalho alheio, para a necessidade de circulação. Quando você tenta mudar isso dentro do teatro de grupo não é simples e muito menos fácil. Porque no fim das contas não é algo que se possa resolver de dentro do teatro.

” nos grupos. Então, por força dessa ação política cresceu a ideia – e infelizmente, também a ideologia – do teatro de grupo na cidade. Mas eu não sei se isso é um fenômeno nacional. O que eu sei é que ele é um fenômeno forte em São Paulo. EVOÉ! Em que medida o modo de produção (em teatro) reflete um posicionamento político do grupo?

SÉRGIO: É uma possibilidade forte de que quando você tenta criar condições de trabalho mais igualitárias você tenha também afinidade crítica e política com essa ideia. Agora, nem sempre essas coisas andam juntas. Existem muitos grupos que se dizem grupos, que difundem ideologicamente a coletivização, mas que tem realidades muito hierarquizadas, muito mercantilizadas, com distinção violenta entre o trabalho intelectual e o trabalho braçal, fetichizando a ideia de criação artística, com pessoas autorizadas a ganhar muito mais do que as outras do ponto de vista do valor do tempo de trabalho. Então, nem todos os grupos assumem uma posição política realmente crítica em relação ao sistema dominante e ao pensamento dominante porque não percebem que o problema geral também lhes diz respeito. Para muitos, o teatro de grupo é simplesmente uma saída produtiva diante da precariedade do mercado de artes no Brasil, é uma alternativa que se justifica pelo fetiche da arte. É lógico que muitos grupos, ao contrário, acabem por politizar sua prática e pensamento ao refletir sobre essa contradição da qual nenhum de nós escapa: todo potencial sentido emancipatório da arte vai lidar com o fato de que estamos imersos no mundo do capital. O que eu quero dizer é o seguinte: é sempre uma construção difícil o projeto de uma arte crítica e de uma forma de trabalho igualitária porque o conjunto da vida aí fora está organizado de outro modo: para a competição, pra você atuar como agente individual no sistema produtivo, para a geração de riqueza através da exploração do trabalho alheio,

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para a necessidade de circulação. Quando você tenta mudar isso dentro do teatro de grupo não é simples e muito menos fácil. Porque no fim das contas não é algo que se possa resolver de dentro do teatro. EVOÉ! Como funciona o processo criativo na Cia. do Latão? SÉRGIO: Olha, como vários grupos atuais, o Latão mantem algumas distinções de função. Mas no nosso caso isso não implica fixação na tarefa nem hierarquia. ou seja: eu atuo como diretor e dramaturgo e os atores atuam como atores, só que existe um esforço para que os atores também sejam dramaturgos, para que pensem e gerem cenas como diretores e eu, em contrapartida, me vejo obrigado a raciocinar como um ator. Isso sem dizer que também trabalho como co-produtor ou técnico de luz quando isso é preciso. Essa mobilidade surge como possibilidade em permanente reconstrução. Em cada processo a gente procura fazer com que todo mundo partilhe do aprendizado comum. O que é mais importante no trabalho do Latão é que todo mundo passa a se orientar por algo que está no futuro, um aprendizado comum. Você não trabalha com a lógica do efeito, do resultado. Eu acho que isso tem, ao longo dos anos, se mostrado como um forte elemento coletivizador. Por quê? Quando um grupo começa a pensar: eu não estou fazendo uma peça para gerar uma fórmula “x” para agradar um festival, quando eu deixo de criar para causar um hipotético efeito perceptivo no espectador, e sim para desenvolver um campo de conhecimento e de

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“ Quando eu neutralizo a lógica do efeito e volto as energias para um processo de aprendizado eu faço com que todo mundo tire consequências estéticas mais amplas desse aprendizado.

” ações comuns, todos se tornam sujeitos de um processo que se põe na história. Quando eu neutralizo a lógica do efeito e volto as energias para um processo de aprendizado eu faço com que todo mundo tire consequências estéticas mais amplas desse aprendizado. Como diretor do Latão, eu nunca organizo o ensaio para atingir um resultado estético já conhecido, eu prefiro sempre estudar em grupo algo novo. Quem chega aqui e assiste a um ensaio do Latão vai ver que, num certo sentido, todo mundo pode partilhar da invenção. Evidentemente tem gente mais ou menos interessada nisso. Existem sempre aqueles que preferem se omitir. De qualquer modo, eu não chego, como diretor, com uma peça desenhada de antemão, com as marcações feitas, com a concepção dos efeitos já planejada. Eu chego sim com um plano de exercícios para estimular a experimentação artística sobre o tema da peça. É


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claro que em algum momento – quando o processo se aproxima de uma formalização – eu me reservo, vamos dizer assim, o direito daquele que está na posição de um “espectador crítico” (o diretor) e direciono os rumos da organização dos materiais que foram gerados. Mas esse encaminhamento é sempre muito partilhado pelo grupo, nunca soa como algo externo ao que foi desenvolvido até ali. Soa antes como uma escolha coerente diante dos movimentos do processo. Todo mundo tem clareza de que aquelas formas e não outras testemunham melhor o estudo feito, de que aquilo pode traduzir em arte o projeto crítico. Os critérios de mudança de curso são sempre muito claros. A escolha do material artístico nunca se baseia na autoridade do diretor, mas em afinidades eletivas de outro tipo: é sempre a força do assunto, da imaginação formal, do que nos marcou durante os ensaios. Então, eu sinto que, nesse sentido – o de uma possibilidade aberta a quem trabalha para se tornar sujeito da peça –, nós conseguimos coletivizar o trabalho. EVOÉ! De que maneira o interesse por Brecht e pelo Teatro épico dialético se colocam na fundação do grupo e quais etapas (se é que se pode falar assim) você nota que o grupo percorreu desde “A compra do Latão” até “Opera dos vivos” e “O patrão cordial”? SÉRGIO: O Brecht foi um autor fundamental na formação do trabalho do Latão. Não é à toa que ele inspira o nome do grupo. Ele deu ferramentas pra compreender aquilo que já nos interessava. É

como se nós já nos interessássemos por questões que o Brecht trabalhou antes de conhecer a obra dele. Então quando ele entra no nosso campo de pesquisas, ele ajuda a reorganizar esse campo. Eu já gostava de autores que tem muito a ver com o Brecht. Nesses dias estamos encenando uma versãozinha curta do Hamlet. E as coisas que eu gosto do Shakespeare são as coisas que o Brecht gostava. Quando conheci seus escritos – de início os teóricos – Brecht trouxe clareza conceitual para algumas questões de forma dramatúrgica que eu já experimentava através de autores como Büchner. Numa primeira fase a nossa aproximação a Brecht se voltou para essas soluções formais interessantes que ele dava a sua dramaturgia. Só que eu logo percebi que isso era insuficiente. Por quê? Porque o conceito de épico pode ser uma armadilha também. De um lado ele é interessante quando você é um jovem praticante de teatro porque ele mostra que existem caminhos formais diferentes do modelo dramático. Brecht permite a crítica tanto ao draminha da indústria cultural como a aquilo que muita gente julga ser o contrário: a cena pós-moderna, com sua performatividade verbal e corporal exposta como suposta negação do drama, mas que tantas vezes apela a uma dramaticidade lírica do pior tipo. Nos piores exemplos do teatro dramático ou pós-dramático encontramos um fundo comum: a abstração autorreferente, representacional ou anti-mimética. É evidente que existe teatro épico abstrato e igualmente autocentrado no campo estético. Mas não é essa a proposta dialética de Brecht. Ele

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era um autor da imagem concreta, que se recusa à abstração fácil. Ao mesmo tempo ele estimula a reflexão abstrata a partir do seu choque com o mundo material. O conceito de épico é insuficiente se ele aludir apenas ao lado formal desse debate. Não adianta eu pôr em cena um coro, eu abusar de quebras da ficção, fazer apartes irônicos, usar canções etc. se não estiver gerando nenhum efeito crítico anti-ideológico. Foi só depois de alguns anos que eu percebi que o interessante do modelo Brecht não está na dimensão formal épico-narrativa e sim no processo dialético deflagrado pela forma em sua tensão com o tratamento temático. O que importa é aumentar as contradições do material teatral para gerar um trabalho ativo do espectador sobre o assunto e a crítica de sua própria condição. Ou seja, é pelo estímulo ao olhar ativo sobre as contradições que a cena dialética se estabelece. As contradições da forma teatral potencializam a reflexão sobre as contradições da história representada, e vice-versa. A forma é vista do ponto de vista da sua contradição. Brecht não é um autor que resolve os problemas. Ele instaura os problemas críticos e faz com que você queira trabalhar - e tenha alegria de trabalhar - sobre eles. No fundo, o que interessa no Brecht é o método dialético, que provém de um uso sofisticado da dialética Marxista. Eu percebi que só estaria fazendo algo de consequente com esse mesmo projeto dialético se eu também pensasse o modelo brechtiano nas condições próprias da situação brasileira atual, nesse contexto de vida na periferia do capital, diante desse

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“ o interessante do modelo Brecht não está na dimensão formal épico-narrativa e sim no processo dialético deflagrado pela forma em sua tensão com o tratamento temático. O que importa é aumentar as contradições do material teatral para gerar um trabalho ativo do espectador sobre o assunto e a crítica de sua própria condição..

” nosso quadro de referências culturais e históricas periféricas. Mas o modelo de Brecht segue – mesmo transformado – no meu trabalho até hoje na medida em que nunca deixei de pensar a cultura a partir do mundo do trabalho, de perceber que as pessoas que vivem dentro do capitalismo são sempre, em alguma medida, funcionários do capital, que grande parte dos problemas contemporâneos (inclusive os da arte) ainda se deve a questões ligadas a conflitos de classe e reprodução da forma mercadoria. São lições do raciocínio brechtiano que são muito inspiradoras até hoje para o Latão.


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EVOÉ! Como se dá, na Cia. do latão, o trabalho de formação do ator? Os estudos teóricos, tanto teatrais quanto de outras áreas do conhecimento? SÉRGIO: Na verdade a formação, até bem pouco tempo atrás, isso nunca foi uma preocupação central nossa. É como se eu tivesse tido ao longo desses anos mais interesse em conhecer assuntos novos durante os ensaios do que fazer uma formação estético-política do grupo. É claro que os temas das pesquisas já sinalizavam uma linha. Enquanto, por exemplo, fazíamos uma peça sobre a Comuna de Paris, estudávamos outras fontes históricas sobre a Comuna de Paris. Ao mesmo tempo isso também gera um limite porque eu percebo que sem que os procedimentos de aprendizado se organizem, fica um pouco ao sabor de cada um ganhar consciência sobre o que está de fato em jogo. Algumas pessoas se desenvolvem mais artisticamente do que outras porque elas também trabalham mais e correm por fora, atrás dessa formação estética e política mais ampla. Mais recentemente eu percebi que precisava enfrentar esse limite e passei a cuidar, um pouquinho mais, do esclarecimento pedagógico do processo do Latão. Eu procuro como diretor evidenciar, sobretudo aos mais novos, o que está em jogo ali, que categorias são importantes. Inclusive como categorias de transição para outras ações, porque num tipo de raciocínio dialético você aprende algo para modificar uma prática, o que muitas vezes exige a desmontagem das próprias categorias em pauta, para fazer uso delas de modo livre, em cima dos processos reais.

E eu vejo que nem isso é simples, e nem sempre as pessoas suportam esse método negativo. A maioria das pessoas prefere orientações definidas, estáveis, positivas. E no nosso tipo de teatro e de visão de trabalho as categorias tem que ser móveis, como o real é móvel. Mas, enfim, é uma questão que tem se tornado importante e me revelado – quanto mais conheço novos atores – o quanto estamos na contramão dos modos de trabalho teatrais vigentes. Não é à toa que, de tempos em tempos, nós paramos tudo para publicar um livro, para tentar organizar um pouco o aprendizado até aquele momento. Agora mesmo estamos nessa fase. Estamos preparando a publicação do material sobre “Ópera dos vivos” . EVOÉ! Qual a contribuição da música neste processo? SÉRGIO: Eu acho que o trabalho da música no Latão se tornou avançado não só pelo talento dos músicos que passaram pelo grupo, mas também pelo fato de, num determinado momento, alguns desses músicos – e principalmente um deles que é o Martin Eikmeier – ter se tornado uma espécie de pensador da questão da música épica e dialética dentro do Latão. Então o fato de existir um diretor musical como ele torna a questão da música central. No Latão a música sempre surge como um pensamento musical. De um modo geral, a música pode ter muitas funções em teatro: ela pode reforçar um estado emocional da cena, pode assumir posição narrativa, pode vir pra entrar em contradição com o tema, ou reforçar ou negar a leitura mais imediata da cena... enfim, há uma série de 41


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possibilidades experimentais que a música pode assumir. Ela pode também ser usada simplesmente para, como diziam os antigos, “amenizar a execução”, deixar leve algo que é pesado. A questão interessante é que o Martin pensa em todas essas possibilidades quando ele compõe e escolhe a partir da prática coletiva. E o fato de ele estar na sala de ensaio faz com que tenha uma disponibilidade enorme de sacrificar o acerto aparente em nome de um conjunto dramatúrgico maior. A música nunca vem pra resolver, a música do Martin nunca vem como produto. Ela sempre surge, no trabalho do Latão, como um estimulador do processo, como um elemento crítico do processo. É assim que ela se torna dramaturgia, ela se torna pensamento. EVOÉ! De que maneira a proposta de refletir sobre o Brasil gera a demanda de pensar sobre o teatro épico dialético, para além da reprodução técnica e estilística do teatro brechtiano? O teatro do latão ressignifica tais aspectos ao por em foco as questões sociais contemporâneas do Brasil? SÉRGIO: A questão “Brasil” aparece no Latão, sem nenhuma perspectiva nacionalista. Ela surge como consideração sobre o fato óbvio de que vivemos aqui, num lugar social muito contraditório, o de produtores de cultura. É um lugar, como o de qualquer brasileiro, que está em contato direto com processos mundiais, na medida em que a posição da nossa economia é orientada de fora. Mas passa a ser problema o fato de que somos moldados pelos padrões culturais das economias centrais e que temos, ao

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mesmo tempo, que lidar com a percepção de que – diante da matéria da vida por aqui – esses padrões culturais não podem ser simplesmente reproduzidos sem mais nem menos. Então a questão “Brasil” aparece no Latão sempre levando em conta a posição do país dentro do processo do capital global e de suas formas culturais dominantes. Tentamos, sempre de modo diferente, entender um pouco essa situação de produzir cultura em condições periféricas, considerando que somos um país em que os processos ideológicos burgueses existem, mas não são os mesmos de um país como a França ou Inglaterra em que houve um desenvolvimento do pensamento liberal de um certo tipo. Não apenas o passado escravista recentíssimo, mas um conjunto de questões que formam os nossos comportamentos sociais e individuais nos interessam...em relação ao problema de estar aqui. Nas dramaturgias escritas pelo Latão, essas questões vêm com muita força : Quais são as caras da nossa elite? Quais são as feições do mundo do trabalho aqui? Como é que se dão as relações entre pessoas de classes diferentes aqui? Como é que a noção de direito aparece misturada com a noção de favor, ainda nos dias de hoje? Como é que as pessoas se escondem ou querem mascarar a diferença pessoal criando uma zona pantanosa e confusa em torno da afetividade? Por que no campo da cultura tanto se quer “dar o salto metafísico”, rápido, queimando etapas rumo ao céu das categorias absolutas? Já querem proclamar generalidades antes de tentar distinguir as coisas, de percorrer mediações. Por que esse gosto pelo


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“ Quais são as caras da nossa elite? Quais são as feições do mundo do trabalho aqui? Como é que se dão as relações entre pessoas de classes diferentes aqui? Como é que a noção de direito aparece misturada com a noção de favor, ainda nos dias de hoje? Como é que as pessoas se escondem ou querem mascarar a diferença pessoal criando uma zona pantanosa e confusa em torno da afetividade? Por que no campo da cultura tanto se quer “dar o salto metafísico”, rápido, queimando etapas rumo ao céu das categorias absolutas? Já querem proclamar generalidades antes de tentar distinguir as coisas, de percorrer mediações. Por que esse gosto pelo irracionalismo entre tantos intelectuais e artistas?

irracionalismo entre tantos intelectuais e artistas? São perguntas que o Latão vai se fazendo nos trabalhos, entende? E marcam também uma nossa posição. Talvez por isso que o trabalho do Latão gere incômodo, especialmente no meio teatral, que anda muito identificado com certos mitos de uma arte supostamente contemporânea. Muitas vezes a ideia de “contemporâneo” vem pra mascarar o pior tipo de atraso. EVOÉ! Muito se discute sobre a atualidade de Brecht e sobre a efervescência da performance no teatro contemporâneo. Como você vê o encontro ou o atrito dessas duas fases no teatro brasileiro em relação aos processos criativos? SÉRGIO: É um assunto um pouco espinhoso, mas eu diria o seguinte: essa onda atual da “teoria da performatividade” tem pouco a ver com a performance como ela surge no período do chamado alto modernismo, na passagem dos anos 1950 para os 1960. Ali ela ainda era, vamos dizer assim, o último ato daquela ideia de perturbação da vida cultural – algo que a performance trazia, um espírito de oposição. Era o último ato porque já era algo diluído, momento final daquela atitude de vanguarda em que a ação estética pretendia interferir verdadeiramente no real, antes de se converter em fenômeno esteticista, no sentido que ela assume depois, de uma ação autorreferente. É como se na origem – penso em certas formas de happening – esse movimento ainda contivesse em si o desejo de, ao afirmar o “aqui e agora”, de querer criar uma situação na contramão do tempo, não prevista na ordem do real

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dentro do capital, projetar o sentido de um evento político. Com raras exceções, eu diria que dos anos 1990 pra frente isso vira ideologia. Claro que há performances e performances. Mas ninguém com honestidade intelectual deveria dizer que o fato de enfatizarmos o lado presencial do fenômeno teatral, de afirmarmos que está ocorrendo uma experiência de “risco partilhado” implica qualquer contraponto verdadeiro aos estereótipos da representação convencional, já tão desgastada pela indústria cultural. O elogio do corpo presente não significa rigorosamente mais nada. E criar “experiências” virou norma no marketing contemporâneo. Como teoria geral, isso me soa simplesmente um deslumbre estético pelo conceito do “ato de estar em ato performático”. Assim como eu não posso generalizar e acusar o anacronismo do teatro épico, não posso generalizar sobre a atualidade da performatividade: e isso é justamente o que essa teoria pretende. Difunde-se uma generalização positiva da ideia de performatividade, como se ela fosse potente em si. E ela não é. Ela facilmente vira um fetiche esteticista que encobre as diferenças entre as várias possibilidades do teatro performativo ou mesmo da performance. Eu tenho dito isso há algum tempo e as pessoas ficam com raiva, como se eu estivesse defendendo uma espécie de anacronismo representativo, um modelo do teatro político do passado. Não é isso. O que eu estou dizendo é que como teoria, tal como ela chegou na universidade brasileira através desses que são os supostos melhores teóricos atuais, ela é fraquíssima, não se sustenta.

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Difunde-se uma generalização positiva da ideia de performatividade, como se ela fosse potente em si. E ela não é. Ela facilmente vira um fetiche esteticista que encobre as diferenças entre as várias possibilidades do teatro performativo ou mesmo da performance.

