National Geographic 02.2020

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C . P T

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FEVEREIRO 2020

Redefinir a BELEZA

VIETNAME: EM BUSCA DO C A R DA MOMO

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E N G E N H E I RO S E A RQ U I T E C TO S DA N AT U R E Z A

5

C LOT I L DA : O Ú LT I MO N AV I O D E E S C R AVO S

N.º 227 MENSAL €4,95 (CONT.)

N U M A C U LT U R A C A DA V E Z M A I S I N C L U S I VA , T O D A S A S P E S S OA S P O D E M C O N S I D E R A R - S E B E L A S



N AT I O N A L G E O G R A P H I C

FEVEREIRO 2020

S U M Á R I O

2

Redefinir a beleza

O poder das redes sociais, a dura competição na indústria da moda e uma geração de consumidores exigentes contribuíram para criar uma cultura inclusiva através da qual todas as mulheres podem considerar-se belas.

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Engenheiros e arquitectos da natureza

F OTO G RA F I A S D E H A N N A H

Aves, insectos, castores – as extraordinárias técnicas utilizadas por muitos animais para optimizar a funcionalidade dos seus ninhos converte-os em engenheiros especializados, dotados de uma perícia construtiva que maravilha qualquer ser humano.

REYES MORALES

T E X T O D E E VA VA N D E N B E R G

T E XTO D E RO B I N G I V H A N

Na capa Fotografia captada no Centro de Design da Barbie que mostra os múltiplos rostos da famosa boneca, reflexo de uma cultura em que o conceito de beleza se diversificou. FOTOGRAFIA DE HANNAH REYES MORALES

HANNAH REYES MORALES


R E P O R TA G E N S

S E C Ç Õ E S

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O último navio negreiro

Em 1860, o Clotilda introduziu ilegalmente 108 africanos no Alabama. Os seus descendentes contam a história chocante da vida desses cativos. T E XTO D E J O E L K . B O U R N E , J R . , S Y LV I A N E D I O U F E C H E L S E A B R A S T E D F OTO G RA F I A S D E E L I A S W I L L I A M S PINTURAS DE SEDRICK HUCKABY

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Bob, o flamingo

A S UA F OTO VISÕES EXPLORE A ponte tecida sobre o rio Bússola certeira na incerteza dos mares Observadores de rãs GRANDE ANGULAR Dez anos a contar espécies E D I TO R I A L N A T E L E V I SÃO P RÓX I M O N ÚM E RO

Uma ave ferida com gravidade há quatro anos foi resgatada por uma veterinária que acabou por utilizá-la em acções pedagógicas. O flamingo Bob é hoje uma estrela em Curaçao, além de ser um símbolo da conservação. T E X T O D E C H R I S T I N E D E L L’A M O R E F OTO G RA F I A S D E JA S P E R D O E ST

88

Vietname: em busca do cardamomo

Aventureiros percorrem a pé a floresta de montanha do Vietname em busca do cobiçado cardamomo-negro que muitos cultivam num parque nacional do Norte do país.

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A FLORESTA QUE CRIA

RIQUEZA A importância do setor florestal na economia nacional é incontornável, pela dinamização do desenvolvimento rural e regional, pela criação de emprego que envolve agentes na produção, transformação e comercialização de bens de origem florestal, e pela indústria associada, que gera o maior valor acrescentado nacional, num contexto de forte vocação exportadora. Portugal tem na floresta duas matérias-primas – a fibra de madeira e a cortiça – que colocam o país na liderança europeia e mundial em setores chave das indústrias de base florestal. Sustentada em três grandes fileiras – eucalipto, pinho e sobro – a floresta constitui-se como um dos mais importantes recursos de riqueza económica no país, responsável por 4,74% do Produto Interno Bruto (2017), sendo um dos poucos setores cuja atividade promove os três grandes pilares da sustentabilidade: o económico, o social e o ambiental. A criação de valor económico, através da gestão florestal sustentável, é determinante para a preservação deste capital natural, já que o investimento na floresta consolida a sua melhoria permanente. Esta aposta contribui para um vasto conjunto de serviços de ecossistema, nomeadamente a melhoria da qualidade do solo e da água, a conservação dos habitats e da biodiversidade. A dinamização da floresta, com a plantação de novas áreas, assume ainda um papel relevante no crescimento daquele que é o maior sumidouro terrestre das emissões de CO2.

As florestas sustentáveis da The Navigator Company apoiam a National Geographic Portugal a diminuir a sua pegada ecológica. Fontes: Estatísticas setoriais da DGAE – As Indústrias de Base Florestal em Portugal, maio 2019 | Economia da floresta e ordenamento do território, CES 2017 | Relatório da Caracterização da Fileira Florestal, AIFF 2014 | Uma visão para o sector florestal, AIFF 2013.


publirreportagem

PROMOTOR DE EMPREGO A NÍVEL NACIONAL Setor com forte pendor regional de criação de emprego, a fileira florestal gera mais de 110 mil postos de trabalho diretos, desde as práticas silvícolas até à indústria, passando pelo comércio de base florestal. O impacto social das indústrias de base florestal não se esgota no emprego direto, já que as atividades desenvolvidas nas suas áreas de influência movimentam muitos milhares de empregos indiretos e induzidos.

FATOR DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL O setor florestal mobiliza cerca de 24 mil empresas (86% com menos de 10 trabalhadores), representando 2% do total do país, com um peso significativo (14,78%) na indústria transformadora nacional. Este é, de resto, um dos poucos setores em que as comunidades vivem nos principais locais de produção, com uma assinalável dispersão geográfica: 80% destas empresas estão repartidas por vários distritos das regiões norte e centro.

UMA FORÇA EXPORTADORA As indústrias de base florestal são fortemente exportadoras, com um saldo excedentário na balança comercial, que em 2018 foi de 2,6 mil milhões de euros. As exportações de bens produzidos pelas indústrias da fileira florestal atingem anualmente, desde o início do século, cerca de 10% do total nacional, sobressaindo a fileira da pasta e do papel como responsável por mais de metade deste valor.


V I S Õ E S

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A SUA FOTO

N O R B E R T O E S T E V E S O autor caminhava na ria Formosa em perseguição de uma águia-calçada. Nas salinas, minutos antes

da alvorada, foi surpreendido por outra aparição: uma garça-real pousou na água, interrompendo a tranquilidade do local.

M A N U E L S E Q U E I R A Esta imagem do Covão da Ametade é eficaz como metonímia do Outono. As bétulas e larícios ilumina-

das pelo sol exibem os tons amarelos do Outono e as folhas na superfície da água antecipam a estação fria que se avizinha.


F E R N A N D O D E L G A D O Na Estação de Biodiversidade da Ribeira de Alportel, o autor encontrou este cogumelo na extremidade

de um ramo. “Quase sem luz, montei o tripé e iluminei-o por baixo com uma simples lanterna”, conta. E acendeu-se luz no bosque.

A N T Ó N I O C A R R E I R A Tambores, trajes extravagantes, toucas majestosas e a recitação do mito de Theyyam marcam a atmosfera em Kurumathur, uma pequena aldeia a norte do estado de Kerala (Índia) onde este culto ainda está vivo.


V I S Õ E S

Brasil

No coração da Amazónia, a região do rio Tapajós, no Pará, é conhecida por ter das mais belas praias fluviais do mundo, mas a construção de enormes barragens hidroeléctricas e o desmatamento crescente trazem nuvens no horizonte. MARCIO PIMENTA




Moçambique

A estudante Rosa Félix Tivane liberta um papa-moscas após recolha de dados biométricos. Todos os anos, o Parque Nacional da Gorongosa organiza um censo de biodiversidade para a população estudantil no âmbito de um Programa de Bioeducação. PIOTR NASKRECKI


Portugal

A zona da Encumeada na ilha da Madeira é um dos raros locais onde o ser humano pode viver um sonho e posicionar-se acima das nuvens. Nas imediações, fica a serra de Água, evocação de um engenho de serração de madeira utilizando a força da água. DUARTE SOL



E X P L O R E QUE NOS RODEIAM N AT I O N A L G E O G R A P H I C

N O E S TA D O I N D I A N O D E M E G H A L AYA , um dos locais mais húmidos da Terra, a população entrelaça as raízes da árvore da borracha para criar pontes pedonais robustas. Durante um ano, Prasenjeet Yadav fotografou cerca de trinta pontes feitas de raízes. ALGUNS MESES ANTES

D UA S S E M A N A S A N T E S

I N Í C I O D O P ROJ E C TO

COMO CONSEGUIR A FOTOGRAFIA

L I S TA B Á S I C A D E E Q U I PA M E N T O

“ P I N TA N D O ” COM LUZ

Yadav nunca tinha visitado uma ponte de raízes vivas antes de iniciar o projecto, mas sabia que existia uma ponte dessas perto da aldeia de Nohwet. Com muitos turistas a fotografar, Yadav queria que a sua imagem se destacasse. Para se preparar, consultou outros fotógrafos e estudou pinturas de paisagens. Decidiu captar a imagem após o crepúsculo. Era arriscado: a precipitação inesperada e intensa pode dar origem a inundações repentinas, o que pode ser especialmente perigoso à noite.

Na quarta viagem de Yadav à região, ele já sabia o que levar na bagagem. Reduziu os mantimentos ao básico, levou poucos impermeáveis para si e deu prioridade à protecção do equipamento.

De sua base em Bangalore, Yadav voou para Guwahati e seguiu de táxi para Nohwet. A partir dali, caminhou 30 minutos até à ponte. Durante três semanas, testou a utilização de luzes para “pintar” segmentos da ponte e arredores durante uma longa exposição. Nos 438 segundos necessários para criar esta imagem, Yadav deslocou-se entre locais para orientar as luzes. Envolto na escuridão, não é visível na fotografia final.

• Chapéus-de-chuva para protecção do equipamento • Barras de granola • Flashes e um painel de luz LED • Lanterna resistente • Capa de borracha para a máquina • Um tripé • Folha de película negra para proteger a lente • Modificadores de luz

A PONTE TECIDA

No Nordeste da Índia, chuvas fortes corroem as infra-estruturas.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


EM NUMEROS ´

200 anos 11.500 mm 0 I DA D E E S T I M A DA D E S TA P O N T E

P R E C I P I TAÇ ÃO M É D I A A N U A L ( 2 0 1 6 )

DO DE ALDEIAS

MEGHALAYA

ÍNDIA de a do morada s”.

A população local constrói as suas próprias p TEXTO DE NINA STROCHLIC

NGM MAPS

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vivas.

F O T O G R A F I A D E P R A S E N J E E T YA D AV

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


E X P L O R E

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AMBIENTE

Bússola certeira na incerteza dos mares APÓS HORAS PRESA NUMA REDE DE PESCA,

uma tartaruga-de-couro ferida foi resgatada das águas da Meia Praia, em Lagos, no dia 19 de Junho do ano passado, através do esforço da Polícia Marítima, do Instituto de Socorros a Náufragos e da comunidade local. A necessidade de cuidados especiais levou a que este macho de trezentos quilogramas fosse transferido de imediato para o Centro de Reabilitação de Espécies Marinhas, Porto d’Abrigo do Zoomarine, onde permaneceu 49 dias em quarentena e recuperação. O acidente proporcionou aos biólogos do Zoomarine uma oportunidade única de investigação. Aquando da libertação (em cima), em Agosto, foi fixado na carapaça do animal um retransmissor de sinais de satélite. Deste modo, a equipa científica previa recolher dados sobre a viagem da tartaruga de regresso a casa, comprovando rotas importantes para JOÃO RODRIGUES

este animal e territórios de eleição para os comportamentos mais sensíveis da espécie junto da costa. A monitorização programada para três anos de duração foi interrompida ao fim de 21 dias. Mesmo assim, o intervalo foi suficiente para intrigar os investigadores. Desde o momento em que foi libertada em mar alto, dez milhas ao largo de Portimão, a tartaruga-de-couro nadou a impressionante distância de mil quilómetros, até chegar a Fuerteventura, nas Canárias, uma zona conhecida pela ocorrência frequente desta espécie. Segundo o biólogo Élio Vicente, a coincidência de se tratar de uma zona de tráfego marítimo intenso pode ser uma das explicações para a libertação do retransmissor. Três semanas depois da instalação, Quinas,a tartaruga adoptada pelo Algarve, emancipou-se e deixou de colaborar com a ciência. — João Rodrigues

A tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea) é a maior tartaruga do planeta e é especialmente vulnerável a agressões físicas, devido à sua pele frágil e à carapaça mole.


AMÉRICA DO NORTE

OCEANO ATLÂNTICO

COSTA RICA

OCEANO PACÍFICO

AMÉRICA DO SUL

OBSERVADORES DE RÃS tal como a observação de aves, exige paciência e perseverança. As duas actividades requerem listas e um jargão próprio, horários invulgares, perseguições de mosquitos e sapatos fechados para evitar picadas de cobra. Num mundo que está a perder rapidamente a diversidade de rãs, o nosso grupo de viajantes interessados em anfíbios partiu para a Costa Rica para as descobrir. Organizadas pela ONG Save the Frogs, estas viagens ajudam a apoiar o número crescente de parques ecológicos no Belize, no Peru ou no Gana que protegem habitats vitais para estas criaturas vulneráveis. A Costa Rica acolhe 149 espécies (na imagem, uma Agalychnis annae). No pico da estação húmida, identificámos 23 espécies, mas continuamos à espera de mais. É um jogo viciante cheio de decepções e descobertas, enquanto se perseguem olhos que brilham como jóias no escuro. A O B S E R VA Ç Ã O D E R Ã S ,

FOTOGRAFIA: GREG BASCO, MINDEN PICTURES. NGM MAPS


G R A N D E

A N G U L A R

DEZ ANOS A CONTAR ESPÉCIES NA PRIMEIRA ÁREA MARINHA PROTEGIDA D E G E S TÃO LO C A L D O PA Í S , U M B I Ó LO G O D E S E N V O LV E U M I N V U L G A R P R O J E C T O D E MONITORIZAÇÃO DE LONGO CURSO.


Desde a infância que Frederico Almada frequenta a praia de Parede. Nestas piscinas de marÊ que conhece intimamente, orienta alunos de licenciatura, mestrado e doutoramento.


G R A N D E

A N G U L A R

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Á R E A M A R I N H A P ROT E G I DA DA S AV E N C A S

TEXTO E FOTOGRAFIAS DE MÁRIO RIO

A

é a mais antiga zona balnear e de veraneio de Portugal. Historicamente, acolheu banhos de reis e banqueiros, fidalgos e janotas. No “Guia do Banhista e do Viajante”, obra de Ramalho Ortigão que iniciou em 1876 a tradição literária portuguesa sobre lazer e ócio associada aos banhos do mar, as praias do Tejo, como Pedrouços ou Paço de Arcos, não são negligenciadas, pois são “as mais propícias à constituição dos valetudinários [os enfermos] e dos anémicos”. Mas o escritor recusava então a Paço de Arcos a matriz de elitismo que o século XX lhe atribuiria sem favores: “Dizem que é a praia mais aristocrática dos subúrbios de Lisboa. Não sei bem de onde é que esta fama lhe procede. Custa tanto já hoje a assinalar na sociedade portuguesa o ponto em que a aristocracia principia e o ponto em que ela acaba.” Actualmente, as praias que se prolongam da foz do Tejo até Cascais continuam a ser, até pela sua proximidade à capital, imensamente populares. No final do Verão, os areais continuam a receber banhistas e praticantes de desportos náuticos e não consta que o lamento de Ramalho no século XIX (“é pena que, de tantas senhoras que se banham em Pedrouços, no Dafundo, em Paço d’Arcos, em toda a orla do Tejo, tão poucas nadem”) ainda tenha A L I N H A D O E STO R I L

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

justificação. O acesso à praia democratizou-se. Generalizou-se. A fruição da orla marítima modificou-se radicalmente durante o século XX, com evidentes vantagens de saúde e bem-estar, mas trazendo novos transtornos. E homens ilustres como Ramalho, apesar de toda a clarividência e até do gosto pela história natural – uma paixão do autor que o levou a deixar na mesma obra impressões notáveis sobre as espécies de fauna mais comuns na costa portuguesa e respectivos comportamentos e estratégias predatórias –, não poderiam adivinhar que, um século e meio mais tarde, o debate teria outros matizes e seria calibrado em função de valores de conservação, de escassez de stocks e de impactes das actividades humanas sobre os ecossistemas marinhos. a luz do crepúsculo pinta a fachada do Hospital de Sant’Ana, fundado em 1904 para curar doenças reumáticas. Nos estacionamentos junto da praia, AO FIM DA TARDE ,

enquanto os banhistas retardatários arrumam as pranchas, toalhas e raquetes e se dirigem a casa, vêem-se chegar automóveis de alta cilindrada que trazem os clientes dos muitos restaurantes de peixe e marisco instalados junto do mar. Hoje, porém, há um conjunto de automóveis mais modestos que também disputam esses lugares de estacionamento e cujos ocupantes, apesar de também virem à procura de peixe e marisco, não têm como objetivo a degustação. Abrem-se as bagageiras e saem botas de borracha, baldes, camaroeiros e lanternas potentes. O Sol já se pôs e a extensa laje de pedra que só fica exposta em dias de Lua cheia ou Lua nova faz a pequena Praia das Avencas parecer muito maior do que o costume. Em meados da década de 1990, o então jovem estudante de biologia Frederico Almada, que crescera em Parede, começou a acompanhar o já desaparecido biólogo Vítor Almada na monitorização da fauna da zona intertidal (a coincidência dos apelidos de ambos não passa disso mesmo). Sentia-se grande entusiasmo pela conservação no país. Na Arrábida, nascia o Parque Marinho Professor Luiz Saldanha. Na ilha do Corvo, pescadores e mergulhadores entendiam-se para estabelecer uma reserva voluntária no Caneiro dos Meros. E em 1998 foi classificada a Área Marinha Protegida das Avencas, a primeira área marinha protegida com gestão local em Portugal Continental. GRÁFICO: ANYFORMS. FONTE: FREDERICO ALMADA (ISPA) E PROJECTOS FCT/MARE/ISPA-IU, REBREATH/RECIFES INTERTIDAIS (2019) E AQUASIG3 (2020)


Tantas vezes capturadas ilegalmente para decoração, as estrelas-do-mar atrevem-se aqui a sair da água quando as estrelas também surgem no céu. Esta Marthasterias glacialis tem propriedades anti-inflamatórias que a indústria farmacêutica procura replicar.

UMA DÉCADA DE MONITORIZAÇÃO NA ÁREA MARINHA PROTEGIDA DAS AVENCAS TEMPERATURA MÉDIA DA ÁGUA NA ZONA ENTRE-MARÉS DE INVERNO E PRIMAVERA AO LONGO DE 10 ANOS

170 C

170 C

Primavera

160

160

150

150

140

140

130

130

120 Celsius

Inverno 2010

2011

2012

2013

2014

2015

2016

2017

2018

ABUNDÂNCIA TOTAL DE PEIXES JUVENIS (<1 ANO) QUE FORAM CONTABILIZADOS AO LONGO DE 10 ANOS

Frequência da ocorrência de oito das famílias de peixes mais comuns detectadas nos censos.

