Fabiana Botinha
Por Toda a Vida 2ª Edição
Betim Edição do Autor 2021
Copyright © by Fabiana Botinha Todos os direitos reservados. – É PROIBIDA A REPRODUÇÃO – Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita ou mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações, assim como traduzida, sem a permissão, por escrito, da autora. Os infratores serão punidos pela Lei nº 9.610/98. Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência. 2ª Edição | 2021 Diagramação de ePub e Capa: Giselle Vieira Imagem de Capa: Adina Voicu | Pixabay Revisão: Giselle Vieira e Edson Barcelos
____________________________________ Ficha Catalográfica ____________________________________ B749c Botinha, Fabiana Por toda a vida [recurso eletrônico] 2. ed. -- Betim, MG; [edição independente], 2021.
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Fabiana
Botinha.
1. Literatura Brasileira. 2. Romance. 3. Ficção. I. Título. CDU 821.134.3(81)-31 CDD B869.8151 LOC PQ9500-9698.436
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Bibliotecário - Marcelo Diniz CRB 2/1533. Resolução CFB nº 184/2017.
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Não recomendado para menores de 14 anos.
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Sumário AGRADECIMENTO LEI DE INCENTIVO A CULTURA APRESENTAÇÃO PRÓLOGO I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII XIII XIV XV XVI XVII XVIII
PARTE I
PARTE II
XIX XX XXI XXII XXIII XXIV XXV XXVI XXVII XXVIII XXIX XXX XXXI XXXII XXXIII XXXIV XXXV XXXVI XXXVII XXXVIII XXXIX XL XLI XLII XLIII
PARTE III
A AUTORA
AGRADECIMENTO
A Deus, razão de toda minha existência. A minha mãe, presente de Deus em minha vida, “amor que não se mede e não se repete”. Ao meu marido Edson, pelas infinitas horas de minha ausência e por seu amor fonte de inspiração. Aos meus filhos Maria Eduarda e Miguel... Inspiração e constatação de amor incondicional!
LEI DE INCENTIVO A CULTURA
O Livro Por Toda a Vida, foi um dos projetos aprovado e incentivado através da Lei de incentivo Aldir Blanc 001/2020 de Betim/MG - L.A.B 223/2020. Com o intuito de fomentar a Cultura do Brasil, contribuindo para ampliar o acesso dos cidadãos à Cultura. O incentivo à leitura, além de ser uma importante ação cultural, promove também a inclusão social e o desenvolvimento de novas ideias.
APRESENTAÇÃO
A
mar nem sempre significa estar junto. Quando temos a sorte de sermos correspondidos, o amor deixa sua condição inicial e se torna visível, público e cheio de ruídos. Algumas vezes é silencioso, oculto e individual, em outras é preciso abrir mão, afastar, negar e sobreviver! Somos capazes de nos afastarmos da pessoa que queremos por amor? Até onde é possível ir em nome deste sentimento? Este romance conduz a profundas reflexões sobre o verdadeiro amor. Obra emoldurada de ficção e realidade retrata fatos sobre uma jovem que sofreu um grave acidente e perdeu a memória. Seis anos de sua vida foram apagados como se nunca houvessem acontecidos e Eduarda é obrigada a encarar uma dolorosa verdade: havia sido abandonada pelo noivo e talvez nunca recuperasse as lembranças perdidas. Recomeçar a vida, apaixonar-se novamente e continuar a viver seriam seus objetivos. Será que vai ser simples assim? São páginas e páginas repletas de sentimentos, revelando o poder imensurável do amor, transformando vidas e sublimando corações. Aborda aspectos do primeiro amor, casamento, família, ética, preconceito e saúde. Uma história de ficção, mas que retrata um assunto importante de saúde pública como o HIV. Traz informações científicas dentro de uma trama que relata uma relação rara e bela, que resistiu ao teste do tempo e das circunstâncias. O que você seria capaz de fazer para manter vivo o amor de sua vida?
Apenas o primeiro olhar, somente um olhar. O suficiente para amar. Qual seria o motivo? Ambos perguntaram silenciosamente. Percorreram por caminhos que já não era possível voltar, e seguir seria um tormento constante. O que fazer? Haveria solução? Procuraram o remédio... E quando encontraram Perderam-se.
PRÓLOGO
O
sol estava em seu ponto mais alto. A temperatura devia estar por volta dos 39°, no entanto, não conseguia enxergar nada, apenas sombras, que pareciam se deslocar como se fossem criaturas vivas por sobre a sua cabeça. Até onde conseguia discernir, não havia mais nada, apenas um vazio muito grande, uma ausência de cor. O movimento de carros era grande na avenida, tinha consciência disto, mas não conseguia ver nem ouvir nada. De repente o mundo ficou mudo, o único som era o gemido secreto de sua alma e um candente fio de desespero perpassava seu coração. Não tinha para onde correr. “O que fazer quando nos deparamos com alguma situação em que somos apenas espectadores?” Com toda certeza estava diante de uma destas situações. Como era dilacerante apenas assistir! Quisera poder agir de alguma maneira para mudar aquele enredo, mas nas circunstâncias que a cercavam um terror imenso e intolerável lhe afirmava que era demasiadamente concreto o que vivia. Poucas coisas na vida são irremediáveis! Quisera ser outra pessoa para não viver aquele momento terrível e irremediavelmente eterno. Suas emoções lhe trancavam em um abismo profundo, de companhia a dor mais agonizante e desesperadora que já havia experimentado. Dizem que quando a dor é aguda demais se fica anestesiado: por que não estava? Também dizem que quando se está no fundo do poço só existe uma coisa a ser feita: Subir. Por que não conseguia? Tentava a todo custo lançar mão de sua razão, mas todo o resto de seu ser lhe afirmava: não haveria jeito! Havia uma incontrolável certeza de que o poço tinha sido trancado e que por mais que escalasse não teria saída, pois o poço em que
foi arremessada não tinha fim, estava escuro e não via a saída porque ela não existia. A razão tentou mais uma vez lhe trazer a realidade, mas somente o desespero conseguiu lhe dominar e sentiu que estava escorregadio, não havia como subir... Estava condenada a viver naquele fundo para sempre. Não havia nenhuma fresta por onde fosse possível entrar um mínimo de luz para poder direcioná-la para outro lado que não fosse o abismo sem fim. Em alguns fragmentos de segundos a razão lhe indagava: que final era este? E toda aquela história de milagres? Que depois da noite nasce o sol, depois da tempestade vem a bonança, após a tristeza sempre havia uma alegria e que no final do túnel sempre haveria uma luz? Neste momento tinha absoluta certeza: não haveria sol, bonança, alegria e luz. Lamentou tudo que ouvira dizer, eram casos de contos, inventados por alguém para fornecer, sem claros motivos, falsas esperanças. Estava condenada a viver com aquela dor que a consumia a cada respiração, a cada segundo. De repente sua vida era pura escuridão! Então seria assim, tentar acostumarse com aquela situação. O ser humano se adaptava a todas as circunstâncias, então precisava encontrar uma forma de se adaptar ou então enlouqueceria. Como? Como uma pessoa podia suportar tanta dor? Não sabia qual seria o próximo passo, sentiu vontade de se entregar à morte. Como fazer para encontrá-la? Somente assim não precisaria enfrentar e conviver com tanta tristeza! Estava fechada em si mesma, sem sentir o mundo a sua volta, sem se dar conta que pessoas a olhavam e tentavam entender e ajudá-la. Completamente imersa nesta escuridão, tomada até a alma pela dor, prestes a entregar-se foi que, em um instante, em um milésimo de segundos que sentiu uma força tentando puxá-la. De onde vinha? Quem era? Tentou olhar em volta, no entanto, nada viu além do escuro, contudo, quando a luz chega, às trevas de imediato se afastam. E mais que de repente, de forma inesperada, sentiu quando aqueles olhos penetraram nos seus de
forma intensa. Olhos que se transformaram misteriosamente em luz e ela conseguiu enxergar. E eles a aqueciam. Onde estava a noite naquela hora? Tudo estava confuso, quando havia saído do fundo do poço? Estava lá ainda ou ele estava lá também? Novamente aquele olhar penetrou-lhe de uma forma abusada, sem pedir licença, simplesmente entrou e seu corpo involuntariamente começou a reagir. Estava gelada e sentiu o calor chegando e tentando aquecê-la. Sentiu algo mexer com seus sentidos, de uma forma que jamais saberia explicar. Parecia uma luz tentando entrar no túnel. Então se deu conta que ainda estava no túnel. Por onde ele entrou? Por onde? — Vamos! Não pode se entregar assim? Não havia morrido? Estava realmente ouvindo? Era real ou apenas um desejo? Com imensa dificuldade, instintivamente balbuciou: — Não percebe o que está acontecendo? Acabou! — Sim, acabou. — Como poderei viver nesta escuridão? Não consigo enxergar minha vida daqui pra frente. — Chegou a hora de deixar a luz aquecer e enxergar o extraordinário. — Não vejo a saída dessa situação. Você vê? Você sabe o que aconteceu? Estou em um túnel sem saída. — Então se lembre: se não consegue ver a luz no fim do túnel é porque não chegou ao final dele. Então se apresse que a luz te espera! — Não existe luz, nem saída. Não vê que meu mundo acabou? — Quando o meu acabou, fiz o melhor que pude para refazê-lo e estou aqui, não estou? Não vou abandoná-la. Se não consegue sozinha, vou guiá-la até que encontre um novo mundo onde possa viver em segurança. — Você está louco! — Não! E não permitirei que você enlouqueça.
PARTE I
O amor pode te tocar a qualquer momento, da forma mais inesperada. É preciso percepção para enxergá-lo e ousadia para aceitá-lo.
I
T
odo consultório médico era metódico. Havia um pouco de padronização: paredes claras, balcões, cadeiras, revistas de fofocas... Até o cheiro era um pouco parecido. Sorriu desta observação, no entanto, ao entrar no consultório logo se surpreendeu. Era aconchegante e bonito, longe de ser aquelas clínicas de aparência fria. A sala de espera era grande e confortável sendo possível relaxar ouvindo música, vendo televisão e lendo revistas de todos os tipos. O clima lá dentro em nada se assemelhava ao calor de 40° lá fora. Não conseguiu deixar de reparar no espaço em que se encontrava. A primeira coisa que observou é que o ambiente não usava o tradicional branco. Nas salas de atendimento, por exemplo, foram utilizados papéis de parede importados adequados na questão de higiene, mas com um toque acolhedor e sofisticado. Desta forma os espaços meramente funcionais ganharam muita identidade. Outra coisa que faziam os pacientes se sentirem bem era a iluminação. Era nítido o amplo aproveitamento da luminosidade natural dos espaços. Ela descobriria, logo mais, que as salas dos médicos também seguiam a mesma linguagem de oferecer uma sensação de aconchego, praticidade e sofisticação. Não lhe passou despercebido que os materiais escolhidos também eram nobres, como o piso e a escada em Mármore Branco Phigues. No corredor foram desenvolvidos painéis laca alto-brilho com portas de correr. Quando fechadas elas praticamente sumiam. Era uma tendência comercial com cara de residencial. Logo, outro aspecto lhe chamou bastante atenção: a utilização de boas obras de arte, uma de suas paixões, como a Grande Tela de Paulo Climashauska na espera. Era muito acolhedor! Mesmo assim, com tantos artifícios para
entreter e fazer com que os pacientes se sentissem bem, ela estava nervosa. Não conseguia relaxar. A inquietude de suas pernas, que teimavam em bater um joelho no outro, revelava seu estado de ansiedade. Tentava prestar atenção nas poucas conversas dos poucos pacientes que também aguardavam. Olhou para o relógio. Faltava pouco para ser chamada. A recepcionista, por telefone, não deixou de mencionar que trabalhava com hora marcada e que a tolerância de atrasos era de dez minutos. Gostava disso. Olhou para o relógio novamente. Não conseguia se concentrar. Às vezes lançava um meio sorriso, o que chamamos de “sorriso amarelo”, porém se perguntassem qual assunto estava sendo tratado ali naquela sala, não saberia informar, em outros momentos apenas balançava a cabeça. Em suas mãos um jornal dobrado. Ela olhou firme para as folhas. Duvidava que alguém ali, além dela, poderia ter sua história em um pedaço de papel, reportado a todo o estado! Ali estava um pouco de sua vida. Era difícil de acreditar que aquilo tivesse acontecido com ela. Se alguém lhe contasse algo parecido diria ser impossível, que estas coisas só aconteciam em novelas. Para tentar mais uma vez se descontrair, pegou uma das revistas que estavam em uma poltrona do seu lado. Começou a folheá-la, mas nada conseguia prender sua atenção. Estava passando as páginas quase que mecanicamente quando parou para observar os rostos dos modelos. Eram deuses da beleza, corpos esculturais, faces, sorrisos, cabelos, tudo perfeito... Só mesmo em revistas. Um sorriso começou a ameaçar aparecer quando se imaginou diante de um homem bonito como aqueles... Não saberia como reagir, era como se eles fossem inatingíveis! Não conseguia pensar que homens e mulheres tão perfeitos esteticamente poderiam ter vidas comuns. Realmente as pessoas os viam como “deuses” que tinham uma vida tão perfeita quanto a aparência. Era difícil imaginar que eles também sofressem e possuíssem problemas tão comuns do dia-a-dia. Nesta hora,
perdida em seus pensamentos, a porta do consultório se abriu e ela ouviu seu nome ser chamado pela secretária, que lhe sorria, esperando em pé do lado de fora da sala. “Quando foi que ela entrou?”– respirou fundo e por um instante sentiu vontade de desistir daquela consulta. Como seria aquele médico? Educado? Mal humorado? Gordo? Magro? Idoso...? Será que gostaria dele ou... Seria daqueles que prescreviam remédios sem nem mesmo olhar para a paciente? Médico era uma questão de sorte. Este havia sido indicado e a expectativa era boa, mesmo assim estava insegura, até conhecê-lo. “Será que os médicos sabem o quanto nos sentimos inseguras, receosas com uma primeira consulta? É literalmente colocar nossas vidas em suas mãos...” – sorriu de si mesma – “Claro que sabem!” – só sabia que foi com grande relutância que aceitou procurar ajuda médica e agora não havia como recuar. Iria entrar, conhecê-lo e avaliar. Se não gostasse não voltaria mais. Levantou-se, estava um pouco assustada, deixou a revista na cadeira e entrou no consultório. Não percebeu os olhares para ela enquanto caminhava. Era dona de uma beleza e elegância que não havia como passar despercebida a não ser por si mesma. Passou pela secretária, elegantíssima com seu uniforme azul marinho com vermelho e entrou no consultório, ouvindo-a fechar a porta atrás de si. Logo começou o reconhecimento do ambiente e seus olhos o avistaram. O homem sentado atrás da mesa não parecia um médico. “Ele não é jovem demais para esta profissão?” — Bom dia! – disse o médico, olhando para sua ficha — Primeira consulta, Eduarda? – Com as mãos ele indicou uma cadeira em frente a sua mesa — Pode se sentar. Eduarda balançou a cabeça respondendo à pergunta e se sentou. Apesar de o assento ser confortável, não estava à vontade. Por que estava ali? Para que tudo isso? Desejou ir embora urgentemente. “Oh! Por que insisti nisto? Sinto-me uma idiota.”
— Em que posso ajudá-la? – ele a olhou, pela primeira vez, diretamente nos olhos, apoiou as mãos na mesa e esperou pela resposta. Eduarda sentiu o brilho daquele olhar como se ele pudesse tocá-la. Não conseguia descrever com muita clareza, mas seu coração começou a bater mais forte, mais acelerado. Sentiu-se presa naquela imensidão azul que a fitava atentamente e sentiu seu mundo parar... Era tão inesperado e misteriosamente intenso. Havia esquecido seu nome, de quem era e o que fazia ali. Naquele momento era só uma garota que olhava para um homem bonito em sua frente. “De onde saiu este médico? Será que foi de alguma revista de moda? Meu Deus! Como é jovem e bonito! Será que é mesmo um bom médico? Quantos anos ele deve ter?” — Hum... Em que posso ajudá-la? – insistiu. Como psiquiatra estava acostumado a todo tipo de paciente. A voz aveludada do médico a sua frente a fez voltar para a realidade. — Na verdade não sei se pode – estava nervosa — Venho através de um encaminhamento do neurologista. Sofri um acidente de carro há um ano – ela pôde ver a expressão de surpresa no rosto dele. Eduarda abriu a pasta e retirou várias páginas recortadas, de vários dias, dos jornais que fizeram a cobertura do acidente e entregou-lhe tudo. Suas mãos estavam trêmulas e não passou despercebido pelo médico, que as pegou com cautela, deduzindo que deveria olhar os papéis que a paciente espalhara na sua mesa. Começou a ler e logo se interessou pela história e enquanto ele estava concentrado na leitura, ela aproveitou para observá-lo melhor. Após um tempo, o médico encostou-se à sua cadeira, dando um suspiro. — Vamos ver se consegui entender direito toda esta história. Você e mais três pessoas sofreram um acidente de carro e você teve traumatismo craniano. Ficou grave no CTI e?
— Pois é... depois que eu saí do hospital os jornais não contaram mais. Deram muita ênfase na época por causa da situação... Não é todo dia que uma noiva a caminho da igreja é atingida por uma carreta desgovernada! – havia sarcasmo em sua voz — Eu estava sem cinto no banco de trás como qualquer noiva. As outras duas pessoas se feriram... – Eduarda sentiu a voz fraquejar e seus olhos marejarem — Na verdade, o motorista faleceu na hora. Ele era noivo da minha madrinha, irmã do meu noivo. Augusto arqueou as sobrancelhas e Eduarda continuou. — Fui arremessada para fora do carro, já que era a única sem cinto! Tive várias fraturas, quebrei costelas, fraturei o fêmur, braço, antebraço... Enfim, foi muito sério! — Bem trágico este acidente! Lembro-me de ter visto algumas reportagens e de ouvir histórias na época... Já faz um tempo! Sei que foi bastante noticiado... — Sim. Fiquei 90 dias internada, dos quais 45 no CTI. Apenas três meses depois que saí do hospital e após fisioterapias, eu estava recuperada de todas as fraturas. Foram nove meses gastos para minha recuperação física. — E por que precisa de um psiquiatra? Por que foi encaminhada para mim? O acidente ainda perturba você? Na verdade, quem a encaminhou? Ela entregou-lhe o encaminhamento e esperou que ele lesse. — Devido ao trauma na cabeça eu tive perda de memória. E o Dr. Pedro Danésio pediu que eu o procurasse. Nesse instante houve um brilho diferente nos olhos do médico a sua frente. Doutor Pedro era seu amigo, haviam estudado juntos até a residência onde Pedro optou pela neurologia, e ele tinha o hábito de lhe encaminhar seus pacientes que precisavam de psiquiatras. — Perda de memória? Novamente Eduarda ficou pensativa. Para que remexer em algo que estava quieto? Deveria haver uma explicação para tudo.
Era isso que as pessoas sempre diziam. Então deveria existir um motivo para sua perda de memória. Qual seria a razão da busca por elas? Tudo acontecia na hora certa e nada nesta vida era por acaso, assim não seria em vão esta necessidade de procurar o que havia perdido? Se ela perdeu, poderia recuperar. Eram suas lembranças e tinha direito a elas. — Sim... É complicado falar. Eu me esqueci de um determinado assunto em minha vida. Qualquer coisa relacionada, eu não me lembro. Isso equivale há seis anos. No começo achei que estas lembranças não me fariam falta, mas depois comecei a perceber que eu estava fugindo e decidi tentar reaver estas memórias, só não sei se é possível. Já faz um ano e eu já tentei várias coisas – seu olhar ficou perdido no tempo por alguns segundos e aquela insegurança voltou por frações de tempo. — Que lembranças são essas? Ou melhor, do que não se lembra? Após um breve suspiro respondeu: — Do meu noivo, que estava me esperando no altar da igreja quando aconteceu o acidente. O médico respirou fundo, então deixou seu corpo cair no encosto da cadeira e suas sobrancelhas se arquearam quase se unindo. Estava bastante surpreso! — Como assim? Vocês não se casaram depois? Está me dizendo que mesmo depois de um ano não se lembra de nada? Doutor Augusto ficou ainda mais intrigado com aquela história. Nunca teve um caso como esse em seu consultório. Ajeitou o corpo na cadeira. E agora? Conseguiria ajudar aquela moça? Naquele instante seu olhar se encontrou novamente com o dela e ele sentiu um arrepio percorrer pelas costas. Como era bonita. Na verdade, linda demais! Olhos castanhos claros, cabelos longos da mesma cor com cachos do ombro para baixo e um rosto perfeitamente simétrico. Era uma beleza que chamava atenção de qualquer um. Estava acostumado a
ver mulheres bonitas e até saía com algumas, mas havia algo naquela garota que lhe chamava especial atenção. Uma mistura de inocência com sedução... De repente, pegou-se olhando para os lábios dela e percebeu que poderia estar saindo da linha, então voltou a concentrar-se no caso. — Fale mais sobre o assunto. — É complicado, vou te relatar o que os outros me contaram. Tudo que vou contar sobre o meu noivo, é o que me contaram, eu definitivamente não me lembro de nada. Ainda no hospital, minha amiga foi me visitar e... – os pensamentos de Eduarda foram para longe naquele momento. Eduarda tinha acordado e já estava no quarto. Sua amiga Alice estava lá, havia ido visitá-la quando a viu acordar, por isso se aproximou e segurou sua mão. — Olá querida! Até que enfim a bela adormecida acordou. Pena que não foi com o beijo do príncipe encantado, que por sinal acabou de sair! Eduarda estava muito confusa. O que estava fazendo ali? Estava em um hospital? — Quem estava aqui? Quem saiu? Alice sorriu da amiga e desconsiderou aquela pergunta. Ela ainda devia estar confusa, afinal havia acabado de acordar de um coma. — Oh Eduarda! Que alegria te ver acordada! – Alice estava emocionada. — Alice, o que houve? Por que estou aqui? O que aconteceu? Estou mesmo em um hospital? – Eduarda tentou sentar, sentiu uma dor muito forte e notou que perdera em parte a sensação na perna esquerda. Alice observou tudo em silêncio e agora era ela quem estava confusa. — Você não se lembra? Você sofreu um acidente, amiga. — Acidente de quê? — Eduarda, você não se lembra? Estávamos a caminho da igreja quando fomos atingidos por uma carreta. “O que íamos fazer em uma igreja? Estou confusa, não consigo
me lembrar. Por que não consigo me sentar? Estou com muita dor. Minha perna esquerda está... dura... Não consigo movê-la, parece que está... Engessada. Ela está engessada?” — Amiga, estávamos indo ao casamento... — Casamento? Quem se casou? Alice olhou para a amiga preocupada. Não respondeu de imediato àquela pergunta. Percebeu a confusão dela. — Você sabia que Bruno não arreda o pé deste hospital? Não foi para casa nenhum dia desde o acidente. — Quem é esse, Alice? Pode chamar um médico para mim? Estou com muita dor. — Quem é esse?! – indagou a amiga sem entender a pergunta de Eduarda. — Bruno... Quem é ele e por que não arreda o pé daqui? Alice ficou boquiaberta. Estava achando que era brincadeira. — Amiga, tudo bem que você bateu a cabeça, ficou esse tempão todo em coma, mas estamos falando do Bruno... — Alice, pare de brincadeira. Diga logo, quem é ele? — É! Está muito confusa. Vou fazer o seguinte, vou lá chamá-lo e aí você vai saber quem é e vai parar de fazer hora comigo. Eduarda segurou os braços de Alice com força. — Não! Não quero conhecer ninguém neste estado. Deixe-me recuperar primeiro. Você com esta mania de querer que eu conheça alguém... Olhe para mim, estou toda cheia de hematomas, cabeça enfaixada, inchada, horrorosa, e estou meio tonta, acho que são os remédios... Nem sei por que estou aqui, só sei que estou com muita dor. Acha mesmo que desejo conhecer alguém assim? Dá-me um tempo, por favor – estava brava. — Eduarda, pare de gracinha... Estou falando de seu noivo. Vou chamá-lo – Alice se virou em direção a porta quando escutou: — Que você queira que eu arrume um namorado tudo bem, mas noivo já é demais. Daqui a pouco entra um juiz e me casa, aqui mesmo, com alguém que eu nem sei quem é. Chame um médico, por favor! – disse brava.
— Eduarda, você estava indo se casar com Bruno quando sofremos o acidente! Tem certeza que não se lembra? O olhar assustado de Eduarda não deixou dúvida para a amiga que não se lembrava. Alice parou neste instante. De costas balançou a cabeça e saiu do quarto para procurar por Bruno. A voz do médico despertou-lhe de seus pensamentos. — E você não reconheceu seu noivo quando o viu? — Este é outro problema que me deixa desconexa... – sentiu um pouco de vergonha do médico ao lhe contar detalhes tão íntimos. Mas estava ali para isso. Criou coragem e continuou — Até hoje eu não o vi. — Não entendi. — É isso mesmo... Desde aquele dia, eu nunca vi esse Bruno. Ele sumiu. — Seu noivo sumiu? E até hoje, um ano depois você ainda não o viu? Mas...? — É isso. Todos dizem que ele estava no hospital todos os dias. Mandou-me flores com um cartão dizendo da felicidade dele de eu estar viva, mas não entrou no quarto para me ver. Não depois que eu saí do coma. Contaram-me que enquanto eu estava em coma, ele me visitava todos os dias. Se eu não tivesse fotos dele comigo, acharia que tudo era loucura, invenção das pessoas. — Você soube dos motivos dele? O que aconteceu com ele? Para onde foi? — Não. No dia que eu tive alta, ele me mandou um arranjo de tulipas com esta carta – ela a entregou para o médico, que segurou o envelope e perguntou: — Posso ler? — Claro. Ele abriu e retirou o cartão lá de dentro. Estava mais do que intrigado com o caso, estava curioso.
15 de agosto de 1999. Meu amor, Despeço-me de você hoje com muita dor e sofrimento. Se algum dia se lembrar de mim, saberá a imensidão do meu amor por você. Mas você precisa saber que estou indo embora para nosso bem, muito mais para o seu. Prefiro que não se lembre de mim e prefiro estar longe a tê-la perto sem saber quem sou. Seria capaz de conquistá-la novamente se as circunstâncias me permitissem. Siga sua vida, não olhe para trás. Não procure por mim, nem por lembranças que sua mente tratou de apagar. O que eu mais desejo (por razão, porque por emoção quase morro só de pensar) é que encontre outra pessoa que te ame, um amor próximo do meu. Morro de ciúmes só de imaginar, por isso vou embora, não sou capaz de vê-la com outro. E é fato: não sou capaz de ficar próximo a você sem te procurar. E acredite, é melhor que eu vá. Talvez um dia entenda o motivo de minha renúncia, ou não. Você pode achar covardia, mas não sabe a coragem que preciso ter para deixá-la. Nunca! Nunca duvide do que tivemos e do meu amor por você. O destino encontrou uma forma torpe, mas eficiente de nos separarmos a tempo. Minha pequena, já cuidei de tudo, todos os detalhes jurídicos, fique tranquila. Adeus, Te amo hoje e sempre. Fique bem, minha menina. Do seu, sempre seu, Bruno Doutor Augusto ficou alguns segundos segurando o envelope nas mãos, suspirou fundo e lhe entregou a carta. — Este nome não me parece estranho. — Talvez o conheça. Ele também é médico. Neurocirurgião.
— Talvez já tenha cruzado com ele. Na verdade conheci um Bruno... Você não se lembra mesmo de nada relacionado a ele? — Nada. — Tem fotografias juntos? — Muitas. Eu duvidei que ele realmente existisse e as fotografias foram as provas de sua existência... – fez uma pausa — Em minha vida. Esta carta foi o mais próximo que estive dele depois que saí do coma. Eduarda havia recebido alta. Alice foi com ela para casa e sua mãe chegaria depois. Este era um ponto positivo de tudo: sua mãe. Desde que decidiu estudar e morar sozinha, havia se afastado do convívio com a família, por decisão de seu pai, que era muito moralista e preconceituoso. Este era outro assunto em sua vida que precisava ser resolvido, mas não agora, em outra circunstância. Uma coisa de cada vez e, no momento, precisa sarar as lesões do acidente, recuperar sua saúde e sua memória. Sentia muitas dificuldades para andar. Precisaria de fisioterapias para recuperar os movimentos e ajudar a melhorar a dor, mas a alegria de ir para casa a fazia radiante. Quando abriu a porta de seu apartamento sentiu um alívio tão grande! — Lar, doce lar. Nada melhor do que a casa da gente! Quando se sentou no sofá ficou imóvel. Três porta-retratos lhe chamaram atenção. Pegou-os e ficou olhando. Um era ela com um rapaz na formatura, o outro era um composto de vários momentos: na praia, no parque, em casa... O outro parecia algo como um noivado. O detalhe é que era o próprio noivado! Todas as fotos o mesmo rapaz com ela. Olhou para Alice que estava de pé, olhando para ela firmemente. — Alice, o que significam todas estas fotos. Foi você quem colocou aqui? — Claro que não! São suas fotos! E este é Bruno, seu noivo! Já lhe disse. Não era possível. Como não se lembrava do seu noivo? — Eduarda, nós não lhe contamos, mas acho que está na hora de saber os detalhes de seu acidente.
— Como assim? Existem mais detalhes que não sei? — Sim. Venha. Vou ajudá-la a ir para seu quarto. Depois que ela já estava confortavelmente acomodada em sua cama, Alice pegou uma enorme caixa que estava dentro do closet e colocou na cama. — São minhas fotografias! — Se lembra da caixa? — Sim, claro! Minha mãe me deu! – falou, abrindo-a depressa, mas de repente parou. Mais de 500 fotos espalhadas na caixa. — O que significa isto? — São suas fotos. Você e meu irmão estão juntos, digamos desde a faculdade, faça as contas. — E onde está o seu irmão? – falou zangada. A amiga suspirou. — Não sabemos o que houve com ele. Sumiu! Mas daqui a pouco, eu sei, ele vai vir te visitar. Ele perdeu 12 quilos sabia? Nestes dias que você ficou internada ele não comia, nem dormia. Quase entrou em desespero! — Que detalhes você queria me mostrar? – Eduarda se irritava toda vez que a amiga ficava defendendo o tal Bruno. — Amiga, estive com você no dia do acidente desde manhã. E fui tirando fotografias para você. Eu mandei revelar e vou lhe entregar agora – ela pegou dentro da bolsa um pacote verde e branco e entregou-lhe. — O que é que tem aqui dentro? São do acidente? — Não! Eu não fotografei o acidente, só os momentos anteriores. Eduarda abriu o envelope e quase entrou em choque. Era ela, vestida de... Noiva? Passou as outras fotos e ficou ainda mais perplexa. — Você estava a caminho da Igreja quando sofremos o acidente. Eu era sua madrinha e estava no banco da frente! Só então Eduarda se deu conta disto e perguntou: — Você se machucou? Alice respirou fundo — Um pouco! Fiquei um dia de observação e tive alta. — E o motorista? Ah, meu Deus! Não me diga que era... — Cláudio – Alice a interrompeu.
— E o que houve com ele? – pelas lágrimas da amiga já suspeitava. — Ele faleceu na hora! Eduarda sentiu sua visão comprometida pelo excesso de lágrimas. — Sinto muito – foi o que conseguiu dizer. Alice se levantou e foi até a cozinha beber água. Eduarda pegou as fotos, olhava para cada uma atenta aos detalhes, tentava se lembrar de algo, mas não conseguia. Então sentiu lágrimas escorrerem pela face. — Eduarda, não chore! – disse Alice ao retornar. — Eu ia me casar! Olhe estas fotos, alegria, vibração... É o momento muito esperado para quem deseja casar, um dia de muita alegria. Você me entrega fotografias da minha vida, do que seria meu casamento e não me lembro de nada! Sinto uma angústia que não sei explicar! Não sei nem porque estou chorando! E cadê meu noivo para me ajudar? Eu me lembro de você e do Cláudio, mas não me lembro de nada deste dia, de nada do Bruno. É como se ele nunca tivesse existido! — Sinto muito! Achei que ajudaria a se lembrar! — Eu gostaria de ficar um pouco sozinha. — Tudo bem. Vou ficar na sala e quando a sua mãe chegar eu saio. Volto depois. — Desculpe Alice, você está me ajudando, mas preciso ficar só. — Eu entendo. Também preciso! Não é só você que perdeu amiga, no entanto, o que eu perdi jamais poderei recuperar! Cláudio se foi e... — Oh Alice! Perdoe-me. Estou tão absorvida por esta confusão que nem parei para pensar em sua dor. Alice saiu e fechou a porta. Eduarda chorou. Entre lágrimas ficou ainda um tempo olhando as fotografias em sua cama até que se cansou. O homem da foto, Bruno, era muito bonito, e não tinha como negar que eles pareciam apaixonados. Havia fotos de tantos momentos, datadas de muito tempo e outras recentes. Encontrou fotografias onde eles estavam juntos com Alice e Cláudio e então chorou profundamente. Onde estava este noivo? O que aconteceu? Nada fazia sentido. “Chega! Não adianta ficar olhando.” – guardou as fotografias na caixa e a fechou novamente.
Levantou-se com extrema dificuldade, ainda estava com a perna engessada e sentia dor, mas conseguiu ir até o armário. Desejou olhar para suas coisas, como se estivesse em busca de respostas. Surpresa: roupas masculinas arrumadas em uma parte do armário. Camisas, jaquetas, calças, meias, cintos... Tudo. Aproximou-se e viu uma camiseta jogada na poltrona do closet e a pegou. Seria dele, de Bruno? Passou a camiseta no rosto e um perfume lhe invadiu o olfato. Gostava daquele perfume. Ficou tão anestesiada com aquelas roupas que voltou para a cama segurando a camiseta e sentou-se novamente. Quase sete anos de sua vida com uma pessoa e não se lembrava de nada! Fotografias, roupas, outras pessoas lhe falando de sua vida... Mas nada fazia o mínimo sentido. O perfume apossou-se de seus sentidos novamente. — Que perfume gostoso – sussurrou. Sabia que era familiar, podia sentir. Encostou-se a sua cama e abraçou a camiseta. Sentiu uma saudade do que não sabia, uma necessidade de encontrar com esse Bruno. Reabriu a caixa, pegou novamente várias fotos e ficou olhando, reparando nos detalhes dele. É possível sentir saudade do que não se lembra? Mas foi tão intenso que mergulhou nas lágrimas e acabou adormecendo entre fotos e abraçada à velha camiseta. — E nada a fez se lembrar? Nada!? Nem uma parte? — Nada. Não me recordo de nada! Olho e não me lembro. — Houve outra parte da memória afetada? — Não. Lembro-me de tudo: minha infância, adolescência, juventude, faculdade... Tudo menos dele. — Parece um quadro de amnésia seletiva. Alguém já te explicou isso? — Um pouco. — Então, amnésia seletiva é a incapacidade de se lembrar de todos os acontecimentos que ocorreram num determinado período, podendo ser apenas parcial, classificada como amnésia lacunar seletiva, e é caracterizada pelo esquecimento de alguns detalhes do fato ocorrido. Em
geral, as memórias que foram esquecidas tendem a voltar gradualmente, à medida que o indivíduo diminui o seu nível de stress e consegue lidar melhor com a situação. A perda de memória é sempre algo delicado. Para algumas pessoas nunca voltam, para outras voltam de repente e outras o tratamento ajuda. Quero que saiba que pode não dar certo. E seu caso é totalmente diferente, nunca vi pessoalmente nada parecido, já na literatura médica existem estudos. — Eu sei. Dr. Pedro já me explicou. Por isso ele me encaminhou para a terapia. Ele acha que falando, tentando juntar o quebra-cabeça associado com a medicação pode dar certo. — Está tomando algum remédio? — Sim, estes – entregou-lhe a receita prescrita pelo neurologista. Ele olhou atentamente e falou: — Não vou prescrever nada por enquanto. Mantenha estas medicações. Dr. Pedro é meu amigo, vou conversar com ele e na próxima consulta a gente vê se altera ou não estes medicamentos, mas por enquanto continue com eles. — Tudo bem – nesse instante Eduarda sentiu-se atraída novamente pelo olhar do Dr. Augusto. Como ele era bonito! Achou melhor pensar em outra coisa — Ah! Trouxe estes exames que fiz também. Não sei se lhe é útil. Ele pegou tomografias do crânio, ressonâncias e olhou atentamente com muito cuidado. Desde o acidente até os que ela havia feito recentemente. Depois de minutos ele falou: — Olha Eduarda, olhando para estes exames vejo que você teve lesões cerebrais graves! Não acompanhei seu caso e falo, sem dúvidas, pelo que vejo aqui, que você é um daqueles milagres e que amnésia como sequela foi leve! Não estou dizendo que não é delicado, mas poderia estar ainda em coma, ou com sequelas motoras... Enfim, você se recuperou bem, um milagre! Tudo indica que você teve uma amnésia lacunar retrógada. Transtorno dissociativo de memória, neste caso a falha na memória abrange especificamente determinado espaço de tempo, de limites
relativamente precisos, durante o qual houve um prejuízo na capacidade de fixação, ou um trauma, depressão. Eduarda o escutava com atenção. — Todos os eventos anteriores e posteriores a esse período são normalmente fixados e evocados. Ocorre posteriormente a um estado de coma, um ataque de pânico ou um evento psicológico traumático. Geralmente são traumas que o paciente não enfrentou direito, como se o sofrimento fosse adiado. Parece que você se enquadra neste perfil, trauma emocional muito intenso. O que me intriga é que neste tempo de seis anos, você se lembra de tudo, menos do seu noivo... Ou melhor, de Bruno. Era para ter esquecido tudo destes sete anos, então posso lhe dizer que nunca tive conhecimento de um caso parecido com o seu. Só poderei emitir um diagnóstico preciso depois de algumas sessões de terapia e estudar melhor seu caso, ok? E não sei se surtirá efeito. — E como é essa terapia? Eu... Digo, como será o tempo em que estiver comigo? – sentiu-se ridícula fazendo aquela pergunta. — Vou te contar um pouco de minha trajetória, percebo que está insegura. Formei-me em psicologia muito cedo. Tinha apenas 21 anos. Porém queria mais, porque eu entendi que o psicólogo não pauta sua atuação por diagnósticos, primeiro por não ser médico no sentido lato do termo e, segundo porque a ele interessa mais saber as causas subjacentes que estão motivando o adoecimento mental daquela pessoa. Eu desejei mais, queria ir além, e encarei mais nove anos de faculdade de medicina e me formei em psiquiatria, que tem como foco, primeiro, a identificação da desordem mental que está acometendo o paciente e, em seguida, o tratamento medicamentoso de tal desordem. Atuei um tempo como psicólogo, agora nem tanto. Ela o olhava ainda tensa. — Acredito que o Doutor Pedro, te mandou aqui para que pudesse tratar através de conversas em um clima de acolhimento, respeito e intimidade emocional com o paciente, no caso você,
com o objetivo não da redução do sintoma, mas o entendimento das causas psicológicas que levaram ao adoecimento mental. Buscar uma melhora global da sua qualidade de vida, melhor conhecimento de si mesma, melhora nas relações interpessoais, maior satisfação na vida, no trabalho e nas relações amorosas, que devem estar adoecidas pela sua amnésia e a confusão que você se encontra. O tratamento possui uma duração prolongada e ao mesmo tempo, nestes encontros, farei ajustes da medicação e acompanhamento do quadro. Acompanhar seu quadro clínico, como médico, de perto. Você terá aqui tratamento psicológico e psiquiátrico. A mente humana é ainda um grande desafio para a medicina. Com você, vou seguir a linha de terapia cognitivocomportamental. São conversas como essa, onde você fala e eu também. E como médico, poderei entender se é necessária a medicação e prescrevê-la. Porém vejo insegurança de sua parte, e só dará certo, se você quiser o tratamento assim. — Entendi, não sei se conseguiria apenas falar e você não dizer nada, ficar apenas anotando e depois eu vou embora... Estranho. Desculpe-me nunca disse tanta bobeira. — Nada do que diz é bobeira. Nunca pense assim – Augusto sorriu. “Que sorriso lindo e sedutor!” — E então Eduarda, você vai iniciar o tratamento? – ele a olhou diretamente nos olhos. “Por que ele faz isso? Será que sabe o quão sedutor é?” – respirou fundo. Lembrou-se de que precisava respirar — Sim, não tenho nada a perder mesmo. Ele sorriu. — Os horários você marca com a secretária na recepção – entregou-lhe seus papéis e ela os guardou na pasta, junto dos exames. Estava nervosa porque sabia que era observada por ele. — Obrigada doutor. — Até mais, Eduarda – ele se levantou, dirigiu-se para a porta e ela se sentiu arrancada de seus devaneios. Então era isso,
havia acabado a sessão daquele dia. Ergueu-se, acompanhando-o. Era estranho, não queria ir embora! Ao se aproximar dele não teve como não reparar. Ele tinha uma altura acima da média, uma masculinidade cuidadosamente temperada com feições suaves e queixo largo, com maxilar proeminente. Sua voz era grave e cada vez que falava causavalhe sensações agradáveis. Possuía olhos claros, um tom de azul fascinante e cabelos negros em um corte perfeito! Mesmo por baixo do jaleco pôde perceber que tinha um tórax e abdômen bem desenvolvidos. Claro que era apenas uma percepção... Cintura Proporcional aos quadris. Ombros Largos... Ele estendeu a mão para cumprimentá-la e ela fez o mesmo. Quando o psiquiatra apertou-lhe a mão, sentiu um misto de sensações que desejou correr dali antes que o médico pudesse perceber o que se passava. Não teve como evitar sentirse constrangida, pois tinha a impressão que o Doutor Augusto havia lido seus pensamentos, então saiu da sala depressa, não querendo que ele visse suas bochechas corarem de vergonha. — Até semana que vem, Eduarda. “Que voz incrível... Irritantemente incrível.” – novamente ele a despertou de suas recentes loucuras imaginárias. — Até – foi o que conseguiu dizer. Dirigiu-se à recepção, marcou seus horários e saiu sem olhar para trás. Meu Deus! Não era mais uma garotinha para ficar flertando com seu médico. Já sabia como ele era e iria se preparar para a próxima consulta. Não se comportaria como uma adolescente.
II
E
duarda estava confusa após a consulta. Sentiu-se desanimada e perturbada com toda a situação: relatar sua história para estranhos, mesmo sendo ele um médico, não deixava de ser um estranho e isto a deixava nervosa... Não se sentia à vontade. Mais esquisito ainda era relatar algo que não se lembrava, e o pior, comportar-se feito uma adolescente boba diante dele. Será que ele havia percebido? Foi demais para ela. Resolveu ir direto para casa. Não tinha nenhum lugar que desejasse ir. Estava de folga naquele dia. O que iria fazer? O melhor seria desfrutar de seu sofá e filmes para entreter a mente. Chegou em casa, tomou um banho demorado, vestiu uma camiseta confortável e tentou assistir algo na TV, mas quando percebeu, já estava há um tempão sentada em seu sofá com pensamentos no médico. “Meu Deus, o que está acontecendo comigo? Mas como negar a beleza daquele doutor? Será que é casado? Se não for, com certeza há uma namorada, noiva... Médico e bonito... Não poderia estar sozinho.” – precisava se concentrar e pensar em algo diferente, então pegou uma caixa que estava na mesinha de centro e olhou uma foto, depois outra... Ela e o Bruno. Viagens, passeios, dia-a-dia, noivado... Olhou para a aliança em cima do móvel ao lado do sofá. Pegou-a e leu os dizeres internos: “Com amor, Bruno Alcântara”. Colocou-a no dedo. Nada, nem uma emoção... Ficou olhando as fotos por horas. Bruno era um homem muito bonito. Se não soubesse que era médico, vendo as fotos acharia que fosse modelo. Corpo cuidadosamente trabalhado,
cabelos impecavelmente bonitos, negros. Qualquer corte lhe cairia bem. Não era moreno, mas não era branco, cor do verão. Olhos claros, não eram verdes e nem azuis. Não conseguia definir bem a cor, mas eram inebriantes. Definição de homem bonito: Bruno! Uma beleza de tirar o fôlego de qualquer uma. Como podia não sentir nada olhando aquelas recordações? O que aconteceu? Se iriam se casar, por que ele foi embora? Para onde foi? Se não tivesse acontecido aquele acidente, teriam se casado? Ou ele teria fugido antes? Eduarda se sentiu terrivelmente sozinha. Não tinha com quem conversar e sentiu dó de sua própria solidão. Pensou em ligar para a amiga Alice, mas logo desistiu, ela iria ficar falando do irmão... A angústia apertou-lhe o coração e para tentar fugir destes sentimentos depressivos trocou de roupa, pegou as chaves e saiu. Foi andar na praça, fazer uma caminhada e ver pessoas. Sentiu saudades de sua mãe, irmã... Até mesmo de seu pai. Precisava resolver a situação com eles, no entanto, não tinha coragem para procurá-los. Medo? Sentia-se intimidada? Receio? Tudo ao mesmo tempo? Sentiu por instantes, de novo, dó de si mesma. Chegou à praça que ficava perto de sua casa e começou a caminhar em ritmo mais forte até cansar, alongou-se e sentou no gramado para ver o movimento. Viu as mães com seus bebês, casais de namorados, idosos se exercitando... É a vida que segue. E a sua estava seguindo de forma entediante. Será que seria mãe um dia? Desejava sim, queria viver a graça da maternidade, só não sabia se seria possível, já que sua vida estava tão turbulenta. Sentia que iria demorar a encontrar um pai, afinal de contas para ser mãe precisa de um pai, não é mesmo? Observava todos na praça quando, de repente, um homem lhe chamou atenção. Estava correndo e se destacava dos demais. Seu porte era atlético, mas nada de exagero como os fisiculturistas, era elegante, do tipo que não passava despercebido por ser dono de uma beleza inegável. Via as outras mulheres na praça olhando
para ele e sorriu da cena. Sim, mesmo longe podia ver a beleza. Observou-o por um tempo até que percebeu que ele corria pela pista e dava a volta em sua direção. Céus! Não podia ser! Doutor Augusto? Sem jalecos, sem consultório, e sem camisa... Oh! Só podia ser brincadeira. Nunca havia visto aquele homem antes e de repente tornou-se comum? Quando pensou em se levantar para ir embora, ele a viu e acenou. Foi quando ela se deu conta de que estava olhando firmemente para ele e estavam próximos. Decidiu esperar um pouco e depois ir embora. Ficaria óbvio que se fosse naquele momento, seria por causa dele. Por que estaria fugindo? Esperaria ele dar a volta, passar por ela e quando estivesse de costas, iria embora. Simples assim. No entanto, não aconteceu assim. Ele não deu a volta, aproximou-se dela. — Oi Eduarda. Que coincidência. Segunda vez que nos vimos hoje! — Pois é... – ela sorriu sem graça. — Mora aqui perto? – perguntou ele. — Sim. De carro, não mais que oito minutos daqui. — Outra coincidência! Corro sempre aqui, é mais prático. Você faz o mesmo? — Sim, também corro aqui. — Engraçado nunca ter te visto antes. — Talvez se eu não tivesse ido a seu consultório hoje, você não iria me notar aqui. — Não acredito nisso. Acho difícil não notar uma... Uma bola bateu nos pés dele antes que terminasse a frase. Um garoto veio buscá-la e se desculpou, saindo correndo, já jogando a bola pelo chão. — Não veio correr hoje? — Sim, já corri. Corri até me exaurir e sentei para descansar e olhar o movimento. Doutor Augusto percebeu que ela estava usando uma aliança. — De manhã no consultório você não era casada – falou com um sorriso sarcástico nos lábios.
Foi então que ela se deu conta que se esquecera de tirar a aliança do dedo. — Pois é. Eu tento, mas não consigo me lembrar. Olho para esta aliança e não sinto nada. — Precisa ter calma. Ficou um ano sem estas memórias. Ela pode voltar a qualquer momento ou... — Nunca mais voltar. — É uma possibilidade. Você precisa aceitá-la. Ele se sentou ao seu lado e ficaram alguns instantes em silêncio. — Não sei explicar, sinto um vazio, uma falta de algo que eu não sei o quê... É muito ruim este sentimento. — Seus amigos... — Meu ciclo de amizade está relacionado ao ciclo de amizade do Bruno. Eles falam dele, de nós, ficam tentando estimular minha memória, por fim... Afastei-me um pouco. Estava ficando sufocada. — Entendo. Vida social... Também não tem? — Às vezes vou a uma festa aqui... Outra lá... Mas não tenho achado muita graça em sair. Oh, desculpe! Estou te alugando com este assunto chato... Minha próxima sessão será terça que vem... Desculpe. — Ei! Fui eu quem se aproximou lembra? As pessoas acham que os médicos são diferentes. Eu tenho uma vida normal aqui fora. Minha profissão é medicina, mas não sou inacessível como às pessoas acham. Eu paro, converso, faço amizades... Namoro... Vida normal sabe. “Namoro...” – como pensou. Ele devia ter alguém. — É verdade. Às vezes achamos que os médicos estão um patamar acima, sabe. Como se fossem diferentes... Meio deuses. E nesta visão a gente pensa que eles não se interessam pelos simples mortais – havia a sombra de um sorriso em seu rosto. — Eu sei disso, mas é ao contrário, nosso maior interesse são os simples mortais, senão a profissão seria inútil e eu não teria como pagar minhas contas – respondeu piscando para ela, fazendo menção a sua comparação.