” E tem servido mesmo, em alguns casos, para anular o debate crítico. É evidente que tem gente excelente como a Sílvia Fernandes fazendo bom uso desses conceitos para explicar algumas propostas cênicas atuais, mas ela é uma exceção. O mais frequente é que isso apareça para desqualificar experiências de teatro representacionais, ainda baseadas naquilo que é o mais simples e fundamental dessa arte, o interesse pelos outros. EVOÉ! Você foi docente na Unicamp e agora está na USP e penso que, como docente, você deva ter contato com diversas Universidades do país, seja pra banca, enfim... Como é que você vê hoje a for-


foto de Luiz Cruz

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mação, na universidade, do artista da cena, seja o ator ou, no caso da USP que tem as suas especialidades, na direção, na dramaturgia, na cenografia? Você acha que a formação acadêmica prepara (e não no sentido de estar pronto), mas ela tem pensado sobre os processos criativos para a contemporaneidade para pensar, por exemplo, o Brasil, a arte, o teatro e o artista? Como é a formação do artista cênico na universidade, na academia? SÉRGIO: Em primeiro lugar eu preciso dizer que eu não conheço tanto por aí, porque eu não faço muitas bancas no teatro. Na verdade, eu faço mais bancas fora do teatro do que no teatro, em áreas

como letras e comunicação. O ensino de artes na universidade é uma questão complicada. Tem uma história recente, não muito mais de quarenta anos, no Brasil. Quando os cursos superiores de teatro começaram, foram formados, na área da teoria das artes, por gente que vinha das letras ou filosofia. A tendência era teoria do teatro do ponto de vista da literatura dramática, da história das artes etc. Isso se conjugou, por muitos anos, com um trabalho prático baseado em escolas técnicas, no estilo Conservatório ou escolas como a de Arte Dramática. Por muitos anos, a universidade viveu essa esquizofrenia entre uma teoria muito voltada para os

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estudos literários e uma prática muito técnica, baseada então numa certa ideologia antiga sobre o trabalho do ator, que priorizava disciplinas como Preparação corporal, Voz, Canto etc., numa espécie de compartimentação do trabalho do ator segundo certos modelos de teatro que iam incorporando, pouco a pouco, novas tendências, como improvisação e jogos. De qualquer modo, uma cisão entre aprendizado técnico e visão poética da arte, na medida em que a Universidade não tem condições de fazer apostas artísticas mais integradas. Nos últimos anos, algumas universidades estão tentando pelo menos redirecionar os modos convencionais de trabalhar a integração entre teoria e prática. Só que isso ainda é muito inicial. E é um processo ainda lento e difícil porque as próprias pessoas que estão na universidade são especialistas nessas disciplinas que elas deveriam criticar em nome de um novo projeto. Existem visões muito diferentes sobre a arte e, para que o conflito não se deflagre, as pessoas (talvez sabiamente) escolham atuar em zonas mais abstratas, sem que a dimensão política das suas escolhas se anuncie. Entretanto, quando eu não explicito a visão de mundo subjacente ao projeto estético, supondo sua neutralidade, eu estou defendendo o ponto de vista de que uma técnica pode ser usada em abstrato, em qualquer condição, o que gera uma des-historicização da abordagem. Então o aluno começa a acreditar que alguns aprendizados são mais universais do que outros, quando não são. Técnicas não-naturalistas como as ligadas ao chamado “comprometimento da coluna vertebral” não são rigoro-

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O que a universidade ainda oferece de bom é a possibilidade de conhecer gente diferente, de estudar coisas que ninguém estudaria fora dali. Mas o desenvolvimento artístico depende de uma tomada de posição crítica e de prática experimental autoral. Nesse sentido, talvez somente na pósgraduação ou fora da universidade que algo realmente consequente vá acontecer.

” samente mais universais do que a maioria das propostas de Stanislavski, apesar da crença do [Eugênio] Barba. Cada modo de trabalho pressupõe uma finalidade, que a rigor precisaria ser evidenciada. A universidade sempre estaca nesse ponto. E isso só pode ser superado com um esforço de aproximação e de enfrentamento das contradições. Talvez eu acredite em formações artísticas mais profundas fora das universidades, em ambientes artísticos que integram teoria e prática e mantenham a disposição à pesquisa. O que a universidade ainda oferece de bom é a possibilidade de conhecer gente diferente, de estudar


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coisas que ninguém estudaria fora dali. Mas o desenvolvimento artístico depende de uma tomada de posição crítica e de prática experimental autoral. Nesse sentido, talvez somente na pós-graduação ou fora da universidade que algo realmente consequente vá acontecer. EVOÉ! Tem uma fala bastante comum em teatro de dizer que a precariedade material de produção pode ser um motor pra criatividade, por exemplo. Como é que você lê essa frase pensando no sentido político dela, o que está por trás dessa ideia de precariedade é igual a maior criatividade? SÉRGIO: Olha, isso aí depende de quem está dizendo essa frase. Ela foi verdadeira na boca do Grotowski nos anos 1950 quando ele postula a ideia de um ator santo, no sentido franciscano da palavra, aquele que deve trabalhar sobre seu mínimo fundamental que é a própria presença vibrante diante do espectador. Aquilo tinha um sentido: ele estava criticando uma espécie de ator mercantil e cortesão, o ator-puta, e defendendo uma concentração radical. Não é à toa que Grotowski inspirou inclusive o teatro político latino americano, um certo teatro terceiro-mundista dos anos 1970. Isso ocorreu de modo bem interessante. Mas o Grotowski segue uma linha de raciocínio modernista, aquele em que o teatro é veículo pra outra coisa: o aprofundamento da dimensão estética sempre serve para uma negação da estética, rumo a uma prática de vida. Se eu radicalizo o teatro, é para sair dele, é pra fazer ele virar outra coisa. Esses tempos estão bem distantes. Hoje a maioria das

pessoas não quer aprofundar nada que não seja virar mercadoria, mais ou menos abstrata: quer aprofundar sua condição de troca para participar do lado alternativo do mercado de artes, para aparecer no jornal, para circular por festivais. Então, quando esse discurso da Pesquisa pura vem hoje, você vê que muitas vezes é para disfarçar um desejo nada franciscano. Agora, não dá também para cair em um discurso contrário: “Oh, precisamos das condições econômicas perfeitas pra produzir!”. Porque de fato você não precisa, você pode produzir com o mínimo, e boa coisa. Mas às vezes, ter condições produtivas te permite coisas muito interessantes. No início o Latão era um grupo muito precário. “O ensaio sobre o latão” foi feita catando restos de figurinos e cenários e ensaiando em espaços emprestados, sem ninguém ganhar um centavo. Mas anos depois, quando conseguimos condições econômicas melhores, isso permitia que desenvolvêssemos ações com movimentos sociais. Agora mesmo no fim do ano de 2013, fomos para o interior do Ceará trabalhar com os camponeses num assentamento. É um tipo de intercâmbio que, em outros tempos, não poderia ser feito. EVOÉ! Pensando na conjuntura político-cultural do Brasil, e já emendando com a ideia dos processos colaborativos, com a sua origem lá nos anos 1960/ 70, no período militar, é comum a gente ouvir dos pesquisadores sobre processo colaborativo a afirmação de que houve uma onda criativa significativa porque havia “um inimigo muito claro contra quem falar”, e hoje isso parece estar um pouco nebuloso. Então como é que você vê essa ideia de

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que, não sei se é falar contra, mas é falar sobre quem hoje dentro do teatro politizado, épico, dialético? SÉRGIO: Esse clichê de que você tinha um estímulo criativo na oposição à ditadura é uma bobagem completa. As questões mais interessantes do teatro brasileiro dos anos 1960 foram geradas antes do golpe. Após o golpe de estado o teatro regride, basta ler um pouco as peças com atenção. Antes de 1964, o que estava em jogo na dramaturgia brasileira era: as possíveis junções entre o campo e a cidade, as forças populares surgindo nos vários lugares do Brasil em atrito com a modernização, a possibilidade de uma crítica anticapitalista radical... Depois da ditadura o teatro abandona essas questões, deixa de ser anticapitalista e passa a se alinhar ao discurso genérico pela liberdade, o teatro deixa de tirar consequências do choque entre os mundos do campo e da cidade, e em alguns casos, tenta mesmo representar um novo lugar ambíguo, entre o atraso e o moderno, um lugar de síntese mais abstrata sobre a brasilidade, em moldes tropicalistas. O melhor teatro político é obrigado a refletir sobre a paralisia social. A ditadura pauta o teatro, que se vê obrigado a encenar o seu limite e o seu descolamento da base social. Ele é obrigado a assistir ao fato da cultura ter perdido a sua chance histórica. Então essa opinião não resiste a um pouquinho de leitura concreta sobre o assunto. Mesmo as experimentações formais mais avançadas, que inspiram o pós-golpe, todas já foram apontadas antes do golpe: o teatro épico apareceu no Arena, no Seminário

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de dramaturgia, o modelo do drama dialético veio dos Laboratórios de atuação, que inspiraram tantos grupos e o cinema, as formas de agitprop como teatro jornal surgiram no CPC. No pós-golpe essas conquistas se estabilizaram. Quando Boal vai escrever o livro dele sobre o teatro do oprimido e vai anotar as técnicas, grande parte delas, quase a maioria, foram inventadas antes do golpe militar. Então todos esses avanços são consequências de um processo muito anterior, que rigorosamente vem dos anos 1950, na América Latina toda. No caso argentino, é o movimento de teatro Independente. E mesmo na Colômbia, a sistematização do [Henrique] Buenaventura dos anos 1970 decorre de

O que a ditadura fez foi desorganizar e impedir os avanços, frear a mudança. E não facilitou nada. Pelo contrário, ela desarticulou uma geração e afastou os produtores de cultura da base social, arrebentando a chance de termos um movimento cultural que não fosse adorno de elite, que não fosse burguês como é hoje.


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uma construção anterior. O Buenaventura estava rodando o Brasil nos anos 1950, conheceu o Hermilo Borba Filho. Então tem que ver isso em escala maior e histórica, e entender que foi o contrário. O que a ditadura fez foi desorganizar e impedir os avanços, frear a mudança. E não facilitou nada. Pelo contrário, ela desarticulou uma geração e afastou os produtores de cultura da base social, arrebentando a chance de termos um movimento cultural que não fosse adorno de elite, que não fosse burguês como é hoje. Talvez eu tenha mudado o assunto da sua pergunta, mas acho essa uma questão importante. As pessoas tem que recuperar algo daquele passado para entender porque deu nisso. EVOÉ! E você acha que, por exemplo, nos movimentos - em algumas ações agora nesse marco de 50 anos do golpehá essa reflexão em pauta? SÉRGIO: Eu acho que nesse momento o que está tendo de novidade é uma avaliação sobre a anulação do tempo: o quanto a ditadura criou um tempo morto, na expressão do Paulo Arantes. E esse tempo é morto porque a própria memória e a reflexão histórica foram anuladas, porque o país não fez um inventário que permita a reflexão e novos movimentos vitais. E veja a dificuldade da Comissão da Verdade, tão pequena diante da grandeza da tarefa, enfrentar esse ocultamento dos cadáveres e dos assassinos. Sem compreensão dessa história, o conceito de Cultura se confunde com o pior, com mistificação, com imposição, com repressão sem chance de emancipação. Para nós, que estamos nesse lugar insignificante

mas por isso atento, o do teatro, cabe criar situações em que possamos – ao menos simbolicamente – praticar cultura política como processo. Sabendo que estamos num tempo em que o capital deixou de ser um problema para a maioria das pessoas. Ao contrário, elas acham que o capital é a solução: “Ah, basta aumentar as condições de consumo que vai ser bom.” Do ponto de vista da cultura, que deve ser produção do diferente, isso é uma tragédia. E se houver alguma integração, será sob a ordem do capital. O que também é uma falácia, porque ele não quer integrar, ele quer é desintegrar. Então eu vejo que sem comparações históricas, o movimento cultural não consegue se opor radicalmente a isso, nem ideologicamente e muito menos na prática. Esses são desafios contemporâneos. Se não trabalharmos um pouco sobre isso, sobre uma nova problematização da situação do capital, não acontece nada. E a coisa interessante do teatro é que ele pode ser laboratório para sondar essas dificuldades. O caráter artesanal dele, o fato de ele poder ser feito em atrito com as estruturas mercantis, permite projetar situações políticas, de aprendizado político. Eu venho apostando um pouco nisso, na chance de criar lugares de aprendizado politizante a partir de uma prática em que a questão ideológica tem que ser refeita. Vamos criar situações de trabalho diferentes pra ver o que acontece. Vamos criar situações de trabalho começando a repensar a possibilidade de enfrentar processos que não estão lá fora só, estão aqui dentro, no momento em que eu entro em cena. Em lugares em que a dinâmica fun-

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damental entre as pessoas não devia ser de compra e venda. EVOÉ! Terminando o nosso papo, recentemente o Alexandre Dal Farra, dramaturgo que ganhou o Prêmio Shell, numa entrevista à Folha do dia 23/03/2014, entre os comentários que ele faz, ele cita a pouca contundência de dramaturgos ou mesmo de dramaturgias nascidas do processo colaborativo e ele aponta até uma descendente dos processos colaborativos nos grupos de teatro, especialmente de São Paulo. Como é que você vê essa contribuição no campo do teatro dos processos colaborativos? A gente já tem distanciamento histórico pra analisar isso? SÉRGIO: Eu acho que é uma avaliação difícil. Porque de fato ele tem um pouco de razão ao notar que a maioria dos processos colaborativos gera dramaturgias que às vezes não aprofundam o material, que estão ali para se conciliarem com o efeito cênico. Então, às vezes, são dramaturgias feitas para resolver a cena, para servir à lógica da eficácia da cena, sem uma problematização maior da questão da escrita cênica. Por outro lado, a gente precisa ver que os dramaturgos de gabinete atuais não deram solução melhor. Porque as peças que eles estão fazendo também não são grande coisa, e parecem antes mimetizar as tendências à lírica ilógica de certos modelos ditos “contemporâneos”. De qualquer jeito, a maior dificuldade atual do teatro é de ordem dramatúrgica. No processo colaborativo, é fácil perceber que não dá mais pra fazer essas peças de

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seja o que for, uma boa dramaturgia é sempre coletiva.

” colagens de ceninhas, de esquetes costuradas em cima da hora para dar conta dos workshops do elenco. E os dramaturgos que se pensam como “autores” também deviam ver que ninguém aguenta mais essa cena das vozes que falam por si mesmas, de personagens faladas pela própria verborragia. As tais das paisagens de uma subjetividade contemporânea fracionada diante da “incomunicabilidade da grande metrópole” já deram o que tinham que dar com seus monólogos difusos expressivos e tom de depoimento. Ninguém aguenta mais isso porque está aquém da subjetividade, está aquém da expressão lírica. Obviamente que ninguém quer também fazer aquelas peças convencionais em que as personagens têm consciência de tudo o que vivem e falam sobre os problemas da vida em um modo dramaticamente fácil e convencional. Então resta a todos nós a procura de uma atitude nova que só pode nascer de um interesse pelas novas coisas ruins. Se o Latão tem dado algumas respostas a essa dificuldade, e encontrado alguns modos novos de escrita, isso talvez se deva a uma combi-


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perguntar sobre a atualidade não é idealizar a atualidade.

” nação de estrutura colaborativa e ao fato de seu diretor ser também dramaturgo, e que às vezes trabalha isoladamente. Eu faço um vai e vem entre a sala de ensaio e o escritório onde eu escrevo também e pesquiso. Mas seja o que for, uma boa dramaturgia é sempre coletiva. Mesmo que o sujeito escreva sozinho, ele usa livro, ele usa outros autores, ele tem modelos, ele dialoga com a tradição. É como se ele dialogasse sempre com outros. Agora, esse realmente é um fato que a gente tem que considerar: houve nos últimos anos um grande desenvolvimento das encenações em São Paulo, do trabalho dos atores e da relação com novos públicos. Mas a dramaturgia, com raras exceções, é capenga. Ela ainda é um ponto fraco. E não é um problema só de São Paulo, é mundial. EVOÉ! Há algo mais que você gostaria de falar sobre processo criativo contemporâneo? SÉRGIO: Eu acho que o importante é saber que a ideia de “contemporâneo” não quer dizer nada. Isso não quer dizer que não devamos sempre fazer a pergunta sobre a atualidade. Dentre as lições

do Adorno, uma das que eu mais gosto é essa: a necessidade de nos perguntarmos sobre a atualidade das coisas. Mas essa verificação só pode ser feita em perspectiva histórica, considerando a permanência do passado no presente, assim como os indícios do futuro. Agora, perguntar sobre a atualidade não é idealizar a atualidade. É ver a atualidade como problema, sem a estabilização uniforme que costuma vir quando se fala do “contemporâneo em arte”. É ver a atualidade como algo que precisa ser distanciado para que eu possa atuar sobre ela. Para eu compreender o momento atual eu preciso ver outros tempos. Porque senão é uma abstração em que torna-se estático algo que é dinâmico. Muitas vezes, eu gosto de assumir a posição considerada à primeira vista de outra época, porque eu acho que ela pode ser produtiva. O Brecht escreveu nos anos 1940, mais ou menos assim, no diário de trabalho: “querer o novo tornou-se muito antigo. E talvez o novo agora seja querer o antigo”. É lógico que ele não era um sujeito saudosista, o espírito menos regressivo que eu conheço é o do Brecht. Mas ele estava dizendo assim: olha, você só entende isso aqui que nos acontece se você olhar e atuar em conexão. Faça conexões entre este tempo e outros tempos, inclusive aqueles que não chegaram.

Pauta e entrevista: Adilson Ledubino; Gravação de áudio: Eduardo Virgilio; Transcrição: Adilson Ledubino e Amanda Moreira.

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REFLEXÕES

A Contundência do Real como Fissura na Ficção do Artista Nádia Recioli Bacharel em Artes Cênicas pela UNICAMP. Nascida em São Paulo-SP, Brasil. Junto ao Grupo do Trecho pesquisa intervenção urbana, performance e site specific, atuando em comunidades marginais de grandes centros urbanos. Recentemente envolveu-se com a permacultura, pesquisando sua relação com a arte na emancipação de povos indígenas e comunidades tradicionais. nadiarecioli@gmail.com

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RESUMO:

Este artigo apresenta uma reflexão pessoal a partir da trajetória do Grupo do Trecho. Relata a evolução da pesquisa do coletivo em teatro de intevenção durante seus três principais trabalhos de residência artística em espaços marginais da esfera urbana: albergues de moradores de rua, a própria rua e uma penitenciária feminina. Trata-se de um longo processo de descoberta e revelação das relações de poder, segregação e controle que operam e formatam a sociedade contemporânea, formada por diferentes universos que não se comunicam, embora sejam interdependentes. O grupo buscou sempre realizar uma arte que criasse conexões entre esses universos e que colocasse em cheque a normatização da vida. PALAVRAS-CHAVE:

intervenção urbana; esfera pública; teatro político.

ABSTRACT:

This article presents a personal reflection on the trajectory of Grupo do Trecho. It reports on the evolution of the research of the group in intervention theater during its three major works of artistic residency in marginal spaces of the urban sphere: shelters for the homeless, the street itself and a women’s prison. It is a long process of discovery and disclosure of power relations, segregation and control operating and formatting contemporary society, formed by different universes that do not communicate, although they are interdependent. The group has always tried to make an art that creates connections between these universes and puts the normalization of life in check. KEYWORDS:

urban intervention; public sphere; political theater.

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Introdução Desde sua formação em 2007, o “Grupo do Trecho” vem pesquisando a arte cênica em sua relação com o ambiente urbano e suas esferas marginais, direcionando o olhar especialmente para as possibilidades e impossibilidades das relações humanas na metrópole (notadamente a capital de São Paulo, onde se fixou a partir de 2008), pensando a ressignificação do real através da intervenção da ficção poética1. O grupo adotou a metodologia da residência artística, que realizou em albergues de moradores de rua, nas próprias ruas do centro de São Paulo e em uma penitenciária feminina, revelando os inúmeros universos incomunicáveis que compõem a cidade em intrincadas relações de poder e buscando, através do encontro promovido pelo acontecimento teatral, instaurar pontes entre esses diferentes mundos. Dessa forma, a partir do princípio norteador de aprofundar e radicalizar a relação ator-espectador, diluindo e mesclando essas funções, aumentando a cada vez os elementos de risco do jogo cênico e expondo ao máximo os procedimentos de criação, os integrantes do grupo expe-

1  Aqui entendemos o conceito de real em sua acepção mais comum: relativo aos fenômenos aceitos como parte da realidade cotidiana. O termo faz oposição direta ao conceito de ficção , relativo à ação poética do artista que cria universos, histórias e personagens imaginários. A intervenção artística no âmbito (geográfico e temporal) da vida normal é capaz de travesti-la com elementos extracotidianos, inspirados no mundo conhecido, mas acrecidos de um dado de estranheza, fantasia ou absurdo, os quais potencialmente subvertem a lógica e a percepção da realidade habitual.

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rimentaram uma série de “rompimentos” em sua experiência criativa ao depararem-se insistentemente com a função normatizadora da ordem social. O coletivo encontrou na performance e na intervenção urbana potentes ferramentas para seu processo criativo; e obteve, nos conceitos de site specific2 e de “dramaturgia da cidade”3, assim como na filosofia de Foucault e Deleuze, o fundamento teórico necessário para a pesquisa. O grupo surgiu a partir da criação do espetáculo “Sapato Sujo na Soleira da Porta”, apresentado em um albergue de moradores de rua de Campinas, como trabalho de conclusão de curso da graduação em Artes Cênicas da UNICAMP, por Carolina Nóbrega, Luciano Mendes, Nádia Recioli e Suellen Leal, além da artista plástica Tatiana Burg, sob a orientação da Professora Dra. Grácia Navarro. A principal proposta era romper com os muros (físicos e intelectuais) da universidade e experimentar um processo criativo totalmente permeável, em espaço público, e em plena relação com o público frequentador desse espaço, pensando a “ficção como uma fissura na realidade e a realidade como fissura na ficção de quem faz”. Essa diretriz, dada à época por Grácia 2  O conceito, oriundo das Artes Plásticas, remete a obras criadas segundo um ambiente ou um espaço determinado, de forma que a manifestação artística esteja intrinsecamente ligada ao contexto no qual e para o qual foi criada. 3  Conceito trazido por André Carreira que, ao pensar o teatro de rua, entende este como um teatro de invasão, que interfere nos segmentos da cidade e dialoga intimamente com a silhueta urbana.