Sparidae Sargos

46%

Labridae Bodiões

<1%

Cottidae Peixe-escorpião

<1%

Atherinidae Peixe-rei

43%

<1% 8% 1%

2019

120 Celsius

0 10 000 20 000 30 000 40 000 Exemplares

Callionymidae Peixe-pau Moronidae Robalos Mugilidae Tainhas


G R A N D E

A N G U L A R

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Á R E A M A R I N H A P ROT E G I DA DA S AV E N C A S

A semente estava lançada e, no estágio de licenciatura, Frederico aprofundou esse trabalho. Em 2006, já como docente, revisitava a área regularmente através da orientação de dois alunos com trabalhos sobre duas das espécies mais emblemáticas deste ambiente: o sargo e o peixe-rei. Foi no entanto necessário esperar até 2009 para, como docente e investigador do ISPA–Instituto Universitário, montar um dispositivo de monitorização quinzenal que se prolonga até hoje. Enquanto desce as escadas de acesso à praia, acompanhado por um grupo de estudantes que terão a mesma idade que Frederico tinha quando começou este caminho, o biólogo desabafa: “Estudos de monitorização de um ou dois anos são interessantes, mas representam apenas uma fotografia”, diz. “Se queremos ser minimamente eficazes a gerir recursos vivos ou monitorizar alterações ambientais precisamos de um filme.” Este filme pode ser feito com poucos recursos, mas precisa de boa vontade durante um período alargado de tempo. Tem sido graças ao apoio de instituições como a FCT, o Oceanário de Lisboa e a Câmara Municipal de Cascais e ao trabalho voluntário dos estudantes que foi possível chegar até aqui. O competitivo mundo do financiamento científico, onde o mérito tem vindo a ser aferido em função da velocidade e abundância de publicações, não se compadece com o tempo dos estudos de longa duração. Frederico Almada, porém, está convicto de que nem que seja com trabalho voluntário que o sacrifício de sair de casa ao anoitecer depois de um longo dia de trabalho para passar o serão mergulhado na água até à cintura vale a pena. A década de dados acumulados fornece agora um filme com algumas surpresas. Depois de um declínio assustador do número de peixes de algumas espécies nos últimos dois anos, tem vindo a ser possível vislumbrar uma recuperação. Os dados analisados separadamente poderiam ser interpretados primeiro como uma consequência das alterações climáticas ou posteriormente como um sucesso decorrente da criação da Área Marinha Protegida das Avencas, mas Frederico Almada está convicto de que a realidade é mais complexa. “Os sistemas oceânicos são feitos da interacção de muitos factores e as flutuações só podem ser correctamente compreendidas com projectos de monitorização de longa duração”, diz. os biólogos começam a medir sargos, safias, salemas, peixes-rei e a contar polvos, navalheiras, vinagreiras, estrelas-do-mar, nudibrânquios e muitas outras. Ao P O U C O D E P O I S D E E N T R A R E M N A ÁG UA ,

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

avançar um pouco mais em direcção ao mar, já com água pelas virilhas, Frederico começa a contar jovens robalos e vejo-o torcer o nariz. “Hoje, estamos a encontrar um número surpreendentemente elevado de peixes”, explica. “Os robalos são muito vorazes. Se se mantiverem por aqui, vão comer os restantes.” Na zona tidal, como em qualquer habitat, o equilíbrio do ecossistema é frágil. O trabalho da noite ainda não chegou a meio. Enquanto alguns estudantes vão contando ou capturando peixes, outros vão medindo, definindo o género e tirando notas, sempre sob a orientação bem-disposta do professor. Ao longe no areal, recortados contra a iluminação artificial, vemos surgir três silhuetas. Quando se aproximam mais, verificamos que são polícias que estranham um grupo de lanterna em punho a esta hora da noite em acção nas rochas expostas pela baixa-mar. Frederico Almada mostra prontamente as autorizações e louva a iniciativa da polícia, vigilância fundamental para que o estatuto de conservação desta área seja respeitado. Depois da breve interrupção os biólogos voltam ao trabalho. Já passa das 23 horas e ainda há outro canal para prospectar. Este ambiente é rico em espécies residentes, como cabozes, que têm o seu território restrito a uma única poça, mas é também uma área vital para espécies que o usam como maternidade ou onde os juvenis se abrigam antes de terem dimensão para se aventurarem em águas mais profundas. Quando penso nesta imagem, constato que, além do enorme mérito deste projecto para ajudar a compreender o que se passa nos oceanos, ele constitui igualmente um extraordinário laboratório vivo às portas da capital, dando a oportunidade a estudantes e jovens biólogos de porem as mãos na massa antes de se aventurarem no seu próprio caminho. Quando termina o trabalho, já a Estrada Marginal tem pouco movimento. O tempo vai começar a arrefecer, mas Frederico continuará a vir usufruir das esplanadas à beira-mar e visitar a zona entre marés de duas em duas semanas. Medirá com afinco os espécimes que encontrar e avaliará as flutuações de efectivos. Quando regressarem os meses quentes, voltará ao areal com a família. Não está previsto um fim para este projecto invulgar de avaliação de longo curso dos impactes da nossa actividade sobre o mar que nos cerca, mas é possível que mesmo que um dia Frederico se canse, um dos seus alunos pegue na tocha e prossiga a viagem. O conhecimento aqui recolhido por poucos ajudará certamente a que se façam escolhas mais informadas no interesse da preservação dos oceanos de que todos dependemos. j


Ao fundo, as luzes da Marginal e dos seus restaurantes servem de pano de fundo ao trabalho que aqui se repete duas vezes por mĂŞs. Em baixo, uma salema juvenil ĂŠ cuidadosamente medida antes de ser devolvida ao seu habitat.

FEVEREIRO 2020


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EDITORIAL

F E V E R E I R O

Quem decide o que é bonito?

MULHERES, UM SÉCULO DE MUDANÇA

TEXTO DE SUSAN GOLDBERG

tudo aquilo que eu e as minhas amigas considerávamos bonito era tudo aquilo que eu não era: altura, cabelo louro liso, olhos azuis. Queríamos parecer-nos com a Barbie da década de 1960. Com o rabo de cavalo louro e uma silhueta absurdamente inatingível. Todos os dias, o espelho mostrava-me um reflexo de como eu, e outras, falhávamos esse ideal. Como Robin Givhan escreve no ensaio desta edição, “durante gerações, a beleza exigia uma figura esguia, mas com seios fartos e cintura estreita. O maxilar tinha de ser definido e os malares altos e angulosos. O nariz deveria ser direito. Os lábios cheios, mas não tanto que chamassem em excesso a atenção. Os olhos, idealmente azuis ou verdes, grandes e brilhantes. O cabelo tinha de ser comprido, espesso e solto, de preferência louro. A simetria era desejável. Tal como a juventude, claro”. Quando a National Geographic decidiu realizar uma série sobre a condição das mulheres no mundo, discutimos se escreveríamos sobre beleza. Seria isso superficial ou uma reprodução de estereótipos? No final, concluímos que a cobertura estaria incompleta se não abordássemos o papel que a beleza desempenha na vida das mulheres. Em cada país e cultura, as mulheres são julgadas, favorecidas ou desfavorecidas, pela sua aparência de uma forma pela qual os homens não são. As redes sociais aumentam a pressão, com comentários ofensivos sobre o corpo de cada mulher e ideais contaminados pelo Instagram. Nem sequer vamos falar sobre a omnipresença da cirurgia estética. Ainda assim, os padrões de beleza da humanidade estão a expandir-se. A prova é esta fotografia, bem ilustrativa da evolução. A Barbie homogénea da

|

FOTOGRAFIA DE HANNAH REYES MORALES

Q U A N D O E U E R A J OV E M ,

época do baby boom desapareceu, substituída por uma multiplicidade que pode ser apreciada por muitas mais meninas: todas as cores da pele e formas de olhos, todas as texturas de cabelos, narizes, lábios e tipos de corpo diferentes. “Estamos a caminhar no sentido de uma cultura de beleza mais abrangente, para a qual todas somos bem-vindas”, escreve Robin Givhan. Claro que isto ainda não é a realidade. Mas, com o benefício de ter a mesma idade da Barbie (chegámos ao mundo ambas em 1959), fico maravilhada com o progresso. Robin Givhan diz melhor: “A nova interpretação da beleza desafia-nos a declarar que alguém que nem sequer conhecemos é belo. Obriga-nos a seguir o pressuposto de que as pessoas são boas. A beleza contemporânea não nos pede que nos aproximemos da mesa sem juízos de valor. Pede-nos, simplesmente, para partirmos do princípio de que todos os presentes têm direito a estar lá.” Obrigado por ler a National Geographic.

Uma fotografia repleta de Barbies, captada na empresa fabricante, mostra a forma como a boneca foi adaptada para se tornar mais heterogénea e inclusiva. “Todos os dias somos inundados com imagens de beleza”, diz Hannah Reyes Morales, que fotografou a reportagem deste mês. Mas há cada vez mais movimentos globais que “procuram reformular o modo como definimos a beleza”, acrescenta.


O poder das redes sociais e a economia da moda estĂŁo a contribuir para criar uma cultura abrangente na qual todas as mulheres podem ser aclamadas como belas.

ENSAIO DE

R O B I N G I V H A N FOTOGRAFIAS DE

H A N N A H R E Y E S M O R A L E S

Redefinir a

beleza


Halima Aden quebrou barreiras ao vestir um hijab na capa da edição britânica da “Vogue” e na edição de fatos de banho da “Sports Illustrated” de 2019. Nesta imagem, está a ser maquilhada para a Modest Fashion Week, em Istambul, que celebra um lado diferente da moda. Refugiada somali no Quénia, Halima mudou-se para os Estados Unidos e foi a primeira concorrente do concurso Miss Minnesota USA a desfilar de hijab e burquini. 3


Concorrentes do concurso de Miss Rainha da Coreia praticam os seus movimentos sobre a passerelle numa academia de modelos de Seul, na Coreia do Sul. Estas jovens embaixadoras exemplificam a estética da beleza-K, uma indústria estimada em 11,7 mil milhões de euros, considerada por muitos o padrão da beleza na Ásia.




Uma jovem é penteada no salão de beleza e comunidade Coletivo Cabeças, em São Paulo. Em vez de tentar forçar os clientes a conformarem-se, este salão alternativo esforça-se por criar uma sensação de pertença e uma plataforma de liberdade de expressão no Brasil.


Mulheres: Um Século de Mudança UMA SÉRIE ANUAL

Alek Wek figurou na capa de Novembro de 1997 da edição norte-americana da revista “Elle”. Como muitas vezes acontece no negócio da moda, esta foi uma produção global. Com a sua pele de ébano aveludada e um ligeiro vestígio de um penteado afro, Alek foi fotografada em frente de um ecrã branco e austero. O seu simples blazer branco, de Giorgio Armani, quase se fundia com o plano de fundo. Alek, porém, estava intensamente presente. Apresentava-se de pé, na diagonal em relação à lente, mas olhando directamente para esta com um sorriso agradável que lhe enchia o rosto e não era definido por planos e ângulos, mas sim por curvas distintamente africanas, doces e amplas. Alek Wek representava tudo o que as raparigas que costumam figurar nas capas de revistas não são. Mais de vinte anos depois dessa edição da “Elle” (ver página 13), a definição de beleza continuou a alargar-se, criando espaço para mulheres de cor, mulheres obesas, mulheres com vitiligo, mulheres carecas ou mulheres com cabelo grisalho e rugas. Estamos a caminhar no sentido de uma cultura de beleza mais abrangente, para a qual todas somos bem-vindas. Todas somos belas. A versão idealizada pode ser vista em páginas de revista ou nas passerelles de Paris. Tornámo-nos mais tolerantes porque as sociedades assim o exigiram, protestando e utilizando o púlpito intimidante das redes sociais para envergonhar os guardiões dos portões da beleza, obrigando-os a abri-los mais. Alek Wek tem uma nova visão da beleza e essa virtude eternamente ligada às mulheres. Há muito que é um indicador do seu valor social. É também uma ferramenta para ser usada e manipulada. A MO D E LO S U DA N E S A

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Cartazes publicitários em Times Square, em Nova Iorque, bombardeiam os transeuntes com uma grande variedade de anúncios de beleza. As campanhas publicitárias da #ShowUs, da Dove, e da Fenty, de Rihanna, reflectem o esforço para atrair um público mais diversificado para os produtos de beleza e conquistar uma quota de mercado considerável.


“Uma mulher não deve desperdiçar a sua beleza” era uma frase comum no tempo em que o futuro de uma mulher dependia de um bom casamento. A ambição e o potencial do marido deveriam ser tão espectaculares como as suas belas feições. A beleza é, evidentemente, cultural. Aquilo que uma comunidade admira poderá causar indiferença, ou até repugnância, a outros. Aquilo que um indivíduo considera irresistível é banal para outro. A beleza é pessoal, mas também é universal. Há belezas internacionais e são essas pessoas que se tornaram representantes do padrão. Durante gerações, a beleza exigia uma figura esguia, mas com seios fartos e cintura estreita. O maxilar tinha de ser definido e os malares altos e angulosos. O nariz deveria ser direito. Os lábios cheios, mas não tanto que chamassem em excesso

a atenção. Os olhos, idealmente azuis ou verdes, grandes e brilhantes. O cabelo tinha de ser comprido, espesso e solto, de preferência dourado. A simetria era desejável. Tal como a juventude, claro. Esse foi o padrão nos primeiros tempos das revistas femininas, época em que a beleza foi codificada e comercializada. As grandes belezas e os “cisnes” (mulheres como a actriz Catherine Deneuve ou a princesa Grace) aproximavam-se muito deste ideal. Quanto mais se afastasse desta versão da perfeição, mais exótica a mulher se tornava. Se se afastasse demasiado, ela seria simplesmente considerada menos atraente ou desejável, logo menos valiosa. Para algumas mulheres negras ou castanhas, obesas ou idosas, a beleza parecia impossível de alcançar na cultura dominante. REDEFINIR A BELEZA

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Muitos pontos

de vista A tecnologia proporcionou o poder de definir a beleza. Os telemóveis dão maior controlo sobre a imagem e incluem apps com filtros que podem ser usados para efeitos de diversão ou para alterar a aparência. N O S E N T I D O H O R Á R I O, A PA RT I R D O TO P O D I R E I TO :

Bloggers de moda que acompanham a Modest Fashion Week reúnem-se para uma viagem de barco em Istambul. Uma modelo tira uma selfie no Vendôme Luxury Trade Show, 10

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


durante a Semana da Moda de Paris, líder global dos padrões da moda e da beleza. Membros da Girls’Alert, uma banda de k-pop, tiram uma selfie nos bastidores antes do lançamento na imprensa do seu novo single, “We Got the Power”. Na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, a selfie faz parte da paisagem. Visitantes do Museu das Selfies, em Los Angeles, brincam numa piscina de bolas com emojis, onde podem captar fotografias com fundos criativos e aprender sobre a história do auto-retrato. REDEFINIR A BELEZA

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No início da década de 1990, a definição de beleza imposta às mulheres começou a alargar-se com a chegada de Kate Moss e da sua figura magra e estética vagamente endiabrada. Com 1,70 metros, era baixa de mais para modelo. A adolescente britânica não era particularmente graciosa e faltava-lhe o porte aristocrático que dava uma aparência principesca a muitas outras modelos. A ascensão ao estrelato de Moss, como protagonista dos anúncios da marca Calvin Klein, implicou um grande afastamento relativamente às gazelas de pernas longas do passado. Kate Moss perturbou o sistema da beleza, mas ainda se enquadrava na zona de conforto da indústria, com o seu conceito branco e europeu de beleza. O mesmo se aplicou aos porta-estandartes da juventude da década de 1960, como Twiggy, com o seu físico esguio, desajeitado e sem as curvas como um rapazinho de 12 anos. A década de 1970 trouxe-nos Lauren Hutton, que causou grande escândalo pelo simples facto de ter um espaço entre os dentes. As primeiras modelos negras a quebrarem barreiras eram relativamente seguras: mulheres como Beverly Johnson, a primeira afro-americana a figurar na capa da “Vogue” norte-americana, a somali Iman, Naomi Campbell ou Tyra Banks. Tinham feições esbeltas e cabelo solto ou perucas ou madeixas que criavam a ilusão de o terem. Iman tinha um pescoço luxuriantemente comprido que fez a lendária editora de moda Diana Vreeland ficar sem fôlego. Naomi Campbell era toda pernas e ancas e Tyra Banks alcançou a fama depois de uma sessão de fotografia como rapariga normal de biquini às bolinhas na capa da “Sports Illustrated”. A L E K W E K F O I U M A R E V E L AÇ ÃO .

A sua beleza era

completamente diferente. O seu cabelo encarapinhado apresentava-se cortado rente ao couro cabeludo. A sua pele aparentemente sem poros tinha a cor do chocolate negro. O nariz era largo e os lábios grossos. As pernas eram impossivelmente compridas e incrivelmente finas. Na verdade, todo o seu corpo parecia uma figurinha de madeira africana, rija e esticada, que ganhara vida. Para olhos treinados para interpretar a beleza através da lente da cultura ocidental, Alek Wek foi chocante… e os negros não foram excepção. Muitos não a consideravam bela. Até mulheres que poderiam olhar para o espelho e ver a mesma pele quase tão escura como carvão e o cabelo 12

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

encarapinhado devolvidos pelo reflexo tiveram dificuldades em identificar-se com a rapariga que figurava na capa da “Elle”. Ela foi abrupta e urgentemente transformativa. Era como se uma enorme montanha cultural tivesse sido escalada, subindo a direito por uma encosta íngreme, como se não houvesse tempo nem paciência para atenuar o esforço com ziguezagues. A aclamação de Alek Wek foi excitante e vertiginosa. Ela era o oposto de tudo o que existira anteriormente. Hoje, estamos numa posição mais confortável do que a geração passada, mas ainda não atingimos a utopia. Muitos dos recantos mais exclusivos da beleza ainda não aceitam mulheres de maiores dimensões, com deficiências ou mais velhas. Para ser franca, porém, não sei exactamente como será a utopia. Será um mundo onde todas recebem uma tiara e uma faixa de rainha de beleza só por comparecerem ao evento? Ou será um mundo no qual a definição de beleza é tão alargada que perde o significado? Talvez o caminho para a utopia seja reescrever a definição do próprio mundo para melhor reflectir a maneira como o entendemos hoje, algo superior ao mero prazer estético. Sabemos que a beleza tem valor financeiro. Queremos encontrar-nos rodeados de pessoas bonitas que nos agradem, mas também porque pensamos que elas são seres humanos intrinsecamente melhores. Disseram-nos que as pessoas atraentes recebem melhores salários. A verdade é um pouco mais complexa: aquilo que obtém melhor pagamento é uma receita composta por beleza, inteligência, charme e simpatia. Ainda assim, a beleza faz parte integrante da equação. No entanto, a um nível poderosamente emocional, o epíteto atraente significa ser-se bem-vindo ao diálogo cultural. Tornamo-nos parte do público do marketing e da publicidade. Somos desejadas. Vistas e aceites. Quando surgem questões sobre a aparência de alguém, isso traduz perguntas como: “Até que ponto é aceitável? Até que ponto é relevante? Será que ela interessa?” Actualmente, a sugestão de que uma mulher não é bonita tem custos sociais e pode até produzir uma das típicas vagas de fundo das redes sociais. Que tipo de monstro declara que outro ser humano não é atraente? Fazê-lo é quase como considerar essa pessoa inútil. É melhor mentir. Claro que és bonita, querida, claro que és. Chegámos a um ponto em que a beleza equivale a humanidade. Se não virmos beleza noutra pessoa, é porque somos cegos perante a sua hu-


manidade. É assustador ver quão importante a beleza se tornou. O alcance da beleza prolonga-se até à própria alma da pessoa. A beleza tornou-se tão importante que negar que alguém a possua é equivalente a negar-lhe oxigénio. para descrever o ideal feminino: caseira, jolie laide, atraente, bonita e, por fim, bela. A mulher caseira fazia aquilo que podia com aquilo que tinha. Adaptava-se à evidência de a aparência não ser o seu ponto forte. Era aquela mulher com uma personalidade espectacular. As mulheres arrebatadoras tinham algumas características que as fazia sobressair entre a multidão: lábios grossos, nariz aristocrático, uma poitrine gloriosa. Muitas mulheres pode-

pel é animarem-nos constantemente, dizendo-nos que somos perfeitas tal como somos. E a globalização de tudo significa que, algures, existe alguém que irá apreciar-nos em toda a nossa magnificência… seja lá o que for. Somos todas belas.