— Faz sentido! – ela sorriu. — Devia sorrir mais. Combina mais com seu rosto! – olhou-a direto nos olhos. “Oh não! De novo não!” – Eduarda sentia que ele podia ler seus pensamentos. E aquele olhar era perturbador! — Você faz o quê, Eduarda? — Hã... Sou professora. — De quê? – interessou-se ele. — Direito Penal! — Nossa! É advogada! – comentou arqueando as sobrancelhas, surpreso. — Na verdade sou promotora do Ministério Público aqui da cidade e a noite sou professora! Tive sorte sabe, fui convidada a dar aulas, estava ainda no último período e com isso então não tenho escritório, não advogo. — Interessante! Senhora da Lei. Você é aquela pessoa que acusa nos tribunais, certo? — Sim. O promotor público ou promotor de justiça, popularmente chamado somente de promotor, é o principal representante do Ministério Público dentro dos tribunais de Direito e também o responsável pela acusação, ou seja, pela promoção da justiça nos julgamentos. Digamos que seja um defensor dos interesses da sociedade, zelando para que a justiça seja feita e que os crimes contra a ordem social sejam esclarecidos. — Nossa, olhando para você assim tão jovem, com esse ar de inocência ninguém pode imaginar que seu trabalho seja lidar com crimes e acusações. Uau! Ela sorriu! — Digo o mesmo de você, parece jovem demais para ser médico. — Você começou muito cedo? — Sim. Trabalhei durante quatro anos em um escritório de advocacia. Comecei ainda no sétimo período, já no oitavo passei na prova da ordem, OAB e quando formei, trabalhei
mais dois anos neste escritório e dava aulas a noite. Então fiz concurso público para promotoria e passei, então deixei de atuar no escritório. — Muito precoce. Pelo visto muito estudiosa e inteligente. — O direito como qualquer outra área exige uma dedicação. É preciso estudar muito e eu gosto. Gosto de estudar e gosto do direito. — Mais uma qualidade para você. Cada vez se torna mais interessante. — Hã? — Uma carreira admirável – ponderou. Augusto sabia que não devia, mas não resistiu. Sentia algo que o fazia esquecer-se das regras que ele mesmo estabelecera, mas não se segurou — Vamos tomar um sorvete? Ela o olhou surpresa – “E agora o que eu faço? Não posso aceitar. Sinto-me uma idiota ao lado dele!” Mas num impulso ela aceitou e os dois foram em silêncio até a sorveteria. Havia um clima tenso, mas ao mesmo tempo sensual. — Depois do acidente você não se envolveu com ninguém, Eduarda? – ele não acreditou no que perguntou, mas já era tarde demais. — Não. Como eu disse, sinto-me perdida, não sei quem sou. Isolei-me de certa forma e não tive a chance de conhecer muitas pessoas. — Amigos no trabalho? — Oh sim, tenho. E são eles que me ajudam. Conheciam Bruno, mas não tocam no assunto. Quando estou no trabalho esqueço-me de tudo, é muito bom! — Você tem a esperança de encontrá-lo? Ela sentiu raiva naquele instante. Não sabia explicar o motivo. — Não! – depois respirou fundo e continuou — Na verdade eu queria sim. Queria olhar para ele só por um segundo e dizer o quanto foi covarde. Não consigo entender. Se
íamos nos casar, por que ele sumiu? Será que iria me abandonar depois do casamento? Disseram que ele esteve o tempo todo no hospital, todos o viram, os médicos, amigos, pacientes... Menos eu. Para mim foi um fantasma. — Já passou pela sua cabeça que pode ter acontecido algo com ele? — Tipo o quê? Ele deixou um bilhete dizendo que iria embora. Recentemente mandou uma carta para os pais, dizendo que estava bem e que não precisavam se preocupar – os pensamentos dela viajaram até a carta. Ela leu, releu várias vezes, tentando encontrar uma resposta que acabou decorando cada palavra: Porto Alegre, 10 de junho de 2000. Amada mamãe, Sei que não entendeu nada, mas quero que saiba que estou bem. Estou viajando pelo mundo como eu dizia quando era criança, lembra? Não quero que se preocupe comigo. Vou dando notícias. Qualquer dia eu ligo. Quero apenas tranquilizá-la de que tudo está bem comigo. Sinto muitas saudades de vocês e até mesmo da Alice. Talvez eu volte um dia... E quem sabe poderei explicar tudo. Como sabem, não gosto de fazer planos para o futuro. A surpresa é o melhor de tudo! Saibam que tive um motivo muito forte para fazer o que fiz e foi para o bem de todos. Abraços de seu filho, Bruno. — Ele não mencionou você na carta? — Não. Você consegue entender o que eu sinto? Meu dilema? Se fosse você o que faria? Ela o olhou neste momento e viu que ele estava absurdamente a encarando. Sentiu um arrepio percorrer pelo
corpo, seu estômago tremer... – “Estômago treme?” – o dela sim, toda vez que estava perto dele. Sentia emoções que não sabia explicar, só sabia que eram boas. — Se eu fosse você, procuraria um médico. Posso lhe indicar um... Dr. Augusto – ele sorriu para ela. E que sorriso mais encantador! — Desculpe, esqueci-me que não pode emitir opiniões pessoais, nem dizer-me o que fazer. Por instantes esqueci-me que estava com meu médico. Augusto esticou a mão e limpou-lhe o canto dos lábios que estava sujo de sorvete. Ela sentiu novamente as sensações de que havia mil borboletas em seu abdômen. Ele engoliu seco e respondeu: — Eu também. O clima estava tenso e mágico, mas ela achou melhor parar. — Preciso ir. Obrigada pelo sorvete! Quero dormir cedo e ainda tenho um caso para estudar e aulas para planejar. Até semana que vem, Doutor. — Até semana que vem... Eduarda. Ele ficou olhando-a até que ela sumisse de sua visão, depois voltou a correr. Precisava ocupar a mente.
III
A
ugusto era um homem organizado e estudioso. Gostava de planejar as coisas e estar sempre no controle de sua vida. Não agia por impulsos, mas com ela foi diferente. Poderia tê-la visto na praça, acenado e continuado com a corrida, mas não, foi lá puxar conversa. E desde esse dia não conseguia tirá-la da cabeça. Surpreendeu-se ao ver que estava ansioso pela terça-feira. Não podia negar que ela era bonita, no entanto, estava acostumado com mulheres bonitas, elegantes, estudadas... Não era apenas isso. Tinha algo nela que o atraía. Passou as mãos pelo cabelo e resolveu dormir. Era a melhor coisa que tinha para fazer! Rolou na cama de um lado para o outro e não conseguia pegar no sono, então se levantou, foi até sua pasta e pegou anotações sobre o caso da nova paciente, motivo que não o deixava adormecer. Leu novamente a matéria que saiu no jornal local da cidade, havia tirado um xérox, e de repente leu o nome Bruno Alcântara. Como não havia se lembrado antes? Sabia que havia algo nesta história que conhecia! Era isso, conheceu o Bruno! Trabalharam juntos em um período no hospital particular. Não poderia dizer que eram amigos, mas com certeza conversaram bastante e ele mencionou sobre sua namorada várias vezes. Augusto estava perturbado e sentiu raiva, ciúmes. O que estava acontecendo com ele? Bruno era um colega de trabalho bem humorado, brincalhão, sempre de bem com a vida, fazia muito sucesso com as mulheres. Enfermeiras, médicas e pacientes flertavam com ele na esperança de conseguir algo, contudo, sempre se mostrou muito seguro e sério neste assunto. Dizia-se
apaixonado e fiel. Nunca levou a namorada no hospital ou nas festas, no entanto, sempre deixava claro que ela existia. Quando questionado pela ausência de sua namorada, justificava que ela estava estudando e trabalhando. Era um bom médico, comprometido com a profissão... Só havia elogios para falar dele. Sentiu novamente uma raiva crescendo dentro de si e um insuportável ciúme. Como um homem poderia abandonar a noiva depois de um acidente como aquele sendo que iriam se casar? Havia algo estranho nesta história. Na verdade esta história toda era muito estranha. Por que um homem que sempre disse estar apaixonado abandonaria a noiva dessa forma? E o pior, como um homem é capaz de abandonar uma mulher como Eduarda, bonita, inteligente, independente, elegante, sexy, frágil e delicada... “Meu Deus, estou enlouquecendo! Tenho tantos adjetivos para uma mulher que vi duas vezes. Estou com ciúmes de uma mulher que mal conheço.” Guardou seus papéis e retornou para a cama. Ficou horas rolando de um lado para outro, o sono não chegava e sua mente não se desligava do assunto chamado Eduarda. Não teve jeito, levantou-se e tomou um comprimido para dormir. Não precisava disto, não tinha o hábito de se medicar, mas estava realmente precisando desligar a mente... No outro dia pensaria o que fazer com as informações e sentimentos que o perturbavam.
IV
A
ugusto acordou sonolento, mas logo as angústias de seus sentimentos lhe invadiram, fazendo-o despertar. Sentou-se na cama e respirou fundo, precisava tomar uma decisão. Era necessário decifrar tudo que estava sentindo para poder ter clareza em suas ações. Levantou-se e foi direto para o banho. Não demorou muito, arrumou-se como de costume, tomou apenas um café puro e saiu com sua mente ainda insistindo em um único assunto. E estava difícil, praticamente impossível, preenchê-la com outro. Dirigiu cerca de vinte minutos e estacionou em frente ao imponente Hospital de Nova Lima. Lembrou-se do tempo de residência e inevitavelmente de Bruno. Caminhou por mais uns dez minutos até chegar à sala do Doutor Pedro. A secretária sorriu-lhe e ele logo se anunciou. — Bom dia! Doutor Pedro já chegou? — Bom dia! – a secretária sorria-lhe constantemente — Já sim. Tem horário marcado? — Não. Pergunte-o, por favor, se ele tem um tempo para um amigo. Diga-lhe que... — Desculpe, mas a agenda dele está lotada e... – interrompeu-a com rispidez. — Diga-lhe que o Doutor Augusto está aqui, precisando falar urgente sobre uma paciente que ele me encaminhou – estava sério, olhando-a fixamente. — Oh! Des c ulp e Doutor... Vo u a v is á -lo . P o r fa vor, descu l pe-me. — Tudo bem. Não se preocupe! A jovem moça se levantou apressadamente e dirigiu-
se à sala do Doutor Pedro. Passados alguns instantes ela saiu, dirigindo-se a ele. — Pode entrar. Por favor. Ele apenas acenou-lhe com a cabeça e passou por ela, fechando a porta atrás de si. — Bom dia, Doutor Augusto! Quanto tempo! — Como vai? Vejo que não mudou seus hábitos – referiu-se ao velho costume de chegar bem antes do horário para estudar um pouco. Eles sorriram e abraçaram-se. — Sente-se! Vou pedir para trazer um café para nós. Augusto se sentou e esperou que ele falasse com a secretária pelo telefone. — Acho que sei o motivo de sua visita. E confesso que muito me intriga! — Sempre agradeço os pacientes que me manda, mas Eduarda está me intrigando mais que o habitual. — A mim também. Nunca tive um caso como o dela e por mais que eu estude ainda não encontro respostas. Quando a medicina acha que está quase com todas as respostas para a mente humana, aparece algo inédito e nos faz começar de novo! — Doutor, o senhor também se lembra de Bruno? Ele passou as mãos nos rosto e respondeu: — Sim. Como não! Encontramo-nos várias vezes... Ele era médico deste hospital e... Vocês trabalharam juntos! — Sim, ontem eu me lembrei dele – ficou pensativo. — Algum problema, Doutor Augusto? — Não! Mas preciso lhe contar algo que está acontecendo! É uma questão fulcral! – ele fez um esforço hercúleo para ter coragem de dizer o que se passava, mas Doutor Pedro não se assustou muito, sua intuição já lhe apontava para isto quando viu Augusto em sua sala. Augusto não percebeu o tempo que ficou conversando com o amigo e conselheiro. Após o café, falaram por um
tempo sobre a medicação que Eduarda estava tomando, sobre procedimentos já feitos, agiram como amigos que se aconselharam sobre diversos assuntos, inclusive pessoais. — Em sua opinião médica, acha possível que ela recupere a memória? — Sabe que é possível e, ao mesmo tempo, pode nunca acontecer. É imprevisível. — E o que acha que devo fazer? — Aguarde mais um pouco e se perceber que nada vai mudar, conte para ela. Augusto apenas olhou para o amigo ciente de seu escrutínio. Despediram-se e ambos foram trabalhar. Augusto seguiu seu dia normalmente, atendeu todos os seus pacientes, no entanto, sua mente não conseguia se desligar de um assunto: Eduarda e Bruno. ooo Eduarda estava em casa com sua amiga Alice, que insistia em tentar fazê-la sair um pouco. — Vamos Eduarda! Você não pode ficar o tempo todo trancada em casa. — E por que não? — Amiga, a vida acontece lá fora. Você precisa superar o trauma. — Que trauma! Enlouqueceu?! Como vou ficar traumatizada de algo que eu não me lembro. — Tem hora que fico confusa. Você e meu irmão eram carne e unha. Almas gêmeas, sabe? Não faziam nada sem o outro. Construíram aquela casa, fizeram planos... E de repente... — Que casa? — Ah, Eduarda! Vocês construíram uma casa! Linda! Quem sabe se você for lá não se lembra? — É... talvez! — Sabe que a casa é sua, não sabe?
— Como assim? — Bruno colocou tudo em seu nome! — Por que ele fez isso? — Porque te ama! E porque tem dinheiro seu lá também. — Hmmm... — É sério, vocês planejaram e investiram dinheiro. Ele, antes de sumir, passou a parte dele para você, mais uma prova de amor. — Ah sim, belo amor! Ele vai embora sem explicações? Eu estou aqui, Alice. Levando minha vida. Quem foi embora foi o Bruno, não eu. E não me interessa esta casa que eu nem lembro, não sei nem mesmo onde fica. — Tudo bem. Até lá minha mãe cuida dela. Bruno a pediu isso. — E por que sua mãe cuida de uma casa que é minha? — Já disse, Bruno pediu. Esqueça este assunto, outra hora falamos disso. Vamos sair? — Não me culpe por nada. Só estou desanimada de sair. Não quero aquelas pessoas me olhando, perguntando se eu já me lembrei, se ele deu notícias... Minha vida pode ter sido junto com Bruno, mas agora não é mais e as pessoas precisam entender isso. — Até você? — Sim, até eu. — E por que a terapia? Não precisa se lembrar. — Talvez... Existe um vazio aqui dentro, muito grande que eu não sei explicar e acho que a resposta está... — Com meu irmão... As lembranças! Esse vazio amiga, é o amor de vocês dois. Eu nunca havia visto nada parecido. Esse vazio só vai passar quando se lembrar dele e voltar a amar. — Mas posso amar outra pessoa, não? Alice a olhou desconfiada. — Não me diga que está saindo com o professor lá da facul... — Não, Alice. Não “tô” saindo com ninguém. — E esse brilho no olhar aí, hein? Eu te conheço! — Que brilho... Está louca mesmo!
Alice se sentou no sofá e fez uma expressão séria. — Pela sua cara, acho que é mesmo. Preocupei-me agora. — Alice eu estou... Como eu explico...? — Apaixonada? — Não... Não ainda! Estou atraída por uma pessoa. — Me conta! — Não, ainda não. Não vou te contar agora. Deixa acontecer! — Sabe que fiquei com ciúmes pelo meu irmão? No fundo tenho esperanças que o Bruno volte e tenha uma boa explicação! E vocês fiquem juntos. — Alice, esqueça isso. Mesmo que volte, jamais voltarei a ficar com ele. — Por quê? Você tem raiva dele? Assim como não se pode amar quem não se lembra, não se pode odiar também, certo? — Simples amiga. Fui abandonada na escuridão, num beco sem saída e já faz um ano que tento acender esta luz e sair desse abismo em que estou. E quem me colocou nesta situação foi o seu amado irmão, Bruno! Acha mesmo que quando ele voltar, a princesa adormecida vai despertar com o beijo do príncipe e viver feliz para sempre? Acorda Alice! — Você nega, mas seu inconsciente sabe que o ama. Esse vazio, essa raiva, essa busca... Suas memórias estão aí, amiga! Você é que está com medo delas! Tem medo do que vai lembrar! Mas são elas que a movem. E eu sei, elas vão despertar e esmagar qualquer sentimento que nutrir por outra pessoa, porque o amor de você e meu irmão, para mim é indestrutível, indissolúvel, inabalável. — Alice, você também já está me cansando. Todas as vezes fica horas falando de seu irmão e enaltecendo um amor que já acabou há muito tempo. Estou cansada e vou viver minha vida normalmente. Espero que se conforme e pare de ficar tentando alimentar um romance que só existe para você! — Mas... — Seu irmão foi embora, sumiu... Eu não me lembro! Quem
vive este romance é você. E posso lhe dar um conselho? Encontre um amor para você e pare de ficar vivendo os sonhos e amores dos outros. Vá viver sua vida! É o que vou fazer da minha! Eduarda tinha sido ríspida e cruel. Os devaneios da amiga já haviam lhe frustrado bastante e estava na hora de dar um basta. — Não precisava ter dito isto, sabe disso, não sabe? — Precisava sim. Você e sua mãe se recusam a enxergar a realidade. Desejam que eu fique a minha vida inteira esperando pelo Bruno como a minha única salvação. E eu não vou fazer isso. Não estou em busca de ninguém a não ser de mim mesma. Desejo conhecer-me e quero viver a vida como ela se apresentar para mim. — Se falamos dele é porque sabemos o que viveu e... — Isso me irrita profundamente. Você fica falando de minha vida como se soubesse mais dela do que eu mesma. Você também está precisando cuidar da sua vida amorosa e deixar que eu cuide da minha. Alice a encarou seriamente. — Desculpe-me se passei por intrometida. Você sempre perguntou as coisas sobre você e Bruno. Foi você quem deu a entender que queria conversar sobre este assunto para tentar se lembrar. E nem de longe eu sei mais de sua vida do que você mesma! Sei apenas o que presenciei, mas também existem detalhes que foram vividos apenas por você e ele. Confesso que jamais quis ser intrometida. Só lhe digo uma coisa, com toda certeza, a verdade pode ser mais cruel do que pensa. E para encerrar, um último conselho meu para você: pode ser que se lembre dele e tudo que viveram neste instante. E eu sei que tudo que estiver vivendo será insignificante diante deste amor. Só te peço para não alimentar um ódio que não conseguirá carregar! Talvez quando souber o motivo, esse rancor todo dará lugar ao amor que está aí, gritando por socorro. — Você sabe de algo que não me contou? Alice a olhou indecifrável.
— E não se preocupe comigo. Não sabe a dor que sinto todas as noites, quando tento ir ao encontro do meu amor e me dou conta que ele está em um lugar que não posso alcançálo. Não foi só a sua vida que foi destruída, não é a única que precisa encontrar um novo caminho, uma estratégia de sobrevivência. É isso que faço todos os dias. Embora não fale, não existe um dia sequer em que não lamente e choro pela saudade de Cláudio. Boa noite, Eduarda! Já que deseja ficar sozinha, vou realizar seu pedido. — Alice! – chamou arrependida. O clima havia ficado nublado entre elas, Alice se despediu e foi embora. Eduarda sentiu que foi dura com ela, estava tão absorvida em sua própria vida que não se deu conta que Alice também precisava de ajuda. Respirou fundo, porém era como se tivesse vencido a primeira batalha diante da guerra que se aproximava.
V
E
duarda viu que já experimentara o guarda-roupa inteiro atrás de algo que fosse chique, discreto, bonito, mas tudo que vestia odiava. Com muita dificuldade escolheu uma saia e uma blusa. Vestiu-se, arrumou seus cabelos, maquiou-se levemente e saiu. Era dia de ver o Dr. Augusto. Ensaiou repetidas vezes tudo que iria dizer, o modo como agiria. Repassou várias vezes em sua mente para ter certeza que não esqueceria. Tinha que ter controle de si mesma e de suas reações. Não era uma adolescente e não queria se parecer com uma. Tentava ler uma revista, quando a secretária anunciou seu nome. Respirou fundo e entrou. “Puxa vida. Como pode? Ele está ainda mais bonito!” — Bom dia, Eduarda. Tudo bem? — Bom dia! Tudo bem – ele olhava firme para ela. — Vamos para aquele canto ali da sala. Vamos ter uma conversa de uns 40, 50 minutos. Precisamos estar mais confortáveis. Da outra vez ela não tinha percebido que do lado esquerdo havia um vidro blindex jateado separando a sala em dois ambientes. Do outro lado havia duas poltronas muito confortáveis, um sofá, uma mesinha de centro e um belo quadro. Uma estante com alguns livros, CD’s e um som, as paredes eram no tom verde claro e existia uma mais trabalhada com texturas circular mais escura. Ele se sentou na poltrona, indicando a outra a sua frente. Ela respirou fundo, sentindo que havia entrado no “território do inimigo”. Puxou o ar com força mais uma vez, tinha ensaiado tudo e iria dar tudo certo. Era só fazer o que havia combinado... Com ela mesma!
— Eduarda, vamos ter uma conversa normal, onde me conta coisas. O que eu achar relevante eu anoto para não esquecer. Tudo bem? — Sim. Por onde vamos começar? — Não sei. Você vai me dizer. Por onde quer começar? Não tinha ensaiado isso. Em sua mente eles começavam a falar de acordo com o que ele perguntava. E agora o que queria falar? Que ele era lindo e que não o tirava da cabeça... Não. Isso não fazia parte dos planos. — Eu não sei... Essa situação é nova, sabe. Estou um pouco tímida. — Não tenha pressa, fale o que vier a sua mente. “Ah, doutor, se soubesse o que estou pensando agora? Meu Deus, o que minha mãe diria se soubesse desse meu comportamento? Minha mãe... Eis aí um assunto mal resolvido.” — Vou contar algo que nada tem a ver com o Bruno, pode ser? — Sim. Pode. — Vou falar dos meus pais. Sinto saudades deles. — Onde estão? — Minha família é do interior. Meu pai é agricultor, planta hortaliças e frutas, mas se dedica mesmo é ao café. Sempre trabalhou demais. Tem que levantar cedo, colher as hortaliças, cuidar delas, transportá-las... Apesar de ter empregados, faz questão de estar junto, de ir para a “lida” como ele fala. — Muito honrado da parte dele. E sua mãe? — Minha mãe cuida da casa, ajuda na administração... Dá aulas de artesanato. É uma mulher incrível, porém submissa ao meu pai. — Isso te incomoda? — Incomodou certo tempo. Depois percebi que era escolha dela e não tinha o que fazer. Minha única irmã é mais nova que eu. E meu pai me proibiu de falar com ela. Medo que eu a influenciasse... Quando vim para Belo Horizonte estudar, meu pai foi contra. Não concordava que eu morasse
em uma república sozinha. Ficou muito zangado comigo porque fiz vestibular escondido. Tive ajuda da minha mãe. No dia que vim embora, ele não me impediu, mas deixou claro que se viesse não poderia voltar. — E você não voltou mesmo? — Tentei algumas vezes visitá-los, mas foi trágico. Desisti por um tempo com intenção de criar forças para enfrentá-lo e assim o tempo passou e nos afastamos. E não me lembro de mais nada! — E como se sente agora em relação a isso? — É algo que me incomoda. Sei que preciso resolver esta situação, mas não quero fazer isso no momento. — Por quê? — Não sei! Só não quero! — Vocês não tem contato... — Ela me liga de vez em quando. Ester me liga sempre. Como eu disse, minha mãe é bastante submissa ao meu pai. Temos um bom relacionamento, mas não é o que se espera de uma mãe e filha, compreende? Ele balançou a cabeça positivamente. — Você sente raiva de seu pai? Eduarda o encarou neste instante e com o olhar distante, respondeu: — Tenho. Ele me disse coisas duras, proibiu meu convívio com minha família. Foi muito preconceituoso. Acreditei que com o tempo entenderia que eu realmente desejava estudar, trabalhar e que ele iria repensar, mas nada o amoleceu! Aquele coração é de pedra. Para meu pai, eu deveria ter me casado com o Edgar, um rapaz filho do fazendeiro vizinho que queria muito namorar comigo. Esse era o sonho dele, que eu casasse e lhe desse netos. — Os pais criam seus filhos e muitas vezes projetam a vida deles e sonham por eles. Desejam o melhor sim, mas esquecem de que eles vão crescer, interagir com o mundo e terem os próprios sonhos. Quando estes coincidem com os dos pais é uma
maravilha, mas quando os filhos almejam algo bem diferente do que os pais sonharam toda a vida, muitos deles não aceitam e formam um grande conflito familiar. Muitos jovens se revoltam e procuram caminhos para afrontar. Os pais precisam saber que os filhos não são eles, e nem mesmo deles. Possuem vida própria, sonhos, desejos e precisam ser respeitados. Eduarda ficou um tempo em silêncio e Augusto aproveitou e ficou olhando-a. Sentiu vontade de abraçá-la e dizer que tudo ficaria bem. Precisava tirar esses pensamentos da cabeça e concentrar-se na paciente. Eduarda era sua paciente... Eduarda era sua paciente. Era o que dizia a si em sigilo. Precisava se convencer disto. — E esta semana, houve alguma novidade? Por menor que seja, algo que não se lembrava ou uma sensação de já ter vivido aquilo ou algo parecido? Seus pensamentos foram despertados pela bela voz do doutor. “Oh meu Deus! Não sei se vou conseguir continuar imune a essa voz... ela mexe com meus sentidos, emoções e imaginações. Preciso concentrar-me na consulta e responder somente o que ele me pergunta. O que está acontecendo comigo?” — Algo de novo? — Não teve nada. Alice esteve lá em casa, conversamos bastante, ela me contou mais coisas, mas era como se estivesse falando de outra pessoa. — Alice é... — Minha amiga e irmã do Bruno. Já lhe falei sobre ela. Uma expressão de surpresa tomou conta das feições de Augusto. Ele se lembrava vagamente de tê-la mencionado. — Vocês são muito amigas? — Somos. Ela acredita que o irmão vai voltar do nada, assim como sumiu, com uma boa desculpa, que tudo será esquecido, perdoado e vamos continuar de onde paramos... Ou melhor, do dia que ele foi embora. — Ela sabe o que aconteceu com ele?
— Até esta semana eu achava que não, mas ela estava diferente, defendia muito o irmão, tive a sensação que ela sabia de algo e não quer ou não pode contar. — E você? O que espera? Esta pergunta a pegou de surpresa. Não havia pensado nela e não tinha elaborado respostas para tal indagação, mas sentiu uma raiva, um sentimento que não sabia explicar e foi logo dizendo: — Não espero nada de Bruno, ele é um estranho em minha vida e acho impossível retomar qualquer coisa, pois não sei quem ele é, não sinto nada por ele! Se não tivessem me contado, visto as fotos, documentos... Eu nem saberia de sua existência. E acredito que ele também não deseja retomar de onde parou, caso contrário, não teria ido embora. Em minha opinião ele deve ter percebido que não queria se casar, e a vida se encarregou de ajudá-lo. Ele não iria me abandonar no altar, como não me abandonou no hospital até eu ficar bem. De certa forma, ele ficou, esperou para saber o que ia acontecer, mas depois viu que poderia estar livre e se foi. — Foi esta a explicação que elaborou para o sumiço, abandono? Eduarda o olhou intensamente. Não tinha necessariamente elaborado esta teoria, na verdade, ela acabara de surgir! — Não acha que seria o mais lógico? — Vários motivos levam uma pessoa a agir de forma inesperada. O problema é que temos necessidade de respostas, de saber as coisas... Assim temos a sensação de controle das coisas, da vida. A verdade Eduarda, que a única pessoa capaz de lhe dar esta resposta é o Bruno! Na verdade, talvez você nunca tenha esta resposta! — Por que diz isso? — Pense racionalmente. Se ele desejasse lhe dar qualquer explicação, já teria dado, de algum jeito, pessoalmente, por carta, recados...
— Faz sentido! — Talvez, você venha a descobrir, mas precisa viver agora com a resposta certa: Bruno foi embora e não sabe o motivo. Não se sinta obrigada a saber todas as respostas, você só pode responder sobre os seus atos, então se concentre neles. — É o que estou tentando, mas está difícil. As pessoas me perguntam... — Responda o que sabe. E na verdade, as pessoas, às vezes querem respostas apenas para saciar a curiosidade, não se sinta na obrigação de ajudá-las nesta questão! — Precisei de um psiquiatra para me dizer de forma sutil, que cada um deve cuidar da própria vida. Augusto sorriu ao ouvir aquelas palavras. Então se voltou para uma pergunta chave. — Então, retomando o assunto anterior, se ele aparecer você não pensa em ficar com ele? — Não. Você namoraria uma estranha? — Talvez... Depois de três encontros podemos dizer que ainda somos estranhos? A vida é um mistério. Não podemos controlá-la por mais que desejemos isso. — Eu... – não sabia o que dizer. Não sabia se havia entendido o que ele acabara de dizer. Era melhor passar por desentendida. Mas como desejava ser verdade o que parecia estar vendo em seu olhar. — Então, quando se lembrar, ele deixará de ser um estranho! – Augusto voltou o assunto para a resposta de Eduarda. Ela não havia pensado naquela situação. — Pela primeira vez, estou pensando nesta perspectiva! Eu não sei do que vou lembrar, não sei do quão intenso foi esse amor... Não sei nada! Como poderei saber o que vou fazer diante dele e diante das lembranças retomadas? Eu... Não sei! – seu olhar era de medo. — Não sei se conseguirá, mas deve seguir sua vida normalmente. Não é só você que não sabe o futuro, a verdade
é que a gente supõe saber, mas ninguém sabe! Não fique nesta cansativa e incessante procura por respostas. As coisas encontram uma maneira de se resolverem e devemos enfrentá-las na medida em que elas aparecem. Se eu ficar hoje, tentando achar soluções para meu futuro, tentando não sofrer e fazer escolhas corretas, corro o risco de não viver o presente nem o futuro. — Acha que devo parar com a terapia? — Não estou dizendo isso, estou falando para relaxar, viver, parar de tentar se lembrar a todo instante, como se a sua vida se resumisse apenas a isso. Às vezes, quando paramos de procurar é que encontramos! Nossa busca geralmente nos deixa cegos e não percebemos os detalhes, as entrelinhas. A resposta pode estar onde não imaginamos, por lugares que jamais iremos procurar. E por não sermos capazes de imaginar, não vasculhamos aquele exato lugar que pode estar simplesmente dentro de nós. — Ouvindo você dizer parece ser tão simples, mas quando volto para casa, o vazio me consome, a solidão me devora e não consigo ser de outra maneira. — Este vazio, esta solidão, estão associados a Bruno? “Nossa! Como poderia ser?” — Não! Como pode? Eu já disse que não me lembro. Não posso sentir falta de algo que não conheço, posso? — Você está sentindo solidão, porque está sozinha. Está sentindo vazio, porque falta algo que preencha você, que lhe faça feliz. Talvez quando estava com Bruno não sentia assim porque não era só. Pense que as pessoas que passam por um luto se sentem assim. E precisam vencer. Você, de certa forma, perdeu um amor, um noivo, um amigo... Alguém que preencheu sua vida por um tempo, pode não se lembrar dele, mas ele existiu, certo? — Talvez sim... — Ele existiu, mas se foi. Assim como a viúva que teve seu amado e ele partiu. São situações diferentes, eu sei, mas o final é que você e a viúva perderam alguém importante e precisam
preencher o espaço vazio desta pessoa. Não digo substituir, digo preencher, reencontrar formas, coisas, pessoas que lhes dão alegria. Algo que goste de fazer, leitura, pintar, exercitar, trabalhar... Todos nós temos atividades que nos dão prazer. — Pela primeira vez penso desta forma! Sempre relutei contra todos... Mas esta é a verdade, eu perdi alguém e não consigo preencher o vazio que ele deixou! Pelo menos a viúva sabe quem ela perdeu e o porquê de sua perda... Eu não sei nada, só sei que perdi, não sei nem mesmo o quê! — Como eu disse antes, não busque respostas que não terá. Pelo menos por enquanto. Trabalhe com o que tem. Você não se lembra, mas sabe, por relatos, fotografias, até mesmo pela sua perda de memória que existem buracos, coisas que não encaixam, como um quebra-cabeça faltando peças. Então pense com objetividade: Você teve um noivo, iriam se casar, um acidente de trânsito impediu, depois o seu noivo desapareceu. Desse acidente você teve uma sequela, perdeu a memória. — Novamente, em sua boca fica tudo tão simples, tão natural. — A lista de pessoas desaparecidas neste mundo é enorme. Pense na dor de uma mãe que perdeu seu filho, que ele desapareceu. Não sabe se morreu ou se está vivo! Você está em uma situação semelhante. Você já sabe que ele não foi morto, nem sequestrado, ele quis ir embora. Ele te disse isso em uma carta. Aceite isto Eduarda, será melhor para você. Os motivos de sua partida é que são desconhecidos. Todo o resto você sabe! Mesmo diante de sua amnésia você tem muitas respostas. — É verdade. Vejo tudo com mais clareza! E mesmo que não me lembre, é difícil ser abandonada! Eu sei que fui abandonada – as palavras saíram com gosto amargo — E acho que isso é o que mais me incomoda. Claro que não me lembrar das coisas me irrita. Às vezes as pessoas sabem mais de mim do que eu mesma. Não sei o porquê, mas sinto vontade de chorar. — Então chore. Não lute mais contra os seus sentimentos. Fazer isto só lhe trará outra dor.
— Na verdade, eu sinto vontade de chorar pelo abandono, pela situação, por tudo! – seus olhos estavam marejados e sem tentar segurar, permitiu-se chorar. — Desculpe, mas senti uma dor, uma angústia e... — Não se desculpe por viver suas emoções. — Acho que é a primeira vez que me permito viver este sentimento, esta tristeza, sempre pensei que precisava ser forte o suficiente para não sentir, encobrir. Obrigada! — Não se prive de viver seus sentimentos. Ao fazer isso você gera angústia, mais tristeza, e pode desencadear outros problemas como depressão. Ocupe seu tempo. Livros, cinemas, novos amigos, namoro... – um ciúme e uma possibilidade lhe passaram pela mente! Olhou-a tão intensamente que Eduarda chegou a sentir o olhar dele em sua pele. Era como se estivesse tocando-a. Um clima e tensão começaram a tomar conta de ambos. Estavam presos no olhar um do outro. Os olhos de Augusto eram tão vibrantes, fortes e sedutores que pareciam ter vida própria. Estava impossível suportar aquele olhar sem correr para ele e cair em seus braços, então, mais que apressadamente, ela abaixou a cabeça. “O que está acontecendo? Ele é um médico jovem demais, bonito demais, atraente demais... Estou vendo coisas demais. Preciso me controlar.” — O Fato de você chorar não diz que é fraca. Os fortes também choram! — Relutei tanto em ter esta consulta e de repente me sinto mais leve, mais confiante... — Que bom que conseguiu ordenar alguns sentimentos. É apenas o começo. O telefone tocou tirando-os daquela situação. — Desculpe, com licença. Dr. Augusto se levantou e atendeu: — Oi Luana – ouviu alguns segundos — Tudo bem. Já vou chamá-lo. Ok.
Ele colocou o aparelho de volta ao seu lugar, suspirou fundo e se dirigiu a Eduarda. — Nem vi o tempo passar. Vamos encerrar aqui hoje – entregou-lhe lenços de papel — Tem condições de ir para casa agora? — Sim, estou bem. — Então até semana que vem. Tudo bem? “Então é assim? De repente acaba? Vou embora com todas estas questões na mente?” – percebeu que poderia passar o dia todo ali com ele. Não tinha desejo de ir embora. — Tudo bem. Até a próxima semana, doutor. — Até Eduarda. Eduarda não percebeu, mas ele não havia anotado nada. Augusto não se mexia, olhava para ela intensamente e queria absorver cada palavra que dissesse e sabia que não precisava anotar, pois nada que ela falasse ele esqueceria. Estava tão absorvido, que nunca havia perdido um horário, mas com Eduarda nem se lembrou do relógio. Queria ficar ouvindo e vendo aquela mulher em sua sala. O que estava acontecendo com ele? Precisava se lembrar, o tempo todo, que era sua paciente.
VI
A
semana passou normalmente. Tudo dentro da rotina, sem nenhuma novidade: trabalho, casa e trabalho. O final de semana também não teve muita agitação. Eduarda fez caminhadas, leu bastante, mas nada de passeios, cinemas, namoro... Seus dias passavam indistintamente. Havia aceitado sair com os amigos do serviço. Estavam em uma casa de shows e a conversa na mesa era agradável, mas alguns colegas haviam ido dançar. — Vamos dançar Eduarda? — Não sei dançar! Desculpe, prefiro ficar aqui. — Então tudo bem. Estou feliz que tenha aceitado o convite de vir. — Eu também. Rafael era professor da faculdade e sempre a ajudava quando precisava. Era bonito e atraente. As alunas da faculdade eram apaixonadas por ele e Eduarda gostava de conversar com o colega de trabalho. — Já está na hora de tentar se relacionar novamente com alguém, Eduarda. Olhou-o firmemente. Ele estava flertando com ela? Será? — Não sei, talvez não esteja preparada. Ele se aproximou dela, tanto que pôde sentir a deliciosa fragrância da sua loção pós-barba. — Do que tem medo? — Não é medo... — Então não fique pensando demais, você é adulta, livre! Deixe as coisas acontecerem. Só vai saber se está preparada se tentar. Seus olhares se encontraram e em segundos ele se
aproximou e a beijou. Ela foi pega de surpresa, mas não recusou. Rafael era atraente, solteiro e livre. Precisava tentar! Sentiu o beijo agradável e deixou-se levar pelo momento e percebeu que estava gostando, no entanto, sua mente viajava e imaginava estar beijando outra pessoa. Um par de olhos azuis sedutores invadiu sua mente e ela abriu os olhos assustadas, afastando-se brutamente. — O que houve Eduarda? — Desculpe, Rafael. Desculpe se induzi... Ele lhe acariciou o rosto. — Você não induziu nada, eu quis beijar você. E por um momento achei que estivesse gostando. Estava tímida e embaraçada. Havia gostado, mas quando se lembrou daquele olhar, sentiu-se arremessada para ele. Precisava tirar o médico da cabeça. — E eu gostei – falou baixinho. Ele então se aproximou novamente e a beijou. Eduarda decidiu entregar-se àquele momento. Não estava fazendo nada errado, era livre e queria sair daquele estado de inércia. A noite foi assim, agradável, mas não permitiu que ultrapassasse alguns limites impostos e ficaram apenas daquela forma. Acabou se deixando levar, foi para a pista de dança e conseguiu se divertir. A companhia de Rafa – era assim que os amigos o chamavam – era agradável. Ele era divertido, atencioso e carinhoso. Precisava permitir-se viver! Ele a acompanhou até em casa e ela o chamou para subir. Quando chegou ao seu apartamento, Eduarda ofereceu-lhe um café, que foi prontamente aceito. — Rafa, eu não sei como dizer, mas... — Eduarda, não precisa me dizer nada! Ela se sentou perto dele e continuou. — A noite foi muito agradável. — Foi sim. Para mim foi mais que agradável – beijou-a e ela novamente foi pega de surpresa.
— Obrigada por ter insistido para eu sair hoje. — Não precisa ficar tentando achar as palavras certas. Ah, Eduarda, eu sei de tudo que está vivendo e não vou te forçar a nada! Sei que precisa de tempo, mas não se esqueça de que está viva! Você é uma linda jovem, inteligente e adorável. Ela corou diante dele, que a segurou pelo queixo e a fez olhá-lo de novo. — Sei que gostou da minha companhia. No entanto, sei reconhecer que ainda não está totalmente entregue. Queria que me desejasse como eu a desejo... – e a tomou nos braços novamente. O beijo estava se tornando cada vez mais intenso. As mãos dele a trouxeram para mais perto, seus corações começaram a palpitar e as respirações descompassadas iniciavam uma perfeita sincronia. Novamente Eduarda se sentiu invadida por um olhar azul, que penetrava em sua alma, em seu corpo e fazia se esquecer de qualquer coisa. — Eu... E-u... Ele colocou o dedo em seus lábios, impedindo-a de falar. — Não precisa explicar! Vamos dar tempo ao tempo! Quem sabe o que a vida reserva para nós, não é mesmo? — Você é um homem muito atraente. Obrigada! — Atraente, mas resistível. Quem sabe posso me tornar irresistível? – ele picou para ela — Obrigado pelo café, mas tenho que ir. — Obrigada por me trazer em casa. Ele a olhou com carinho e sorriu. Beijou-a nos lábios novamente e se despediu. — Nos vemos amanhã no trabalho. Boa noite! — Boa noite. Ela fechou a porta e caminhou até seu quarto. De certa forma, estava triste porque ele não havia insistido. Precisava retomar sua vida, refletia sobre tudo que aconteceu e se não fosse aquele olhar lhe atormentando, poderia ter
aproveitado melhor aquele momento. Mas sentiu que estava voltando a controlar a própria vida. Havia evoluído em seus sentimentos. Conseguia pensar em Bruno com mais tranquilidade e não mais negava a existência dele em sua vida. Contudo, afirmou para si mesma que o que quer que tenham vivido havia acabado. Ele não existia mais em sua vida, em suas memórias antigas... De certa forma era melhor assim. As maiores queixas quando um grande amor termina, para uma das partes, é que não sabe o que fazer para esquecer a pessoa amada. Em seu caso, ela esqueceu! Assim tudo se tornava mais fácil. Ela sorriu de si mesma ao pensar sob este ponto de vista e percebeu que conseguia fazer piadas da própria situação. De repente, outro assunto a atormentava. Não era Bruno, sua perda de memória, sua discussão com Alice, o problema com seus pais, muito menos algo relacionado ao trabalho. Era aquele olhar azul sedutor que invadia sua mente toda hora. Esse olhar que não permitiu que ela se entregasse a Rafael de forma mais profunda. Era o Doutor Augusto. Quando foi que Bruno deixou de ser seu problema? Quando foi que deixou de ocupar sua mente, seus dias...? Deuse conta que ocupava seu tempo e pensamentos com uma pessoa desconhecida e isso não fazia sentido. Ao fazer esta análise percebeu que só deixou de ocupar-se com Bruno quando começou a pensar em Augusto. Não conseguia parar de pensar nele! Sentia aquele olhar tocando a sua pele... Se o seu olhar era capaz de causar tantas sensações, como seria seu toque, seu beijo? Estava ficando louca! Havia acabado de ficar com uma pessoa atraente, inteligente e bacana, no entanto, ao invés de estar tomada pelos momentos que acabara de viver com Rafael, encontrava-se imersa em pensamentos a respeito do seu médico... Talvez fosse melhor trocar de médico. Não! Não queria trocar de médico. Ele a ajudava, era bem coerente em suas palavras e ela gostava de ficar perto dele e olhá-lo. Precisava colocar em prática seu autocontrole
e não deixar transparecer os sentimentos, afinal era apenas um homem bonito e atraente, e com o tempo se acostumaria com sua presença e não reagiria mais assim. Definitivamente não queria trocar de médico. Que angústia! Por que estava passando por aquilo? Sentia saudade de sua vida antiga e essa saudade não fazia o menor sentido, porque não sabia exatamente do que sentia falta. Afundou a cara no travesseiro. Não podia viver assim. Levantou-se, foi até a sala e ligou o som com uma música que gostava de ouvir, então foi até a cozinha, pegou uma taça e colocou um pouco de vinho. Precisava reagir. Iria permitir que Rafael se aproximasse mais e assim se livraria daquele olhar perturbador. ooo Mais uma vez estava no consultório e definitivamente não conseguia se controlar diante do Doutor Augusto. Ele era terrivelmente atraente e sentia-se presa naquele olhar. — E como foi sua semana? – perguntou o médico. — Foi tudo normal. — O que você chama de normal? “Céus! Adoro essa voz!” — Nada de novo! Rotina. — Sentiu-se melhor sobre algum aspecto? Ela lembrou-se de Rafael, mas não queria falar disso para ele. — Aceitei sair com alguns amigos do trabalho e foi divertido – Por que disse aquilo? — Progresso! — Sim. Acho que vamos sair de novo esta semana. A turma é animada! — Algo surpreendente nesta saída? — Não digo surpreendente. Refleti muito doutor, desde terça passada e não posso viver do passado que nem me recordo! Literalmente vou enlouquecer!
O silêncio se fez na sala e deduziu que devia continuar. — Tem um amigo meu que me convenceu a sair com eles. E... Eu... Nós... – ela respirou fundo, não conseguia dizer! – “Por que estou tocando nesse assunto com ele?” — Vocês...? — Bom, dei o primeiro passo para refazer minha vida sentimental apesar de não estar totalmente segura. Decidi parar de explorar minha tristeza e parar de me fazer de vítima. Quero retomar o controle de minha vida, de minhas emoções, que nem sei se tive um dia! — Como assim? — Sempre fui muito insegura nesta área sentimental. — Defina insegura! — Nunca amei de verdade, sempre estava insegura, não queria aprofundar nos relacionamentos, sempre havia receio de sofrer. — Até conhecer Bruno, porque se você estava prestes a se casar, é porque não estava insegura. Certo? — Não havia pensado nisto ainda. Mas sim, acho que está certo. — Você se sentia em uma prisão. Presa em um passado desconhecido, em uma busca exasperada por respostas que não encontrava. Como se houvesse sido sequestrada. Então resolveu sair desta prisão, porque não cometeu crime algum para estar ali, não precisa provar sua inocência e conseguir um habeas corpus. Você é livre! Era preciso apenas abrir a porta e sair. Não é fácil. A gente se acostuma a ficar preso e reestabelecer vínculos com a sociedade e consigo mesma, sem culpa e remorso em uma tentativa de reestabelecer a própria integridade, identidade. Percebe o que quero que enxergue? — Claro que sim! Ainda mais colocados nestes termos, tão familiares para mim – suspirou e continuou — Tenho tantos medos. Como faço para me livrar deles? — Seria simples eu te dar uma resposta. Meu papel aqui é te
levar a encontrar as respostas. Neste caso, é comum a insegurança. Na prisão você estava frágil, vulnerável, solitária, imersa em sua própria dor, procurava seu amor próprio, sua autoestima, e o medo vem: vale a pena sair desta prisão? Na liberdade que agora você vivencia, está exposta a outras fragilidades e deverá assumir riscos que não saberá as consequências. Sair de uma zona de conforto que havia estabelecido. Isto não é a vida em si? Será apenas com você? Ou todos estamos diante destas questões frágeis, únicas, momento que temos que escolher o caminho e não sabemos a resposta certa, uma prova sem gabarito e que qualquer alternativa que eu escolha terá consequências irreparáveis na própria vida, sejam elas boas ou ruins. Não perca a coragem de lutar por você e de escolher suas alternativas com a certeza que viverá o desfecho de sua escolha na própria existência. Não se prive de viver experiências e momentos agradáveis e não se culpe se uma escolha lhe proporcionar o contrário. Aprenda com elas, como vou saber se gosto de morangos se nunca comer? Ela sorriu. — Não preciso comer o morango inteiro para saber que não me agrada. Posso parar. — Sim. A qualquer momento. E se quiser uma segunda tentativa, dê outra mordida. — Sinto que estou retornando para o meu mundo. — Ninguém se livra dos medos e anseios de uma vez. Aos poucos, as pessoas reassumem a direção da própria vida, organiza as emoções e se aprende com a dor. Pode parecer pura falácia, mas é verdade. A dor nos prepara, fortifica, traz um aprendizado que jamais se esquece e depois vem a alegria. — Acho uma teoria muito romântica. — Também acho, mas acredito em romances! Você não? – novamente olhou para ela firmemente. Sentia-se invadida por aquele olhar. Era assustador e ao mesmo tempo agradável, mas ele não permitiu que respondesse... — Se Cristo não tivesse sido crucificado e morto, ele não
poderia ter ressuscitado em glória! Vivos não ressuscitam. E porque era preciso tanto sofrimento, tantos calvários. Poderia ter sido mais simples, ele era como Deus. Poderia ter acabado com todo sofrimento. No entanto, escolheu seguir os planos e toda trajetória que já sabia que enfrentaria: dor, sofrimento, abandono do Pai. Qual seria a glória de sua ressurreição se não houvessem provas, perseguições, lutas e sofrimento? Toda a glória está aí, em vencer todo o mal, todo o sofrimento e cessar todas as lágrimas. Eduarda sentiu-se tocada por aquelas palavras. Sua fé era algo que não havia se perdido nas memórias deletadas. No entanto, quando foi que perdeu sua fé? Não foi no acidente, foi antes ou depois disso? Precisou de um médico, que muitos dizem não acreditar em Deus por se julgarem o próprio, para trazer-lhe a reminiscência de sua fé? — Vou ter muito que pensar esta semana, doutor. — E sua memória? Alguma novidade? Alguma memória afetiva? — Não... – entristeceu-se nesta hora. — O que houve? Percebo um olhar triste? — Não estou triste. Apenas acho que este assunto é cansativo! Acho que não quero mais falar de Bruno! Eduarda não queria mais se lembrar de Bruno. Estava achando ridícula aquela terapia, no entanto, não conseguia pensar em não vê-lo mais. Por quê? Ele lhe falava coisas que a tiravam de sua zona de conforto, mas que de certa forma trazia luz para sua escuridão. Gostava de ouvi-lo. Novamente iria embora com novos conflitos. Seria sempre assim? Queria desistir da terapia, pois não fazia sentido. Porém, imaginar não ver mais o doutor Augusto era inconcebível! Então deveria traçar uma estratégia. Não falar mais de Bruno, ela que decidiria sobre o que iriam falar. ooo
Acabou saindo com os amigos novamente na sextafeira. No entanto, estava sem muito ânimo e foi embora cedo, pois Rafael não havia ido, estava cobrindo a falta de um amigo. Sentiu falta dele. Sábado saiu para fazer compras básicas para casa. Estava mais animada como há algum tempo não sentia. Passou o dia todo tranquila, refletindo sobre suas emoções, desejos e, claro, nas palavras de Doutor Augusto. Percebeu que o final de semana passava depressa demais quando a noite chegou... Em breve mais uma semana começaria e decidiu que iria se comportar diferente. Tinha um encontro com Rafael no domingo e estava animada, só achava que deveria estar mais. “Bobagem, é só o começo.” Se desejava mudanças na sua vida, precisava mudar seu comportamento. A possibilidade a animava e precisava falar a verdade para o Doutor Augusto, que não queria mais fazer terapia, não para se lembrar de Bruno. No entanto, a simples ideia de não vê-lo mais a fazia querer chorar. O que significava tudo isso? Ao som de suas músicas preferidas, começou a arrumar suas coisas para o trabalho, já que seu domingo estaria comprometido. E assim, depois de tudo organizado, tomou um banho e se deitou para dormir. ooo Já era quase meio dia quando Eduarda acordou. Permitiu curtir esse dia sem horário nem compromissos. Era domingo! Preparou e tomou seu café lentamente, enquanto a música tocava no som em uma altura suficiente para que pudesse ouvir por toda a casa. Tomou um banho bem demorado e se arrumou para sair. Iria encontrar Rafael mais tarde, mas quis passar no shopping antes, visitar uma livraria, ver um filme, almoçar, enfim, curtir o dia! Sentia-se animada e contente. Chamou um taxi, não iria de carro, uma vez que voltaria com Rafael.