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Navarro, foi a porta de entrada para uma sequência de descobertas e rupturas, definitivas para a elaboração do pensamento artístico desse coletivo, e determinantes de um mergulho intenso e doloroso na “contundência do real”.

O ato de estrangeirar-se O SAMIM (Serviço de Apoio ao Migrante, Itinerante e Mendicante) mostrou ser o local perfeitamente adequado à proposta: uma antiga estação de trem que hoje funciona como albergue aberto a qualquer ser humano que porventura necessite de um pernoite, mas que ao mesmo tempo fica apartado de todos os ambientes “normais” da cidade. Para lá são encaminhadas as pessoas de Campinas e região que estejam em situação de vulnerabilidade, desabrigadas por qualquer razão, sejam viajantes, andarilhos, moradores de rua, pessoas abandonadas pela família, vítimas de desmoronamentos ou incêndios, etc. No entanto, as pessoas que nunca necessitaram diretamente daquele serviço sequer têm notícia da existência do espaço. Ali conhecemos pessoas que vivem “no trecho”, desabrigadas, recém-chegadas e já de partida, marcadas pelas histórias de vida mais fantásticas e cruéis. Pretender contar-lhes uma fábula, dizer-lhes algo, soava quase absurdo. Onde então buscar o que falar a essas pessoas senão exatamente na relação com elas? E que relação seria essa a se estabelecer entre nós, que contrariando padrões optamos por ir até aquele lugar, e eles, que tiveram de se albergar por necessidade? Que relação se

estabeleceria entre atores na realização de seu ofício e aquelas pessoas que, a princípio, não constituíam o público de teatro? Que relação se estabeleceria entre seres humanos de esferas tão díspares que se encontraram devido a uma proposta artística? E que frutos poderiam nascer daquele encontro? A aproximação foi certamente cautelosa, afinal estávamos adentrando o espaço de convívio daquelas pessoas. Começamos apenas com visitas e conversas; cada ator ia sozinho ao albergue e permanecia ali apenas ouvindo as histórias que as pessoas lhe contavam espontaneamente. Algumas vezes fizemos refeições e pernoitamos no SAMIM. Foi inevitável que a relação acontecesse também ao nível pessoal, foi inevitável se deixar afetar. O medo ou a sensação de ser um intruso e de não ter o direito de estar ali nos revelava nossos próprios preconceitos. Diante daquele espaço, de sua arquitetura, história e pessoas, e diante de nós mesmos em relação a tal contexto, o grupo escolheu como tema para a criação “o estrangeiro”: assim como a poesia se faz estrangeira no âmbito da realidade cotidiana, cada um dos atores era em si estrangeiro àquele lugar e deveria criar para a peça um personagem-estrangeiro que trouxesse como “bagagem” apenas a própria história. Paralelamente às visitas ao albergue, realizamos como laboratório a sequência de performances então chamada “Figuras entre a ficção e a realidade” nas ruas de Campinas e, em sala de ensaio, a partir de contos literários de diversos autores que

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tocavam a temática do “estrangeiro”, trabalhávamos todo o material levantado. As performances na rua tratavam-se do simples ato de deslocar elementos reconhecíveis da vida cotidiana para um contexto incomum: uma noiva, uma miss ou um mergulhador devidamente vestidos, caminhando a esmo pelo centro da cidade, às vezes fazendo um livre depoimento a partir das experiências vividas durante o processo criativo (tanto no albergue, quanto em sala a partir dos contos). Apenas isso era suficiente para que os passantes compusessem suas próprias narrativas: “a noiva foi abandonada no altar!”; “a garota fugiu de casa e não deve estar se sentindo bem, ela precisa de ajuda”; “ela quer se suicidar, vejam como está triste”. As reações eram das mais diversas, de pedidos de casamento a tentativa de agressão e acusação de atentado ao pudor, às vezes terminando com a chegada da polícia. No caso da noiva, a polícia foi acionada pela denúncia de que a jovem abandonada estaria prestes ao suicídio. Mesmo explicando que era estudante de teatro, Carolina Nóbrega foi levada de camburão à faculdade, pois estava sem os documentos que comprovariam a sua versão dos fatos. Não se tratava de a polícia acreditar ou não no que ela dizia, pois apenas um “documento” poderia atestar a verdade, mesmo que, pessoalmente, os policiais acreditassem nela. No dia seguinte, a notícia saiu em três jornais da cidade sob manchetes como “Noiva misteriosa deixa o povão do Centro com a pulga atrás da orelha”, “Noiva em ‘fuga’ intriga as pes-

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soas” ou “O véu do mistério”. Mais tarde fomos informados de que desde o primeiro momento a redação do jornal (que era a mesma para os três) soubera que se tratava de uma estudante de teatro. E ainda assim a matéria não apenas foi publicada como contava com comentários de especialistas dizendo que podia se tratar da “síndrome do stress pós-traumático”, e optaram por manter o “mistério” e não narrar o desfecho com a polícia, o qual o repórter presenciou. Experimentamos aí um primeiro rompimento. Não é propriamente a verdade ou a realidade que está em jogo, mas precisamente as formas jurídicas da sociedade, a própria “norma” social. E se uma outra garota qualquer decidisse vestir-se de noiva e simplesmente caminhasse pela cidade? E se ela não fosse estudante de teatro e também não estivesse com planos de atirar-se da ponte? Como ela poderia explicar-se diante da autoridade? Não poderia, ao que parece. Durante essas intervenções nos deparamos com apenas dois estigmas possíveis que funcionam como uma espécie de “permissão” para atitudes significativamente diferentes da normalidade: o artista e o louco. Era difícil escapar a esses rótulos, que funcionam como uma forma de enquadrar qualquer elemento discrepante da realidade. Uma vez “justificado” o fato e “explicado” o mistério, todos podem voltar tranquilamente à rotina diária e tudo continuará funcionando “normalmente”. Uma semana depois do incidente da noiva outra atriz do grupo, Suellen Leal, caminhou pelo mesmo trajeto vestida


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como uma viúva. O figurino preto passava mais facilmente despercebido na multidão. Porém, quem a via imediatamente a associava à noiva (mesmo as atrizes sendo totalmente diferentes em aparência física), mas já não se surpreendia. Parecia que a tal noiva já havia virado figura folclórica, parte da paisagem do centro da cidade, como se ela sempre tivesse estado ali, mesmo que todos a tivessem visto uma única vez ou mesmo que apenas tivessem escutado o boato ou lido a notícia. Isso oferece uma pista para tentar compreender a constatação complexa de que o dia a dia da cidade está repleto de absurdos muito maiores do que qualquer uma de nossas ações “extracotidianas”, mas que, no entanto, são elementos já totalmente normalizados (ou normatizados) e portanto já não representam “periculosidade” (FOUCAULT, 1973). O morador de rua, a criança abandonada, a cigana, o homem com elefantíase são praticamente invisíveis; cenas de violência, a exclusão social, tudo o que se vê e se ignora nas ruas todos os dias é perfeitamente comum e habitual, enquanto que uma dessas “figuras entre a ficção e a realidade” é razão suficiente para tumulto nas ruas e a mobilização da polícia e dos jornais. A ação artística nesse contexto é inevitavelmente política e transgressora da norma que formata e restringe o real, pois revela a atitude já internalizada de “vigilância” (FOUCAULT, 1973) das pessoas, que desejam voltar tão depressa ao conforto da ordem cotidiana. Gradativamente, fomos levando os ensaios para dentro do albergue. Ensaiar as cenas naquele ambiente, com todas as

suas especificidades nos levou a um segundo rompimento. A maioria dos frequentadores do espaço jamais tinha ido ao teatro e, portanto, não tinham preconcepções sobre como o teatro “deveria” ser. E foram, aos poucos, se familiarizando com um processo criativo aberto sobre o qual nós também não tínhamos preconcepções, pois certamente não foi aquela a forma de fazer teatro que nos ensinaram na faculdade. Ensaiar no albergue era relativamente parecido com o teatro que se faz na rua: era preciso lidar a todo tempo com as intervenções do público no espetáculo, ter jogo de cintura, saber improvisar. No entanto, nesse primeiro momento de ensaios não havia “espetáculo” a sustentar. O processo criativo estava nu aos olhos de todos e estávamos bastante vulneráveis. A dramaturgia foi consolidando-se no realismo fantástico de Mia Couto, especialmente devido à enorme identificação dos moradores do albergue com seus personagens. Um exemplo disso era a figura do mergulhador, síntese da personagem de “O Bebedor do Tempo”, que com seu andar cambaleante logo foi identificado pelos alcoólicos ali presentes como “um bêbado”, como eles. E isso nos aproximava, atores e albergados, uns dos outros. Esses processos de identificação propiciados pelo fazer artístico nos fizeram enxergar a arte como um possível ponto de comunicação entre universos distintos. No trato com pessoas em situação de rua nós, então universitários, descobrimos histórias, esquemas e sistemas de viver totalmente diferentes dos nossos.

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Diante desse encontro, nos foi possível propor um outro encontro ainda mais interessante: entre os frequentadores de albergues e os frequentadores de teatros. Estrangeirar e descontextualizar o próprio espetáculo teatral levando-o para dentro do albergue, e deslocar o público até lá para assisti-lo junto aos albergados, gerava uma situação conflituosa e carregada de sentidos. Um encontro “fora da ordem” convencional e, justamente por isso, extremamente fértil nas questões que levanta acerca das relações humanas, especialmente daquelas que corriqueiramente não ocorrem. Segundo Denis Guenóun, a convocação de grupos distintos de pessoas, aquelas que “propõem” uma ação e aquelas que “respondem” a ela, em momento e lugar específicos, que o teatro exige para acontecer é, em si, um ato político, devido à confluência gerada entre indivíduos reunidos voluntariamente para uma realização coletiva. Para o autor, o público dos teatros não é uma mera aglomeração de indivíduos isolados, mas sim uma reunião de pessoas disponíveis e desejosas de ter o sentimento concreto de sua existência coletiva, que querem mesmo se reconhecer como grupo. Ao menos como sonho ou esperança, e mesmo que apenas temporariamente, o público de um espetáculo configura uma “comunidade” (GUENÓUN, 2003). Então por que não levar adiante, assumindo consequências mais profundas, esse sentido de comunidade? Esse aspecto fundamentalmente político do acontecimento teatral é potente em si mesmo e há que ser levado em conta em

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uma época em que a virtualidade das “imagens técnicas” (FLUSSER, 2008) pauta relações humanas e a própria concepção da realidade. Uma vez, um rapaz filmava uma de nossas “figuras”, o mergulhador que mergulhava em uma fonte seca, e disse que se não colocasse o vídeo no Youtube ninguém acreditaria no seu relato. Existe aí uma inversão entre os conceitos de realidade e ficção, concreto e virtual, que é extremamente comum hoje. Documentos, imagens e vídeos atestam a verdade e são mais “confiáveis” do que pessoas, mesmo que todos saibam que documentos, imagens e vídeos são perfeitamente adulteráveis (e necessariamente realizados por e através de pessoas). A própria comunicação entre os seres humanos se dá mais através das diversas mídias do que corpo a corpo e “imediatamente”. A arte teatral não apenas propõe, como tem nessa comunicação “corpo a corpo” sua condição fundamental de existência. O sentido de comunidade, comunhão e comunicação é uma ferramenta importante a ser explorada com afinco e cuidado pelos artistas cênicos. Durante a primeira temporada de “Sapato Sujo na Soleira da Porta” um ônibus saía de um ponto na UNICAMP, levando o público de fora para o local da apresentação. Chegando lá, podíamos ouvir os então moradores do lugar, que já haviam se acostumado aos ensaios e preparavam o espaço dispondo as cadeiras, comentarem a chegada dos “novos personagens” da peça, ressignificando assim o sentido de “platéia”. Esses dois públicos, que em princípio não se encontrariam, por


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um momento podiam partilhar juntos de uma mesma experiência. Cada pessoa de cada um dos três grupos que naquele instante compunham o acontecimento teatral podia ver o outro e talvez reconhecer-se ali, nem que esse reconhecimento se desse a partir da diferença. Era uma oportunidade, que poderia ser aproveitada ou não. O artista propõe uma ação e deve ouvir a resposta. Sua ação pode reverberar ou não. E ele estará inevitavelmente exposto às consequências daquilo que propôs. Claro que a situação era especialmente incômoda para os “de fora”. Não estando numa sala de teatro, não sabiam como se portar, condicionados à lógica do teatro institucionalizado, automaticamente buscavam colocar-se na condição passiva (e confortável) do espectador que não quer “atrapalhar” o andamento do espetáculo. Estavam também expostos, diante daqueles outros que sentiam-se livres o bastante para interferir, questionar, provocar ou mesmo ignorar a cena. Situação irônica essa, uma vez que o albergado, a pessoa em situação de rua, é justamente quem costuma sofrer uma série de restrições em seu direito de ir e vir por parte dos estabelecimentos e espaços sociais da cidade. Sua irônica liberdade perante o espetáculo, e dentro dos muros do albergue, não tinha a ver com algum tipo de não compreensão do fenômeno teatral, mas sim com uma não submissão às “convenções” teatrais. Se, por exemplo, um dos ensaios se estendia até o horário de almoço, ninguém deixava de almoçar para assistir à peça, e no entanto se revezavam na função de espectador “para que os atores não pa-

rassem de representar”, conforme nos disse um dos albergados. Isso é a compreensão mais essencial do jogo teatral: sem público ele não pode acontecer. Para aquelas pessoas cotidianamente submetidas às regras e horários rígidos impostos pelo albergue, o evento teatral configurava justamente uma “ruptura” da ordem normal e, por isso, um dado de liberdade. O fato é que, para elas, o teatro não se parece em nada com uma instituição. Em termos artísticos, a temporada de apresentações no albergue foi fundamental para uma terceira compreensão, ou rompimento. Diferentemente do público ocasional da rua, nosso público constante, do albergue, pôde acompanhar ensaios e apresentações consecutivas, apropriando-se da dramaturgia e passando a interferir conscientemente no espetáculo. Nos últimos dias as pessoas adiantavam o texto das personagens invadindo e propositivamente compondo conosco a cena, ou cantavam em coro as músicas da peça. O efeito era cenicamente belo, porém naquele momento era ainda tecnicamente difícil lidar com tais situações, pois as pessoas do albergue dispunham de mais elementos de jogo do que normalmente acontece com o público frequentador de teatro, seja na rua ou na sala de espetáculo. Isso apontou como um novo caminho de pesquisa a possibilidade de oferecer ainda mais instrumentos ao público para que o jogo cênico se desse de maneira mais igualitária, tornando ainda mais fluidas as funções de ator e espectador no espetáculo. “Sapato Sujo na Soleira da Porta”

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tornou-se então um projeto de residência artística em dois albergues masculinos ligados à “Rede Rua”, em Santo Amaro, bairro da periferia de São Paulo. Dessa vez passamos um ano oferecendo aulas de teatro enquanto reelaborávamos a peça para adaptá-la ao novo contexto. Nossos alunos criaram também seus personagens-estrangeiros, que passaram a integrar a nova versão do espetáculo em sua segunda temporada. Outra série de adaptações teve de ser feita. Os novos atores eram pessoas em situação de rua, procurando “ressocializar-se”. É uma transição que implica encontrar trabalho e dinheiro na busca de poder arcar com as despesas de um espaço próprio. Não podíamos exigir deles o mesmo compromisso que o nosso com as apresentações, afinal nós fazíamos isso profissionalmente. Dessa forma, o desafio foi lidar com uma dramaturgia mutante, pois inúmeras e diferentes versões da peça foram necessárias para contemplar os dois albergues em que foram realizadas as apresentações, e também para podermos respeitar as eventuais ausências de qualquer um dos novos atores. O público “de fora” também era convidado a entrar, mas dessa vez a dramaturgia falava muito mais a partir do ponto de vista de dentro do albergue, pois a imersão nessa residência fez com que nossa releitura se pautasse na leitura de quem estava ali e reconhecia a si mesmo nas personagens inspiradas na literatura de Mia Couto. Foi o caso de um homem alcoolizado que, tamanha era a sua identificação com a figura do mergulhador, uma vez aliou-se ao personagem durante a cena, encarnando o

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seu duplo até o final do espetáculo. Mais elementos de risco se agregavam e cada vez mais a apresentação assumia seu caráter de jogo; sem o imperativo de uma leitura correta do espetáculo, tratava-se, para atores e espectadores (de dentro e de fora), de entregar-se à experiência do novo, daquilo que jamais aconteceria na vida cotidiana, e deixar-se transformar. Sem dúvida, as experiências durante o longo processo de “Sapato Sujo” foram determinantes para estabelecer e definir as bases de pesquisa do “Trecho”. Com a saída de Suellen Leal e a passagem de novos artistas, o grupo foi se transformando em coletivo de pesquisa e estabelecendo os conceitos-base de seu trabalho. Compreendemos então, que as especificidades contextuais da criação artística, bem como a imersão na forma de residência eram elementos fundamentais de nossa busca. E além desses, a importância de agregar fatores de risco ao jogo, “empoderando” o espectador e “expondo” os atores ao mesmo tempo. Tratava-se então de aprofundar-se num caminho já delineado.