A N T I G A M E N T E , H AV I A G R A DAÇ Õ E S

Londres, Milão e Paris (as capitais tradicionais da moda mundial), os códigos de beleza mudaram de forma mais dramática nos últimos dez anos do que nos cem anteriores. Historicamente, as mudanças ocorriam devagar. As alterações na estética não eram lineares e, apesar da reputação rebelde da moda, a mudança processava-se lentamente. As revoluções mediam-se em escassos centímetros. E M N OVA I O R Q U E ,

Ver e

ser visto

“Elle” Alek Wek

1997

2 0 1 6 “Sports Illustrated” Ashley Graham

2 0 1 8 “Vogue” britânica Vittoria Ceretti, Halima Aden, Adut Akech, Faretta Radic, Paloma Elsesser

riam ser descritas como atraentes. Estavam a meio da curva de Bell. Ser bonita já é diferente. Hollywood está cheia de gente bonita. Ah, mas a beleza! Beleza era uma descrição reservada a casos especiais, às vencedoras da lotaria genética. A beleza até poderia ser um fardo porque assustava os outros. Intimidava-os. A beleza era excepcional. No seu conjunto, os avanços da cirurgia plástica, o desenvolvimento de uma nutrição mais personalizada e eficaz, o florescimento da indústria do fitness e a ascensão dos filtros das selfies nos smartphones, juntamente com o botox, preenchimentos e a invenção do Spanx, ajudaram-nos a ter melhor aspecto, aproximando-nos um pouco mais da excepcionalidade. Terapeutas, bloggers, influenciadores, estilistas e amigos cheios de boas intenções fizeram-se ouvir, num coro de mantras positivos sobre o corpo: Força, miúda! A sua função não é dizerem-nos verdades duras, nem contribuírem para que tenhamos uma visão realista de quem somos ou para que sejamos melhores versões de nós próprias. O seu pa-

As revistas de moda e beleza são um paradigma de ambição, definindo frequentemente padrões de beleza para mulheres de todas as culturas. As revistas também funcionam como anúncios gigantes para as indústrias que dependem da venda destes ideais aos consumidores.

Ao longo dos anos, valorizou-se primeiro uma forma angulosa, seguida da fase da forma mais curvilínea. O tamanho de roupa médio de uma modelo, representativo do ideal dos estilistas, encolheu do 38 para o 32. As louras pálidas da Europa de Leste dominaram as passerelles até as louras beijadas pelo sol do Brasil as destituírem. O corpo da alta-costura (magro, sem ancas e praticamente sem peito) pode ser observado em imagens clássicas captadas por Irving Penn, Richard Avedon e Gordon Parks, bem como nas passerelles de estilistas como John Galliano e Alexander McQueen. Um dia, Miuccia Prada, pioneira na promoção de uma passerelle quase homogénea de modelos magras, brancas e pálidas, adoptou subitamente a figura de ampulheta. De seguida, a modelo de tamanhos grandes Ashley Graham apareceu na capa da edição de fatos de banho da “Sports Illustrated” em 2016. Em 2019, Halima Aden foi a primeira modelo a usar um hijab nessa mesma revista. De repente, o mundo da moda debateu o pudor e a beleza de corpos mais voluptuosos…. Os progressos são vertiginosos.

CAPAS, A PARTIR DA ESQUERDA: PUBLICADO NA REVISTA “ELLE”, 1997, REIMPRESSO COM AUTORIZAÇÃO DE HEARST MAGAZINES, INC., FOTOGRAFIA DE GILLES BENSIMON; FOTOGRAFIA DE JAMES MACARI, “SPORTS ILLUSTRATED”, CONTORNO DE GETTY IMAGES; FOTOGRAFIA DE CRAIG MCDEAN, “VOGUE” © THE CONDÉ NAST PUBLICATIONS LTD.

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Adisa Steele posa durante uma sessão fotográfica em Los Angeles, com a Slay Model Management, que representa modelos transgénero. Em 2019, os modelos transgénero fizeram 91 participações em passerelles de todo o mundo. Marcas como a CoverGirl estão, cada vez mais, a escolher modelos transgénero, aumentando a sua visibilidade.



Na última década, a beleza progrediu rumo a territórios anteriormente considerados nichos. Termos como não-binário e transgénero fazem agora parte da narrativa comercial da beleza. Enquanto os direitos das comunidades LGBTQ eram codificados nos tribunais, a sua estética específica foi absorvida pelo diálogo da beleza. Modelos transgénero pisam as passerelles e figuram em campanhas publicitárias. Os seus corpos são aclamados como fontes de inspiração. O catalisador da mudança na forma como entendemos a beleza foi uma tempestade perfeita de tecnologia, economia e uma geração de consumidores com um conhecimento estético apurado. Quando falo em tecnologia, refiro-me às redes sociais em geral e ao Instagram em particular. O factor económico fundamental é a concorrência implacável pelo aumento da quota de mercado e a necessidade de cada empresa aumentar o seu público-alvo de potenciais consumidores 16

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

– dos vestidos de marca aos bâtons. E os líderes dos estudos demográficos, como sempre nos dias que correm, são os millennials, com uma ajuda de baby boomers que fazem tenção de morrer com abdominais bem definidos. As redes sociais mudaram a forma como os jovens consumidores se relacionam com a moda. É difícil de acreditar, mas, na década de 1990, a ideia de os fotógrafos publicarem imagens das passerelles na Internet era escandalosa. Os estilistas viviam sob o terror de verem as suas colecções publicadas na Internet, temendo que pudessem dar origem a falsificações que lhes arruinassem o negócio. E a grande revolução viabilizada pela Internet consistiu no facto de os consumidores passarem a conseguir ver, quase em tempo real, toda a amplitude da estética da indústria da moda. No passado, as produções eram mantidas em segredo. Não eram feitas a pensar nos consumidores, e as pessoas que assistiam aos desfiles fala-


as vozes das comunidades minoritárias para que as suas reivindicações de representatividade não possam ser tão facilmente ignoradas. Além disso, o aumento de publicações digitais significa que todos os mercados se tornaram mais fluentes na linguagem da estética. Surgiu uma nova categoria de negociadores de poder: em inglês, os influencers. São jovens e independentes, obcecados com o glamour da moda. Os influenciadores da moda não aceitam desculpas, condescendência ou pedidos paternalistas de paciência porque a mudança parece iminente. Os padrões da beleza contemporânea no Ocidente sempre assentaram na magreza. E quando as taxas de obesidade eram menores, as modelos magras pareciam apenas ligeiramente exageradas aos olhos da população em geral. No entanto, à medida que as taxas de obesidade aumentavam, a distância entre a realidade e a fantasia aumentava. Os consumidores começaram a sentir-se impacientes perante uma fantasia que já não lhes parecia sequer remotamente tangível. As bloggers obesas avisaram os críticos, pedindo-lhes que parassem de mandá-las perder peso e de sugerir-lhes maneiras de camuflar os seus corpos. Estavam perfeitamente satisfeitas com os seus corpos. Queriam apenas que a moda fosse melhor. Queriam que a roupa fosse do seu tamanho – não saias mais compridas ou reformulações de vestidos justos, sem mangas. Não exigiam que as considerassem belas. Estavam a exigir acesso ao estilo que achavam merecer. Desta maneira, a beleza e a auto-estima tornaram-se indissociáveis. Em termos económicos, o acesso das mulheres corpulentas ao espectro de consumo fez sentido. Vinculando-se aos padrões de beleza tradicionais, a indústria da moda estava a deixar escapar oportunidades de negócio. Estilistas como Christian Siriano fizeram questão de oferecer opções a clientes mais corpulentas e, ao fazê-lo, foram louvados como inteligentes e heróis do capitalismo. Hoje em dia, é relativamente comum, até nas marcas mais exclusivas, haver modelos corpulentas nos desfiles. Contudo, esta nova forma de pensar não se resume a vender mais vestidos. Se a questão fosse meramente económica, os estilistas já teriam, há muito, alargado os tamanhos, porque sempre existiram mulheres grandes capazes de seguir a moda e dispostas a isso. Ser grande não era considerado belo e até Oprah Winfrey fez dieta antes de posar para a capa da “Vogue” em 1998. AS REDES SOCIAIS AMPLIARAM

Hyejin Yun submete-se a uma intervenção cirúrgica às pálpebras na Clínica Hyundai Aesthetics, em Seul. O procedimento cria a ilusão de que os olhos são maiores. A Coreia do Sul tem uma das maiores taxas de cirurgia plástica do mundo. Uma em cada três mulheres com 19 a 29 anos já fez cirurgia plástica.

vam o mesmo dialecto de moda. Para elas, os conceitos ali exibidos não deveriam ser interpretados literalmente: ignoravam questões de apropriação cultural; estereótipos racistas e todas as variedades de ismos; ou estavam dispostas a ignorá-los. Os negociadores de poder do mundo da moda perpetuavam as tradições dos seus antecessores, utilizando alegremente pessoas com pele negra ou castanha como acessórios, em sessões fotográficas protagonizadas por modelos brancos. No entanto, um grupo cada vez mais diversificado de consumidores endinheirados, uma rede de venda a retalho mais abrangente e a nova paisagem das redes sociais obrigaram a indústria da moda a pensar melhor na forma como representa a beleza. Marcas de roupa e cosmética têm agora o cuidado de levar em consideração o crescente número de consumidores da indústria de luxo em países como a Índia e a China, recorrendo a mais modelos asiáticas.

REDEFINIR A BELEZA

17


Marcadas pela

beleza

EUROPA

AMÉRICA DO NORTE

5

ÁSIA

2 1

3

8

7

4

ÁFRICA

6

AMÉRICA DO SUL OCEÂNIA

ANTIGO EGIPTO 3100-30 A.C.

1. COSMÉTICA DRAMÁTICA

1.

Ambos os sexos usavam maquilhagem pesada nos olhos, tipicamente kohl, para escurecer e contornar as pálpebras, para fins religiosos e medicinais. Acreditava-se que este mineral escuro prevenia infecções oftalmológicas e afastava o mal e poderia ser complementado com pormenores verdes nas pálpebras. O uso de perucas com cabelo encaracolado ou entrançado também era popular.

ROMA ANTIGA FIM DO SÉCULO I D.C.

2. PENTEADOS ALTOS

A elite de Roma usou penteados cada vez mais elaborados na fase inicial do império. Os escravos ajudavam as mulheres a encaracolar o cabelo com um calamistrum (ferro de enrolar aquecido sobre brasas quentes). Os penteados mais complicados poderiam exigir horas de trabalho a uma ornatrix (cabeleireira), recorrendo a perucas ou extensões de cabelo.

2.

MAIA CLÁSSICO 250-900 D.C.

3. MODIFICAÇÃO MAIA

O formato das cabeças dos bebés era alterado atando tábuas ao crânio para criar uma aparência alongada. Pensa-se que os maias faziam-no para imitar o deus do milho, cuja cabeça tinha a forma de maçaroca. Também alteravam os dentes, preenchendo-os e incrustando-os com pedras como jade, uma forma de assinalar a transição para a idade adulta.

3. DINASTIA TANG, CHINA 618-907

4. IMITAÇÃO DA NATUREZA

As mulheres tang pintavam marcas vermelhas, pretas e amarelas na testa e nas bochechas, com a forma de flores, insectos e outros desenhos para esconder manchas e imperfeições. As sobrancelhas naturais eram arrancadas e pintadas com vários contornos dramáticos. Os lábios eram artisticamente desenhados para se assemelharem a pétalas de flores.

FONTES (ARTE): 2) “BUSTO FONSECA”, MUSEUS CAPITOLINOS, ROMA; 4) “DANÇARINA”, MUSEU DA REGIÃO AUTÓNOMA DE XINJIANG UIGUR; 5) “PORTRAIT OF A LADY”, ROGIER VAN DER WEYDEN, GALERIA NACIONAL DE ARTE, WASHINGTON, DC; 7) “LADIES AROUND A SAMOVAR,” ISMA’IL JALAYIR, MUSEU VICTORIA E ALBERT, LONDRES; 8) “PORTRAIT OF A WOMAN”, MUSEU METROPOLITANO DE ARTE, NOVA IORQUE

4.


Há milénios que buscamos a beleza, aprimorando-nos e pintando-nos até alcançarmos um ideal mais desejável. Culturas de todas as épocas tiveram diferentes padrões de beleza feminina e inúmeros modos de alcançá-la, desde os cosméticos tóxicos cheios de chumbo do passado às injecções de botox do presente. No entanto, os padrões têm frequentemente os mesmos objectivos: atrair e conservar um parceiro; mostrar estatuto social, riqueza, saúde ou fertilidade; e, evidentemente, sentirmo-nos belas. EUROPA TARDO-MEDIEVAL 1300-1500

5. SIMPLES E PIEDOSO

As sobrancelhas eram impiedosamente arrancadas, bem como a linha natural do cabelo, para criar a elegante testa alta que se popularizou na Europa medieval e do Renascimento. A palidez era valorizada e o cabelo poderia ser pintado com uma variedade de cores, incluindo o louro. Um toucado poderia complementar a aparência delicada e devota.

5.

MICRONÉSIA DATA DESCONHECIDA – ACTUALIDADE

6. ENCANTO DAS CURVAS

Em muitas sociedades do Pacífico, um corpo mais volumoso era frequentemente símbolo de estatuto, riqueza e saúde. Nas mulheres, o físico robusto foi durante muito tempo considerado belo, atraente para os homens e uma mais-valia em termos de procriação. Nas últimas décadas, porém, a preferência por figuras mais esguias tem vindo a crescer.

6.

DINASTIA QAJAR, PÉRSIA 1785-1925

7. ÊNFASE NA SOBRANCELHA 7.

As mulheres tinham ao seu dispor diversos produtos cosméticos para aperfeiçoar a aparência, sobretudo dos olhos e das sobrancelhas. O surma (kohl) definia os olhos, fazendo-os parecer maiores. O wasma (uma pasta densa fabricada a partir de índigo) escurecia, espessava e, frequentemente, ligava as sobrancelhas para criar um efeito considerado particularmente atraente. SENEGAL INÍCIO DO SÉCULO XX

8. PENTEADOS CUIDADOS

8.

O penteado nguuka era popular entre as mulheres casadas. Lã negra era utilizada para ajudar a formar duas grandes esferas que cobriam as orelhas, ligadas por um pedaço de tecido esticado sobre o topo da cabeça. Pendentes de ouro ou de outros materiais eram frequentemente usados como decoração deste penteado requintado.

MONICA SERRANO; AMANDA HOBBS. ARTE DE JANICE SUNG.


As atitudes estão a mudar, mas o mundo da moda continua pouco à vontade com as mulheres corpulentas – por mais famosas ou ricas que sejam ou por mais bonitos que os seus rostos sejam. Elevá-las ao estatuto de ícones é um obstáculo psicológico complicado para os árbitros da beleza: eles precisam de um élan sofisticado nos seus símbolos de beleza; precisam de linhas alongadas e ângulos bem definidos; precisam de mulheres que caibam nos tamanhos das amostras. No entanto, em vez de funcionarem no vazio, estão a funcionar no novo ambiente das redes sociais. As pessoas normais reparam se os estilistas têm um conjunto diversificado de modelos e, caso não tenham, os críticos podem verbalizar a sua ira nas redes sociais, levando um exército furioso de almas que pensam da mesma maneira a clamar por mudança. Os media digitais aumentaram a probabilidade de as notícias sobre modelos macilentas e anorécticas 20

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alcançarem o grande público e agora o público dispõe de uma forma de pressionar a indústria da moda para que não contrate essas mulheres mortalmente magras. Na Internet, o sítio Fashion Spot transformou-se num vigilante da diversidade, publicando relatórios demográficos regulares sobre as passerelles. Quantas modelos são de cor? Quantas são mulheres corpulentas? Quantas são transgénero? Quantas são modelos mais velhas? Poderíamos pensar que, à medida que envelhecessem, as estilistas começariam a destacar as mulheres mais velhas no seu trabalho. No entanto, as mulheres do mundo da moda pertencem ao mesmo culto de beleza que criaram. Injectam botox e fazem dieta. São adeptas dos alimentos crus e do SoulCycle. Quantas vezes se viu uma estilista rechonchuda? Ou com cabelo grisalho? As estilistas ainda usam o termo “velhota” para descrever roupas que


os órgãos de comunicação social convencionais partilham agora a influência com os órgãos digitais, as redes sociais e uma nova geração de escritores e editores que se tornaram maiores de idade num mundo mais multicultural, um mundo com uma opinião mais fluida de género. A geração millennial, constituída pelos indivíduos nascidos entre 1981 e 1996, não é propensa a adaptar-se à cultura dominante, preferindo destacar-se com orgulho. A nova definição de beleza está a ser escrita por uma geração de selfies: pessoas que são as estrelas de capa das suas próprias narrativas. A nova beleza não se define pelos penteados ou pela forma do corpo, pela idade ou pela cor da pele. A beleza está a tornar-se menos uma questão de estética e mais de autoconsciência, autoconfiança e individualidade. É sobre braços esculpidos, pestanas falsas e uma testa sem rugas. Mas também é sobre ventres arredondados, cabelos prateados reluzentes e imperfeições mundanas. Beleza é uma millennial pavoneando-se pela cidade vestida de leggings e top curto, com a barriga sobressaindo sobre o cós. É um rapaz descendo pela passerelle com botas acima dos joelhos e calções pelas coxas. Beleza tem que ver com correcção política, esclarecimento cultural e justiça social. NO OCIDENTE,

Ami McClure entrança o cabelo das filhas na sua casa de Nova Jersey, enquanto as gémeas Alexis (de cor-de-rosa) e Ava (vestida de roxo), penteiam as bonecas. A carreira das gémeas McClure na indústria da beleza começou com o destaque dado ao seu cabelo natural depois de se tornarem populares no YouTube. Têm quase dois milhões de seguidores no Instagram.

não são atraentes. Um vestido de “matrona” é um vestido que não favorece as formas ou parece antiquado. A linguagem evidencia o preconceito. Hoje em dia, porém, as mulheres não o aceitam sem pestanejar. Revoltam-se. Usar a palavra “velho” como sinónimo de não atraente não vai durar. A disseminação de marcas de luxo na China, na América Latina e em África forçou os estilistas a pensarem na melhor forma de venderem os seus produtos a estes consumidores, evitando simultaneamente os campos culturais minados. Tiveram de navegar entre o aclaramento da pele em algumas zonas de África, a cultura de Lolitas fofinhas do Japão, a obsessão por cirurgia às pálpebras em determinados países do Leste da Ásia e preconceitos em relação à cor em… bem, em todo o lado. A beleza idealizada precisa de uma nova definição. Quem a cunhará? E qual será essa definição?

existe um colectivo de moda chamado Vaquera que organiza desfiles em cenários dilapidados com luz dura e sem qualquer glamour. As modelos poderiam ter saído da carruagem de comboio depois de uma noite mal dormida. Trazem o cabelo despenteado. A sua pele parece coberta por uma película fina e brilhante de oleosidade nocturna. Pisam com força a passerelle. A sua maneira de andar pode ser interpretada como zangada, desastrada ou apenas ligeiramente ressacada. Modelos com aparência masculina envergam vestidos de princesa, que lhes pendem dos ombros com todo o encanto de uma cortina de duche. Modelos com aparência feminina andam, rápida e agressivamente, com uma postura encurvada e expressão sombria. Em vez de alongarem as pernas e criarem uma silhueta de ampulheta, as roupas fazem as pernas parecer compactas e o tronco atarracado. Vaquera é uma de várias empresas que seleccionam os seus modelos na rua, o que significa escolher pessoas excêntricas e pô-las na passerelle. No essencial, a empresa decreta que são belas. (Continua na pg. 26) E M N OVA I O R Q U E ,

REDEFINIR A BELEZA

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Raparigas das favelas do Rio de Janeiro têm uma aula de ballet na academia Na Ponta dos Pés, uma iniciativa de Tuany Nascimento. Bailarina também originária das favelas, Tuany acha que o ballet pode ser uma maneira de as raparigas aceitarem os seus corpos e desenvolverem autoconfiança. Ela acredita que beleza e força são indestrinçáveis.



