Um esboço autobiográfico

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UM ESBOÇO AUTOBIOGRÁFICO Iberê Camargo

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Um esboço autobiográfico O presente texto constitui-se de respostas às questões que me foram formuladas por Flávio de Aquino, com o propósito de incluí-las num livro de sua autoria sobre minha pintura, obra que infelizmente não foi ao prelo. Ao publicá-lo presto uma homenagem ao judicioso crítico e querido amigo, sempre vivo na minha memória. Nasci em 18 de novembro de 1914, no Rio Grande do Sul, em Restinga Seca, onde meu pai era o agente da Estação da Viação Férrea. Meu pai chamava-se Adelino Alves de Camargo e minha mãe, Doralice Bassani de Camargo, também ferroviária. Comecei a desenhar com quatro anos de idade. Sentado no chão, debaixo da mesa, passava horas a fio a rabiscar. Restinga Seca era para mim a estação da Viação Férrea do Estado, a caixa d'água; a sanga; o rancho da Bua, minha ama; o Ipo, que me trazia escanchado ao pescoço, cavalgando; a arapuca armada na moita à espreita do pássaro; o meu automóvel de brinquedo esquecido no oitão da estação sobre uma pilha de postes de ferro; o doutor Valemtim, negro retinto e pachola, permanentemente bêbado, a enticar na hora do trem com a negra Egalantina, empregada de minha mãe, com este estribilho: "No céu não luzem estrelas pretas". Ainda, o buraco fundo com seus ninhis de caturritas; o moço de culotes brancos descendo afoito o precipício para impressionar as moças; a Célia, que desenhou para mim um grande peixe colorido; a menina nua, chorando, encostada à parede; a Chata, irmã de criação e as nossas maldades. E longe, longe, longe, meu pai e minha mãe andando pequenininhos, no caminho do cerro. São lembranças, imagens de um livro de viagem. Em 1919 ou 1920, não estou certo, meus pais foram removidos para Jaguari, onde vivi até a idade de 8 anos. Desse período são as lembranças do rio, do Naná, da Igea, amigos dos folguedos; do velho Ponciano, que me fazia espadas de talos de jerivá, temperadas no fogo; do medo do Queixinho de Rabeca, que usava uma capa a meia espalda, de forro encarnado, e trazia uma espada que brilhava ao sol. Era o guarda da cadeia, que ficava no caminho da escola. Em 1922, meus pais foram removidos para Canela, no alto da serra. Lá não havia colégio. Fui interno em Cacequi, depois em Santa Maria. Na Escola de Artes e Ofícios (1927), já então morando com a avó Chiquinha no bairro de Itararé, comecei o meu aprendizado de pintura. A princípio com o professor Frederico Lobe (1927), depois com o professor Salvador Parlagrecco. O primeiro não falava, apenas respondia o cumprimento dos alunos com um leve aceno de cabeça. O aprendizado consistia em copiar estampas tiradas de revistas. Certa vez, deu-me para copiar a figura de um leão de perfil, deitado. Uma escultura, parece. Traçada a quadrícula, comecei a desenhá-lo marcando os contornos das luzes e das sombras. O fundo, escuro, tracejei-o com vigor. Aí, então, senti às minhas costas a sua presença e ouvi dizer, num tom seco: "Chove!" Fiquei paralisado, interdito, sem compreender. "Faça outra vez", acrescentou. Contrafeito, colei uma nova folha de papel no chassis, quadriculei-o e refiz o leão. E novamente escureci o fundo com vigorosos traços de carvão. E mais uma vez senti a sua presença, às mihas espaldas, e o ouvi repetir: "Chove!" E depois: "Faça outra vez". E tudo isso ainda se repetiu uma terceira vez. Finalmente, ele esfumaçou com o polegar as achúrias, "a chuva", como chamava. No ano seguinte, a escola substituiu-o pelo professor Parlagrecco. Tive, então, um