Andava pelo shopping olhando as vitrines. Não se lembrava de quando foi à última vez que havia comprado roupas para si, diferentemente da maioria, gostava mais de olhar do que comprar. Gostava de vestir-se e sentir-se bonita, elegante, mas não era o que mais consumia. Sentiu fome e dirigiu-se a um restaurante que adorava ir, que servia uma variedade considerável de alimentos. Preferia alimentos simples e não tinha grandes exigências a não ser que fossem bem preparados. Serviu-se e colocou a quantidade que queria em seu prato, pedindo um suco de laranja para acompanhar e começou a sua refeição com tranquilidade. Olhava o movimento das pessoas desinteressadamente. Sua mente viajava nos últimos acontecimentos de sua vida quando seu olhar encontrou-se com o dele, que também a tinha visto e não a ignorou. Neste instante paralisou e se sentiu presa naquele olhar, como sempre. “Será que nunca vai passar?” – sentiu um gosto amargo em sua boca ao se dar conta que ele não estava sozinho. Augusto estava de mãos dadas com uma mulher muito bonita, elegante, alta, magra, cabelos sedosos, negros e compridos, que parecia uma modelo. Ela conversava com ele alegremente, então ele acenou-lhe com a cabeça em sinal de cumprimento, sério, misterioso e sedutor. Estava vestido com uma calça jeans, camiseta e tênis. Nunca o tinha visto assim, incrivelmente comum e sedutor. Era o tipo de homem que poderia vestir qualquer traje, que seria notado por onde fosse. Sentiu-se decepcionada ao vê-lo acompanhado e sentiu... Ciúmes. Por quê? Enquanto indagava a si mesma sobre seus sentimentos, não o percebeu se aproximar de sua mesa. — Como vai, Eduarda? – ele soltou a mão da mulher e ela se levantou para cumprimentá-lo. Sentiu o leve toque dos seus lábios em seu rosto e foi o suficiente para desencadear emoções e sensações desgovernadas e intensas. — Como vai doutor. Tudo bem? Ele sorriu-lhe.
— Sozinha? — Sim – precisava articular seus pensamentos e pensar em algo rápido — Estou atrasada para um compromisso, já estou terminando, caso contrário, chamava vocês para sentarem comigo. Ele respondeu-lhe com aquele olhar fascinante, penetrando até o fundo de seu peito: — Não se p reoc up e con os c o. F iqu e à v on ta d e . Es s a é D ar i ana. Ela sorriu para a moça que lhe cumprimentou. — Tudo bem? – disse sorridente e abraçando Augusto pela cintura. — Olá – foi o que conseguiu dizer. — Bom apetite Eduarda e bom domingo. — Para você também... Ou melhor, para vocês! Ele então a beijou novamente no rosto e se afastou. Dariana acenou com a mão dando-lhe tchau. Precisava sair dali o mais rápido possível. Não iria suportar ficar ali, assistindo-o almoçar com... Com.. “O que ela seria dele? Não importa. Sou apenas sua paciente e não tenho nada a ver com aquilo.” – terminou seu almoço o mais rápido que pôde. Foi para fila do caixa e de onde estava podia vê-los nitidamente. Observou-os. Estavam próximos e almoçavam sorrindo. Formavam um belo casal. Aquela cena a incomodava extremamente. Pagou sua refeição e saiu rapidamente sem olhar para trás e não pôde ver que aquele olhar a seguiu até que fosse impossível vê-la. Eduarda decidiu continuar seus planos e foi em direção à livraria. Aquela calma, aquela felicidade que estava sentindo de manhã quando acordou havia desaparecido e uma irritação e desassossego a perturbavam. Tentava se concentrar nos livros que estavam nas estantes, mas não conseguia. Tentou escolher um livro quando sentiu uma presença atrás de si, bem próxima, que cochichou em seu ouvido:
— Sei que estou muito adiantado, mas já que te encontrei aqui, poderíamos ficar juntos até mais tarde. O que acha? – perguntou sorrindo. Ela se virou de imediato. — Rafa! Ele piscou para ela. — Perdida? — Não mais! – respondeu, abraçando-o — Está sozinho? — Não. Acabo de te encontrar! – disse sorrindo. Ele tinha um sorriso encantador. — Que bom que você está aqui! – de repente se sentiu mais calma e tranquila, mas a imagem daquele olhar e daquelas mãos dadas estavam o tempo todo voltando em sua mente como flash. Como fazer para que elas desaparecessem? Neste instante sentiu as mãos de Rafa segurarem as suas. — Posso ajudá-la se quiser. — Estou apenas olhando, não busco nada específico. Vamos sair daqui? Gosto de olhar livros com calma, sozinha e com concentração. Hoje não me sinto bem. — O que houve? Está passando mal? — Não, apenas uma agitação interna, um desassossego incomum. Assim caminharam saindo da livraria. Conversavam trivialmente e foram para o cinema. Estava próximo da sessão de um filme que ela queria muito ver, então compraram os bilhetes e dentro do cinema se sentaram quase na última fileira. — Realmente Eduarda, percebo que você está tensa. Posso perguntar se tem a ver comigo, ou seja, acha que estou forçando a barra com você? — Oh! Claro que não. De verdade, não tem nada a ver com você. — Que bom! – ele sorriu, olhando-a firme em seguida a beijou. Eduarda sabia que isto aconteceria e mesmo assim se sentiu surpreendida com o beijo, mas logo cedeu e correspondeu. Precisava libertar-se, permitir-se ser feliz. Ele
era um homem bonito, inteligente, cheiroso e agradável. Iria com certeza tentar se relacionar. O que poderia perder? Assistiram ao filme abraçados e vez ou outra trocavam um beijo. Eduarda emocionou-se com o filme e acabou chorando. Aproveitou a emoção e chorou pelos próprios sentimentos. Rafael era mesmo um homem elegante e agradável. Não forçou a barra em momento algum e comportou-se como ela imaginava que deveria ser. Após o cinema Eduarda foi ao banheiro lavar o rosto, retocar a maquiagem e tentar despistar os olhos inchados. Olhou-se no espelho e viu que estava bem fisicamente, já o seu coração estava sangrando. Seria mesmo por Augusto? Sim! Sabia que sim. Não tinha como negar seus sentimentos. Achava que estava apenas se comportando como uma adolescente diante de um médico bonito e charmoso... Não estava levando a sério os sinais que seu coração lhe dava o tempo todo, na verdade, não queria acreditar no que acontecia. Só agora a ficha havia caído, só então ela convenceu-se de que estava apaixonada por ele. Só o conhecia do consultório, uma relação profissional e o psiquiatra nunca havia lhe dado indícios de nada. Como pode permitir este sentimento nascer? Não era mais uma garota, já sabia controlar seus impulsos e sabia diferenciar realidade de fantasias, sabia que seria daqueles relacionamentos platônicos e não permitiria que crescesse. Rafael era um homem que, com certeza, seria capaz de se apaixonar. Estava decidida, iria permitir que continuassem saindo, conhecendo-se e com o tempo sabia que se apaixonaria por ele. Era bastante atraente e não seria difícil! Olhou-se no espelho novamente e a imagem daqueles olhos lhe invadiu a mente. Viu tudo azul em sua frente. “Droga!” – fechou os olhos, apertando-os depressa e balançou a cabeça, para que aquela imagem fosse embora e saiu apressadamente do banheiro. Rafael a esperava e deram as mãos. — Acho que a galera já chegou. Vamos? — Claro – sorriu para ele.
Haviam combinado com outros colegas para conversarem e beberem um pouco a tarde. Quando chegaram, Eduarda apaixonou-se pelo local: livraria, comida e jazz. — Rafael, eu gostei muito daqui! — Que bom! É um dos restaurantes mais clássicos da região. Eduarda provou algumas bebidas e petiscos e conversou bastante. Fazia tempo que não ria tanto! O grupo era muito divertido e nem viu a hora passar. Já estava tarde e precisava ir embora, pois no outro dia iria trabalhar cedo. Rafael não fez objeção de ir embora, despediram-se e saíram. Rafael a levou para casa e ela dava gargalhadas dos casos que ele contava. Chegaram mais rápido do que imaginou e subiram para seu apartamento. — Obrigada Rafael, você foi muito gentil comigo hoje. Ele nada respondeu, apenas ficou olhando fixamente para ela. Continuaram a olhar um para o outro, cada um do seu lado do sofá, ambos paralisados durante um momento pela sombra das possibilidades distantes. Depois Eduarda desviou o olhar. — É sério. Foi delicioso. Há muito tempo que não tinha uma noite como esta. — Acha que podemos fazer isso novamente? — Hã? — Tenho esperanças que sim! – disse, aproximando-se — Vejo uma sombra em seu olhar, uma tristeza que carrega e que tenta passar por cima. Talvez eu possa ajudá-la a sentir-se melhor. — Você conhece minha história e... — Conheço, mas preciso te dizer uma coisa. Ela não me assusta e nem me causa medo ou qualquer sentimento. O que me assusta é esse sentimento que está crescendo dentro de mim e não estou conseguindo controlá-lo. Ela o olhou como se estivesse assustada. — Eu-eu... — Ele colocou o dedo em seus lábios para que ela não
continuasse e a beijou. Tomou-a nos braços com carinho e veemência. Eduarda sentiu-se surpresa ao perceber que gostava daquele beijo, que gostou daquele gesto e permitiu-se viver aquele momento. Não sabia se era a bebida ou algo do tipo, não interessava, o fato era que estava sentindo um rubor, um calor e... — Eduarda, você hoje bebeu muito... Eu também – falava em seu ouvido, apertando-a em seus braços — Normalmente eu não ligo para isso, mas preciso saber que você me quer sóbria e consciente. O que sinto por você, eu não sei ainda, tenho consciência que posso estar me apaixonando, mas pode apostar garota, que é algo muito especial, porque não sou do tipo de deixar uma mulher como você fugir de meus braços. Nem sei se está entendendo o que digo – beijou-a de novo com mais veemência — Sei que vou me arrepender do que estou fazendo. — O que está fazendo? – Eduarda estava entregue àquele momento. — Deixando você dormir e amanhã a gente se vê. Ele levantou-se de repente, passou as mãos pelos cabelos e a olhou, sentada, mirando-o interrogativa. — Você é muito linda! Preciso ir antes que não consiga me controlar – beijou-a de leve nos lábios e saiu apressadamente. Eduarda ficou olhando até que a porta foi fechada e se viu sozinha na sala. Encostou-se ao sofá. Rafael havia despertado sensações que não lembrava ter sentido antes. Estava confusa. Sabia que tinha bebido muito e que se ele insistisse acabariam juntos. Sabia que tinham uma química, uma eletricidade que a deixava feliz e... “Devo me sentir culpada por isso? O que está acontecendo comigo?” – sabia que não era apenas a bebida, ele era um homem que seria capaz de amar. Com certeza que sim. Seria possível escolher a pessoa que se deseja amar? Não podia negar que se sentiu desapontada por Rafael ter ido embora, poderiam ter passado a noite juntos e... Nesta hora sentiu um tremor no estômago ao se lembrar
daquele olhar penetrante de Augusto quando se viram no restaurante. Eduarda se levantou lentamente e foi tomar um banho. Imagens do médico invadiam sua mente sem pedir licença. Não estava a pouco com Rafael entregue? Quando foi que começou a pensar em Augusto? Era melhor ir dormir e no outro dia, pensaria sobre isto. Depois do banho, Eduarda se deitou e fechou os olhos para dormir. Seus sonhos, com certeza, seriam azuis!
VII
E
duarda não queria levantar quando ouviu o despertador tocar. Não... Precisava de mais umas três horas de sono! Com dificuldade levantou. Precisava tomar um banho para ter ânimo, pois estava com o tempo contadinho e não podia fazer hora. Saiu com bastante pressa e sabia que seu dia seria assim, tumultuado, agenda uma atrás da outra e não teria muito tempo livre. Sentiu-se aliviada ao lembrar que no outro dia era a consulta com o Dr. Augusto. A imagem de Dariana veio-lhe à mente, dizendo que precisava parar com estas ilusões a respeito de seu médico, então decidiu que aquela terça-feira seria a última consulta. Já estava indo longe demais com aquilo e não podia se permitir comportar daquela maneira. Era adulta e sabia que precisava parar com os sonhos e devaneios a respeito de seu médico e o único jeito seria parar de vê-lo... Porém só de pensar nisto, sentiu um tristeza profunda, mas era preciso. Teve um dia cheio no Ministério Público. Após findar sua jornada naquele dia, foi para casa se preparar para a aula à noite. Uma colega de faculdade ligou e pediu para trocar o dia de aula com ela. Precisaria faltar na quinta-feira e perguntou se poderia cobri-la e ela iria em seu lugar na terça. — Tudo bem, Marli. Claro que sim. — Obrigada. Então era isso, estaria de folga naquela noite. Estava preparando seu jantar quando ouviu a campainha do seu apartamento tocar. Achou estranho, ninguém da portaria havia avisado pelo interfone. Devia ser um vizinho, já que Rafael se encontrava na faculdade. Nem se preocupou em verificar quem estava na porta e abriu-a de uma vez e ao
avistar a pessoa de pé ali, engoliu em seco e mal pôde respirar. Não sabia o que dizer nem o que pensar. O homem parado a sua porta estava com uma das mãos no marco da porta, acima de sua cabeça, barba por fazer, camisa para fora da calça, com os primeiros botões abertos. Incrivelmente sedutor, apesar de nunca tê-lo visto assim tão desalinhado. Não conseguia dizer nada. Ficou presa naquele olhar. Foi então que se lembrou: precisava respirar. Respirou fundo. Aquele olhar... Como explicar as próprias reações diante daquele olhar!? De todas as pessoas do mundo, jamais imaginaria que fosse ele. Não conseguia se mover, nem dizer nada. — Oi. — Oi – foi o que conseguir responder. Ele passou a mão pelos cabelos e disse: — Desculpe a invasão. O porteiro não estava lá embaixo e aproveitei que outro morador entrou e entrei junto. Posso entrar? Preciso conversar com você. — Po-de. Pode, claro! Desculpa. Ele entrou e ela fechou a porta, mostrando-lhe o sofá, mas Augusto se virou e foi logo dizendo: — Desculpe mais uma vez por vir sem avisar, mas não conseguia mais esperar. — Estou surpresa... Confusa. — Eu sei. Eu também. — Confesso que jamais pensei nesta possibilidade. Estou sem palavras. — Não vou dar rodeios Eduarda, vou direto ao assunto. — Está me assustando... — Poderia inventar tantas coisas para dizer. Tenho uma amiga nesse prédio, já te disse isso? — Sim – estava sem reação e não conseguia se estender em suas respostas. — Não precisa se assustar, ou talvez precise. Ela arqueou a sobrancelha, perplexa, mas feliz. Foi
quando se deu conta que além do susto, estava tremendamente contente por vê-lo ali. Sentia-se uma adolescente com o coração acelerado, tremores, ansiedade, dificuldade para raciocinar... Não conseguia nem mesmo conversar. Diante do silêncio ele continuou: — Não sei como interpretar seu silêncio. — Desculpe. Realmente estou surpresa... Você faz isso comigo! – disse baixinho. Ele ouviu, olhou-a com seriedade e continuou: — Eu tentei inutilmente incutir sentimentos mais sensatos. Em vão venho lutando comigo mesmo, mas nada consegui, então preciso ser honesto e agir com ética. Não poderei mais ser seu médico. Ela fez uma expressão de surpresa e desapontamento. — Mas... — Não consegui esperar até amanhã para lhe dizer no consultório. Por isso vim para te falar pessoalmente. Não queria que fosse lá. Poderia ter pedido à secretária para desmarcar e inventar algo, mas não posso. Tem algo que preciso dizer e precisa ser pessoalmente. — Estou ficando cada vez mais assustada... — Eu também estou assustado. Esta situação é completamente nova para mim. — Confesso que você tem me ajudado muito. — Eu sei. Talvez possa continuar ajudando. — Eu fiz algo errado? — Não – disse com um olhar perigoso — Depois de terça também refleti muito. Suas palavras me encorajaram a estar aqui agora. Você disse que não queria mais se lembrar de Bruno e se eu não agir, a oportunidade vai passar e será tarde demais, para mim. — Não estou compreendendo direito. Fiz algo errado? — Nada. — Sei que meu caso é diferente, mas confio em você! — Não devia.
— Como? Ele respirou fundo. — Você me procurou no consultório, me contou seu caso e me pediu para ajudá-la a se lembrar de Bruno! — Sim e sei que pode ser que eu nunca mais recupere a memória. Você deixou bem claro! E eu não quero mais. Já disse – estava desesperada! Não queria parar de vê-lo. Mesmo sendo como médico precisava dele! — Confesso que estava tentando encontrar um jeito de lhe dizer que não queria mais fazer a terapia, mas que não queria parar de encontrá-lo... – as últimas palavras saíram quase inaudíveis e ela corou de vergonha e isso foi o suficiente para acender a chama em Augusto. — Por que quer me ver Eduarda? – havia um brilho diferente em seu olhar. Era como se uma luz houvesse acendido. — Eu-eu não sei dizer. Você me faz bem! — Como? Ela ficou em silêncio. Não sabia o que dizer. Melhor, estava com medo de dizer. — Eu sei Eduarda, é que não posso ajudá-la. Desculpe-me, mas não poderei ajudá-la a se lembrar de Bruno! — Eu... Eu... Não sei o que te dizer – seus olhos estavam lhe traindo e por mais que lutasse as lágrimas inundavam seu olhar — Por quê? – foi o que conseguiu perguntar. — O motivo é que EU... – deu ênfase à palavra — Não quero que se lembre do Bruno – ele a encarou neste momento e ela não sabia se ria, chorava ou se fazia cara de espanto... Simplesmente não disse nada. Não sabia o que fazer. — Sei que não está entendendo nada... — Doutor Augusto... Ele a interrompeu aproximando-se mais. Passou as mãos pelos cabelos e falou: — Tive certeza disso ontem. Quando te vi no restaurante. Eduarda então se lembrou de Dariana e novamente aquele ciúme ardeu-lhe o peito.
— Eu estava com uma... – ele sentiu dificuldades em pronunciar. — Uma namorada. Ele a olhou com ternura. — Mais ou menos isso. Naquele instante tive a certeza do que estava se passando comigo. Não somos namorados, apenas saímos juntos de vez em quando. Nunca houve um compromisso certo entre nós. Por que aquela notícia a deixava tão feliz? — Não queria que tivesse me visto com ela, e depois não consegui mais disfarçar e acabei contando tudo a Dariana. — Contado o quê? Ele ignorou a pergunta e continuou: — Ah, Eduarda, você foi ao meu consultório pedir ajuda profissional para se lembrar de seu passado, seu ex-noivo... E não posso fazer isso... Na verdade eu não quero, Eduarda. Pode parecer loucura, e quero que saiba que nunca fiz isso em minha vida, sempre fui muito controlado em minhas atitudes até o dia em que te vi pela primeira vez! Eu... – fez uma pausa, olhando profundamente para ela — A desejo e estou totalmente, absurdamente atraído por você. Estou apaixonado. Não consigo pensar, desejar outra coisa... – sua voz ficou trêmula e suave — A verdade é que quero você pra mim. Eduarda sentiu as pernas bambearem, as borboletas voltaram a lhe revirar o abdômen e suas mãos ficaram geladas. Ela não esperava por essa declaração tão clara e direta, apesar de pressenti-la. Achava que era fruto de sua imaginação, que estava vendo coisas demais. Achou que era seu desejo que fosse verdade e que a fazia ver coisas onde não existiam, porém agora sabia que não era loucura. Não conseguiu dizer nada, estava paralisada, anestesiada, embriagada por aquelas palavras. Ainda não acreditava que tinha ouvido o que tanto desejou. Como Eduarda nada disse ele falou: — Desculpe se extrapolei o limite. Não sou de enrolar
em nada. Sempre fui decidido e fui atrás de tudo que desejei. Relutei em estar aqui hoje, mas não fui capaz de resistir... Tenho interesse em você de uma forma nada profissional e por ética te indico outro médico. No entanto, agora quem fala com você sou eu, Augusto. Ele se aproximou dela e a olhou diretamente nos olhos. — Será que tenho chance com você? Ou seu coração já foi ocupado por outro? Como eu disse, é uma situação nova para mim. Não sei como, mas me envolvi sentimentalmente. E só penso em você, dia e noite! A verdade é que não quero que se lembre de Bruno, desejo que jamais torne a vê-lo e que... – ele abaixou a cabeça. Por um instante se sentiu tolo e vulnerável, mas tornou a encará-la e continuou: — Sinto-me tolo ao fazer estas declarações, mas, garanto-lhe que são sinceras. Não sei o que pensa sobre tudo e se não quiser me ver nunca mais, entenderei. Ela já não era uma adolescente e não queria negar aquele sentimento, que era recíproco. Não queria deixar escapar a chance de ser feliz. Ele tivera coragem de se declarar, também precisava ter. Deu dois passos à frente e já estava bem perto dele, ouvindo e sentindo sua respiração profunda. — Não encontro as palavras certas para responder a sua pergunta. — Ah, Eduarda... Ela colocou os dedos nos lábios dele, indicando que devia fazer silêncio. — Ah, doutor! Será sempre o meu doutor! Que me resgatou, que abriu as chaves da prisão e me libertou. Trouxeme de volta para mim e assim me permitiu entregar a este momento, que é o que eu mais desejo, desde sempre! Desde o primeiro dia, o primeiro olhar. Você estremeceu todo o meu alicerce e derrubou os muros que construí. E a cada dia me reconstruiu com suas palavras e seu olhar. Você me curou! Ele segurou suas mãos com imenso carinho e desejo. — Procurei respostas, procurei o motivo por sentir-me tão
suscetível diante de você, quando descobri, não pude evitar estar aqui hoje. E que bom que estou aqui! — Hoje eu tenho também a resposta para tudo que sentia diante de você. — Sentia? Não sente mais? – ele sorriu-lhe daquele jeito que a fazia esquecer-se de qualquer coisa. Sentiu-se corar e respondeu bem baixinho, timidamente: — Eu sinto. O olhar de Augusto iluminou-se na hora e não conseguiu mais se conter, respirou fundo e aproximou-se mais dela e a beijou. Como desejou aquele momento nestes últimos dias! Não sabia explicar, mas era como se tivesse vivido toda a sua vida a espera daquele instante. Augusto nunca havia beijado alguém com tanto desejo, carinho e avidez. Eduarda também se entregou ao beijo por completo. Sentiu que jamais havia sido beijada com tanto desejo e nunca havia desejado tanto beijar alguém. Abraçou-o forte, por um instante e em seu subconsciente teve medo de perdê-lo. Ele a puxou para si e a abraçou com toda ternura. Sabia que precisava controlar sua concupiscência. Usou de todo seu autocontrole e permitiu-se curtir aquele momento com o desvelo que merecia, controlando seus desejos. Ficaram abraçados e em silêncio por instantes e depois ele a puxou para o sofá e a fez sentar perto de si e segurando suas mãos falou: — Desejo você como há muito tempo não desejo ninguém. No entanto, sinto que é muito mais que uma atração física. Quero namorar você, Eduarda! Sei que hoje este termo parece ultrapassado, mas sou assim, sério e com alguns princípios conservadores que podem parecer antiquados. Não quero apenas passar o tempo. Claro que o futuro a gente não sabe, mas quero que saiba que é sério para mim. Não sei quando começou ao certo, mas sei que desde o primeiro olhar, você me despertou para estar aqui hoje. — Eu também, Augusto. E preciso confessar que só ia às
consultas para ficar perto de você. De alguma forma meu coração se ligou ao seu e não conseguia me afastar. Não queria mais fazer terapia para me lembrar de nada, porém desejava estar com você. — Não quero forçar a barra Eduarda, porém quero conhecer você mais, ficar com você. Aprofundar esta relação com nossa convivência. Não sou adolescente, mas estou adorando estar me sentindo um... Sabe esse friozinho na barriga, coração acelerado... Faz muito tempo que não me sinto assim. Mas tem o Bruno... — Eu achava mesmo que ia ser uma bobagem tentar me lembrar dele, porque se já fiz de tudo e não me lembrei, sentia que era perda de tempo. Sentia um vazio, uma escuridão em minha vida, por isso te procurei. No entanto, me apaixonei por você e não penso em nada além de você. Senti-me uma tola, pois pensava “como um médico, bonito daquele jeito vai olhar e se interessar por uma problemática como eu?” e desde a primeira vez que nos vimos... Aquele vazio, aquela tristeza foi dando lugar para essas emoções e me sinto bem! — Apaixonada? Novamente sentiu-se corar. — Não precisa se envergonhar, eu também estou assim: apaixonado por você. Não vamos prometer nada um ao outro, vamos apenas viver e com o tempo teremos mais consciência dos nossos sentimentos e então decidiremos o que fazer. O que acha? Ela sorriu para ele. — É tudo que eu mais quero agora. Viver essa história sem ficar preocupada com o amanhã. De repente ele mudou a feição no rosto. Estava sério. — Quando se lembrar do Bruno, gostaria de ser o primeiro a saber. Ela ficou olhando para ele, tentando decifrar aquela expressão e saber o que se passava em sua mente. Por que lhe pedira aquilo, não via problema nisso então ela respondeu: — Claro que te avisarei. Não fique mais preocupado
com Bruno... – ele a interrompeu com outro beijo. Tinha pressa em ser feliz e fazê-la apaixonar-se mais. — Sei dos riscos que corro. Sei que foi um trauma e que com certeza você o amava, e que talvez sua dor, seu trauma emocional e o trauma físico fizeram este bloqueio na sua memória. Sei que pode se lembrar dele e o amor voltar, mas fiz minha escolha de tentar fazer você me amar de uma forma tão profunda, que não sobre nada dentro de você a não ser nosso amor! Eduarda sentiu o salgado das lágrimas. — O que houve? Por que chora? — Não sei te explicar, Augusto, mas suas palavras me tocaram de uma forma tão profunda! Eu amei ouvir tudo isso e também desejo o mesmo. Nunca ouvi nada mais lindo em minha vida. Sinto que vivi toda a minha vida para viver este momento, para estar aqui hoje com você. Pode parecer loucura, mas sei que o que temos e teremos será eterno. — Já que descobrimos o remédio para nossas angústias e desejos, vamos nos perder neste sentimento, e sei que o efeito colateral será apenas a felicidade! Aquilo que parecia impossível havia se tornado realidade e Eduarda estava vivendo um momento considerado por muitos como ilusão e ela sabia que estava em um caminho sem volta. Augusto a beijou novamente, a princípio um beijo leve, que passou a ser fugaz, um beijo que despertou todos os seus sentimentos e havia deixado rastros permanentes não apenas em seus lábios, e seu corpo, mas também em sua alma. Eles já sabiam, mesmo sem dizer, a importância e o tamanho daquele sentimento.
VIII
O
s dias e meses se passaram. Era muito bom viver esta fase inicial de um relacionamento onde ambos estão apaixonados: emoção, entusiasmo, interesse, fascínio, arrebatamento, desejo, gosto, ardor, chama, afeto, atração, apego, amor, flama, e tudo isso existiam simultaneamente. Estudos científicos comprovam que a paixão mexe verdadeiramente com níveis de dopamina e norepinefrina no cérebro, o que faz com que tenha efeitos como suor, tremedeira, euforia, perda de apetite, coração e respiração acelerados, causa ansiedade, mudanças de humor, entre outros efeitos. Eduarda leu uma reportagem de pesquisadores sobre os efeitos da paixão, que são bastante parecidos com os efeitos causados no cérebro pelo uso de drogas. Ou seja, a pessoa apaixonada ativa as mesmas regiões do cérebro quando vê uma fotografia, escuta sua voz, ou está com a pessoa, etc... Ou quando usam drogas. Estar apaixonado, segundo os pesquisadores, é uma forma de vício, no entanto, esta afirmação não é uma apologia ao uso de drogas, ao contrário. A paixão é algo saudável e natural do ser humano. Eduarda não duvidava, porque sentia mesmo todos esses efeitos. Leu a reportagem e concordou com tudo. Dizem que quando você está apaixonado, começa a pensar que aquela pessoa é a escolhida, a única certa para você. Tendem a se concentrar nas qualidades positivas ignorando seus traços negativos. Notadamente leva a uma instabilidade emocional e fisiológica, salta entre alegria e euforia. Era exatamente assim. Sentia-se cada dia mais envolvida com Augusto e seu nível de dependência aumentava, desejando passar mais tempo ao seu lado.
Eduarda se via pensando nele muitas horas de seu dia. Ele possuía infinitas qualidades: era sério, organizado, disciplinado, era encantador, sedutor, tinha um bom humor incrível e claro, era lindo! Não conseguia encontrar defeitos! Os dois adoravam passear juntos, ouvir músicas, assistir a filmes, séries, cozinhavam juntos, enfim, gostavam de fazer tudo juntos! Augusto também era muito responsável, metódico, perfeccionista, ela não enxergava estas características como defeitos e sim como qualidades, entre outras. Havia muitas coisas em comum como o fato de amarem a leitura: ler por prazer. Talvez estivesse naquela fase onde a paixão faz com que as pessoas não vejam os defeitos ou se veem não se importam porque estão embriagados, dependentes daquela pessoa. É um senso comum à falácia que a paixão é cega, mas no seu caso... Estava sim completamente cega, vulnerável diante daquele sentimento. Já fazia oito meses que estavam juntos e o clima romântico continuava, todo dia era um novo dia, melhor que o anterior. Raramente pensava em Bruno, cada vez mais esse assunto desaparecia e sua importância se tornava insignificante. Conseguiu retomar a vida normal, não se sentia mais perdida e angustiada. Conseguiu voltar a se socializar com amigos e colegas de trabalho. Também contou para Rafael de seu envolvimento com outra pessoa. — Lamento não ser eu esse cara de sorte. No entanto, fico feliz em saber que encontrou alguém e vai recomeçar sua vida! – foram as palavras dele para ela. Havia tristeza em seu olhar. — Rafa, acho que se tivéssemos saído antes eu... — Por favor, não tente explicar. Não torne este momento pior do que já está sendo. Apenas diga que está com outra pessoa e ponto. — Me desculpe, só queria que soubesse que não foi um caso qualquer. Você foi realmente especial e meu coração chegou a bater por você. — Ah, Eduarda... Eu sei que estas coisas a gente não escolhe e
sim sente. Lamento que seu coração não se prendeu ao meu, porque agora terei que desfazer as amarras que o meu fez com o seu. Ele a abraçou com ternura e Eduarda sentiu imensa tristeza. Não queria ter sido a causa daquele sofrimento. Continuaram bons amigos, conversavam e trocavam experiências no trabalho. A única situação que ainda estava estranha era com Alice. Falavam-se, mas havia algo entre elas... Alice não aceitava naturalmente seu envolvimento com Augusto, apesar de dizer que desejava que fosse feliz e que torcia por eles. Nesse caso, era melhor esperar o tempo resolver as coisas, mas sentia falta da amiga e queria que isso se ajeitasse logo.
IX
O
final de semana foi tranquilo e para Eduarda foi sensacional. Todos os dias ao lado de Augusto eram maravilhosos, mas naquele dia haviam almoçado na casa dos pais dele. Conheceu toda a família: A mãe Adriana e os irmãos Érica e Anderson. O pai de Augusto havia falecido há oito anos. Gostou deles. Eram alegres, no entanto, reservados e mais tímidos. A mãe dele lembrou-se dela dos noticiários do acidente, fez várias perguntas, mas ela não se importava em responder. Já Augusto ficou irritado. Podia ver a expressão de desagrado em seu rosto. Não se importava em falar sobre o passado, mas ele preferia evitar. Mesmo assim, a manhã e o almoço foram muito agradáveis. Posteriormente foram ao cinema, passearam pelo shopping e já era noite quando foram embora para a casa dela. Gostavam de ficar lá. Ela morava sozinha, então não incomodavam ninguém e tinham a privacidade que precisavam. Estavam deitados no sofá ouvindo músicas quando Eduarda, de súbito, perguntou: — Augusto, por que você ficou irritado com sua mãe? Sabe que não me importo de falar sobre o acidente. Ele a olhou e respondeu: — Eu também não me importo. O que sinto é medo. Medo de uma dessas conversas fazer você se lembrar dele e do amor que sentiu e que esse sentimento volte a encher seu coração. Não percebeu ainda? Tenho medo deste momento chegar e perder você! — Querido, esse medo não é lógico. Já lhe falei que não corre este perigo. — Você não se lembra de nada. Não sabe a dimensão do sentimento que tiveram.
— Você fala como se soubesse. Ele olhou para o teto e desabafou: — Nunca te falei por medo, mas conheci Bruno. Ela olhou para ele, não acreditando no que acabara de ouvir. — Por que nunca me disse? — Fui estudar seu caso, logo no início quando ainda era minha paciente e vi as reportagens na internet e em uma delas tinha uma foto dele e o sobrenome: Bruno Alcântara. Lembreime dele. Chegamos a trabalhar uma época no mesmo hospital. Não éramos amigos, mas convivíamos e ele sempre falava que não podia sair com a turma porque ia encontrar a namorada, sempre falava que a amava. Estas lembranças me fizeram sentir um ciúme tão grande... Uma raiva dele por ter te abandonado. Foi quando percebi o que estava realmente sentindo por você. Passei o final de semana inteiro em silêncio sem saber o que fazer com aquela informação. Tive receio em te contar. Fui conversar com Doutor Pedro e ele me aconselhou a falar toda a verdade para você. Depois de muito pensar, resolvi esperar para te contar, por dois motivos: não queria que sentisse em relação a mim o mesmo que sentia com as pessoas que conheciam Bruno, que eles sabiam de sua vida mais que você e porque precisava colocar meus sentimentos no lugar, decifrar meus próprios enigmas, para depois esclarecê-los a você. — E por que está contando agora? Podia guardar isso para você. Eu nunca iria ficar sabendo. — Meu amor... Quando Augusto se referiu a ela com aquela expressão “meu amor” sentiu uma alegria tão grande. Amava a voz daquele homem e ele dizendo aquelas palavras... A raiva que sentiu minutos antes se desfaleceu. — Não quis enganá-la. Apenas não sabia o que fazer. Nunca menti para você ou te escondi nada. Estou contando agora porque a oportunidade apareceu. Falei pra gente viver sem compromisso, sem pensar no amanhã, sem fazer planos. Lembra-se?
— Claro que sim. Eu concordei com isto. — Eu sei. Mas nunca quis isto de verdade, desde o início sempre quis mais com você, só não queria assustá-la. — Hã? — Quero fazer planos, quero viver com você, eu te amo Eduarda. Eu te amo! Eduarda se emocionou. Eles estavam juntos há meses e nunca havia trocado aquelas confidências de amor. Ela não resistiu e o abraçou emocionada. — Estava com medo de não ouvir essas palavras. Esperei ansiosa em cada encontro nosso para ouvir você me dizer... Eu te amo. Ele a segurou pelos braços, fazendo-a olhar para ele. — Eu te amo... — Também te amo, Augusto. E os seus desejos são os meus também. — Eu te amo desde o primeiro olhar. Já sabia que era mais que paixão, só não disse antes porque não queria que se assustasse me achando um louco. — E eu apenas esperando porque não queria que achasse que era tola e infantil demais. Ele a beijou e dessa vez sem reservas, sem medo. Ambos não precisavam mais esconder seus verdadeiros sentimentos. O beijo estava cada vez mais diferente e o desejo se elevou a outro nível. Preocupação, reservas, timidez, tudo desaparecera. Augusto nunca, nunca desejara ninguém como ela, porque na verdade não havia amado ninguém antes, contudo, só se sabe quando se ama de verdade, quando este sentimento arrebata todo o seu ser e te leva para outro patamar. Ele, que sempre fizera um esforço enorme para não ultrapassar os limites e deixar que ela sentisse segurança em relação a si, já não conseguia mais reprimir seus desejos, havia alcançado um nível de excitação incontrolável. Eduarda havia dito que o amava e foi a faísca necessária para acender aquela chama que ele sempre continha com muitos esforços.
Entregaram-se um ao outro e foi o momento mais bonito entre os dois. Ela teve certeza que seria assim todos os dias. Eduarda não se lembrava de se entregar, de amar assim antes. Ela o amava e isso fazia aquele momento tão especial e mágico. Augusto a tocava com desejo e ternura, contrariando seus instintos físicos, que tinham pressa. Esperou ansioso por este momento, mas precisava saber que ela estava preparada, que também queria, não desejava apressar as coisas, mas ansiava estar assim com ela desde sempre! Era como se estivesse em seu mais belo sonho e não queria acordar. Ele a olhava e a tocava como algo precioso e delicado, mas com vontade e desejo. Tinha pensado naquele momento milhares de vezes, mas nada do que imaginara, nada do que criara em suas fantasias chegava perto da realidade, do quão doce e sensual era estar com Eduarda. — Quero me casar com você, Eduarda. Você aceita se casar comigo, em um futuro... Próximo? Ela poderia ficar horas olhando para ele sem dizer uma palavra. Amava aquele homem e sua presença era avassaladora. Sentiu uma alegria inconcebível e inédita. — Claro que sim. Eu te amo! – sussurrou em seu ouvido. Ele a encarou com um sorriso nos lábios: — A gente só sabe o que é o amor verdadeiro quando o encontra. Podemos ouvir falar, imaginar... Quantas vezes nos envolvemos com alguém e acreditamos ter encontrado o amor verdadeiro. Sofremos, choramos quando acaba. Já vivi isso algumas vezes, mas nunca, nunca senti nada igual por ninguém, nem parecido com o que sinto por você, Eduarda. E a noite foi mágica para ambos. Selaram uma promessa de um futuro, juntos... Eduarda tinha certeza, amaria aquele homem por toda a sua vida. — Sabe aqueles filmes, com amores imortais que ultrapassam a vida, superam qualquer obstáculo... Aqueles que te fazem chorar de tão meloso e lindo? — Humm?!
— Sinto-me o protagonista! — Você assiste filmes assim? — Oh! Não muito, apenas quando sou obrigado. As namoradas fazem isso com os namorados, sabe? Mas este, em que sou o protagonista, confesso, nunca cansarei de repeti-lo. — Então somos namorados? — Claro que não! Ela o encarou surpresa. — Você aceitou se casar comigo, agora somos noivos! — Oh! Achei que fosse a mocinha dos seus filmes... — Garota, é a mocinha mais linda, mais amada! Não tem ideia do que sinto por você. E assim recomeçaram tudo de novo.
X
O
amor, a cumplicidade e o companheirismo faziam parte dos dias de Eduarda e Augusto. Ficavam mais unidos a cada dia. Ela já não se importava mais com Bruno e seu passado esquecido. Felicidade era algo maravilhoso, os dias passavam como se tivessem chegado ao “feliz para sempre”. Sorte a dela, porque normalmente só acontecia no final e sua história com Augusto estava apenas começando. Faziam quase três anos que o conheceu e sua vida era repleta de realizações e felicidades desde então. Planejaram o casamento para o próximo janeiro, dia que comemorariam quatro anos de namoro. Resolveram construir a casa onde iriam morar, Augusto já tinha o terreno e ela concordou em construir a casa do jeito que eles sonhavam. Anderson, o irmão dele, era engenheiro e fez a planta da residência e acompanhava toda a construção. Estavam sempre lá e acompanharam tudo de perto. Sabiam que a casa estava em boas mãos, mas gostavam de monitorar, planejar e sonhar. Já estava na fase de acabamento final e bem adiantada, quase pronta. Ela e Augusto marcaram de se encontrar na casa no horário de almoço para ganhar tempo. Eduarda estacionou e não avistou o carro de Augusto, que devia estar chegando e resolveu entrar e olhar enquanto o esperava. Os funcionários da obra andavam de um lado para outro, concentrados em seu serviço, até que Anderson a avistou e a cumprimentou. — Como vai Eduarda. Tudo bem? — Oi Anderson, tudo bem, e você? Augusto não chegou ainda?
— Não! Eduarda olhou a sala onde entrou e foi andando pelos cômodos da casa. — Está ficando linda! — É verdade. — Quando acha que fica pronta? — Em breve – respondeu secamente. — Como sempre monossílabo comigo – sussurrou para si mesma, mas Anderson ouviu e respondeu: — Serei direto. Não tenho nada contra você, apenas acho que este casamento não vai para frente! Eduarda foi tomada pela surpresa daquelas palavras. — Como? Não consigo imaginar o motivo de pensar assim. Ele suspirou. — Isso não tem importância. Quem tem que decidir e enxergar as coisas é meu irmão. É a vida dele. Só preocupome com ele, e infelizmente não consigo visualizar esta felicidade por muito tempo. — Já que começou, pode terminar? — Está obvio, sei que vai deixar meu irmão quando o outro lá voltar. — O quê? Você conhece Bruno? — Sim. — Como? Onde? – estava perplexa. — Por que o interesse? Sentia-se confusa. — Não é nada do que possa estar imaginando. É que nesse caso, você sabe de coisas sobre minha vida que eu não sei e fico me perguntando o motivo de ter escondido isso até hoje. Isto me incomoda. Ele a olhou e respondeu duramente. — Não devia se incomodar com isso se a felicidade com meu irmão fosse suficiente para você. Ele sempre será um mistério entre vocês e todo mistério é muito sedutor.
— Então como... Ah, deixa pra lá. Bruno não vai voltar. — E se voltar? Ela o encarou: — Nada vai mudar. — Tem certeza disso? – ele não esperou resposta e acrescentou — Olha, quando Augusto chegar diga que não pude esperar e tive que voltar para o trabalho. Até. Eduarda o olhou caminhar para seu carro, que estava estacionado na rua e pode ouvir Anderson sussurrando: — Não poderá fugir para sempre! Fazia muito tempo que não pensava em Bruno. Fazia cinco anos que ele se foi de sua vida e depois que começou a namorar Augusto ela não tentou mais se lembrar dele. Era verdadeiramente feliz com seu noivo, desejava se casar com ele e ficar ao seu lado para o resto de sua vida, então por que Anderson pensava daquela forma? Sempre percebeu que ele era um pouco seco, que a evitava, mas nunca poderia pensar que fosse por causa disto. Sentiu-se desconfortável e resolveu ir embora. Ligou para Augusto, inventou que estava cansada e voltariam depois. Havia perdido a graça e o entusiasmo. Foi direto para casa pensativa no fato ocorrido e resolveu deixá-lo cair no esquecimento, não iria comentar nada com Augusto, porque não queria fazer intrigas entre os irmãos. O casamento estava próximo e tinham coisas mais importantes para ocuparem a mente, precisava adiantar o trabalho. Trocou de roupa, preparou um suco e começou a corrigir algumas provas e trabalhos, no meio estava um folheto, com a proposta de um curso que queria fazer. Era no Rio de Janeiro. Olhou a data e ficou pensando se Augusto não poderia acompanhá-la ou encontrá-la depois. Havia comentado sobre e ele lhe deu apoio, mas não queria viajar sozinha. Por outro lado, se ele fosse, ficaria a maior parte do tempo sozinho, pois ela estaria no curso. Realmente queria fazer o curso, então foi para o computador e fez sua inscrição, imprimiu o boleto para
pagar a taxa de inscrição e ligou para o hotel indicado para quem fosse fazer o curso e fez sua reserva. O próximo passo seria comprar as passagens áreas. Ficou um tempo navegando pelos sites das companhias em busca de um bom preço até que encontrou e fechou a compra. A internet facilitava muito as coisas. Fez tudo sem sair de casa! Ouviu o interfone tocar e atendeu: — Oi. Tudo bem? Pode deixar subir. Logo em seguida a campainha tocou. — Oi amiga. — Oi Alice. Estava sumida! Senti sua falta. Alice entrou e abraçou a amiga, que fechou a porta em seguida. — Quem é que não tem mais tempo pros amigos aqui? — Para com isso Alice. Estou sempre te ligando, te chamando para sair com a gente... — Esse é o problema. Com a gente. — Pare com essa implicância. — Tudo bem que o Dr. Augusto mais parece com um deus grego de tão lindo e que a companhia dele no momento é mais interessante que a minha, mas precisa cuidar de suas amizades. — Oh meu Deus! Ataque de ciúmes... — Estou brincando amiga. Sei perfeitamente que a companhia masculina é bem melhor que a minha. Ainda mais seu doutor da beleza e sedução! Eduarda riu da amiga. — Não sabia que tinha voltado. Depois que foi trabalhar no Rio quase não veio mais me visitar. Preciso te dizer uma coisa, Alice. Ela a olhou, curiosa. — Lamento muito por Cláudio! — Ainda sinto muita falta dele! – falou com olhar marejado de lágrimas! — Vamos mudar de Assunto? Estou de passagem e retorno depois de amanhã para o Rio.
— Já? Vai ficar tão pouco tempo assim? Posso te falar uma coisa? Fiquei muito chateada quando arrumou este serviço. Não me disse nada, não se despediu, apenas me ligou e contou quando já estava no Rio. — Não queria te encher com meus problemas. Você está tão irritantemente feliz que não quis lhe trazer problemas. Mas hoje eu vim. — Alice! Você não me atrapalha! Elas riram e conversaram horas. — Então vocês vão se casar mesmo? — Tudo certo já. E espero que você venha. — Claro que sim. Não poderei perder este momento tão especial para você – Alice ficou com um olhar cinza e frio. — Queria que fosse minha madrinha. Sabe disso... — Eduarda, eu não posso! É muito difícil para mim, me desculpe! — Eu te entendo, Alice! No entanto, não abro mão de sua presença! — Estarei lá. Nossa! Lembrei-me agora daquele dia. Sabia que hoje faz quatro anos daquele acidente maldito? — Também me lembrei – falou com evidente tristeza. — Eu e Cláudio estávamos com você no carro. Foi um pesadelo! O resgate chegou, você desacordada, toda ferida, cheia de sangue... Cláudio imóvel ao meu lado, eu chamava e ele não me respondia... Já estava morto! – ela enxugou as lágrimas com as mãos — Nossa, foi um horror! E hoje estamos aqui, graças a Deus para lembrar daquele dia que eu gostaria que fosse apagado da memória – Alice continuava enxugando as lágrimas. — É piada né? – falou também emocionada. — Nossa Eduarda, será que não foi isso? Será que no seu inconsciente o trauma foi tanto que você decidiu apagar da memória aquele dia? — Alice, eu já superei esse assunto. Lembre-se que eu não apaguei aquele dia, foram seis anos de namoro...
— É verdade. O tempo passa depressa demais. Já tem quase quatro anos que você está com o doutor beleza. — Completaremos quatro anos no dia do nosso casamento, daqui quatro meses e meio. Bruno escreveu de novo? — Sim, como sabe ele escreve de três em três meses para minha mãe. Não trouxe para você ler porque pediu que não trouxesse mais. — Eu sei. Estou com Augusto, sou muito feliz e o amo demais! Ele tem medo dessa história, então resolvi deixar pra lá. Não me fazem falta essas lembranças... Você não teve notícias dele? Alice ficou com o olhar perdido no espaço e desviou-o para que Eduarda não pudesse fitá-la. — Não muitas. Nada que possa acrescentar algo para você. Eduarda teve a sensação que a amiga escondia alguma coisa, mas sem dar tempo para pensar, Alice continuou: — Continuo achando que você está fugindo, assim como meu irmão. Tudo bem, ele te abandonou, você conheceu o Augusto, um cara super legal e SUPER lindo. Acredito no amor de vocês, mas sua história com Bruno não foi encerrada. Vocês não tiveram a conversa final sabe, aquela que põe um ponto final. — Mas quem foi embora foi ele. — Eu sei, como sei também que um dia vocês ainda vão ficar frente a frente. — Vou me casar dentro de poucos meses. Acha mesmo que penso nisso? — Sei que não, mas devia. — Não quero mais falar do Bruno. Por favor! — Tudo bem. — Só mais uma coisa Alice, nestes quase quatro anos, você não viu Bruno? Nem sua mãe? Ele realmente desapareceu? – insistiu. Ela olhou para amiga de forma misteriosa. — Eduarda, é complicado, mas entendo Bruno. Nas
próprias cartas ele é muito evasivo e sei que um dia ele voltará definitivamente... E os preparativos do casório, como estão? — Tudo certo, graças a Deus. Será uma cerimônia muito simples e pequena. Ah! Estou indo para o Rio de janeiro, vou fazer um curso lá. — No Rio? Quando? — Em junho, próximo mês. Quem sabe nos vemos lá? — É verdade. Quem sabe... Conversaram por mais um longo tempo e Alice foi embora. Só a veria de novo no dia do seu casamento ou no Rio, se tudo desse certo. Seria muita coincidência? No dia que completava quatro anos de seu acidente, duas pessoas vieram lembrá-la de Bruno. Seria algum sinal? Não. Era apenas coincidência! ooo À noite Augusto estava com Eduarda, revendo detalhes da cerimônia, que seria simples, porém elegante, por decisão dela. Repassaram a lista de presença para mandar para a gráfica. Seriam para poucas pessoas, amigos íntimos e familiares... Eduarda respirou fundo ao se lembrar de seus pais, de sua casa, de sua irmã. Sentiu tanta saudade... Por que estava vivendo tudo aquilo? — Você não me esperou hoje. O que houve? A pergunta de Augusto a tirou de seus pensamentos. — Nada! Realmente tive um mal estar, deve ser o calor, precisava vir embora tomar um banho e descansar um pouco. — Você viu como a casa está adiantada? Mais 15 dias e estará pronta! Eduarda se lembrou de que não entrou na casa toda e não pode ver como as obras estavam adiantadas. Ficou em silêncio, estava pensando em qual resposta daria para Augusto. — Você está estranha! Está acontecendo algo? – perguntou Augusto preocupado. — Não! Nada errado. Na verdade não entrei na casa toda.