Flávia Carvalho e Júlia Maria Vecchi frequentam uma festa dedicada à diversidade sob todas as suas formas em São Paulo. Desencadeado pelas redes sociais, o movimento de aceitação do corpo no Brasil incentiva as pessoas a “viverem livremente nos seus corpos”, diz Flávia.


Há não tanto tempo como isso, a marca de roupa Universal Standard divulgou uma campanha publicitária com uma mulher que veste um tamanho 56. Ela posou de cuecas, camisola interior e meias brancas. A iluminação era básica, o cabelo apresentava-se ligeiramente frisado e as coxas encovadas por celulite. Não havia nada de mágico ou inacessível naquela imagem. O realismo era exagerado, o oposto de um anjo da Victoria’s Secret. Todos os pressupostos da beleza foram subvertidos. Este era o novo normal e era chocante. Há até quem possa afirmar que era bastante feio. Por mais que peçam inclusão e aparência normal (as ditas pessoas reais), muitos consumidores continuam desalentados com o facto de isto… enfim, isto ser considerado beleza. Olham para uma mulher com 90 quilogramas e, depois de reconhecerem rapidamente a sua autoconfiança, começam a exprimir preocupações relativamente à sua saúde, apesar de nunca terem visto a sua ficha clínica. É um tema de conversa mais educado do que o argumento de que ela não é bonita. No entanto, o simples facto de esta modelo da Universal Standard andar de roupa interior sob os holofotes – como os anjos de Victoria’s Secret se apresentaram na geração anterior – é um acto de protesto político. Não se trata de querer ser uma pin-up, mas de querer que exista o direito de um corpo existir sem ser julgado negativamente. Enquanto sociedade, ainda não lhe reconhecemos o direito a simplesmente existir. Pelo menos, o mundo da beleza está a dar-lhe uma plataforma para ela se exprimir. Não é apenas uma exigência das mulheres corpulentas. As mulheres mais velhas insistem em ocupar o seu lugar na cultura. As mulheres negras exigem que as mostrem com o seu cabelo natural, mas não existe um território neutro. O corpo, o rosto e o cabelo tornaram-se políticos. Beleza significa respeito, valor e direito a existir sem precisarmos de alterar a essência de quem somos. Para uma mulher negra, o facto de o seu cabelo natural ser considerado bonito significa que os seus caracóis crespos não indicam que ela seja pouco profissional. Para uma mulher corpulenta, o facto de os seus pneus serem incluídos nas conversas sobre beleza significa que ela não será castigada por estranhos por comer uma sobremesa em público. Ela não terá de provar ao seu empregador que não é preguiçosa, que não lhe falta motivação ou autocontrolo. Quando as rugas de uma mulher mais velha são consideradas belas, isso significa que essa mulher está a ser reconhecida. Não está a ser 26

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JoAni Johnson, que iniciou a carreira como modelo depois dos 60 anos, posa para um retrato na cidade de Nova Iorque. Ela já desfilou e participou em campanhas publicitárias na imprensa escrita para marcas como Fenty, Eileen Fisher e Tommy Hilfiger. As campanhas publicitárias eram, tipicamente, dominadas por modelos jovens.

ignorada como um ser humano pleno: sexual, divertida, inteligente e, provavelmente, preocupada com o mundo à sua volta. A aceitação de beleza nos músculos trabalhados de uma mulher é aceitar a sua força, mas também a rejeição da ideia de que a beleza feminina equivale a fragilidade e fraqueza. A força física pura é deslumbrante. “Sê quem és”, lia-se numa T-shirt do desfile de Primavera de 2020 da Balmain, em Paris. O director criativo da marca, Olivier Rousteing, é conhecido por se concentrar na inclusão na beleza. Juntamente com Kim Kardashian, ele ajudou a popularizar a noção de “magra com curvas”, a descrição do século XXI de uma figura de ampulheta, ajustada através da prática desportiva. “Magra com curvas” descreve uma mulher com um traseiro, seios e coxas proeminentes, mas um tronco esguio e tonificado. É um tipo de corpo que vendeu inúmeras cintas de treino e foi utilizado para descrever mulhe-


res como a cantora e empresária de moda Rihanna, que não têm o físico seco de uma maratonista. Magra com curvas poderá ser outro tipo de físico com o qual as mulheres terão obsessões. Mas também permite às mulheres cunharem um termo para descreverem o seu corpo, transformarem-no num hashtag e começarem a contar os gostos. Sê quem és. de grupos de mulheres em férias ou de uma mãe com o seu filho, vejo amizade e lealdade, alegria e amor. Vejo pessoas que parecem exuberantes e confiantes. Talvez se eu tivesse oportunidade de falar com elas, se as achasse inteligentes e espirituosas, ou incrivelmente carismáticas, se as conhecesse melhor e gostasse delas, tenho a certeza de que também as descreveria como belas. Se eu olhar para um retrato da minha mãe, vejo uma das pessoas mais belas do mundo – não por Q U A N D O O L H O PA R A F O T O G R A F I A S

causa dos seus malares, nem do seu físico atraente, mas porque conheço o seu coração. Enquanto cultura, concordamos silenciosamente que aquilo que importa é a beleza interior quando, na verdade, é a versão exterior da beleza que tem valor social. A nova interpretação da beleza desafia-nos a declarar que alguém que nem sequer conhecemos é belo. Requer que nos relacionemos com as pessoas de forma quase infantil, com facilidade e à vontade. A beleza contemporânea não nos pede que nos aproximemos da mesa sem juízos de valor. Pede-nos, simplesmente, para partirmos do princípio de que todos os presentes têm direito a estar lá.  j

Robin Givhan é jornalista. Já recebeu o Prémio Pulitzer, é crítica de moda do Washington Post e autora da obra "The Battle of Versailles: The Night American Fashion Stumbled into the Spotlight and Made History". REDEFINIR A BELEZA

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ENGENHEIROS E ARQUITECTOS DA NATUREZA O S M E L H O R E S E X E M P LO S DA P E R Í C I A DOS ANIMAIS E COMO ELES INSPIRAM AS NOSSAS CONSTRUÇÕES

No Território do Norte, na Austrália, as térmitas constroem montículos semelhantes a catedrais de barro que chegam a atingir seis metros de altura. Graças a sofisticados sistemas de ventilação, estas arquitectas de sucesso conseguem que a temperatura se mantenha constante no interior. INGO ARNDT/MINDEN PICTURES



Nas montanhas Arfak, na Indonésia, o jardineiro-pardo (Amblyornis inornata) constrói câmaras artísticas, que decora com flores, fruta, folhas, fungos e musgo e até com lixo para atrair as fêmeas. INGO ARNDT/MINDEN PICTURES



T E X T O D E E VA VA N D E N B E R G

TO D O S O S A N O S , C O M A C H E G A DA DA P R I M AV E R A ,

os choupos-brancos (Populus alba) libertam a sua carga de sementes. Graças ao revestimento de penugem branca, dispersam-se pelo vento como flocos de neve. Essa poeira é constituída por filamentos leves e resistentes que permitem às sementes navegar pelo ar e germinar em solos distantes da árvore-mãe. Para muitos animais, como o chapim-de-faces-pretas, esta abundante matéria-prima é muito útil para a construção dos ninhos. Esta pequena ave de dez centímetros constrói um dos ninhos mais complexos da avifauna ibérica, algo que o naturalista Jordi Sargatal já observou várias vezes num território que conhece bem: o Parque Natural dels Aiguamolls de l’Empordà, uma das zonas húmidas mais importantes da Catalunha. “Os chapins-de-faces-pretas constroem o ninho em árvores perto da água, sobretudo salgueiros, e escolhem ramos finos e flexíveis para evitar que os predadores, demasiado pesados, consigam aceder-lhe”, explica. Quando a época de acasalamento se avizinha, os machos constroem estes ninhos globulares para atrair as fêmeas. “Entrelaçam fibras vegetais com grandes quantidades de poeira, pedaços de lã de ovelha que encontram presos no matagal e, até, teias de aranha”, acrescenta. O resultado é um ninho extraordinariamente elástico e denso que pende da ponta do ramo e que possui uma abertura tubular de acesso ao interior. A estrutura é muito resistente e suporta tanto as chuvas como os embates da nortada. Se o ninho agradar a uma das fêmeas, esta terminará a obra e tratará de forrar e acondicionar o interior. 32

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Depois da cópula, fará a postura dos ovos e, quando os pintos estiverem por sua conta, o ninho será abandonado. No resto do ano, as aves procurarão abrigo no meio da vegetação e essa obra de arte que tanto trabalho deu a construir – entre 8 e 16 dias de dedicação absoluta – será, provavelmente, desmantelada pelas forças da natureza e convertida de novo em matéria orgânica reciclável que voltará a ser utilizada por uma grande profusão de seres vivos. O chapim-de-faces-pretas não é a única ave tecelã. Existem no mundo mais de cem espécies que fazem ninhos semelhantes com diferentes fibras vegetais. Também há formigas tecelãs, como as do género Oecophylla, com hábitos arborícolas e cujas obreiras constroem formigueiros aéreos cosendo folhas com a seda segregada pelas larvas. E, evidentemente, há o caso das aranhas: mais de 41 mil espécies segregam múltiplos fios de seda para tecer redes com propriedades biomecânicas ultrarresistentes. Algumas são enormes, como a que se encontrou em Madagáscar em 2009, fabricada pela aranha-da-cortiça de Darwin (Caerostris darwini): com um corpo central de quase três metros quadrados e pontos de fixação até 25 metros, atravessava um rio largo, de uma margem à outra. Existem outros exemplos de sustentabilidade que provaram a sua extraordinária solidez. Outros animais constroem os seus ninhos com barro. Entre eles encontram-se os forneiros, aves da América Central e do Sul e as nossas andorinhas que, segundo Jordi Sargatal, “precisam de encontrar barro húmido, que transportam na boca até ao local escolhido para a nidificação. Com esse barro, saliva e palha, fazem uma pasta para modelar os ninhos, que costumam construir nas paredes, sob os beirais dos telhados”. Para espécies como a andorinha-dáurica (Cecropis daurica), a tarefa é ainda mais difícil, pois em vez de construir o ninho numa parede, fá-lo no tecto e essa horizontalidade complica o trabalho. “É extremamente difícil conseguir que o barro pegue e não caia, devido ao seu próprio peso”, assegura o ornitólogo. É também uma tarefa esgotante, uma vez que, para um único ninho de andorinha, são necessárias, em média, 400 viagens, e os consequentes 400 pedaços de barro. A construção demora mais de duas semanas. Este tecelão-sociável (Philetairus socius) constrói ninhos comunitários que acolhem centenas de aves de diferentes gerações, como neste exemplo da Namíbia, construído num exemplar da árvore da aljava, como lhe chamam os autóctones. YVA MOMATIUK E JOHN EASTCOTT/MINDEN PICTURES



O barro é seguramente um material comum, utilizado por diversas espécies para outras finalidades, como selar as portas dos refúgios ou para reduzir o tamanho de um buraco de árvore aproveitado, evitando assim a entrada de predadores e concorrentes, como faz outra ave que partilha o nosso território: a trepadeira-azul (Sitta europea). Um caso curioso é o do espectacular e enorme calau-bicorne (Buceros bicornis), oriundo das selvas asiáticas. “Quando a fêmea se encontra com os pintos dentro do buraco da árvore escolhida, o macho deixa-a praticamente emparedada no interior, tapando quase toda a entrada com barro e ficando apenas um pequeno orifício através do qual ela, se intuir a existência de peri34

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go, pode enfiar o seu grande bico, selando-o por completo”, relata Jordi Sargatal. No entanto, nem todos estes esforços de construção se destinam ao ninho. Algumas espécies, como o pássaro-cetim-australiano, concentram os seus cuidados arquitectónicos na construção de uma espécie de arena, destinada unicamente à corte: um túnel de amor fabricado pelo macho em redor de um ramo central com uma infinitude de raminhos que demoram horas a recolher. O macho decora a entrada com objectos vistosos: fruta, flores, fungos e folhas, ordenados por cores. Quando as fêmeas passam diante do palco nupcial, ele mostra-lhes todos os seus tesouros, desesperado por agradar. E se uma delas ficar su-


mas, a economia dos materiais, locais acessíveis, adaptação ao ambiente ou a sustentabilidade”. A tão repetida estratégia dos 4 R – reduzir, reciclar, reutilizar e reabilitar – que hoje tanto custa aos seres humanos implementar, tem sido realizada por todos os organismos (incluindo os nossos antepassados) desde o início dos tempos. E o objectivo mantém-se: cumprir a ordem suprema que todos os animais vivos carregam nos genes, assegurando a sobrevivência da espécie a longo prazo, o que contradiz a visão de curto prazo adoptada pelo Homo sapiens pós-industrial, para o qual parece não existir amanhã. ALÉM DE SOLUÇÕE S ENGENHOSAS DE ARQUITECTURA ,

Os castores do Parque Nacional Grand Teton, no estado de Wyoming (EUA), construíram esta estrutura com troncos, protegendo-a com uma eficiente represa à qual acedem por baixo de água.

ficientemente interessada, o artista começa dissimuladamente a contorná-la por trás para copular com ela. Completará assim a sua missão! Já Antoni Gaudí dizia que o arquitecto do futuro se baseará na imitação da natureza, porque é a forma mais racional, duradoura e económica de todos os métodos. Não há dúvida de que assim é, concorda Josep Ignasi Llorens, catedrático da Escola Superior Técnica de Arquitectura de Barcelona: “Os seres vivos demoraram mais de quinhentos milhões de anos a evoluir no seu equilíbrio com o ambiente sem comprometer a continuidade geral do sistema.” Para ele, “os organismos baseiam-se em princípios como a poupança energética, a reciclagem, a optimização das forPETE OXFORD/MINDEN PICTURES

alguns animais revelam a capacidade de mobilizar técnicas de engenharia extraordinárias para optimizar a funcionalidade das suas estruturas. As térmitas são um exemplo fascinante: não é por acaso que estes insectos xilófagos são os criadores daquela que se considera a maior estrutura do planeta, segundo uma investigação de 2018 liderada por Stephen J. Martin, biólogo da Universidade de Salford. Os cientistas constataram que, nos estados brasileiros da Bahia e de Minas Gerais, as térmitas da espécie Syntermes dirus construíram 230 mil quilómetros quadrados de montículos de barro (aproximadamente a superfície do Reino Unido), uma obra colossal iniciada há cerca de quatro mil anos. São pelo menos duzentos milhões de termiteiras, cerca de 1.800 por quilómetro quadrado, que ficaram a descoberto devido à deflorestação. Cada montículo é composto por cerca de cinquenta metros cúbicos do solo, o que exigiu a escavação de mais de dez quilómetros cúbicos de terra, “algo parecido com 4.000 Pirâmides de Guiza”, afirmam os autores do estudo. Às dimensões descomunais das termiteiras, abundantes na América do Sul, na Oceânia e em África, acrescenta-se o sofisticado sistema de ventilação interno, o qual, recorrendo a complexos canais, mantém uma temperatura interior estável de 30°C, ideal para as necessidades vitais das térmitas. Especialistas em técnicas de climatização e ventilação, as térmitas evoluíram para dominar os sistemas de ventilação utilizando uma chaminé central que tira partido de um fenómeno físico chamado efeito Venturi: trata-se de um tubo ao longo do qual há um estreitamento que permite que um fluido ganhe mais velocidade e pressão enquanto o atravessa, mobilizando assim a força necessária para continuar a avançar. (Continua na pg. 42) ARQUITECTURA ANIMAL

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Há mais de uma centena de espécies de tecelões. Entre elas, encontra-se o tecelão-baia (em cima), cuja área de distribuição é o subcontinente indiano e o Sudeste Asiático, e o tecelão-mascarado-vitelino (à direita), que vive em África. INGO ARNDT/MINDEN PICTURES (À ESQUERDA); TUI DE ROY/MINDEN PICTURES (À DIREITA)



“O arquitecto do futuro imitará a natureza porque é a forma mais racional, duradoura e económica de todos os métodos.” — Antoni Gaudí

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Espécies distintas exprimem a sua “arte” construindo ninhos, covis, praças… ou caixas, como a que se vê na imagem da esquerda, fabricada por uma larva aquática de tricóptero. No interior, o insecto viverá na sua fase larvar para se proteger do ambiente. Debaixo de água, neste caso no mar, os machos de peixe-balão exibem os seus dotes artísticos quando procuram uma parceira. Depois de modelarem a areia com as barbatanas, criam esculturas circulares perfeitas, delimitadas por barreiras que protegem das correntes o núcleo central, onde a fêmea fará a postura dos ovos. INGO ARNDT/MINDEN PICTURES (À ESQUERDA); NATURE PRODUCTION/NPL/CORDON PRESS (À DIREITA)

ARQUITECTURA ANIMAL

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À esquerda, abelhas-europeias (Apis melifera) colaboram na reparação dos favos, construídos com a cera segregada pelas obreiras. Estas formigas-verdes-arborícolas (Oecophylla smaragdina) também trabalham em equipa, tecendo um formigueiro com folhas no Parque Nacional de Kakadu, na Austrália. HEIDI E HANS-JUERGEN KOCH/MINDEN PICTURES (À ESQUERDA); INGO ARNDT/MINDEN PICTURES (À DIREITA)