mestre afável, que me estimulou muito. Embora sua orientação também fosse acadêmica - faziam-se cópias, porém sem as facilidades que a quadrícula oferece -, ele nos preparava para o modelo vivo. Cheguei a fazer um desenho do gesso. Esse aprendizado educou-me a mão e a visão. Parlagrecco era paisagista. Numa manhã de sol, assisti, emocionado, a ele fazer uma manchinha, como dizia, numa tampa de caixa de charuto. Foi uma revelação vê-lo criar o céu, as nuvens, as unhas-deagato, a água salpicada de reflexos. Um mundo iluminado. Nesse ano meu trabalho foi fecundo, apaixonado. Produzi muito. Sempre procurei fazer o melhor possível, sempre persegui o absoluto. No fim do ano, a quase totalidade dos trabalhos expostos eram de minha autoria. Destes trabalhos restam apenas um óleo e três desenhos a creiom, que foram recolhidos por meu amigo de infância Edmundo Cardoso, dentre os salvados do incêndio que consumiu o acervo da escola. "Assim vais ganhar o prêmio de viagem à Europa", disse Parlagrecco acariciando-me a cabeça. Manifestava o seu entusiasmo pelos meus progressos. Deram-me um prêmio de 50 mil réis e a promessa de uma viagem ao Rio, que não se realizou.

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Inesperadamente, fui obrigado a deixar a Escola de Artes e Ofícios devido a desentendimento com o professor de Letras, um marista. Trasferi-me para o Ginásio de Santa Maria, com outros propósitos. Renunciava assim a minha carreira de artista. Breve, porém, abandoneio ginásio. Esta minha decisão causou uma grande tristeza a meu pai. Queria ver-me doutor. Para ele era o fim de um sonho muito acariciado. Quantas vezes abraçara-me dizendo com voz carregada de emoção: "Meu filho, estuda, estuda. Quero que sejas um grande homem". Esta lembrança ainda hoje me dói. Dói pela mágoa e pelo desapontamento que lhe devo ter causado. A partir de então vivi embalado pelas promessas de um emprego na Viação Férrea, meta da maioria dos filhos de ferroviários. Morávamos na estação da Boca do Monte, lugarejo de poucas casas, espalhadas em torno da estação e ao longo de uma estrada poeirenta. Aí, numa dessas tardes intermináveis - na mocidade e na campanha os dias parecem mais longos - , encontrei um andarilho, de barbas e cabelos longos, como são os personagens dos contos para criança, que, avançando para mim, tomando-me das mãos, começou a dizer a altos brados: "Meu filho, tu és um grande artista, o mundo falará de ti!" Procurei acalmá-lo. Minha tentativa não fez mais do que excitá-lo e fazê-lo repetir, agora, com mais veemência: "És um grande artista, o mundo todo falará de ti!" Depois, como arauto que era da loucura, partiu na sua caminhada sem destino. Nesta época, fiz os primeiros desenhos do modelo vivo. Ainda queria ser pintor, embora esse desejo fosse mais um devaneio. Em 1932, voltamos para Jaguari, onde vivera parte da infância. Aí consegui meu primeiro emprego. Comecei como aprendiz no escritório técnico do 1º Batalhão Ferroviário, que construía o ramal Jaguari-Santiago-São Borja. Graças à minha aplicação e à saída inesperada do desenhistas, ocupei seu lugar e em pouco tempo assenhorei-me do desenho técnico. Durante quase dois anos, projetei bueiros, tracei rampas e declives, removi morros e aterrei vales, sem jamais ter saído do escritório. Aprendi desenho técnico na prática e nos livros. O primeiro a me cair nas mãos, Perspectiva e Sombra, de Arolo, foi para mim um quebra-cabeça. Não conseguia compreender a redução do ponto de distância: tratava-se de um livro de cenografia, sem as definições elementares de um tratado de perspectiva. Acresce ainda que o livro