Do albergue à rua: residir à margem O projeto seguinte foi uma residência na própria rua, o espaço público por excelência, que na metrópole de hoje cada vez mais deixa de ser o local do encontro, da liberdade e da expressão para tornar-se simples rota de ligação entre os diversos “não-lugares” (aeroportos, shopping centers, bancos, escritórios comerciais) que compõem a malha urbana (AUGÉ, 1992);


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espaço de passagem, “perigoso”, e onde ninguém permanece, a não ser aqueles que estão mesmo à margem. O local escolhido foi o Largo de Santa Cecília, no centro de São Paulo. Demos continuidade ao trabalho com o realismo fantástico e a literatura de Mia Couto, e o projeto chamou-se “Contos de Lua no Chão” – queríamos fabular o dia a dia da Santa Cecília. Nessa época desenvolvemos mais claramente nossa metodologia nos ensaios e aprofundamos a pesquisa em performance, intervenção urbana e sobre a “dramaturgia da cidade”, convidando André Carreira, Verônica Fabrini e Grácia Navarro para nos orientar na montagem de três contos (“O Embondeiro que Sonhava Pássaros”, “O Cego Estrelinho” e “As Lágrimas de Diamantinha”), ressignificando-os a partir daquele ambiente. Novamente nos deparamos com diferentes universos sem conexão entre si: a igreja, monumento enorme colocado bem ao centro da praça era quase uma ilha de estranha paz e silêncio, refúgio dos que possuem alguma fé; a chamada “crackolândia” fica muito próxima dali e boa parte dos frequentadores do largo eram pessoas viciadas em crack; os vendedores ambulantes estavam ali todos os dias e frequentemente tinham de recolher a mercadoria e fugir do “rapa”; havia as famílias de moradores do bairro, os das casas e os das ruas; os bares; o jogo do bicho; a polícia; o prédio do banco, totalmente fechado e escuro; as pessoas do metrô que passavam apressadas para o trabalho. Todos ocupando e utilizando o mesmo espaço, porém respeitando uma

espécie de separação invisível entre uns e outros. Que dramaturgia aquele lugar teria a nos oferecer? A primeira e fundamental escolha metodológica foi por não haver sala de ensaio, levando para a rua o processo completo. Cada movimento criativo, cada exercício corporal estaria exposto aos olhares e ao julgamento dos transeuntes. E já não se tratava apenas de compartilhar, embora desejássemos isso também, mas principalmente de “expor” o processo de criação. É que a rua, sendo terra de ninguém, intimida. Não há aconchego possível. Dessa forma, nossos ensaios geravam algum tipo de provocação. Num primeiro momento explorávamos nossa corporeidade na relação com o espaço urbano, que é totalmente diferente do trabalho em sala fechada. Nossos corpos tendiam ao encolhimento e a uma atitude de defesa. Tínhamos de lutar contra nós mesmos para encontrar o corpo cênico no ambiente opressor da rua. Bastava iniciarmos um alongamento para que os homens olhassem maliciosos para os corpos das atrizes. Ainda assim optamos por não recorrer a subterfúgios de proteção, nem mesmo a roda ou os outros atores. Por outro lado, mais de uma vez alguém que passava se juntou a nós, acreditando ser uma proposta de alongamento ou massagem na praça. Podíamos perceber então a solidão e a carência de toque por parte das pessoas, as invisíveis barreiras que existem entre todos, e a enorme diferença que fazia esse pequeno contato ocasional. Desenvolvemos um exercício que chamamos de “corpos em colapso”, que se

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tornou base do trabalho criativo, e tratava justamente da exposição solitária do corpo diante do espaço urbano: de repente uma queda durante a caminhada; e então aquele corpo rola pela calçada, percebendo a diferença de textura entre o chão e o muro, as possíveis relações com o orelhão ou o poste, os cheiros, a sujeira, as cercas. Buscávamos uma forma de revelar os sentidos do espaço. O que significa a existência de um lindo jardim, como um refúgio, todo gradeado e trancado, onde é proibido o acesso de pessoas? O que significa a assepsia e as inúmeras setas, ícones, mapas e indicações gráficas do metrô? Antes ainda de construir a ficção, era necessário descontextualizarmos a nós mesmos, desconstruirmos nossas próprias defesas e cascas urbanas, que ficavam evidentes durante o trabalho. Não havendo o elemento simbólico do figurino, as pessoas não sabiam bem como reagir ou ler a situação. Riam sem entender ou achavam que estávamos passando mal e tentavam ajudar ou, ainda, nos dirigiam ofensas. Posteriormente descobrimos que vendarmos os olhos era uma estratégia eficaz para nós mesmos. Embora ficássemos mais vulneráveis, nos livrávamos ao menos do julgamento pessoal. Sem poder enxergar em volta tínhamos menos informação para administrar e não víamos o olhar das pessoas. Dessa forma era mais fácil mover-se livre e amplamente no espaço. Essas e outras estratégias foram sendo desenvolvidas, sempre buscando reconhecer os elementos de jogo oferecidos pela própria rua e ressignificá-los. O maior desafio naquele momento era

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lidar com a realidade crua, quando essa se mostrava. Como não negligenciar o real e ainda assim sustentar o jogo poético? Já não queríamos tanto travestir a realidade quanto desejávamos despi-la de sua aparente e frágil normalidade. A temporada do espetáculo acontecia no próprio largo, à noite. No embate com o ambiente da praça as figuras de Mia Couto se fundiram com a santa da igreja, o morador de rua todo vestido de papelão, a mulher viciada em crack ou a menina abandonada, e suas histórias, ganharam o peso da solidão e da exploração humanas que existiam ali latentes. Em uma das apresentações, ao lado da peça houve uma discussão entre dois moradores de rua, tendo um dado uma facada no outro. Uma de nossas assistentes avisou no posto policial para que resgatassem o homem. E o espetáculo prosseguiu sob muita tensão. A vida real é certamente muito mais grave do que a ficção poética pretende aludir. No entanto a realidade, inversamente ao “espetáculo”, é exatamente aquilo que muitas vezes “ninguém quer ver”. Possivelmente, se não houvesse tantas pessoas reunidas ali naquele momento, ninguém perceberia o que aconteceu entre os dois homens e a polícia daria pouca atenção, afinal tratava-se apenas de moradores de rua, as mesmas pessoas que eram expulsas a todo tempo das regiões centrais da cidade, em ações higienistas da Prefeitura Municipal.

Adentrar as muralhas da prisão Para o Grupo do Trecho tornou-se inevitável abordar os temas da desumanização


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do ser humano, a institucionalização das relações e o distanciamento entre as pessoas. Nosso terceiro trabalho, o “Projeto Ausências”, foi realizado na Penitenciária Feminina do Butantã, de regime semiaberto, também em São Paulo. Dessa vez não criamos espetáculo, as presidiárias criaram: “A Casa de Bernarda Alba, km 19,5” (disponível em: www.youtube.com/ watch?v=S7UQksfNTmo e www.youtube. com/watch?v=6Q-3Df6w__c), livre inspirado no texto de Lorca, uma reflexão acerca da sua condição de prisioneiras. E nós, tratamos de realizar intervenções nas ruas da cidade, buscando ser portavozes daquelas mulheres. A instituição carcerária é a expressão máxima de todas as questões com que vínhamos nos deparando até então: a normalização e o controle, a segregação das esferas sociais e o tratamento diferenciado de pessoas, como se umas fossem menos humanas do que as outras. Finalmente pudemos ter plena certeza de que a sociedade como a conhecemos está estruturada sobre e se origina nesses mecanismos de poder, opressão e separação, como é o caso da prisão. Trata-se de tirar do campo de visão tudo o que é indesejável e, ao mesmo tempo, fabricar a delinquência e o medo dela como formas de controle social. Nas ruas percebemos que ninguém faz ideia de como são, onde ficam ou como funcionam as prisões; e ainda assim todos querem ver “bandido na cadeia”. Dentro da prisão percebemos que o processo de “ressocializar” ou “reeducar”, como era dito ali, nada mais é do que o ato de “adestrar e tornar dócil”. O

discurso de Foucault estava presente a todo tempo, no ambiente, na fala das presidiárias, nas resoluções sempre arbitrárias da direção do presídio. Não havia interesse algum em que elas aprendessem a se expressar artisticamente, e nosso trabalho foi dificultado por todos os lados por parte da instituição. Enquanto pessoa, pude compreender o que não imaginaria ao entrar em um presídio; pude ver de perto – na realidade – a essência e simplicidade humana daquelas mulheres: os noticiários não oferecem verdades. Enquanto artista, me reúno aos meus para tentar revelar essas coisas a mais gente. É difícil, pois em alguns casos as barreiras são mesmo muros espessos com arame farpado e cercas elétricas, e não há mais metáforas. Certamente foi o projeto mais difícil de realizar, marcando uma espécie de limite. Até que ponto é possível intervir? E até onde reverbera a intervenção? De certa maneira, fica claro que quem realmente precisava (e precisa ainda) ser ouvido é quem tem sido sistematicamente calado pela sociedade. Nosso trabalho artístico pode criar pontes, mas cabe às pessoas fazer ou não a travessia.

Conclusão Nossa trajetória nos tornou severos com nosso próprio trabalho. Sentimo-nos muitas vezes impotentes diante da dureza da realidade humana. Se no início acreditávamos na arte como ponto de conexão entre diferentes esferas sociais, como

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possibilidade de fissura na realidade e, consequentemente, como potência transformadora, chegamos mesmo a ver isso como insuficiente, e até improvável. Afinal não seria por nossa ação que a condição das pessoas que conhecemos se transformaria. As prisões, albergues e injustiças sociais continuam e continuarão ainda. Somos pequenos para pretender lutar contra tudo isso. E, no entanto, enquanto artistas, não poderíamos escapar a esse caminho, pois é o que nos faz sentido. O artista é também humano e apenas isso. Nesse ponto compreendemos o sentido de continuar. Não podemos ter a dimensão da reverberação de nossas ações. Assim como o encontro com as pessoas que conhecemos nos processos de residência nos marcou profundamente, passando a fazer parte de nossa história e lembranças e definindo os rumos de nosso trabalho, também nós e o nosso trabalho passamos a fazer parte da história dessas pessoas. Tanto os alunos do albergue quanto as alunas do presídio mantiveram contato com os integrantes do grupo, escrevendo, telefonando, dando notícias de sua caminhada4. O trabalho artístico também se desdobra em vida real, em amizade, em troca mútua. Há que se aprender aí um outro tipo de humildade e aceitar um novo rompimento, talvez, em sentido contrário: o da persistência e da fé na própria arte. Falo por mim, 4  No blog “Projeto Ausências em Autoescrituras” (http://projetoausencias.blogspot.com), desenvolvido por Carolina Nóbrega, estão postadas correspondências trocadas pela atriz com as detentas após o término do Projeto Ausências.

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quando admito que por vezes fui negligente com a arte, considerando-a pouco relevante diante dos infinitos problemas sociais, políticos e humanos a serem resolvidos. Por vezes esqueci que a obra de arte é justamente um aconchego, um espaço de respiro para os corações humanos desamparados. Apenas quando eu própria me vi suficientemente desamparada e enfim acolhida pela expressão artística de outrem é que compreendi o valor da possibilidade de comunicação que a arte oferece. Quando se estabelece um vínculo verdadeiro e afetivo entre dois seres humanos, um início de mudança acontece. Talvez a busca agora seja pela sutileza de uma relação verdadeiramente humana, íntima, pessoal, já que isso é algo que vem sendo sistematicamente destruído pelos valores de uma sociedade massificada, virtualizada e espetacularizada. Talvez caiba ao artista oferecer despretensiosamente sua arte como proposta de um diálogo sincero e sensato, expondo a própria fragilidade na tentativa de afetar a do outro. E, é claro, estar aberto às consequências. Enfim, após quatro anos de imersão em relações humanas construídas em ambientes tão áridos, cabe um momento de pausa, um respiro. Foram tantas intensidades, que se faz necessário deixá-las reverberar no tempo e assentar na alma. Os integrantes do Trecho precisam agora desenvolver e aprofundar as pesquisas individuais, que juntas compuzeram a estética polissêmica das criações do coletivo. Um mergulho em si mesmo e na criação poética pessoal. Essa honestidade também se faz necessária.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUGÉ, M. (1992). Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 2004, 111 p. DEBORD, G. (1967). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, 237 p. FOUCAULT, M. (1973). A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2005, 158 p. FOUCAULT, M. (1975). Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2002, 262 p. FLUSSER, V. (2008). O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008, 150 p. GUÉNOUN, D. (1991). A Exibição das Palavras: uma idéia (política) do teatro. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003. GUÉNOUN, D. (2004). O teatro é necessário? São Paulo: Perspectiva, 2004, 164 p. ROUSSEAU, J. (1758). Carta a d’Alembert. Campinas: EdUnicamp, 1993, 192 p.

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REFLEXÕES

Bem Como Ratos de Hamelin, Marginais de Camarão. Leandro Augusto e Silva Miranda Cavalcante

Possui graduação em Educaçao Artistica pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2006). Especialização em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Universidade Vale do Acaraú - Ceará (2010). É mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, tendo sua pesquisa voltada para a investigação dos processos de direção ou condução cênica, construídos na prática, por alunos. Atualmente é professor substituto de Teatro do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), professor substituto de História da Arte na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor efetivo da rede municipal de ensino de Natal - RN. Já atuou como violonista (orquestra de violão), Coordenador Cultural (Aliança Francesa), editor de áudio, bailarino clássico e contemporâneo (Gira Dança, Roda Viva, Gaia, Grupo de Dança da UFRN), ator, coreógrafo e diretor. Tem interesse por pesquisas que envolvam processos criativos, erro como construção cognitiva, literatura como mote criativo, integrações de áreas artísticas (música e artes cênicas), conduções de processos, pedagogia musical em cena sob o olhar poético do diretor.

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RESUMO:

O presente artigo tem como objetivo caracterizar o perfil de diretores cênicos na fase da adolescência, que foram participantes de uma pesquisa em Artes Cênicas ligando este perfil aos seus processos criativos. Investiga dessa forma, a influência do teatro em suas vidas sociais, e na construção da identidade cultural destes sujeitos, isto a partir de uma analogia metafórica da história “O Flautista de Hamelin”, sendo esta, base de investigação sobre os grupos sociais humanos, focados nos personagens e suas ações trágicas. Assim como Franz Kafka, em seu livro “A Metamorfose”, também, um animal peçonhento é utilizado como representação do ser humano para revelar sensações de angústia social, nesse caso: O rato. PALAVRAS-CHAVE:

Teatro – Relações Interpessoais – Afetividade – Aprendizagem.

ABSTRACT:

This paper aims to characterize the profile of directors scenic in adolescence, who were participating in a research Performing Arts this profile linking to their creative processes. Investigates this way, the influence of the theater in their social lives, and the construction of cultural identity of these subjects, ie from a metaphorical analogy of the story “The Pied Piper”, which is, based on research on human social groups, focused on the characters and their tragic actions. Like Franz Kafka, in his book “The Metamorphosis” is also a venomous animal is used as a representation of the human being to reveal feelings of social distress, in this case: The mouse. KEYWORDS:

Theater – Interpersonal Relationships – Warmth – Learning.

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Antes de adentrarmos no espaço cênico desse artigo é preciso compreender a escolha da história que embasa nossa análise. Em síntese, a história medieval do Flautista de Hamelin tem um enredo muito simples, “conta sobre uma cidade infestada de ratos que é salva por um Flautista misterioso. Este, magoado com a população por não lhe pagarem o preço de ‘eliminar’ os ratos, hipnotiza todas as crianças da cidade com uma melodia, desaparecendo com elas para sempre.” Há de se colocar também, que existem inúmeras versões tanto de desfechos, quanto de motivos, da história básica supracitada, mas a história que amparará este artigo será a versão do livro: Os mais belos contos do mundo, inspirado em Robert Browning, 1994. A história do flautista originada como lenda alemã, tem um enredo dramático datado do século XIII e nos traz elementos extremamente fortes de releitura do ser humano para a sociedade periférica do século XXI. Temos personagens, ou grupos de personagens, que simbolizam valores de conduta social expressos por suas angústias em constante desequilíbrio, exemplificados pela punição que sofrem no final da história. Isso é relevante para o objeto do artigo, já que coincide com as realidades vivenciadas por jovens residentes de Felipe Camarão, bairro periférico de Natal/RN, quando a estes é apresentada a oportunidade de serem “outros” por meio de personagens. Sem entrar ainda, em análise profunda

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do artigo, podemos incitar o leitor a ter um olhar mais criterioso sobre a história do flautista, donde algumas distorções podem ser verificadas ao tentarmos estabelecer um padrão do senso comum em relação ao teatro. Eis que temos um protagonista que é herói e vilão: o flautista, que cobra um valor para retirar os ratos da cidade e logo após desaparece com as crianças por não ter sido pago. Não obstante o flautista ser o protagonista é em cima dos ratos que toda a trama é desenvolvida, tendo em vista que, se não houvesse ratos, não teríamos pessoas desesperadas que, portanto não contratariam o flautista, e este não sendo pago pela eliminação dos ratos, não puniria as crianças. Esse olhar deve ser assumido pelo leitor ao imbricar por essa realidade periférica e marginalizada que comparativamente agrega o cenário do bairro de Felipe Camarão com a da cidade de Hamelin. Desta forma, o artigo discorrerá fazendo paralelos dos personagens do conto com a realidade dos alunos residentes no bairro de Felipe Camarão, amparando a pesquisa na importância da relação pedagógica do teatro com o processo de identidade cultural e socialização dos mesmos. Estes pontos, ou temas de análise estarão no texto destacados em negrito para que o leitor se referencie durante a escrita. A necessidade de dividir alguns temas em tópicos não neutraliza as interconexões existentes entre os assuntos, sendo esta uma escolha de


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caráter norteador para o leitor que necessitar de atos abstracionais durante a leitura do artigo. Para tanto, a figura do rato no conto, passa a explicar as semelhanças do papel desempenhado por estes na história do flautista, com jovens (adolescentes) na sociedade atual, ainda em processo de afirmação das suas cadeias de convivência, propondo assim, uma analogia do texto original. Sendo o adolescente objeto humano da pesquisa, fazemos uma símile deste com o personagem rato, atentando para a etimologia de “adolescer”, e do comportamento social ilustrado por palavras como: incontroláveis, praga, aborrecer, ficando à interpretação do leitor compreender as definições de “adoecer” ou “mudar” associado a estes personagens. Visto que, o cenário estabelecido para o artigo é o periférico, determinamos o local a que estão submetidos ratos e seres humanos, promovendo certo ar de crítica à sociedade que tem uma visão pejorativa quanto aos ratos/jovens, vendo-os como peçonhentos. Proponho ainda, a personificação do flautista como algum condutor de projetos ligados à área de teatro, ou até, o próprio teatro pedagógico como algo que estimula outros a se moverem, caracterizado pelo conto como experimentação dos alunos na escola. Por fim, destaco algumas considerações sobre a base deste artigo pautada num trabalho de escola pública referindo-me a construção de metodologias

singulares por parte dos adolescentes que participaram do projeto. De antemão vale dizer que foi um projeto com vinte turmas de nono ano (2009-2012) tendo a frente das montagens cênicas alunos-diretores de suas próprias turmas que dividiam o mesmo cargo (dois diretores por turma).

RATOSNEMOH Homens e ratos, ou vice versa, sempre tiveram uma relação estreita, e consequentes atos de perturbação praguejada. Estavam lá quando a peste negra assolou a Idade Média na Europa e hoje na atualidade servem aos homens como cobaias para experimentações científicas. Essa convivência paralela aflorou alguns apelidos pejorativos aproximando ainda mais esses dois seres (humano e rato) no tangente ao reconhecimento de algumas características físicas e/ou morais. Todavia, o pretendido nesse tópico é trazer a peçonha contida no leitor à tona, ao verificar que estas características são tão verdadeiras, sendo pertinente perguntar: O quanto ratos somos ou fomos? Para tanto, resgatemos a ferramenta literária do Flautista de Hamelin tentando creditar um outro olhar para os ratos da história, bem como imputar outra interpretação a eles quanto ao seu humanismo. O que se sugere de novo ao leitor é a atribuição do rato como elemento principal de cena a ser esmiuçada. Este toma

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importância ao torna-se centro das decisões por outras personagens, e muito mais além, ser – em âmbito metafórico – um humano em fase de adolescência marginalizada. Parece deveras exagerado dar tal significação, porém, antes deste artigo, outro nome faz uso de alegoria para simbolizar os augúrios sociais, Kafka traveste seu protagonista no livro da Metamorfose, em um grande inseto, para que o leitor tenha inúmeras sensações a respeito das angústias de sua personagem, bem como sinta a ojeriza que é típica do humano ao se deparar com animais peçonhentos. Da mesma forma que o inseto kafkiano representa conflitos de ordem social (grupo social primário1), o rato no conto de Hamelin é uma figura que causa horror e desespero quando não submetido ao controle espacial imposto aos ratos, pela sociedade. Todavia, o que se apresenta inicialmente quanto ao convívio de seres humanos e ratos em uma das traduções do Flautista de Hamelin, revela a “participação” social destes, não mais encarados como sendo de natureza animal e sim social: Os ratos desde sempre lá tinham estado e sempre lá haviam de estar. Enchiam as caves, os esgotos e os subterrâneos. Mas, como tinham o bom gosto de se manterem escondidos, não se dava pela sua pre-

1  Voltado para a inserção do indivíduo em seu primeiro grupo social que é a família. Baseado em GALLIANO no livro Introdução à sociologia. São Paulo: Harper & Row do Brasil, 1981.