Em 2015, uma equipa da Universidade de Harvard liderada por Lakshminarayanan Mahadevan mediu a circulação do ar no interior destas catedrais de barro. Através das suas paredes grossas e porosas, concluiu que as termiteiras, funcionando como pulmões, fazem algo parecido com respirar: usando as temperaturas diurnas e nocturnas e abrindo e fechando diferentes condutas, geram uma corrente de convecção, que combina de forma ideal a presença de ar quente e frio no interior, regulando a temperatura e a acumulação de CO2. Outros engenheiros experientes são os castores, roedores que constroem grandes diques nos rios com os troncos das árvores que eles próprios abatem com os seus incisivos. Tal como as térmitas, as suas construções também podem ser formidáveis. Assim o constatou no Canadá o investigador Jean Thie, que dirige a empresa de consultoria de informação geográfica sobre o ambiente, EcoInformatics International. Usando imagens de satélite do Google Earth, ou seja, a partir do espaço, localizou, há poucos anos, uma colossal represa de castores com cerca de 850 metros de comprimento no Parque Nacional de Wood Buffalo, na província de Alberta. Segundo Thie, a represa foi construída por várias gerações de castores a partir de meados da década de 1970. Os diques medem três a quatro metros de altura e têm cerca de sete metros de largura. São constituídos por ramos e troncos enormes, pois estes animais podem cortar uma árvore inteira e fazê-la tombar onde mais lhes convém. Os castores compactam-nas com barro, pedras e vegetação e transportam cada material com as patas dianteiras. Com esta construção, conseguem criar um espaço mais elevado de águas paradas, um reservatório onde constroem a sua casa composta por vários compartimentos, como o berçário, o dormitório e o refeitório, cada qual com uma entrada subaquática independente, escavada com a sua potente dentadura que nunca pára de crescer. Os castores, hábeis nadadores revestidos com uma pelagem cuja impermeabilidade sempre despertou a cobiça dos comerciantes de peles, alimentam-se de folhas e cascas e estão sempre atentos para que a água não se infiltre por nenhuma ranhura da represa. Para tal, desempenham uma actividade frenética, reparando e fazendo a manutenção constante da infra-estrutura que os mantém a salvo. Por baixo desta, em recantos sob a água, guardam ramos cheios de folhas frescas e troncos suculentos e húmidos dos quais se alimentarão durante o Inverno. A espécie existiu 42

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nos rios portugueses no Calcolítico, mas estava certamente extinta no início da era industrial. Na gruta do Caldeirão, no Ribatejo, o paleontólogo Miguel Telles Antunes encontrou fósseis deste animal correspondentes ao Paleolítico Superior e achados similares noutros contextos pré-históricos, embora raros, comprovam que o castor ocupou o território português há milhares de anos. no fundo de rios, vive outro arquitecto singular, o tricóptero, um insecto voador. As suas larvas e pupas são aquáticas e, durante essa etapa do seu crescimento, constroem curiosos habitáculos para se protegerem. “As larvas destes insectos costumam tapar-se com caixas que forram com pedrinhas ou pedaços de ramos e até com minúsculas conchas de molusco para se confundirem com o fundo do rio e passarem despercebidas. Procuram na medida do possível misturar-se com o que as rodeia”, explica o entomólogo Albert Masó. Presas comuns de peixes como a truta, que pode comê-las com caixa e tudo, algumas larvas de tricóptero sabem colocar os ramos de forma a dificultarem a tarefa dos predadores. Todos os materiais utilizados são colados com seda aderente, sintetizada nas suas glândulas salivares, a mesma seda com que se fabricará o casulo que lhes permitirá metamorfosear-se para a vida adulta. No entanto, este não é o único artista subaquático: os machos do peixe-balão do género Torquigener são escultores experientes que criam complexos círculos de areia, que chegam a atingir dois metros de diâmetro para atraírem as fêmeas. Este peixe com cerca de doze centímetros de comprimento dispõe a areia de forma radial, criando saliências e sulcos requintados que funcionam como barreiras para proteger das correntes o núcleo central, constituído por partículas mais finas. Se tudo correr bem, será aqui que a sua futura parceira fará a postura. Uma vez terminada a obra, exausto após várias semanas de actividade escultórica, esperará que alguma fêmea valorize a sua arte e se coloque nas imediações para ser fecundada. Cumprida a sua função, o círculo começará a desintegrar-se, mostrando uma vez mais a fugacidade da vida. Fugaz, sim, mas tantas vezes repetida. j S O B A ÁG UA ,

Em Laredo no Texas (EUA), o orvalho da manhã não impede uma aranha do género Eustala de permanecer imóvel aguardando que uma presa fique colada à pegajosa teia composta por uma seda proteica e extremamente resistente segregada por glândulas abdominais. CLAUDIO CONTRERAS/NLP/CORDON PRESS



Na Península Ibérica o chapim-de-faces-pretas e o chapim-rabilongo destacam-se pela sua perícia como aves tecelãs. A andorinha-comum, a andorinha-dáurica e a andorinha-das-rochas são artistas do barro.

Na Primavera, milhares de andorinhas chegam à Península Ibérica depois de passarem o Inverno em África. Costumam regressar aos ninhos usados na estação anterior e, com sorte, poderão voltar a ocupá-los. Se tal não for possível, terão de realizar novamente a construção titânica, como esta andorinha-das-chaminés (Hirundo rustica). À direita um chapim-de-faces-pretas (Remiz pendulinus). Não só as fêmeas tendem a escolher ninhos maiores e mais isolados como quanto melhor o ninho, maior a probabilidade de a descendência sobreviver. À medida que as gerações se sucedem, a evolução encarrega-se de garantir que os ninhos são cada vez melhores.

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JOHN HAWKINS/MINDEN PICTURES (À ESQUERDA); RAMON NAVARRO/MINDEN PICTURES (À DIREITA)



N

o passado mês de Maio, 400 anos depois de africanos acorrentados terem pisado pela primeira vez o solo da colónia inglesa de Virgínia, uma equipa de arqueólogos subaquáticos anunciou a descoberta, perto de Mobile, no Alabama (EUA), dos destroços carbonizados do Clotilda, o último navio negreiro conhecido a alcançar as costas dos EUA. Em 1860, 52 anos depois de os Estados Unidos da América proibirem a importação de escravos, um latifundiário abastado fretou a escuna e contratou o comandante para contrabandear mais de cem cativos para o Alabama, um crime então punível com a forca. Concluída a abominável missão, o navio foi incendiado para destruir as provas. Os cativos foram os últimos de um total estimado de 307 mil africanos escravizados e conduzidos ao continente americano entre o início do século XVII e 1860, transformando o Clotilda no cólofon daquilo a que há muito se chama o “pecado original da América”. Em 1865, o presidente 46


Abraham Lincoln proclamou que a Guerra da Secessão que acabara de devastar o país fora a pena com que o Todo-Poderoso punira esse pecado. Uma vez terminada a guerra e abolida a escravatura, os africanos trazidos pelo Clotilda criaram raízes como americanos livres, mas não se esqueceram da sua identidade africana. Fixando-se em bosques e pântanos do rio, a montante de Mobile, construíram casas simples, plantaram hortas, criaram animais, caçaram, pescaram e lavraram a terra. Construíram uma igreja e edificaram a sua própria escola, fundando uma comunidade unida e auto-suficiente que veio a ser conhecida como Africatown. Muitos dos seus descendentes ainda são vivos. A história desta comunidade extraordinária é recordada com orgulho pelos habitantes de Africatown como um legado que se esforçam por preservar.

O último navio negreiro


Esta é a história das 108 pessoas a bordo do navio…

PINTURAS DE SEDRICK HUCKABY

FOTOGRAFIAS DE ELIAS WILLIAMS

FONTE: ERIK OVERBEY COLLECTION, THE DOY LEALE MCCALL RARE BOOK AND MANUSCRIPT LIBRARY, UNIVERSIDADE DO SUL DO ALABAMA


Descobrir as suas raízes Cudjo Lewis (à esquerda) e as suas descendentes Altevese Lumbers-Rosario (de vestido) e Ralphema Lumbers Ele tinha 19 anos quando chegou, acorrentado, a bordo do Clotilda. Kossola, que assumiu o nome de Cudjo Lewis, nunca se esqueceu da sua terra natal. Libertados, ele e os seus companheiros de viagem construíram a sua própria cidade e mantiveram muitas tradições africanas. Aquando da descoberta dos destroços do navio, a sua descendente Altevese Lumbers-Rosario afirmou: “É muito emocionante, muito excitante para nós.” A sua prima direita Ralphema Lumbers veste uma T-shirt com uma fotografia de Lewis captada por volta de 1927.

…e dos seus descendentes.


FONTE: EMMA LANGDON ROCHE, “HISTORIC SKETCHES OF THE SOUTH” (1914)


Sucesso merecido Pollee Allen (à esquerda) e a sua trineta Vernetta Henson Depois de 12 horas de trabalho como empilhador de madeira, Kupollee, que adoptou o nome de Pollee Allen, chegava a casa e trabalhava na sua horta até à noite, assegurando o sustento de 15 filhos. Transmitiu essa ética de trabalho a muitos dos seus descendentes, afirma Vernetta Henson. “A minha avó teve nove filhos e todos frequentaram a universidade.”


FONTES LORNA GAIL WOODS; ARQUIVO DA UNIVERSIDADE DO SUL DO ALABAMA


Guardiões da história Charlie Lewis (à esquerda) e a sua trineta Lorna Gail Woods O mais velho dos cativos do Clotilda, Oluale, que adoptou o nome de Charlie Lewis, fixou-se numa zona que veio a chamar-se Lewis Quarters, onde alguns dos seus mais de duzentos descendentes ainda vivem. “Em nossa casa, sempre se contaram histórias acerca do Clotilda”, diz Lorna Gail Woods. “Africatown era um lugar de orgulho para quem ali crescia.”


FONTE: EMMA LANGDON ROCHE, “HISTORIC SKETCHES OF THE SOUTH” (1914)


Corrigindo erros antigos Ossa Keeby (à esquerda) e o seu descendente Karliss Hinton Ossa Keeby era provavelmente pescador no rio Kebbi, no Noroeste da Nigéria, antes de ser capturado. Ele e a mulher, Annie, foram agricultores bem-sucedidos, criando nove filhos e tornando-se donos de vários terrenos. “A minha avó era uma keeby e contou-me tudo sobre o navio”, afirma Karliss Hinton, veterano do exército. “Passaram-se todos estes anos até as pessoas reconhecerem a minha gente. Pode demorar algum tempo, mas o Bem supera sempre o Mal.”


CAPÍTULO 1

COMÉRCIO CRUEL K. BOURNE, JR.

E M 1 8 6 0 , O S E S C R AV O S eram a base da econo-

A organização sem fins lucrativos National Geographic Society ajudou a financiar esta reportagem. 56

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

mia norte-americana e tinham mais valor do que a totalidade do capital investido nas actividades industrial, ferroviária e bancária. O algodão representava 35 a 40% das exportações dos EUA, segundo Joshua Rothman, historiador da escravatura da Universidade do Alabama. “Os bancos de todo o mundo faziam aplicações no Alabama, no Mississípi e na Louisiana, investindo nas plantações, nos bancos dos estados do Sul e nos escravos, que podiam ser hipotecados”, afirma o investigador. Era proibido importar escravos para os EUA desde 1808 e, em 1859, o preço dos escravos domésticos disparara, reduzindo drasticamente os lucros dos donos das plantações e reforçando as reivindicações em prol da reabertura do tráfico. Um defensor acérrimo desta posição foi Timothy Meaher. Natural do Maine, filho de imigrantes irlandeses, Meaher e vários irmãos mudaram-se para o Alabama e fizeram fortuna como construtores navais, comandantes de navios e magnatas madeireiros. Também eram donos de grandes extensões de terra, trabalhada por escravos. Durante uma discussão acesa com um grupo de empresários do Norte, Meaher fez uma aposta arrojada: propôs-se transportar um carregamento de cativos africanos até Mobile, mesmo debaixo do nariz das autoridades federais. Meaher teve poucas dificuldades em encontrar investidores para o seu esquema ilegal. Poucos anos antes, William Foster, seu amigo e colega na construção naval, construíra uma escuna elegante e veloz chamada Clotilda para transportar madeira e outras mercadorias em viagens pelo golfo do México. Meaher fretou o navio por 35 mil dólares e contratou Foster como comandante. No fim de Fevereiro ou no início de Março, de 1860, a tripulação partiu rumo ao porto esclavagista de Ouidah, no actual Benin. Assim começava uma das expedições navais negreiras mais bem documentadas da história dos Estados Unidos. Foster deixou um relato manuscrito da viagem. Mais tarde, Meaher e vários africanos também contaram a sua história a jornalistas e escritores. Dois dos antigos escravos, que ainda eram vivos na década de 1930, figuraram em curtas-metragens.


CAPÍTULO 2

VIAGEM SEM REGRESSO T E X T O D E S Y LV I A N E D I O U F

O S 1 1 0 H O M E N S , mulheres e crianças embarca-

dos a bordo do Clotilda em Maio de 1860 eram oriundos de Bantè, Daomé, Kebbi, Atakora e de outras regiões do Benin e da Nigéria. Entre eles havia pessoas pertencentes aos grupos étnicos yoruba, ixa, dendi, nupe e fon. Alguns praticavam o comércio de longa distância, provavelmente transportando sal, cobre e tecidos. Talvez produzissem ferro. Outros poderão ter tecido panos, colhido inhame e produzido óleo de palma. Algumas mulheres casaram-se e tiveram filhos. Trabalharam provavelmente como agricultoras ou vendedoras no mercado. Um dos homens, Kupollee, tinha uma pequena argola em cada orelha, o que significava que fora iniciado na religião dos yoruba. Ossa Keeby era oriundo de Kebbi, na Nigéria, um reino famoso pelos seus pescadores profissionais. À semelhança de Kossola, de 19 anos de idade (mais tarde conhecido como Cudjo Lewis), muitos tinham sido vítimas de um ataque lançado pelo reino esclavagista de Daomé. Kossola afirmou provir de gente modesta, mas o seu avô fora oficial de um rei bantè. Uma rapariga chamada Kêhounco (Lottie Dennison) foi raptada, tal como muitas outras. As suas viagens forçadas terminaram numa prisão para escravos em Ouidah. No meio do horror e da miséria, os cativos encontraram apoio e solidariedade, até os esclavagistas estrangeiros desfazerem irreparavelmente a sua recém-criada comunidade. Segundo entrevistas concedidas aos jornais e relatos orais dos sobreviventes ao longo dos anos, descritos em pormenor no meu livro “Dreams of Africa in Alabama: The Slave Ship Clotilda and the Story of the Last Africans Brought to America”, quando Foster, comandante do Clotilda, chegou ao local, os futuros tripulantes receberam instruções para formar círculos de dez. Depois de lhes inspeccionar a pele, os dentes, as mãos, os pés, as pernas e os braços, ele seleccionou 125 indivíduos. Ao entardecer, foi-lhes dito que partiriam no dia seguinte. Muitos passaram a noite a chorar. Não faziam ideia do que os aguardava e não queriam ser separados das pessoas que amavam.

De manhã, o grupo desalentado atravessou a lagoa com água pelo pescoço até chegar à praia, de onde se procedeu ao transporte em canoas até ao Clotilda, ultrapassando a rebentação perigosa e, por vezes, mortífera. Aquilo que aconteceu depois atormentá-los-ia para sempre. Foram obrigados a despir a roupa. A nudez total dos africanos era uma regra do tráfico negreiro, oficialmente imposta (embora muito ineficazmente) para manter a higiene. Muitos anos mais tarde, os derradeiros sobreviventes do Clotilda ainda se mostravam indignados ao recordarem a humilhação de serem apelidados de selvagens nus pelos norte-americanos, os mesmos que acreditavam que a nudez era “africana”. Antes de concluir a transferência, Foster avistou navios a vapor no horizonte. Receoso de ser capturado, fez-se à vela, deixando 15 pessoas na praia. Durante os primeiros 13 dias passados no mar, todos os cativos permaneceram fechados no porão. Décadas mais tarde, em 1906, quando Abache (Clara Turner) falou da imundície, da escuridão, do calor, das correntes e da sede a um redactor da revista “Harper’s”, “os seus olhos ardiam, com a alma inexpressivamente atormentada por essa recordação”. O desespero, a agonia e o horror eram agravados no caso dos pais que se sentiam impotentes, incapazes de aliviar o medo e o sofrimento dos filhos. Uma mulher, mais tarde conhecida como Gracie, levava quatro filhas a bordo: a mais nova, Matilda, tinha cerca de 2 anos de idade. A falta de água era uma tortura e as refeições (melaço e papas) não ajudavam. Os alimentos açucarados intensificavam a sua sede. “Um gole” duas vezes por dia era tudo aquilo a que tinham direito e a água sabia a vinagre. A chuva que apanhavam com a boca e as mãos oferecia-lhes alívio passageiro. Registaram-se doenças e duas pessoas morreram. Os navios negreiros eram lugares de miséria indescritível. A solidariedade era fundamental e aqueles que sofreram juntos forjaram relações para toda a vida, por vezes prolongadas por várias gerações, excepto se novamente separadas. A bordo do Clotilda, ao longo de um mês e meio, nasceu uma comunidade deste tipo. O Ú LT I M O N AV I O N E G R E I R O

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No dia 8 de Julho, os companheiros de viagem avistaram terra ao longe. Ouviram um ruído que se assemelhava a um enxame de abelhas. Era o som de um rebocador a conduzir o Clotilda através da baía de Mobile. Foram transferidos para um navio a vapor pertencente a Burns, irmão de Timothy Meaher, e levados rio acima até à plantação de John Dabney, enquanto Foster conduzia o seu navio até Twelve Mile Island. Não havia maneira de esconder os vestígios de uma viagem esclavagista e Foster arriscava a pena de morte, caso fosse descoberto. Ateou fogo e o navio desapareceu em chamas. Com falta de mão-de-obra para desenvolver as suas plantações, há muitos anos que os proprietários de escravos do Sul Profundo compravam 58

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pessoas nas regiões setentrionais do Sul a preços que consideravam ultrajantes. Com o comércio internacional de escravos ilegalizado, alguns optaram pelo contrabando. No Alabama, a viagem “secreta” era tema de conversa em toda a cidade e, no espaço de um ou dois dias, apareceu nos jornais. Entretanto, os jovens africanos tinham desembarcado nos canaviais ermos e infestados de mosquitos da plantação de Dabney, em Clarke County. Alimentaram-nos com carne e papas de milho que os fizeram adoecer. Ficaram contentes com os andrajos, pedaços de sacas de milho e peles que lhes deram para vestir em vez de roupa. Quando as autoridades federais encarregaram uma unidade de os descobrir, os africanos já tinham sido transferidos para a plantação de Burns.


“Quase se deixaram morrer de tristeza”, confessaram meio século mais tarde. Timothy Meaher organizou a venda. No instante em que a sua nova família era de novo separada, os companheiros de viagem entoavam uma canção de despedida, desejando uns aos outros “nenhum perigo no caminho”. Enquanto cerca de oitenta foram conduzidos a Mobile, a edição de 23 de Julho de 1860 do jornal “Mercury” publicava a seguinte notícia: “Alguns negros que nunca aprenderam a falar inglês caminhavam para norte, seguindo a linha do comboio, no outro dia…” Durante a caminhada, um circo passou pelo grupo e, ao ouvirem um elefante a barrir, os africanos gritaram: “Ile, ile, ajanaku, ajanaku” (“casa”, “elefante”, em yoruba e fon).

O porão do cargueiro Clotilda transformou-se num cárcere infernal para 110 cativos africanos. Dois morreram durante a travessia de seis semanas do Atlântico. Outros ansiaram pela libertação proporcionada pela morte. O mau cheiro “era suficiente para matar”, disse, anos mais tarde, um sobrevivente chamado Redoshi numa entrevista. ARTE: THOM TENERY FONTE: JAMES DELGADO, SEARCH, INC.