era escrito em espanhol, idioma que jamais estudara. Em geometria descritiva fiz o caminho inverso: da perspectiva cheguei à projeção do ponto. Em 1936, abandonei o Ferroviário e fui para Porto Alegre. Aí, então, voltei a estudar, à noite, e ingressei como desenhista, por concurso, na Secretaria de Obras Públicas na seção de saneamento e urbanismo. Projetei inúmeras praças para cidades do interior do Estado. Elas foram construídas, mas eu jamais as vi. Casei-me em 1939. Em 1940, recomecei a pintar. À noite, transformava a nossa pequena sala em ateliê. Maria, esta companheira inseparável, sempre paciente, era o meu modelo. Meu interesse, minha paixão pela pintura foi crescendo. Em companhia de Vasco Prado, desenhava tipos de rua, empregadas domésticas, num galpão de madeira que ele construíra perto de casa, tão remendado como uma maloca. Arranjáva-mos modelos na Sopa-do Pobre (instituição de caridade). Para assegurar a assiduidade do nosso estudo, contratávamos um modelo por mês, como se faz com empregada doméstica. Costumava mostrar os meus desenhos ao Rasgado, que me fazia críticas judiciosas e me falava de arte. Em certo momento, tive boas indicações de Fahrion, professor já bastante conhecido e de bom renome, como artista. Na paisagem, nessa época, procurava fixar o instante fugidio. Queria aferrar, captar o mistério que vejo envolver o real. Minha visão era fenomenológica. Trabalhava com paixão, com ímpeto, com emoção incontida, às pressas. Terminado o quadro, não o retocava, mesmo que nele descobrisse dissonâncias. Considerava o instante de criação irretocável, sagrado. Decidido a ser pintor e sentindo a necessidade de encontrar os meios que possibilitassem tal realização, procurei Décio Soares de Souza, que conhecera meu trabalho e me estimulara a seguir a vocação. Décio, culto e sensível, mobilizou seus amigos Moysés Vellinho e Vianna Moog para me conseguirem uma bolsa de estudos do Estado. Sensível à solicitação, Oswaldo Cordeiro de Farias, então governador do Estado, concedeu-me a bolsa com que pude estudar no Rio de Janeiro. Do ponto de vista de um pintor, nessa época Porto Alegre era uma cidade provinciana, conservadora. O modernismo não tinha ainda influído nas artes plásticas do Rio Grande do Sul. O moderno era mal interpretado pelos artistas e inteiramente desconhecido do público. A exposição de verdadeiras contrafações de modernismo - fato de triste memória - promovida por um grupo foi inaugurada para zombar da arte moderna. Esse grupo permanece anônimo até hoje. Fernando Corona e Casimiro Fernandes foram uns dos poucos que aceitaram o novo. A Editora Globo, então uma grande editora, formava na prática seus artistas gráficos com um quê de germânico. O Instituto de Belas Artes, fechado ao modernismo, intolerante, congregava a maioria dos pintores que exerciam o magistério. A Casa das www.iberecamargo.org.br


Molduras mantinha uma sala de exposições, a única da cidade, dirigida pelo Pereira. Foi aí que vendi meu primeiro quadro para Nino Marsiaj, meu médico e amigo. Foi nesta mesma galeria que, posteriormente, mostrei o que fazia no Rio. Esta exposição, com muitas influências, não teve boa aceitação. Casimiro Fernandes, meu primeiro crítico, numa reportagem publicada na Revista do Globo, incentivava-me a prosseguir. Foi neste ambiente que dei meus primeiros passos na carreira de pintor. Pintor nascido fora da plantação, como erva daninha, mais pintor em todo caso. Nesta época, assim como anteriormente, a literatura era ponto culminante da criatividade gaúcha: o Erico, o Moog, o Quintana e outros. Vim para o Rio em 1942,na condição de