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sença. E que diriam vocês se, de repente, os ratos – ratos grandes, ratos de esgoto e ratos do campo, ratos cinzentos e ratos de água, em suma, todos os ratos possíveis e imaginários – se fartassem de estar escondidos e viessem, esfomeados, ao ataque? (BROWNING, 1994, p.76)

Quando se fala “desde sempre os ratos estavam lá e sempre haveriam de estar” entendemos que além de sua existência longínqua, seu papel de conformidade pela sociedade já lhe era garantido como se fosse um ser dentro da própria sociedade, mas ao fazerem uma escolha de se manterem escondidos têm a longevidade prometida pela não percepção de sua presença. A atitude (escolha) dos “ratos” de se manterem em não destaque, e logo após, o de “se fartarem de estar escondidos” são atitudes racionais, advindas de uma consciência na condição humana, mais ainda, de adolescentes prontos para questionarem seus ideais e que agora não se submetem mais apenas a um papel submisso de seres entregues às sobras sociais e sim a decisões de conquista por seus espaços nessa sociedade. Comparativamente com as mudanças nos adolescentes, fala Aberastury: (...) surge por um jogo de defesas que o mesmo encontra para lidar com a invasão súbita incontrolável de um novo esquema corporal que lhe modifica a sua posição frente ao mundo externo e o obriga a procurar novas pautas de convivência. O que aprendeu na sua relação com a família e adaptação social como criança, não


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lhe serve mais. Isto faz com que o mesmo tenha que significar o novo, o que acarreta toda uma mudança em sua personalidade. (1981, p.89)

Essa nova posição frente ao mundo externo traz consequências violentas não apenas na esfera interpessoal do adolescente, como também na sua capacidade de relacionar-se socialmente, tendo em vista as maneiras ríspidas e agressivas que muitos passam a direcionar-se ao mundo adulto, ao qual será pertencente. Sobre isso comenta Aberastury: Só quando a sua maturidade biológica está acompanhada por uma maturidade afetiva e intelectual, que lhe possibilite a entrada no mundo do adulto, estará munido de um sistema de valores, de uma ideologia que confronta com a de seu meio e onde a rejeição a determinadas situações cumpre-se numa crítica construtiva. Confronta suas teorias políticas e sociais e se posiciona, defendendo um ideal. Sua idéia de reforma de mundo se traduz em ação. Tem uma resposta às dificuldades e desordens da vida. Adquire teorias estéticas e éticas. (1981, p. 15)

Quando passamos para o âmbito roedor temos seres que querem tomar um lugar na sociedade se colocando à força por meio de atitudes que contrariam normas e regras de convívio coletivo. A escola, por exemplo, recepciona atitudes de pichação, brigas violentas, assédios sexuais, palavras de baixo calão, depredação do espaço público e demais desrespeitos ao outro. Logicamente

tem-se da sociedade limitada uma ojeriza quando fazemos uma transposição dos ratos aos moradores de bairros periféricos, transportando as atitudes preconceituosas para as famosas classes sociais. Evidentemente, esse transporte feito pelas classes sociais privilegiadas de uma maneira oral, após se depararem com a invasão marginal às localidades elitistas provocando terror, ou na pior das hipóteses, o desdém. Isso nos faz ter a diligência de tecer comparações dos ratos com adolescentes participantes de peças teatrais em uma escola periférica de Natal. Uma visão classista da elite sobre “esses” moradores contrários a regras pode ser destacada na história: Os ratos encheram--se de ousadia, saíram dos seus escuros esconderijos e invadiram tudo. Assaltavam os cães e matavam os gatos, entravam nos berços e mordiam as crianças, comiam o queijo dos caldeirões onde estava o coalho, lambiam a sopa nas conchas das cozinhas, abriam os barris dos arenques salgados e faziam ninhos nos chapéus. A cidade fora invadida por um estranho ruído que cobria qualquer outro som. As paredes das casas vibravam desde os alicerces e em toda a sua área tremiam. (...) Um roçar, um espernear, um ranger contínuo que fazia dores de cabeça. (BROWNING, 1994, p.76)

Acima, o conto deixa claro o intuito de brincar com o leitor quando joga descrições das atitudes dos ratos, quase em tom de ameaça, tentando extrair as sensações

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do terror falado antes, nisso acaba por revelar um possível discurso coloquial da alta classe que tende a enxergar o menino da periferia como ousado, quando a estas pessoas se dirige ameaçando a segurança que lhes é garantida. Frases como: “esse menino é uma praga! Que ousadia desse menino! Só pode ser um aborrecente!” Ilustram muito bem a vontade de livrar-se destas pessoas, ou no mínimo dessas dores de cabeça. Assim como os ratos ousados de Hamelin, Freire (1987), no tocante aos oprimidos, expõe dizeres sobre o processo opressor, buscando nas atitudes uma realidade libertadora: (...) a pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá, dois momentos distintos: O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação. O segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia em processo permanente de libertação. (FREIRE, 1987, p. 40)

É nessa realidade “fictícia” que qualquer profissional da área de teatro poderá trabalhar, contudo analisar as causas de tais atitudes, entendendo que esse processo de amadurecimento faz parte do crescimento humano, é objeto de qualquer área que lide com seres humanos. Quando, então o teatro se propõe a trabalhar em situação tão adversa ao construto coletivo, deve saber, em primeiro lugar, que encarar essa reali-

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dade não é algo pontual nem específico, e sim a realidade de uma grande parcela social desfavorecida economicamente. Deve ter em conta o próprio processo de mudança do adolescente, em termos biológicos, psicológicos e sociais, direcionando-os através de ferramentas que adentrem em seu contexto, aproximando a criatividade de sua estética. Nesta perspectiva o teatro pode instrumentalizar sua metodologia com a forma expressiva e participativa, por exemplo, do Teatro do Oprimido – mesmo não sendo essa utilizada nesta pesquisa. Este é uma expressão artística que gera possibilidades de identificação das realidades permitindo ao grupo construir novos sentidos. Um processo reflexivo coletivo de um sujeito participante articulando uma visão crítica diante da realidade posta. O Teatro do Oprimido é frequentemente apontado como uma metodologia ou ferramenta para o desenvolvimento participativo, o qual oferece uma maneira das pessoas encontrarem suas próprias soluções, através de ação direta e da análise de reações na vida real (...) A comunicação alcança um plano horizontal (...) substituindo o desenvolvimento por inteiro, com ações de empoderamento autônomas (Galvão&McCarthy, 2001).

Isso, por sua vez, produz novos discursos e promove uma saúde integral do indivíduo. A saúde, não como um conceito apenas da ausência de doença, mas sim, um fenômeno coletivo constru-


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ído de acordo com o discurso social de uma determinada época que promova a integração de indivíduos. Segundo Spink (2003), saúde não é apenas ausência de doença, mas sim, um fenômeno coletivo construído de acordo com o discurso social de uma determinada época que promova a integração de indivíduos. Ou seja, deve ser um objetivo do educador na área de teatro fomentar nesse corpo adolescente a alto-reflexão refutando as condições de seu entorno e de como pode agir de maneira mais crítica e ao mesmo tempo sensível. Integrar-se socialmente, em qualquer ambiente, nasce da aceitação emocional do outro, onde respeito e acolhimento se tornam ingredientes essenciais para manutenção saudável de um grupo. Fala-nos Machado: Do mesmo modo que o corpo, as emoções que sentimos necessitam ser ajustadas e flexíveis. Elas devem ser exercitadas para não corrermos o risco de perder a capacidade de nos exprimirmos sensitivamente. Nossas emoções e sentimentos são uma parte vital de nossa capacidade de construir relações e se não exercitarmos o controle desse aspecto iremos, provavelmente, estabelecendo maus relacionamentos ou rompendo aqueles que poderiam ser valorizados. (MACHADO, 2001, p.28)

Assim, o entrosamento entre os indivíduos é de suma importância para que se possa viver em harmonia focalizando a constituição do eu, a compreensão do

indivíduo com suas diferenças e qualidades, para ter condições de vida nos grupos. Conforme Patto (1997, p. 319), “a educação para o ‘mundo humano’ se dá num processo de interação constante, em que nos vemos através dos outros, e em que vemos os outros através de nós mesmos”. Com isso, quem seriam na realidade estes ratos que me proponho a analisar? Que identidades possuem? O que têm a ver com a pesquisa em Felipe Camarão? Onde está o aspecto metafórico referenciado anteriormente? Posso enquadrar na figura de ratos sociais, os adolescentes residentes no bairro de Felipe Camarão, não apenas por terem uma condição sócio-econômica desfavorecida, mas por estes estarem num submundo periférico nos quais muitos ainda têm a necessidade de se enclausurarem em estigmas de sujos, ignorantes, violentos, dentre outros, mas que se cansaram um pouco desses dizeres e passaram a ser ousados para tomar outro lugar na sociedade. E é claro que estas imagens estigmatizadoras são geradas por algo constituído na sociedade divulgando uma realidade ficcional identitária dos sujeitos de uma comunidade, a que reconhecemos como periferia.

PERIFERIA – PERIFEIA – PERIGOFERIA Periferia ou ainda, subúrbio diz respeito às localidades que são sub cidades, que

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estão nos perímetros da parte principal da cidade, basta isso para caracterizar uma atitude de preconceito da sociedade central para com essas “sub cidades”. Claro que toda ação gera uma reação, sendo as periferias mais violentas, e subdesenvolvidas em relação aos bairros centrais, por estes serem tratados com indiferença, não apenas pelo poder público, como principalmente pela sociedade geral. Na definição de Freire (1996), a escola se torna um espaço de múltiplas sensações e razões de ser, pois abriga não apenas espaço físico de salas ou de objetos inanimados, como também seres humanos que se congraçam em uma irmandade benéfica ao estudo e principalmente ao ser social. E exatamente por essas múltiplas sensações e razões de ser que nos fala Freire, temos na periferia os mesmos pressupostos de convívio social que se diferenciam principalmente dos bairros centrais. Por isso, o título nos coloca reflexões: A periferia é feia? A periferia é perigosa? Ou a periferia é “enfeiada” e ferida? Estas imagens identitárias estão sujeitas a alguns paradigmas sociais que muitas vezes são construídos intencionalmente para promover as desigualdades na sociedade brasileira. Certamente, muitas imagens são conviventes em Felipe Camarão e tecem identidades heterogêneas para o bairro, ou ainda, para as pessoas que residem neste bairro, sendo algumas destas imagens construídas por representações de realidades particulares, resultado de notícias amplamente divulgadas pelos recur-

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sos da mídia jornalística, ou reproduções orais e/ou instrumentais (uso de recursos tecnológicos) detidos pela comunidade. A identidade é um conceito discutido por Stuart Hall que define com base em concepções diferenciadas a partir das características do sujeito vivente em cada época histórica – não como tempo e sim como contexto – sendo o primeiro o sujeito do Iluminismo, “[...] um indivíduo centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo centro consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia [...]” (HALL, 2006, p.10-11). O segundo seria o sujeito sociológico refletindo: [...] a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas importantes para ele”, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos — a cultura — dos mundos que ele/ela habitava [...] a identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem. (ibid., p.11, grifos do autor)

Por fim, o sujeito pós-moderno (rato e adolescente), que me interessa muito mais, por estar e ser ligado à pesquisa. Este sujeito não é mais unificado e estável como o sujeito iluminista, e sim “fraturado”, frag-


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mentado, fracionado, fractal, uma junção de variadas identidades sócio-culturais de estruturas que não mais se sustentam no tempo. Onde a identidade permanente torna-se uma “[...] ‘celebração móvel’ formada transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, p. 13, 2006). O autor pensa ainda, num sujeito que se permite ter identidades vastas, em instantes diversos, identidades contraditórias na multiplicidade representativa da cultura. Assim, ao percorrer este local “periférico” apresentado por notícias de jornais ou blogs, vinculadas nas páginas da internet é possível estabelecer parâmetros em variadas situações: econômicas, culturais e sociais em geografias parecidas. As imagens revelam um espaço marcado pelo abandono político, onde os sujeitos são obrigados a sentirem os odores desagradáveis deixados pelos lixos acumulados, e manterem a visão longe dessa realidade para poderem continuar morando no bairro, igualmente aos ratos de Hamelin, e construindo uma cultura periférica que represente uma ficção real de sua comunidade. Entendo esta designação de cultura periférica segundo Sousa: [...] o conceito de cultura periférica e marginalização cultural como todo processo de produção e consumo de produtos culturais realizados por indivíduos localizados geográfica, social e economicamente à margem da sociedade, ou seja, àqueles cujo acesso aos instrumentos formais de produção cul-

tural foram negados, e lançando mão de seus próprios instrumentos, produziram sua própria cultura. (SOUSA, 2012, p.44)

Nesse ponto, justifico o uso do termo “cultura periférica” para caracterizar os residentes do bairro de Felipe Camarão, sofrendo com a identidade de serem residentes de um bairro que contém apenas a violência. Temos então, uma rede de imagens que circulam na cidade de Natal e retroalimentam as mesmas imagens de Felipe Camarão. Quem faz circular estas imagens de ratoeira? Tendo em vista que as mídias são veículos, meios materiais onde as linguagens ganham corpo e transitam, diz Santaella sobre os tipos de mensagem e a circulação que molda a sensibilidade: [...] não devemos cair no equívoco de julgar que as transformações culturais são devidas apenas ao advento de novas tecnologias e novos meios de comunicação e cultura. São, isto sim, os tipos de signos que circulam nesses meios, os tipos de mensagens e processos de comunicação que neles se engendram os verdadeiros responsáveis não só por moldar o pensamento e a sensibilidade dos seres humanos, mas também por propiciar o surgimento de novos ambientes socioculturais. (SANTAELLA, 2003, p.25)

Desta maneira os signos contidos nas redes televisivas, com notícias impactantes dão closes aos mortos ensangüentados, assaltos e crimes na hora da refeição de maneira espetaculosa, o que identifica

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o espaço-tempo da comunidade como sendo único. Não que estes crimes não ocorram, mas a ênfase dada para estes é tão grande que se acaba por excluir notícias políticas, culturais e artísticas concomitantes as da criminalidade. Sobre a divulgação das identidades no contemporâneo comenta Kellner: É assim que a propaganda, a moda, o consumo, a televisão e a cultura da mídia estão constante mente desestabilizando identidades e contribuindo para produzir outras mais instáveis, fluídas, mutáveis e variáveis no cenário contemporâneo. No entanto, também vemos em funcionamento os implacáveis processos de mercadorização. A segmentação do mercado em diversas campanhas e apelos publicitários reproduz e intensifica a fragmentação, desestabilizando as identidades às quais os novos produtos e as novas identificações estão tentando devolver estabilidade. (2001, p.239)

Nesse viés, as imagens que são projetadas por todos esses veículos para a sociedade (parte externa) e para a comunidade (parte interna) geram identidades factíveis de serem falsas premissas (ficções) sobre o local, exatamente por apresentarem e representarem apenas uma lupa sócio-cultural da região, mas geradora de uma “crença” na imutabilidade comportamental do bairro. Para Boal (1980) “... o teatro pode ser uma arma de libertação, de transformação social e educativa”. “... o cidadão produz teatro para entender melhor o seu passado, atuar no presente e inventar o futuro” (Boal, 1996).

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ADOLESCER – ADOECER – A DOR É SER De maneira objetiva, adolescência é caracterizada como uma fase humana de transição da infância para a idade adulta, donde alterações em diversos níveis – físico, mental e social – são acentuadas. Isso representa para o jovem um processo de afastamento de formas de comportamento e privilégios vivenciados na infância e aproximação dos deveres e papéis sociais que deverá assumir como adulto. A dor de se tornar adulto. Para Ferraz: A adolescência é um momento importante do processo evolutivo, com transformações físicas, mentais e morais de ritmo acelerado, a puberdade traz ao indivíduo uma série de apreensões, de inquietações e de estranhezas, a par com uma sede de emoções novas e de inusitado entusiasmo de viver. [...] No processo evolutivo de crescimento e desenvolvimento o ser humano passa por diferentes períodos de ajustamento e de integração progressiva, um complexo mecanismo de adaptação, que visa a preencher as necessidades vitais. O êxito adaptativo depende essencialmente de fatores inatos, mas necessita o homem de assistência e amparo, de proteção e orientação educativa para a sua sobrevivência. (FERRAZ, 1965, p. 5-6)

Da mesma forma, o rato – que tenta sobreviver num mundo sem assistência – passa a revelar a intenção de provocar um ajustamento forçado, após se


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dar conta das estranhezas, das inquietações que fora acometido. A sede não é apenas por emoções novas, quando a ele chega o mínimo de atenção (o teatro), mas ter o pouco que possibilite o desenvolvimento humano, uma adaptação às necessidades vitais. A palavra ‘adolescência’ tem sua origem etimológica no Latim “ad” (‘para’) + “olescere” (‘crescer’); portanto ‘adolescência’ significaria, strictu sensu, ‘crescer para’. Pensar na etimologia desta palavra nos remete à idéia de desenvolvimento, de preparação para o que está por vir, algo já estabelecido mais à frente; preparação esta para que a pessoa se enquadre neste “à frente” que está colocado (Pereira & Pinto, 2003). É como se a adolescência fosse uma “fase” que tem que ser transposta para alcançar aquilo que é ideal. Como isto foi idealizado? É uma questão a ser discutida como desafio de experimentar um teatro que se aproxime da realidade deste público. Em primeira instância, é preciso entender que cada adolescente é um ser social, e a partir disso deve-se propor um teatro do autoconhecimento em que as pessoas entendam seus sentimentos e tenham consciência de suas limitações. Assim, a aprendizagem não pode ser vista como um acúmulo de técnicas e procedimentos que de nada têm significância com a pessoa interna. Muito mais importante que os conteúdos, por exemplo, é o ambiente que possibilita o desenvolvimento do pensamento de

um determinado conceito. (FERNANDEZ, 2001; GALVÃO, 1995). O teatro funciona como um ponto de partida para desenvolver as relações interpessoais, onde a consciência pessoal do sujeito será consequência da mediação do grupo. A emoção vivenciada na construção de uma peça teatral nutre-se do efeito que causa no outro, e exatamente pelo seu poder de contágio consegue desenvolver relações inter-individuais nas quais se contorna a personalidade de cada um. Por meio de jogos teatrais, ensaios e construções de uma peça, as pessoas realizam simultaneamente os mesmos gestos e atitudes, entregam-se ao mesmo objetivo, e essa vivência de um único movimento rítmico, estabelece uma comunhão de sensibilidade, uma sintonia afetiva que mergulha todos na mesma emoção. (KIGNEL, 2005). Adolescentes que participam de um processo teatral mudam uma porção de vezes, não por se transformarem em personagens, mas por apreenderem conteúdos do aspecto relacional vivendo em um mundo caótico e cheio de contradições. Um eterno se descobrir, por meio de jogos que permeiem seu universo. As “doenças” do crescimento se fazem presentes, e estes não têm mais como se olharem no espelho de maneira dispersa. O espelho revela não apenas quem eram, quem são, mas principalmente quem poderão vir a ser num futuro muito próximo. De acordo com

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Aberastury (1981, p. 90) “Não sou uma criança, eu mesmo perdi a minha condição de criança; meus pais são os pais de um adulto e eu tenho que me comportar como tal, como o meu corpo, a minha mente e a sociedade me exigem”. Higgins (1987) descreve três tipos de “si mesmo” - o real, o ideal e como deveria ser (representado pelas obrigações apresentadas pelo ambiente social). O ambiente sociável tem uma imagem de como o indivíduo é e de como ele deveria ser (expectativas). O aumento da complexidade na compreensão de si mesmo expõe o adolescente assim a diferentes tipos de discrepância. Quem sou? Por que sou? Num mundo em que existe a necessidade de esconderem-se dentro de si, estas perguntas passam a girar na mente dos adolescentes, reestruturando o questionamento “do que são” para “como estão”. Existe nesse contexto, uma identificação de características anteriores ao processo da peça e novas aprendizagens após o convívio, tanto consigo, quanto com os outros. Sobre isso fala Aberastury in Maneschy & Iketani: [...] este afastamento que o adolescente faz do mundo externo para refugiar-se no mundo interno, é para se sentir seguro, porque em todo o crescimento existe um “impulso para o desconhecido e um temor ao desconhecido”. Esse refúgio ao mundo interno deve-se não somente ao fato de que lhe custe fazer o luto da infância, mas que a própria infância é a que ele conhece.

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Seu papel ao ambiente imediato, como a escola, seu grupo de companheiros, seu papel diante da adaptação social de criança ao qual ele já estava acostumado (ABERASTURY, in MANESCHY & IKETANI, 2002, p.09.).

Temos então, que as diferenças individuais não são apenas corporais ou intelectuais, as pessoas são únicas, e no grupo essas diferenças devem ser respeitadas, já que emoções e sentimentos reprimidos acabam refletindo no corpo, podendo gerar conseqüências desastrosas em relação à auto-estima. Conforme Melendo (1998, p. 19), “a relação interpessoal significa saber escutar. A escuta é um ato próprio e exclusivo do ser humano é, um ato consciente, voluntário e livre. Saber escutar é ter uma atitude de respeito, acolhida e aceitação do outro”. Em função disso, fatores internos e externos ao indivíduo estão conectados interagindo com seus contextos assim como na forma que estes lidam com as realidades que vivenciam. Agora não podemos mais falar de um rato, mas em ratos vivendo num grupo específico. Os adolescentes têm esse mesmo comportamento social e mesmo o teatro se constituindo com um foco de evolução grupal, coexistem os “grupinhos” de interesses particulares. Ou seja, cada um de olho no melhor pedaço de queijo. Eles são ratos a espera de uma oportunidade que lhes faça correr o risco de saírem de seus esconderijos,


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e não estão errados já que para eles o cheiro pode até ser de gorgonzola, mas o queijo que se mostra na maioria das vezes é o velho mussarela.

FLAUTISTA – AUTISTA – ARTISTA Muitas vezes o artista por ter uma visão tão intrínseca sobre o mundo é enxergado como autista, e isso por si só já opera de maneira prejudicial na construção das relações sociais, considerando que essa visão não é divulgada positivamente para o senso comum. Claramente, as obras de um artista – resultados da ação reflexiva – podem constituir esse papel de tradutor desse mundo solo para o mundo coletivo, porém se faz necessário sempre um querer se envolver nesse universo tão abstrato, que são as artes. Nesse ponto, quem seria o flautista ou os flautistas? Devemos pensar em alternativas variáveis. Como leitores, é preciso considerar cada jovem envolvido num projeto de arte como flautistas de suas próprias vidas, ou então, uma ação sensível de um professor que se coloca a disposição de trabalhar em cima desta realidade. Podemos, da mesma forma, aceitar o próprio teatro como um flautista viajante em busca de olhos, ouvidos, de corpos que se permitam vivenciar novas experiências na arte. Segundo Matos: Viver uma experiência com a arte traz uma dimensão repleta de significados.