O Ú LT I M O N AV I O N E G R E I R O

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A M É R I C A

D O

E S T A D O S

U N I D O S

Depois do reboque do Clotilda do Mississípi para o Alabama, os cativos foram descarregados e o navio incendiado.

Costa do golfo

MISS.

13.000 Chegada Grand Bay, Miss. 8 Julho, 1860

VIRG.

GEÓRG.

241.000

MAINE N.H.

MASS. CONN. R.I.

Troca de pessoas por mercadorias

Outros portos da Costa Leste 39.000

151.000

Viagem a bordo do Clotilda

Cuba

No porto negreiro de Ouidah, no actual Benin, 110 africanos foram encerrados no porão do cargueiro. Foram alimentados com rações durante a travessia de seis semanas. Dois cativos morreram.

(ESPANHA)

764.000

Jamaica (R.U.)

OCEANO

Rota do Clotil da pa ra Á frica

307.000

7 Março

935.000

Em África, os europeus trocavam produtos refinados como têxteis e armas por escravos. De seguida, vendiam os cativos a troco de ouro, prata e culturas lucrativas como o açúcar e o tabaco.

17 Março Bermudas (R.U.)

AMÉRICA CONTINENTAL

FLOR.

30 Junho

Colónias espanholas na América do Norte

MARYL. N.J.

C.N.

C.S.

Partida entre 27 Fevereiro e 4 Março, 1860

Golfo do México

N.I.

83.000 21.000

ALAB.

Mobile

N O R T E

HAITI

695.000

Ma r d a s Caraíbas

Hispaniola Porto Rico 29.000 (ESPANHA) 26,000

Outras ilhas 1.572.000

207.000

ILHAS DAS CARAÍBAS

4.021.000

31.000

Ro

ta do Clo tild a

Guiana Britânica 75.000

para EUA

Guiana Holandesa 260.000

Guiana Fr. 21.000

Tráfico nas Américas Uma vez no Novo Mundo, os africanos podiam integrar uma rede activa de comércio pan-americano. Mais de 320 mil pessoas escravizadas foram embarcadas em portos das Caraíbas e quase setenta mil partiram do Brasil.

Amazónia

Destino desconhecido

136.000

791.000

A M É R I C A D O

ACORRENTADOS E DESENRAIZADOS

No dia 8 de Julho de 1860, 108 cativos foram desembarcados pela escuna Clotilda, tornando-se os últimos africanos escravizados de que há registo nos Estados Unidos. A princípio, os europeus trouxeram africanos como escravos para o continente para maximizar o rendimento das minas de ouro e prata e, também, a rendibilidade das culturas do açúcar, tabaco e arroz, entre outras. O tráfico prolongou-se por quase quatro séculos e conduziu nove milhões de homens, mulheres e crianças através do oceano, para se tornarem propriedade de alguém e serem obrigados a trabalho forçado extenuante.

Pernambuco

S U L

430.000

Bahia

1.214.000

AMÉRICA DO SUL CONTINENTAL

3.763.000

Sudeste do Brasil

1.389.000

Rio da Prata 92.000


E

U

R

O

P

A

Traficantes de escravos europeus Navios viajando sob pavilhão de países europeus, sobretudo Portugal e Grã-Bretanha, realizaram quase 32 mil viagens transportando africanos escravizados para a Europa e para as Américas, ao longo dos séculos.

Para a Europa 8.000

ATLÂNTICO

Á

F

R

I

C

A

Despojos de guerra humanos A escravização dos inimigos vencidos era uma prática comum entre muitos grupos étnicos em África. Os vencedores vendiam os cativos a reinos costeiros, como o Daomé, onde o Clotilda foi comprar os escravos.

Regressados a África

122.000 (sobretudo após intercepção de navios negreiros)

Terra natal dos cativos Charles Lewis, Cudjo Lewis, e Pollee Allen Terra natal do cativo Ossa Keeby Dendi Hausa

Cabo Verde

(PORTUGAL)

Cabo Verde

Chegada do Clotilda no dia 15 de Maio.

Senegâmbia 603.000

Serra Leoa

DAOMÉ

olf

TRAVESSIA MORTÍFERA

1.

Chamba

Yoruba

h Edo

uida Costa da Fon O Costa da Mina de Ouro Ewe Malagueta 745.000 202.000 G

o

246.000

Nupe

do 5 3 B e n in 5.0 00

Porto Praia (Praia) 16-22 Abril

O Clotilda parte de Ouidah cerca de 24 Maio de 1860, com 110 cativos a bordo.

Golfo do Biafra 1.117.000 Bioko

5 Junho

Dos mais de dez milhões de cativos obrigados a embarcar em navios de que há registos, um em cada oito morria em média durante a viagem oceânica.

rica de Áf000 s e õ i s reg 2.302. Outra

o-Ocidental África Centr 3.472.000

Mortes registadas nas viagens 1.309.000

Santa Helena (R.U.) 24.000

Sudeste Africano

409.000

AS FRONTEIRAS ENTRE ESTADOS DOS EUA DESTE MAPA SÃO AS DE 1860. AS FRONTEIRAS ACTUAIS DO PAÍS ESTÃO APRESENTADAS NOUTRO LUGAR. ARTE: MATTHEW W. CHWASTYK E JASON TREAT FONTES: TRANS-ATLANTIC SLAVE TRADE DATABASE, SLAVEVOYAGES.ORG; SYLVIANE A. DIOUF; MOBILE PUBLIC LIBRARY


Passaram o resto das suas vidas dispersos pela Cintura Negra do Alabama. Gracie foi vendida com duas das suas filhas, mas, com grande sofrimento, nunca soube o destino das outras duas. Timothy Meaher foi detido, libertado sob fiança, julgado e ilibado de todas as acusações. Os processos federais contra Burns Meaher e Dabney foram anulados, porque os “ditos negros” nunca foram encontrados. Foster foi multado em mil dólares por não ter pago as devidas taxas aduaneiras pelas suas “importações”. Timothy Meaher reservou para si 16 homens e 16 mulheres. Burns ficou com 20 dos cativos, incluindo Kêhounco, e James Meaher ficou com Kossola e sete dos seus companheiros. Foster recebeu 16 indivíduos, entre os quais Abile (Celia Lewis). 62

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Cada pessoa comprada por 100 dólares em Ouidah valia agora mil dólares e, depois de aclimatada, poderia ser vendida por dois mil – ou seja, 60 mil dólares a preços actuais.

LAÇOS DE IDENTIDADE foi a sua entrada no mundo selvagem da plantação, habitado por estranhos: negros e brancos. Até então, eles tinham sido yoruba, dendi, nupe ou fon, com línguas e culturas diferentes. Naquele instante, tornaram-se africanos. Adoptaram a sua nova identidade com orgulho, indiferentes

A F A S E S E G U I N T E D A S AT R I B U L A Ç Õ E S


ao desprezo das outras pessoas. Noah Hart, escravizado na plantação de Timothy Meaher, recordou que eles tinham uma atitude agressiva e, contudo, nunca ameaçaram os afro-americanos da plantação, nem nunca se zangaram entre si. Agindo como grupo, “não toleravam qualquer desaforo” de brancos ou negros. Envolveram-se várias vezes em actos colectivos de resistência, sem temerem as consequências. Quando a cozinheira de Meaher, Polly, esbofeteou uma das jovens, ela gritou como um “gato bravo na escuridão”, contou Hart. Os seus companheiros de viagem acorreram, empunhando ancinhos, pás e paus. Polly fugiu, escadas acima, refugiando-se no quarto de Mary Meaher. Eles seguiram-na e bateram à porta. Polly despediu-se.

A norte de Mobile, perto de Twelve Mile Island, os africanos foram embarcados num navio a vapor e transportados rio acima, onde foram escondidos nos pântanos até serem divididos entre os conspiradores ou vendidos. O comandante do Clotilda ateou fogo à escuna para apagar o seu rasto. THOM TENERY FONTE: JAMES DELGADO, SEARCH, INC.

O Ú LT I M O N AV I O N E G R E I R O

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Um dia, o capataz de Burns tentou chicotear uma jovem mulher. Saltaram-lhe todos em cima, agarraram a chibata e deram-lhe uma sova. Nunca mais tentou quaisquer brutalidades com eles. Segundo parece, porém, nos lugares onde os companheiros de viagem se encontravam isolados, ou havia apenas dois ou três homens na plantação, eram maltratados. Redoshi (Sallie Smith) contou que “os donos de escravos e os capatazes espancavam-nos por tudo e por nada, quando nós não compreendíamos o que diziam em americano”. A maioria dos africanos manteve-se unida e conservou as práticas da juventude. A comunidade de Atakora, no actual Benin, enterrava os seus mortos em covas fundas, com os cadáveres envoltos em casca de árvore. Os yoruba mergulhavam os recém-nascidos num riacho, procurando sinais de vitalidade. Um casal fon tatuou no peito do seu filho a imagem de uma serpente a morder a cauda, símbolo sagrado do reino do Daomé. Durante cinco anos, os companheiros de viagem trabalharam nos campos de algodão, arroz e cana-de-açúcar. Em Mobile, vários homens trabalharam em embarcações fluviais, alimentando as fornalhas com toneladas de lenha, carregando e descarregando fardos de algodão. Durante a Guerra da Secessão, foram forçados a construir as fortificações da cidade e viveram em condições abjectas. Por fim, no dia 12 de Abril de 1865, o exército da União entrou na cidade. Os africanos comemoraram ao som de tambor.

MÃES E PAIS FUNDADORES trabalho nas serrações, fábricas de pólvora e estações ferroviárias de Mobile. As mulheres cultivavam legumes e vendiam-nos de porta em porta. Para estruturar a sua comunidade recomposta, escolheram um chefe, Gumpa (Peter Lee), um nobre aparentado com o rei de Daomé, e dois juízes, Charlie Lewis e Jabe Shade, ervanário e médico. À semelhança do que faria qualquer família, restabeleceram os laços com os companheiros de viagem residentes a cerca de 240 quilómetros de distância, no condado de Dallas. Subsistindo com rações escassas, poupavam o que podiam, desejosos de regressar a casa, mas não era suficiente. Por isso, definiram uma nova estratégia, como Kossola explicou a Meaher. “Comandante Tim, trouxe-nos do nosso país, onde

O S HOMENS ARRANJARAM

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C

tínhamos terra e casa”, disse. “Fez-nos escravos. Agora somos livres, sem país, sem terra nem casa. Porque não nos dá um pedaço desta terra e nos deixa construir uma Cidade Africana?” Era um pedido de indemnização. Meaher ficou furioso. A comunidade conseguiria comprar terra. Juntando dinheiro, quatro famílias criaram raízes em três hectares de terreno ainda hoje conhecido como Lewis Quarters, pois foi baptizado com o nome de Charlie Lewis. A três quilómetros de distância, o maior povoado, com 20 hectares, aninhava-se entre pinheiros, ciprestes e zimbreiros. Os novos proprietários construíram três dezenas de casas de madeira colectivamente. Rodeadas de flores, cada uma possuía uma horta e árvores de fruto. Mais tarde edificaram uma escola e uma igreja. A Igreja Baptista Old Landmark situava-se ao lado da terra de Abile e Kossola e estava orientada para leste, na direcção de África. Nas proximidades, ficava o seu cemitério. Chamaram ao seu povoado African Town. Queriam estar em África, mas estavam em Mobile. As políticas públicas progressistas contribuíram para a libertação das pessoas, mas a situação estava prestes a mudar. Em 1874, no decurso da campanha eleitoral de candidatura ao Congresso dos EUA, o jornal “Mobile Daily Register” fez um apelo aos brancos para “responderem à chamada e exigirem a supremacia branca”. Timothy Meaher pressionara os homens africanos, que se tinham naturalizado em 1868, a votar pelos Democratas, o partido pró-escravatura. No entanto, duvidando que o fizessem, no Dia das Eleições disse aos funcionários da mesa eleitoral que eles eram estrangeiros. Charlie, Pollee e Cudjo foram mandados embora. Meaher montou no cavalo e impediu-os de votar em dois outros sítios. Os homens foram a pé até Mobile, a oito quilómetros de distância. Disseram-lhes que, para votarem, tinham de pagar um dólar cada um, quase o salário de um dia. Pagaram. Receberam um papelinho a comprovar que tinham votado. Guardaram esse papel durante décadas. Kêhounco e o marido, James Dennison, da Carolina do Norte, aderiram ao primeiro movimento reivindicativo de indemnizações. Após a morte de James, Kêhounco continuou a requerer que lhe fosse paga a pensão militar do exército da União. No condado de Dallas, Matilda, de 72 anos, caminhou 24 quilómetros para visitar o juiz do tribunal de sucessões em Selma, inquirindo-o sobre as indemnizações para os africanos arrancados da sua terra natal.


No princípio do século XX, os companheiros de viagem já tinham passado mais tempo nos EUA do que na sua terra natal. A maioria adoptara apelidos americanos, convertendo-se ao cristianismo. Vários casaram-se com americanos de origem africana. Aderiram aos costumes locais, embora mantendo as culturas que lhes eram queridas. Os seus filhos, que frequentaram a escola, cresceram divididos entre estes dois mundos. Algumas destas crianças, nascidas americanas, falavam os idiomas dos pais: Matilda servia de intérprete à mãe. Cada um possuía um nome americano para usar no mundo exterior, onde eram frequentemente ostracizados e insultados como macacos e selvagens. Helen Jackson, neta de Ossa Keeby, confidenciou: “Éramos todos uma só família. Aprendemos a chamar ‘primo’ a todos os outros africanos da nossa idade. Sabíamos que eles eram iguais a nós e que nós éramos diferentes de todos os outros.” As crianças sentiam-se seguras. “Tínhamos terras, tínhamos família”, disse Olivette Howze, bisneta de Abache, num artigo publicado em 2003. “Vivíamos bem. Sinto-me feliz por ter sido criada aqui.” Se a sua aldeia natal era um porto seguro, as terras natais africanas eram os lugares idílicos com que as mães e pais sonhavam. “Diziam que lá era bom”, recordou Eva Allen Jones, filha de

Kupollee. “Vejo-os sentados e a chorar. Vejo o meu pai e o Tio Cudjo a chorar e a verter lágrimas, falando sobre o regresso a casa.” Kossola morreu em 1935 e Redoshi no ano seguinte. Outros poderão ter vivido um pouco mais. Na escravidão e na liberdade, da juventude à idade adulta, estes homens e mulheres resistiram à opressão. Louvaram e defenderam com vigor as suas culturas, transmitindo o que puderam aos seus filhos. Os que se fixaram em African Town, que ainda existe, criaram um lugar para se refugiarem dos americanos, fossem eles brancos ou negros. A sua comunidade adaptou-se, mas o sucesso baseou-se indubitavelmente nos valores fundamentais africanos da primazia à família e à comunidade. Os companheiros de viagem do Clotilda aguentaram a separação dos que amavam, a Passagem do Meio, a escravatura, a Guerra Civil, as leis de Jim Crow e, alguns deles, a Grande Depressão. Nunca recuperaram da tragédia da sua juventude, mas mantiveram a sua dignidade, união e o orgulho de serem quem eram e de terem vindo de onde vieram. A sua história fala-nos de enorme força de vontade e realizações. Mas, acima de tudo, fala-nos de perdas irremediáveis. Várias décadas depois de pôr o pé em terra, desembarcando do Clotilda, Ossa Keeby disse: “Volto a África todas as noites, nos meus sonhos.”

CAPÍTULO 3

SALVANDO AFRICATOWN TEXTO DE JOEL K. BOURNE, JR.

os africanos receberam a companhia de algumas famílias afro-americanas que abandonavam as quintas para procurarem trabalho nas fábricas e no porto vizinhos. Em 1910, a comunidade edificou a Escola de Formação de Mobile County, a qual, ao longo das décadas que se seguiram, haveria de formar dezenas de pregadores, professores, empresários e até alguns atletas profissionais. Na década de 1960, duas gigantescas fábricas de papel funcionavam de noite e de dia. Havia muitos empregos e mais de doze mil pessoas habitavam Africatown. Anderson Flen cresceu durante o apogeu de Africatown e recorda-se dela como POUCO DEPOIS,

um lugar onde as crianças podiam falar com as pessoas mais velhas, sentadas nos seus alpendres, e as pessoas mais velhas garantiam que nenhuma criança passava fome. Enquanto me leva a dar uma volta pela cidade, Anderson conta que o acesso à água era mais fácil quando ele era novo. “Apanhávamos perca, rabeta, tainha, peixe-gato, solha, caranguejo-azul. Havia aqui pomares, bagas e figueiras. Foi um sítio extraordinário para crescer.” A escola de formação era o coração e a alma da comunidade. Segundo Anderson Flen, a campainha da escola tocava por tudo e por nada. O Ú LT I M O N AV I O N E G R E I R O

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Geraldine Hunter (à esquerda) e Carolyn Harris passam as bandejas com oblações durante a liturgia anual de aniversário, na Igreja Baptista Union Missionary em Africatown. Os sobreviventes do Clotilda edificaram a igreja original, chamando-lhe Igreja Baptista Old Landmark, em 1872. O nome mudou, mas a congregação manteve-se até aos dias de hoje. O Ú LT I M O N AV I O N E G R E I R O

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Amigos reúnem-se no velório de Henry Galloway, residente em Africatown a vida inteira e que morreu aos 64 anos de doença pulmonar crónica. A sua irmã, Mattie Galloway, afirma que ele estava prestes a reformar-se quando morreu. “Achei que ele merecia viver mais um bocadinho, mas Deus não comete erros.”

Os estudantes andavam de uniforme três vezes por semana e eram treinados nos “cinco bens”: “Vestir bem, falar bem, ler bem, viajar bem, ser bem equilibrado”, conta o meu interlocutor, que hoje dirige a associação de antigos alunos da escola. do que foi antigamente: são quarteirões de pequenas casas dilapidadas, polvilhados, aqui e além, por moradias de tijolo com flores no jardim. Cerca de metade das casas encontram-se ocupadas: o estado das restantes oscila entre o desocupado e o c o n d e n a d o à d e m o l i ç ã o. Um a g r a n d e H O J E , A F R I C AT O W N É U M A S O M B R A

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urbanização construída na década de 1960, a que os moradores chamavam Happy Hills, apresenta-se entaipada e com demolição anunciada. Edifícios da indústria pesada (incluindo indústrias químicas, um parque de tanques de petróleo e a única fábrica de papel restante) ladeiam a zona ribeirinha e cercam a comunidade. A ponte de Africatown, de quatro faixas de rodagem, finalizada em 1991, foi construída sobre o coração do centro de negócios da cidade. A congestionada Bay Bridge Road divide agora a comunidade ao meio, separando a histórica Igreja Baptista de Union Missionary do cemitério onde se encontram enterrados vários dos seus fundadores africanos.