bolsista do Rio Grande do Sul. Viajei num avião da Condor. Foram quatro horas de expectativa. Desembarquei na Capital Federal exatamente no dia em que o Brasil declarava guerra ao Eixo. À noite, fui à casa de Portinari levado pela Sarah, mulher de Augusto Meyer, para quem trouxera uma carta de recomendação. Não gostei das pinturas de Portinari e suas observações me desconcertaram. Como perguntasse minha impressão, disse-lhe que não havia gostado. Minha franqueza o aborreceu. Ele achou natural que isso ocorresse, pois, na Europa, quando do seu prêmio de viagem, tivera reação semelhante em relação ao modernismo. Desaconselhou-me a freqüentar a Escola de Belas Artes. Falou-me de Guignard. A seguir conheci Landucci, a quem também fiz ver os poucos trabalhos que trouxera. Habituei-me a mostrar-lhe meus trabalhos e a ouvir suas críticas. Também conheci Santa Rosa e Goeldi, figuras inesquecíveis. O tempo nos fez grandes amigos. Pouco a pouco fui penetrando no ambiente artístico do Rio. O Café Vermelhinho, no fim de tarde, era o ponto de encontro de escritores, pintores, gente de teatro, jornalistas, enfim, gente que pensava. Foi aí que me tornei amigo de Adonias Filho, Flávio de Aquino, Milton Dacosta e também da Djanira, Maria Leontina, Barão de Itararé, Bandeira, Eneida, Solano Trindade e tantos outros que me enchem o coração de saudade. O Salão de Belas Artes polarizava o interesse dos artistas. O Prêmio de Viagem era a grande meta. Nesse tempo, não existiam galerias comerciais nem se falava em marchand. Apesar das recomendações de Portinari, ingressei na Escola de Belas Artes, pois pensava que como bolsista não podia ficar a toa. Fui para a classe de Augusto Bracet, diretor da escola. Diante da minha agressão aos padrões da academia, tomou-me das mãos os pincéis e, com louvável propósito de ensinar, transformou a índia Acarajá, o modelo, numa suave madona. De posse da paleta, tentei reencontrar o caráter do modelo, que perseguia com êxito. Frustrado e possivelmente irritado, cancelei a pintura com duas grossas pinceladas. Soube, depois, que o professor havia se ofendido com meu gesto. Eu não tivera intenção de ofendê-lo. Este incidente encerrou minha carreira universitária que apenas começara. Depois dessa breve experiência na Escola de Belas Artes, tornei-me aluno de Guignard. Fiz dele meu professor particular. Nós morávamos numa pensão na rua Esteves Júnior. Reparti estas aulas com Elisa Bygton, que mais tarde viria a patrocinar o Grupo Guignard. Ela sempre foi uma grande amiga. Como era natural, comecei a sentir a influência de Guignard. Nessa época enviei três desenhos escolhidos por Landucci para o Salão, seção de desenho. Nesse ano Guignard começou a dar aulas públicas no terraço da UNE na praia do Flamengo. Foi então que pensamos em formar um grupo e arranjar um lugar para trabalhar. Elisa alugou uma sala na rua Marquês de Abrantes, 4 - uma antiga gafieira, a Flor do Abacate -, que povoou de cavaletes, cadeiras, cortinas, tudo, enfim, que era necessário para o funcionamento do ateliê. Guignard, com seu grande entusiasmo, foi um mestre dedicado. Trabalhamos cerca de um ano. Junto ao ateliê funcionou um curso de História da Arte. O grupo fez uma exposição que ficou assinalada tanto pela agressão do diretório acadêmico da Escola, onde Guignard teve a ingenuidade de exibir nossos trabalhos, como pelos louvores que em compsensação merecemos da crítica. A agressão teve como pretexto uma entrevista concedida pelo grupo a Dalcídio Jurandir para Diretrizes contendo críticas ao ensino caduco da Escola. Com a ida de Guignard para Belo Horizonte, o grupo se dissolveu