Vida, experiência e arte são palavras carregadas de sentidos. Pensar a educação a partir da arte como experiência pode nos revelar outra forma de compreender o conhecimento, assim como o estabelecimento de uma nova práxis pedagógica, ao deslocar o olhar da instituição e centrá-los nos sujeitos que vivem uma experiência educativa, pois a educação é um processo social amplo, que não se resume aos cotidianos institucionais de aprendizagem. (MATOS, 2005, p. 32)

A presença da arte em processos educativos trabalha com a ideia de projeto como possibilidades, com um sentido aberto, por oposição ao sentido já dado no sistema institucional, e se apresenta como um sentido de grupo. Isso posto é preciso destacar a figura do professor que utiliza o teatro como mediador das reflexões “personais” dos sujeitos no intuito de apresentar outras realidades. Um professor que promove a experimentação de sentir o mundo ao redor e não apenas de dar sua aula manifesta em conteúdos preconcebidos. Sobre experiência nos fala Larossa: A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. [...] Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara (LAROSSA, 2002, p.21)

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Mais abaixo o depoimento de alguns dos alunos-diretores ao resgatarem a experiência do fazer teatral em suas vidas: Eu fiquei muito entusiasmado, porque foi a primeira vez que eu vi isso numa escola, eu achei bastante interessante porque mexeu com a minha estrutura e com certeza com a estrutura de todos os alunos que estavam na sala. [...] eu acho que a gente, queria viver aquilo, porque é uma experiência que nunca mais vamos ter. (Aluno-Diretor 16) Pra mim teatro é arte! É, uns personagens fazendo aquilo, é divertimento, é inovação pra cada pessoa, é bom, é divertido [...] pelo menos pela experiência que eu tive. [...] Eu não me envolvia muito com teatro, porque não tinha um professor, alguém pra dizer a gente como é à base do teatro. (Aluno-Diretor 10) [...] foi uma coisa inesquecível, uma experiência muito grata que eu tenho até hoje na minha vida e nunca vou esquecer. (Aluno-Diretor 13)

Por isso, as notas saídas do instrumento artístico do flautista promovem um envolvimento intenso de todos os personagens ao ponto desses esquecerem por um momento quem são, onde moram, e principalmente, como são tratados, uma experiência nova. Ratos e adolescentes se integram da tal maneira que não é mais possível desvincular suas realidades sociais.

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Erguendo a flauta, franziu os lábios, como fazem os músicos virtuosos. No seu olhar penetrante brilhava uma chama, ora esverdeada, ora azulada, da cor do fogo quando se lhe deita um punhado de sal. E, antes que o instrumento tivesse entoado três notas, ao longe começou a ouvir-se um murmúrio, como se um exército marchasse à grande distância. [...] Os ratos saíam! Ratos grandes, ratinhos minúsculos [...] ratos pomposos marchando compassadamente […] ratos jovens e vivos [...] endireitavam os bigodes e marchavam. E todos seguiam o flautista. O homem avançava de rua em rua sem se voltar para trás, absorto na sua música. E os ratos, atrás, correndo, dançando, arrastando-se uns aos outros. (BROWNING, 1994, p.82-83)

Assim, quando tentamos fazer uma relação direta do teatro com a educação, identificamos que ambas são encaradas com o mesmo objetivo, não apenas no aspecto social como também na exposição do sujeito frente aos colegas. Freire diz: “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém educa a si mesmo; os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987, p.78-79).

OUTRAS CONSIDERAÇÕES Durante os quatro anos de desenvolvimento deste projeto (2009-2012) em uma escola pública de Natal, foi possível perceber que estes adolescentes, mesmo desacreditados inicialmente, conseguiam não apenas estruturar uma peça de tea-


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tro como também desenvolver metodologias próprias, de acordo com seu perfil, daí a importância de termos o perfil de um grupo. Por isso, quando cada turma de quarenta alunos se dispunha a construir uma peça, sendo eles completos responsáveis pelas funções exercidas (direção, cenografia, figurino, sonoplastia, etc) sabia eu que teria de investir além das teorias teatrais. Elevava à auto estima passando de rato a ator – com a mesma quantidade de letras, alguns estigmas conectados – melhorando a visão deles sobre eles mesmos. Ao mesmo tempo era preciso encontrar neles formas próprias de referências estéticas e culturais que assegurassem uma construção cênica apropriada.

A mídia era importante, o cinema estava presente, a sexualidade acentuada, todos estes, pontos ligados ao perfil destes adolescentes. Como criar uma atmosfera favorável para conseguirem trabalhar seu contexto de maneira artística? Nesse ponto, opto por indicar filmes nacionais de comédia como mote criativo, e o que noto é um procedimento empírico de adaptação destas linguagens que têm especificidades. Os adolescentes no experimentar entendem noções sobre tempo, espaço, efeitos especiais, simbologia, jogo e passam a adequar a este processo. Os ratos encontram caminhos diversos e transformam atos em fatos que mudam suas vidas (Mestrado).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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REFLEXÕES

O Ator que Canta um Conto Mayra Montenegro de Souza

Mayra Montenegro de Souza é atriz, cantora e preparadora vocal, integrante do Grupo Arkhétypos de Teatro.

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RESUMO:

Este artigo traz um resumo de uma pesquisa de mestrado que se deu a partir de uma investigação sobre a fala teatral. Através de uma metodologia empírica – que analisou uma experiência prática de construção do espetáculo De Janelas e Luas – e de pesquisa bibliográfica, a atriz/pesquisadora investigou possibilidades de manipulação de parâmetros musicais como recursos no processo de criação da voz do ator. A atriz/pesquisadora procurou unir teoria e prática, movida pelo desejo de buscar uma expressão vocal em cena que se concretizasse como movimento vivo e transformador. A pesquisa realizada pela atriz/pesquisadora junto ao Arkhétypos Grupo de Teatro também é relatada como exemplo de uma busca por uma voz que se concretiza em cena com um desenho musical, como parte do corpo, com um conteúdo imagético e sensorial, e que toca o espectador. Verificando que a fala teatral está mais próxima do canto do que da fala cotidiana, ela concluiu que o ator pode compor música – assim como o faz um compositor de música – no processo de criação de suas partituras vocais. Por isso, constatou que é de fundamental importância um treinamento musical na formação do ator. PALAVRAS-CHAVE:

Voz, ator, parâmetros musicais, Arkhétypos Grupo de Teatro. ABSTRACT:

This paper brings a summary of a research that started with an investigation about the theatrical speaking. Through an empirical methodology – that analyzed a practical experience of creating the theater play De Janelas e Luas – and bibliographical research, the actress/researcher investigated ways to manipulate musical parameters as tools in the creation process of the actor’s voice. The actress/researcher attempted to connect theory and practice, moved by the desire to find a vocal expression in theater that unfolds as living and transforming movement. The research realized by the actress/researcher with Arkhétypos Group of Theater is also described as an example of a search for a voice that unfolds in scene with a musical design, as part of the body, with an imagetic and sensorial content, and that touches the audience. Considering that speaking in theater is closer to singing than everyday speech, she concluded that the actor may compose music – as a music composer does – in the elaborating process of building vocal scores. Therefore, she demonstrated that it is of fundamental importance a musical training in the development of the actor. KEYWORDS:

Voice, actor, musical parameters, Arkhétypos Group of Theater. 85


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O presente artigo trata de uma busca pela musicalidade da voz e do corpo do ator. A razão maior desta busca é minha própria formação e experiência com a música e o teatro. São alguns poucos, mas valiosos anos de paixão pelas duas artes e descobertas de como as duas podem ter estreita ligação, de como se conectam e se imbricam ao ponto de se tornarem dependentes uma da outra. Eu não sei como poderia fazer teatro sem o conhecimento de música que tenho. Isto porque entendo que o teatro pode ser regido pelas mesmas bases com que a música é feita. Cada cena, cada gesto, cada palavra precisa de pulsação, andamento, ritmo, de melodia, de dinâmicas de intensidade, de timbres diversos, harmonia, textura, dentre tantos parâmetros tão bem utilizados e sistematizados pela música. Por isso escolhi a voz e sua musicalidade como objeto de estudo em minha pesquisa de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN. A partir da minha prática, queria encontrar os princípios teóricos do que já fazia intuitivamente: compor música com cada fala e gesto em cena. Pretendia também, trazer uma pequena contribuição para o treinamento vocal do ator, sugerindo que a manipulação dos parâmetros musicais é uma ferramenta à disposição do ator para a construção de suas partituras físicas e vocais. Sem perder de vista que a fala teatral é um somatório de gestos, impulsos, silêncios e sonoridades, e que os diversos elementos do espetáculo, como a iluminação, a cenografia, figurino, etc., são também importantes meios de expressão no tea-

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tro, procurei focar a minha pesquisa na fala expressiva do ator, utilizando a música como base para compor, para trabalhar as diferentes entonações e nuances vocais. Por que utilizar parâmetros musicais no processo de criação da voz do ator? Inicialmente busquei encontrar se havia respaldo teórico para a minha intuição de que a fala pode ser compreendida como música. Descobri que sim, que a fala humana é musical por si só, que ela é formada da mesma matéria-prima com que a música é constituída. Em cena, essa musicalidade pode ser ampliada e planejada. Todo e qualquer som possui quatro parâmetros ou propriedades: altura, intensidade, duração e timbre. O som pode ser grave ou agudo, dependendo da sua altura; forte ou fraco, de acordo com a intensidade com que foi produzido; curto ou longo, dependendo de sua duração; e, dependendo de sua fonte sonora, pode ser identificado de formas diversas, em função do timbre. Os parâmetros do som são o que a natureza nos dá, são propriedades simplesmente físicas que, quando manipulados, podem se transformar em materiais ou matéria-prima para um compositor. Através de processos e técnicas específicas, o compositor dá forma a uma música, que geralmente é comunicada ou expressa através de instrumentos e/ou da voz em um código, uma notação. Falar é emitir sons variados, que possuem tais propriedades. Uma sequência de palavras, ou grupos de palavras, com diferentes tons cria uma entoação, um “canto” dessa sequência, que é chamada de entonação ou inflexão, a melodia da fala.


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O acento, o destaque ou ênfase dada a uma sílaba, palavra ou frase, decorre da energia utilizada para dizê-las, aumentando ou diminuindo a intensidade do som. A duração se refere ao “tempo de articulação de um som, sílaba ou enunciado, e tem uma importância fundamental no ritmo de cada língua” (MATEUS, 2004, p. 6). O timbre na fala é a identidade da voz. Cada pessoa tem um timbre particular, que depende da sua constituição física, das pregas vocais e das cavidades que fazem ressoar sua voz. No Dicionário de Termos Linguísticos (1992), a Prosódia é definida como o estudo da natureza e funcionamento das variações de tom, intensidade e duração na cadeia falada. E no Dictionary of Linguistics and Phonetics (1994), Prosódia se refere às variações de tom, intensidade, tempo e ritmo da fala. De certa forma, pode-se compreender, então, que a fala é formada do mesmo material básico com que é formada a música. Coadunam-se com este pensamento as ideias de Heloísa Valente (1999), que faz um paralelo entre música e verbo em seu livro Os Cantos da Voz: Entre o Ruído e o Silêncio. Ela afirma que se podem identificar características de diferentes línguas, sotaques e estados emotivos através da configuração dos parâmetros básicos da linguagem musical. Isto porque cada língua possui uma musicalidade própria, com estrutura melódica e rítmica própria, que pode ser percebida por qualquer pessoa. Em cada língua, há o “germe de uma música que expressa a alma do povo. É sintomático que, na anti-

guidade, poesia e música eram inseparáveis” (KIEFER apud VALENTE, p. 104). Nota-se, no entanto, que, de modo geral, os recursos musicais da voz são pouco utilizados na fala cotidiana, nela não há o uso intencional e planejado deles. Em seu livro Introdução à Poesia Oral, Paul Zumthor (2010) afirma que as qualidades materiais da voz são: “o tom, o timbre, o alcance, a altura, o registro...” (ZUMTHOR, 2010, p. 9). Mas, no uso comum da língua, apenas uma pequena parte dessas qualidades é utilizada. Ele diz que a voz precisa somente emitir sons audíveis, de acordo com as determinações linguísticas do que se quer expressar. Já no canto, Zumthor afirma que a voz tem total liberdade e não se submete à linguagem, mas, mesmo assim, “exalta sua potência [...], glorifica a palavra” (ZUMTHOR, 2010, p. 199). Em uma comunicação poética a voz se encontraria entre a fala e o canto: “O dito da poesia oral, assim marcado, se encontra em continuidade com o recitativo1, e este difere do canto somente pela amplitude” (Idem, p. 201). O teatro, para Zumthor, é uma comunicação poética, é “uma forma eminente e muito elaborada de arte oral. [...] um modelo absoluto de toda poesia oral” (Idem, p. 56 e 59). A partir de Zumthor, dentre outros autores, Sara Pereira Lopes desenvolve o con1 . O estilo recitativo foi uma das inovações atribuídas à Camerata florentina, no final do século XVI, no alvorecer da ópera. Foi bem desenvolvido no século XVII e permaneceu até mais tarde nas óperas da era clássica e da era romântica. Começou a ser menos utilizado por volta do século XIX. O compositor Richard Wagner o retirou quase que inteiramente de suas óperas.

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ceito de Vocalidade Poética em sua tese intitulada Diz Isso Cantando! A Vocalidade Poética e o Modelo Brasileiro (1997). Com características advindas da tradição oral, a vocalidade poética diz respeito a uma voz que se expressa na presença simultânea do intérprete e do espectador. A fala teatral, segundo Lopes, não é a fala cotidiana, comum. Para ela, “cantar é tão diferente de falar quanto o é o dizer teatral” (2007, p. 20). Para Lopes, a vocalidade poética (como também afirma Zumthor) distancia-se da fala cotidiana e aproxima-se do canto: Da fala ao canto há um processo de corporificação, as formas elementares do som se transformando na substância mesma da expressão. Ao longo desse percurso, a fala poética, dada suas intenções, dilui a fronteira entre os dois modos, aproximando-se do canto e diferindo dele apenas em amplitude. Em toda fala poética, pois, existe a pressuposição do canto (LOPES, 1997, p. 25, grifo meu).

Também com base na obra de Zumthor, dentre outros teóricos, Marlene Fortuna (2000) declara que a fala do ator é linguagem oral e está muito perto da música: “No universo das pausas, dos ritmos, da cor das palavras, da escansão silábica2, da entonação, dos sons, encontra-se a oralidade, que é também musicalidade” (p. 70). Fortuna utiliza em seu livro o termo Melopéia. Tal expressão surgiu com o 2 . Uma forma de divisão de versos dentro de uma poesia, a partir da sonoridade dos mesmos.

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filósofo Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C), que se referia aos poetas gregos da Antiguidade Clássica, quando declamavam suas poesias em praças públicas e ágoras3 . Ezra Pound (1885-1972) foi um dos teóricos modernos a resgatar o conceito de melopéia, referindo-se ao ato de criar relações emocionais através do som e do ritmo da fala. O conceito de Pound é o que mais se aproxima do que Fortuna propõe como melopéia. Para Fortuna, a melopéia acontece quando o ator chega ao momento definitivo de criação poética com a oralidade. É quando o ator consegue, com sua voz, expressar-se com uma “rica estratégia sinfônica”. O conceito de melopéia para Fortuna, entretanto, extrapola aquele formulado por Pound, pois a autora também compara a melopéia com a “dança primordial de Shiwa4 ”, referindo-se a um instante mágico e encantatório que o ator pode conseguir com sua voz: “Um fazer de sacralidade (o ator em melopéia) para um sentir em sacralidade (receptor do ator em melopéia), isto é, a platéia” (FORTUNA, 2000, p. 164, grifo da autora). Estudando as estéticas teatrais de grandes encenadores ocidentais do século XX, 3 . Nome que se dava às praças públicas na Grécia Antiga, onde ocorriam assembleias democráticas, eventos religiosos e relações de comércio. 4 . Shiwa representa a transformação. É um dos deuses da trindade do Hinduísmo, juntamente com Brahma (criador primordial) e Vishnu (conservador). Em sua dança primordial, Shiwa realiza a criação, destruição e renovação de tudo. Sua dança expressa também a conexão entre o céu e a terra, o tempo e a eternidade (YEHUDI, DAVIS, 1990).


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como Constantin Stanislavski (1863-1938), Vsevolod Meyerhold (1874-1940), Jerzy Grotowski (1933-1999), Peter Brook (1925-), Eugenio Barba (1936-) e Robert Wilson (1941-), vislumbrei a utilização da música e de parâmetros musicais como recursos fundamentais nos seus métodos de trabalho, tanto para a preparação do ator como nas encenações. E no que diz respeito à construção vocal do ator, encontrei também a utilização de recursos musicais. Para exemplificar, citarei dois destes encenadores. Stanislavski (1976) afirmou que “a fala é música”, que o texto de um papel é uma melodia, uma ópera ou sinfonia, e que falar em cena exige tanto treino e técnica como para cantar. “As palavras e o modo como são ditas aparecem muito mais no palco do que na vida comum” (p. 124), por isso Stanislavski diz que o ator precisa acrescentar um “intenso ornamento sonoro ao conteúdo vivo das palavras” (p. 96), e, assim, ele poderá ver as imagens que surgem da voz, da junção palavra e música. Para Meyerhold, o desenvolvimento de um ouvido musical, a sensibilidade à melodia e ao ritmo é o aspecto de maior importância na formação do ator. Com relação à palavra, a musicalidade assume papel fundamental (BONFITTO, 2002). Meyerhold cria uma metodologia chamada de Leitura Musical do Drama que, aplicada ao texto do ator, gera uma notação específica com marcações rítmicas, melódicas e expressivas. O texto é transformado em partitura e ordena musicalmente os ritmos da fala:

Da mesma forma que a partitura gestual do personagem, a partitura musical da linguagem deve ser construída de forma consciente baseada em leis objetivas. O ator deve aprender a dominar conscientemente a força expressiva da palavra. Cada frase, a sua própria melodia e o seu próprio timbre (Pesocinskij, [199-?], p. 9).

O texto não se transforma em canto, mas anula a interpretação naturalista das escolas tradicionais e leva o ator a observar mais o movimento e o gesto do que o conteúdo da palavra (FERNANDINO, 2008)5. Após toda a pesquisa bibliográfica, consegui definir melhor os objetivos de minha busca. Se ação vocal é a ação que a voz desenvolve em um espaço e um tempo, e para tanto, o ator deve se utilizar de recursos diversos para transmitir esta ou aquela expressão/emoção ao público, faz-se necessário, portanto, o saber dizer. É preciso “rechear” as palavras de todas as possibilidades e atrativos que as transformem em ação, gesto vivo e intenção clara. Luís Otávio Burnier afirma que: “A arte trabalha antes de mais nada com a percepção. Seu poder principal não está em o quê dizer, mas no como” (BURNIER, 1999, p. 10, grifo do autor). A exploração de parâmetros musicais é um excelente recurso para se chegar até o espectador, para sugerir-lhe imagens: 5 . Para um estudo mais completo acerca da utilização da música, ou elementos musicais na cena, no gesto, no corpo e na voz do ator, presentes nas propostas estéticas dos grandes teóricos, mestres e criadores do teatro do século XX, ler a dissertação de mestrado de Jussara Rodrigues Fernandino: Música e Cena: uma proposta de delineamento da musicalidade no teatro (UFMG, 2008).

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“Quando associada à palavra, a música tem um grande poder de sugerir imagens, de colorir e avivar as palavras” (RATNER, 1983, p. 2). O que se quer expressar pode ser conseguido através de um “desenho musical” da fala, manipulando os recursos de infinitas variações que são os parâmetros musicais. O ator precisa escolher os sons como um compositor de música, planejar cuidadosamente sua fala, podendo exaltar o significado da palavra ou modificá-lo, de acordo com sua enunciação. Mas como fazer para encontrar a música da palavra ou transformar as palavras em música? A pesquisa de mestrado intitulada O Ator que Canta um Conto foi apenas um caminho percorrido, uma experiência unindo teoria e prática. Não propus algo completamente novo, pois, há tempos, encenadores se utilizam da música ou de elementos do discurso musical em seu fazer teatral. Há tempos que os atores constroem partituras físicas e vocais, recorrendo a termos musicais no trabalho com o texto, e rabiscam seus textos anotando as inflexões, pausas, ênfases, ações, objetivos, subtextos, etc. Relatei uma forma, ou formas de manipular parâmetros musicais no processo de criação vocal do ator. Foi preciso então, definir os parâmetros da música que considerei como recursos fundamentais, que permearam e auxiliaram minha jornada de descobertas. Foram eles: melodia, dinâmicas de intensidade, andamento, ritmo e timbre. Busquei me apropriar desses parâmetros, levando-os para todo trabalho corporal e vocal em cena, com foco especial para o texto e possibilidades de como dizê-lo.