— Não? Mas...? — Eu fui até lá, entrei na varanda e sala, fiquei te esperando. Quando seu irmão me disse que se atrasaria, resolvi vir embora diante do mal-estar e quis esperar para entrar com você na casa. Não tem graça ver sozinha! — É só isso mesmo? — Claro que sim. — Já disse, você está estranha. — Na verdade estou apreensiva com aquele curso que quero fazer. É no início do mês e nestes três anos não me separei de você... Será que não tem possibilidades de ir comigo? — Sei que também vou sentir sua falta, não sei como vou ficar todos esses dias longe de você, mas sei que precisa e é importante. E é melhor você ir antes do casamento, não acha? Não poderei ir, tentarei fazer o possível para ir um final de semana. Vou morrer de saudade! — Também vou morrer de saudades – eles se beijaram e selaram mais uma vez o amor que os unia. — Amanhã vamos lá na nossa casa? Já que hoje não foi possível. — Claro que sim – novamente o rosto de Eduarda se endureceu e não passou despercebido do seu amado. — O que houve Eduarda? Os pensamentos dela relembraram as palavras do cunhado. Não conseguia deixar de pensar no que ele disse. Alice também a visitou e trouxe novamente o assunto de seu acidente de volta. — Sabe que hoje está fazendo quatro anos do acidente? — Sim, eu sei! É isto que está te perturbando? — Não é estranho? Há quatros anos que eu quase morri... — E sem notícias dele! – Augusto havia ficado sombrio. Ela suspirou profundamente. — Você não gosta que eu toque neste assunto. Já pensou que se não tivesse sofrido aquele acidente eu... Augusto interrompeu-a ficando de pé, passou as mãos pelos cabelos e olhou firmemente para ela:
— Estaria completando quatro anos de casada com ele? Eu sei disso! — Não era isto que eu iria dizer. Pensei que não teria te conhecido e isto para mim é inconcebível. Você faz parte de mim, tenho a sensação que nasci para você, que desde sempre te pertenci e que não sei como vivi tanto tempo sem você. De repente, você entrou na minha vida e não existem portas de saída, sem querer te encontrei e sei que era o momento em que mais precisei... E neste momento tenho certeza que você e eu sempre seremos um do outro. — Eu sei de tudo que aconteceu e sempre existe em mim um medo que se lembre dele e me deixe. — Augusto, você não confia no que sinto por você? Ele se aproximou dela e a abraçou. — Claro que sim! Sei que o que sente por mim é verdadeiro. Porém, não sabemos o que sentirá por ele caso suas memórias retornem. — Só posso dizer que se me lembrar dele, não poderei te esquecer. Eu te amo! Ele então a beijou. Não queria mais falar sobre aquele assunto, em breve ela seria sua esposa e tudo estaria resolvido. Sabia que casamento não é segurança de nada, mas caso Bruno retorne, ela seria sua esposa e seria algo mais sólido, mais forte... Sentiria mais segurança! ooo Como combinado, no outro dia aproveitaram o horário de almoço e foram ver as obras na casa. Quando chegaram, Eduarda ficou surpreendida, estava quase pronta! Tudo estava tão lindo que ficou emocionada ao observar todos os detalhes... Espelhos, bancadas, pintura... Tudo claro, com bastante iluminação, pé direito alto, janelas grandes, a casa estava bem arejada, do jeito que sempre sonhou. Grande,
espaçosa, de apenas um andar, no meio do terreno, com jardim e quintal. Como nos contos de fadas! — Nossa, Augusto, você não se esqueceu de nada! Está linda. Um sonho. — Nosso sonho se tornando realidade, meu amor. E daqui a alguns dias estaremos aqui para dar vida a este sonho. E após estas palavras, eles se beijaram com ternura e paixão.
XI
O
s dias passaram rápidos e já era junho. Eduarda estava tensa, o avião já iria decolar e sempre ficava apreensiva, contudo, logo que decolou, sentiu-se aliviada. Dentro de uma hora estaria na cidade maravilhosa. Ficou olhando pela janela e viajou junto com as nuvens. Como era bonito ver tudo lá de cima! Sentiu uma liberdade tão intensa e ao mesmo tempo prisioneira do destino. Não sabia explicar. Olhando o mundo assim lá do alto, sentiu-se tão pequena e maravilhada pela beleza do universo! Nem viu o tempo passar, era um voo de curta duração e quando não estava viajando pelos seus pensamentos, distraía-se com as comissárias de bordo, que passavam perguntando se estava tudo bem, oferecendo o tradicional lanche e pouco tempo depois, recolhiam o que havia sido distribuído. Em seguida, ouviu a voz do comandante, pedindo para apertarem o cinto, informando sobre o tempo e que já iam pousar. Novamente a tensão, mas assim que a vibração de tocar o chão passou, sentiu alívio. Após pegar sua bagagem, dirigiu-se ao terminal de táxi que a levou ao hotel. Pelo caminho começou mais uma vez a viajar em seus pensamentos, observando a paisagem da janela, as pessoas e quando avistou o mar, aquela imensidão azul, sentiu uma emoção inexplicável. Sabia que ele era muito significante para ela, que amava olhar para o mar e ouvir o barulho das ondas. Sentiu saudade de algo que não sabia explicar e viu-se com vontade de chorar. Era tão bonito e mágico! Trazia-lhe sensações de lembranças que não recordava. Era possível? Sabia que existiam tais lembranças, que estavam apagadas,
mas mesmo assim mexiam com ela. Respirou fundo, se não lembrava é porque estavam associadas a Bruno? Como explicar esta confusão sentimental? Parou de tentar achar explicações e apenas ficou admirando a paisagem, deixando que as emoções viessem... E as lágrimas causavam-lhe uma estranha felicidade! Após instalar-se no hotel, viu que tinha algumas horas antes de iniciar o curso, então saiu para caminhar. Seu hotel era a beira-mar, por isso caminhou pela praia, permitindo que a água molhasse seus pés. Sentiu uma liberdade tão imensa, uma vontade de viver de ser feliz e... Saudades de Augusto. Lembrou-se do noivo e um sorriso lhe tomou os lábios. Não havia nada que pudesse querer mais do que estar com ele e ao se lembrar de seu olhar uma imagem estranha veio-lhe à mente... Ao invés de um olhar azul, um acinzentado penetrante, firme e deslumbrante! Que olhar era esse? Augusto possuía olhos azuis intensos, vibrantes, seu olhar expressava calma e alegria, porém estes eram acinzentados e a imagem não saía de sua cabeça. De quem era? Afastou-se um pouco da água e se sentou na areia. Gostava de olhar para o mar, para seu infinito! Devia ser a vastidão do mar azul que estava se misturando com a imensidão do olhar de Augusto. Olhou para o relógio e entristeceu-se ao lembrar que precisava voltar, tomar um banho e ir direto para seu curso, então começou a caminhar de volta. Não tinha palavras que explicassem... Sentia que caminhava de volta para casa. ooo Os dias passavam depressa, o curso era ótimo, com excelentes professores e o assunto a interessava demais. Estava aperfeiçoando seus conhecimentos de Direito Penal e como era professora auxiliar dessa matéria, almejava um dia ser a titular, mas para isso precisava se dedicar. Ainda não tivera tempo de sair para passear pelo Rio, apenas quando chegou havia ido caminhar na praia por quarenta minutos e depois não teve tempo de mais nada.
Até que enfim iria ter uma tarde livre! Seu curso seria apenas pela manhã. Estava ansiosa, queria que Augusto estivesse com ela, porque nada tinha tanta graça sozinha, sem o seu amado. Sempre conversavam por telefone, mas não era a mesma coisa. Mais uma vez pegou o aparelho e ligou para ele. — Oi meu amor. — Oi querida. Que saudades! Como está tudo aí? — Tudo bem. O curso é ótimo. — Que bom! Já foi a praia? Passeou pelo Rio? — Não tive tempo ainda, mas hoje temos a tarde livre e vou passear um pouco. Não vou levar celular, por isso estou ligando. Volto apenas à tardezinha. — Aproveita, meu amor e tome cuidado. Não se esqueça de que estará andando pelo Rio de Janeiro! — Não se preocupe. Vou me cuidar! E o hotel é beira-mar, não vou muito longe! Estou com saudades... — Eu também. Não sei ficar mais sem você, meu amor. — Não vale roubar as palavras do meu pensamento – eles riram — À noite te ligo. — Beijos. — Mil beijos para você. Eduarda arrumou suas coisas e foi passear na praia. Estava uma tarde ótima para aproveitar o mar, afinal nada mais perfeito, pois se encontrava em Copacabana, andando pelo famoso calçadão, cujos padrões lembravam ondas em movimento. Multidões caminhavam, praticando cooper, andando de patins, aproveitando para curtir o belíssimo visual. Sentia a brisa do mar na pele e uma agradável sensação de liberdade! Estava em uma das praias mais famosas do mundo e das mais apreciadas pelos turistas. Sua ligação de longa data com músicos e poetas rendeu inúmeras canções, que povoam nosso imaginário, motivo que lhe rendeu o justo apelido de princesinha do mar. Havia lido que eram quatro quilômetros de orla, com areias brancas e muito agito. A estrutura muito bem montada incluía
quiosques, barracas, restaurantes e hotéis de todos os padrões. Além de alimentar lirismos poéticos, Copacabana costumava também servir de palco para grandes shows públicos e uma das festas de réveillon mais badaladas do mundo. Será que um dia iria poder passar o réveillon ali naquele lugar mágico? Sentia que aquele lugar não era estranho. Um sensação de já ter ido ali em outra época... Déjà vu? Não acreditava em reencarnação, mas sentia que já esteve ali antes. Será que fazia parte das memórias perdidas? Talvez já tivesse estado ali com... Bruno. Não queria ficar triste novamente e tentou afastar estes pensamentos. Caminhava lentamente, sem preocupações. Passou diante do Copacabana Palace, que era um dos símbolos daquele lugar. Muito luxo! Resolveu tomar um banho de mar e começou a caminhar sobre a areia, abriu o guarda-sol e a cadeira que tinha alugado em um dos quiosques, tirou seus óculos escuros e guardou junto com sua bolsa. Arrumou suas coisas, livrou-se da canga e foi em direção ao mar. Adorava aquele cheiro, aquela brisa... A água estava gelada, mas o mar não se mostrava muito agitado. Respirou fundo, correu e mergulhou. Nossa! Só agora percebeu que estava sentindo falta de nadar no mar. Precisava extravasar suas energias e renová-las, logo seria a Senhora Albuquerque e sua vida mudaria para sempre. Precisava estar linda e bronzeada para o seu grande dia! Nadou alguns minutos, depois foi deitar-se na praia e tomar um pouco de sol. Foi uma tarde agradável, pena que estava sozinha. Resolveu beber água de coco e voltar para seu hotel, pois queria ler uns artigos e dormir cedo. Sentiu uma brisa tocar sua pele e seu coração apertou. Estava com saudades de Augusto. Faltavam apenas 45 dias para seu casamento e estava ansiosa e feliz, a cerimônia seria simples, mas mesmo assim dava certa insegurança se sairia tudo do jeito que planejaram. Noiva é noiva: sempre tensa e ansiosa. Lembrou-se que não teve tempo de ligar para a amiga,
dizendo que havia chegado. Quem sabe daria para vê-la antes de voltar para Belo Horizonte. Parou para observar as crianças correndo na praia com seus pais. Será que seria mãe um dia? Não conseguia imaginarse com uma criança, mas sabia que queria ser mãe. Ao fundo um homem lhe chamou atenção. Estava saindo do mar, com água escorrendo pelo corpo, caminhou um pouco e pegou o objeto sobre a areia, óculos escuros. Viu quando ele os colocou. Estava no Rio, em Copacabana, com certeza veria muitos homens bonitos, esteticamente perfeitos e com sorte até algumas celebridades! Sorriu dos próprios pensamentos e continuou observando o belo homem, que passou as mãos pelos cabelos pretos e veio andando em sua direção. Ficou olhando-o escondida por trás dos óculos e ficou corada com seus pensamentos. Desde que conheceu Augusto nunca achara outro homem tão bonito quanto aquele! Corpo trabalhado, definido, bronzeado... Também, não podia esquecer-se que onde estava devia ter milhares assim nas praias todos os dias e quando ele passou por ela, por um instante seus olhares se cruzaram através das lentes. Sentiu um rubor em sua face, mas se lembrou de que ele não podia ver seus olhos, por causa das lentes bem escuras. Que alívio... e que vergonha! Nunca teve este tipo de comportamento. Será que era um modelo? Poderia ser um, era comum pessoas famosas passearem por ali. Ela não resistiu e olhou para trás e o viu no quiosque ali perto, conversando com outro homem, então juntou suas coisas e foi devolver o guarda-sol e a cadeira que havia alugado. Coincidência, o tal modelo estava lá, agora de camiseta, boné e óculos escuros. Notou que ele parou de conversar e ficou olhando para ela, que se aproximava. O homem ao lado também ficou olhando-a. Ela era bonita, tinha consciência de sua beleza, mas ficava constrangida quando a olhavam daquela forma. Devolveu os objetos alugados, pagou e pediu outra água de coco. Não olhou mais para aquele homem... Não poderia flertar com ele,
estava prestes a se casar, mas foi divertido. Foi embora sem olhar para trás e mesmo que tenha sentido vontade de olhar só mais uma vez, sua força de vontade foi maior e resistiu. “Estou ficando louca!” Voltou para o hotel, tomou um belo banho e foi ler seus artigos. Estudou até a noite, quando foi interrompida pelo toque do telefone e correu para atender. — Oi, meu amor! — Nossa como é bom ouvir sua voz! Estou com muitas saudades, Eduarda. Como foi hoje na praia? — Eu também estou com muita saudade de você, meu amor – Eduarda lembrou-se da cena na praia e ficou corada. Que bom que Augusto não podia ver seu embaraço — Foi bom, senti muito a sua falta! Você vai poder vir no final de semana? — Não. Minha mãe não está muito bem e meu irmão está viajando. Vou precisar ficar com ela. Sinto muito, queria demais me encontrar com você. — O que ela tem? — Acho que é Dengue, mas estamos esperando o resultado do exame sair. As plaquetas estão muito baixas. — Nossa! Mande um abraço para ela. E que pena, as duas coisas, sua mãe doente e você não vir. Estava certa de que daria um jeito e viria passar o final de semana comigo. — Não sabe como está difícil. Sinto sua falta. Já me acostumei a dormir ao seu lado, sentir seu cheiro, acariciar seus cabelos e... Você sabe. — O motivo é justo – corou-se novamente. Ficaram ainda alguns minutos conversando. Ao desligar, ela desejou estar logo em casa junto de Augusto. Gostava de estar no Rio, mas não era propriamente um passeio, estava fazendo um curso, e sozinha. Uma viagem assim seria muito melhor a passeio e bem acompanhada. De repente, seus pensamentos foram interrompidos pela imagem de um par de olhos acinzentados e novamente ficou apreensiva. Era como se conhecesse aquele olhar.
Decidiu se distrair e desceu até o restaurante do hotel. Pensou em pedir um lanche no quarto, mas de última hora mudou de ideia. Seria bom espairecer um pouco, sair de dentro do quarto para voltar a ler mais um pouco e dormir. Sentou-se em uma mesa perto da janela, assim sentiria a brisa do mar e tinha uma visão boa, tão boa que viu o homem da praia entrando no restaurante. Será que ele estava naquele hotel? Que coincidência! Mesmo estando de óculos escuros percebeu que ele também a viu e fez uma expressão de espanto. Será que se lembrava dela? Ele pareceu que ia voltar e sair do restaurante quando outro homem o chamou: — Onde você pensa que vai, irmão? — Vou buscar algo que esqueci – falou apressadamente. — Pare com isso. Senta aqui e toma uma cerveja comigo – segurou-o pelo braço. — Sabe que não tomo cerveja! — Claro que sei. Mas pode me fazer companhia? Parecia nervoso, mas sentou-se com ele. Aquela voz... parecia familiar. Seria de algum cantor, ator... Ele sentou-se de frente para ela. Meu Deus! Já viu aquele rosto em algum lugar, parecia com as fotos de Bruno, porém mais magro, mais bronzeado e o corte de cabelo era outro... Começou a achar que estava louca. Então se lembrou de que já havia ido ao Rio com Bruno. As pessoas lhe relataram isso, mas era loucura achar que o encontraria ali. Viu-o olhando para ela algumas vezes e começou a ficar constrangida e ficou aliviada quando seu pedido chegou. Começou a comer, mas não conseguia deixar de prestar atenção na mesa que estava em sua frente. Ele era muito igual ao Bruno! Não que se lembrava, mas olhou tanto para aquelas fotos na tentativa de se recordar de algo que decorou, memorizou cada traço, cada detalhe daquele homem que um dia fez parte de sua vida. Decidiu comer depressa e voltar para o quarto. Estava misturando as coisas, associando aquele homem com
alguém que ela só se lembrava por fotografias, poderia estar confundindo, ser alguém parecido. Estava sendo ridícula! Esta confusão a deixou um pouco boba, pois cada vez que o homem a olhava encontrava seu olhar... Poderia achar que flertava com ele. A verdade é que não parava de olhá-lo. O outro homem que o impedira de ir embora olhou para trás e a viu. Logo em seguida virou-se para o amigo e falou alguma coisa que não ouviu, mas fez o amigo sorrir, o que a fez se sentir extremamente envergonhada. Estariam falando dela? Estaria realmente dando “mole” como costumavam dizer? E aquele sorriso? Era... inebriante! Precisava sair dali o mais rápido possível. Não sabia o que estava acontecendo, não conseguia parar de olhar para o homem... Era uma atração quase irresistível. Queria olhar para aquele rosto e explorar cada detalhe. Era difícil de assumir, mas gostava quando ele a olhava também. Comportava-se de uma forma que não reconhecia. Desde que conheceu Augusto, jamais se interessou por nenhum outro homem, mas quando o desconhecido sorriu, admirou aquele sorriso perfeito. “Meu Deus, preciso fugir daqui, desse estranho e de mim. Não consigo me controlar!” O garçom serviu mais bebida a eles e ela observava a tudo quando presenciou o garçom esbarrar na cadeira ao sair da mesa e deixou derramar o que estava servindo nos dois rapazes, molhando o homem que tanto a instigava, forçando-o a tirar os óculos escuros. Ele resistiu, mas teve que limpá-los e percebeu que o tirou praticamente a força. Houve então um instante que os seus olhares se encontraram. A imagem daqueles olhos acinzentados que invadiram sua mente há alguns dias voltou a atormentá-la. Tinha apenas uma diferença: não estava em sua imaginação e havia se materializado naquele homem. Como podia ter imaginado aquele olhar antes de conhecê-lo? Não havia respostas, mas estavam ali, era ele o dono do olhar que a perturbava. Ela não teve forças
para se desviar daquele encontro de olhares e foi tão intenso, que se sentiu docemente invadida, como se olhassem através dela e visse a sua alma, lia seus pensamentos. A força daquele olhar a perturbou de tal forma que sentiu-se tocada por ele. Suspirou profundamente, não conseguia sequer se mexer, estava totalmente presa aos olhos acinzentados, que não desviavam dos seus. Viu quando o amigo olhou para ele e depois para ela. O homem era realmente bonito e sedutor, dono de uma beleza incomum, no entanto, não estava acostumada que a olhassem daquela maneira. Somente um homem a olhou daquela maneira... Eduarda deixou o garfo cair no chão, chamando a atenção das pessoas no restaurante, pegou-o imediatamente. Suas mãos tremiam, sentiu-se esmorecida e confusa, desejou gritar, contudo não passou de um sussurro: — Bru... no! Flashes invadiram sua mente. Sua vida passou em sua memória como um filme no modo velocidade avançado. O dia do acidente... O dia de seu noivado... O primeiro beijo, o início, o meio... O fim. Um gosto amargo tomou conta de sua boca e sentiu-se terrivelmente enjoada. Não podia acreditar. Estava ali, a sua frente o homem que a havia feito a mulher mais feliz e também a mais infeliz. O amargo em sua boca aumentou quando se lembrou do acidente... Havia sido tão rápido... Estava feliz, radiante no carro a caminho da igreja quando de repente escutou um barulho ensurdecedor e um arranco forte. Sentiu como se estivesse em uma tempestade e um furacão havia lhe pego, o choque enorme a arremessou para fora do veículo e uma dor aguda insuportável tomou conta dela. Viu o caminhão ainda empurrando o carro e seus amigos nos bancos da frente apavorados e feridos, enquanto seu corpo batia no chão e a dor foi tão intensa que desmaiou. Tudo isso em fração de segundos. Lembrou-se de seu último pensamento: Bruno. Que seus planos seriam adiados e que queria sobreviver para ficar com ele. Então orou em silêncio...
“Não me leve agora, Senhor, por favor, proteja meus amigos... Bruno...” e a imagem daqueles olhos acinzentados penetraram-lhe a mente enquanto a queda contra o asfalto quebrava-lhe vários ossos. Naquele momento se lembrou de toda a dor do momento do acidente e das dores reais em sua recuperação. E agora, uma dor inigualável, sem explicação, invadia seu corpo, sua alma... um desespero... Não sabia o que pensar, o que fazer. “Meu Deus como eu amei esse homem.” – percebeu que era assim para ela. Não poderia esquecer-se de que ele havia a abandonado na total escuridão, indo embora e levando consigo seis anos de sua vida. Sem explicações, sem um adeus, sem olhar em seus olhos e falar que acabou. Como pôde ter feito isso com ela? Por quê? Não suportaria mais ficar ali sem explodir em lágrimas. Olhou para Bruno, incrédula e espantada, com uma raiva que não sabia que poderia sentir, então respirou fundo, afastou o prato de si e olhou para ele novamente, que ainda a fitava, vendo-se um no olhar do outro. Ela se levantou bruscamente e foi o mais depressa que pôde para seu quarto. Fechou a porta, encostou-se a ela e então escorregou até o chão. As lágrimas caíram de seus olhos como um dilúvio. O que iria fazer agora? Sentiu vontade de voltar lá e exigir satisfações, mas não teve força. Aquele olhar foi a última imagem que teve em sua mente antes de desmaiar e acordar na maior escuridão de sua vida. Lembrou-se que ela e Bruno iam ao Rio de Janeiro várias vezes ao ano. Ele tinha uma casa lá e adorava o mar. Foi ele quem lhe ensinou a admirar, gostar e sentir-se livre diante daquela imensidão. Ensinou a nadar no mar e todo final de tarde caminhavam de mãos dadas na praia, descalços, sentindo os pés molharem na água. Gostavam de admirar o pôr do sol e sentir a brisa nos seus rostos, os dois ficavam abraçados, sentados, esperando as estrelas aparecerem e depois voltavam para casa. Por isso sentia que aquele lugar fazia parte de sua vida. Quando foi para o Rio, seu coração estava dando sinais de que ia ao reencontro de suas memórias...
Eduarda perdeu a noção das horas. Não sabia quanto tempo ficara ali chorando, revivendo as emoções de todos aqueles anos apagados, a emoção do reencontro com suas lembranças e a tristeza arrebatadora de ter sido abandonada pela pessoa que mais amava e confiava. Ouviu a campainha da porta. Seria alguém do hotel? Não iria atender, não queria ver e nem falar com ninguém, mas a pessoa insistiu tanto... Podia ser do restaurante, afinal ela saiu feito uma louca. Tentou se recompor e dar um jeito de dispensar a pessoa o mais rápido possível. Abriu a porta certa de que seria alguém do hotel e quase gritou quando viu quem estava ali, colocando a mão na boca para segurar o grito. Era como se estivesse vendo um fantasma. Não sabia como agir. Era um daqueles momentos... Sem nenhuma explicação: aquela pessoa, naquele local, no momento exato da vida, na hora certa, apareceu do nada e virou tudo do avesso. Uma mudança de 180 graus, um turbilhão... Um instante eterno: provoca marcas profundas, intensas, permanentes... Com Bruno sempre fora assim, cada instante era eterno! Ele não dizia nada, mas estava abatido, lindamente abatido e ela sentiu como se nunca tivessem ficados separados. Como podia? Era como se tivesse saído do coma naquele instante. Percebeu que ele estava nervoso, conhecia-o bem para saber quando também não sabia o que fazer. Com voz trêmula e sem raciocinar deixou a emoção falar por ela: — O que faz aqui? Ele engoliu em seco. — Eduarda... Precisamos conversar. — O que está querendo, o que está fazendo...? Por quê...? — Vi nos seus olhos quando saiu do restaurante que havia se lembrado de mim. Não podia deixá-la nesta situação. — Mas pôde me deixar naquela situação há cinco anos, não é mesmo?
— Não podemos discutir esse assunto aqui no corredor, não acha? — Entre – falou em tom duro. Bruno entrou e ela fechou a porta brutalmente e ficou alguns instantes de costas para ele. — Eu tive um motivo para ir embora, e você não foi abandonada. Você nem sequer se lembrava de quem eu era – havia dor em sua voz. — Mas se tivesse entrado no quarto, eu iria me lembrar. — Como sabe? Você já foi esquecido pela pessoa amada? Seis anos apagados de sua memória... — Ah, então você foi embora por isso? — Não. Claro que não... – havia uma tristeza profunda na voz, nos olhos, na pessoa de Bruno — Quem me dera ter sido isso. Foi a melhor escolha para nós dois. — Como é capaz de saber o que é o melhor para mim? – ela estava alterada. — Não posso, mas naquele momento foi o melhor que pude fazer. Acredite. Ela o fuzilou com seu olhar. — Bruno, íamos nos casar. Nossa história, nosso amor! Como pôde me abandonar? Por que não me disse que não queria mais, que o amor havia acabado? Não precisava fugir, me deixado dessa forma. E se não tivesse tido o acidente? Teria me abandonado... no altar? — Claro que não! – sua voz estava tingida por dor — Jamais abandonaria você no altar... Claro que não! Droga! Como ousa pensar isto? Eu estava lá te esperando quando veio à notícia do acidente. — O que mudou então? O que te fez ir embora? – sem perceber estava gritando. Os olhos de Bruno estavam úmidos e ele lutava com toda sua força contra a tristeza e desespero que tentava dominá-lo. Precisava ser racional. Alguém ali precisava e neste momento teria que ser ele. Era razoável!
— Consegue imaginar o que estou sentindo agora? — Posso sim. Mas você será capaz, agora que se lembra, de imaginar o quanto foi difícil para mim? — Não Bruno! Você teve escolha, eu não. Você não me deu escolha, escolheu por mim. Escolheu me deixar no silêncio, no vazio, no esquecimento. Sabe quantas vezes tentei montar esse quebra-cabeça? Mesmo não me lembrando, tentava achar uma explicação lógica. Era minha vida que estava estranha, sem sentido. Todos em minha volta sabiam mais da minha vida do que eu mesma e ficavam horas me contando histórias de nós dois, como éramos apaixonados... E eu ali, escutando como se fosse histórias de outra pessoa, nada fazia sentido para mim. — Talvez um dia vá entender o que fiz. Não me julgue sem conhecimento dos fatos. — O que foi que você fez comigo? Sabe como foi minha vida nestes anos? Eu te amei. Mesmo nestes quatro anos eu te amei, te esperei... Droga, Bruno! Esperava aquela porta abrir todo dia. A porta da minha vida, das respostas que não tinha. Da felicidade que eu não sentia... À noite quando ia dormir, no silêncio do meu quarto, sentia um vazio inexplicável. Durante o dia, várias vezes sentia que faltava algo, que minha vida não fazia sentido e não sabia explicar o motivo. Minha memória não se lembrava de você, mas agora eu sei que minha alma lembrava e gritava por você. Se não me amava mais por que... — Não diga o que não sabe. Não pode duvidar do meu amor! Dizer que eu não te amo, que não te quero mais... Impossível. — Pare com isso? Como se atreve a dizer que ama quem... — Eu a amo como sempre. Nada mudou em relação aos meus sentimentos... Agora que está tão perto tenho mais do que certeza! — Deixe de ser ridículo! Como pode ainda me amar depois de tudo que me fez? Então me diga. Por que foi embora? — Não é tão simples assim...
— Bruno, terá que ser honesto comigo agora. Bastam esses anos de abandono, esquecimento, vazio... Agora eu me lembro, sei onde te encontrar! Pare de fugir. — Sempre fui honesto com você. Se não tivesse tido a perda de memória eu não teria ido embora, mas com certeza não estaríamos felizes como sempre achamos que seríamos. — E o felizes para sempre? Você acreditava nele. Ele parecia destruído, frustrado e era visível o esforço que fazia para se manter sob controle, mas neste instante seu controle evaporou e podia sentir a tensão dele. — Não e-existe felizes para sempre. O para sempre, sempre acaba – sua voz era fraca, mas com uma hostilidade perceptível. — Só quero saber o porquê. Não me reconheceu naquele restaurante? — Claro que sim. Antes disso, na praia, quando te vi. Eduarda se espantou ao lembrar que se viram na praia. Por isso teve aquele comportamento estranho, uma atração inesperada. A voz de Bruno a fez voltar para ele. — Eu tentei ir embora sem ser percebido. Foi inútil. Na verdade, consigo fugir de você desde que não esteja tão perto a ponto de me sentir paralisado pela sua presença. Quando te vi hoje saindo do restaurante, sabia que havia se lembrado. Sabe que te conheço bem! Se quisesse ter ido embora, se minha ideia fosse abandoná-la acha que eu estaria aqui? — O que houve? Você teve um caso, um filho... Ele sorriu ironicamente. — Não. Claro que não. Eduarda, foi uma coincidência do destino estarmos no mesmo hotel, na mesma cidade, no mesmo dia e nos encontramos. Porém não se esqueça de que até algumas horas atrás eu era um desconhecido para você. Não faz ideia do que passei, do que sofri. Desejei tanto a morte... Ver você naquele estado e não poder fazer nada. Um sentimento de impotência, senti-me tão pequeno, desesperado. Quando saiu do coma foi um alívio, uma felicidade... Cada dia uma melhora, até que saiu
daquele hospital. Uma alegria imensa, sem tamanho, era para ser um dia de alegria e uma notícia arrebentou comigo: — Bruno, você precisa de calma. Parece que ela perdeu a memória. — Como? Posso vê-la agora? — Calma. Vai poder entrar. Ouviu o que eu disse? Precisa saber algo. — Diga logo. Teve sequelas? É isso? – ele estava ansioso e desejava vê-la, beijá-la, dizer o quanto estava feliz por ela ter resistido. — Como eu disse, teve perda de memória, pode ser momentânea ou... Vamos pular essa parte, você como médico sabe do que estou falando! Bruno concordou com a cabeça. Estava nervoso. — Ela não se lembra de nada? Ou é uma confusão e ao menos ela sabe quem ela é...? – perguntou Bruno, passando a mão pelos cabelos. — Ela se lembra de tudo, Bruno, menos de você. Uma expressão de descrédito tomou conta de sua face. — Como assim? – foi o que conseguiu dizer. — Não tem ideia de quem você é. Tudo que ela fez em que você estivesse junto foi apagado. — São seis anos, doutor. — Eu sei, mas ela não se lembra de nada. Por isso peço que tenha calma. Quando entrar, não a assuste. Pode ser que ela se lembre de você ou não. Por isso esteja preparado e não a force. Ainda está fraca, precisamos ter cuidado, pois não sabemos ainda se teve outras sequelas, o trauma foi forte. — O que mais ela esqueceu? Ela... — Aparentemente se lembra de tudo, só não se lembra de vocês. Sinto muito amigo, por te dar essa notícia assim. Mas não via outra forma. — Nunca vi nada parecido! — Sim! Ainda vamos fazer alguns exames. — Vou respirar um pouco, doutor. Não vou entrar agora. Vou absorver essas informações e depois eu volto. — Tenha calma, Bruno... ela vai se lembrar.
Bruno narrava o acontecido com seu olhar penetrante. Não desviou o olhar, fazia isso quando queria demonstrar a razão. — E aí você foi embora? — Não, eu fiquei ali até o dia que teve alta. Queria ter certeza que você estava bem e que não se lembrava. — Bruno, me conte o que aconteceu? Por que não foi falar comigo? — Você vai saber Eduarda. Dá-me um tempo para te contar. — Tempo? Quatro anos... — Eduarda, agora que se lembra, sabe da nossa história. Sabe como eu te amei, sabe que nosso amor não foi brincadeira e que aquele dia de maio foi o mais feliz e mais triste de nossas vidas. Nosso casamento ali, prestes a se realizar e uma tragédia nos separou. Também fiquei na escuridão, no sofrimento profundo, você não se lembrava, mas eu sim. E isso me corroeu, não sabe o que passei nem o que sofri e chorei. — Só poderei saber se vou entender quando me contar o que aconteceu. Sinto como se acabasse de despertar do coma! Bruno, sinto-me perdida, atordoada! — Já lhe disse. Você vai saber. Só quero que saiba, agora, que o que eu fiz não foi fácil para mim. Que sofri por te deixar e que aquele acidente foi determinado por Deus para impedir nosso casamento. Oh Eduarda, não sabe ainda o que estou passando... — Determinado por Deus? Como ousa dizer tal coisa? Eu me machuquei muito, quase morri, senti dores terríveis quando saí do coma, dores na alma e no corpo. E Cláudio... Bruno sentiu um choque ao ouvir o nome do amigo. Fechou as mãos e apertou os dedos com força. Precisava se controlar. — Lembre-se que tudo isso eu também vivi. Não me casei, minha noiva quase morreu, acompanhei de perto cada dia no hospital, vi meu amigo ser enterrado... Eu não perdi a memória Eduarda, tive que passar por tudo isso e sozinho. — Porque quis.
— Acha mesmo que eu quis? É isso mesmo? — Sabe que vou me casar? Ela tinha que colocar o dedo na ferida. Era insuportável imaginá-la casando-se com outro. — Sei – uma resposta curta, amarga. Ele a olhou com sofrimento e seus olhos perderam a magia, a doçura. — Você não vai se esquecer de Augusto porque se lembrou de mim, vai? Agora tinha sido ela que havia sentido um golpe. — Sabe o nome dele? — Estive por perto Eduarda, e sei sim. Sei que se apaixonou por ele, que o ama de verdade – havia uma dor quase palpável em suas palavras. — Como pode permitir que eu me apaixonasse por outro, que eu me entregasse a ele, sabendo que sempre fui sua? Você é pior do que pensava – ela gritou. — Não me maltrate assim. Não sabe o que diz. Nunca mais iremos ficar juntos, então você tinha que reconstruir sua vida. Era justo, o certo. Ela partiu para cima dele com raiva e lhe socou o peito. — Justo para quem? Certo? O que é isso, Bruno? Cadê você? Cadê você? Não estou te vendo, não estou te sentindo. Você está na minha frente e não te reconheço. Por quê? – as lágrimas caíram de seu rosto sem que ela conseguisse evitar e ele a abraçou, impedindo os golpes, deixando-a chorar em seus braços. — Aquele Bruno não existe mais. E talvez não goste deste que está aqui, mas acredite, vai ser melhor não gostar.
XII
O
s dias a seguir foram intoleráveis. Demorou a passar e enfim chegar o dia de voltar para casa. Eduarda fez as malas de qualquer jeito, não conseguia se concentrar em nada, não conseguia organizar os pensamentos e manter a tranquilidade. Estava prestes a explodir. Pensou e repensou várias vezes como seria viver agora, o que faria de sua vida e de repente se viu em um pesadelo e não podia acordar. Definitivamente estava presa naquela angústia, naquele tormento. Aprendera a viver sem suas memórias e agora teria que reaprender a viver com elas. Sua mente transitava entre Augusto e Bruno. Seu coração traiçoeiro lhe trazia recordações de amor com Bruno e sua mente tentava concentrar-se em Augusto. Era a situação mais inesperada que podia imaginar, era como se tivesse acordado do coma no instante em que se lembrou de Bruno. Todavia, em seu passado não existia Augusto, eram apenas ela e Bruno, um amor com tantos infinitos, com tantas projeções de felicidade em um futuro de promessas esplêndidas, mas nada de esplêndido existia naquele momento... A vida interferiu e apagou esta felicidade no dia do acidente e agora? Augusto era real, fazia parte de sua vida, ela o amava e possuía toda a convicção disso, contudo, algo aconteceu dentro dela, que a perturbava, não conseguia relaxar, sentia vontade de chorar o tempo todo e não sabia o real motivo deste desassossego. Todo o tempo após relembrar suas memórias e durante o trajeto de volta permaneceu imersa nesta desordem emocional. Estava ansiosa para entrar em casa e assim que o fez, deixou que seus sentimentos extravasassem e
afundou-se em lágrimas. Definitivamente, desejou não ser ela naquele momento. Augusto queria buscá-la no aeroporto e com muita dificuldade convenceu-o a esperar em casa. Inventou uma desculpa e ele concordou. Era a primeira vez que mentia para ele. Precisava conversar com o noivo em casa, enquanto isso pensava mais um pouco em como contar-lhe o que aconteceu. Foi difícil esconder por telefone, embora ele perguntasse constantemente o que estava acontecendo e afirmava que ela estava estranha. Tomou um demorado banho e estava terminando de se vestir quando a campainha tocou. Ela estremeceu, sabia quem era. Abriu a porta e foi saudada pelo sorriso de Augusto e sentiu um alívio imenso ao vê-lo. Jogou-se em seus braços e ele a abraçou e beijou. Sentiu uma emoção diferente, gostava daquele beijo, daquele cheiro, gosto... Gostava de estar nos braços dele, mas algo havia mudado. Ela estava tão confusa, seus sentimentos haviam se misturado. Quando seus olhares se encontraram, naquele instante, Eduarda soube que seu amor por Augusto estava ali, no entanto, esta constatação não lhe trouxe paz. — Estou com muita saudade. Não sabe o quanto! – falou após entrar e se aproximar para beijá-la novamente. — Eu também – sabendo da sinceridade de suas palavras o abraçou. Ele foi abraçando-a e dirigiu-a com seu corpo até o sofá. Debruçou-se por cima dela e a impediu de dizer, de pensar, de fazer qualquer coisa. Beijava-a com veemência, paixão, saudade, amor e delicadeza, mas de repente sentou-se e a puxou para se sentar também. Esta atitude a surpreendeu e a fez olhar de imediato para ele de forma interrogativa. — Estou ansioso para beijar-lhe, para ter momentos com você – respirou fundo e continuou — Sabe que sou paciente e te conheço. Algo aconteceu, estou sentindo isso. O que
mudou? Seu beijo me diz que algo mudou. O que foi? – havia preocupação em seu olhar. Semblante pesado e sombrio. — Nada mudou em relação a você, meu amor. — Porém? Não me esconda nada... — Não vou esconder, estou procurando a forma correta de lhe dar esta notícia. — Seja direta. É a melhor maneira de dizer qualquer coisa – ele já pressentia o real motivo. — Augusto, eu te amo, meu sentimento por você permanece o mesmo, eu apenas... — Precisa de um tempo? — Hã? Não... Quando Augusto falou em tempo um desespero tomoulhe conta. Não queria tempo, queria ficar com ele, não pensou um minuto sequer na possibilidade de se afastar dele. Apesar de tudo, era demasiadamente dolorosa a ideia de não tê-lo mais. Esta era uma aflição sem limites. — A viagem e esses dias longe talvez a fez pensar que queira esperar um pouco mais... — Não! Não é isso, Augusto. Não preciso de tempo para saber que te amo. Mesmo sentindo a tensão dela ele sorriu, porém não conseguiu relaxar. Apesar de ouvi-la dizer que o amava e que não precisava de tempo, observou que seu olhar era outro e inferiu que algo poderia abalar sua felicidade e de Eduarda. Estava nervoso. Levantou-se do sofá e foi para perto da janela. Eduarda observou Augusto mais uma vez. Sempre tão bonito e atraente, sinônimo de charme, elegância e beleza. Seu olhar sempre misterioso e inteligente era o que lhe tornava ainda mais sedutor. Amava aquele homem, mas e agora? O que fazer diante destas lembranças que vieram como uma avalanche e derrubaram tudo de sólido e firme que havia construído nestes anos? Seriam como blocos de empilhar? Era possível construir tudo novamente? Não tinha certeza.
Augusto a olhou, examinando seu rosto enquanto ela refletia. Sabia que algo havia acontecido e estava com medo do que seus pensamentos lhe apontavam. Sem mais rodeios, Eduarda não encontrou nenhuma forma de dizer, então despejou tudo de uma vez: — Eu me lembrei de tudo, minha memória voltou. Augusto sabia que isso poderia acontecer a qualquer momento e uma vez que seu coração queria enganá-lo, desejou que este dia jamais chegasse. Tinha medo, insegurança. Não queria perdê-la! Sentiu como se tivesse levado um golpe no estômago. Passou a mão pela testa, depois as duas pelos cabelos e sentou-se no sofá, olhando para o chão por instantes e depois, ainda sem olhar para ela perguntou: — E agora? Eduarda ajoelhou-se a sua frente e o fez olhá-la. — Estou confusa e com medo. E sei que meu amor por você continua aqui, explodindo em meu peito. Não me olhe assim... — Queria acreditar nisso, mas não consigo! Sinto que vou te perder, Eduarda. E não consigo me alegrar. Entendo que é sua vida e que precisava recuperar estas memórias, mas confesso que desejei o oposto. — Você não vai me perder. Agora não existe mais nada entre nós dois, sei do meu passado e ele não vai me afastar de você! Ele a beijou carinhosamente e a puxou para sentar-se ao seu lado. — Como foi? Como se lembrou? Ela hesitou um pouco, engoliu em seco e respondeu: — No dia em que fui à praia eu o vi saindo do mar, passou por mim e me parecia familiar, mas não o reconheci. Depois o vi novamente no hotel. Ele, coincidentemente, estava hospedado lá. Augusto se levantou bruscamente. — Passou esta semana inteira lá com ele? – sentiu um imenso ciúme e a simples ideia de que ela estava com ele o deixou furioso.
— Augusto, ficou louco? Claro que não. — Vocês conversaram? – estava enraivecido, mas precisava se controlar. — Conversamos sim. Ele veio atrás de mim. Fiquei desnorteada quando lembrei e corri do restaurante para meu quarto e ele foi até lá... – Eduarda contou tudo que se passou para Augusto, que ouviu em silêncio e às vezes olhava para o outro lado. Uma infinidade de sentimentos tomou conta dele naquele momento: raiva, angústia, ciúme, medo... — Então vão conversar mais uma vez? Não conversaram lá? Por quê? – Augusto estava descontrolado e não sabia como agir. Esta situação era nova para ele, que sempre foi senhor de si e sempre soube o que fazer e dizer às pessoas, incluindo a ele mesmo. — Não sei, Augusto. Tudo que sei eu te contei. Ele não quis me dizer e disse que iria me procurar aqui para esta conversa. — Porque me escondeu... — Não iria contá-lo por telefone. Sei de todos os seus medos e não poderia te dar esta notícia por telefone e te deixar angustiado, imaginando coisas. Queria olhar para você para que pudesse me ver e saber que estou aqui. — Será? — Augusto, não fale assim comigo. — Neste tempo que estamos juntos aprendi a te conhecer e sei que está abalada, que está com dúvidas. Eu sinto, eu vejo. — O que vê é uma mulher realmente em busca de respostas. Se fosse você? Não teria curiosidade de saber o que houve? Seu noivo vai embora sem explicações, depois de seis anos de relacionamento... Pense! É a minha vida, não quero ficar com essa dúvida para sempre. Preciso por um ponto final nesta história. É como se eu tivesse acordado do coma hoje e ele tivesse rompido o nosso relacionamento. Só preciso terminar este quebra-cabeça, assim, eu sei que o ciclo se fecha. — Se acordasse do coma hoje, com suas memórias, o seu sentimento por ele seria amor. É isto que está dizendo?
— NÃO! – apressou-se em responder — Claro que não. — O que sente por ele? – Augusto mordeu o lábio inferior e suas sobrancelhas se uniram. Estava nervoso. Precisava articular seus pensamentos de forma correta. — Neste instante? Raiva. Um desconforto enorme. — E por mim, o que sente? Ela o olhou com amor. Não havia outra forma de olhá-lo. — Eu te amo. E sei que isso jamais mudará. Ele se aproximou dela e a abraçou forte. Suspirou por cima de seus ombros, depois de um tempo segurou-lhe as faces entre as mãos e a fez olhar para si. — Eu te amo. Não faz ideia do quanto. Quero que fique comigo, que sigamos nossos planos, mas quero que saiba que racionalmente, por um breve momento, entendo que precisem desta conversa – havia dureza em sua expressão, mas muita luz em seu olhar. Era porque sua mente dizia uma coisa e seu coração outra. Estava lutando com seu autocontrole para conseguir pronunciar as palavras — E saiba que se descobrir que não foi um ponto final, mas uma vírgula ou um ponto e vírgula, saberei me retirar... Dignamente. Ela o beijou em resposta e ele a segurou entre os braços como se fosse algo precioso, delicado e raro. Beijou-a avidamente. Eduarda não resistia aos beijos e aos toques de Augusto, considerando-se que vinham de um homem que sabia fazêlos como ninguém. Não seria humana se não as apreciasse e se entregava sem falsos escrúpulos aos seus abraços, sentindo uma satisfação inegável com o evidente prazer que lhe propiciava. — Espere... – falou ela. Ele sorriu e estava nervoso. Ela se aproximou. — Olhe para mim, Augusto. Por mais confusa que eu esteja... Em nenhum momento eu tive dúvida do que sinto por você. Eu te amo! Os olhos claros de Augusto a fitavam com malícia, com paixão. Ele a abraçou mais uma vez e Eduarda imediatamente sentiu uma diferença na intensidade daquele abraço, uma força
que nunca se manifestara antes. Estremeceu. Augusto a apertou mais nos braços, passando uma das mãos por suas costas, numa carícia aquecedora e no instante seguinte, a beijava de leve, instigando seus lábios a se abrirem, enquanto a mão subia até a nuca, desta vez provocando-lhe um calafrio. Sua voz soava tão serena e controlada que a fez sentir-se embriagada quando ele pronunciou seu nome em um sussurro. — Eduarda... Ela sentiu vontade de abraçá-lo com intensidade e ele a beijou de novo, com a mesma persistência ávida, porém paciente. Eduarda relaxou, entregue as carícias mais ousadas, submissa sob o calor cada vez maior do corpo viril sobre o seu. De um momento para o outro os lábios antes ávidos assumiram um caráter doce, de irresistível sedução, extraindo dela uma correspondência inevitável. Os lábios dele deixaram os dela, para espalhar carícias na curva de seu pescoço, ombros e mais além... Augusto também deixou escapar um murmúrio inarticulado, porém explícito ao retomar os seus lábios num beijo devastadoramente sensual. Eduarda correspondia àquela paixão, àquele delicioso momento e quando o beijo parecia durar para sempre, ele afastou o rosto o suficiente para dizer: — Eu te amo. Quero que seja sempre assim, só minha. — Eu também te amo Augusto e, de verdade, não quero te perder! — A escolha sempre será sua... Eu jamais teria forças para fugir de você. Não existem possibilidades de que eu me afaste, só se você quiser. Eles se beijaram novamente. Não havia outros pensamentos, queriam apenas um ao outro. A força e a magia estavam naquela sala de uma forma que nunca esteve antes. Jamais havia sido tão intenso e assim ficaram até que se exauriram e descansaram nos braços um do outro. Até o silêncio era mágico e ficaram assim por um longo tempo, até que Augusto se manifestou. — Quando vai se encontrar com ele? – suspirou fundo e a olhou.
Eduarda viu uma sombra de medo em seu olhar e tentou se recuperar da explosão que sentiu ao dar-se conta que compartilhava o mesmo sentimento e retomou seu raciocínio e equilíbrio. Ele a puxou, aninhando-a em seus braços. — Não sei. Ele não me disse. Augusto nada pronunciou, decidiu viver um dia de cada vez. Eles ficaram assim por instantes, ambos refletindo sobre aquele momento da vida, sem perceberem o tempo passar. Era como se os dois tivessem sido capturados pela eternidade. — Sei que vai dar tudo certo. É preciso acreditar. E sei que você é parte disso... — O que mais quero é que realmente perceba que me ama, e fique comigo – sua voz era profundamente cética. — Eu te amo Augus... – Augusto a impediu de continuar. Selou seus lábios no dela e suspirou. Sabia que era um homem bonito e que conhecia Eduarda, podendo levá-la a uma entrega como aquela, sem reservas — Vamos esperar essa sua conversa com ele? Para mim, vocês não tinham que se ver mais e já tinha que ter colocado um ponto final nesta história. Suas lembranças voltaram e mais do que nunca soube que foi abandonada e para mim isso é o suficiente para o fim. Contudo, vou me fazer de seguro e racional e esperar. Nunca pensei que teria forças para te dizer isso, mas vou respeitar sua decisão... E torcer para que o final seja feliz... para mim também! Ela o abraçou e ficaram assim por muito tempo. Conversaram sobre a viagem e outros assuntos, no entanto, havia um clima diferente e em breve esta situação iria se resolver. Augusto tentou não pensar mais em Bruno, porém não conseguia. Guardou sua opinião sobre este homem que ele tanto desejou que realmente tivesse morrido na memória de Eduarda, mas agora que ele ressurgiu, deveria torcer para que tivesse morrido em seu coração. Nada mais poderia ser feito. A vida tinha estes momentos onde os acontecimentos não mais dependiam de você e não existia nada a se fazer a não ser esperar. A sabedoria estava em saber esperar sem enlouquecer...
XIII
O
dia amanheceu e diferentemente dos outros, Eduarda acordou nos braços do seu amado. Ela o olhava dormir, lindo e sereno. Sim, amava-o e teve uma noite maravilhosa com ele, contudo, seu coração doeu ao se lembrar de Bruno. Ao acordar, Augusto deparou-se com Eduarda fitando-o. — Bom dia amor! — Bom dia. Ele a beijou e depois olhou as horas. — Nossa, estou super atrasado. — Desculpe, eu... — Não é culpa sua. Eu não coloquei o telefone para despertar. Tenho paciente daqui a vinte minutos – beijou-a novamente e saiu apressado para o banheiro, onde tomou um banho rápido. Quando terminou de se arrumar, Eduarda estava na cozinha, preparando o café. — Puxa vida, desculpe, mas não vou poder tomar café com você. — Nem um pouquinho? Ele a abraçou e respondeu no seu ouvido: — Queria poder ficar e continuar... Mas não posso. Sabe o quanto sou criterioso com os horários dos pacientes. — Sim eu sei. E compreendo, até admiro muito isso em você. — Eu volto... – ele a beijou e saiu com pressa. Sentiu-se sozinha e um estranhamento a perturbou, sentiu sua falta. Riu da situação, pois ele acabara de sair e já estava com saudades. Apesar de estar sem fome, resolveu terminar de preparar o seu desjejum, naquele momento era o melhor a ser feito. Obviamente que seus pensamentos começaram a viajar
em todos os recentes acontecimentos, que acabaram por reviver sentimentos outrora apagados. Ao contrário do que imaginou, conseguiu não pensar em Bruno quando estava com Augusto, embora bastasse ele sair para as recordações a invadirem de tal forma, que demorou a comer. Relembrou que constantes recordações a molestaram por toda a noite, após Augusto adormecer. Neste momento ela era a sombra. Tomou apenas um café puro, não conseguia comer, aquela situação lhe causou inapetência. As memórias voltaram e com elas sentimentos que estavam adormecidos. Agora sabia que o que sentiu por Bruno era amor, o que tornava ainda mais difícil esquecer, principalmente porque aquele amor fez parte da sua vida de forma muito intensa por muito tempo. Como agir diante destas recordações? Estava confusa, ainda sentia alguma coisa por Bruno? Por que aquelas lembranças a incomodavam tanto? Iria se casar com Augusto e sabia que o amava, então não sabia definir a causa de tanto desassossego desde que suas memórias voltaram. Era difícil parar de pensar neste assunto e percebeu que, quando menos esperava, o pensamento voltava a Bruno trazendo aquela dor que queria tanto esquecer. A campainha tocou, tirando-a daquele estado pensativo e Eduarda correu para atender, esperançosa que fosse Augusto para salvá-la daquele devaneio. Viu que precisava providenciar uma cópia da chave para ele, que talvez houvesse ligado, desmarcado uma consulta e voltado para passarem o dia juntos. Seu coração havia saído, por instantes, daquele estado de tristeza e retornado à alegria e euforia, pois a simples expectativa de rever Augusto era capaz de transformar o caos em que estava em calmaria e felicidade. Sim! Ele era a luz que a tirava das trevas. Quando abriu a porta, o caos retornou. Um tsunami de emoções jorrou contra ela, causando-lhe medo e calafrios. Sentia que iria afogar por mais que tentasse nadar. Ficou paralisada. Era Bruno. Não o esperava tão cedo assim, não porque eram sete da manhã, mas porque havia acabado de chegar de viagem.