e cada um seguiu o seu caminho. Isolado, num ateliê no Edifício Róseo, e depois na Lapa, dilacerei-me para escapar das influências poderosas de Portinari, Segall e Utrillo, esta a mais marcante e duradoura. Foi nesta época que tiva a surpresa agradabilíssima de encontrar Marques Rebelo à minha espera junto à porta do Edifício Róseo, onde tinha meu ateliê. Disse logo quem era e a que vinha, com aquela sua maneira direta e rude: "Você é o único valor que surgiu nestes últimos tempos. Quero escolher um trabalho seu para a exposição que vou levar à Argentina". Achei sua apreciação exagerada. Era muito dele, ver com o coração. Desse dia em diante ficamos amigos íntimos. Graças a ele, que vendia meus quadros, pude educar e prover minha filha durante nossa estada na Europa. Marques Rebelo foi o grande embaixador da nossa cultura nos

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países vizinhos. Os quadros, ele os levava enrolados embaixo no braço, como suponho terem feitos os primeiros mascates. Em 1947, obtive o Prêmio de Viagem à Europa, no Salão de Arte Moderna, com o óleo intitulado Lapa, atualmente no Museu Nacional de Belas Artes. Fui à Europa, para ver e ouvir. Sofri grande impacto ao ver de uma só vez tudo aquilo que conhecera através de escassas informações. Tornei-me aluno de De Chirico em Roma e Lhote em Paris, porque tinha uma grande avidez de conhecimento. Viajei por vários países da Europa para ver arte. Regressando ao Brasil nos fins de novembro de 1950, recomecei a pintar e a gravar, ainda atordoado pelo que tinha visto e ouvido. Convencido de que a única maneira de reencontrar-me era olhar com simplicidade o mundo que me cercava, com olhos de criança. Passei então a interpretar a paisagem carioca (morávamos em Santa Tereza) com uma paleta luminosa onde predominavam os roxos, os azuis e os ocres. Este é o período de paisagens de Santa Tereza. Nesta época pintei muitas naturezas-mortas, assim como fiz muitas gravuras. Aproximadamente em 1958, uma hérnia de disco provocada pela suspensão de um quadro no cavalete, obrigou-me a trabalhar quase que exclusivamente no ateliê. Seja por esta razão ou por motivos inconscientes, meus quadros começaram pouco a pouco a mergulhar na sombra. O céu das paisagens tornou-se azul-escuro, negro, dando ao quadro um conteúdo de drama. Surgem, então, os carretéis sobre a mesa, depois no espaço. Os carretéis são reminiscências da infância. São combatesdos Pica-Paus e dos Maragatos que primo Nande e eu travávamos no pátio. Eles estão impregnados de lembranças. Através das estruturas de carretéis, cheguei ao que se chama, no dicionário da pintura, arte abstrata. Neste periodo, o ritmo é gestual, porém dirigido, não mera impressão de um gesto qualquer. O Salão Preto e Branco (1954) foi um veemente protesto dos artistas plásticos pela inclusão, de seus materiais de trabalho - especialmente as tintas -, na categoria dos supérfluos (5ª categoria) no plano Aranha, que visava restringir as importações. Autor da idéia do Salão, liderei o movimento juntamente com Djanira, mulher de muita fibra. Foi um belo movimento de união dos artistas, sempre difíceis de congregar. Com esse movimento, conseguimos que as tintas passassem para a 2ª categoria. O Salão Preto e Branco teve grande repercussão, até fora do Brasil. Infelizmente, após trinta e dois anos de sua realização, o problema da importação de tintas e da qualidade dos materiais de frabricação nacional, para uso dos artistas plásticos, continua em pauta. Sem solução à vista. Minha contestação é feita de renúncia, de não-participação, de não-conivência, de não-alinhamento