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Apesar de observar os diversos sistemas e linguagens musicais da música (erudita) contemporânea, escolhi utilizar como base em minha dissertação a teoria do Sistema Tonal, que permanece no Ocidente, nas músicas sacra, popular, folclórica e tradicional. Partindo de algumas aulas sobre composição, convenções encontradas em livros de teoria musical e, principalmente, de constatações particulares na experiência musical, uma espécie de pequeno sistema, ou algoritmo, foi criado para ser aplicado na manipulação dos parâmetros musicais nas partituras vocais do exercício cênico De Janelas e Luas6 . O mesmo serviu de referência inicial para justificar certas manipulações dos parâmetros, com o intuito de expressar/enfatizar emoções. Digo que serviu de referência inicial, pois, todas as convenções podem mudar de acordo com o contexto onde os procedimentos são inseridos. A seguir, trago um breve resumo dos parâmetros musicais escolhidos, e de como foram manipulados na construção das partituras físicas e vocais do exercício dramático, parte prática do mestrado. De Janelas e Luas 6. De Janelas e Luas foi transformado em espetáculo e integrado ao repertório do Arkhétypos Grupo de Teatro. O roteiro foi construído juntamente com a Profa. Ms. Eleonora Montenegro, que é responsável também pela direção. O Projeto De Janelas e Luas foi contemplado pelo Programa de Cultura Banco do Nordeste/BNDES – Edição de 2012, e circulou, de março a maio de 2013 pelo interior da Paraíba e do Rio Grande do Norte. O projeto consistia em uma apresentação do monólogo, seguido de um debate com o público, e uma oficina de Preparação Vocal para atores/arte-educadores de seis cidades, três da Paraíba (Bananeiras, Nova Palmeira e Itabaiana) e três do Rio Grande do Norte (Umarizal, Janduís e Assú).


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é um exercício de busca pela música da voz, para dar vida às palavras e tocar o espectador de forma intensa. Há um “pensamento musical” por trás de cada palavra, movimento e cena. “Vestindo” todo o corpo e voz com música, outras camadas foram colocadas por cima das palavras, preenchendo-as. 1. Melodia: Murray Schafer (1997) diz que a melodia é “como levar um som a passeio” (p. 81). É o movimento de subida e descida dos sons que cria a melodia musical. Como os gestos do ator ou bailarino expressam emoções/sensações no palco, assim também faz uma melodia. Busquei criar uma melodia para cada frase, indo além da entonação natural da fala cotidiana. Pois, “o que podemos expressar através de [...] nosso registro comum de cinco ou seis notas?” (STANISLAVSKI, 2001, p. 89). Durante o laboratório prático, percebi que, quando uma linha melódica vai subindo, pode sugerir um crescente de energia ou tensão; quando cai de forma contínua, pode sugerir relaxamento ou a sensação de resolução. Uma melodia que permanece mais ou menos no mesmo nível, com pouca variação de notas, pode sugerir constância e regularidade. Todas as convenções, contudo, podem mudar de acordo com o contexto que o ator/compositor criar. 2. Dinâmicas de Intensidade: A dinâmica está atrelada aos eventos musicais, ajudando, fortalecendo, reforçando a condução da música, muito em função da criação de tensão, resolução de tensão, expectativa, clímax, etc. Schafer

(1997) diz que um som forte é geralmente pensado como opressor enquanto um som fraco esvanece como uma neblina. Em tese, uma dinâmica muito forte causaria um impacto muito grande, enquanto uma dinâmica pianissima causaria o efeito de tranquilidade. Mas tudo depende do contexto. Segundo Moura (2011), o compositor pode transformar esse pianissimo, quase inaudível, no momento de maior tensão em uma música. As menores alterações na intensidade podem repercutir profundamente na comunicação de uma emoção na música e na fala. Uma nota, palavra, ou mesmo uma sílaba com maior intensidade no meio das outras faz com que se perceba o contexto inteiro de outra forma. Uma dinâmica suave foi mais utilizada em momentos de calmaria, mas também apareceu em momentos de delírio e loucura. Uma dinâmica crescente de piano para forte foi muitas vezes utilizada para criar tensão ou demonstrar euforia. O contraste abrupto de dinâmica, de forte para piano, foi quase sempre utilizado para gerar tensão, e a dinâmica decrescente, de forte para piano, de forma gradativa, para sugerir relaxamento. 3. Andamento e Ritmo: O tempo da música é criado, metrificado, dividido. É um tempo organizado no tempo, fazendo com que a música tenha o seu próprio tempo, o seu próprio sistema temporal. Dependendo da cultura, do lugar onde se esteja, a rítmica, o sistema rítmico é diferente. Moura (2011) chama o sistema rítmico ocidental de sistema divisivo. Esse

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sistema parte do princípio de unidades de durações longas que podem ser divididas. Na base de qualquer música tonal, há um pulso invisível no qual o tempo está dividido em partes iguais. A pulsação é uma articulação temporal simétrica, de pequenas durações medianas geralmente inaudíveis. Esse pulso pode ser mais rápido ou mais lento de acordo com outro elemento chamado andamento, que determina sua velocidade. O ritmo é o que está na superfície da música, na melodia, na harmonia. Ele governa a maneira como a música se organiza em durações maiores e menores sobre uma base temporal simétrica de pulsos e métrica. Para Leonard Bernstein (1966), apenas o desenho rítmico de uma música já é expressivo, “capaz até de demonstrar estados emocionais” (p. 90). Barba define o ator (ou dançarino) como aquele que sabe esculpir o tempo, assim como um compositor: “Concretamente: ele esculpe o tempo em ritmo, dilatando ou contraindo suas ações. A palavra ritmo vem do verbo grego rheo, significando correr, fluir. Literalmente, ritmo significa um meio particular de fluir” (BARBA, 1995, p. 211). Na construção do exercício cênico, busquei pulsação e ritmo para as palavras. O compasso ternário, principalmente, permeou várias cenas, ora escondido como um subtexto, “regendo” os movimentos e fala de uma das personagens, ora explícito em duas canções. Em geral, ritmos regulares e simples foram utilizados em momentos de estabilidade e relaxamento, e ritmos irregulares e complexos apareceram para criar tensão e expectativa.

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4. Timbre: O timbre em música diz respeito à escolha dos instrumentos e/ou das vozes. “O timbre traz a cor da individualidade à música. Sem ele, tudo é uniforme e invariavelmente cinza, como a palidez de um moribundo” (SCHAFER, 1997, p.76). Ernani Maletta (2005) conta em sua tese uma estratégia usada pelo diretor Paulo José, chamada de orquestração do texto, na qual o ator incorpora a sonoridade dos instrumentos musicais em sua fala. Paulo José propõe que o ator explore o timbre de algum instrumento que melhor se adapte ao timbre da personagem, ou às intenções de expressão do ator em determinada fala. Ele afirma que: A sonoridade da palavra depende do timbre, isto é, da aparência da emissão sonora. Os instrumentos musicais têm timbres diferenciados, timbres metálicos, cordas, madeiras, timbres percussivos, etc. Para a voz humana, podemos utilizar essas nomenclaturas e outras especificações ligadas à paralinguagem. Temos, portanto, a Voz de Flauta, Voz de Oboé, Voz de Fagote, Voz de Trombone, etc (JOSÉ apud MALETTA, 2005, p. 210).

Durante a construção do exercício, utilizei a estratégia de Paulo José e escolhi três instrumentos de corda para inspirar minha exploração pelos timbres das personagens. Construí um timbre mais grave para caracterizar a personagem Ismália, e associei a sua voz com o som do violoncelo. Um timbre em região mediana, mais próximo do meu, foi construído para a Narradora, associando-o ao som da viola. Um timbre mais agudo caracterizou a per-


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sonagem Maria das Quimeras, e o instrumento escolhido foi o violino. Músicas contendo tais instrumentos foram utilizadas na construção de cenas, de movimentos, sonoridades e partituras vocais. Percebi, durante todo o laboratório prático, que é preciso estabelecer relações entre as linhas melódicas, rítmicas e diferentes dinâmicas ou qualidades de energia em toda a sonoridade do exercício. Essas relações – combinações ou oposições – podem criar diferentes climas de tempo, espaço e ação; enfatizar as personalidades de cada personagem e até diferentes sensações/emoções. Dessa forma, assim como um compositor de música, o ator pode criar expectativa, tensão, estabilidade, instabilidade, relaxamento, resolução... Pode conduzir a plateia através de uma “história-sinfonia”, na qual sua voz e seu corpo são os principais instrumentos. Arkhétypos Grupo de Teatro O Arkhétypos Grupo de Teatro7, do qual faço parte, tem vivenciado essa busca pela musicalidade do corpo e da voz. 7. Grupo de Teatro que atua nas áreas de extensão e pesquisa na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, produzindo espetáculo teatrais que estabelecem relação entre a sociedade e o meio acadêmico. O Grupo é coordenado pelo Prof. Dr. Robson Haderchpek, atual Coordenador do Curso de Teatro da UFRN, e atua com alunos da Graduação em Teatro, Dança, Artes Visuais e Pedagogia; alunos da Pós-Graduação em Artes Cênicas; e colaboradores de áreas afins. As atividades desenvolvidas no projeto são norteadas por uma metodologia de caráter empírico buscando valorizar ações de diálogo entre as produções acadêmicas e a sociedade local. O projeto, de natureza interdisciplinar, busca criar um espaço de troca e de reflexão a respeito das produções artísticas do município de Natal-RN e da Região.

O Grupo teve início em março de 2010, quando o Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek, começou a pesquisar a Comunidade da Vila de Ponta Negra - Natal/ RN. O intuito da proposta consistia em investigar as histórias da população local e a partir delas iniciar um processo de construção cênica utilizando como tema “Histórias de Pescador”. Para tanto, foi formado um Grupo de Teatro que estivesse disposto a lançar-se a campo e iniciar uma atividade de extensão na Vila de Ponta Negra. Inicialmente, a atividade do Grupo consistia em conhecer um pouco da história da comunidade, participar das reuniões do Conselho Comunitário da Vila e dos ensaios dos Grupos de Manifestação Popular, acompanhando a realidade local e pesquisando o universo simbólico dos moradores. A partir das atividades desenvolvidas na Vila e dos trabalhos realizados em sala de ensaio, o Grupo começou a estruturar um espetáculo teatral que falava do imaginário coletivo da população local: Santa Cruz do Não Sei. Nos laboratórios cênicos eram trazidas/construídas personagens arquetípicas, histórias, causos e canções do universo da cultura popular, do universo das pessoas conhecidas em pesquisa de campo. A voz poética é elemento primordial do espetáculo, cuja narrativa é constituída basicamente de histórias e canções que se cruzam e se misturam dando origem a uma vila ficcional que foi parida pelo mar. Na vila de Santa Cruz do Não Sei o espectador é parte da história, ele comunga da cena junto com os atores e estabelece um espaço de encontro e de celebração.

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Recentemente, o espetáculo Santa Cruz do Não Sei foi o primeiro a ser audiodescrito8 no Estado do Rio Grande do Norte. Após cada uma das quatro seções realizadas, foram feitos debates, onde videntes e não videntes afirmaram que sua imaginação foi aguçada pelas histórias e canções, que a voz dos atores e as sonoridades construídas eram suficientes para transportá-los ao universo do espetáculo. Muitos relataram que se sentiram como moradores da Vila, participantes ativos e não apenas espectadores. No mês de agosto de 2011 o grupo iniciou um novo processo de investigação, voltando o seu olhar para as questões relacionadas à terra, no sentido de identidade, de território. Pesquisamos o sertão nordestino, a gente desse lugar e o imaginário desse povo. O grupo se inspirou nas obras de Guimarães Rosa: Manuelzão e Miguilim e Grande Sertão Veredas, e de e Graciliano Ramos: Vidas Secas. Paralelo à pesquisa literária, desenvolveu também uma pesquisa iconográfica e filmográfica, tomando por base a animação Vida Maria, o filme Anjos do Sol e Deus e o Diabo na Terra do Sol. Posteriormente, agregou ao trabalho a pesquisa dos fotógrafos Pablo Pinheiro e Tiago Lima que estudavam e registravam a vida dos boiadeiros do interior do Estado do Rio Grande do Norte. Após alguns meses de experimentação as palavras ditas pelos atores foram

se transformando e começaram a gerar novos significados, perdendo inclusive a forma original. A palavra foi subvertida e reorganizada fisicamente no corpo, extrapolando radicalmente o neologismo proposto por Guimarães Rosa. O formato original das palavras deu lugar a um dialeto que intensifica a musicalidade inerente à fala sertaneja, transformando-se em uma espécie de grammelot. É como se as palavras conhecidas fossem insuficientes para expressar tudo que está dentro e ao redor dessas personagens e dessa terra. A voz se tornou instrumento musical, os corpos e as ações dos atores são as próprias palavras vivas, pulsantes9. Um Treinamento Musical Como resultado de minha pesquisa de mestrado, e do trabalho realizado com o grupo, descubro uma voz que é Música, Corpo e Ação. Como a música, ela possui melodias, ritmos, dinâmicas e timbres; pode subir, descer, parar, permanecer, correr, gritar, sussurrar... É uma voz que dança. É um “prolongamento do corpo” (BARBA, 1991), a voz sai do impulso que o corpo lhe dá, todo o corpo participa da ação vocal. É ação, pois toca, afeta, atinge, transporta e transforma, agindo sobre mim mesma e sobre o espectador. A partir de tais descobertas, comecei a elaborar um treinamento musical para o ator, que foi testado algumas vezes, em

8. A iniciativa fez parte do Programa de Consolidação das Licenciaturas (Prodocência) e do estudo de pós-doutorado (CAPES/PROCAD) feito pelo Prof. Dr. Jefferson Fernandes Alves, do Centro de Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

9 . O espetáculo Aboiá estreou no início de maio de 2013, com o patrocínio do Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2012. Apresentou-se em Natal-RN, em João Pessoa-PB, e em Viena-Áustria, numa parceria com a Universidade de Música e Artes Cênicas de Viena.

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oficinas de curta duração para grupos de teatro e na preparação vocal de alguns espetáculos. Este treinamento está sendo aprimorado constantemente junto aos atores do Arkhétypos Grupo de Teatro. Talvez não haja ainda uma metodologia própria do teatro para ensinar música, para aplicar o conhecimento musical na cena teatral. Mas encontrei pesquisas neste sentido, como, por exemplo, os trabalhos de Ernani Maletta e Eleonora Montenegro, que utilizo como referências. Tais trabalhos têm relação com dois métodos de educação musical, Dalcroze e Orff, que também são referências de extrema importância em meu trabalho como preparadora vocal. O método Dalcroze, ao enfatizar que a vivência musical deve acontecer no corpo, aproxima-se do teatro, pois este tem o seu foco na ação que se presentifica no corpo do ator. Dalcroze desenvolveu muitos trabalhos relacionados ao teatro e à dança, como a preparação de atores em trabalhos com o encenador Adolphe Appia. Ele acreditava que sua Rítmica beneficiava qualquer artista que trabalhasse com o corpo: “Os estudos da Rítmica constituem-se como o ABC da técnica corporal necessária a todo artista completo. Pois eles se destinam à inteligência e à vontade” (DALCROZE apud MADUREIRA, 2008, p. 119). Para Orff, a palavra falada é a geradora do ritmo e da música. O método Orff se fundamenta sobre a tríade: música/ movimento/fala. Buscar inspiração nesse método é importante para indicar aos atores uma musicalidade já existente na fala, para que descubram a musicalida-

de já intrínseca às palavras. Em seguida, ampliamos essa musicalidade, procurando fazer com que adquiram não apenas o conhecimento musical, mas a consciência das infinitas possibilidades de criação com sua voz. Como transformar as palavras presas a um papel em palavras vivas, cantáveis? Cada compositor vai compor à sua maneira. E cada música será diferente, dependendo de seu objetivo, do estilo musical, da inspiração do momento, da música individual10 de cada um. O que esta pesquisa aponta é para a necessidade de uma formação musical, que contribuirá para a formação do ator. Este texto pretende trazer uma pequena contribuição para o treinamento vocal do ator, sugerindo que a manipulação dos parâmetros musicais é uma ferramenta à disposição do ator para a construção de suas partituras físicas e vocais.

10. Eleonora Montenegro (2001) chama de música individual todas as pulsações e ritmicidades que o indivíduo traz dentro de si; a música de suas lembranças, sonhos, medos e desejos mais profundos, suas experiências gravadas em seu corpo, que irão influenciar na construção de suas partituras físicas e vocais.

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IMAGENS DA CENA

fotografia

Carolina Engler Há mais de 20 anos faço fotografia de cena. Esta paixão começou no final da adolescência fotografando o teste de aptidão de uma amiga (a hoje atriz Georgette Fadel) na UNICAMP. A fotografia costuma ser uma atividade solitária, mas fotografando espetáculos experimentei pela 1ª vez o trabalho de grupo e gostei... Fotografei durante cerca de um ano como membro do grupo “Avisa o formigueiro vem aí tamanduá”, montamos Augusto Boal.

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A experiência foi curta e, como nos apresentávamos na rua, o tipo de iluminação não era o mesmo que se tornou minha linguagem, mas marcou forte e afetivamente meu gosto pela fotografia de cena. Tanto que, diferente de outros fotógrafos, que estão em busca de personalidades famosas na história do teatro, gosto dos grupos. E gosto, principalmente, de poder fotografar sem público, para subir ao palco e buscar ângulos diferentes, interferir um pouco na cena, clicar sem me preocupar se estou fazendo barulho de mais... “Anonimato e morte de Doralinda, linda por demais, linda de frente, linda de trás” da Cia São Genésio, foi uma dessas raras oportunidades. A baixa luminosidade é um fator importante para mim na fotografia e esse é outro elemento que me atrai para a fotografia de espetáculo. A luz e a sombra, a penumbra que, muitas vezes, deixa algo por dizer me agrada. O movimento e a dramaticidade também são elementos que procuro explorar no meu trabalho autoral e estão presentes na fotografia de cena. Hoje, a fotografia de palco não é um projeto, mas um prazer. Mas, quem sabe? Carolina Engler

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“ A luz e a sombra, a penumbra que, muitas vezes, deixa algo por dizer me agrada.

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foto: Karina Couto

CIA. BACANTE

CIA BACANTE DE TEATRO

Histórias e desafios da prática teatral colaborativa

Adilson Ledubino

Bacharel em Arte Cênicas e Mestre em Educação pela Unicamp. Diretor fundador da Cia. Bacante de Teatro. Professor de Teatro no ensino fundamental e docente universitário na FAAT- Faculdades Atibaia.

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Pequena história da Bacante A Cia. Bacante de Teatro nasceu oficialmente no dia 14 de agosto de 2004, na cidade de Leme, interior paulista. Sua origem liga-se ao projeto de formatura em Artes Cênicas que desenvolvi na Unicamp. Na ocasião, a necessidade acadêmica que me instigava ia ao encontro de projetos voltados à minha terra Natal, objetivando fomentar oportunidades de formação de atores naquele município carente de ações culturais que impactassem positivamente o cenário daqueles tempos. A primeira montagem foi Bodas de Sangue de Federico Garcia Lorca. Os que conhecem o texto sabem da complexidade que tal empreitada representa, especialmente considerando o fato de se trabalhar, na ocasião, com atores iniciantes, alguns travando seu primeiro contato com o teatro. Coisas de um diretor também em início de carreira que fora arrebatado pela beleza poética e pela força trágica contidas na obra de Lorca. A despeito de todas as dificuldades que se apresentavam ao projeto, a persistência e o desejo de fazer teatro com profissionalismo mantiveram viva a busca daquele coletivo. Amador no sentido de quem ama. E nós amamos. A montagem cumpriu dez apresentações, encontrando o público da cidade e a representando na fase regional do Mapa Cultural Paulista 2005, na cidade de São José do Rio Pardo. Na ocasião, a Cia. Bacante fora indicada a cinco prêmios, dos quais dois se confirmaram: ator revelação, para Ricardo Missão e melhor cenário para mim. Bodas de Sangue cumpriu ainda as

apresentações obrigatórias à banca examinadora no departamento de Artes Cênicas da Unicamp, como requisito parcial para obtenção do título de bacharel. Aliado a uma enorme afinidade com a proposta, buscando aprofundar as pesquisas e também driblar algumas dificuldades como as resultantes de direitos autorais1 foi que decidimos adotar como linha de pesquisa e modo de produção o processo colaborativo. Os aspectos contingenciais somaram-se ao desejo, mais significativo que aqueles, de realizar um teatro pautado na pesquisa que se desdobrou em algumas frentes e resultou no meu mestrado, defendido na Faculdade de Educação da Unicamp em 2009. Nessa fase, ainda em Leme, foi criada de modo colaborativo a dramaturgia da peça MIRAFLORES. Infelizmente não foi possível concluir a montagem nem estrear o espetáculo em função da saída de alguns integrantes do grupo. Isso resultou na migração da Bacante para a cidade de Campinas e na prorrogação dos planos para a referida peça. Após se reestruturar no novo território, finalmente foi possível concluir a montagem e estrear a primeira peça autoral da companhia. Miraflores realizou uma série de apresentações, tendo participado em 2009 do IX Festival de Teatro de Mogi Mirim em que 1  Dificuldades especialmente relacionadas a aspectos financeiros, somados à resistência à liberação de algumas obras por parte dos herdeiros legais. Não estamos aqui discutindo a lei de direitos autorais, ainda que caibam algumas discussões em outra oportunidade.