— Bom dia. Completamente muda e imóvel ela apenas conseguia olhá-lo com espanto. — Você está com o hábito de abrir a porta e não falar nada – ironizou. — Não, é só quando alguns fantasmas aparecem – disse saindo do seu breve estado de choque. Era preciso reagir. — Um a zero pra você – falou sem graça. — Entre. Ele passou por ela, que não deixou de sentir sua deliciosa fragrância, deixando-a em um estado de confusão inesperada. Reconheceu o perfume que tanto gostava. Fechou a porta devagar na tentativa de recuperar o controle de si mesma. Bruno ficou parado no centro da sala e não disfarçou que observou todo o lugar. Não pode deixar de reparar que estava tudo igual, da forma como deixou, apenas as fotos haviam sumido e apesar da aparência tranquila estava tenso. — Vejo que não queria lembranças minha pela casa. — Você tem o hábito de manter fotos em casa de quem não conhece? Por que você foi isso, durante esses anos, um estranho. — Vejo que há muito rancor em suas palavras. — O que queria? Amor? Que eu me jogasse aos seus pés e dissesse que nada mudou? — Não. Definitivamente não quero isso – havia muita certeza em suas palavras, que acabaram por abalar mais uma vez os sentidos de Eduarda, que não tinha um real entendimento do por que aquela declaração tinha lhe ferido tanto. — Então o que quer? O que deseja de mim agora, Bruno? – foi o que conseguiu perguntar. Ele virou e olhou para ela e Eduarda sentiu-se congelar. Não conseguia mexer um dedo sequer diante daquele olhar... – “Meu Deus, como ele ainda mexe comigo. Estou perdida e não sei o que fazer.” — Desejo apenas ter aquela conversa que ficou faltando e depois eu vou embora. Mas dessa vez, você vai saber por que fui.
— Vai embora de novo? – sentiu um desespero de pensar em ficar longe dele. O que estava acontecendo? E Augusto? Era uma batalha de sentimentos, um conflitando com o outro. — Sim. — Objetivo você. Ele fixou o olhar em uma foto colocada no aparador perto da porta. Era ela com Augusto. Sentiu vontade de pegar aquela foto e jogá-la pela janela, dizer que Eduarda era dele e que... Claro que não podia. Diante dela sentia como se o tempo não tivesse passado, seus sentimentos teimavam em querer aflorar. Respirou fundo e ordenou seus pensamentos, precisava se controlar e ser racional. — Pensei em desistir desta conversa e deixar você deduzir o que quisesse. — Ou seja, fugir uma vez mais. — Parece mesmo uma fuga e talvez seja mesmo. Foi o que eu achei ser o melhor para nós. — Juro que pensei mil vezes nesta semana o que poderia ter levado você pra longe de mim e confesso que não consegui. Se eu melhorei, era para você estar ao meu lado e continuar com nossos planos... Como ousa dizer que foi o melhor? — Já disse... tive fortes motivos e vai saber que realmente foi melhor assim. Seu olhar firme e gentil para ela a fez sentir como se seus ossos virassem gelatina, a beleza dele a atordoou. Um excesso que até duvidava que fosse real e estava ali, em sua sala. Balançou a cabeça como se quisesse colocar os pensamentos em ordem. — E é agora que vou saber desses motivos ou vai fugir novamente? — Se prefere chamar de fuga o que abdiquei, não vou brigar por palavras – ele firmou seu olhar nela – Não existe mais tempo para desculpas e confesso que não sei se vai entender, mas quando olhar pra trás procurando por nós dois, não vai me ver. Chegou a hora de você recomeçar, mas agora é um
recomeço com cada coisa em seu lugar. Seu tempo de viver sem saber, sem recordar acabou. Agora será o tempo em que vai me apagar de sua mente com seu consentimento. — Não é hora de ser poeta... Ele não disse nada. Ela sorriu ironicamente, mas não conseguiu ser insensível a sua expressão. Sentiu a dor em suas palavras e por um momento a raiva se foi como um presságio de que algo definitivamente ruim havia acontecido. Bruno tinha essa influência sobre ela, nunca conseguiu ficar com raiva dele. “Apesar da aparência cansada, como ele conseguiu se manter tão bonito naturalmente?” – percebeu que ele estava endurecido por algo sombrio e com voz amável perguntou — Bruno, o que aconteceu? — Ah, Eduarda, existe todo um contexto dentro de uma simples história. Poderia ser direto e... Neste caso, não consigo ser tão objetivo assim! Quando eu te vi pela primeira vez o tempo parou, era como se só existisse eu e você. Naquele instante somente podia ouvir as batidas do meu coração, que se acelerarem quando seus olhos encontraram os meus e eles não pararam de me olhar. Eu queria te beijar, te abraçar, te sentir de alguma forma, mas aquele momento foi tão perfeito, tão rápido, mas eterno... Hoje eu me sinto da mesma forma, tão apaixonado, tão louco por você. Se eu pudesse... Ele suspirou fundo e se virou, caminhando até a janela. Abriu-a para sentir um pouco de ar. Precisava controlar-se. — Nã-não estou entendendo onde deseja chegar. Como assim, tão apaixonado, tão louco por mim? Você é muito abusado, desaparece e volta dizendo estas coisas. Ainda de costas para ela, olhando para a paisagem da janela, o vento soprou uma brisa fria, conveniente para aquele momento. Fechou os olhos e disse: — Se eu pudesse ter o poder de desfazer tudo de errado que eu fiz e conseguisse apagar cada lembrança sua que teima em
existir em mim... Eu preciso encontrar uma maneira de esquecer você. Nestes anos fiz de tudo e dei voltas e voltas e agora existe novamente eu e você. Se pudesse, queria poder perder a memória e tirar essa dor de não poder ter você para mim. — Você não sabe o que diz. — Sei sim. E o que mais me dói, é saber que nada do que vou te dizer vai trazer você pra perto de mim outra vez, porque amar você será sempre assim: impossível. Nossa separação será sempre irreversível. — Pare com isso, Bruno! Estou ficando assustada. Ele então a olhou com doçura. — Diga logo de uma vez. Acabe com esse suspense, não me maltrate mais. — Eduarda, nunca quis te maltratar. Não passou nada em sua cabeça? Você sabe, agora que recuperou a memória, do meu amor por você e sabe que eu jamais a deixaria se não fosse sério. Tivemos uma história linda! Quando não se lembrava de mim era coerente pensar que a abandonei por outra, ou que tive um filho... Ou que fui covarde, mas agora que se lembra de tudo, sabe do nosso amor, do que vivemos e não pode pensar isto. Você me conhece. Eu não mudei nada! — Eu cheguei a pensar que você adoeceu. Ele a olhou curioso. — Mas não posso acreditar que você me abandonaria por esse motivo. — Por que não? – ele estava estranhamente sério. — Por que não? Porque não consigo imaginar você indo embora por uma doença. Seria merecedor de escárnio tal atitude. Não! Acha que eu não seria capaz de enfrentar com você uma doença, por mais grave que ela fosse? Acha que eu não seria capaz? – não se importou com o que ele disse, para ela este motivo estava descartado. — Você pensou que existem doenças que as pessoas temem em dizer e...
— Bruno, se estivesse com câncer, aneurisma, leucemia... Sei lá, qualquer coisa... Não! Eu me recuso a acreditar que você me abandonou por isso. Totalmente irrisória esta hipótese. Sei que estava fraca, debilitada, vários ossos quebrados, mas nosso amor era maior que tudo isso, não era? Naquele instante teve medo de imaginar que se enganou tanto com aquele homem e que aquele amor só existiu para ela. Esta hipótese era insuportável e ao perceber seu pavor diante da possibilidade dele não amá-la, sentiu vontade de chorar – “O que está acontecendo comigo?” — Foi só isso que conseguiu pensar? — Nada me parece um motivo suficientemente forte para sua covardia. Como você mesmo disse nada é lógico, ninguém abandona um amor como o nosso por estes motivos ou por motivo algum. Ele mordeu o lábio, irritado. — Talvez eu tenha sido um covarde mesmo. Estou aqui agora, não estou? Acha que sou covarde agora? – ele caminhou até ela e seu andar era lento e cuidadoso ao se aproximar. Com os dedos tocou-lhe o queixo com delicadeza. Estava frio — Nunca tive outra, nem um filho... Não! Você pode pensar em outra coisa porque isso jamais aconteceria, sabe disso. De repente Eduarda percebeu que havia parado de respirar. Então puxou o ar em uma reação involuntária e seu coração acelerou como se estivesse em uma atividade aeróbica. Engoliu em seco e sentiu-se como um molusco: sem ossos. Achou que iria cair, mas percebeu que era apenas a reação a um simples toque de Bruno em seu rosto. Passou a mão pelo cabelo, nervosa, tentando se recompor com o olhar fixo nele. “Acho que estou louca! Eu quero abraçá-lo, beijá-lo...” – para desviar os pensamentos ela falou: — Bruno, já disse tudo que pensei e não sou adivinha, e você está me irritando. Queria que eu tivesse pensado no quê? Em quem? — Vou te contar tudo, porém esqueceu-se de pensar em
uma coisa. Algo que me tirasse o chão, que me fizesse ficar desesperado ao ponto de deixar meu emprego, minha mãe, minha irmã, você... Deixar você – repetiu com nostalgia — Você que ainda é o meu sonho mais lindo, que ainda faz meu coração acelerar – não podia utilizar os verbos no pretérito, ainda era real, era intenso e verdadeiro. Estava tão perto dela novamente, depois de tanto sofrimento, que ao olhá-la quase se esquecia de tudo e se jogava em seus braços, mas precisava se concentrar e revelar os seus motivos e então partir. — Estou começando a sentir que seria melhor não saber... — Não. Não quero que viva na especulação. Não quero que deixe ninguém roubar o que vivemos de bom. O que vivemos foi... Não encontro palavras para descrever os melhores momentos da minha vida. Sei que depois que parti, perdi a vontade de viver, de sonhar... Aquele acidente me tirou tudo... Literalmente tudo. Era impossível para mim pensar no mundo sem você comigo, não sei o que faria se você tivesse morrido... Não sabe o que passei. Nunca fui religioso, mas cheguei a rezar e pedir a Deus para não te levar. Eduarda olhou para ele incrédula. — Bravamente você foi forte e se recuperou. Quando soube que você não se lembrava de mim, não sabe o quanto sofri. Doeu-me tanto! Não tinha planejado deixar você. Não havia pensado nesta possibilidade. Fiquei furioso quando soube que não se lembrava de mim. Por quê? Porque se apagaram estas lembranças? Senti-me traído, então no meio daquele furacão vi uma luz e pensei que era Deus agindo. Pela primeira vez acreditei em Deus. Eu não precisava te perturbar, te entristecer e de ter esta conversa. Desejei que jamais se lembrasse de mim. Eu era um estranho para você – sua expressão de dor era quase palpável. Seria melhor que você nunca recuperasse a memória. — Seja direto. Estou... – ele a interrompeu, continuando sua explicação. — Eu morri naquele hospital e não quis te levar
junto comigo. Escolhi deixar você viver uma vida linda, de sonhos, como sempre quis! Eduarda sentiu um arrepio percorrer pelo seu corpo. Viu a dor no olhar dele e sentiu que eram verdadeiras aquelas palavras. Percebeu que estava com medo... Medo de ouvir aquela revelação. Conhecia Bruno e só mesmo algo muito grave para ele ter feito... — Eu estou vivendo nestes anos longe de você com nossas lembranças. Agradeço a Deus todos os dias pela oportunidade de viver um amor, de ter estado ao seu lado por seis anos. — Estou ficando assustada... – os olhos dela estavam repletos de lágrimas. — Eu tive muito ódio, muito rancor. Questionei Deus. Cheguei a gritar que ele não existia. Como poderia um Deus permitir aquele sofrimento? Depois eu vi que foi ele quem agiu, que me deu e me tirou você na hora certa. Os 1.460 dias, as 35.040 horas que vivi ao seu lado foram um presente, uma dádiva. Quantas pessoas passam nesta vida e não vivem um amor? Eu tive você por maravilhosos seis anos, para me aquecer por toda a minha vida. — Vou enlouquecer... – as lágrimas já rolavam pela face. Sabia que algo terrível seria descoberto. — Você não pensou em tudo, porque as pessoas tem medo de pensar, de falar. Acham que é uma realidade que não existe para elas. Pense bem, quem iria pensar em um médico nesta situação? — Você teve câncer? — Viu? Você não fala, porque não pensa. Não pensa que uma pessoa como eu, possa ter AIDS. Eduarda sentiu-se fraca o suficiente para cair, embora tenha conseguido ficar de pé, em contrapartida as lágrimas não pediram licença e jorraram em sua face. Uma expressão de horror tomou conta de seu ser e ela colocou as mãos na boca em um gesto para abafar o próprio grito.
— Entende o motivo da minha partida? Para que despertar uma memória e depois trazer a dor? Ficar longe foi o melhor – fez uma pausa — Para você. Para mim foi como se tivesse passado milênios em profundo sono com infinitos pesadelos. E você refez sua vida, apaixonou-se e está bem! Poderá se casar e ter uma vida linda de sonhos, ter filhos... Nesta hora sentiu como se alguém tivesse lhe dado um soco no estômago, tamanha dor ao ouvir a palavra “apaixonouse”, imediatamente foi arremessada para Augusto! Ao lembrarse dele sentiu um desespero lhe invadir, porque sabia que suas vidas estavam marcadas pelo sofrimento. Eduarda não conseguia dizer nada, não conseguia se mover. Todas as suas esperanças e pensamentos inarticulados foram esmagados diante de tal revelação. O horror se apoderou dela com tanta força que por minutos, longos demais, sentiu-se em um filme de terror onde seria a próxima vítima dos “Jogos Mortais”, onde ninguém escapa por mais que tente. Sua mente começou a buscar informações sobre o HIV. Sabia que ainda não havia cura, mas que desde 2005 a ciência e a tecnologia evoluíram muito e que a eficácia dos medicamentos diminuiu bastante a mortalidade de pessoas com HIV e aumentou a perspectiva e qualidade de vida delas. Não sabia muita coisa, mas já havia lido que pessoas portadoras do vírus viviam uma vida normal... Bruno, como médico, sabia disto mais do que ela! Então isso não justificava o desespero dele. Timidamente olhou para ele. O que fazer agora? O que dizer? Não podia ser verdade... — Eduarda! Diga alguma coisa! Devagar, lentamente seus pensamentos conseguiram ultrapassar o muro da dor e do desespero. Então empurrou todo o medo e terror para o mais fundo que pôde e olhando firme para ele falou: — Como ousa dizer isso pra mim? — Eduarda...
— Você foi covarde, cruel... Julgou-me pequena, incapaz de estar ao seu lado. — Você está gritando! — Não sei o que pensar! O que dizer. Fala que é mentira, que está usando essa desculpa para justificar sua falta... — Não é uma justificativa, é a minha condição! – falou severamente. — Não acredito. Não pode ser. — Acredite. Nesse instante Eduarda sentiu-se novamente congelada. Uma hipótese nada menos apavorante passou por sua mente. — E será que... Pavor! Pavor era o que ele via em seus olhos. — Não! Você não se contaminou. — Não é o que eu iria dizer. Eu não sei o que falar... — Então me ouça. — Pare! Não quero ouvir. Você é um cretino! Como ousa dizer isso para mim? Como ousa dizer que tem essa doença e que foi embora por isso. Estou com ódio de você... – ela não conseguiu se controlar e chorou muito. Ter imaginado previamente aquela reação em nada aliviou, foi doloroso estar ali. Nos últimos anos de sua vida foram poucos os momentos de felicidade, e acabara de viver mais um dos incontáveis dias de sofrimento. Com toda força de sua alma queria abraçá-la, beijá-la, dizer-lhe que nada mudou e que ele estava ali, mas uma sombra negra chamada realidade, cruelmente o impedia de viver o que sentia. Não podia, precisava manter distância. — Quando você estava em coma logo depois do acidente, precisou de uma transfusão porque perdeu muito sangue. Temos o mesmo tipo sanguíneo, lembra? Doei sangue para você, só que não pôde ser usado! — Me disseram que foi você quem doou. E... — Todos pensam que fui eu. O Dr. Jander foi muito
generoso comigo. Doação de sangue, independente de quem doa é um método muito seguro, todos os testes são feitos antes. — Então não sabia antes que tinha... Tinha essa doença? — Pode dizer o nome Eduarda. É HIV. E é claro que eu não sabia! Eu nunca enganei você. — Há quanto tempo, Bruno? Quanto tempo está doente? — Bom, como eu ia dizendo o Dr. Jander é meu amigo, você sabe. Ele me chamou com muita discrição juntamente com a Dra. Rafaela, que eu conhecia de vista. Ela é psicóloga do hospital. Quando a vi ali, achei que a notícia era outra, pensei que você tinha falecido. Meu Deus, eu fiquei louco! Ele me chamou na sala dele, com a Dra. Rafaela! Não era boa notícia. Conhecia bem este procedimento. Fiquei desesperado – com grande angústia, a mente de Bruno voltou para aquele dia. — O que aconteceu? – seu pânico era evidente. — Calma Bruno! Você precisa de calma – disse Dr. Jander com serenidade. — Como posso doutor, a minha noiva neste estado. Pelo amor de Deus, não me diga que ela se foi... — Não Bruno. O quadro dela é o mesmo. Ela não piorou, mas também não melhorou. Bruno olhou desconfiado para a Dra. Rafaela. — Dr. Jander, sei que algo aconteceu. Conheço os procedimentos do hospital. A Doutora aqui não é à toa! – falou olhando para ela. — Como vai Dr. Bruno? Estou aqui para ajudar-lhe. — Sente-se Bruno, precisamos conversar – disse Dr. Jander calmamente. Bruno sentou-se. Dr. Jander foi um de seus preceptores e era seu amigo. Era um homem mais velho e costumava dizer que o considerava como filho, por isso a liberdade em chamar-lhe pelo seu primeiro nome. — Bruno você está passando por um momento muito difícil. Sua noiva em estado grave na UTI. E as condições que aconteceram este acidente. No dia do seu casamento, ela indo para a igreja... Foi um
momento muito tenso, meu amigo, muito estressante, de muita dor e angústia. Como tem passado esses dias? – perguntou Dra. Rafaela. Então era isso. Estavam preocupados com seu lado psicológico? Tinham este costume em acidentes traumáticos, de dar atenção aos familiares das vítimas e o Dr. Jander, por ser seu amigo, estava presente. Sentiu um alívio muito grande, mas não queria aquele tratamento, não precisava daquilo. — Como poderia me sentir doutora? Estou desesperado, sofrendo e muito otimista. Sei que Eduarda vai se recuperar. Tenho certeza disso. — Não falo dela doutor, falo de você. — Eu disse, estou sofrendo, mas otimista. — Tem feito exames para verificar sua saúde Bruno? – perguntou seu amigo. — Não doutor Jander. Eu... Na verdade nem me lembro de quando passei mal. Senti uns enjoos, umas tonturas, mas nada grave. Mas afinal de contas o que é isso? — Você não tem sentindo nada? — Não! – falou já irritado. Começou a desconfiar que desejavam contar-lhe algo, mas estavam preparando o terreno primeiro — Tem certeza que Eduarda não piorou? É alguma sequela que já descobriram? — Eduarda está... estável. O assunto aqui é sobre você! Sua saúde. Bruno sentiu uma seriedade na voz do Dr. Jander que o preocupou. Percebeu que era algo grave. O que poderia ser? Conhecia aquele tom médico. Ficou intrigado. Não fez exame para nada! Como poderia ser sobre sua saúde? A menos que... Lembrou-se que doou sangue, mas os resultados eram tipagem sanguínea, anticorpos irregulares e sorologia para hepatites B e C, chagas, sífilis, HTLV e HIV... Achou melhor perguntar logo. — O que encontraram na minha amostra de sangue para me chamarem aqui? — Devia saber que logo você iria perguntar. Sempre foi muito inteligente, perspicaz, ativo, esperto! Sempre “matava” as charadas quando era residente. Não é por acaso que se tornou este grande médico! Tenho muito orgulho de ter sido seu professor.
— Obrigado doutor. Sinto-me lisonjeado com suas observações, mas não iriam me chamar aqui neste suspense total para informar algo sem importância. Então vou ser direto e quero que sejam diretos comigo. O que encontraram? Dr. Jander entregou-lhe os exames. — Você mesmo pode olhar Bruno. Juro que gostaria de não estar presenciando este momento e, por outro lado, não poderia deixar outra pessoa deste hospital lhe dar este diagnóstico. Bruno pegou os exames e quando abriu era o que imaginou: antiHIV 1/2 e NAT HIV. Positivo. Sentiu um amargo na boca. Suas vistas não queriam acreditar no que estava vendo. Passou a mão pela boca, depois nos cabelos, então foi para o próximo exame, com suas mãos tremendo. Repetição dos exames, resultado confirmado. O próximo exame era contagem de linfócitos T-CD4+ (LT-CD4+), resultado 350/mm³. Até mesmo a repetição dos exames foi feita. Quando foi que fizeram? Não importava, o problema estava no resultado e não como e quando foi executado. Ficou alguns minutos apenas olhando para os papéis em suas mãos como se tivesse saído do ar. Quando retornou a si não sabia o que fazer, nem o que dizer, os papéis delatavam o quanto tremia. Ficou muito tempo olhando pra eles sem nada pronunciar até que os dobrou e os colocou sem jeito no bolso. Então apoiou o cotovelo na mesa e a cabeça em suas mãos. Estava tonto ou estava acordando de um pesadelo? Nenhuma das alternativas... havia entrado em um perpétuo pesadelo. — Sinto muito Bruno. O Dr. Maurício, responsável pelo laboratório me procurou com os resultados em mãos. Ele já havia repetido o exame, mas eu pedi que fizessem em outra amostra da bolsa coletora. Ele pegou do que estava armazenado para doar e repetiu. Sabe que não fazemos isso, mas você é nosso amigo, parceiro. Então tomei a liberdade e o pedi, em sigilo, que fizesse a contagem de linfócitos. Precisava saber como você estava, mas precisa repetir os exames, conhece os procedimentos. Bruno nada dizia. — Não brinco quando digo que é como um filho para mim. É verdade! Eu te amo como um filho e sofri muito com isso e estou
sofrendo. Por isso tive a ousadia de pedir outros exames e poder ter essa conversa já sabendo como você está. — Não sei se o agradeço ou se o mando para o inferno com todos estes papéis. Sinceramente não sei. — Nem eu. Não sei o que lhe dizer, mas sua imunidade está caindo e precisa começar a tomar os medicamentos... — Dr. Jander não precisa me explicar esta parte. — Dr. Bruno, não precisa achar que é o fim, porque milhares de pessoas vivem normalmente com o HIV e... — Dra. Rafaela, conheço o seu trabalho e todo o seu discurso. E dispenso. Sei muito bem o que está acontecendo comigo e as condições de vida que terei daqui pra frente. — Eu apenas quero ajudar... — Eu sei, mas neste momento não quero ajuda. Dr. Jander, posso lhe pedir um favor? — Claro Bruno. — Poderia fazer o teste na Eduarda para mim? — Bruno, estamos falando de você e... — Estamos juntos há seis anos, doutor, sabe que ela pode estar contaminada e preciso saber. Por favor. — Já pedi Bruno. O resultado sai amanhã. Pedi hoje cedo. — Quem sabe desse diagnóstico? — Nós aqui e o Dr. Maurício. Mais ninguém. — Bom, peço sigilo, não quero que ninguém mais fique sabendo. — Bruno, não precisa pedir, sabe que jamais falaríamos, mesmo porque a lei lhe dá o direito de sigilo, mas sabe que não precisa esconder... — É meu direito. E neste momento não quero que mais ninguém saiba. — Tudo bem, sua vontade será respeitada. — Preciso ficar sozinho agora. Com licença. — Bruno, tem certeza que vai ficar bem? – perguntou a doutora. — Não se preocupe Dra. Rafaela, não vou me matar. Até porque acho que já fiz isso, só preciso descobrir quando! – e saiu da sala. Escuridão, sombra, vazio, desespero, angústia, raiva... Bruno
saiu com aquelas palavras e sentimentos atordoando-o. Como conviver com tudo isso sem enlouquecer? Naquele momento, tudo era terrível. O que fez para merecer tanto sofrimento? Estava prestes a ter o momento mais feliz da sua vida e de repente acordou no inferno! O assombro, a apreensão e o horror o oprimiam. Ele se recusava a acreditar naquilo. Sentiu medo. O medo. Medo de morrer. De adoecer. De sofrer. De repente só pensava em apenas uma única palavra daquela folha de exame: REAGENTE. “O que vou fazer da vida agora? Como as pessoas vão reagir? Como vou contar para a minha família? E Eduarda? Meu Deus! Será que ela tem o vírus também? Será que eu a infectei? Ou foi ela quem me passou? Não, era tudo sem lógica... Acho que vou vomitar” – pensou ele. Eduarda ouvia o relato sem interromper, apesar de ter tido esta vontade várias vezes. — Voltei no outro dia e procurei o Dr. Jander – continuou em sua explanação. — Bruno, eu te liguei, mas você desligou o celular e... — O resultado dela já saiu? — Bruno, você está me ouvindo? — Estou bem Dr. Jander. Nada mudou de ontem para hoje. Estou aqui, portanto não me matei! O resultado já saiu? Dr. Jander ignorou o sarcasmo do amigo e respondeu: — Sim Bruno, está aqui. Não precisa desta rispidez, somos amigos... Bruno pegou com pressa, estava muito ansioso e respirou aliviado quando viu “Negativo”. Olhou a confirmação do teste e então sorriu. — Obrigado doutor. Não consegui dormir esperando este resultado. — Sabe que legalmente posso... — Não será processado. Fique tranquilo. — Seu amor por ela me comove. Nesta hora os olhos de Bruno se encheram de lágrimas. Doutor Jander o abraçou.
— Meu amigo, pode contar comigo. Sou seu amigo, viu? — Obrigado – foi o que conseguiu dizer. Bruno saiu em disparada. Trocou a roupa para entrar na UTI para visitá-la. Passou pelos procedimentos, lavou as mãos e braços, retirou a aliança e entrou. Ao olhar sua amada ali toda ligada naqueles aparelhos, respirando mecanicamente, toda inchada sentiu-se ainda mais na escuridão. “Meu Deus, ela precisa sobreviver!” – como médico estava acostumado com aquele ambiente, com pessoas naquele estado, mas neste caso, estava emocionalmente envolvido com a paciente e sentiu muito medo de perdê-la. Conhecia bem demais os riscos. — Meu amor, estou aqui. Estou aqui todos os dias. Não fico o dia o todo porque na UTI não pode, mas você não está sozinha. Estou aqui sempre – ele segurou suas mãos — Oh, minha Eduarda! O que vamos fazer quando sair daqui? Eu sinceramente não sei, só lhe prometo que você vai ser muito feliz. Seja forte meu amor, estou aqui te esperando, ansioso pelo seu abraço, pelo seu carinho... Vou cuidar de você. Não se entregue, seja forte e lute pela vida! Se você lutar pela sua vida e sair daqui, vou lutar pela minha também. Se você se entregar, não resistirei, não sei viver sem você, então resista para nossa sobrevivência. Sei que pode me ouvir, sei que está aqui, então preste atenção. Estou aqui fora todos os momentos e só vou sair daqui junto com você. Não tenha medo. Eu te amo! Ele beijou-lhe as mãos. Não podia beijar-lhe os lábios devido ao risco de infecção, não podia correr o risco de piorar seu quadro clínico, e o tubo de respiração traqueal também iria atrapalhar. Ficou ainda um tempo lhe fazendo carinho, mas sabia que devia ir. — Eu volto. Pode esperar que eu volto. Eduarda ouvia Bruno contar tudo. Estava ainda muito abalada com aquela notícia. Não sabia o que fazer e pensar. Ultimamente era sua única reação: não saber o que fazer. Novamente uma questão passou por sua mente. Ela não podia tomar anticoncepcional ou nenhum tipo de hormônio, então
ela e Bruno optaram pelo preservativo para evitar filhos, mas se tudo não fosse assim, talvez tivesse sido contaminada? Não comentou nada sobre este assunto. — E por que não voltou? – ela perguntou ignorando sua linha de raciocínio. — Voltei todos os dias até o dia em que acordou e não se lembrou de mim. Resolvi esperar um tempo. Quando o diagnóstico definitivo saiu decidi ir embora. Para que fazer você se lembrar de mim e ter que revelar toda esta história? Para que trazer sofrimento? — A verdade sempre prevalece, mais cedo ou mais tarde. De que adiantou fugir? Não estamos passando por isso agora? — Pode ser. Tenho a consciência de que talvez tenha agido errado, mas fiz o que meu coração pediu e não tenho arrependimentos. E, de qualquer forma, passei por momentos terríveis, você nem imagina! Quase morri de verdade. Hoje eu tenho condições de estar aqui conversando com você controlado, seguro, naquela época eu estava desesperado... — Bruno, quando foi que se contaminou? Ele a olhou como se soubesse que seria indagado sobre isso e logo respondeu: — Fiz essa pergunta várias vezes para mim mesmo. Essa pergunta perseguiu-me tanto que me lembrei de uma garota. Com ela teve uma vez que... — Não quero detalhes Bruno. Pule esta parte – Eduarda demonstrou ciúmes ao ouvir Bruno lhe contar sobre outros relacionamentos. Sabia que ele teve várias namoradas, mas ouvi-lo relatar com detalhes não suportava, era desnecessário. — Desculpe. Então, depois da notícia consegui localizála, fui atrás e acabamos por confirmar que foi através dela que me contaminei. Ela não sabe quando se contaminou, nem para quantas pessoas passou o vírus. Foi um ciclo “contagioso”. Ela também não sabia que estava contaminada
quando ficamos juntos e só depois quando adoeceu é que teve esta tenebrosa notícia. Já não estávamos mais juntos. — Nossa! Que namorada foi arrumar, hein? — As pessoas não vêm com certificado de garantia estampado na face. Ela era da faculdade e o pessoal a conhecia, era uma boa garota. Jovens demais e juízo de menos. Mas era uma excelente garota. — Excelente, pelo visto. E te deu um presentão... — Você está com ciúmes dela? — Estou. Estou com ciúmes, raiva, decepção, tristeza, desesperada, confusa... Percebeu agora que sentimentos você trouxe para a minha vida? — Percebe agora por que não quis ficar? Não queria... — Pare com isso Bruno. Está repetitivo e cansativo. Não vamos nunca concordar e pensar igual sobre este assunto. Você só fez adiar o problema e mais, o complicou. — Como? — Esta sua atitude egoísta deixou-me cinco anos na escuridão. Na busca de minhas memórias eu encontrei Augusto e ele agora faz parte da minha vida... — Ei, eu não tenho culpa da sua perda de memória! Eu não desejei isso. — Mas se tivesse ficado eu... — Não era certo que você recuperaria a memória. Era apenas uma possibilidade. — Que eu nunca vou saber se daria certo. Sempre haverá esta dúvida! — Quanto a isso não vou negar e nem me defender. Só quero que saiba que sofri amargamente pela sua falta de memória. Por que não se lembrava de mim? Nosso amor, nossa história, você não se lembrava de nada! Foi mais que doloroso, foi... foi... Bom, você já sabe o que aconteceu e agora eu vou embora. — Para onde você vai?
— Vou para casa. Ficar um tempo com minha mãe, depois volto para o Rio. Estou morando lá. — Você não estava morando no sul? — Sim, passei um tempo lá, mas já faz quase dois anos que estou no Rio. Consegui transferência. Eduarda o olhou com carinho. Para onde havia ido toda aquela raiva e aquele ódio? Ele se aproximou dela e a abraçou com amor, ternura. Ela não fugiu. — Como eu disse, só vim te explicar tudo o que aconteceu. Preciso ir embora – ele a beijou na testa e se foi. Eduarda não conseguiu impedir, reagir, dizer nada. Estava imersa em sua dor e conflito. Na verdade estava em choque. Então viu, embaçada através de lágrimas, a visão mais perfeita da beleza indo embora e naquele exato momento entendeu que ele estava levando consigo uma parte essencial sem a qual não poderia viver: seu coração.
XIV
E
duarda não conseguiu fazer mais nada além de chorar. Chorou pela doença de Bruno, pela sua vida e por seus amores: Augusto e Bruno. Percebeu que estava em uma encruzilhada e precisava seguir uma única direção. Amava Augusto de forma sincera e plena, era feliz com ele, estabeleceram uma relação de amizade e confiança. Sim, ela o amava! Um respeitava os limites do outro e ele era um homem com atrativos físicos mais que suficientes para despertar o desejo de qualquer mulher, era inteligente, culto, com um senso de humor maravilhoso e ela amava estar ao seu lado. Mais que isto, não conseguia enxergar seu futuro sem ele. No entanto, descobriu que sentia por Bruno os mesmos sentimentos. Sabia que amava Bruno e não podia mais negar! Compartilhavam uma intensa história de amor. Desejou não ter recuperado a memória, mas este desejo logo passou, porque não se lembrar de Bruno é apagar uma tempestade do bem, de amor, de paixão, de momentos maravilhosos. Momentos únicos e preciosos demais para serem perdidos. Como não se lembrar das fantasias, dos sonhos, dos planos do seu primeiro amor? Como se esquecer do primeiro palpitar do seu coração ou de como Bruno a fazia ignorar a existência de tudo e de todos? Dos momentos deliciosos que compartilharam e do amor que foi, acima de tudo, verdadeiro e puro? Aquele amor que veio cheio de novidades, inocência, curiosidade, repleto de emoções que aos poucos se eternizou para sempre em sua memória... Não era uma lembrança que a fazia mal, muito pelo contrário, eram recordações altamente saudáveis e que só trazia benefícios. “E agora?” – riu da própria situação. Para ela, histórias assim só aconteciam mesmo em filmes e novelas.
Passou a manhã tentando colocar seus pensamentos e sentimentos no lugar. Não conseguia parar de pensar na história de Bruno. Como viver agora com esta situação? Sentiu-se impotente e sozinha. Alice estava longe, não podia contar com sua família, estava só e chorou por isso também. “Meu Deus, me dê forças e sabedoria para enfrentar essa situação. O fardo está pesado! Sinto que vou desfalecer, mas se sou capaz de suportar, me faça acreditar nisso e me dê uma direção, porque estou perdida.” Passou horas no sofá, imersa em seus conflitos até ser vencida pelo cansaço e adormeceu. Acordou já era tardezinha e decidida, arrumou-se e foi procurar por Augusto. Ele ainda estava no consultório. Dirigiu quase que mecanicamente e entrou na recepção diante de vários olhares. Usava seus óculos escuros, não queria que ninguém visse seus olhos inchados pelo choro. — Boa tarde. Augusto está com paciente? – indagou a secretária. — Boa tarde, Eduarda. Tudo bem? Não, ele está sozinho, quer que eu anuncie... — Não, obrigada – saiu em direção à sala de seu médico, seu noivo, seu amor... Bateu na porta, esperou alguns segundos e entrou. — Olá! Atrapalho? — Eduarda! Que surpresa! O que aconteceu... Ela se aproximou e o abraçou fortemente. Ao vê-lo sentiu a inquietude de seu coração se dissipar. Ele tinha o dom de tranquilizá-la e ao seu lado tudo parecia pequeno e simples. Não percebeu que Augusto estava abatido. — Você não me ligou hoje! Saiu lá de casa e... — O que houve? – perguntou interrompendo-a e tirandolhe os óculos escuros da face. — Por que chorou tanto? – beijou-a suavemente e a conduziu até a poltrona do outro lado da sala. — Bruno esteve lá em casa hoje – foi direta. Ele mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça. Estava com ciúmes e não procurou esconder. Apenas controlou-se.
— Conversaram? Esclareceram as dúvidas? — Sim. Augusto estava com medo. Não queria perdê-la, contudo, pressentia o perigo. — Não vou fingir alegria, Eduarda. Estou com ciúmes e com raiva desse homem que retornou para sua vida e... O que ele disse? Por que chorou? Ela colocou os dedos em seus lábios, silenciando-o. — Escute-me primeiro. Eles foram para o sofá e sentaram lado a lado. — Vou ser direta. Bruno foi embora porque descobriu que é portador do HIV. Augusto ficou perplexo. — Eduarda, juro que pensei muitas coisas, mas jamais me passou isso na mente. Eu... Não sei o que dizer. — Acho que ninguém pensou em algo desse tipo. — Não gosto de Bruno, porém não queria que isto estivesse acontecendo. Acredite, estou consternado. Eduarda lhe relatou toda a conversa que tivera com Bruno. — Estou tão perdida, Augusto. O que eu faço? Ele a olhou incrédulo. O que ela esperava que dissesse? — Confesso que não entendi a sua pergunta. Como assim o que faz? Em relação ao quê? Ou melhor, a quem? — Não é o que está pensando. O que faço agora com estas memórias dolorosas e com esta revelação? Você me ensinou a viver sem minhas memórias e preciso que me ajude a viver com o regresso delas. Ele a abraçou. — O que seu coração está pedindo? — Nada, apenas sofre! — Agora que sabe de tudo, sua memória voltou, não existe mais escuridão, o que sente por mim, Eduarda? A pergunta a pegou de surpresa, no entanto, não teve dúvidas em responder:
— Eu te amo! Eu apenas estou abalada, aflita, mas... — E o que sente por ele? Ela o olhou surpresa, não esperava por aquela pergunta. — Não sei mentir para você. Eu gosto dele – sua voz perdeu a tonalidade, ficou quase inaudível. Não podia dizer que o amava — Augusto, nada mudou entre nós, acredite! — Gosta? — Sim. Sinto raiva dele, mas é como se eu tivesse acordado do coma. A diferença é que antes do acidente não existia você e agora existe, é real e eu te amo. Não tenho dúvida em relação a isto. Ele a beijou, interrompendo-a e novamente foi pega de surpresa. Correspondeu ao beijo, abraçando-o sem deixar de estranhar tal atitude. Depois do beijo ele a olhou firmemente. — Poderia fingir que não sinto, que não percebo, mas não quero e não vou me iludir e deixar você se iludir – as palavras saíram rápidas demais em um misto de emoção, confusão e ansiedade. — Eu não estou entendendo. — Entende sim e está com medo. Sei que não deseja me machucar, mas sabe a resposta para toda esta confusão. Ah, Eduarda! Não será capaz de imaginar o quanto tive medo deste momento! — Está enganado. Lembrar-se de Bruno não apagou o que sinto por você! — Não apagou o que sente por mim, mas trouxe de volta para sua vida o que sentiu e sente por ele. E sabe, agora sabe que o ama. E sabe que precisa escolher! — Sou sincera quando digo que te amo. — Claro que sim! Acredito em você e no seu amor. A questão é outra! Ela abriu a boca para falar e ele continuou, impedindo-a. — Tudo que desejo é que nossa vida volte, que nossos planos sigam adiante. Droga Eduarda! Não desejo perdê-la.
Nosso casamento é daqui alguns dias... – levantou-se. Seu andar descompassado pela sala revelava seu nervosismo. Seu olhar era apreensivo, na verdade, estava com o rosto endurecido e decidido. — Não sei ainda como vou viver daqui pra frente, porque te amo. Quando te vi entrando neste consultório na primeira vez me apaixonei, meu mundo mudou naquele dia. Não sabe como preciso de você para preencher minha vida. Contudo, não posso deixar de sentir esse amor que sente por ele saltando de seus olhos, gritando para ser liberto. E por amá-la demais é que não vou prendê-la a mim. — Eu não quero que termine assim. É isto que está tentando dizer? – seus olhos estavam cheios de lágrimas. — Estou dizendo que está... – ele fechou os olhos e suspirou — Está livre, Eduarda – ficou de costas para ela. Somente ele sabia o esforço para conseguir pronunciar tais palavras já que todo o seu ser, até sua alma desejava o oposto. — Pode parar com isso? Eu não quero terminar com você. Está louco? — Sei que não. — Augusto, eu não pensei, nem por um segundo, em cancelar nosso casamento... — Não posso me casar com você e vivermos com o Bruno entre nós dois. Ah, Eduarda, eu quero você inteira para mim – sua voz estava trêmula. Ela se sentou, desolada. Nem se lembrava de ter levantado. — Sua história com ele foi interrompida pelo destino e não sei os motivos, não ouso imaginar o porquê ele os uniu novamente. — Augusto ele está com... AIDS. — Isso muda alguma coisa para você? Você sabe o que é esta doença e como vivem os portadores de HIV. Levam uma vida normal... Ele fugiu porque estava assustado, o primeiro momento foi de recusar e não aceitar sua nova condição, autopreconceito, mas eu sei, ele sabe e você sabe que podem ter uma vida normal diante do HIV.
— E o meu amor por você? O que faço com ele? — Nosso amor vai ser a coisa mais linda que eu tive. Uma lembrança boa! Não precisamos arrumar motivos para nos odiarmos, nem porque escondermos que foi lindo, transparente, um amor limpo e que não pode continuar. — Mas eu te amo e... — Não faça isso... Eu te amo. Não torne esse momento mais difícil. Você sabe, eu sei, são dois amores dentro do seu coração. Isso é possível. São muitas formas de amar e vários tipos de amores, mas sempre vai ter um que o coração bate mais forte. Quando ele surge em nossas vidas é tão intenso que se torna impossível dividi-lo com outro. Ficamos em um estado de tanta urgência e encantamento, que só conseguimos pensar em uma única pessoa, e eu sei que no seu caso a paixão, o encantamento é por Bruno. — Você está louco! Eu digo e não quer me ouvir. Eu te amo, Augusto! Não consegue ver que te amo e que sinto amor, paixão, urgência por você? E você me disse que seria uma decisão minha. Só se eu quisesse que você saísse da minha vida e eu definitivamente não quero. Ele se aproximou dela. — Ah, Eduarda, tudo que eu mais quero é você. Ela o beijou. — Então fique comigo! — Vamos fazer assim então. Você vai pra casa, coloque seus sentimentos em ordem e domingo eu vou lá para conversarmos, pode ser? — Para que isso? — Assim terá tempo de colocar alguns pensamentos em ordem e eu também. Estou com ciúmes neste momento e não consigo raciocinar. Precisamos pensar. — Não me deixe, Augusto. — Não vou deixá-la – ele a beijou. — Te espero domingo.
— Estarei lá. Eduarda saiu e assim que fechou a porta atrás de si, Augusto se jogou no sofá. Estava tomado de raiva. ooo Dois dias parecera uma eternidade para Eduarda e Augusto. Domingo, na hora do almoço, ele chegou. Ao abrir a porta e vê-lo ali, seu coração sentiu uma alegria imensa. Não resistiu e se jogou em seus braços, que a acolheu e a apertou em um abraço forte. — Senti sua falta. — Eu também. Ele entrou e se sentou no sofá. — Augusto eu preciso de você – ela olhou para baixo e ele segurou-lhe o queixo carinhosamente, fazendo-a olhá-lo. — Está mais calma? — Não. Como poderia estar calma se você me fez ficar dois dias sozinha? — Não pense que foi fácil para mim. Cheguei a dirigir até aqui em frente. Um desejo de subir e te ver... Mas precisávamos deste tempo. — Não faça mais isso comigo. — Você pensou em tudo e conseguiu organizar seus sentimentos? — Eu aprendi a viver sem as lembranças do Bruno e de repente tudo voltou. Parece que eu voltei no tempo, é como se eu tivesse voltado naquele ano do acidente. Augusto se levantou e foi para a janela. — No entanto, Augusto, eu te amo. Quero você! Tenho certeza disso. — Então está me dizendo que não sente nada por Bruno e que vai seguir sua vida, nossas vidas, sem pensar e nem se importar com ele? – Havia raiva em sua voz.
Eduarda respirou fundo e respondeu quase que em um sussurro: — Não! Não posso! Você está complicando... Eu não posso fingir que não me lembro, mas sei o que sinto por você. — E o que sente por ele? Creio que já pode responder. Teve tempo para organizar este sentimento. — Augusto, não interessa o que sinto por ele. Não estamos aqui para falar dele e sim de nós. Eu escolhi, quero você. Eu me entreguei a você. Ele a olhou naquele instante com doçura e paixão. — Foi o momento mais mágico que vivi. É a consumação de um amor que ultrapassa o imaginável. Entenda que eu nunca duvidei do seu amor por mim, minha querida – sua voz era doce, amável — Mas nós também sabemos o que sente por ele. Você não negou nenhuma vez que também o ama! – falou bruscamente. Ela engoliu em seco. — Percebe agora, você quer me escolher porque sabe que alguém vai ficar machucado e você não quer me machucar. Então estou facilitando para você, afinal não quero me passar por tolo. — Não consigo ver onde é que está facilitando para mim. Porque eu sei que está doendo demais. Você está terminando comigo! — Não queria dizer estas palavras, contudo, temos aqui um conflito ético: você e seus dois amores: eu e Bruno! Então em nome desta ética, da nossa sociedade e cultura monogâmica terá que optar por um. Sua decisão, qualquer uma, vai exigir um sacrifício e com consequências para um dos dois. E onde é que eu facilito? Deixando você livre! Não porque sou o bom moço, mas porque sei o que sinto por você: Eu te amo! E não posso, não quero, não sou capaz de dividila. E se ficar comigo terá sempre esta dor, este sentimento te arremetendo para ele e eu não quero... Assim eu não quero. Quero você como sempre tive: inteira só para mim. Não sabe como sofro por saber que já não é mais só minha!
— Você pensa que é assim, mas... — Sei que pensa nos beijos dele, nos momentos com ele – havia amargura em sua voz e expressão. Seu olhar estava marejado de lágrimas, mas segurava-as para não cair. — Não é dessa forma que está dizendo. — Racionalmente eu sei, sei que tenta não pensar, e que não deseja me ferir, nem me trair. No entanto, não sou tão racional ao ponto de beijá-la e saber que pensa nos beijos dele. Não posso conviver com isso. — Eu não... Quando te beijo estou só com você – estava confusa demais. — Você não consegue negar. Este sentimento exala de você, qualquer um pode ver e perceber. Não tente me fazer de tolo! Sempre temi este momento e estava certo. — Não tive esta intenção. — Não precisa tentar me fazer sentir melhor. Tenho meu orgulho. Você foi o melhor sonho que eu tive, queria jamais acordar desse sonho que sei, foi real, mas a realidade bateu na porta e eu abri. — Não fale assim comigo! Construímos uma história e você não a considera... — Você precisa compreender que sentir não é controlado. — Então é assim que vai acabar nosso amor, nossa história? — Acaba aqui nosso compromisso, meu amor não. E sei que o seu também não. Sei que me ama. Porém, quando coloca os elementos de uma relação na balança, por ele pesa mais. No meu coração, aonde quer que eu vá você vai sempre estar aqui – ele colocou a mão sobre o coração — O meu amor por você jamais acabará. — Você prometeu que jamais iria me deixar. — Sim. Estarei sempre presente, não como noivo, marido... e sim como amigo. — Não posso ser apenas sua amiga! — Sei que não. E eu também não posso e não quero ser
apenas seu amigo. Eu quero você como minha mulher. No entanto, o amor que sinto me obriga, me direciona a você, então estarei sempre pronto para ajudá-la. — Não quero terminar com você. Não me passou isso pela cabeça. Augusto, eu preciso de você. — Eu sei que não deseja terminar. Muito menos eu! Eduarda o olhou misteriosamente e permaneceu em silêncio. Não conseguia encontrar as palavras para explicar a ele a confusão de seus sentimentos. Lembrou-se de sua amiga Alice, que sempre dizia que quando se lembrasse de Bruno seu amor por ele também voltaria. Como era possível? — Então vai ter que escolher entre nós dois. E sei que seu coração clama por ele. Não tente amenizar, protelar... Não tem nada que você possa me dizer que vai fazer com que eu te ame mais ou menos. O meu amor está em um nível elevado, sublime, e é por esse amor que sei que precisa ir – diante do silêncio dela, Augusto se aproximou com uma expressão dura. As palavras dele ficaram ecoando em sua mente e Eduarda o olhou decepcionada. — Não pode decidir por mim assim. — Negue que o ama e que não pensa nele e que quando está sozinha, seu coração chama por ele. Negue tudo que eu disse e me afirme que não vai pensar nele, que não o ama! Então seja sincera e me responda: você não sentiu nada por ele? Está imune diante dele? É tudo que eu mais desejo ouvir! Se for capaz de olhar para mim e me dizer que não sente nada por ele, que está imune, eu juro que jamais te deixarei. Basta você me dizer isso, porque foi tudo que não ouvi ainda. O mistério está no silêncio, naquilo que não foi dito. É preciso aprender a ouvir o silêncio mais do que ouvir as palavras, porque é no silêncio que você encontra a verdade. Ela olhou para o chão, para evitar seu olhar. O silêncio foi amplo na sala, então ele sorriu ironicamente. — Não posso beijá-la, tocá-la, sabendo que pensa nele. Eu
vejo a dor em seu olhar e mesmo sem querer, deixo você partir pra que possa tentar ser feliz outra vez... – após um breve pausa continuou — Com ele. Não posso prendê-la junto a mim se conheço o desejo do seu coração. Vá recomeçar sua história e colocar as coisas no lugar dentro de você. — Pensei que me amava e... — Não sabe o que diz. Caramba, Eduarda! Não percebe! Por te amar tanto é que me rendo a esta sua história e deixo você ir. Sei que chegarei perto da morte... Precisarei conseguir forças que não sei de onde virão. No entanto, como eu disse, é melhor decidirmos isto agora antes que se agrave. Não quero morrer aos poucos, prefiro uma morte súbita. Compreende o que digo? Ela abaixou os olhos e mordeu o lábio. — Está doendo. — Em mim também. Deixá-la ir é como se eu estivesse assinando meu próprio atestado de óbito. — Não quero isto, Augusto! — Assumi esse risco quando começamos, lembra? Ela não conseguiu mais se controlar e chorou. — Nunca mais serei a mesma. Não posso ir sem deixar uma parte de mim com você. — A vida dá muitas voltas. A gente pode se encontrar em uma dessas voltas novamente ou nunca mais. Quem poderá saber o que a vida reserva para a gente? Nada neste mundo é irremediável. Para tudo dá-se um jeito. Não há razão para chorar, não tenha medo! Vá ser feliz. — Estou com medo, estou sofrendo. Não consigo ver a felicidade em meu futuro sem você! Só vejo escuridão. — Existe luz na escuridão. Na verdade a escuridão só existe porque há a luz. É só você acendê-la. Não há motivos para medo. Vejo no seu olhar a força que precisa para lutar e sei que vai vencer. Assim como venceu o acidente, venceu seus medos quando entrou no meu consultório, venceu as batalhas que travou desde a adolescência. Você é forte e guerreira.