Há muito que os problemas de justiça ambiental afectam a comunidade, afirma Joe Womack, major reformado do corpo de fuzileiros e fundador de uma associação de defesa de Africatown. As indústrias que trouxeram postos de trabalho transformaram-se numa faca de dois gumes, deixando atrás de si um legado de poluição e de cancros que, segundo muitos residentes, foram causados pelas emissões das fábricas de papel e de outras indústrias pesadas. Há alguns anos, os moradores de Africatown ajudaram a impedir um plano para construir mais um parque de contentores de petróleo, em frente da Escola de Formação de Mobile County. Os

moradores também accionaram judicialmente a International Paper por poluir o ar, o solo e a água no decurso das suas operações e por se recusar a limpar o solo poluído, o qual, no entender dos moradores, continua a contaminar os aquíferos e os ribeiros locais. Entretanto, a câmara de comércio de Mobile procura atrair mais indústrias para a região, promovendo-a como parte do Corredor Químico da Costa do Golfo do Alabama. “Planeiam construir uma ponte de 1,8 mil milhões de euros e retirar os túneis que estão debaixo do rio para que os superpetroleiros consigam chegar cá”, diz Joe Womack. “A cidade não tem cuidado da comunidade porque quer industrializar esta zona. Só querem ganhar dinheiro. Mas poderiam ganhar dinheiro com o turismo. Só temos de reencaminhá-los na direcção certa.” Joe Womack e os outros líderes da comunidade afirmam que a descoberta do Clotilda deu um impulso no sentido de sarar feridas antigas e insuflar nova vida na zona. Outros esforços estão a ser desenvolvidos para ligar de novo as comunidades ao rio e entre si. Os planos incluem a proposta de um parque estadual na comunidade vizinha de Prichard, cidade geminada com Ouidah, no Benin, desde 1986. O Instituto Americano dos Arquitectos, a Organização Nacional dos Arquitectos de Minorias e a Visit Mobile estão a patrocinar um concurso internacional de design para projectar um novo centro de acolhimento, uma escola renovada, um museu e um parque ribeirinho onde poderia ser construída uma réplica do Clotilda. E os funcionários da Comissão Histórica do Alabama e do Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana, da Smithsonian Institution, sugeriram que Africatown pode tornar-se um memorial nacional dos navios de escravos. “Esta é uma parte fundamental da nossa história”, afirma Lorna Gail Woods, de 70 anos, historiadora local e descendente de Charlie Lewis, um dos fundadores de Africatown. “O Amistad e o Titanic tiveram exposições itinerantes. Porque não o Clotilda? Precisamos de dar alguma possibilidade de resolução emocional a estas crianças. Há aqui uma história importante que precisa de ser contada ao mundo inteiro!” Anderson Flen concorda. “Neste momento, existe muito sofrimento no nosso país. Enquanto não tratarmos da essência da questão racial, em vez dos seus aspectos superficiais, nunca será possível sarar as feridas. Até resolvermos o sofrimento.” O Ú LT I M O N AV I O N E G R E I R O

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EPÍLOGO

ASSUMIR O PASSADO TEXTO DE CHELSEA BRASTED

ouviu as histórias de como o seu bisavô, Timothy Meaher, planeou o derradeiro desembarque de escravos nas costas dos EUA, e da maneira como o navio, o Clotilda, foi desmantelado perto de Mobile. No entanto, questiona que os destroços encontrados nas águas lamacentas do rio Mobile sejam os desse navio, recordando achados ocorridos em décadas anteriores. Sublinha que o seu antepassado nunca foi condenado por qualquer crime e aponta para o envolvimento de outras entidades, como as pessoas do Benin que venderam os escravos, e William Foster, que comandou o navio. “A escravatura está errada, mas se o seu irmão matar alguém, a culpa não é sua”, afirma Robert Meaher, lembrando que os pecados dos antepassados não são herdados. Ainda assim, consegue dizer: “Peço desculpa. Fazer uma coisa daquelas é errado.” Único membro da sua família a responder a pedidos de entrevista, Robert afirma que tem conduzido a sua própria investigação sobre o Clotilda, reunindo pormenores sobre o navio e a sua carga. Guarda um artigo sobre Cudjo Lewis publicado no “Mobile Register” em 1931, sublinhando uma citação na qual Lewis afirmou: “Vendo bem, estou feliz por me encontrar aqui, porque, quando estava lá, não sabia que havia um Deus.” Para Meaher, homem religioso, isto não é irrelevante. A ligação da sua família à história, diz, levou-os a doar bens da igreja em Africatown e um terreno para um parque. Também fez donativos a uma organização sem fins lucrativos que envia navios-hospital a todo o mundo, incluindo o Benin. Com 73 anos, Robert Meaher explica que já não está ligado à gestão do património imobiliário da família há cerca de duas décadas e, por isso, não pode comentar quaisquer planos para os terrenos que esta possui em Africatown e nos arredores do bairro. Quando lhe perguntámos se estaria interessado numa reunião com descendentes das pessoas que vinham a bordo do Clotilda em 1860, Robert respondeu com clareza: “Não estou disponível para isso.” ROBERT MEAHER

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C

descendente de Charlie Lewis, cativo do Clotilda, vive perto do cruzamento das avenidas Timothy e Meaher. Diz ser provável já ter visto membros da família Meaher no supermercado ou ter estado a seu lado numa fila à espera de um café. Nunca falou com nenhum deles, mas já pensou no que perguntaria aos Meaher se tivesse oportunidade. “Se eles pudessem apenas sentar-se e contar-nos a história que lhes foi contada, porque tem de haver uma história”, diz. Joycelyn também pensou em contactar os descendentes de Foster, ou das pessoas do Benin cujos antepassados venderam os seus antepassados aos traficantes de escravos. “O assunto é muito mais importante do que uma vingança”, afirma. “É muito mais importante do que ganhar dinheiro.” Esse tipo de ligação, em que os descendentes das mais terríveis divisões raciais da história dos EUA alcançaram a reconciliação, é possível. Em 2009, os descendentes de Homer Plessy e do juiz John Howard Ferguson, homónimos do tristemente célebre processo judicial que levou o Supremo Tribunal dos EUA a apoiar a segregação racial em 1896, constituíram uma fundação para explicar as repercussões do caso e a sua relevância nos tempos modernos. Uma trineta do juiz, Phoebe Ferguson, reuniu-se com Keith Plessy, cujo bisavô era primo de Homer Plessy, pouco depois de saber o papel que a sua família representara na história. “Fiquei perplexa ao perceber o poder do simbolismo do nosso encontro, sem fazermos nada para além de sermos amigas uma da outra”, afirma Phoebe. “Eu sabia que a culpa não era minha, mas era o legado da minha família. Vivermos no século XXI não pode servir de desculpa para nada fazermos acerca do assunto.” Tudo começa por assumir os factos. “Somos responsáveis por emendar as coisas no tempo presente”, afirma Keith Plessy. Os afro-americanos foram “mal recebidos aqui, obrigados a trabalhar, torturados, assassinados e tudo o mais. Tudo isso nos foi feito”. O perdão, afirma, começa pelo reconhecimento desses erros e pelo pedido de desculpa por eles. j J O Y C E LY N D AV I S ,


As comemorações de Terça-Feira de Carnaval continuam a ser festas maioritariamente segregadas em Mobile. Apesar da história racial da cidade, muitos acalentam a esperança de que a descoberta do último navio negreiro possa unir a cidade, permitindo o reconhecimento da história partilhada e a cicatrização de feridas antigas. O Ú LT I M O N AV I O N E G R E I R O

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U M A AV E C H O C A C O N T R A A J A N E L A D E U M H OT E L . I N C A PA Z D E R E G R E S S A R À N AT U R E Z A , TO R N A- S E U M A D O R A D O S Í M B O L O D E C O N S E RVA Ç Ã O. E S TA É A S UA H I S TÓ R I A .

Bob


o �lamingo T E X T O D E C H R I S T I N E D E L L’A M O R E

FOTOGRAFIAS DE JASPER DOEST 73


Depois de nadar, o flamingo Bob estica as asas. Em 2016, chocou contra a janela de um hotel, em Curaçao, sofrendo uma concussão e magoando a asa esquerda. Estes e outros ferimentos impediram o seu regresso à natureza. Agora vive com a sua salvadora, a veterinária Odette Doest. PÁ G I N A S A N T E R I O R E S

O fotógrafo Jasper Doest, primo de Odette, nada com Bob no mar das Caraíbas.



As decorações de Natal de 2016, nos estúdios da CBA Television, em Willemstad, a capital de Curaçao, servem de cenário para a exibição de Bob como convidado especial de um programa matinal. As suas aparições em público reforçam a importância de proteger a natureza.



ao pequeno-almoço, refresca-se na sua própria piscina de água salgada e é massajado nas patas duas vezes por semana. É uma vida luxuosa, mas talvez possamos dizer que ele merece: Bob passa muito do seu tempo a interagir com crianças em idade escolar da ilha onde nasceu, Curaçao, desempenhando o papel de embaixador da conservação. E Bob é um flamingo. A veterinária Odette Doest salvou Bob em 2016, depois de a ave chocar contra a janela de um hotel e sofrer uma concussão. Enquanto o reabilitava no seu santuário para animais selvagens (a organização Fundashon Dier en Onderwijs), o fotógrafo Jasper Doest descobriu que Bob fora domesticado: era muito descontraído ao pé de seres humanos. Além disso, sofria de pododermatite ulcerativa, uma doença crónica que afecta as patas, comum em aves mantidas em cativeiro, que prejudicava a sua capacidade para capturar alimento na natureza. Por isso, Odett decidiu mantê-lo no seu santuário, utilizando o talento de Bob em acções pedagógicas, juntamente com outros 90 animais. Ele vive na propriedade e tem por companheiros, entre outros, um falcão, um burro, um grupo de cães e gatos e dois pelicanos marotos que estavam sempre a tentar fugir. Quando Odette começou a levar consigo a ave, nas suas visitas semanais a escolas e a outros centros de encontro na ilha caribenha, o flamingo tornou-se uma celebridade instantânea. Seguiram-se notícias na comunicação social e, um dia, quando lhe perguntaram o nome da ave numa entrevista radiofónica, Odette respondeu, sem pensar duas vezes: (Continua na pg. 86) “Bob.” O nome pegou. O B S A B O R E I A C AV I A R

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O tom rosa natural de Bob condiz com a escadaria colorida de um bairro histórico de Willemstad. O flamingo descontraído passeia com Odette Doest pela cidade, chegando a sentar-se ao seu colo enquanto ela conduz. Recentemente alguém a deteve para lhe perguntar: “É verdadeiro?”


BOB, O FLAMINGO

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Numa escola de Willemstad, Rihantely Niles, aqui com 8 anos, ouve a pulsação de Bob. Os flamingos-americanos da ilha são frequentemente afectados por poluentes de plástico e equipamento de pesca descartado, um tema que a veterinária, com Bob ao colo, aborda nas suas palestras.


Bob visita a escola A.E. Goilo, no bairro de Julianadorp. Nem todos os flamingos são tão intrépidos como Bob. O seu amigo George, por exemplo, outra das aves resgatadas no santuário, é um “flamingo caseiro” porque fica nervoso na presença de pessoas.



Bob vai dar um mergulho nocturno na piscina de água salgada nas traseiras da casa de Odette Doest. Ele é um entre nove dezenas de animais do santuário local. Cerca de metade são residentes permanentes. Os flamingos vêm aqui parar com frequência, feridos por linhas de pesca ou cães vadios.





Odette Doest dorme uma sesta na piscina, perto de alguns dos animais que salvou. Além de gerir o centro de acolhimento e a sua clínica veterinária, é mãe, chefe do conselho de administração de um grupo de conservação local chamado Carmabi e doutoranda em zoonoses (doenças transmissíveis de animais para seres humanos). Optimista, recorda às crianças que um comportamento básico, como não usar balões nas festas de aniversário, pode contribuir para eliminar os resíduos que prejudicam os animais.

“O Bob é aquilo que todos querem”, diz. A maioria das pessoas nunca viu, de perto, uma ave tão colorida e elegante, muito menos tão simpática como esta. “Quando ele bate as asas, as crianças começam a agitar os braços e os adultos também”, explica. “Ficam fascinados com a sua beleza.” Mas não tente tirar uma #Bobselfie. “Não é para isso que Bob existe”, diz Odette com firmeza. “Tenho o Bob para as pessoas reflectirem sobre a natureza e o ambiente e verificarem como uma ligeira alteração nos seus hábitos pode ter grande impacte na natureza em redor.” As pequenas modificações comportamentais tanto podem implicar o uso de copos reutilizáveis em detrimento de garrafas de plástico, a recusa de balões em festas de anos ou a recolha 86

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periódica de lixo na praia. Odette constata que as crianças levam a sério essas propostas depois de ficarem maravilhadas com Bob. Jasper Doest, primo da veterinária, documenta as aventuras da dupla há três anos. “Sozinho, seria apenas mais um flamingo, mas Bob é também o animal emblemático que garante a atenção necessária para as acções pedagógicas.” de fotografar Bob quando a ave entrou, a bambolear, no seu quarto, em casa de Odette, no início de uma manhã. “Ele anda por aí a passear como se fosse um rei”, disse Jasper. “Vemos muitas histórias tristes e muitas desgraças. Esta era uma oportunidade para mostrar uma faceta positiva.” JA S P E R D O E ST T E V E A I D E I A


Em casa, Bob desenvolve outro jogo educativo: tem por costume proteger outros flamingos em recuperação, ensinando-os a comer a partir de um balde. Odette diz que a sua presença ajuda os flamingos recém-chegados a manterem-se calmos. Bob vive num quarto em casa de Odette, a “sala das aves”, partilhando esse espaço com dois outros flamingos resgatados: George e Thomas. Ambos tiveram uma asa amputada devido a ferimentos graves, o que impossibilita o seu regresso à natureza. George foi mordido por um cão e Thomas foi, possivelmente, atacado por um animal feroz ou enredou-se em equipamento de pesca. Muitas das aves resgatadas por Odette estavam emaranhadas em linhas de pesca, uma ameaça ambiental importante, tal como a po-

luição por plástico, a degradação dos recifes de coral e a perda das florestas de mangue. Nascida em Curaçao e dominando o idioma local, Odette consegue estabelecer ligações com as crianças a um nível que outros não conseguem. Pode ser difícil determinar o impacte de um programa de formação, mas Odette diz que os alunos se lembram daquilo que ela ensina. Após a morte recente de uma fêmea de flamingo, emaranhada numa linha de pesca, Odette levou a linha para uma escola e mostrou-a às crianças: “A ave era tão bonita como o Bob, tão grande, majestosa e saudável como ele, mas como alguém se esqueceu de uma linha de pesca, ela morreu”, disse. Semanas mais tarde, os professores disseram-lhe que as crianças ainda falavam no assunto. Odette incentiva as crianças a terem orgulho nos animais selvagens autóctones, incluindo na população passageira de flamingos-americanos em Curaçao, com 400 a 600 indivíduos, frequentemente avistados a alimentarem-se nos salares da ilha, usando as patas membranosas para trazer à superfície crustáceos e algas que lhes dão a sua característica tonalidade cor-de-rosa. Os flamingos-americanos foram regularmente caçados até ao final do século XIX, pois a carne e as penas tinham vasta procura. A espécie atingiu então um mínimo de dez mil animais concentrados numa única ilha das Bahamas. Desde então, os flamingos-americanos recuperaram nas Caraíbas, na Venezuela e no Sul dos EUA. Existe actualmente um local com mais de cinquenta mil casais nidificantes, segundo Jerry Lorenz, director de investigação da organização Audubon Florida. Segundo este especialista, os flamingos-americanos costumam ser sociáveis com os seres humanos e muitas aves resgatadas não podem ser devolvidas à natureza. São, porém, “magníficas” embaixadoras da conservação de vida selvagem. Nos Busch Gardens de Tampa Bay, na Florida, havia um simpático flamingo chileno, chamado Pinky, que recebia os convidados no parque e gostava particularmente de crianças, acrescenta. Odette calcula que Bob terá 15 anos. Existem registos de flamingos que viveram 50 anos na natureza e é provável que possam viver mais em cativeiro. Por isso, Jasper acredita que ainda tem muitos anos para documentar esta estranha dupla caribenha. “Consigo imaginar a Odette já velhinha, sentada numa cadeira de baloiço, rodeada de flamingos por todos os lados”, brinca. j BOB, O FLAMINGO

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V I AG E M

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VIETNAME

Na rota de uma especiaria AT R AV E S S Á M O S A P É U M A F L O R E S TA D E C R E S C I M E N TO A N T I G O N O S U D E S T E A S I ÁT I C O, E M B U S C A D O P R E C I O S O C A R DA M O M O. TEXTO DE MIKE IVES

FOTOGRAFIAS DE IAN TEH


Cada vez mais aventureiros intrĂŠpidos procuram o Parque Nacional de Hoang Lien, perto da fronteira entre o Vietname e a China. Esta ĂĄrea protegida acolhe as florestas de cardamomo negro, ou thao qua, uma especiaria essencial para preparar a sopa pho e outras iguarias vietnamitas. 89


Giang A Thao reside perto da cidade de Sa Pa, na fronteira do parque nacional. Descansa sentado sobre uma saca de vagens de cardamomo acabadas de colher. Na ĂŠpoca da safra, ele ajuda os parentes que sĂŁo proprietĂĄrios de um lote de terreno plantado com cardamomo nas montanhas de Hoang Lien.



Um estranho armado apareceu, vindo do nada, no vale montanhoso onde eu e Giang Thi Lang nos encontrávamos. “Isto vai ser interessante”, pensei. “Olá. Estamos perdidos”, disse Lang. “Viu a minha família? São sete homens e duas mulheres.” Tínhamos demorado um dia para ali chegar, atravessando de moto uma passagem de montanha, transpondo rios com água pelos joelhos, subindo estradas sinuosas e, até, esquivando-nos a pisar uma serpente venenosa. Agora, já estávamos perto do destino, uma floresta de cardamomo negro numa montanha vizinha. Mesmo assim, não conseguíamos encontrar o trilho de aproximação, dissimulado entre arbustos e flores silvestres. O marido de Lang, Duong, afastara-se de nós pouco antes, em busca desse caminho. Afinal, Lang e o caçador eram da mesma aldeia, situada nas proximidades do Parque Nacional de Hoang Lien. Ele cultivava cardamomo no parque há muitos anos e conhecia o local exacto do acampamento da família dela. A nossa campanha nesta área protegida (um conjunto de vales e montanhas escarpadas, próximo da fronteira entre o Vietname e a China) tinha como objectivo vermos a recolha de cardamomo em estado selvagem. Giang Thi Lang e Nguyen Danh Duong são guias de caminhada na cidade de Sa Pa, nas imediações, e eu tornara-me amigo deles anos antes, quando vivi em Hanói, a capital vietnamita. A família de Lang cultiva cardamomo nas montanhas de Hoang Lien desde a década de 1990 e o seu irmão mais novo, Cho, responsável pela expedição familiar anual de colheita, deixara-me acompanhá-los nesta ocasião. 92

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Mesmo num país com uma biodiversidade e uma beleza natural excepcionais, Sa Pa merece destaque. Esta cidade de montanha localiza-se junto do pico mais alto do Vietname, Fansipan (3.143 metros), perto da fronteira de um parque nacional com o triplo da área de Lisboa. É um lugar extraordinário para conhecer as tradições das minorias étnicas que há muitas gerações habitam Sa Pa e um vale fluvial adjacente. A viagem foi, ao mesmo tempo, uma grandiosa aventura e uma lição sobre a história ambiental recente do Vietname. O cardamomo negro foi plantado pela primeira vez nas montanhas de Hoang Lien na década de 1990, como substituto do ópio, a cultura que outrora contribuíra para sustentar a economia colonial da Indochina. Entretanto, o parque nacional tornou-se um símbolo dos esforços do Vietname no pós-guerra para proteger a biodiversidade vegetal. A minha campanha pretendia perceber como pode uma floresta ser um paraíso para a conservação e, em simultâneo, gerar uma cultura agrícola de rendimento?