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fora indicado a seis categorias e premiado em três delas: melhor diretor, melhor atriz e melhor sonoplastia, além de 3° melhor espetáculo. Atualmente a peça integra o repertório da Cia. Bacante. Como as experiências vão moldando personalidades, alguns fatos e algumas escolhas se fizeram marcas características do grupo. O processo colaborativo certamente é a principal delas e traduz uma opção assumidamente política, no sentido de estabelecer relação horizontalizada entre os integrantes e abrir espaço para a fruição criativa de cada um. Tal escolha levou ainda ao contato com a obra de Bertolt Brecht, que se tornaria interlocutor fundamental para as reflexões e criações artísticas seguintes, caracterizando também as investigações no campo da linguagem. A pesquisa da musicalidade e da música cênica sempre esteve no rol das buscas empreendidas. A partir de tais características, considera-se o processo de formação, sempre em curso, de um ator propositivo, interessado em criar e refletir sobre suas obras, conhecendo profundamente seu instrumento de trabalho: seu próprio corpo, na mais ampla acepção da palavra. Em 2010 iniciamos o processo de criação a partir do tema “situações limite” e aos poucos implementamos ações que visavam à profissionalização da companhia. O ano seguinte marcou abertura das pesquisas para o campo do teatro para a infância com a estreia de João e o pé de feijão seguido da montagem de João e Maria em 2012. O trabalho voltado para o teatro infantil tem seu foco na realização de espetáculos alinhados à pesquisa sobre

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educação, infância e psicologia pautando-se na literatura infantil de qualidade sem abrir mão do cuidado estético. Em 2013, tendo como base o trabalho iniciado em 2010, chegou o momento de oferecermos ao público campineiro o resultado do longo processo criativo, do qual nasceu a peça “RECINTOS – memórias de uma infame senhora”, uma obra complexa, forjada a partir dos desassossegos e das inquietações dos artistas criadores que tiveram de se haver com questões delicadas e caras à sociedade contemporânea do consumo, do individualismo e da era da informação em detrimento do conhecimento e do amor. Buscou-se aqui apresentar um panorama da história da Cia. Bacante de Teatro, suas pesquisas, seus interesses, seu posicionamento político e artístico, enfim, seu modo de existir e se colocar em seu tempoespaço. História em devir, construída por meio da busca constante e do aceite aos conflitos que se constituem força motriz de nosso trabalho. Passaremos agora a tratar, de modo mais detalhado e rigoroso, sobre alguns aspectos importantes dessa história.

O Sentido do Processo Colaborativo e o Significado dessa Busca Ao assumir o processo colaborativo como projeto filosófico e modo de produção de um grupo, se aceita, já de saída, o compartilhamento de sonhos, de desejos e objetivos que implicam na constante troca, sempre disponível ao debate e mesmo à


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João e o pé de feijão, 2011

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foto: Karina Couto

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João e Maria, 2012

discordância que balizam o desenvolvimento de tal projeto. No entanto, a referida aceitação não se dá de forma assim tão natural. Precisa ser construída, revista e reafirmada ao longo de ações, não sendo possível ignorar a vida contemporânea, os afazeres de seus integrantes e as possibilidades reais de viabilização do trabalho. Assim, o processo colabora-

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tivo exige, de fato, a coautoria. Implica, portanto, na ação de empoderamento de seus agentes/actantes, no sentido de torná-los protagonistas do processo de criação. Mais ainda: exige um posicionamento artísticopolítico seja nas ações criativas propriamente, seja nas reflexões teóricas ou nas ações para além dos muros de nosso quintal.


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Ao dizer-se uma companhia colaborativa é necessário estar ciente das muitas implicações que tal narrativa suscita. Primeiramente, a tradição histórica atrelada a este conceito exige que se busque conhecer suas origens, não para meramente se reconstruir mais uma pesquisa de gênese de determinado modo de produção, mas para conhecer e/ou definir as bases sobre que se assentam uma prática com consequências política, filosófica e artística. Também se mostra importante reconhecer as peculiaridades do processo colaborativo no Brasil, diferenciando-o das experiências estadunidenses, europeias e latino-americanas que exerceram influência significativa em nossas tentativas. Outro motivo importante a justificar essa revisão histórica é o desejo de se evitar certos equívocos relativamente comuns quando se fala na experiência de um processo colaborativo de fato. O processo colaborativo liga-se a experiências empreendidas nos anos 1950-60 por grupos como o Living Theatre nos Estados Unidos, o Teatro Experimental de Cali na Colômbia e diversos grupos brasileiros como o Asdrúbal trouxe o trombone, o Ornitorrinco e o Oficina. Há algumas peculiaridades que colocam as experiências dos dois primeiros grupos brasileiros, citados anteriormente, sob o rótulo da criação coletiva. Ainda que guardadas as distinções, a chamada criação coletiva está na origem do que viria a se desenvolver sob a égide do processo colaborativo. A fim de esclarecer quais são estas distinções, vale a pena citar o que diz Luís Alberto de Abreu:

“A criação coletiva possuía, no entanto, alguns problemas de método. Um deles era a talvez excessiva informalidade do próprio processo. Não havia prazos, muitas vezes os objetivos eram nebulosos e se a experimentação criativa era vigorosa, não havia uma experiência acumulada que pudesse fixar a própria trajetória do processo. Era ainda, uma abordagem da criação totalmente empírica que se resumia, muitas vezes, em experimentação sobre a experimentação” (ABREU, 2003)2.

Partindo das experiências empreendidas no âmbito da criação coletiva, os praticantes do processo colaborativo procuraram e ainda procuram se haver com aspectos dessa natureza, na expectativa de empreender um modo de produção que reflete um posicionamento artístico-político, relacionado à busca apontada como uma das principais características desse tipo de empreendimento nas palavras de Abreu: “Pode-se dizer que o processo colaborativo é um processo de criação que busca a horizontalidade nas relações entre os criadores do espetáculo teatral. Isso significa que busca prescindir de qualquer hierarquia pré-estabelecida e que feudos e espaços exclusivos no processo de criação são eliminados. Em outras palavras, o palco não é reinado do ator, nem o texto é a arquitetura do espetáculo, nem a geometria cênica é exclusividade do diretor. Todos esses criadores e todos os outros mais colocam experiência, conhecimento e talento a serviço da construção do espetáculo de tal forma que se tornam imprecisos os limites e o alcance da atuação de cada um deles” (ABREU, 2003).3 2  ABREU, disponível em http://escolalivredeteatro. blogspot.com último acesso em 26/07/2014. 3  Idem;

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Isto implica em uma postura muito madura e profissional, dadas às dificuldades nascidas do caráter subjetivo e criativo do trabalho artístico, que muitas vezes acaba por confundir-se com a ausência de funções. É preciso salientar que, ainda que ao longo do processo criativo a busca seja por tal horizontalidade, não se pode prescindir da função. Ou seja, ainda que não haja um diretor, a função de direção precisa ser claramente estabelecida, assim como outras, sob o risco de se incorrer nos problemas apontados no caso da criação coletiva da década de 1970. Como viabilizar o processo colaborativo de forma produtiva, para além do conceito de produção capitalista, e de modo a atualizar as potencialidades dos artistas envolvidos e da experiência do trabalho em grupo verdadeiramente coletivizado? Esse desejo acaba por mostrar-se conflituoso, uma vez que se percebe que poucos grupos (ou nenhum) desenvolvem seu trabalho sem uma figura de liderança4, ainda que esta seja rotativa. O fato é que tal constatação não anula o valor do processo colaborativo como modo de produção artística. Só mostra, mais uma vez, a importância da existência clara da função. É necessário que todos os envolvidos estejam imbuídos de um objetivo comum, sem que isso signifique concordância cega, mas que os pontos de vista divergentes possam ser transformados em força motriz para o trabalho criativo. 4  Antunes Filho no Macunaima/CPT, José Celso Martinez Correa no Uzina, Antonio Araujo no Vertigem, Sérgio de Carvalho no Latão etc;

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Não prolongarei a revisão do ponto de vista histórico desse modo de produção, resumindo-me a indicar a leitura dos textos que integram as referências bibliográficas desse artigo. No entanto, é importante verificar que este é um conceito que demanda ainda muita pesquisa e reflexão, uma vez que sua prática passou por momentos de ampla efervescência, especialmente na década de 1990 entre grupos paulistanos, por exemplo, e de suposto declínio, segundo alguns pesquisadores. O fato é que os modos de produção artístico-teatrais se colocam diante das contingências e das características históricas de seu tempo. Isso permite constatar que todo teatro é político, ainda que pretendam se abster de tais questões. Por tanto, é preciso considerar os motivos e os modos de ser do processo colaborativo como ação criadora entre grupos que existem no tempo e espaço contemporâneo. Tais reflexões permearão a sequência do texto, quando daremos a ver as peculiaridades do processo colaborativo da Cia. Bacante de Teatro que resultou na criação do espetáculo “RECINTOS- Memórias de uma infame senhora”.

Situações Limites - Construindo Recintos Muitos foram os questionamentos que nos acompanharam ao longo do processo que empreendemos para a criação do “Recintos”, tanto relacionados à escolha temática quanto às opções técnicas e estéticas que fazem parte do cotidiano de um grupo teatral. Como na prática criativa chega um momento em que já não é


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possível estabelecer com clareza e rigor a cronologia ou mesmo a gradação de relevância dos fatos, me permitirei postura aparentemente caótica, reportando-me aos pontos que mais nos tocaram ou provocaram ao longo da criação. No início tínhamos alguns desejos que nortearam as primeiras escolhas: queríamos desenvolver um projeto que possibilitasse nosso crescimento artístico no sentido de realizar algo relevante e contundente. Assim, a escolha do tema “situações limite” veio ao encontro de tais desejos, uma vez que passou a nos provocar olhar mais atento e crítico a uma série de questões relacionadas à realidade humana, especialmente as impetradas em nosso país. Ao mesmo tempo opções técnicas relacionadas ao espaço cênico, ao trabalho do ator e à relação com a plateia nos moviam a relacionar forma e conteúdo de modo a experimentarmos caminhos que eram novos para o grupo. O confronto com a temática gerava o levantamento de questões que provocavam em nós reflexões acerca da vida e da relação social: O que seria uma situação limite? Como distintas pessoas reagiriam diante de uma mesma situação? Haveria, portanto, gradações do impacto gerado? Quais áreas do conhecimento humano poderiam contribuir para a compreensão dos conceitos ligados a essa temática? Que referências utilizar? Em que medida cada um de nós travara contato com suas próprias situações limite? E de que forma reagira? Na busca, não por respostas, mas por histórias, vivências e reflexões sobre tais questionamentos, chegamos a algu-

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mas paragens que muito nos tocaram e nos impulsionaram. Saber que não há um conceito único nos proporcionou uma amplitude maior sobre a ideia. O limite na matemática, na filosofia, na sociologia, na literatura e na antropologia passou a mover nosso pensamento e nossas experimentações cênicas ao longo do levantamento do material que comporia a dramaturgia e o espetáculo em criação. A partir desses estudos que contaram com o auxílio de parceiros importantes5, passamos a adotar alguns pontos como guias principais na condução do tema. Para além da ideia de morte apontada como limite por Karl Jasper ou da situação limite retratada por Louis Althusser no livro “O futuro dura muito tempo”, o que passou a nos interessar foram as situações limite vividas no cotidiano, enfrentadas por pessoas ditas comuns. A exploração do ser humano por outro ser humano sempre foi algo que muito nos incomodou e passamos a abordar o tema sob essa nova especificidade. Notícias que reportavam a venda de meninas pelos próprios pais, no Brasil e em outros países do mundo, tornaram-se o mote inicial para a proposta dramatúrgica que se firmou como nossa escolha. Como levar estes fatos para a cena era outro desafio para o grupo. Não queríamos encenar uma suposta denúncia, nem levar ao palco um julgamento moral sem provocar reflexão sobre os caminhos pelos quais a vida acaba por nos conduzir, 5  Prof. Dr. Roberto Akira Goto da Faculdade de Educação da Unicamp; Marcus Vinicius Silva Nascimento, matemático e mestrando pela Unicamp.


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sobre a real possibilidade de escolhas ou alternativas e sobre os motivos que levam a certas ações. Tal opção aprofundou intenções relacionadas à própria encenação já apontadas no início do processo, quando nosso desejo era proporcionar aos atores desafios diferentes dos que já havíamos experimentado. Pensávamos em fazer um espetáculo para arena, com o intuito de explorar a proximidade com a plateia como aspecto importante do jogo teatral e da

relação estabelecida. Durante o levantamento de material, esta ideia modificou-se e optamos pelo espaço de corredor que se mostrou bastante apropriado para nossas intenções. No entanto, somente a proximidade com a plateia não bastava. Era necessário trabalhar para que a qualidade e o tipo de relação estabelecida fosse significativa e provocativa, gerando experiência viva para todos. Nesse sentido, algo com que nos preocupamos bastante foi a preparação dos

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atores6, pois seriam colocados a representar situações complexas, estabelecendo uma relação qualitativamente distinta do que estavam habituados e comunicando assuntos polêmicos, sobre os quais queríamos que as pessoas também refletissem. Para que isso fosse possível, seria necessária uma entrega contundente por parte dos intérpretes, convidados a experienciar situações relativamente distantes de suas vivências, mostrando tais situações por meio de atuação ora realista, ora estilizada. Transitando pelo drama e pela tragicomédia. Após longo processo de criação, que durou cerca de quatro anos, chegou-se a uma primeira versão do espetáculo, marcada pela quebra da linearidade expressa especialmente no texto de Vitor Paranhos, cuja dramaturgia explora características cinematográficas determinando ritmo ágil e fábula intrigante, reforçada ainda pelo emprego de projeções filmadas especialmente para a peça. A música composta por Eduardo Virgílio é outro fator importante na construção do espetáculo, funcionando como elemento narrativo que ora atravessa a cena, ora lhe proporciona cor e sensação subjetivas impactantes. A encenação optou por valorizar, sobretudo, o trabalho do ator, a quem confiou a missão de concretizar grande parte do espaço ficcional, bem como guiar o público pelos inúmeros planos que compõem o espetáculo. O objetivo foi o de ultrapassar a mera narrativa logocêntrica que visa 6  A qual contou com a fundamental contribuição da preparadora corporal Mariana Dias Jorge.

explicitar uma fábula fechada e dada apenas pelo ponto de vista dos criadores. Ao contrário, buscou-se, verdadeiramente, garantir a existência de espaços abertos e possibilidades de coautoria com o público, convidado a tecer sua própria leitura/escritura das situações limites apresentadas. Nesse sentido, o espetáculo se configurou como espaço convidativo à vivência de experiências que tocam também a subjetividade, desafiando o espectador a se deixar tocar pelas sensações despertas pelas histórias de cada uma das personagens e a olhar para si mesmo a partir dos desassossegos gerados. A partir disso, aceitamos também o desafio de lidar com o fato desse espetáculo não se prestar ao mero gostar ou não gostar, como algo a que se digere fácil e palatavelmente. Sabíamos que a peça poderia ser, para muitos, indigesta, exigindo um esforço ativo para se atravessar as diversas camadas: as reveladas e as veladas. Assim, abrimos as portas desses recintos, cujas histórias se fazem marcas, muitas delas obscuras, sujas e profundas, um repositório de memórias que se cruzam com as nossas próprias experiências em maior ou menor grau. Reconhecer-se em algumas das facetas humanas que desfilam por esses aposentos não é raro, nem tampouco fácil. Porém, crucial. O que desejamos, além de proporcionar entretenimento, é fomentar reflexão para além do espetáculo e, quem sabe, despertar a percepção para fatos aterradores, cuja banalização nos leva a tomar como normais certas bizarrices que nos cobram posicionamento.

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Fazer Teatro. Por Que Insistir? Muitos foram os momentos em que as dificuldades que se nos apresentavam no decorrer do processo de criação desse trabalho nos levavam a questionar o sentido de continuar fazendo teatro e, especialmente, de empreender espaço de criação colaborativa. A labuta que tal ação signifi-

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ca em um mundo capitalista, caracterizado pela mercantilização das próprias relações interpessoais acaba por gerar maior resistência a uma forma de relacionamento que segue de encontro à lógica estabelecida. Ao mesmo tempo, exige energia persistente na prática criativa e perspicácia lúcida na reflexão conceitual, ambas faces de uma mesma moeda no trabalho teatral.


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A manutenção de qualquer grupo teatral no Brasil pressupõe certas contingências complicadoras de tal missão: a dificuldade financeira talvez seja a principal delas, mas não a que mais nos obsedava. O desafio maior, neste caso, dizia respeito a questões conceituais, filosóficas, ligadas ao sentido mesmo do fazer teatro. E é neste campo que se localiza a pergunta crucial, da qual não se pode fugir: Para que fazer teatro? E por que a opção pelo modo de produção colaborativo? Não estou certo de ser capaz de formular resposta clara ou definitiva, mas tendo a pensar no teatro como pretexto. Explico-me: pretexto para pensar a condição humana e as relações que se dão na base de sua existência. Refletir de forma ampla as possibilidades de leituras, constatações e, sobretudo, de análise crítica na busca de mudanças para aquilo que exigir mudança. Penso o teatro ainda como uma linguagem capaz de tocar não somente a consciência, mas também e principalmente, a subjetividade inconsciente mobilizando as forças necessárias à ação propositiva de forma responsável e bela. Nesse sentido, meu maior interesse está na capacidade que o teatro tem de falar, mostrar e pensar o Humano. Vem daí também a opção pelo processo colaborativo como modo de produção e, mais ainda, como forma de organização e relacionamento entre os integrantes. Por acreditar na força e na riqueza da coletividade é que, na Bacante, se continua apostando nessa forma de fazer teatro.

Reconhecemos os momentos de transição por que passamos na construção efetiva de tal proposta, assim como os problemas e armadilhas nas quais algumas vezes caímos. Foram esses momentos também que possibilitaram o aprofundamento de nossa opção, além de iluminar ajustes necessários. Trouxemos à cena dois resultados de experiência colaborativa: Miraflores e Recintos. Este último fez um final de semana de estreia e, devido a circunstâncias desfavoráveis, precisou ser interrompido por ora. Tais circunstâncias interromperam inclusive os trabalhos da companhia, mas ao mesmo tempo nos levaram a amadurecer e construir novos caminhos. Este recesso forçado me fez lembrar uma passagem do livro “Cartas a um jovem poeta”, que tomo a liberdade de parafrasear. Em certo momento Rilke diz ao jovem poeta que, para saber o quão necessário e fundamental é para ele escrever, ficasse um tempo sem o fazer. Se a falta sentida lhe parecesse insuportável, como se lhe faltasse o próprio ar, então que voltasse a escrever, pois a arte lhe seria vital e ele um verdadeiro poeta. Esta é a sensação experimentada ao passar algum tempo sem o trabalho com a Bacante, sem fazer teatro. Por isso faz-se imprescindível seguir fazendo e pensando teatro. E por acreditar na força do grupo e na capacidade de seus integrantes, seguir lutando pela construção da prática colaborativa efetiva.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Luís Alberto- Processo colaborativo- Relato e reflexão sobre uma experiência de criação Disponível em http://escolalivredeteatro. blogspot.com FERNANDES, Silvia Grupos Teatrais – Anos 70. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000. FISCHER, Stela Regina Processo Colaborativo: Experiências de Companhias Teatrais Brasileiras nos anos 90 Dissertação de Mestrado, Instituto de Artes, Unicamp, Campinas, 2003. LEDUBINO, Adilson D. O Processo Colaborativo na Formação do Ator. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação/ Unicamp, Campinas, SP, 2009 http://escolalivredeteatro.blogspot.com

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