— Não existem palavras capazes de amenizar a dor que sinto. Quando o destino nos chama é preciso lutar, e mesmo separados estaremos juntos, juntos por esse elo, essa cumplicidade, esse amor que se tornou tão forte e especial. Eu amo você, Augusto, o que eu faço com este sentimento? Ele a abraçou e os dois se beijaram. Um beijo com gosto de adeus. Augusto não podia prever que um beijo fosse capaz de carregar um imenso desejo e que o doce poderia ter gosto de fel. Queria segurá-la ali, ouvi-la dizer que estava enganado, que não podia viver sem ele, que não podia ser feliz longe dele e que não sentia nada por Bruno, mas não ouviu. Sabia que Eduarda nutria por sua pessoa um sentimento grande, forte, mas não o suficiente para apagar o amor que ela tinha por Bruno e fazê-la ficar. Dor, dor e dor, era tudo que podia sentir naquele momento. Sempre soube que havia motivos para temer aquele momento. — E agora? – perguntou Eduarda desolada. — Agora é ir. — Você não vai lutar por mim e nem tentar me impedir? — Lutei por você por quase cinco anos. Tentei fazer com que esse amor fosse forte o suficiente para você e que quando se lembrasse de Bruno, esse amor seria tão forte que ele não teria a menor chance de tê-la de volta. Como eu lutei por esse amor! Não percebeu, mas lutei com todas as forças que tinha, mas é preciso saber perder. O que deseja Eduarda? Ver-me desesperado? Chorando? Pedindo para ficar e ver você me dando mil explicações do porque precisa ir? Não acha que já estou humilhado, sofrendo? Se vai te aliviar saber, vou chorar, vou sofrer, melhor, já estou sofrendo, contudo, não vai ver isso. Siga seu caminho, saiba que tudo que lhe disse é verdade, mas que estou decepcionado, porque bastou dois dias com ele, 15 dias de lembranças para você escolher, mesmo que ainda não tenha total consciência desta escolha. Vou ter que viver com isso, mas não me peça para lutar mais, porque lutei quando sabia que tinha chances, mas agora sei que já perdi e não quero travar outra batalha já fadada ao fracasso.
Havia rispidez em sua voz e Eduarda entendeu o que ele queria dizer. De repente aquele homem amável vestiu uma armadura de ferro, transformou-se, ali em sua frente em um homem frio, sem grandes emoções, metódico, mas era pura proteção. Entendeu que não podia fazê-lo sofrer mais. Ela segurou-lhe as mãos e olhando dentro de seus olhos disse: — Desejo de verdade que me perdoe e que não fique mágoa. Apenas olhe em meus olhos agora Augusto, não precisa responder, apenas olhe – ela levou uma das mãos dele até seu peito — Consegue sentir meu coração acelerado? Assim como soube que algo mudou, olhe e veja, veja dentro dos meus olhos o que não mudou. O meu amor não mudou, talvez um dia você entenda, ou não, mas saiba que existe algo aqui que jamais mudará. Não sei se conseguirei te provar isso um dia, mas preciso que veja, preciso que sinta. Meu coração está acelerado, porque não consigo ser indiferente, deixar para trás, abrir mão de uma pessoa tão importante sem sofrer. Às vezes tomamos decisões ou elas são colocadas em nossas vidas e a gente aceita, mas não significa que não trazem perdas irreparáveis. Vou sentir sua falta! De verdade! Au gu st o tomou todo s eu autoc o n trole p a ra n ã o s e desmanchar ali. — E quero que se lembre. Foi você quem escolheu primeiro nossa separação – disse Eduarda. — Não! Você só não teve coragem de me dizer o que sentiu, o que desejou, o que reviveu. Estou apenas facilitando as coisas de forma que ninguém possa se ferir mais do que o necessário. E não vou ser falso de dizer que sou o bom moço, magnânimo, porque não sou. Apenas quero que tudo seja como sempre foi: digno e transparente, nada mais. Não quero e não aceito dividi-la, nem mesmo por pensamento. Estou lutando para manter este controle. E você precisa aprender uma coisa, Eduarda. Você sempre terá o poder de escolha. — Por que se apega a isto? Por que não consegue se ater ao fato de que amo você?
— Porque sou egoísta demais. Ciumento demais. Ah, Eduarda não suporto a ideia de que o ama, que pensa nele. E não quero que nossa história acabe nos ferindo mais do que isto. Não consigo, me perdoe, mas não consigo. Ela entendeu o quanto ele estava se esforçando para manter a conversa naquele nível e resolveu aceitar e deixá-lo ir embora. — Augus-to... – seu rosto estava todo mergulhado nas lágrimas — Não sei se suportarei a sua ausência. — Você é mais forte do que pensa – ele passou a mão em seu rosto, virou e se foi. Quando a porta se fechou, Eduarda correu e se jogou na cama. Augusto chutava a lixeira que estava por perto assim que chegou à rua. — Como pude deixar isso acontecer! – estava zangado, decepcionado. Ficou um tempo olhando a porta do prédio, sua razão sabia que isso aconteceria, mas seu coração tinha a esperança de ver aquela porta se abrir e Eduarda voltar, jogar-se em seus braços, dizer-lhe que estava errado, que era ele quem ela amava. Olhou para cima e começou a sorrir, de nervoso que estava, um riso irônico. Tinha certeza que ela não voltaria. Tentou manter a dignidade na presença dela, mas sabia que faltava pouco para desmanchar-se ante sua presença. Socou a parede com raiva! Queria sentir outra dor para tirar o foco daquela, porque sentia que o ar lhe fora tirado. Apoiou as duas mãos na parede e ficou assim, parado. Não iria adiar aquele momento, sabia que ela iria ficar com Bruno, então que fosse logo. Precisava se acostumar com a ausência dela, porque já estava sentindo falta! Acostumar-se com a perda, rejeição e com a falta de perspectiva. Uma dor física, dilacerante se apossou de seu corpo quando pensou que não teria mais seus beijos e abraços... Lágrimas caíram ao sentir o quanto não era importante para ela. Precisava esvaziar o coração, remover a saudade, ficar livre, mas isso também doía. O que precisava agora era saber: como fazer isso? Como levar a vida daqui pra frente? Não sabia.
XV
D
ias se passaram desde a despedida de Augusto e Eduarda não procurou por Bruno. Precisava ficar sozinha, organizar seus sentimentos e refletir sobre tudo que aconteceu para entender melhor seu coração. Repensou toda sua história com Bruno e com Augusto. Reviveu cada palavra e as emoções trazidas por elas e por mais que desejasse o oposto estava sofrendo com a perda de Augusto. Seu amor por ele era real e desejava ficar com Augusto, no entanto, suas lembranças com Bruno a atormentavam e sentia-se perdida quando pensava nele. Seu coração se encolhia de tal maneira que era incapaz de raciocinar ou pensar qualquer coisa lógica diante de suas memórias. Não sabia o que significava, mas queria abraçá-lo, ouvi-lo e estar perto dele. De repente se viu pensando em Bruno e em seus momentos felizes e íntimos. Sentiu saudades! Percebeu a cilada de seu coração e lamentou por si mesma. Novamente a imagem de Augusto invadiu sua mente. Era um labirinto, e precisava achar o caminho da saída. Chocou-se com a própria incoerência e ambiguidade de sentimentos. Os dias continuaram na mais absoluta confusão de sentimentos. Verificou que era inútil seu esforço, no sentido de vencer a perturbação que estava vivendo nestes últimos dias. Sabia de sua excessiva agitação nervosa e nada conseguia fazer para acalmar-se. Ainda sentia o impacto das palavras de Augusto na própria pele, queria negar, contudo sabia, em seu mais profundo íntimo, sabia que ele tinha razão em tudo que disse. Ponderou a respeito de cada sílaba, de cada palavra pronunciada e após negar infinitas vezes, sabia que amava Bruno e para voltar a viver aquele amor novamente, era preciso
abrir mão de algo que lhe foi caro por muito tempo. Algo insubstituível, inestimável e eterno: Augusto! Como explicar em palavras o que estava sentindo? Como explicar que também amava Augusto e estava sofrendo por ele? Como explicar que queria estar com Bruno, mas era muito doloroso despedir-se daquele amor por Augusto? Era como se estivesse despedindo-se de si mesma. Ela se perguntava se era possível amar duas pessoas ao mesmo tempo... Seria possível? Era exatamente como se sentia. Jamais deixaria de amar Augusto. Não se deixava de amar uma pessoa assim, de repente, por simples opção. No entanto, de repente entendeu que aquele amor deveria tornar-se uma eterna lembrança de uma época bonita que foi vivida. Era um bem de valor inestimável, que fazia parte dela e jamais abriria mão de tais lembranças. Amar Augusto era inevitável. Era preciso aceitar! Só então, após aceitar seus reais sentimentos houve uma quietude insolente de seu coração. Na verdade, um luto por um amor que jamais acabaria e que seria obrigada a carregá-lo em absoluto silêncio. Desejou não ter recuperado a memória, assim aqueles momentos alegres voltariam a ser disponíveis. Ilusão... Sabia que não era possível. Foi o arremate de uma história que externamente terminou, com a sua concordância, mas que seu coração também precisava concordar e só então estaria livre, pronto novamente para outra história. Seu coração a dizia que não concordaria e que sempre estaria ali para lembrá-la de seus reais sentimentos. Que tortura descobrir que não controlava os próprios sentimentos! Seria capaz de controlar suas atitudes, seu agir, mas o sentimento estaria ali, silencioso e vivo dentro dela. Era melhor reaprender a viver com esta realidade, ou melhor, refazer o nó que havia se soltado e reaprender a viver com aquele imenso, interminável amor que ressuscitou dentro dela! Era o que estava fazendo, como se fosse um período de desintoxicação, os primeiros dias foi a pressão de tais
tormentos, uma vontade louca de procurar por Augusto, o desespero da abstinência, mas depois, lentamente, seu corpo iria se acostumando, e já seria capaz de seguir em frente. Para onde? Perguntava-se o tempo todo. Definitivamente entendeu e aceitou que jamais arrancaria Augusto de dentro dela. Era impossível. Não se deixa de amar por uma circunstância ou concordância. Aquele amor estaria com ela onde fosse e, na verdade, percebeu que não queria se desfazer dele. Sabia em seu íntimo que como uma tatuagem, os sentimentos por Augusto jamais se apagariam. No entanto, os dias de solidão a ensinaram como viver com aquele amor. Encontrou uma forma de guardá-lo em um esconderijo secreto dentro de seu coração e que ali ele permaneceria, intocável, inabalável. Mas somente ela teria acesso a essas informações e lembranças, que jamais seriam compartilhadas novamente com ninguém. Era um esconderijo e ali, enterraria sua história com ele e quando sentisse saudade, em seu secreto fecharia os olhos e se alimentaria das mais puras lembranças de amor que teve com aquele homem. Foi até seu quarto e começou a guardar os objetos de Augusto. Camisetas, escova de dente, perfumes, não resistiu e abriu o frasco, sentiu aquela fragrância e fechou os olhos. Como podia, era quase palpável aquela saudade. Lágrimas desobedientes lhe molhavam a face. Juntou todos os pertences em uma caixa e decidiu que levaria para ele. Respirou fundo e olhou para o guarda-roupa. Engoliu em seco e devagar se aproximou do armário e abriu a porta lateral que havia separado para guardar algo precioso: seu vestido de noiva. Pegou-o com carinho, colocou em frente ao corpo e se olhou no espelho. Um sonho nunca vivido. Fechou os olhos e imaginou toda a cerimônia. Ela, Augusto... Augusto. Apertou o vestido entre os dedos. — Ah, Augusto! – dobrou o vestido e guardou-o no papel de seda e o fechou na caixa com todos os acessórios. Depois
juntou todas as fotografias, cartas, lembranças, presentes... Foi quando teve coragem de retirar a aliança do dedo. Linda, um símbolo de compromisso, amor, fidelidade... Ao pensar em fidelidade deu-se conta de tudo que Augusto estava falando. Sempre aprendeu muito com ele. Pronto, objetos guardados. ooo Estava parada no passeio, de frente ao portão. A campainha havia sido tocada duas vezes e uma voz masculina pediu para aguardar. Ouviu o barulho do portão se abrindo, era Anderson. — Bom dia, Anderson. Preciso falar com Augusto. Ele a olhava friamente. — Bom dia. Augusto não está. Ele foi para São Paulo. — Oh! Eu não sabia. Preciso entregar-lhe umas coisas. — Pode deixar comigo. Eu entrego para ele. Não teve como disfarçar a decepção. Havia se preparado para aquele encontro... Criado expectativas! Na verdade, estava com saudade e desejava vê-lo. — Tudo bem! – ela girou o corpo, foi até o carro e pegou no banco de trás uma caixa. Caminhou de volta até o portão e falou: — Por favor, entregue a ele esta caixa. — Pode deixar. Eduarda estava sem graça. Um silêncio havia tomado conta daquele momento e ela se sentia constrangida diante do olhar acusador. — Obrigada – foi o que conseguiu dizer. Ele acenou com a cabeça. — Então... Tchau. — Tchau Eduarda. Ela ainda olhou para ele mais uma vez e encontrou seu olhar discreto e destemido, também não passou despercebido o escárnio em seu olhar. Diante disto ela se virou e entrou no carro, ligou o motor, acelerou e saiu silenciosamente.
Ele podia ter dito tanta coisa tipo “eu sabia que ia acabar assim” ou “eu não disse”, ou quem sabe “eu estava certo o tempo todo”, mas nada disse. Não era preciso, eles sabiam e a verdade estava incrustada naquele silêncio. Muitas vezes este tipo de silêncio doía mais que palavras. O silêncio da compreensão. Aquele silêncio foi a mais cruel das respostas que Anderson poderia ter dado. Sabia que aquele silêncio não significava falta de palavras e sim uma gentileza que ele fizera de não dizer-lhe nada. Mais uma lágrima escorreu por sua face... O que Augusto foi fazer em São Paulo? ooo Mais dias se passaram. Depois de um longo período era hora de assumir a escolha, imposta ou não, consciente ou não, era uma escolha. Então após guardar cuidadosamente cada lembrança e sentimento de Augusto ela decidiu colocar por cima, como se fossem gavetas em seu coração, as lembranças e sentimentos por Bruno. Estas ocuparam todos os outros espaços em seu coração e só depois que estas tiveram forças para sufocar aquela pequena gaveta secreta, é que ela se sentiu pronta para poder remexer livremente em seu passado e reescrever seu futuro. Não precisava mais esperar, os dias que passara sozinha foram suficientes para viver o luto de um amor e ressurgimento de outro. Estava, enfim, pronta para procurar por Bruno e assumir sua escolha. Quando havia feito esta escolha? Havia escolhido Augusto, mas estava sendo direcionada para Bruno? Não importava mais, o caminho tinha sido revelado e era preciso percorrer e conhecer o final desta estrada. Estava decidida e quando saísse do trabalho iria procurá-lo. Será que Bruno estava preparado para enfrentá-la? Ele conseguiria reatar os laços que se perderam? Só havia um jeito de descobrir. Sabia de sua certeza, mas a ansiedade, o medo e a
insegurança a acompanhavam. Não sabia como seria recebida. Será que ele já tinha ido embora? Sabia que havia perdido muito da vida daquele homem e que no período em que ficaram afastados muitas coisas mudaram. Parou o carro diante da casa e ficou alguns minutos ali, pensando no que dizer, o que fazer. Pensou em desistir, no entanto, uma força maior a impediu, uma emoção tomou conta dela e se viu chorando. Balançou a cabeça como se quisesse organizar os pensamentos. Fora naquela casa milhares de vezes, a conhecia muito bem e estaria morando ali se tivessem casado. Neste momento lembranças invadiram sua mente como se tivessem a teletransportado para aqueles momentos de antes do acidente. Reviveu intensamente momentos de quando conheceu Bruno, o primeiro beijo, seu quase casamento e quando estava mergulhada nestas lembranças como se fosse impossível de sair dali. Seu corpo mantinha-se presente, mas estava totalmente alheia a qualquer coisa a sua volta. Sentiu uma agonia desesperadora ao se lembrar do acidente e neste momento a buzina de outro carro, para um pedestre que passava na rua, a despertou, trazendo-a de volta ao local em que realmente estava. A casa novamente era seu campo de visão. Havia ligado para a residência da mãe dele e teve a informação de que Bruno estaria ali, no lugar que construíram juntos. Agora que havia recuperado a memória, lembrava-se da casa e onde ficava. Esperou um pouco para se recompor e após longos minutos, tomou coragem, desceu do carro, olhou mais uma vez para a casa, seguiu em frente e tocou o interfone. Assustou-se quando ouviu a voz de Bruno do outro lado. Sabia que seria ele, mas a voz dele a perturbava de uma maneira inexplicável. — Bruno? – sua voz estava trêmula. Como poderia? Reconheceria aquela voz no meio de milhares — Sou eu, Eduarda. Pode vir aqui um minuto? — Eduarda? Só um instante – ela escutou o clique do portão abrindo — Entre. Estou esperando na varanda – Bruno estava surpreso, não esperava a visita.
Quando ela o avistou, sentiu tantas coisas ao mesmo tempo. A sensação é que estava paralisada. Uma alegria e uma agitação se revolviam dentro dela, suas pernas e mãos tremiam, o coração disparou, sentiu a boca seca e o estômago se revirar. Lágrimas novamente percorreram por sua face, era inevitável não reviver aquele amor... Não podia lutar contra seus sentimentos. Respirou fundo e continuou a caminhar em sua direção. Bruno também ficou parado, olhando-a incrédulo. Como se fosse a aparição de um fantasma. Seus olhos não conseguiam desviar-se de Eduarda, que se aproximou dele apreensiva. — Estou surpreso com sua visita. Juro que não esperava – disse também emocionado! — Atrapalho? Posso voltar outra hora, eu... — Claro que não atrapalha! Pensei que não iria querer mais falar comigo! E voltar nessa casa, soube que nunca quis vir aqui depois do acidente. Mesmo sabendo que era sua! – sua voz estava trêmula — Eu não esperava! Estou feliz em vê-la – ele sorriu e ela mais uma vez se perdeu naquele sorriso perfeito, dentes alinhados, totalmente brancos, perfeitos e inebriantes. Sentiu uma explosão dentro de si e se viu, por causa de um sorriso, tentando recuperar o equilíbrio. Ela olhou em volta e comentou: — Está do mesmo jeito, nem parece que passou tanto tempo! Sua mãe cuidou muito bem dela! — É verdade! – não pôde esconder a emoção em suas palavras — Viu as rosas? Estão floridas. — Lindas! – estava tímida, confusa com as palavras — Não quis vir porque não me lembrava desta casa. Contaram-me que ela era minha, porém não fazia o menor sentido para mim. Agora sei o que esta casa significou para nós! — Vamos entrar? Estas palavras a golpearam de surpresa. Não estava preparada para tantas emoções em um mesmo dia, então rapidamente, antes que não pudesse mais evitar, ela respondeu:
— Não! Acho que podemos conversar aqui mesmo. A brisa, as rosas, prefiro ficar aqui... – sua voz soou fraca, denunciando sua insegurança. — Vamos para o outro lado da casa. Lá teremos mais privacidade. Estou sozinho, mas lá é mais calmo. Ela o seguiu pela varanda que rodeava toda a casa e pararam no ponto onde avistavam toda a piscina, área de churrasco, jardim... Seus olhos marejaram novamente. — O que aconteceu para vir aqui, Eduarda? Como sabia que eu estava aqui? Ela o olhou e seus olhares se encontraram e um estado mágico tomou conta de ambos por um longo tempo. — Liguei para sua casa e me informaram. Aquele dia nossa conversa foi muito perturbada, precisamos conversar direito. Ele continuou olhando-a. Ela conhecia aquele olhar, apesar de tanto tempo, ainda era o mesmo e continuava a mexer com todos seus sentidos, então apenas sorriu e Bruno a convidou para sentar-se em um banco de mármore que ficava na varanda. — Como você está Bruno? — Estou bem. Na medida do possível. — Bruno, eu... Ele conhecia aquele tom de voz e precisava manter-se longe dela. — Au gu sto s abe que você es tá a qu i? – fa lou , i nt e rrom pendo -a. Eduarda fechou os olhos por um segundo e mordeu o lábio superior antes de responder: — Augusto e eu não estamos mais juntos. Você deve saber do cancelamento do casamento, não se faça de desentendido. — Pensei que fosse apenas um adiamento. Que remarcariam a data! — Não foi isso. Rompemos definitivamente. Ele a olhou surpreso e ficou em silêncio por um tempo. Não sabia se sorria ou chorava.
— Espero não ter sido a causa desse rompimento! Seria a maior bobagem que vocês poderiam permitir acontecer – falou com grande dificuldade. Queria celebrar a notícia, porque em seu íntimo era o que desejava. Não suportava a ideia de ver a mulher que amava com outro, no entanto, seu lado racional precisava vencer suas emoções. Havia conseguido isso durante esses anos e conseguiria agora... Ou não? Agora era diferente. Uma coisa era controlar-se longe dela, mas Eduarda estava ali, a um passo de distância, conseguia sentir seu perfume, desejava aquela mulher, mas não podia! — Não seja tão arrogante e convencido! No entanto, sabe que teve uma porcentagem nesta decisão, mas saiba que não foi exclusivamente por você e sim por mim e por Augusto. Nós dois decidimos juntos o que fazer. Vejo que a modéstia ainda é um de seus privilégios! – sua voz estava amarga! — Juntos? — Sim. Qual a surpresa? Ele era meu noivo, lembra-se? — Ele decidiu isto? Digo, o rompimento... – Bruno tentava levar a conversa para outro nível como forma de proteção. — Como posso explicar? Quando recuperei a memória tive um ódio enorme de você. Não consegui dormir, passei uma semana remoendo nossa história, o abandono... Não conseguia entender como você teve coragem de me abandonar! Íamos nos casar, projetamos cada pedaço dessa casa, foram anos de planos, sonhos... E você simplesmente desaparece e me deixa uma carta, quase um bilhete de despedida, sem emoção, sem sentimentos! Sabe como me senti? Consegue imaginar? Bruno a olhava com emoção, mas permaneceu em silêncio. — Quando recuperei a memória, senti como se eu tivesse acabado de sair do coma e descobri que você havia ido embora... Naquele momento era como se o tempo não tivesse passado! Você não tinha o direito de decidir por mim! Não mesmo! Senti tanto ódio de você que conseguia sentir no paladar o gosto amargo da dor, do desespero! Já sentiu o gosto do ódio?
Ele sorriu ironicamente antes de responder: — Conheço o ódio em todas as suas formas e em todos os seus tons! E posso lhe assegurar que sei seu cheiro, gosto e forma. Fomos amigos íntimos por um longo período. Eduarda conseguiu sentir toda a amargura daquelas palavras. — Então sabe do que estou falando! – disse tentando ignorar o comentário. — Você é quem não sabe do que falo. Já sentiu ódio por você mesma? Digo, ódio em sua forma mais profunda e verdadeira a ponto de desejar morrer para não ter que se olhar, se sentir? – ele a olhou diretamente em seus olhos — Acredito que não! — Acho que deve parar de pensar só em você mesmo! Não julgue seus sentimentos mais nobres ou mais importantes do que os meus. Cada um sabe o peso de sua dor. E cada um sabe como desfazê-la – Eduarda não se deixaria intimidar. Bruno sorriu ironicamente. — Acha que sei como me livrar de minha dor? — Sim. Eu sei. Bruno virou-se de costas para ouvi-la. Estava emocionado demais para dizer qualquer coisa! — Você já me contou de todo esse ódio, amargura e rejeição. No entanto, lembro-me de ouvir você dizer que este ódio transformou-se em... — Eduarda... — Tudo bem. Não vou falar de seus sentimentos, vou falar dos meus... Nestes dias tive como companhia a solidão, o rancor, desilusão, tristeza, dor... Até que o Augusto me ajudou a enxergar que não era nada disso. O que separa o ódio do amor é uma linha invisível, tênue, frágil. Augusto me fez aceitar que na verdade aquela raiva, aquele ressentimento nada mais era do que o amor que ainda sentia por você e me recusava a aceitar, porque me encontrei machucada pelo abandono, pela escuridão, pela falta de respostas, mas era amor! Ele virou-se novamente para ela.
— Augusto te fez aceitar que sentia amor por mim? Não me faça rir. — Por que diz isso? — Não coloque seu doutor em um pedestal. Ele não nos quer juntos. Posso te assegurar isso. Ele quer você. — Não vou discutir isso com você – Eduarda sentiu uma dor apertando em seu peito. Sabia que Augusto a amava — Já te disse minha história com ele não te pertence. — Nem quero que divida comigo – falou ríspido! — Bruno, eu estou aqui para conversarmos sobre nós. — Não existe nós! Sabe disso. — Sei que eu e você, onde quer que estejamos, longe ou perto, seremos sempre nós! Sabe disso! — Eduarda, essa conversa é um erro. Não podemos alimentar algo que... — Vou até o fim Bruno. Estou nervosa – mostrou-lhe as mãos trêmulas — Mas vou até o fim. — Eu acho que... — Deixe-me dizer-lhe tudo, Bruno! Depois eu vou embora! Não precisa dizer nada, quero apenas que ouça. Deve-me isto! Preciso dizer e descarregar esse peso de dentro de mim! Compreende? — Para que passarmos por mais essa tortura? — Por que toda história precisa de um desfecho. Não se pode deixar uma história suspensa, sem terminar. Não podemos sofrer por atitudes que não tivemos coragem de fazer. Bruno entendia cada palavra do que ela dizia. Porém tentou mais uma vez: — Não precisamos nos machucar mais... — Vai machucar mais se não esclarecermos as coisas. — Engano seu! Não existe caminho para nós que não nos machuque. Ela ignorou e continuou. — Ao relembrar de minhas memórias comecei a viver um
conflito. Existiam dois amores dentro de mim e eu precisava escolher. Ao me lembrar de você não me esqueci de Augusto e de repente, lá estavam vocês dois, dentro de mim! — A escolha certa é Augusto. — Não fui eu quem escolhi, o amor escolheu por mim. Seria tão fácil se a gente escolhesse a pessoa que iria amar, não acha? Ou deixar de amar quando nos é conveniente, seria tão simples, mas você consegue? Ensine-me, por favor, assim arrancarei este amor definitivamente de dentro de mim! — Você amou Augusto, Eduarda... — Sinto ódio por você tê-lo colocado em minha vida. Algo que teria sido evitado se não tivesse partido! — Mas você o amou... — Amei e confesso que seria mais fácil para mim ficar com Augusto. Estávamos de casamento marcado, poderíamos estar juntos agora... Evitar todo este sofrimento e constrangimento. — Então por que está tentando o mais difícil? — Não me faça perguntas que não poderei responder. Ou melhor, respostas que você já sabe qual é. Sabe que eu também amei você, Bruno. E te encontrei sem querer, mas nos reencontramos e deve haver algum sentindo nisso. Por mais que eu não me lembrasse, e que você não existisse em minha vida, havia um vazio que me perturbava e me impedia de viver a felicidade em sua plenitude. E agora que sei de tudo, lembrome de cada detalhe, sei que vivi esta plenitude ao seu lado, e que este vazio, aquela ausência sentida era por você. — Eduarda, vou insistir, nós não precisamos ter esta conversa. Volte e reconcilie-se com... — Este caminho não tem mais volta. Quando me lembrei de você, o amor que eu tinha por ele não desapareceu, contudo, não foi forte para me fazer esquecê-lo e desistir de nossa história. Meu amor por você sufocou tudo que havia dentro de mim, explodiu como uma bomba atômica não deixando alternativas,
não deixou vestígios. Não preciso lembrá-lo de como nos amamos e o quanto éramos felizes, preciso? — Nossa história acabou Eduarda, no dia do acidente! — Ela nunca acabou Bruno. Estamos aqui, não estamos? Apesar de todos esses anos, de sua fuga, de termos vivido outras histórias, onde estamos a-go-ra? Um de frente ao outro. Bruno sentia cada palavra de Eduarda como se fosse um golpe! Era doloroso demais! — Me escute... — Você vai me escutar. Acha que tem o direito de decidir pela minha vida? Minhas escolhas? — Não! Não tenho esse direito. E assim, eu também, tenho o direito de decidir pela minha vida e eu escolhi ficar só. — Bruno, sei de seus medos e não vou fingir que não os tenho. Como eu pensei nisso, como queria dizer-lhe as palavras certas, como queria saber como ajudá-lo, mas confesso que não sei! Não sei lidar com essa doença que ainda não conheço, mas você é médico, é preparado. O que tenho é meu amor para oferecer! E, claro, estou com medo, mas tenho mais medo ainda de te perder. Eu te amo e quero enfrentar esse desafio ao seu lado. Pode ser que eu chore, sofra, mas sei que sofrerei mais longe de você. — Pare com isso, Eduarda... — Nestes anos de esquecimento, algo faltava em mim, era como se eu tivesse perdido um membro. Sabe como é, a sensação dele estar ali. Assim me sentia com você, uma sensação estranha. Por isso resolvi procurar ajuda, precisava me lembrar, não suportava mais a situação de que todos sabiam mais de minha vida do que eu. — Eduarda, eu não quero discutir novamente. O que fiz não tem como voltar atrás. — Shakespeare já dizia: Lamentar uma dor passada, no presente, é criar outra dor e sofrer novamente. Não quero discutir isso também, apesar de ainda não concordar
com sua atitude, mas é uma realidade. O que desejo que você compreenda é que, inconscientemente, eu te amei cada segundo, cada dia. Eu, de certa forma sabia apenas não me lembrava, de que meu amor, a razão de toda minha vida, minha felicidade estava perdida em algum lugar e que eu queria reencontrá-la. Eu sabia Bruno, que íamos nos ver novamente! Não me pergunte como, mas estava te esperando. — Você teve Augusto. — Tive, e foi lindo! Nossa história foi única e não quero falar dela para você, é uma história minha e dele. Não quero dividi-la. Você não entenderia! O que precisa saber é que o amor que sinto por você prevaleceu, tanto que estou aqui – Eduarda era incapaz de falar sobre Augusto com Bruno. E precisava mudar de assunto, antes que ele percebesse o quanto Augusto era importante para ela! A vida tinha dessas coisas, às vezes para seguir um caminho é preciso fazer escolhas e deixamos para trás pessoas que jamais esqueceremos, que amaremos até a eternidade. Bruno balançou a cabeça e nada pronunciou. Sentiu ciúmes da forma como ela falou de Augusto, havia ternura em sua voz e seu olhar demonstrou que ele ainda era importante para ela. — Como dói sua ausência... Essa sua presente ausência é intolerável! Quero estar ao seu lado, quero viver nosso amor. — Não me torture mais Eduarda. Não sabe o gosto da dor! Pensa que sabe, mas já se colocou por um segundo em meu lugar? Fui ao inferno e estou tentando sair dele, mas sinto que quanto mais corro, mais me afasto da saída! Não vou mentir, sabe que não sou capaz! Como negar esse amor que insiste em viver quando tudo em mim insiste em morrer? Eu te amo, e nunca deixei de amá-la. Todo meu corpo, toda minha mente, toda minha alma anseia por você. Meu coração bate tão forte quando estou ao seu lado e junto com ele meus pensamentos viajam, vai ao mesmo ritmo das batidas do meu coração e desejo viver esse amor, viver... Essa palavra é mortal para mim! Sabe o quanto eu quero viver? Não sabe...
— Bruno, sei que esta doença não tem cura e... — Não Eduarda, não tem cura! Ela me limita, me intimida! Oh Eduarda, o meu desejo mais profundo é ficar com você, mas não podemos esquecer que tudo mudou. Você sabe... – sua voz ficou rouca — Sabe o que é conviver com uma pessoa com HIV? — Não fale assim. — Eduarda não vamos tentar florir esta situação! As flores no funeral de nada mudam a situação, apenas tentam embelezar momentos de dores, tristezas e perdas jamais reparadas... Mas não enfeitam, não perfumam, não mudam aquela situação! Não tenho mais dificuldades em dizer e assumir meu estado de saúde. Tive muito preconceito no início, demorei em aceitar, para entender. Sofri demais! Você não será capaz de imaginar o que foi o primeiro ano, longe de você e tendo que aceitar que minha vida havia mudado e que eu estava infectado e nada mudaria isso. Chorei minha morte, sofri o meu luto. Revolta é uma palavra insignificante diante do que senti. Sabor amargo, esse nunca mais saiu da minha boca! Não sei o que mais me doeu, se foi à doença ou ter de ficar longe de você... Perambulei pelo mundo tentando esquecer. Esquecer você, esquecer essa doença mortal. Foi aí que adoeci. Não me cuidei, a raiva era tanta que me recusei a tratar. Desejei morrer para que assim a dor passasse. Procurei pela doença e foi aí que me dei conta que, no fundo, tinha medo de morrer. A verdade é que não quero morrer! Bruno virou-se novamente de costas para que ela não visse seus olhos cheios de lágrimas, e continuou: — Todo o meu desespero foi porque percebi o quanto eu queria viver. Quando tive medo de morrer foi que entendi que ainda estava vivo. Não sabia por quanto tempo, mas desejei com toda força viver. Em meus sonhos desejava vê-la. Pensei em seu sorriso a cada dia que estive internado e foi onde tive forças para enfrentar e sair daquele hospital. Sabia que não iria tê-la novamente, mas vê-la era o meu projeto de vida! — Bruno, estou aqui.
— Não me olhe assim... Sou apaixonado por você, mas não quero que veja meu sofrimento, que me veja doente. Não quero compartilhar isso com você! — Eu te olho com olhar de alguém que esperou a vida inteira para te encontrar. Nosso amor não nasceu agora, mas a emoção é como se fosse o primeiro olhar. Mesmo não estando casados, sempre falamos um para outro que estaríamos juntos na alegria, na tristeza, na saúde, na doença... Isso se chama relacionamento, amor, união. Não posso obrigá-lo a ficar comigo, mas saiba que estarei sofrendo longe de você. Você está sendo mesquinho, egoísta e me julgando fraca e incapaz de atravessar esse momento com você. Esse amor é como um rio que deságua para o mar, ele não para, não volta atrás e caminha para uma imensidão infinita. Acredita mesmo que serei feliz longe de você? — Eduarda você pode refazer sua vida. Já pensou que não poderemos ter filhos? — Não, não pensei, e não vou pensar agora. Vou viver um dia de cada vez, e cada dia será uma conquista! Um de cada vez! Se vai ter situações que não saberemos o que fazer? Sei que vai, mas isso acontece com qualquer pessoa com ou sem HIV. A vida é imprevisível. — Palavras, belas palavras, mas não passam disso. A realidade é bem diferente e cruel! — Não ouse menosprezar o que estou dizendo, porque minha boca só pronuncia o que eu sinto, o que está dentro do meu coração. Talvez não consiga encontrar agora as palavras certas, fortes o suficiente para fazê-lo entender o quanto te amo. No entanto, ainda me lembro do som da chuva que caía quando saí do hospital. O dia estava chuvoso, o tempo fechado... Como outros dias que foram assim. O som daquela chuva não saía de dentro da minha cabeça... Sabe por que não esqueço aquele som? Por que aquela chuva forte, a tempestade estava dentro de mim, nada tinha a ver com a chuva que despencava do céu, e na verdade, ela sempre esteve lá, chovendo, trovejando, esperando
pelo sol, pela luz. E agora, a tempestade se foi e o sol ameaça aparecer. Basta você permitir... Você é o sol. — Não sou capaz! — Fez a sua escolha de ir embora, mas já pensou que nunca saberá o que eu iria dizer para você naquele momento? Se depois de todos esses anos, quando te vi lembrei-me de você, se tivesse entrado no quarto do hospital no dia que acordei do coma, teria evitado todos esses anos de sofrimento, porque com certeza me lembraria de você. Quando soube que havia perdido a memória, naquele instante o que me doeu mais foi pensar que jamais teria minha vida de volta. Naquele momento eu já sabia de você, de nosso casamento, de seu abandono... Eu pensei que nunca fosse voltar. Aquele som de chuva que não saía da minha mente, nada mais era que o som do meu coração. Ele esteve nublado, chuvoso todos esses dias, longe de você! — Eu te amo muito Eduarda, mas não posso! — Eu vim aqui hoje pela força do meu amor, só por você! Estou rodando nesta estrada sem tréguas, todos esses anos, e todos os caminhos me trouxeram até aqui! Você distante me esperando e eu te procurando! Quanta tolice se tudo que queríamos era a mesma coisa: ficarmos juntos. Então desisti e tentei... Tentei viver sem estas lembranças, sem você. Quando eu comecei a retomar minha vida e trilhar outro caminho, me vejo aqui de novo, diante de você! Aonde quer que formos, o que quer que decida, nossos caminhos sempre vão estar ligados! Estou com pressa, tenho urgência em ser feliz novamente! Eu estou aqui, Bruno! Você me esperou e eu cheguei! Eu te procurei e encontrei. Só precisamos... — É um erro! – Bruno se virou novamente para o outro lado. Estava cada vez mais difícil resistir... Sentia que a cada palavra se jogaria nos braços daquela mulher. — Erro foi você tentar fugir de mim, mas não sabe que é em vão? O amor grita mais alto! Tudo bem, não foi um erro qualquer, custou cinco anos de nossas vidas, mas deve ser deixado pra trás e você deve perder esse medo, sabe por quê?
— Não entende... — Bruno era eu quem deveria estar com medo, não você! Pelo lado racional era eu quem deveria ter medo, mas já venci este medo. Ele nada disse. — Não vou me humilhar mais, como disse, você tem direito as suas escolhas, mas confesso que não vim aqui pra saber que é fraca a minha fé! Achei que você seria capaz de sentir a força do meu amor e ele seria capaz de tocar-lhe, mas vejo que não! Ainda se esconde atrás de sua covardia. E mesmo assim, ainda não consigo crer que possa haver você sem mim e eu sem você, não pode ser! — Também te amo muito! — Eu estou dizendo, mas você não está ouvindo. Eu não te amo muito, muito nesse caso é pouco. Eu te amo tudo. Não tem nem uma célula de meu corpo que não te ama! E é assim que te quero, tudo! É assim que te amo, tudo. Não sobra nada, é sem limite e sem reservas! — Já disse que não posso! — Não sei se tenta enganar os outros ou a si mesmo! Ainda se esconde atrás dessa doença, e tem pena de si. E juro, que só conseguirá das pessoas em sua volta o mesmo. Não pode exigir das pessoas algo que você mesmo não sente. A vida é um eco, volta para você o que você dá a ela! Pena. Sinto pena de você agora! Você disse que superou, que tem vontade de viver... Mentira! – lágrimas de tristeza rolaram em sua face — Chega, não vou mais insistir, já te disse o que queria. Estou decepcionada em saber que se eu tivesse adoecido no seu lugar, você permitiria que eu fosse embora e vivesse só. — Claro que não! Jamais te deixaria, ficaria sempre com você! – disse enfático. Ela sorriu ironicamente e o olhou de forma profunda nos olhos: — Se eu permitisse, não é verdade? Talvez eu escolhesse ficar só, chorando, lamentando, sentindo pena de mim. Bruno raspou a garganta tentando se livrar de algo que não conseguia dizer, nem engolir.
— Você não me quer ao seu lado. Não tenho mais palavras, nem ações. Você disse que a escolha é sua, eu tentei, eu lutei, mas precisamos aceitar a derrota! Então saio de sua vida hoje Bruno e não se preocupe, não vou mais te perturbar. Não com minha presença física. Bruno sentiu um desespero enorme com aquelas palavras, que o feriram mortalmente. Eduarda não sabia, mas ela, sua lembrança, seu desejo por ela, suas memórias o perturbavam todos os dias e instantes. — Eduarda, não pode entender o que eu sinto! — Eu não posso compreender uma pessoa amar a outra, ser correspondido e desejar ficar sozinho. Confesso que minha inteligência não consegue compreender esta atitude. É sua escolha? Vou respeitá-la. Eu fiz a minha escolha e não pode mesmo imaginar o quanto me foi difícil chegar até aqui, mas como disse, fique com a solidão, a amargura, a tristeza, a decepção de jamais saber como seria sua vida se sua escolha fosse outra. Se deseja apenas o HIV como companhia, quem sou eu para fazê-lo mudar de ideia! Adeus – virou as costas e foi embora sem olhar para trás. Bruno posicionou todo seu corpo para poder segurá-la, mas ela foi mais ágil e saiu mais que depressa. Não queria mais chorar diante daquele homem. Ela praticamente se humilhou, implorou por seu amor e ele permaneceu ali, duro, inabalável. Chega! Aquele homem a estava destruindo. Ele a havia abandonado, desprezando sua saúde, não se preocupou em ajudá-la a recuperar sua memória, permitiu que tudo acontecesse e ficou do outro lado como espectador, como um deus decidindo o seu futuro, julgando o que era melhor para ela. Depois volta e age como uma pedra sem emoções e se esconde atrás de uma doença. Não podia mais continuar amando-o, precisava encontrar um jeito de viver sem ele! Entrou no carro e dirigiu para longe dali. Parou embaixo de uma árvore e ficou algum tempo ali parada, não tinha condições de dirigir. Chorou pela situação. Viu a determinação no olhar de
Bruno e não sabia como convencê-lo. Estava se perguntando como matar algo imortal, como destruir algo indestrutível! Precisava encarar aquela situação com muita fé, não tinha para onde fugir, pois onde fosse aquele amor e aquela dor iria com ela. Era preciso coragem para viver dali em diante, era preciso aceitar! Iria seguir seu caminho e pensar um pouco mais nela, tentar viver da melhor forma possível. Chorou por tudo que disse e por tudo que não ouviu. Chorou por ela, por Bruno, por Augusto, pela vida... Após bastante tempo, depois de se recuperar de suas emoções, dirigiu de volta para casa, relembrando toda a conversa e se perguntando se aquela situação mudaria um dia. Não iria procurá-lo mais, não mesmo. Tomou um banho demorado e precisou tomar um remédio para conseguir dormir. Precisava descansar e desligar seus pensamentos. Decidiu que iria levar sua vida normalmente e não se entregaria à depressão, ao tédio e ao desespero. Encontraria uma forma de viver dali para frente. Precisava trabalhar no outro dia e então, após alguns minutos, o remédio fez efeito e ela dormiu profundamente. ooo No dia seguinte Eduarda se levantou ao som do despertador. Estava em cima da hora, havia feito propositalmente para ter que se arrumar as pressas e não ter tempo para ficar pensando e trabalhou tentando disfarçar a tristeza evidente em seu olhar. Voltava para casa concentrada no trânsito quando avistou uma pessoa sentada no passeio de seu prédio. Começou a sorrir. Abriu o vidro do carro e gritou: — Quer uma carona! Alice estava sentada no meio fio. O porteiro não a havia deixado entrar. Resolveu aguardar na calçada. O portão da garagem se abriu e Alice entrou a pé e aguardou a amiga estacionar. — Alice! Que bom vê-la? Quando chegou?
Elas se abraçaram e começaram a subir para o apartamento de Eduarda. — Ontem à noite. Te liguei, mas você não atendeu! — Desliguei tudo. Precisava me concentrar. Subiram de elevador, entraram na casa de Eduarda e se jogaram no sofá. — Como você está amiga? — Tentando recuperar a vida. Alice sorriu. — Você é mesmo cômica! É sério, como você está? — Fisicamente estou bem, mas emocionalmente não sobrou nada inteiro! — Já esteve com Bruno? Ele me disse que se viram uma vez! Não o vi ontem. Ele não voltou para casa. — Sim. Conversamos ontem. — Difícil aceitar – Alice não demonstrava surpresa. — É sim. Mas não se pode fazer disso um martírio. A vida segue Alice! – Eduarda estava decidida a não lamentar e nem entrar nesse jogo de pena, de sentimentos depressivos. — Como? Ele pode morrer a qualquer momento! — Ah não Alice, esse discurso não! Nós também estamos na mesma condição. Qualquer pessoa que esteja viva pode morrer a qualquer momento. Quem nos garante que ele vai partir antes de nós? Ou que nós não vamos primeiro? Posso ter um infarto, um câncer, ser atropelada, sei lá... Alice ignorou as ponderações da amiga e continuou: — Minha mãe está desesperada! Não para de chorar, um estresse total. Como dizer: a barra está pesada. Ele contou para ela só agora. Pedi uns dias lá no serviço e resolvi vir dar um apoio a minha mãe, Bruno e a você! E Augusto o que acha disso? A simples menção do nome Augusto fez seu coração acelerar. Era difícil controlar e não deixar seus sentimentos transbordarem. Desejou chorar. Com uma imensa força, respondeu o mais natural que pode:
— Não estamos mais juntos, Alice! Você sabe disso! — O que? Não posso acreditar! E aquela história que o casamento tinha sido adiado por causa da casa... Era mentira!? — Não estava em condições de contar o que tinha acontecido. Queria ser breve. Só precisava informar que não haveria mais casamento! Mas sei que você é esperta e deve ter imaginado que terminamos. — Meu irmão tem alguma coisa a ver com isso? Um longo e audível suspiro de Eduarda antes de responder não deixou de ser observado. — Você sabe que sim. — Eduarda, sempre defendi seu amor e o de Bruno. Até brigamos por que defendia o amor de vocês. Vi ele nascer, crescer, fortalecer, na verdade ele já nasceu forte e pronto! Por outro lado, também vi seu amor por Augusto nascer e crescer. Por causa de vocês, acredito no amor à primeira vista. Sei que foi real! E o amor de vocês também era muito bonito e intenso. Não entendo, vocês eram felizes e o casamento tão próximo. — É uma história complicada. Até para mim é difícil de pensar, falar então! Cheguei a uma situação que precisei optar por um. Foi muito doloroso, ainda sofro. Não quero falar sobre isso! — Você e meu irmão estão juntos? Ele me disse que está sozinho... — Não estamos juntos não! — E por que se separou de Augusto? — Como disse, foi uma escolha entre dois grandes amores. Não é porque não estou com Bruno que não preciso fazer uma escolha. É uma questão de consciência, de moral, de valores! As lembranças de Bruno retornaram, abalando todas as estruturas fundamentais dentro de mim e como um terremoto, desmoronei. — Foi por pena? — Claro que não! Não sinto pena de Bruno por causa da doença, lamento profundamente seus pensamentos egoístas e
seu autopreconceito. Não vou negar que a doença me assusta, claro que sim! No entanto, não tenho pena dele! Jamais! — Ele sofreu muito, quase morreu. Eu pude ver... Eduarda a olhou, incrédula. — Não sei por que ainda reajo assim, porque desconfiava que você saiba de alguma coisa. Alice ignorou, fingiu que não entendeu. — Bruno te ama Eduarda. Emociona-se quando fala de você. — Ele me disse que me ama, não negou! Só estou começando a duvidar da força desse amor. Quando a gente ama, não se afasta da pessoa! — Ele se afastou para protegê-la! Ele não queria que se lembrasse dele para poupá-la do sofrimento... — Não falo dessa ausência, e sim da que ele estipulou daqui pra frente! Não assimilei, ainda, o fato de ter ido embora, mas entendi os motivos, apesar de não concordar. Mas e agora? O que o impede? Quero abraçá-lo. Ficar com ele. Isso é amor, é humano, totalmente normal desejar a pessoa ao seu lado. Eu o procurei, abri meu coração para ele, mas ele se recusa a ficar comigo. Não vou procurá-lo mais. Se Bruno deseja que eu o esqueça, vou fazer isso. — Vai procurar Augusto? — NÃO! – Eduarda ficou incrédula com a pergunta da amiga — Não vou usá-lo para isso! Augusto merece meu amor e meu respeito. Não ficaria com ele para apagar as lembranças de Bruno! — Eu acreditei que seu amor por Augusto fosse inabalável. Eduarda sentiu dor ao lembrar-se dele. Como explicar para a amiga que na verdade era inabalável e que jamais deixaria de amá-lo? Não! Este assunto pertencia a ela e a sua gaveta secreta. — Eduarda, não desista do meu irmão, ele precisa de você! — É ele quem desistiu de mim, Alice! Chega, de hoje em diante se quer ser minha amiga não me fale mais nada de seu irmão. Assunto proibido. — Pense mais um pouco...
— Já pensei. É a vida que segue! — Sabe que os motivos dele... — Alice, estou falando sério. Não quero mais falar de Bruno. Sei bem que HIV e AIDS são coisas distintas. Mas seu irmão insiste nesta história, então não tenho mais nada a fazer a não ser esquecê-lo. E lembre-se mais uma vez, a decisão foi dele. Ele decidiu ir embora e ele decidiu ficar só. O que posso fazer é respeitar. E quero que todos me respeitem também. Vou esquecêlo, mas desta vez, será por minha vontade. E para isso não posso ficar falando dele. Falo sério, se quer conversar comigo procure outro assunto, porque Bruno não me interessa mais.