À ESQUERDA

Agricultoras lavam plantas num acampamento perto de um tufo de plantas de cardamomo negro, no Parque Nacional de Hoang Lien. Faziam parte de um grupo que passou vários dias a colher a especiaria e a secá-la numa fogueira ao ar livre, antes de a carregarem de volta às suas aldeias, nos arredores de Sa Pa. EM BAIXO

As vagens recém-colhidas são vermelhas até serem torradas, assumindo então um tom castanho-escuro ou negro. A especiaria é vendida sobretudo a intermediários chineses e utilizada no fabrico de medicamentos tradicionais.

N A ROTA D E U M A E S P E C I A R I A

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Dois aldeãos do grupo étnico red dao atravessam uma ponte pedonal no caminho de regresso, após a colheita de cardamomo. Os habitantes da aldeia, Nam Cang, obtêm parte do seu rendimento vendendo a especiaria a negociantes.


em Hanói, mais de trezentos quilómetros a sudeste. Num mercado perto do meu antigo apartamento, comprei seis vagens de cardamomo negro por nove mil dong, ou seja, 34 cêntimos. Tinham aproximadamente o dobro do comprimento das suas primas verdes, do tamanho de uma unha, de uso generalizado na culinária indiana, e emanavam um aroma intensamente fumado e frutado. O cardamomo negro, conhecido como thao qua, cresce junto do leito dos rios em florestas de altitude, sob as copas de árvores altas. É utilizado como especiaria seca na pho, a sopa de massa vietnamita, e noutros pratos populares. Trinh Thi Quyen, o comerciante que me vendeu as vagens, explicou-me que o sabor fumado do thao qua complementa a canela e o anis estrelado, os outros ingredientes habituais da mistura de especiarias da pho. No Ocidente, o thao qua tem menos mercado do que o cardamomo verde: é vendido sobretudo a intermediários chineses e utilizado na medicina tradicional como tratamento para a obstipação e outras maleitas. Ao longo dos anos, a crescente procura chinesa transformou Sa Pa num importante entreposto comercial do cardamomo negro. Nessa noite, embarquei num comboio em Hanói rumo a noroeste, com destino à fronteira chinesa. Na manhã seguinte, ao chegar à cidade fronteiriça vietnamita de Lao Cai, apanhei um táxi e fiz uma viagem de uma hora para oeste, até Sa Pa, onde me encontrei com Lang para beber um café. De seguida, virámos a esquina e fomos a um armazém de cardamomo, onde os trabalhadores escolhiam vagens acabadas de colher, alumiados por uma simples lâmpada incandescente. No armazém, o negócio parecia florescente. Com intervalos de poucos minutos, aparecia um agricultor numa moto carregada com sacas cheias de thao qua. A dona do armazém, Nguyen Thi Hue, pagava-lhe, imediatamente, com notas retiradas de um maço grosso. Vi muitos milhares de vagens à espera de escolha. Uma frota de carrinhas estacionara no exterior, aguardando a sua carga, para depois a transportar até Lao Cai e dali rumar a norte, atravessando a fronteira. Hue disse-nos que o preço de compra do thao qua era actualmente de 4,5 euros por quilograma, mas que o valor estava sempre a flutuar. Na geração anterior, os comerciantes de especiarias de Sa Pa não mantinham este tipo de contacto regular com os intermediários chineses, acrescentou enquanto olhava de relance para o seu iPhone prateado. “Agora é muito mais fácil: basta telefonar-lhes.” C O M E C E I A M I N H A J O R N A DA

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Sa Pa, outrora um refúgio de Verão para funcionários da administração colonial francesa, situa-se no meio de arrozais em socalcos ou florestas. No Vietname, estas terras altas não costumam ser cultivadas por membros do grupo étnico dominante, mas sim por algumas das 53 minorias étnicas oficialmente reconhecidas no país. Alguns destes grupos cultivavam o ópio como cultura de subsistência durante a administração francesa e continuaram a fazê-lo mesmo depois de o Vietname declarar a independência em 1945 e travar guerras sucessivas contra a França, os Estados Unidos e, mais tarde, a China, que em 1979 invadiu a região setentrional do Vietname durante um breve período. A família de Lang pertence ao grupo étnico hmong e vive em Ta Van, uma aldeia nos arredores de Sa Pa que, nos últimos anos, aproveitou o crescimento explosivo do turismo de caminhada ocorrido em Sa Pa. No entanto, o cardamomo continua a ser uma importante fonte de rendimento para a aldeia. O pai de Lang, Giang, contou-me que começou a cultivá-lo nas profundezas daquilo que hoje é o Parque Nacional de Hoang Lien, em 1994, pouco depois de o governo o ter proibido de cultivar o ópio que plantara ali desde o final da Guerra Americana, em 1975. “Antigamente, adorava ir para lá”, disse-me, na sua sala de estar. “Agora, estou sempre a empurrar os meus filhos para irem cuidar daquilo.” fundado em 2002, é uma das muitas áreas protegidas do Vietname onde os grupos étnicos minoritários podem garantir o sustento cultivando terras do Estado. Em muitos locais do planeta, torna-se difícil impor regras de conservação nas áreas protegidas porque existem muitas comunidades com baixos rendimentos a residir nas redondezas, afirma Pamela McElwee, autora do livro “Forests Are Gold: Trees, People, and Environmental Rule in Vietnam” e professora associada de Ecologia Humana na Universidade Rutgers. “Isso não vai acontecer. Por isso, é preciso recorrer a modelos alternativos”, explicou. Segundo Pamela McElwee, o “modelo do cardamomo” – ao abrigo do qual os aldeãos colhem o thao qua dentro do parque nacional e os vigilantes da natureza fingem, quase sempre, não ver – tem resultado bem para ambas as partes. É de facto ilegal colher o cardamomo dentro das fronteiras do parque, bem como recolher lenha para alimentar as fogueiras que servem para secá-lo. No entanto, o abate de florestas inteiras seria muiO PA RQ U E N AC I O N A L D E H OA N G L I E N ,


to pior e as autoridades vietnamitas costumam aceitar estas compensações. Ou pelo menos têm-nas aceitado até agora. Os agricultores de cardamomo ainda enfrentam riscos. O valor crescente do produto levou alguns aldeãos a roubar as colheitas dos vizinhos e o agravamento das condições climáticas nos últimos anos afectou a safra anual. A geógrafa Sarah Turner, da Universidade McGill, no Canadá que estuda a indústria do cardamomo, explicou que há fortes probabilidades de os episódios extremos de clima verificados nos últimos anos estarem relacionados com alterações climáticas. O caso da família de Lang exemplifica bem a situação. Lang e o marido, Duong, membro do grupo étnico muong, não precisam do cardamomo para assegurar a subsistência, uma vez que gerem uma empresa de turismo de caminhada. Mas o irmão de Lang, Cho, que nunca se mostrou interessado por essa opção profissional, ainda considera esta cultura essencial para a sua prosperidade, apesar dos riscos financeiros.

que espécimes tão requintados tivessem sobrevivido aqui durante tanto tempo, enquanto enormes extensões das florestas norte-vietnamitas eram abatidas pela indústria madeireira. O acampamento à beira do rio era básico: um gigantesco oleado azul assente sobre estacas de bambu, num aterro que o pai de Lang outrora construíra na encosta da montanha. No interior, vi uma fogueira e uma cama de frondes secas de thao qua. Era ali que a equipa de colheita iria comer, dormir e torrar as vagens de cardamomo negro nos dois dias seguintes. O sítio fervilhava de actividade porque Cho recrutara quase uma dezena de amigos, vizinhos e parentes para o ajudarem na tarefa. “Somos primos”, disse um deles, Giang A Thao, quando lhe perguntei por que razão concordara em fazer tamanho favor a Cho. “Ajudamo-nos um ao outro.” começou na alvorada do dia seguinte, após um pequeno-almoço constituído por arroz, café instantâneo e fatias gordurosas de A S A F R A D O C A R DA MOMO

Parei para contemplar a paisagem: centenas de plantas de cardamomo da altura de cestos de basquetebol, com espessas frondes verdes. de Cho serpenteava entre arbustos que me davam pela cintura, arranhando-me as pernas. Aproximávamo-nos da cota de 2.150 metros de altura, tendo começado o dia a cerca de metade dessa altitude. Lang, que ganha a vida como guia de caminhada, estava a ficar sem fôlego. Duong, em contrapartida, mostrava-se descontraído. “Mesmo que tivesse de andar mais, poderia continuar a fumar,” brincou, com o cigarro despreocupadamente pendurado na boca. Chegámos ao local do acampamento perto do crepúsculo. Cumprimentámos Cho, que viera antes de nós para montar as tendas. Parei para contemplar a paisagem. Centenas de plantas de cardamomo da altura de cestos de basquetebol, com espessas frondes verdes, ladeavam as margens do leito de um rio vizinho. As frondes pareciam deslocar-se pelo chão da floresta em vagas, seguindo os contornos do ribeiro, como se fossem pinceladas rodopiantes numa tela de Van Gogh. Por cima do cardamomo, erguiam-se árvores antigas cujos troncos com musgo e ramos retorcidos se elevavam a muitos metros de altura. Algumas tinham um aspecto desgrenhado, quase irreal. Perguntei a mim mesmo como era possível O T R I L H O AT É A O C A R D A M O M O

carne de porco salgada grelhadas na fogueira. O terreno do cardamomo distribuía-se por dois vales de montanha de declive suave. Cho dividiu o grupo em duas equipas, que começaram a subir leitos de rio paralelos. Cada agricultor levava uma catana. A ideia consistia em extrair as vagens vermelhas cruas da base de uma planta, ao mesmo tempo que se limpava a vegetação circundante. Dessa maneira, a planta teria espaço para gerar novas vagens antes da safra do próximo ano. Durante muitas horas, os agricultores vogaram pelos leitos dos rios, parando apenas para beber água e enxugar as sobrancelhas. O ar era mais fresco do que no vale mais abaixo e o Sol escondera-se atrás das ameaçadoras nuvens do horizonte. Ao final da tarde, o grupo caminhou de volta ao acampamento e fez uma fogueira suficientemente grande para torrar e fumar um punhado de montes de cardamomo cru do tamanho de frigoríficos. Vi algumas vagens mudarem de cor, de vermelho rebuçado para castanho-café, emanando um forte aroma medicinal durante o processo. A torragem das vagens era essencial porque o peso das mesmas seria significativamente reduzido, facilitando o transporte da colheita montanha abaixo. N A ROTA D E U M A E S P E C I A R I A

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Uma turista vietnamita posa na praça principal de Sa Pa, onde crianças da etnia hmong vendem artesanato local. Antigo lugar de veraneio das autoridades coloniais francesas, Sa Pa Ê agora a porta de entrada nos trilhos da cordilheira Hoang Lien.



Os agricultores abriram uma garrafa de ruou, o equivalente vietnamita da aguardente, para comemorar o que parecia ser uma colheita impressionante. Foram passadas rodadas de copos e mais pedaços de carne de porco salgada. Acabámos por adormecer junto da fogueira, aconchegados para aquecer enquanto o vento assobiava. D E VO T E R M E R G U L H A D O N U M S O N O P R O F U N D O ,

tão profundo que não reparei quando uma chuvada torrencial rebentou às primeiras horas da madrugada, despejando um enorme volume de água em cima do oleado azul estendido sobre as nossas cabeças. No instante em que acordei, sobressaltado, o pânico reinava no local do acampamento. A colheita de Cho, de 350 quilogramas, poderia valer quase 1.800 euros aos preços actuais, qua100

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

se tanto como o salário médio anual do Vietname. Mas o volume de água acumulada estava a pressionar a frágil cobertura sobre a fogueira do acampamento. Tivemos medo de que o oleado se rasgasse com a pressão, encharcando as vagens para lá de qualquer possibilidade de recuperação. Escutaram-se muitos gritos. Tachos e panelas tiniam. Feixes de luz de lanternas varriam a escuridão. Cho corria de cima para baixo e saltava sobre a fogueira, tentando amarrar de novo um pedaço rasgado do oleado às estacas da tenda. Mas a chuva continuava a cair. Quando a tempestade amainou, cerca de uma hora mais tarde, era quase dia. O oleado sofrera rasgões e muitas das pessoas que se encontravam por baixo, eu incluído, tinham ficado quase encharcadas. O thao qua, porém, continuava seco.


C H IN A Sa Pa PARQUE NACIONAL DE HOANG LIEN

LAO S

Hanói

V IE T NA ME Go lfo de Tonqui m

ÁSIA

VIETNAME OCEANO ÍNDICO

Vinh

Prepare a sua viagem: Sa Pa, Vietname PORQUÊ AGORA?

Ly May Vy ferve plantas sobre uma fogueira a lenha para preparar um banho medicinal tradicional. Os caules de cardamomo são um dos muitos ingredientes utilizados nas Termas de Banhos de Ervas de Tam La Thuoc Dao Do, localizadas na aldeia de Ta Van, perto de Sa Pa.

Enquanto o Sol se erguia, Duong vestiu o casaco de camuflado e encheu duas canecas com café. Doíam-me os músculos, da caminhada e das corridas, e tinha a cabeça a latejar por causa da ressaca de ruou. Quando subimos esta montanha, Duong vinha cheio de energia e de gabarolices. Agora parecia mais humilde. Faltava-nos ainda um longo itinerário, atravessando os ribeiros e transpondo as passagens de montanha vencidas na subida. Desta feita, os agricultores transportariam a preciosa carga. “Cansado?”, perguntei a Duong enquanto o Sol se tornava cor-de-rosa. Ele acenou que sim com a cabeça. “Mesmo que me dessem esta floresta inteira, eu não aceitava”, disse ele, com uma gargalhada. “Isto é demasiado difícil.” j

Sa Pa está em grande crescimento, em parte porque uma nova auto-estrada que liga a cidade vizinha de Lao Cai a Hanói foi inaugurada em 2014. No entanto, grande parte do parque nacional visitável a partir de Sa Pa permanece belo e selvagem. O QUE CONVÉM SABER?

O Vietname não concede vistos a europeus no momento da chegada. Apresente o seu requerimento na Internet ou na embaixada vietnamita mais próxima. COMO LÁ CHEGAR?

Sa Pa é acessível de autocarro ou comboio a partir de Hanói. A viagem a bordo de um autocarro nocturno demora seis horas em cada sentido, e os bilhetes de ida e volta custam cerca de 35 euros. As tarifas de ida-e-volta dos comboios nocturnos, cujo trajecto demora oito horas, começam em 45 euros: um camarote privado no vagão de luxo, com capacidade para duas pessoas, custa 180 a 360 euros. NGM MAPS

A NÃO PERDER

Monte Fansipan Muitas agências de viagem propõem caminhadas até Fansipan, a montanha mais alta do Vietname. Um teleférico liga Sa Pa ao pico de Fansipan. A viagem de ida e volta custa 27 euros. Caminhadas Sa Pa encontra-se rodeada por aldeias habitadas por minorias étnicas, algumas das quais ligadas por trilhos. Várias empresas de turismo de caminhada sediadas na cidade propõem pacotes de viagem e alojamento com diferentes durações, preços e nível de dificuldade. Mercados de fim-de-semana Nas aldeias de Can Cau e Bac Ha, há mercados de fim-de-semana onde se vendem produtos locais. Pratos locais Nas imediações do lago Sa Pa, é servido um prato popular à base de salmão cozinhado a vapor. Outra iguaria é um prato de peixe frito estaladiço, chamado ca suoi.


N AT I O N A L

G E O G R A P H I C

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NA TELEVISÃO

Drenar os Oceanos 2 TO D O S O S D O M I N G O S , À S 2 3 H 2 0

Brain Games E S T R E I A : 3 D E F E V E R E I R O, À S 2 3 H

Não perca os oito novos episódios da série, agora apresentada pelo comediante Keegan Michael-Key, que, nesta temporada, envolve as celebridades Kristen Bell, Dax Shepard e Meghan Trainor como concorrentes. Em jogos interactivos, ilusões e experiências sociais, desvendaremos o potencial do nosso cérebro.

A Guerra dos Mundos ESTREIA: 13 DE F E V E R E I R O, À S 2 3 H

A série que eleva a aventura subaquática e a ilustração científica a outro patamar está de volta, com novos episódios. Através das mais inovadoras tecnologias, exploramos velhos mistérios subaquáticos. Na nova temporada, “Drenar os Oceanos” explora a história secreta de Londres (no dia 2 de Fevereiro), decompondo as várias camadas históricas da capital inglesa; procura igualmente identificar os destroços perdidos no oceano durante a Segunda Guerra Mundial (no dia 9) e esquecidos durante quase oito décadas. No dia 16, a série investiga o Império Romano e o modo como esta civilização da Antiguidade controlou os mares do mundo conhecido até então.

O período entre 1945 e 1991 foi definido pelo confronto de dois mundos: o Oeste capitalista, representado pelos EUA, e o Leste comunista da União Soviética. Ambos possuíam a mais potente das armas, a bomba nuclear. Não perca seis episódios de uma hora cada de “A Guerra dos Mundos”. NATIONAL GEOGRAPHIC (EM CIMA E AO CENTRO) ATOM CENTRAL (EM BAIXO)


Big Cat Month E ST R E I A : 2 D E F E V E R E I RO, À S 1 7 H TO D O S O S D OM I N G O S

A Nat Geo Wild dedica o mês de Fevereiro aos felinos mais ferozes da natureza. Muitas destas criaturas ferozes, lindíssimas e dotadas de força brutal estão em vias de extinção, sobrevivendo em territórios cada vez mais fragmentados e pressionados pelas actividades humanas. Através de imagens poderosas, contamos-lhe histórias de todas as regiões onde existem leões, tigres, chitas, panteras, leopardos-das-neves ou jaguares, recolhendo valiosas lições sobre os seus triunfos, as derrotas e os desafios que enfrentam. Com estreia agendada para 2 de Fevereiro, o Nat Geo Wild exibe pela primeira vez “The Real Black Panther”, “Wild Cats of India” (em dois episódios), “India’s Wild Leopards” e “Lion Brothers: Cubs to Kings”, entre outros documentários.

Jungle Animal Rescue E S T R E I A : 5 D E F E V E R E I RO, À S 1 7 H . Q UA RTA S - F E I R A S FELIS IMAGES (NO TOPO); ROBIN DARIUS CONZ/FELIS IMAGES (AO CENTRO); DOUBLE ACT (EM BAIXO)

País de elefantes, tigres e ursos, a Índia tem uma das mais ricas biodiversidades do mundo, mas também possui 1,3 mil milhões de habitantes. Da competição por espaço, resultam conflitos frequentes. Nos oito episódios da série, uma equipa de conservacionistas e veterinários resgata animais em perigo.


P R Ó X I M O

N Ú M E R O

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MARÇO 2020

Os segredos das abelhas

A recuperação do lince-ibérico

O fim do lixo

As raparigas de Chibok

A observação minuciosa de uma colmeia revela extraordinários comportamentos de sobrevivência das abelhas.

Um mundo sem lixo parece impossível, mas, em nome da sobrevivência da Terra, teremos de encontrar formas de criar valor naquilo que descartamos.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

O felino mais emblemático do nosso país e um dos mais ameaçados do mundo começa a recuperar depois de ter estado perto da extinção.

Em 2014, o grupo terrorista Boko Haram sequestrou centenas de alunas de um colégio na Nigéria. Agora, as sobreviventes exigem um futuro.

LUCA LOCATELLI


História

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