com o que não considero ético e justo. Sou como aqueles que, desarmados, deitam-se no meio da rua para impedir a passagem dos carros da morte. Esta forma de resistência, se praticada por todos, se constituiria em uma força irresistível. O drama trago-o na alma. A minha pintura, sombria, dramática, suja, corresponde à verdade mais íntima que habita no íntimo de uma burguesia que cobre a miséria do dia-a-dia com o colorido das orgias e da alienação do povo. Não faço mortalha colorida. Por que sou assim? Porque todo homem tem um dever social, um compromisso com o próximo. Para mim, arte e vida confundem-se. Recebi as primeiras noções de gravura em metal de Hans Steiner (1943). Gravei minhas primeiras chapas nivelando o cobre à fúria de lix e improvisando as prensas. A dificuldade de conseguir bom material tem sido uma constante na história da arte brasileira. Na Europa, em 1948, estudei com Carlo Alberto Petrucci, então diretor de Calcografia de Roma. Ampliei meus conhecimentos com a leitura de tratados sobre gravura, com uma farta correspondência com Mário Carneiro. Ainda em 1973, aproveitando a minha estada em Paris, freqüentei o ateliê dos irmãos Frelaut para aprimorar meus conhecimentos de impressor. Fundei um ateliê de gravura no INBA, onde também lecionei pintura. Ministrei cursos de gravura em Porto Alegre. Ainda dei cursos de gravura em Montevidéo e Santa Maria. Como complemento da minha atividade didática, escrevi um pequeno manual de gravura em forma de apostilas. A fatura de meus quadros é densa, pastosa, por uma necessidade de expressão, por uma necessidade quase tátil e sensual no emprego da matéria. Minha paleta, de tons frios, grises azulados, roxos, negros, serve à minha visão subjetiva do mundo. Emprego bom material, porque não faço obra descartável. www.iberecamargo.org.br


Enfrento diariamente a dificuldade de encontrá-lo. Importo as minhas tintas pagas em dólar. Esse dólar, cujo valor em relação ao cruzeiro sobre vertiginosamente. Essas figuras que ora povoam os meus quadros (elas mesmas são os quadros) nascem da minha saga, da vida que dói. Sempre me considero o mesmo. Devo entretanto confessar que, quando corro nas manhãs de sol no Parque da Redenção, noto que a minha sombra não acompanha meu "tranco", ela corre muito devagar. Tenho os olhos bem abertos para o mundo. Por isso estou com aqueles que se opõem ao holocausto do homem, essa ameaça insana. A verdadeira pintura não é uma narrativa de fatos, mas o próprio fato. Aprendi a desconfiar dos homens e a escolher melhor os meus amigos. É difícil revelar a significação das cosias. O homem olha a sua face, interroga-se e não sabe quem é. Talvez o auto-retrato seja uma interrogação. Talvez seja olhar dentro de mim mesmo. Meus personagens são elementos de linguagem, cujo significado está no contexto da obra. Exposto à flagelação por certos órgãos de imprensa, suportei, dia após dia, a insídia, a chacota, a injúria. Manipulava-se a notícia, distorcia-se o fato para estigmatizar-me perante a opinião pública. Transformaram-me no símbolo da violência, a mim que a sofrera! Maria e eu, como dois náufragos à mercê de um mar em fúria, vivemos a consumação da obra. Ela pensou minha feridas com suas lágrimas. Os amigos foram mais amigos. Muitos assumiram publicamente a minha defesa. Mas houve os que se afastaram. Esses, esqueci-lhes o nome. Verberou-se na imprensa contra a violência. Não, obviamente, a violência de certa imprensa contra o indivíduo. Refiro-me à imprensa que se supõe infensa à crítica, inquestionável. Isso porque quase nunca é incomodada, pois a Justiça só a molesta quando ela