PARTE II
“Há muitas razões para duvidar, e uma só para crer.” – Carlos Drummond de Andrade “A gente todos os dias arruma os cabelos: por que não o coração?” – Provérbio Chinês
XVI
D
ias se passaram na mais absoluta falta de graça. Estava decidida a levantar seu astral, reconstruir seu ego. Olhou para a porta da sala durante todos os dias na esperança de Bruno procurá-la, mas suas esperanças estavam a desfalecer juntamente com suas energias. Não podia se enterrar! Instinto de sobrevivência... E precisava viver! Não iria se entregar à dor. Era início de mais um final de semana e sentia que havia passado tempo demais enterrada na cama, no máximo no seu sofá. Precisava reagir e colocar a vida em dia e sair daquele estado depressivo. Sem ânimo algum usou de toda a sua força de vontade e tomou banho, arrumou-se e foi até o shopping. Havia decidido ir a uma agência de viagem! As férias estavam próximas, precisava planejar um passeio, renovar as forças e não desistir de sua vida. Parou diante de uma agência e ficou olhando as ofertas na vitrine. Nenhum lugar específico lhe chamou atenção e apesar do aparente desânimo, entrou. Após uma conversa inicial a funcionária perguntou: — Para onde deseja ir? O que você tem em mente? — Para qualquer lugar! A moça ficou olhando-a indecisa do que fazer! — Desculpe! O que me sugere? — Gosta de frio, calor... — Gosto de Calor! – Respondeu prontamente – “No momento não preciso de lugares frios e que podem me deprimir ainda mais.” — Nacional ou internacional... — Quais suas melhores sugestões? Alguma promoção? Eduarda ouviu a moça mostrar-lhe vários destinos. Nada a empolgava muito. Na verdade, percebeu que foi um erro, não
desejava viajar, mas era preciso. Precisava procurar por lugares que a distraíssem. Estava nervosa e talvez fosse melhor procurar companhia para este passeio, talvez no trabalho pudesse viajar com algum amigo, foi então que por um instante, como por um pressentimento, Eduarda olhou para fora! Seu coração bateu ligeiramente apressado. Augusto estava passando bem em frente à loja! Ultimamente o destino estava brincando de coincidências com ela. Pediu desculpas à moça, e para atender ao seu impulso, foi falar com ele. — Augusto – chamou-o com voz rouca. Ele virou-se para ela. — Eduarda! – a expressão de surpresa e alegria que estampava o rosto dele era clara. Neste momento Eduarda arrependeu-se de ter ido falar com ele. Não sabia o que dizer e o que perguntar, sentiu-se tola. Augusto, sempre muito ponderado, percebeu o embaraço dela e falou, tirando-os daquele clima de tensão e magia: — Como vão as coisas? — Falou a palavra certa. Estão indo – respondeu sem pensar. Ele sorriu. Eduarda ficou segundos perdida na beleza daquele sorriso. — Está sozinha? — Estou e você? — Também – respondeu ele — Já almoçou? — Nossa, acabo de me lembrar de que estou com fome! — Acho que tenho o dom de te lembrar das coisas importantes – falou com expressão sombria — Vamos almoçar? Ela sorriu e concordou com ele. Caminharam em silêncio até sentarem em um restaurante. O garçom apresentou-lhes o cardápio, fizeram os pedidos e quando o funcionário saiu, novamente iniciou o diálogo: — Já conseguiu organizar sua vida? Ela respirou fundo e concordou balançando a cabeça em confusão, acenando que sim e depois que não.
— Sinto falta de nossas conversas, sabe! – falou ela embaraçada com a situação. Estava desconfortável, definitivamente foi um erro ceder ao seu impulso. Não encontrava um jeito de conversar com ele apenas como amigos. — Não vamos falar de saudade! Porque ela quase me mata todos os dias! – ele a olhou nos olhos e afirmou certeiro — Você não está feliz. Posso ver. Ela engoliu em seco com as palavras dele. Sempre direto e sem rodeios. — E Bruno. Cadê ele? – Perguntou encostando-se à cadeira. Com Augusto era sempre assim: franqueza... Sinceridade. — Não estamos juntos. Ele ergueu as sobrancelhas em sinal de espanto. — Não se espante. Ele prefere esconder-se atrás da doença e foge de mim. — É muito difícil uma pessoa conviver com o HIV. É preciso um trabalho psicológico intenso. Imagine você sabendo que tem uma doença incurável e letal. Não é fácil. — Sei disso. Conversamos bastante e ele escolheu se afastar. Já dissemos um ao outro tudo que tinha pra ser dito. Ele ainda não descobriu que a vida pode ser boa, mesmo com HIV não precisa se culpar, se punir... Ele é médico, sabe mais disto do que eu! Mas não quero mais falar disso. — Médicos também são pessoas e reagem diante das circunstâncias, diante dos fatos da vida. Não somos imunes aos sentimentos. Também sofremos, temos depressão, medos, inseguranças. Somos pessoas. — Pode ser! O garçom aproximou-se deles e começou a servilos. Augusto ficou olhando fixamente para ela e quando o homem se afastou, perguntou: — Está me estudando doutor? – cruzou os braços e o encarou de volta. — Está sendo orgulhosa – respondeu ignorando a pergunta.
— Talvez... — Alguém precisa ceder! — Já fiz o que podia! Já procurei por ele, falei tudo o que sentia... – ela fez uma pausa, mordeu o lábio inferior e em seguida respirou fundo — Augusto, eu não me sinto confortável em falar desse assunto com você. Desculpe-me a franqueza. Desculpe, mas acho melhor eu ir... — Fique! Termine esse almoço comigo. Na verdade, eu também não me sinto confortável falando de Bruno. Parece-me falso, sabe? Porque na verdade não sou amigo dele e não torço para que fiquem juntos. Sabe que te amo! Eduarda sentiu-se paralisada naquele instante. Era como se não pudesse respirar. — Não quero falar disso também... – tentou interromper aquele assunto, porém ele fez sinal com a mão para deixar-lhe falar. Sentiu as lágrimas rolarem em sua face e desejou abraçálo. Não poderia permitir que nos momentos de fraqueza, ela deixasse que os sentimentos guardados em sua gaveta secreta aflorassem. Ele não merecia. Augusto era um homem incrível. — Nestes dois meses que estamos longe não sabe a força que faço para não procurá-la. — Desculpe. Não devia ter chamado por você. — Por favor! Não se desculpe, foi bom. As coincidências, apesar de chamá-las assim, não são mero acaso do destino. Eu precisava ver você, conversar mais uma vez, saber que consigo olhar para você e me segurar para não chorar, que vou resistir à vontade de beijá-la. Saber que posso conviver com esse amor e continuar a vida – passou a mão pelos cabelos — É difícil de aceitar, recomeçar do zero. Acordar sozinho sentindo sua presença e saber que quem você ama está com outro. Eu sei que você não vai voltar pra mim! Não posso fugir de você a vida inteira. Preciso reaprender a viver e assim te esquecer. Eduarda sentiu um estranhamento naquelas palavras. Não sabia definir o que estava sentindo, mas sabia apenas que
era ruim. Não queria que ele a esquecesse. Que sentimento maluco! Queria que ele fosse feliz, no entanto, aquelas palavras eram punhais em seu coração. — Quis te ligar, mas sabia que não podia fazer isso com você. Preciso deixar que me esqueça... – fez uma breve pausa e continuou — E eu também preciso te esquecer! — Eu te atenderia! – ele a olhou diretamente nos olhos. — Eu sei. Por isso mesmo. Preciso te libertar desse sentimento, não posso fazer de você meu confidente! Não seria justo. E não pense que foi fácil para mim. Abrir mão de você foi à decisão mais difícil de minha vida! — Sei que não foi fácil, mas sei também que não foi impossível – sentiu o amargo das próprias palavras — Não vou fingir que não estou magoado. Fui trocado, isso dói, fere o ego. O que me consola é que não fui traído, foi um jogo limpo. Isso é o que me dá forças para seguir em frente. — Jamais te trairia... Se soubesse... — O quê? Ela apertou os olhos nas mãos e mordeu o lábio superior. Precisava ter cuidado com suas palavras. Não poderia reviver algo que talvez só levasse ao sofrimento. Apesar de tudo, eles se respeitavam e se gostavam, não podia perder o respeito e amizade de Augusto. Isto sim seria imperdoável! — Augusto, você é incrivelmente lindo, bom caráter, envolvente, sensual... Qualquer mulher se apaixonaria facilmente e estaria feliz ao seu lado. — Menos você! — Eu me a-paixonei... – ela sentiu sua voz falhar, mas quando viu já tinha dito as palavras e não poderia mais voltar atrás. Na verdade era isso mesmo. Então não deveria temer por dizer a verdade. Respirou fundo e continuou — Nossa história é diferente. Apaixonei-me por você sim. Como te explicar que meu amor por você ainda vive? Ele nunca vai morrer, Augusto. Seria muito clichê dizer que te amo e a vida incumbiu de nos separar
por algum motivo que não posso explicar, simplesmente por desconhecê-lo? Sinto sua falta todos os dias. Me pego pensando em você, ouço sua voz me chamando, sinto seu perfume... É muito maluco isso, desculpe. Eu tracei uma estratégia para viver com esse amor dentro de mim e preciso mantê-la para não enlouquecer. — Eu estou aqui, te amando, ainda te esperando, Eduarda. Ela o olhou profundamente com os olhos marejados de lágrimas – “O que está me impedindo de me jogar em seus braços?” — Tudo bem Eduarda, não precisa se explicar. Tudo está entendido, como eu disse, não houve traição nem jogo sujo. Só não posso fingir que sou indiferente, que já te esqueci. E sinto muito por Bruno, não por ele, mas por você e por mim. Queria que fosse ao meu lado, mas como não pode ser, desejo que seja feliz! E não estou sendo hipócrita. — Eu e Bruno não vamos ficar juntos. — Você já disse isso e se eu tivesse certeza que isso seria verdade, te arrancaria daqui agora e te levaria comigo. Estou me segurando para controlar meus desejos mais intensos de te tocar, abraçar e... Contudo, sei que ainda existe um fio de esperança para vocês. E enquanto este fio não se romper ou unilos estou atado. Preso. Este mesmo fio de esperança é o que me aprisiona aqui, deste lado. Não posso me enganar novamente. Não suportaria mais uma vez passar por isso. — Eu e Bruno não vamos ficar juntos. E não duvide que eu também preciso me controlar, porque eu sinto sua falta. Mas já te disse, não posso ficar com você porque é como se ficasse com você só porque Bruno não me quis e sinto que se fizesse isso estaria te desrespeitando, e de certa forma estaria estragando nossa história, que foi sempre tão bonita e límpida como água cristalina. E você é o que tenho de mais valioso em minha vida, por isso não posso estragar. Três vidas marcadas por um único fato: o amor. Unidas e desunidas pelo mesmo motivo. — Mesmo sofrendo, permiti que você fosse tentar ser feliz outra vez. Recomeçar.
— Augusto... — Não me arrependo de nada do que fiz. Acredite. Não sei te explicar, mas ainda não é o fim para nós. Para mim não acabou, Eduarda. — Como? — Não sei te explicar. — Eu acredito, porque me sinto da mesma forma – disse sinceramente, baixando o olhar para sua refeição. — Vou viajar semana que vem – falou de ímpeto. Ela o olhou, incrédula. — Vou fazer mestrado e trabalhar um tempo em São Paulo. — Nossa que... Alegria! – suas palavras não estavam em harmonia com sua expressão de decepção. Não queria que as coisas chegassem naquele ponto. Na verdade, sentiuse triste por sua partida. — Sabe por que eu vou, não sabe? Ela balançou a cabeça. — É óbvio que é uma excelente oportunidade em minha carreira, mas estou agarrando essa chance como se fosse um bote salva vidas que foi jogado para mim em alto mar no meio de uma tempestade. Preciso sobreviver para poder viver o que o futuro me espera. Preciso esquecê-la. Preciso recomeçar. As palavras dele surtiram um efeito devastador em Eduarda. Como explicar que o amava e desejava a mesma coisa? Sabia que era preciso manter a ética e o lado racional, mas não queria ser esquecida por ele. Sentiu os olhos marejarem de lágrimas outra vez. — Desejo que tudo dê certo para você, Augusto! E desejo que a vida jogue um bote para mim também... — Eu também. Para nós! Vejo lágrimas querendo brotar. O que foi? – disse quase em um sussurro. — Dói ser esquecida por você. — Dói te esquecer... Mas vamos falar de outras coisas? Continuaram a conversa com assuntos triviais. Falou de sua
tese de mestrado e que ainda estava pensando em qual assunto iria desenvolver. Apenas a ideia central havia sido estudada, mas estava ainda trabalhando em seu tema. Riram bastante das piadas de Augusto e passaram algumas horas em um batepapo agradável. Por instantes esqueceram-se dos problemas e sofrimentos vividos por ambos. Terminaram o almoço, conversaram mais um pouco e foram para o estacionamento ainda neste clima de felicidade. Quando se viram diante da despedida, um clima tenso tomou conta deles. — Então... É adeus! – disse Augusto. — Não! Acredito que só podemos dizer adeus diante da morte. Talvez a gente se encontre ainda algum dia. Não nos encontramos hoje, por acaso? – falou ela com olhos cheios de lágrimas. Ele a olhou com carinho. — Tudo bem, então até qualquer dia. — Augusto... Eu... — Eduarda, minha querida – disse ele, fazendo-lhe carinho no rosto — Já dizia Charlie Brown, só o que é bom, dura tempo o suficiente para ser inesquecível. — Estar com você foi mais que bom, acredite, foi real. Pode ser que o nosso tempo juntos acabou, mas o que tivemos é inesquecível, por isso eterno! — Então, até um dia! — Vai dar certo Augusto, acredite. A gente pode qualquer coisa, desde que acreditemos nela – na verdade nem ela acreditava no que dizia. — Posso quase tudo, Eduarda. — Basta lutar com toda a força que existe dentro de você! — Lutar e nunca vencer. Não posso ter você para mim. — Eu não... Queria te pedir algo, mas não sei como... — Diga exatamente o que está pensando... — Não quero que... – ela respirou fundo. — Estou curioso...
— Não posso te pedir tal coisa! — Por favor, pode me pedir o que quiser! — Não me esqueça... Digo, não me esqueça totalmente. Guarde a ternura do nosso amor e algumas lembranças... – sentiu-se tola novamente. Ele sorriu com malícia e ironia. — Oh Eduarda! Posso te assegurar, jamais esquecerei você. — Não me entenda mal, mas é insuportável a ideia de que pode me esquecer. Quero que refaça sua vida, que encontre um novo amor, mas me guarde em algum lugar em seu coração. E que no futuro, possamos ser amigos... Ah, estou sendo ridícula. Desculpe! — Não fique triste. Ficarei bem! Às vezes a vida nos leva a caminhos que não escolhemos passar, mas pode ser que no final algo surpreendente nos faça dar graças a Deus de trilharmos aquela estrada. Estou indo atrás do surpreendente! Vamos aguardar e ver o que está no final. Desejo que tudo dê certo para você! De verdade! — Sentirei sua falta. — Oh Eduarda se eu pudesse te fazer enxergar... — O que? Não entendi. Ele se aproximou ligeira e delicadamente e a beijou. Eduarda assustou-se, seu primeiro impulso foi empurrá-lo, mas o beijo estava tão doce, tão agradável que se entregou a ele. Sentiu a docilidade esquentar e percebeu que havia uma chama que não havia se apagado e ao mesmo tempo o gosto da despedida lhe veio aos lábios... Sentiu uma dor profunda diante da separação. Neste instante abraçou-o com força e beijou-o com todo o desejo contido em seu coração. — Não vou me desculpar porque quis fazer isso! Só espero que não gaste toda a vida até que perceba o que significou este beijo. Sabe que pode me ligar. Não vou mudar o número nunca, pode ser que me ligue, um dia – falou sussurrando em seu ouvido. Abraçou-a também com força, como se quisesse prendêla junto a ele. Então sussurrou mais uma vez:
— Eu te amo! Augusto a beijou na testa e foi embora. Ela ficou parada, olhando-o ir. Sentiu a dor do silêncio, a dor da escolha. A vida era assim, colocava em sua vida dois caminhos, sempre! Em tudo! Profissão, amor... As duas sempre proporcionarão a felicidade e a tristeza. Era preciso escolher apenas um, não tinha como ir pelas duas estradas ao mesmo tempo, então deveria abrir mão de uma e jamais saberia qual seria o final da outra. Só poderia conhecer um destino de cada vez. Não sabia se teria tempo de vida para explorar o outro caminho, nem se ele ainda existiria no futuro para ser trilhado. E se existisse, estariam lá as mesmas flores? As mesmas pedras? Ou o caminho estaria lá, porém diferente do que foi um dia? Talvez jamais tivesse esta resposta e esta incerteza também era dolorosa. Tudo era assim: ganhava uma coisa e perdia outra. Isso é a vida! Voltou para casa com os livros que comprou e na mente a imagem de Augusto. Como desejava que ele fosse feliz, mas sabia que seria difícil saber que estaria com alguém, porque é claro que ele não iria ficar só para sempre. Augusto era muito disciplinado e estudioso. Conseguiu passar na prova de mestrado em primeiro lugar. Era um grande orgulho, e muito importante na carreira dele. Ele mencionou algumas vezes que estudava para essa prova, que iria se inscrever, mas não sabia que tinha feito inscrição, a prova, que tinha passado... Nossa! Quando foi que ele fez esses planos? Estavam separados há poucos meses, provavelmente fez a inscrição quando estavam juntos. Por que ele não contou nada? Estava perdida em seus pensamentos. Augusto havia mexido com suas emoções e aquele beijo havia revirado a gaveta secreta. Sabia que não iria voltar para Bruno, então o que a impedia de ficar com Augusto? O que estava acontecendo com sua vida? Que “bipolaridade” de sentimentos era essa? Apesar de tudo, foi muito bom revê-lo. Estava feliz por ele! Deitou-se um pouco para poder reorganizar as coisas
dentro de si e colocar cada uma em seu lugar. Após conseguir controlar-se um pouco, sabia que não conseguiria se desligar e estudar, ou corrigir provas. Estava se sentindo angustiada, sem saber o que fazer e novamente foi para o carro e saiu em direção a qualquer lugar! Não tinha vontade de ir a lugar nenhum e nem de ficar em casa ou outro local. Se pudesse sairia voando sem destino, sem rumo. De repente se viu diante de um parque ecológico. Decidiu estacionar e caminhou pelo parque até que encontrou um lugar reservado. Respirou fundo e se sentou. O silêncio habitual de um lugar vazio não a preocupou, ao contrário, sentiu paz. Olhou fixamente para o verde da natureza e se lembrou de sua infância, de sua mãe. Foi criada com ensinamentos e disciplina bíblica. Ensinada que era preciso ter fé. As lágrimas começaram a rolar por sua face. “Oh Senhor! Ao olhar para sua cruz tenho certeza que seu fardo foi mais difícil que o meu. Porém, não consigo entender o motivo de minha cruz ser tão pesada! Qual é o propósito de tudo isso? Aonde vou chegar? Sempre sonhei com um amor verdadeiro, intenso, que fosse capaz de resistir a tudo. Que juntos envelhecêssemos e teríamos nossos filhos, netos... Uma vida com uma família. Por que estou destinada a ficar sozinha? Não quero ser sozinha! Oh Deus, sei que não mereço que ouça minha prece, mas, por favor, colha minhas lágrimas, preciso de alguém que cuide de mim... Estou me sentindo tão frágil, tão pequena, insignificante. Guie e abençoe a vida de Augusto e Bruno... Faça sua vontade, Senhor! Ajude-me a passar por este momento e me dê a luz, tire-me destas trevas onde me encontro! Não posso caminhar nesta escuridão! Socorra-me... – as lágrimas e o choro sentido a impediram de continuar dizendo, mas passou horas ali, orando em silêncio.” Sempre quando estava angustiada gostava de ficar ao ar livre, em contato com a natureza e sozinha. Sentia-se melhor quando fazia suas orações e sempre voltava para casa mais calma. As pessoas começaram a chegar e sentar nos bancos ao redor de onde estava, parecia que dentro de
poucos instantes o lugar estaria cheio. Levantou-se e resolveu ir embora. Desejava continuar só. Entrou em casa e foi até a cozinha beber água. Depois tomou um demorado banho e vestiu seu pijama. Repousou no sofá para assistir a um filme e tentar esvaziar a mente de seus tristes pensamentos. Era preciso aceitar os fatos quando não se tinha nada a fazer!
XVII
E
duarda estava mergulhada em seus pensamentos quando a campainha tocou. Mais uma vez o porteiro deixou subir sem anunciar. Teria que conversar com o síndico sobre isso, porque estava acontecendo muitas vezes. Refletiu que poderia ser também um vizinho, mas de qualquer maneira iria alertar o responsável sobre esta questão. Abriu a porta e pronto, um par de olhos aparentemente abatidos a fitavam de cima a baixo. — Boa noite, Eduarda. Posso entrar? O dia havia lhe reservado várias emoções. Despedir de Augusto, a visita de Bruno... O que será que ele foi fazer ali? Já não tinham dito tudo um ao outro? O que mais poderiam dizer? Só faltava ter vindo se despedir... Ele havia lhe dito que voltaria para o Rio. Duas despedidas no mesmo dia! Não iria suportar. — Bruno! Como consegue entrar todas às vezes sem ser anunciado? — Entrei pela garagem. O portão estava aberto e o porteiro não estava. Simples. Gosto de te surpreender. Vai me deixar entrar? – havia um olhar de sarcasmo e vitória. — Por favor! – disse dando-lhe passagem. — Está tudo bem com você? – estava nervoso e precisava dizer alguma coisa. Foi o que veio em sua mente. — O que quer? Ele a fitou com um sorriso no canto da boca. — Por que está me olhando assim Bruno? — Você estava chorando? — O que isto te interessa? Fez sua escolha, foi egoísta e... Ah, deixa pra lá! O que foi que você veio fazer aqui? – indagou impaciente. Não queria prolongar a conversa, estava cansada.
— Acha que pode ir a minha casa, dizer aquelas coisas, me dar às costas e ir embora? — Ah! É isso. — Escute aqui, estou percebendo seu tom de voz comigo, seu desagrado em me ver aqui, mas vim apenas para despedir-me. Ela o olhou com um vazio imenso, uma dor apertou-lhe o coração. Sabia que era isso. Então ele estava partindo mais uma vez. Dor, dor, dor... Era tudo que sentia. — O que achou? Que vou ficar implorando seu amor todas as vezes que nos encontrarmos? Desculpe se lhe decepcionei. Já disse tudo que tinha para dizer e não temos mais nada para falarmos, você também já disse tudo! Vou encontrar uma forma de te esquecer, mas desta vez, da forma correta. Assim como arrancamos uma erva daninha pela raiz, para que não nasça novamente! — Eu vim em paz. — Eu sei. Não precisava se dar ao trabalho de despedirse de mim. Quando precisou fazer isso não fez. Agora é desnecessário – respirou fundo e deixou escapar — Duas despedidas no mesmo dia! — Despediu-se de mais alguém hoje? Ela o olhou, apreensiva. O que dizer? Então decidiu responder sem rodeios. O que mais poderia acontecer? — Sim, de Augusto. — Oh! Você ainda o vê? — O que isso te interessa? Mas posso responder, não! Foi coincidência nos encontrarmos no shopping. Ele está indo embora, assim como você. — Embora? Eu? Para onde? — Não veio se despedir? Não vai embora? Voltar pro Rio, para o Sul? — Não! Ela o olhou indagando-lhe explicações. Seu olhar lhe proporcionava tantas interpretações, mas algo era incondicional:
ele tinha o poder de acelerar seus batimentos. Olhava para ele e cada dia parecia que estava mais bonito que o dia anterior. Tinha a sensação que jamais se acostumaria com tanta beleza. O bom é que ele iria embora e a pouparia de reagir assim diante dele. — Bruno siga seu caminho... Deixe-me em paz! O que deseja? Não precisamos de mais uma despedida, já fizemos isso – falou rispidamente, mas era apenas uma tentativa de se defender de suas emoções. — Disse que vim me despedir, mas não disse que iria embora! Ele se aproximou dela e a segurou pelos ombros. Era a primeira vez que Bruno a tocava, de verdade, desde a sua volta. A raiva passou e o desejo de ser abraçada por aquele homem apossou-se de novo de sua mente. “Meu Deus, me ajude a esquecê-lo. Olhe o que um simples contato faz comigo!” – ela o olhou nos olhos. Havia amor em seu olhar, desejo e sofrimento. Bruno foi capaz de ver e sentir a mensagem daquele olhar. Fixou seu olhar no dela, com os mesmos sentimentos e desejou que Eduarda também conseguisse ver através dos olhos dele. Então, sem mais adiar aquele momento, ele a beijou. Eduarda foi pega de surpresa. Jamais esperaria aquele gesto e como um vulcão em erupção, lembranças deles dois invadiram sua mente e a fez lembrar-se de como era estar com ele. Aquele beijo despertou todo o desejo contido, guardado dentro de si nestes anos. Sentiu-se tonta, inebriada, mas logo se sentiu em casa. Finalmente estava em casa, nos braços de seu amado. Então, entregou-se àquele beijo! Como desejou aquele momento, como sentiu saudades daquele beijo... Era como se os dois fossem um só. Conhecia aquele beijo, aquele toque, era como se o tempo não tivesse passado. Abraçou-o pelo pescoço, sorrisos e lágrimas misturavam com o beijo, sentiu o gosto salgado das lágrimas, mas estas eram de felicidade, então o salgado tornava-se doce. Bruno a abraçou firmemente. Ambos já sabiam,
mesmo sem nada dizer, a importância e o tamanho daquele sentimento. Foi uma explosão de sentimentos! Eduarda conhecia aquele homem como se fosse ela mesma. O beijo era o mesmo, nada havia mudado. Sentiu que o tempo não pôde apagar o amor entre eles. — Vim para me despedir de minha vida de preconceito, triste, solitária e de fuga. Eu te amo e te quero! Preciso saber se ainda me deseja – falou em seu ouvido após interromper o beijo. Ela sorriu e o abraçou. — Claro que sim! Como eu sonhei com este momento, Bruno. Diga que não vai me deixar de novo! Por favor! — Naquele dia, suas palavras me atingiram em cheio. Ah, Eduarda, não sabe o que é capaz de fazer comigo! Estou com medo, não sei o que vai ser de mim daqui a uns anos, mas sei que não posso perdê-la. Se você tem coragem de enfrentar isso comigo, também terei para estar ao seu lado! Ele a beijou de novo. Tinha urgência em beijá-la. Havia perdido tempo demais. Só agora, nos braços da mulher amada é que percebeu o quanto foi tolo em fugir de Eduarda. Qualquer caminho que fosse o levaria para aquele momento e para ela. Foi um beijo ávido, suave, intenso, voraz, delicado... Um beijo que trazia todos os sentimentos de um verdadeiro amor. Eduarda não continha as lágrimas que rolavam em sua face sem as esconder. Havia chorado tanto nestes últimos dias, que não acreditava que estava vivendo aquele momento. Estava com saudades da felicidade e finalmente ela estava ali. Ficaram abraçados um tempo antes que ele a fizesse olhá-lo. — Se você sentir que o fardo está pesado prometa-me que vai dizer, e saberei deixá-la ir. — Prometo! Sabe por quê? Você não sabe o tamanho da minha força! Vai surpreender-se comigo! — Não sei o que o destino me reserva! — Sabia há dez anos? — Não!
— E não teve medo! Por que está com medo agora? – disse, beijando-o novamente. Ele correspondeu com toda a paixão existente e com a mesma intensidade. Era como o primeiro beijo, a mágica do momento, a energia, os sentimentos. Todo seu corpo correspondia àquele contato. Entregara-se a aquele homem completamente e sentia que o tempo havia voltado e estava revivendo as mesmas emoções do princípio! — Eduarda... – sussurrou em seu ouvido — Sonhei com este momento cada segundo nestes 1.460 dias que estive longe de você. Seu gosto, seu cheiro, seu corpo! Não sei viver sem você! Adoro sua voz, seu riso – segurou-lhe os cabelos — Adoro seus cabelos, tudo em você é perfeito, perfeito para mim! Perdoe-me por ter me afastado, por ter feito você passar por tudo isso. Ela colocou os dedos nos lábios dele e o fez se calar! — Nossa vida começa agora! Vamos esquecer o passado, as dores, o sofrimento, vamos começar do agora! O que passou não volta mais, só serviu de lição e amadurecimento para estarmos hoje juntos. Faz parte de nossa história, não vamos negar nada do que houve, mas não vamos torná-los eternos. Passou e agora estamos aqui, novamente juntos, como sempre devia ter sido. Vamos eternizar apenas os momentos felizes. — Você às vezes tem uma força que me assusta e me enche de orgulho! De onde vem essa força que te faz crescer nestes momentos e se tornar tão gigante no meio dessa confusão? — Algo me impulsiona para frente! Minha força vem de Deus. — Oh Eduarda, como pude viver tanto tempo nas trevas? Eu me coloquei na escuridão, me lancei no inferno no qual vivi. Não queria ver a luz no fim do túnel, hoje percebo isso claramente. A luz estava lá e eu me negava a enxergá-la. A luz era você, sempre foi! — Também estive na escuridão... — Mas você não a desejou, não a provocou. Quase acabei
com minha vida! Compliquei demais a sua! Como é bom estar aqui, tocá-la, beijá-la... Sentir seu perfume! – neste momento afundou o rosto em seus cabelos e sentiu seu cheiro. Abraçou-a e a puxou para perto de si — Ainda tenho medo! — Eu também. Vamos encontrar uma forma de vencer este medo juntos. — Eduarda, preciso te dizer uma coisa. Sei que confia em mim, mas quero que saiba que jamais farei nada para colocá-la em risco. Nada! — Sei disso. Não tenho medo de você, Bruno. Tenho medo de perdê-lo! — Sempre fui seu, não vai mais me perder. — Bruno, meu medo é que você adoeça e venha... — Não pense nisso. É assim que estou vivendo. Como você disse, nada de passado e nada de futuro! Vamos viver o hoje, um dia de cada vez. Só estou aqui hoje, porque a força do meu amor foi maior do que a força em resisti-lo. E se a minha vida for acabar agora, quero estar com você. Não vou mais me enganar, não quero mais desistir de ter você pra mim. Não consigo mais e não quero mais resistir. Depois que foi lá em casa e me “sacudiu” com aquelas palavras de amor e coragem, não posso mais. Ter você neste momento é melhor que ter o ar. Agora vou até o fim! Não penso em mais nada a não ser em nós. Cansei de mentir pra mim, estou aqui para dizer sim, mas não sei aonde vou chegar. — Estaremos juntos nessa caminhada. Não posso viver sem você e nem você sem mim. Ela o beijou mais uma vez. Sentiu tanta alegria que chegou a doer. Nunca pensou em sentir dor de alegria, mas estava extasiada, era tanta felicidade que não podia medi-la nem expressá-la em palavras. Bruno a segurou como se fosse prendê-la para nunca mais ir embora, algo de maior valor, inestimável. Ele beijou-lhe o pescoço e suas mãos passavam em suas costas e cabelos. O desejo foi crescendo dentro deles e estavam embriagados de amor.
— Não, Eduarda. Não estou pronto para este momento ainda. Ele abaixou o olhar. — Sabe que jamais poderemos deixar de usar preservativos? E que não poderemos ter filhos... — Sei de tudo isso. E vamos superar tudo juntos. Eles se abraçaram. Eduarda fechou os olhos e a imagem de um olhar azul invadiu sua mente como um punhal, fazendo-a reabri-los. Seu coração se acelerou. Teria que ser forte e saber que isso aconteceria para o resto de sua vida, pois existiam sentimentos que estavam além do controle, no entanto, dominá-los era sua tarefa. — Bruno, vivemos juntos por seis anos e conseguimos evitar que isto acontecesse antes da hora. Sempre tivemos cuidado e teremos agora também. Precisa esquecer a doença. Vamos estar juntos como sempre estivemos e será lindo como sempre foi! — Imagine uma pessoa vivendo no mesmo instante no céu e no inferno. Esse sou eu aqui, agora. Desejo você mais do que tudo, meu corpo treme com seu simples olhar, mas... Ela o abraçou e ele se calou, apertando-a com força. — Não se torture mais, tudo ao seu tempo. Agora que estamos juntos novamente, será mais fácil – ela disse abraçada a ele. Era novamente o início. Era o Recomeço.
XVIII
B
runo e Eduarda desejavam privacidade. Precisavam de um tempo para reorganizar a vida e para reaprenderem a se conhecer. Muitas coisas aconteceram para os dois nesses anos de afastamento, o amor entre eles havia sobrevivido, mas já não eram as mesmas pessoas, haviam trilhados caminhos que os tornaram diferentes. Decidiram que iriam manter sigilo por um tempo que estavam juntos novamente, era necessário um período só para eles restabelecerem os laços que se desfizeram, unir os grandes pedaços que se quebraram. Por outro lado, parecia que o tempo não tinha passado e que eles nunca haviam se separado. Um sentimento que os acolhiam, que trazia paz, tranquilidade, segurança, harmonia, crescimento mútuo, confiança, cumplicidade e cheio de desejo e de paixão que reacendeu de forma intensa em ambos. Os dias se passaram na mais absoluta normalidade. As rotinas não foram interrompidas, mas se viam sempre, não necessariamente escondidos, no entanto, modestos. A vida seguia seu curso. Bruno conseguiu relocação de trabalho e estava trabalhando em alguns projetos. Eduarda continuou seus hábitos. Após dias de reencontro e restabelecimento, Eduarda sentiu que estava pronta para mergulhar naquele mundo, naquela parte frágil e delicada, mas que precisava ser fortificada: a doença de Bruno. Começou a ler sobre o assunto, pois tinha conhecimento superficial e precisava se aprofundar. Durante vários dias leu artigos, reportagens, livros e tudo que encontrou sobre o assunto. Estava lendo um artigo sobre uso diário de antirretroviral para impedir que pessoas HIV-negativas adquiram o vírus. Sua leitura foi interrompida pelo som da campainha que
anunciava a chegada de Bruno e abriu a porta com entusiasmo, sendo surpreendida por um beijo. — Olá? Ela sorriu e ele entrou. Sentou-se no sofá e conseguiu ler o título de um artigo que estava por perto. — O que é isso meu amor? – pegou o documento em suas mãos e leu alguns trechos. Eduarda sentiu-se envergonhada. — Um estudo da Partners PrEP, conduzido pelo University of Washington’s International Clinical Research Center ... — Sobre AIDS? – indagou perplexo sem deixá-la terminar a resposta. — Sim, eu... — Por que não me perguntou? Você está estudando isto para quê? – Bruno estava visivelmente irritado. — Bruno, precisamos conversar – estava com aquela expressão de seriedade! — Eu estava me perguntando quanto tempo levaria para você tocar no assunto. — É sério. — Eu sei que é. E como sei! – debochou. — Por isto estou lendo. Até hoje você não foi capaz de falar sobre este assunto comigo. Ele e a olhou firmemente: — O que deseja saber? — Tudo! Nesse tempo que voltamos estava tão absorvida com a nossa felicidade que não me permiti perguntar nem mesmo pensar sobre este assunto. No entanto, preciso conhecêlo melhor nesta fase. Não sei quais medicamentos está tomando, nem como está se tratando, como estão seus exames e... — Por que deseja saber isso? Tem medo que não me trate devidamente e te exponha a algum risco? — Claro que não! Não é isso. Quero fazer parte, ser integrante, como uma equipe. Não tenho medo de você e jamais
terei, só preciso saber se me quer ao seu lado como uma alienada apaixonada ou uma companheira para todas as horas. Ele a olhou profundamente e suspirou. Após alguns segundos em silêncio, respondeu: — Tudo bem, você tem o direito de saber. No momento não precisa se preocupar tanto, minha carga viral está indetectável. Deve ter lido sobre isso! – novamente a ironia. Eduarda ignorou e perguntou: — E os remédios? — Eu tomo alguns... — Não vai brincar comigo, nem me fazer de tola novamente. Quero saber a sua real situação. Só assim... — Não brinco com você! Nunca a fiz de tola. Acuseme de qualquer coisa menos isto! Jamais tentei enganá-la de qualquer forma que seja. Tudo que fiz, em meus conceitos, certo ou errado, foi para protegê-la de qualquer mal que poderia te fazer, inclusive este. Após responder rispidamente ele se levantou e continuou: — Talvez ainda pense que te enganei quando fui embora, mas não é verdade. Não se engana quem não nos conhece. E lembre-se, foi você quem perdeu a memória! Quando se lembrou, te procurei e nunca me recusei a te dar nenhuma explicação. Virou-se e foi pegar algo para beber na geladeira. Ele encheu um copo com suco e bebeu. Ficou muito tempo parado pensativo. Eduarda ficou olhando-o pela porta, esperou um tempo e com calma se aproximou: — Desculpe-me. Não foi minha intenção ofendê-lo e... — Não ofendeu. — Olhe para mim Bruno. Estou envergonhada. Ele suspirou e a encarou. — Pode me perguntar o que quiser. Não hesitarei em responder. — Preciso que se desarme. Tire este escudo que inventou. Não precisa se proteger de mim.
Ele a olhou tão profundamente que foi como se a tocasse. Foi quase palpável. — Não quero me proteger de você. É o contrário. — Já te disse que não temo. Apenas gostaria de saber como foi nestes anos, o que você fez... Disse que adoeceu, queria saber o que aconteceu. Fico imaginando coisas e... — Para quê? Você disse que não viveríamos do passado. — Sim, eu disse e é verdade! Bruno, não quero te magoar, mas não é passado e nunca vai ser. Sabe que o vírus não vai desaparecer. Nada do que fizer vai mudar sua situação e ignorar não vai ajudá-lo. Não quero viver de suposições e imaginações, depois que nos conhecemos, sempre fiz parte de sua vida, mas estes cinco anos formam uma lacuna, um buraco. É como se me escondesse um segredo e não pudesse compartilhá-lo comigo. Ele franziu a testa em sinal de desaprovação. Seu olhar escureceu-se. Se pudesse defini-lo como o tempo, diria que ele se fechou, escureceu e que viria uma tempestade! Os pensamentos de Bruno viajaram naquele momento. Seu olhar ficou distante. Olhou para sua amada e resolveu ceder. Ela não sabia, mas ele cederia a qualquer desejo dela. Começou então a relatar-lhe todos os detalhes que até aquele momento eram obscuros para Eduarda e eternamente dolorosos para ele. Bruno estava ansioso demais na igreja. Os convidados já estavam cochichando sobre a demora da noiva. Ligou para o celular dela e só chamava. Devia ter deixado em casa. Tentou o de Alice, mas nada. A noiva já estava uma hora e meia atrasada, os convidados ansiosos e exaustos com a espera. — Bruno, o que está acontecendo? – perguntou sua mãe. — Não sei mãe – respondeu extremamente tenso. — As pessoas já estão ficando impacientes. Perguntam se aconteceu alguma coisa. — Já disse, eu não sei. Estou ligando para ela, para a Alice, para o Cláudio e ninguém atende – seu nervosismo era evidente.
— Calma meu filho. Vai ver foi o trânsito ou essas coisas de noiva! Vamos esperar mais um pouco. Bruno concordou com ela, mas em seu íntimo estava aflito. Eduarda havia dito várias vezes que não queria se atrasar, que achava o cúmulo estes atrasos e uma falta de respeito com os convidados. Não acreditava em pressentimentos, mas sabia que algo estava errado, só não conseguia supor o que era. O que poderia ser? Lembrou-se que tinha salvado o telefone da Casa da Noiva onde Eduarda foi passar o dia e se arrumar. Achou melhor ligar, às vezes estaria tudo atrasado. Com muita angústia ele pegou o telefone e com evidente nervosismo e pressa discou para o salão e um alívio tomou conta dele quando atenderam, mas logo deu lugar para uma aflição ainda maior: Eduarda havia saído com a madrinha há mais de duas horas, pronta para a cerimônia! O que teria acontecido? Ela não ia ficar passeando por aí vestida de noiva. Estava começando a temer que algo ruim tivesse acontecido. Será que havia congestionamento, um acidente na estrada e ela estaria presa no trânsito? O local era há 20 minutos da igreja. E por que não lhe avisou nada? No meio dessa aflição viu o Dr. Jander, que havia acabado de chegar, conversar com sua mãe. A expressão dela mudou na hora e notou quando ela colocou a mão na boca, pronunciando “não pode ser!” Neste instante sua mãe olhou para ele e percebeu dor nos olhos dela. Sentiu um arrepio lhe percorrer as costas. Não conseguia se mexer. Queria correr para perguntar o que havia acontecido, mas percebeu que estava paralisado pelo medo de ouvir. Notou na expressão de sua mãe que não era boa notícia. Sabia que havia ficado parado apenas por segundos, mas pareceu uma eternidade ver sua mãe e o Dr. Jander caminharem em sua direção. Os dois pararam em sua frente, bastante sérios e preocupados e soube que era notícia ruim. Desejou não ouvir, mas ainda não conseguia se mover para sair dali. Queria apenas acordar daquele pesadelo. Nesses segundos um filme se passou em sua mente. A felicidade de ambos, os preparativos para aquela cerimônia. Observou os detalhes na igreja, decoração, convidados... Só faltava o principal, a noiva! Conseguiu visualizar Eduarda entrando pela igreja e até mesmo depois, já a caminho da lua de mel. Tudo isso em segundos,
porém seu roteiro foi interrompido pelo som da voz amiga que, naquele momento já sabia, trazia-lhe más notícias. — Bruno, não sei como te dizer isto! — O que houve, Dr. Jander? Notícias de Eduarda? — Bruno, você precisa ser forte! Ele nada disse. Seu coração estava disparado, havia conseguido atingir a potência máxima cardíaca sem mexer um único músculo, a ruga de preocupação em sua testa se aprofundou. — Eu estava no carro um pouco atrás do de Eduarda, queria chegar junto com ela já que eu a conduziria ao altar. — Isso eu sei. — Então, eu seguia uns metros atrás e... Bruno observou que ele não estava vestido com terno, a camisa amarrotada fora da calça e... — Pelo amor de Deus, fale logo! — No trajeto para cá, o carro onde Eduarda estava foi atingido por um caminhão... — Onde ela está? — Calma Bruno. Neste exato momento está com a nossa equipe... Ele não esperou pelo restante da notícia, saiu em disparada para o carro. Não se importou com sua mãe chamando, nem com os olhares das pessoas confusas, sem saber o que estava acontecendo. Não pensou em dar explicações aos convidados e nem em perguntar detalhes sobre ela. Entrou em seu carro e dirigiu o mais depressa que pôde para o hospital. Estacionou de qualquer jeito, nem se preocupou em retirar as chaves da ignição, não se importou com as pessoas que observavam, apenas desceu e rapidamente chegou à recepção. — Doutor Bruno! — Onde ela está? — No preparo para cirurgia do 5º andar. Vai... Ele não esperou e correu até a parte mais tenebrosa do hospital. Os olhares eram todos para ele. Estava agindo mecanicamente, não podia acreditar no que estava acontecendo. As recepcionistas da outra ala nem fizeram menção de falar com ele, que passou direto, sem
olhares, nem cumprimentos. Lavou as mãos como de procedimento, pegou o capote, luvas, máscara, vestiu-se todo como se fosse realizar uma cirurgia e entrou na sala. Todos olharam atônitos para ele. Doutor Meireles foi quem falou primeiro. — Doutor, sinto muito – disse o neurocirurgião. — Qual é o quadro dela? A verdade! Doutor Meireles o levou até as tomografias. Toda a equipe voltou a se concentrar em suas atividades. — Traumatismo craniano fechado. Chegou desacordada, escala de coma de Glasgow de seis. Entubamos rapidamente para oxigenação – ele virou o corpo e apontou para a ressonância — Este é o hematoma principal – apontou para região dos lobos temporais, no hipotálamo — Mas há outros pequenos espalhados pelo cérebro. Vamos ter que abrir e aspirar o hematoma, a pressão intracraniana está aumentando e seu cérebro está começando a herniar pelo forame magno. Precisamos interromper este processo antes que se agrave. Bruno olhava e não queria acreditar no que via. Era grave. Muito grave! — Há outras lesões? — Talvez no baço. Fraturou os arcos costais inferiores esquerdos, o fêmur, o antebraço e duas costelas. Pressionou o nariz e fechou os olhos por instantes. Precisava ter esperanças! Então perguntou: — Pressão? — 10 x 4 Ele passou a mão, nervoso, pelo rosto, como se estivesse tentando acordar. — Cortisona? — Sim, três frascos. Hemoglobina? — 12 Perguntava como médico, tentando aos poucos juntar as peças e saber a real situação antes de vê-la.
— O cérebro dela está sofrendo amigo! Vamos fazer o possível! — Alguma chance de absorção? É imprescindível abrir mesmo... — O edema está cada vez maior, comprimindo as meninges e precisamos deixar o organismo dela tentar reagir. Seu olhar era de desolação, incredulidade e angústia. Não teve como conter as lágrimas. — Sabemos o risco que ela corre. Lesões desse tipo normalmente levam à morte. Veja a tomografia: atingiu a substância cinzenta subcortical, com múltiplas hemorragias petequeais, principalmente no hipotálamo. Não gosto do que vejo. Neste instante doutor Jander entrou na sala e o abraçou. — Calma meu amigo. Vamos fazer de tudo para salvá-la. Ele balançou a cabeça. — Vou vê-la. — Bruno! Ele parou ao ser chamado e ouviu: — Ela já está preparada para a cirurgia, estou esperando apenas as radiografias e cintilografias do baço. Ele virou-se e foi até Eduarda. Não conseguiu se controlar ao vêla, ali, naquela sala que ele tanto operava. Estava entubada, respiração difícil, toda ligada naquelas máquinas, controlada por elas. Sentiu um choque ao ver sua cabeça raspada! Não era esta a imagem que projetou de sua amada para aquele dia e sim de uma noiva exuberante, a mais bela de todas. Aproximou-se dela e verificou tudo: pressão, pulso, ritmo cardíaco, prescrições... Pesou e analisou cada circunstância com a imparcialidade de que era capaz naquele momento. Então se virou para a amada e segurou uma de suas mãos. — Amor, estou aqui. Se puder me ouvir, saiba que estou aqui. Resista! Não me deixe! Por favor, em inconsciente, subconsciente, em qualquer parte do seu cérebro deve me ouvir, por favor, resista! Não se entregue, estarei aqui! – as lágrimas escorriam em seu rosto. Nesse instante a equipe médica chegou. — Não podemos esperar Bruno. Ela rompeu o baço. Temos que operá-la agora.
Ele apoiou a cabeça entre os braços. O quadro se complicava ainda mais. Bruno beijou-lhe a mão e disse: — Estou esperando, meu amor. Não demore a voltar pra mim. Estou te esperando! Bruno decidiu esperar lá fora. Não seria capaz de presenciar e não queria atrapalhar. Não podia. Nada podia sair errado, o estado dela era grave! Quando saiu, viu sua mãe aflita. — Bruno! Como ela está? — Nada bem, mamãe. Podemos perdê-la – não teve como segurar as lágrimas, só a hipótese já era dolorosa demais — O traumatismo é grave e também tem a ruptura do baço. Será operada. — Que tipo de operação meu filho. — Vão aspirar o sangue que está na cabeça e acredito que uma esplenectomia. — O que é isso meu filho? — Vão retirar o baço, aspirar o sangramento. — Meu filho, não sei o que dizer. Se pudesse eu o tirava desse sofrimento, mas tenho outras notícias. Ele olhou para ela mais preocupado ainda. — Alice. — Ai, meu Deus! Esqueci-me de que ela estava com Eduarda. Onde ela está? — No quarto meu amor, em observação. Ela teve vários arranhões e o cinto pressionou bem seu peito. Na verdade está muito nervosa. Deram um calmante para ela. E o Cláudio... — O que houve com ele? Sua mãe olhou para baixo com lágrimas pela face. — N-Não! Não... – ele abraçou a mãe com força e desespero — Ah, mamãe! O que está acontecendo? Por que isso tinha que acontecer hoje? — Não sei filho. Bruno ficou por um tempo abraçado à mãe, permitindo
que as lágrimas tentassem lavar a dor de sua alma. Quando conseguiu pronunciar algo, disse: — Vou ver Alice – afastou-se, já caminhando, mas sua mãe o segurou. — Bruno, ela não sabe do Cláudio. Ele limpou as lágrimas e saiu em direção ao quarto de Alice. Ao entrar, Bruno abraçou a irmã e ficou um tempo ao lado dela, olhando-a dormir. Sentou-se na poltrona e permitiu-se chorar novamente. Eduarda estava em perigo e havia perdido o grande amigo e cunhado. Percebeu Alice se movimentando e acordando. — Bruno... foi horrível! — Não fale nada, fique calma. Já passou! – levantou-se e pegou a mão da irmã. — Mamãe... Que bom que está aqui! E Eduarda? Eu estava com ela, meu irmão. E eu a vi depois, toda suja de sangue, desacordada. Não pude fazer nada! Fiquei presa nas ferragens, demorou para eu sair. Ela... Ela... – Alice começou a chorar. — Não fale nada! – as lágrimas também rolavam pela face de Bruno. — Ela foi arremessada para fora do carro! – continuou Alice entre as lágrimas — Foi terrível! Eu vi tudo todo o tempo... O barulho foi aterrorizante e vê-la imóvel no chão, toda ensanguentada foi... Eu fiquei presa e estava com muitas dores, pude virar o pescoço e ver o Cláudio do meu lado, também imóvel. Eu pensei que todos tinham morrido. Pessoas começaram a juntar em volta e eu ouvia um tumulto, muito barulho... E quando o resgate chegou, eu nem acreditei... Vi quando a ambulância chegou e a levou. Então eu sei que ela não morreu, senão a ambulância não a teria levado. Foi horrível Bruno! Aquele caminhão monstruoso em cima de nós. Não tivemos tempo pra nada – Alice contou os detalhes do acidente. Enquanto falava ele olhava seu pulso, suas pupilas, a prescrição acima de seu leito, olhou o soro, o que continha. — Bruno está me ouvindo? — Cada palavra – respondeu em meio às lágrimas. Ela continuou relatando e Bruno ouvia com atenção e sofrimento. — E como ela está?