morde os fundilhos do poder. Falou-se que fui vítima de minha amizade com Cordeiro de Farias, homem de 64. Não sei. Tenho o culto da amizade e da gratidão. Jamais pedi atestado de ideologia aos meus amigos. O episódio da APLUB foi mais uma agressão que sofri. Durante uma recepção na nova sede, meus quadros foram retirados na pinacoteca pelo seu presidente, um..., que me considerou indigno de permanecer no acervo, após a tragédia. Em sua paranóia, antecipou-se à Justiça. Inqualificável. Por ironia, os quadros do acervo eu doara a pessoas que, em difoculdades financeiras, os venderam à APLUB. Como se vê, financiei meu auto-de-fé. Ainda recentemente, em 84, sofri nova injúria de certa revista da imprensa marrom, contumaz da calúnia, habituada a não publicar as cartas dos leitores ou suprimir-lhes trechos que não lhe são favoráveis. Voltei para o Sul em busca da tranqüilidade que perdera no Rio. E também porque a saudade tornara-se grande demais. À medida que envelhecemos, parece que a infância fica mais perto. Sentimos vontade de reencontrar os primeiros amigos, de reencontrar o nosso pátio e tudo o mais que foi nosso na infância. Em Porto Alegre, nos fins de tarde, gosto da Rua da Praia, embora ele seja tão diferente de outrora. Aí, no verão, o sol é um fogaréu. Quase cega. Ninguém vê ninguém. Aliás, em Porto Alegre, o sol está mal colocado. Sempre nos ofusca s visão, como o reflexo de um espelho. Tenho uma visão pessimista do Brasil, quase apocalíptica do mundo. Nossa independência não foi ainda alcançada. Discute-se a mudança do maquinista, não o rumo do trem. E só este importa. Com a filosofia "eu gosto de levar vantagem em tudo", não se constrói uma sociedade justa e feliz. Vivemos vinte anos de prepotência, de mata e enforca. Nunca tanto poder em mãos de tão poucos. Poder que nos salvou as nossas águas, que não salvou os nossos peixes, que não salvou as nossas florestas, que não salvou a nossa fauna, que não salvou a nossa flora, que não salvou as nossas riquezas do subsolo, que não salvou o homem brasileiro. Sinistro poder que nos fez mal! Vejo o mundo ameaçado pela insanidade. Em 1984, em Porto Alegre, pintei um cartaz de rua que dilacerou na chuva e no vento, e escrevi umtexto em solidariedade àqueles que se opõem ao holocausto nuclear. É preciso criar no Brasil uma consciência ecológica. Talvez um partido. Tenho sempre presente que a renovação é uma condição de vida. Nunca me satisfaz o que faço. Vejo nisso um estímulo permanente à criação. Ainda sou um homem a caminho. www.iberecamargo.org.br


O movimento pop, a "transvanguarda" e outros fazem parte da dinâmica da arte. Descendo de uma brilhante geração de pintores (Picasso, De Chirico, Chagall e tantos outros) que me antecedeu. Com ela aprendi a ver. Por isso, minha pintura tem um elo com a tradição. Realizei inúmeras exposições no Brasil e no exterior e participei de vários salões e bienais. Não destaco este ou aquele evento. Todos têm o mesmo peso, isto é, pouco. Para mim, as poucas pessoas importantes são os meus amigos. Tive e tenho grandes amigor. Flávio, tu és um deles. Fui amigo fraternal de Luiz Aranha, o Lulu - pessoa extraordinária -, do Décio, do Verney, do Moysés, do Cordeiro. Sou amigo do Moog. Só para citar os que me ajudaram a ser pintor. Nota da redação: No início da década de 1990, Iberê Camargo começou a sentir os efeitos do câncer que lhe tomava, dia-a-dia, a vida. Depois de uma série de tratamentos, morreu no dia 31 de julho de 1994, aos 80 anos de idade, em Porto Alegre. Iberê Camargo Rio de Janeiro, 08 de março de 1985

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