Ele a olhou desolado, repleto de lágrimas. — Está sendo operada. Alice chorou. Bruno não precisava dizer mais nada. Conhecia aquele olhar. A enfermeira chegou e ele conversou com ela um pouco afastado, depois retornou para perto de sua irmã. — Onde está Cláudio? Não entendi direito, os vi retirarem Eduarda e a mim, mas Cláudio... Ele estava tão imóvel e eles me tiraram e o deixaram por último. Como ele está? — Alice o acidente foi muito grave, Eduarda está gravíssima sendo operada, pode ser que não resista. – falava em meio às lágrimas, era doloroso demais a simples ideia de perdê-la — Cláudio, ele... ele... Sinto muito, minha irmã, não tem como eu dizer de outra forma, ele faleceu. — Não! – foi um grito de dor desesperador — Não, não... Diga que é uma brincadeira, não Bruno, por favor, não! – ela ficou nervosa demais, agitou-se muito na cama. Bruno se aproximou e a abraçou com força para contê-la. A enfermeira então começou a aplicar uma medicação no acesso da veia que já estava ligado no soro e então ela foi desfalecendo e dormiu. Bruno a ajeitou na cama e olhou tudo novamente, abraçou a mãe, que estava muito nervosa e a fez se sentar na poltrona ao lado de Alice. — Ela vai dormir um tempo. Quando acordar vai precisar de nós. Já volto – saiu e foi em direção ao seu consultório. Entrou e fechou a porta atrás de si, sentando em sua cadeira e então se permitiu chorar. Era a primeira vez que Eduarda ouvia com detalhes esses momentos do dia do acidente! Bruno contava e não escondia sua aflição. — Nossa Bruno! Não tinha parado para pensar ainda o quanto você sofreu com meu acidente! — Você não pode imaginar! — Eu me lembro do meu desalento durante o acidente! Foi rápido, mas tão intenso que me gerou um trauma tão forte que não quis me lembrar. Acho que foi uma defesa. Juntou o impacto, que foi real, com minha perturbação psicológica.
Não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Não naquele momento, não naquele dia! Lembro-me do meu último pensamento... Pedi para Deus não me levar e pensei em você. Não tive como pedir mais nada porque desmaiei. — Foi grave! Você quase morreu! — Mas não me falou ainda sobre... — Escute, vou chegar lá. Oito horas se passaram até que Bruno viu Dr. Jander sair da sala de cirurgia, olhando-o como se avistasse uma criança assustada, com medo! Bruno sentia-se tão impotente, incapaz! — Ela resistiu Bruno! Mas sabemos que as próximas horas são cruciais. Vai precisar de uma transfusão sanguínea. Vou acionar o banco de sangue e... — Vou doar para ela. Temos a mesma tipagem. — Ótimo. Confie meu amigo. Ela foi forte! Já solicitei ao banco sanguíneo. — Estou indo agora! — Bruno o banco de sangue está fechado. São quatro horas da manhã... Ele havia perdido a noção de tempo. Estava tudo confuso em sua mente, inclusive percepção das horas. — Vá para casa Bruno. Não tem nada que possa fazer agora! Amanhã conversamos. Bruno ficou calado, apenas olhando ele se afastar até sumir do seu campo de visão. Sua mãe, que estava do seu lado, aproximouse e carinhosamente falou: — Vamos pra casa Bruno. Descanse um pouco. Depois você volta e... — Não vou sair daqui mamãe. Pode ir! — Meu filho! — Não adianta mamãe, eu não vou! Vou descansar na sala dos médicos, vou ficar aqui – estava determinado e nada o faria mudar de ideia. Na manhã seguinte sabia que o dia seria tenso e difícil. Não demorou a amanhecer e logo cedo foi ver sua irmã, que estava muito abalada.
— Bruno! Ele se aproximou e a abraçou. — Alice, sei que está doendo, mas precisa ser forte. — Bruno, eu... eu... — Alice, eu... – precisava dizer a ela. — Conversei com os médicos e você está bem. Terá alta daqui a pouco. — Quero ir para casa! — Você irá daqui a pouco, mas... — O que foi? — Desculpe minha irmã, mas tenho que te contar. Ela nada dizia, apenas chorava. — O velório e o sepultamento de Cláudio. Ela abraçou o irmão em desespero. — Vou com você, querida! Eduarda estava emocionada. Não havia se dado conta de todo sofrimento que havia sido para Bruno, Alice e a família e amigos de Cláudio. Quando perdeu a memória, quase não se lembrava dele, tinha apenas uma vaga lembrança, porque Cláudio era muito amigo de Bruno. — Bruno, eu não podia imaginar que foi tão terrível assim. — Não se culpe. Você não tinha como saber. E pela primeira vez ela chorou pela morte do amigo. E os dias que se seguiram foram iguais. Sua irmã Alice ainda estava em “estado de choque” e o quadro de Eduarda não apresentou nenhuma piora ou melhora. Ficou estável. Foi preciso manter a intubação traqueal, controle de pressão arterial e o estado hipovolêmico. Bruno conferia todos os dias a monitorização básica em ECG, pressão arterial, frequência cardíaca e oximetria de pulso. Verificava a posição da cabeça, Swan-Ganz, se estava acima do nível do coração. A pressão de perfusão ao nível da cabeça devia ser menor que a pressão registrada com o transdutor ao nível do coração. Se a diferença não for corrigida, o valor da pressão arterial será utilizado de
maneira indevida e causará isquemia encefálica. Fazia a monitorização do CO² eliminado na expiração com a capnografia para ajudar no diagnóstico de embolia aérea venosa, obstrução das vias aéreas, congestão pulmonar e descurarização e olhava constantemente a pressão intratorácica, pois se aumentasse muito, prejudicava o retorno venoso do encéfalo e aumentava a PIC. Checava os acessos venosos, o cateter venoso central, Swan-Ganz, que havia sido introduzido para diminuir a probabilidade de embolia aérea ou falência cardíaca intraoperatória e a temperatura monitorizada, mas sempre observava. Bruno checava os exames que eram feitos todos os dias. Era preciso interpretar corretamente as alterações do débito urinário para discernir a etiologia da variação da diurese. Assim os dias se passaram e Bruno estava ali, checando tudo, atento a qualquer detalhe. Estava junto quando os médicos passavam o plantão, revia todas as prescrições médicas, via atentamente todos os exames rotineiros e os específicos. Discutia com os colegas as prescrições e procedimentos. Ele também conversava com ela todos os dias. Fazia carinho e estava ali, sempre à espera. Já iria completar três semanas do dia do acidente e os exames demonstraram redução do edema e melhora geral no quadro clínico. Estava na sala de descanso quando recebeu o recado do doutor Jander para procurá-lo em sua sala e ficou tenso. Será que aconteceu algo com Eduarda? Saiu apressado e quando entrou na sala do doutor Jander e a presença da doutora Rafaela o assustou. Normalmente ela estava presente nos momentos de informar o óbito dos pacientes aos familiares. — O que aconteceu? Pode falar. Melhor, não fala nada, eu não quero ouvir. — Calma Bruno! Você precisa de calma – disse serenamente Dr. Jander. — Como posso doutor. Pelo amor de Deus, não me diga que ela se foi... — Não, Bruno. O quadro dela é o mesmo. Ela não piorou, mas também não melhorou. — Essa parte eu já te contei. Foi quando soube que era portador do HIV.
Eduarda nada disse. Estava concentrada na conversa. Seus pensamentos perdidos neste tempo que não presenciou e queria conhecer, porque faziam parte de sua história. Bruno continuou: Doutor Jander entregou os exames para ele mesmo olhar. Bruno os pegou e quando abriu era o que imaginou: anti-HIV 1/2 e NAT HIV. Positivo. Sentiu um amargo na boca, suas vistas não queriam acreditar no que estava vendo, passou a mão pela boca, depois nos cabelos, então foi para o próximo exame. Repetição dos exames, resultado confirmado. O próximo exame era contagem de linfócitos T-CD4+ (LT-CD4+), resultado 350/mm3. Ficou alguns minutos olhando para os papéis em suas mãos. Não sabia o que fazer, nem o que dizer. Bruno sabia o que representava ser um portador de HIV em sua vida. Saiu daquela sala com a sensação que tinha morrido. A diferença é que ele podia sentir dor. Os mortos não sentem mais nada, e ele ainda sentia. Saiu do consultório e não sabia para onde ir, mecanicamente caminhou até a sua sala e desejou que ela estivesse vazia. Não era apenas sua e não era seu plantão, mas precisava de um lugar para ficar sozinho. Entrou e sentiu-se aliviado de não haver ninguém, fechou a porta e a trancou. Sentou-se na cadeira e jogou os papéis em cima da mesa. E agora? Mas que inferno era aquele? Eduarda gravemente ferida... Sabia que nos exames de sangue que ela fazia rotineiramente não havia detectado nada. PCR, hemoglobina e hemograma analisava somente as variações quantitativas e morfológicas dos elementos figurados do sangue. Indicava infecções, mas infecções não indicavam HIV/AIDS, exames específicos eram selecionados para o diagnóstico da infecção por HIV. Fechou os olhos e esfregou as mãos na face. Bruno se encostou ao encosto da cadeira e olhou para o teto com as mãos na cabeça. Quando foi que se contaminou? Nunca havia usado drogas, seringas de outras pessoas, sempre usou preservativos em suas relações. Não tinha comportamento de risco. — Mas que droga é essa? Pegou novamente os exames e analisou um por um. Iria repetir os exames por desencargo de consciência. Respirou fundo, sabia que
era fato! Estava no século XXI e ele sabia dos preconceitos e medos que passavam na cabeça das pessoas quando o assunto era AIDS. A maioria das pessoas nem sabiam diferenciar AIDS de HIV. Bruno sentiu um medo exagerado! Como seria sua vida agora? Seria melhor não ficar sabendo, viver até onde seu corpo aguentaria e depois morrer. Não era assim com todo mundo? Há quanto tempo estaria contaminado? Fez uma força enorme para se lembrar onde foi que se contaminou para saber há quanto tempo estava com aqueles seres mortais vivendo dentro dele. Outras dúvidas lhe perturbavam a mente: como contar para as pessoas? Como contar para sua mãe? Oh céus! Será que valia a pena contar? Para quê? As pessoas sentiriam pena, medo... Seria reconhecido dali para frente mais pelo rótulo que lhe atribuiriam do que por si mesmo. A infecção por HIV estava rotulada à sexualidade e marginalidade “aqueles que não respeitam as leis e vivem excluídos da sociedade”: os profissionais do sexo, os usuários de drogas e os homossexuais, os que faziam sexo promiscuamente... Na cabeça das pessoas era assim que os indivíduos se infectavam. Assim as pessoas olhavam para os portadores do vírus, como essas pessoas marginalizadas e com pena, dó, porque já visualizava seu enterro. Era esse o fim, doença, sofrimento e morte! Era rótulo demais para segurar a barra! O preconceito o assustava mais que a própria doença. As pessoas também eram desinformadas sobre o assunto. E por mais que se diga, a maioria das pessoas não compreendia a diferença entre o HIV e AIDS, não compreendiam que não eram a mesma coisa. Também havia uma desinformação na forma de transmissão do HIV e por mais que se tente negar, as pessoas têm medo daquelas que carregam o HIV consigo. Não! Isso não estava acontecendo com ele. De repente um “toc toc” na porta o fez despertar de seus devaneios. Dr. Jander estava ali. Já começou a sentir aqueles olhares de pena. Não iria suportar! — Bruno, vamos iniciar os procedimentos para retirar a ventilação mecânica de Eduarda. Vamos tentar trazê-la de volta. Hoje vamos retirar a sedação e tentar o desmame.
Sentiu-se confuso. Ele não foi atrás dele para consolá-lo, nem para falar do HIV e sim de Eduarda. Ele o olhou fixamente e tentou reorganizar os pensamentos, fez um esforço enorme para esquecer-se do que estava acontecendo e se concentrou na informação que o doutor Jander veio lhe dar. Eduarda já estava entubada há quinze dias, mais do que o recomendado. Havia risco de infecções, pois o procedimento era totalmente invasivo. Ambiente hospitalar, sala fechada, sem circulação de ar... E tinha o baço que foi retirado, então ela estava correndo risco de se contaminar com bactérias e piorar seu quadro. E se ela não resistisse? Sentia esse medo toda vez que ele mesmo realizava tal procedimento em seus pacientes. Era um momento tenso e exigia preparo, concentração. Neste caso ele estava mais do que tenso, era sua vida! Então se percebeu incapaz de salvar a vida de quem mais amava. Doutor Jander continuou diante do silêncio dele: — Fizemos o teste de respiração espontânea. Ela apresenta uma função respiratória estável, os exames demonstram FiO² < 50% , PEEP < 5 cm H²O, ausência de acidose (pH 7,3) e hipercapnia (pCO² > 50 cm H²O). Possui boa estabilidade hemodinâmica, você sabe, boa perfusão periférica, não necessidade de drogas vasoativas e inotrópicas, valores de potássio, fósforo e magnésio normais e escala de coma de Glasgow > 11. Tudo indica que estamos no caminho certo. — Eu não vou doutor. Prefiro esperar. Posso ficar nervoso demais e atrapalhar – finalmente pronunciou. Bruno sabia que este processo era uma área de penumbra e que mesmo em mãos eficientes e especializadas, era um campo que não se sabia exatamente o que esperar. — Já esperava isso. Você é muito ponderado em suas atitudes. Orgulho-me de você! Como está? Bruno olhou para ele não acreditando naquela pergunta. Como poderia estar? Arrasado? Desesperado? — O que espera que eu diga? — Deixa pra lá. Conversaremos depois, com mais calma! Bruno acompanhou-o até a antessala. Sua mãe estava lá, aflita! Alice também marcava presença. Elas o abraçaram.
— Meu filho, você está mais abatido, aconteceu alguma coisa? Sua mãe o conhecia como ninguém. Olhou-a e pensou – “Como dar uma notícia dessas a ela?” – Não tinha coragem. — Não mãe. Nada de novo! Vão tentar fazer com que ela respire sem ajuda dos aparelhos. — Isso é bom, não é? — Sim. Mas há riscos, ela pode não suportar. — Mas ela vai, meu irmão – falou Alice, abraçando-o. — Sei que vai. Ela resistiu a tudo até agora, vai passar por mais essa também! — Meu filho, confie em Deus! — Não me fale em Deus, mamãe! Ele não está aqui. — Que blasfêmia! Como pode dizer isso? — Mamãe, olhe esta situação? Consegue ver Deus nisso tudo? — Claro que sim. Eduarda não se foi. Ele riu ironicamente. — Não era para ela estar aqui, mamãe. Estaríamos retornando de nossa lua de mel. Entende o que digo? Não quero discutir sobre isso – ele deu alguns passos e afastou-se um pouco. Alice se aproximou do irmão e o abraçou. Permaneceram em silêncio por um longo período. O tempo passava lento demais para Bruno. Estava aflito, Eduarda poderia não resistir e precisar novamente de uma reentubação. — Meu filho, faz três horas que estamos aqui esperando. — É assim mesmo mãe. Depois que tira o tubo, ela precisa ser observada por um período de respiração espontânea, fora do aparelho. Precisa suportar o processo de retirada e respirar sozinha. Esse tempo deve ser observado de 30 minutos a 2 horas. A equipe fica de prontidão, se precisar voltam a reentubá-la. O que é trágico! E se suportar esse período, deverá ser observada até 48 horas na UTI, então se tudo ocorrer bem, depois deste tempo, pode considerar a extubação um sucesso. Ficaram em silêncio até o doutor Jander sair. — Bruno! Ela resistiu. Paramos de induzir o coma, mas ela não despertou. Sei que sabe o que significa, mas vou explicar, devido aos seus
fatores emocionais e também para sua família compreender. Acreditamos que ela entrou em coma difuso devido a vários pontos de lesões no cérebro. Mas induzimos o coma para diminuir a atividade cerebral por causa do traumatismo, mas ela está respondendo bem e paramos com os sedativos. Vamos ver como ela reage daqui pra frente... Mas ainda não reage a estímulos, então está em coma. Fizemos a extubação e ela teve dificuldades para respirar, o que é normal na situação dela. Mantivemos então a ventilação intermitente sincronizada e os resultados foram bons: PIP < 25-30 cm H²O, PEEP < 5-8 cm H²O, FiO² < 0,5, frequência respiratória fisiológica para a idade e pressão de suporte de 5-7 cm H²O. Vamos mantêla assim por 24 horas, depois vamos tentar fazer com que respire sozinha. Doutor Jander o abraçou. — Ela está resistindo amigo. Luta bravamente pela vida. Faça o mesmo! – falou em seu ouvido! Bruno nada disse. Foi vê-la, pois estava ansioso. Passou pelos procedimentos, lavou as mãos, braços, retirou aliança e entrou. Ao olhar sua amada ali sentiu um aperto no peito. – “Meu Deus, ela precisa sobreviver!” – aproximou-se e conversou com ela, como sempre. — Oi amor! Tudo bem? Você evoluiu hoje, hein? Está sem sedativos, quase respira sozinha... Está conseguindo meu amor, por favor, não desista – sussurrou em seu ouvido — Como já lhe disse, estou aqui todos os dias. Praticamente moro neste hospital. Só não fico aqui com você, porque não pode, mas venho várias vezes te olhar, ver seus exames... Estou acompanhado cada passo, cada detalhe... – ele segurou suas mãos — Oh minha Eduarda! O que vamos fazer quando sair daqui? Seja forte meu amor, estou aqui te esperando, ansioso pelo seu abraço, pelo seu carinho... Vou cuidar de você. Não se entregue, seja forte e lute pela vida. Se você lutar pela sua vida e sair daqui, vou lutar pela minha também, mas se você se entregar, eu me entrego também. Não sei viver sem você! Então resista. Sei que pode me ouvir, sei que está aqui. Então preste atenção. Estou aqui fora todos os momentos e só vou sair daqui junto com você. Não tenha medo. Eu te amo! Ele beijou-lhe as mãos. Não podia beijar-lhe os lábios devido ao risco de sepse. Ficou ainda um tempo lhe fazendo carinho, mas sabia que devia ir.
— Eu volto. Pode esperar que eu volto. Sua mãe e irmã o aguardavam ansioso. — Foi como o doutor Jander explicou, é cedo para falar qualquer diagnóstico, mas está dentro do quadro esperado. — Você não vem para casa hoje novamente? Vai morar aqui? — Não mamãe. Vou sair sim. Hoje estou de plantão. Amanhã eu vou em casa. — Precisa se cuidar, meu filho. Ela precisará de você inteiro! — E eu estarei! – falou com olhar longínquo. Sentiu uma dor aguda em seu peito ao se lembrar do HIV. Precisava conversar com alguém e naquele momento não sabia quem. Após despedir-se de sua família, Bruno voltou aos consultórios do hospital e trabalhava normalmente. Depois veio outro alívio. O teste de HIV de Eduarda era negativo. Bruno sentiu-se aliviado. Estava tudo dando certo para ela, os próximos dias foram cada vez melhores para o quadro de Eduarda. Retiraram a respiração artificial definitivamente e ela conseguiu respirar sozinha, já estava reagindo a estímulos. Expressão de dor, desagrado, mas ainda não conseguiu despertar. Ele temia sequelas que ainda eram imprevisíveis. Os fisioterapeutas iam todos os dias para ajudá-la com a respiração e mudança de decúbito. Estava tudo correndo bem. Sua rotina de visitá-la e conversar com ela não mudava, todos os dias ele conversava com seu amor e dizia o que havia acontecido. Bruno tentou não pensar na sua doença enquanto Eduarda estivesse naquela situação, mas não conseguia. Era terrível demais para esquecer. Como encará-la e dizer que era portador do HIV? Estava mais uma vez na sala de descanso, pensando em quando se contaminou até que se lembrou de Mariana. Uma colega de classe, muito atraente, bonita e acabaram ficando algumas vezes juntos. Lembrou-se de uma vez que estavam juntos e não usou preservativo. Será? Ela era tão saudável, tão bonita! Uma jovem que todos os rapazes olhavam... Filha de médicos! Foi uma única vez que não se preveniram. Como médico ele sabia que era o suficiente. Não sabia se era ela, mas precisava conferir. Se não fosse, voltaria ao marco zero.
Ficou apreensivo em procurá-la, mas devia se esforçar. Então buscou seus contatos e telefonou para várias pessoas até que conseguiu, depois de horas, o telefone dela. — Alô! É Mariana? — Sim, quem fala? — Mariana, tudo bem? Não sei se vai se lembrar, mas é o Bruno, estudamos juntos no início da faculdade de... — Bruno Alcântara? Se me lembro de você? Como poderia esquecer? — Mariana, sei que vai achar estranho, mas preciso conversar com você e queria que fosse pessoalmente? — Aconteceu alguma coisa? — Preciso conversar com você. — Como conseguiu este telefone? — Nossa! Liguei para tanta gente! Até que cheguei ao seu telefone. Onde está morando? — Estou morando no Serra, próximo ao Parque Mangabeiras. — Mangabeiras? — Sim. Anote aí o endereço. Anotou atentamente em um pedaço de papel e perguntou: — Posso passar aí hoje? Qual horário? — Estou em casa o tempo todo. Pode vir a qualquer hora. — Meu plantão termina daqui a uma hora, pode ser? — Nossa! É urgente mesmo hein? Pode sim. Estou te esperando. Conversaram mais um pouco e desligaram. Bruno estava ansioso. Após cumprir sua carga horária e atender os pacientes, pegou as chaves do carro e saiu. Dirigiu apressadamente com o pensamento em como abordar o assunto e como ela reagiria. Ao chegar diante do endereço não teve como não reparar a casa onde ela morava. Era extremamente luxuosa, situada em um dos bairros mais nobres de Belo Horizonte. Tocou o interfone, anunciou quem era e o portão se abriu. Estacionou o carro e quando desceu avistou uma linda loira descer as escadas para encontrá-lo. Apesar do tempo, estava linda! — Nossa! O tempo não passou para você, hein? Continua linda! — Você também. Continua um galã!
Abraçarem-se e logo ela o chamou: — Preparei um chá no jardim para você. Vamos por aqui, vamos ter mais privacidade para conversarmos. Eles andaram pelo belo e luxuoso jardim cuidadosamente elaborado. Perfeito! Havia em uma parte dele, uma espécie de ambiente aberto, não era um orquidário, mas havia muitas orquídeas e rosas. Possuía uma parte reservada para se tomar sol e outra para ler um livro, tomar um chá, em uma sombra refrescante. Toda feita de vidro blindex e aberta na frente. Muito luxo! — Que casa linda Mariana! Lugar lindo, estilizado, claro! E que clima agradável! Nem parece que estamos em Belo Horizonte. — Obrigada. É o clima das montanhas. Mudamos para cá ano passado, meus pais resolveram sair do apartamento e aqui estamos. Fizeram silêncio por segundos e Mariana continuou: — Confesso que estou intrigada com sua visita Bruno. Não esperava revê-lo, muito menos assim. — Sei que não está entendendo nada. Precisamos conversar. — Você e Eduarda estão juntos ainda? Ele a olhou sério. — Sim – sentiu um nó na garganta quando se lembrou de sua amada. — Até hoje acho que foi ela quem te roubou de mim. — Não diga isso! Não tínhamos nada quando conheci Eduarda. — Sempre ficávamos juntos e confesso que sonhava que uma hora qualquer se apaixonaria por mim. — Não vamos complicar as coisas. Você tinha outros relacionamentos. — Mas queria você Bruno, que se dizia um homem livre. Jovem demais para se prender a alguém. E bonito como sempre foi, chovia mulheres e você aproveitou o máximo que pode. Até... Conhecer Eduarda. — E você? Não se aproveitou de mim também? Ela sorriu. — É, foi bom... Ótimo enquanto durou. Pena que não foi muito. — Deixa de conversa, você também se interessou por outro logo e a coisa era séria!
Ela o olhou sorrindo. — Nada comparado com o que sentia por você. Deixa esta história para lá, não veio aqui para relembrarmos nossos momentos. Estou certa? Ele concordou com a cabeça. Não estava achando um jeito para iniciar a conversa. Aparentemente ela estava bem. — Você se casou? – perguntou ele. — Não! – o brilho nos olhos dela desapareceu. — Mas e o... Como era o nome dele? João... Não? – ele pensou um pouco — Luiz Fernando! Isso? Vocês ficaram noivos? — Sim. Quase nos casamos. — E o que deu errado? — Bruno, não vou fingir porque acho que sei por que você me procurou! Ele a olhou fixamente. — Mariana, Eduarda sofreu um grave acidente de carro e está em coma. — Oh! Eu lamento! – sua expressão foi de espanto e tristeza. — Precisou retirar o baço, teve hemorragia e hoje completa 45 dias de sua internação. — Está resistindo... — Ela precisou de uma transfusão e eu doei sangue para ela. Neste momento os olhares dos dois se cruzaram. Olharam-se mutuamente com expressão de dor, sofrimento. Ambos já sabiam a resposta! — E você não pode doar porque está com HIV! – ela completou. Bruno suspirou fundo e a olhou com pesar. — Por que não me procurou e me contou? — Como chegou até a mim? — Não usamos preservativo em uma ocasião e eu busquei em minha memória onde foi que eu havia me contaminado e aqui estou. — Bruno, pode então imaginar o quanto foi difícil para eu descobrir? Não tem muito tempo, e eu adoeci, tive pneumonia e aí você já sabe, fiquei sabendo que era positiva. Não pensei em procurar todos os homens que eu tive para poder contar, às vezes eles não entenderiam... Já era doloroso demais!
— Há quanto tempo tem o vírus? — Acredito que me contaminei com 14 anos, quando em uma brincadeira de amigos, experimentamos drogas injetáveis e usamos a mesma seringa. Um colega faleceu há dois anos. Estava neste grupo! Pode ser um dos casos que eu tive sem preservativo, não tem como eu saber. Não fui atrás de respostas como você agora! Prefiro não saber quando começou. Assim não ficarei comemorando o aniversário desses seres invisíveis dentro de mim. Invisíveis e letais. — Você está bem? — Estou. Tomo ARVS e vou levando a vida! — Você não teve medo de morrer? — Tenho todos os dias. Meu medo é de não poder ter uma morte digna sabe, ficar definhando até o fim. Procuro não pensar. Ocupar minha mente com outros assuntos. Eu sinto muito, Bruno por você. E sinto por Eduarda. — Eu também lamento por você. Desculpe procurá-la dessa forma. — Não se preocupe, está tudo bem! — Seu término de noivado tem a ver com HIV? – o olhar dele se escureceu nesta hora e sua expressão endureceu. — Sim. Como eu disse, fiquei doente e descobri. Contei para ele e... – seus olhos encheram-se de lágrimas. Respirou fundo para contar — Ele fez o teste e – um engasgo para continuar — Havia se contaminado. Ele não me perdoou, não quis compreender que eu também não sabia. Foi muito desgastante, dissemos coisas horríveis um ao outro. Bruno sentiu-se petrificado. Não sabia o que dizer. — Obrigado por me receber e pela sinceridade! Ela o abraçou. — Quando somos jovens não pensamos que coisas como essas podem nos acontecer. Eu era apaixonada por você, Bruno. — De certa forma também fui apaixonado por você. — Como eu disse, tinha esperanças que você uma hora decidisse ficar comigo. — Marina eu sempre fui honesto com você. Gostava de você, a gente se divertia e... Era muito bom quando ficávamos
juntos, porém, nunca te enganei que não queria compromissos e se quisesse poderia partir para outra... Com expressão de dor e nostalgia ela respondeu: — Você sempre foi livre como um pássaro até que Eduarda chegou e conseguiu o que ninguém havia tido ainda... Seu amor! Ele a olhou com carinho. — Peço desculpas se você manteve essas esperanças e se eu de certa forma as alimentei. Foi especial, ficamos um bom tempo juntos, quase um ano, e posso falar que de uma forma diferente eu te amei... — Comigo e com quase todas as outras garotas... Ele suspirou. — Já te disse, não tínhamos compromisso... Você teve outros também – era um relacionamento aberto. — Mas sempre voltava para você. Na verdade, me machucava te ver com outras e eu não queria ficar com mais ninguém além de você. No entanto, fazia para ver se despertava seu ciúme ou até, por algum milagre, me apaixonava por outro. — Por que nunca me contou? Achava que você fosse igual a mim. Queria ser livre e viver a vida. — Tive medo de te perder. Se você soubesse que estava me apaixonando se afastaria de mim, como fez com outras. — É tarde para dizer isso, mas você foi especial, sabe disso. Tanto que nunca fiquei com uma garota tantas vezes como fiquei com você. Na verdade, o tempo que fiquei com você, foi o que fiquei com menos mulheres. Teve até um período que fiquei apenas com você! — Foi quando eu achei que se apaixonaria por mim. Então conheceu Eduarda! Ele a olhou com carinho. — Não se preocupe, eu superei, me apaixonei novamente... Só lamento ter deixado uma marca tão triste em você. Gostaria de ter deixado outras marcas mais felizes. Como já lhe disse, não tinha como saber! Ambos ficaram em silêncio por segundos. Até que Bruno falou: — Não queria ter trazido estas memórias assim tão...
— Não se preocupe, depois que descobri o HIV, elas fazem parte do meu dia-a-dia. — Posso te fazer uma pergunta? — Sim? — Você conta para todo mundo que tem HIV ou prefere não contar? — Hum... Mudamo-nos para cá por causa disso. No início não escondi e sofri muito preconceito no edifício onde morávamos. Pessoas que deixavam de pegar o elevador comigo, outras pararam de conversar comigo e me evitavam. Ouvia cochichos a meu respeito... Então meus pais, vendo meu sofrimento, resolveram mudar e desde então evito contar para as pessoas. Se for um namorado eu conto logo de início, mas no dia-a-dia, deixo para lá. Ele ficou pensativo. — Se pudesse voltar no tempo! Peço-te perdão por ter transmitido o HIV a você, de verdade eu também não sabia que estava contaminada! — Acredito em você. E na verdade todos nós assumimos este risco quando não usamos preservativos. Quem pode imaginar que uma jovem linda, loira, rica, estudante de medicina, possa ter HIV? Foi uma única vez sem preservativos e hoje estamos aqui discutindo nossa contaminação pelo HIV. Não precisa pedir perdão. Na verdade, fui culpado tanto quanto... – sua expressão estava indefinida. Olhou-a com carinho. — Obrigada! — Eu preciso ir Mariana e agradeço por toda a sinceridade. — Desejo-lhe sorte e que Eduarda se recupere. Abraçaram-se em silêncio. Bruno beijou-lhe a testa carinhosamente e caminhou em direção ao carro. Ela ficou olhando ele partir mais uma vez de sua vida. Agora ambos sabiam o que o relacionamento deles havia deixado, além de lembranças, algo eterno. Terrivelmente eterno! Ela chorou. Bruno retornou ao hospital abalado com a notícia. Fez as contas e havia 10 anos que estava contaminado. Não sentia raiva de Mariana e sim de si mesmo. Eles não usaram preservativos e não podia culpá-la, porque ele também decidiu por aquele ato, era única e exclusivamente culpa dele! Quando conheceu Eduarda já
era portador do HIV. Nunca havia manifestado nenhum sintoma, nada! Mas estava lá, irremediavelmente presente em seu organismo. Passou as mãos pelos cabelos. Estava nervoso. Sentou-se e fechou os olhos. Lembrou-se do dia em que ficou com Mariana e se contaminou, foi uma única vez sem prevenção e o suficiente para se contaminar. Lamentou por tudo, debruçou-se na mesa e desejou morrer. — O restante você se lembra, depois de 50 dias você despertou do coma – Bruno contava e eram tão vívidas as lembranças, que pareciam ter sido vividas no dia anterior. — Lembro-me. — Você não sabia quem eu era! — Confesso que não sei como isso pôde acontecer! — Não se abale. Estamos juntos novamente. É o que importa! — Se tivesse ficado... — Trago uma cicatriz de alguém que tanto errou, mas eu tentei acertar. Foi uma escolha errada, mas foi o que consegui fazer. Achei que era o melhor! Estava desesperado! Não queria que você soubesse que eu estava com HIV e preferi ir embora. Tive medo da sua reação e da minha reação diante da sua. Já estava sofrendo tanto que decidi não passar por mais outro sofrimento e não te colocar nesta história, naquele momento me pareceu o correto. A lesão maior em seu cérebro foi justamente na área da memória. Temíamos por sequelas maiores como motora, intelectual, mas talvez fosse esta a sequela, nunca mais se lembrar de mim. E seria assim, pelo resto da vida. — Bruno... Por quê? — Me pergunto isso todos os dias. Por quê? Não sei. Sei que te acompanhei ainda de longe até sua alta e ainda por quinze dias depois. Sabia que fiquei te olhando ir embora da minha sala? Você é considerada um milagre para a medicina. As lesões no seu cérebro poderiam ter deixado tantas sequelas. E hoje você não tem nenhuma. Ela o encarou, espantada. Ele buscou em sua memória o dia de sua alta.
— Amiga! Você teve alta. — Que maravilha! — Meu irmão vai passar na sua casa mais tarde. Eduarda sentiu um calafrio lhe percorrer o corpo. — Estive com ele e me falou que está esperando você chegar em casa para ir lá ao seu apartamento para conversarem. Disse que não quis pressioná-la, que estava se recuperando. Mas que vai lá hoje. — Eu não consigo Alice! Tento, mas não me lembro dele. — Vai se lembrar quando vê-lo! – falou com toda certeza do mundo. Neste instante o médico entrou. — Enfim Eduarda, você vai para casa. — Que bom doutor! Mas estou me sentindo muito fraca e com dor de cabeça. — Eu sei e é normal. Você teve um trauma seríssimo. Sentirá fraqueza muscular, dificuldades para locomover... Na verdade você é um milagre, a gravidade do traumatismo que teve poderia deixar sequelas irreversíveis. Algumas coisas são inexplicáveis, algumas pessoas desenvolvem uma síndrome pós-concussão e podem continuar a sentir dores de cabeça e a apresentar problemas de memória durante muito tempo depois do trauma. Então essa fase agora será de extrema importância. Tudo deve ser anotado e passado para o médico. Qualquer alteração que perceber deve ser relatada. Ele deu-lhe as orientações de alta, os remédios que deveria tomar, vacinas, exames que deveriam ser feitos. Fisioterapia por causa da fratura do fêmur e fortalecimento muscular já que ficaria alguns dias sem andar. Informou-lhe todos os passos dali em diante, deixou o retorno marcado e a liberou para casa. Dr. Clóvis e Dr. Jander estavam lá pessoalmente para certificar-se de que estava tudo bem. Quando Eduarda tentou ficar em pé sentiu forte dor e fisgadas nas pernas. Sentou-se imediatamente. Sua perna doía, as costas. Nossa! Até parecia que tinha sido atropelada por um caminhão. — Não consigo caminhar sozinha. Preciso de ajuda. — Calma! Você vai conseguir. Você precisará fazer alongamentos,
exercícios de fortalecimento, treinos para voltar a andar. Você teve uma fratura do fêmur. Ficou muitos dias acamada. É normal. Dores lombares também são sintomas e podem aparecer. Também não esqueça de que fraturou costelas, passou por cirurgias... Daqui há uns dias conseguirá usar muletas, será por um período. Depois voltará a andar. É só questão de tempo – explicou doutor Jander. Ela ouviu tudo atentamente e agradeceu aos médicos pela atenção e por todo o cuidado que tiveram com ela. Eduarda saiu amparada pela amiga em uma cadeira de rodas. Sua mãe aguardava em casa. Não sabia, mas havia um par de olhos que não a perdia de vista, de forma discreta a olhava ir embora. Bruno respirou fundo ao vê-la. Que vontade de abraçá-la! Agradeceu os céus pela saída de sua amada daquele hospital. Ela que chegou quase morta, passou por duas cirurgias de alto risco, regressava para casa! Um bravo de vitória. Desejou que tudo desse certo para ela. Quando não era mais possível visualizá-la, ele foi para seu consultório, fechou e trancou a porta. De frente para ela apoiou sua cabeça na madeira e chorou. Sentiu um vazio e uma dor... O mundo desabou em sua cabeça. O que faria de sua vida agora? Sozinho e infectado. Desejou realmente morrer. A vida não seria mais a mesma, uma pessoa que havia experimentado a felicidade como ele, não conseguiria viver naquela situação tenebrosa e sofrível. Os dias se passaram e sentiu uma vontade imensa de procurar Eduarda, mas resistiu. Como encará-la e dizer que estava condenado e que teriam uma vida de limitações e risco? Não seria ainda mais sofrimento? Ela ainda não havia se lembrado dele, então não precisava de explicações. Já não suportava ficar tão perto de sua amada e não poder estar com ela e tomou uma decisão. Estava inseguro. Não tinha certeza se fazia a coisa certa, mas foi o que conseguiu pensar e achar de melhor naquele momento. Conversou com o diretor do hospital e pediu uma ajuda para se transferir para outro estado. Qualquer um. Ele tentou fazê-lo desistir desta ideia, mas foi firme em sua decisão. Ele pediu uns dias, mas logo havia dito que havia uma vaga no Sul do país. Ele aceitou de imediato. Decisão difícil e pior ainda foi despedir-se de sua mãe e sua irmã.
— Bruno o que está acontecendo? Por que ainda não foi visitar Eduarda? Como explicar os motivos? Olhou para sua mãe e pensou: “é porque estou condenado, mãe e não quero carregar Eduarda para o abismo comigo!”. Como dar esta notícia para sua mãe? Não teve coragem e mais uma vez inventou algo: — Orientações do médico dela. Diz que é para evitar outro trauma. — Mas não entendo... — Nem eu mamãe e é por isso que tomei uma decisão. Sua mãe o olhou assustado. Sua irmã, que estava inquieta, parou naquele instante e o encarou. — Vou trabalhar uns dias no sul do país – achou melhor não contar que era definitivo. — O que? — Calma. É apenas um período. — Bruno você está fugindo do quê? – perguntou Alice. “Ah, se eu tivesse coragem de contar!” — Nada. Apenas não consigo ficar aqui perto de Eduarda e não poder me aproximar, conversar, e... — Então a procure. — Já disse que não posso. Não imaginam o quanto desejo fazer isso, mas não posso! – isso era verdade! — Quando você vai meu filho? — Amanhã. — Já? Assim tão rápido? – os olhos de sua mãe estavam cobertos de lágrimas. — Oh mãe, não fique assim! – ele a abraçou e sentiu uma emoção enorme. Teve medo de nunca mais poder vê-la. — É só por um tempo, até Eduarda se lembrar – precisava acalmar sua mãe. Com o tempo ela acostumaria e ele diria que não voltaria mais. — E se ela nunca se lembrar, meu filho? Não vai voltar. — Se isso acontecer terei que reconquistá-la. O que acha? – brincou ele. — Bruno, quanto tempo vai ficar fora?
— Não sei minha mãe, mas venho te visitar, você vai também... E quando chegar a hora eu voltarei. Alice nada dizia. Olhava seu irmão dizer aquelas coisas, mas suspeitava que ele estivesse escondendo o real motivo de sua partida. Só não conseguia imaginar o que seria. Depois abraçou a irmã com bastante emoção. — Entregue esta carta para Eduarda, por favor? — Bruno... — Por favor! Ela segurou o envelope e respondeu: — Tudo bem. Eu entrego. Em seguida tomou coragem e foi conversar com o Doutor Jander. Contou para ele seus planos e que havia ido se despedir. — Bruno, acha que fugindo vai resolver a situação? — Não! Mas ficar também não vai resolver. — Bruno, você é médico, um brilhante médico. Não está raciocinando. Você não precisa perder a Eduarda, vocês podem ficar juntos. — Não quero sacrificar a vida de ninguém. Muito menos a dela. — Sabe que pode perdê-la para sempre? Bruno controlou-se para não desabar diante do amigo. — Já a perdi. E não tem ideia de como sofro. E ficar por perto não vai aliviar a pressão, a angústia e o desespero da minha vida! Quero pedir-lhe mais um favor, vou deixar meus contatos, caso aconteça algo comigo para avisar minha família. — Não diga isso... — Doutor, estamos falando de uma doença incurável e que não se tem controle dela em todos os casos. Não posso me julgar indiferente. Não sei o que vai acontecer comigo. — Bruno! — Posso contar com você? — Sabe que pode meu amigo. Mas precisa começar o tratamento. Ele o olhou com descaso. — Não vou me tratar.
— Bruno isso é suicídio, você pode morrer! – Falou preocupado. Ele sorriu ironicamente. — É exatamente o que desejo. Assim tudo acabará bem e esse sofrimento constante, 24 horas por dia vai passar. — Bruno, não estou acreditando! Sei que não vai ser fácil, mas não pode se entregar! — Por que não? Quando não se vive o problema é fácil encontrar soluções. Difícil é viver o problema! Eu vivi até hoje sem saber que estava contaminado, nunca me tratei e nunca adoeci. E agora... — Você está com a imunidade muito baixa, sua carga viral está altíssima, você sabe do que estou falando. — Eu sei sim. Não precisa se preocupar. — Não Bruno. Se cada paciente que viesse aqui eu desistisse dele, poderia rasgar meu diploma e nossa profissão poderia ser extinta. Cada um tem uma tendência natural de valorizar seu sofrimento como maior do que os outros, mas isso é relativo meu amigo, assim como a dor. E a escolha, a tomada de decisão só cabe a você! — Obrigado doutor, já tomei minha decisão – ele olhou para a porta — Até um dia ou nunca mais! – abraçou-o com pesar. Na verdade estava com vontade de chorar, mas segurou. Doutor Jander abraçou-o e disse: — Que os caminhos se revelem para você cheios de esperança e de vida. Espero que consiga não se destruir. Não posso impedi-lo, mas posso ajudá-lo. Se precisar de mim, sabe onde me encontrar. Não hesite em me procurar. Quero notícias suas, quero boas notícias! Ouviu? Bruno balançou a cabeça e se foi. Não se despediu de mais ninguém. Deixou uma carta para Eduarda. Se não tinha coragem de encarar a si mesmo como encarar as outras pessoas? E assim, foi-se embora, na esperança de encontrar algo que o fizesse esquecer seu sofrimento. Quanta ilusão! — Doutor Jander sabia de tudo e não me contou nada? — Meu amor, ele não podia. Pedi sigilo e ele respeitou. — Quanto sofrimento!
— Combinamos de não falar das escolhas que já foram feitas e não tem como voltar atrás. — Eu sei! — Ah, Eduarda, vivi uma depressão profunda! Não queria viver e com isso me isolei. Mudei para Porto Alegre e começou o meu calvário. Não comia e dormia mal, a saudade de você me atormentava todos os dias. Sua imagem era a primeira coisa que me vinha na mente quando acordava e a última ao dormir. Sonhava com você dormindo, acordado... Perdi a vontade de comer. Atolei-me de trabalho, fazia quase 20 horas por dia. Nesta época eu que estava com uma carga viral alta. Trabalhava compulsivamente. Isso me gerou uma anemia, mas não me intimidei. Comecei a perder peso. Não liguei, queria morrer. Perdi 30 quilos, mas continuei nesse ritmo até que comecei a perder as forças. Não tinha ânimo para nada. O desânimo já era parte da doença também. Quando dormia à noite, tinha crises de sudorese. Encharcava a camiseta, o lençol. Precisava trocar de 3 a 4 vezes por noite. Foi quando comecei a ter febre. E aí tive uma pneumonia. — Isso durou quanto tempo, Bruno? — Oito meses. Acreditava que estava perto de morrer. Fui internado contra a minha vontade e inesperadamente uma amiga me levou fotos suas no hospital. — Amiga? Já sei que Alice foi ao seu encontro. Não sou boba. Ele sorriu e então confessou. — Sim, ela soube de meu estado e foi encontrar-se comigo. Levou um choque ao me ver. — Como ela soube de você? — Uma médica do hospital conseguiu arrancar de mim o nome e telefone da minha irmã e ligou para ela. — Ela nunca me disse nada. — Eu sei. Aceitei a ajuda dela com a condição de que jamais revelasse nada a você e a ninguém. Ela não sabia nada
até chegar a minha casa, levou um choque, eu estava muito magro, abatido e queria morrer. Então Alice mostrou as fotos que tinha levado de nós dois. Ah, meu Deus! Foi difícil rever nossas fotos, nossos momentos de felicidade. Senti tanta saudade daquela felicidade, um aperto tão grande. Foi quando eu pensei que iria morrer sem revê-la e percebi que não queria que isso acontecesse. Desejei muito vê-la mais uma vez... Bruno levantou-se da cama e foi até a janela! Seu olhar ficou alguns segundos perdido no espaço. Relatar estes momentos, o faziam revivê-los e isso doía. Ele olhou para ela e continuou: — Você me salvou. Não suportei a ideia de morrer sem vê-la. O instinto de sobrevivência gritou nesta hora, minha alma clamou em viver e foi buscar forças na esperança de te ver mais uma vez. Procurei um médico do hospital, contei o que estava acontecendo e ele me internou na hora! Não queria! Relutei! Depois que soube que estava infectado, até àquele momento eu não me via mais como um indivíduo e sim como uma infecção, um transportador de vírus letal. Não tinha mais identidade. Estava perdido. Achava que não merecia mais sonhar, amar, não merecia mais nada, nem mesmo viver. — E o que aconteceu depois que foi internado? — Os exames apontaram que as contagens de linfócitos T CD4 estavam aproximadamente entre 200 mm³ de sangue. — Qual é o valor normal? — Uma pessoa normal tem em média de 800 a 1000 mm³ de sangue. Estava com a imunidade baixa. E as doenças oportunistas vieram. Tive que tratar a tuberculose, que por si só é uma doença que mata. Lembrei-me de você, de sua coragem, de sua força e em sua determinação em viver para ter coragem para lutar pela vida também. E foi assim. Fiquei um mês hospitalizado e continuei o tratamento da tuberculose por um ano e comecei a tomar o coquetel nesta época. — Você se adequou com a medicação? Ouvi falar que causa muito enjoo, diarreia. É verdade?
— Alguns sim. Hoje já existe uma série de medicamentos que evitam estes efeitos colaterais. Antigamente, quando começou o tratamento com a sonoterapia os efeitos eram fortíssimos. A pessoa tomava o AZT de manhã, à tarde, à noite... E assim não tinha como resistir. Efeitos colaterais fortes e a medicação não eram eficientes. Hoje a medicina já avançou. A pessoa não toma apenas um medicamento, é uma combinação para elevar o número de células de defesa. O coquetel possibilitou que pessoas vivam anos com HIV e com a taxa de linfócitos acima de 500 mm³ de sangue. Não deixa de estar infectado, mas é como uma doença crônica, conseguimos controlá-la. E respondendo a sua pergunta, sim, no início do tratamento eu sofri, tive muita diarreia, enjoo, mas depois passou. Cheguei a tomar 32 comprimidos duas vezes ao dia. Agora estou bem, mas da lipodistrofia não consegui escapar. Por isso pratico atividade física. Preciso malhar para queimar essa gordura. — Eu li sobre isso. É um acúmulo de gordura no abdômen! — Exatamente. Diminui a gordura do rosto, dos membros superiores, inferiores e nas nádegas, deixando as veias muito visíveis e o rosto encovado e acumula no abdômen. — Você teve? — Sim. Precisei malhar muito para poder manter a forma física. Precisava do meu ego reestruturado. Não precisava de mais um fator para me fazer não gostar de mim. Necessitava gostar da minha imagem. — Bruno, sabe que você é lindo! — Você é suspeita em falar! — Sabe que é verdade! E olhando para você assim, está muito bem, ninguém diz nada sobre sua saúde olhando para você! — Não foi fácil Eduarda. — Você nunca procurou nenhum grupo de apoio? — Não! Sei da importância deles e sei que ajudam milhares de pessoas, mas não procurei nenhum. Não queria ouvir outras histórias de tristeza, já bastava a minha!
— Mas os grupos de apoio não são o contrário? Eles existem para ajudar as pessoas a enxergarem que existe vida após o HIV... — Sei disso, mas não quis procurar. Como eu disse, eu quis morrer! No entanto, fui covarde quando me aproximei da morte, não tive coragem de ir ao fim. — Bruno, se você tem todo esse conhecimento técnico, você é médico, porque se desesperou tanto? — Foi toda uma situação psicológica. O momento que soube da contaminação... E é tudo diferente quando é com você. Eduarda, ainda hoje as pessoas tem preconceito, acham que podem pegar AIDS assim, no beijo, no toque de mão, sentar ao lado. As pessoas sabem que só podem pegar HIV se tiver contato com sangue, mas mesmo assim tem medo de ficar ao lado destas pessoas. No início a doença era associada com grupos homossexuais, usuários de drogas... E as pessoas são muito preconceituosas, julgam muito. Hoje não existe mais grupo de risco e sim comportamento de risco. Qualquer pessoa que tenha um comportamento de risco pode se infectar e foi muito difícil para mim aceitar que eu, um médico esclarecido, jovem, bonito, classe social elevada me contaminei da forma mais banal, mais evitável... E ainda hoje a associação é direta com a morte, ainda é direta com a sexualidade e as pessoas ficam julgando, condenando, com aquele olhar de acusação. Acham que o HIV é para os marginalizados e menos favorecidos financeiramente. Não é! Esse é o engano. — Estou lendo algumas coisas e ainda hoje morrem diariamente nove pessoas por dia por causa da AIDS. E o grupo que mais se contamina são mulheres entre 16 e 25 anos de idade! — Você olha um rapaz saudável, bonito, estudado, bem de vida, você vai pensar que ele pode ser portador do HIV? Mas todos devem pensar Eduarda. Uma única vez é o suficiente para mudar sua vida de forma trágica! O HIV pode contaminar rico, pobre, criança, idoso... Sem distinção de nada! — Você ainda toma o coquetel?
— Sim! Tomo alguns medicamentos antirretrovirais. Eduarda olhou para ele assustada! — Faço exames de dois em dois meses para olhar a carga viral em meu organismo. Algumas pessoas fazem de três em três, mas achamos melhor tomar mais cuidado, pois já tive esta carga viral muito alta, então não posso vacilar. Em apenas três meses posso chegar à fase terminal. Estou muito bem, quero parar com a medicação. — Seu médico concordou isso? — Na verdade existe muita especulação sobre esse assunto. Alguns médicos acham que não se deve parar de tomar os medicamentos, outros acham que sim. Então vai de cada caso. Não é recomendado para quem teve a contagem de linfócitos abaixo de 200 mm³. — E não é esse seu caso? — Estou me cuidando, Eduarda! Eu continuo tomando todos os medicamentos, o médico não me liberou. — E depois desse primeiro ano, o que fez? — Não está com fome? — Você está me enrolando! — Vamos comer e eu termino de contar. Ela aceitou, afinal ele realmente precisava se alimentar. Saíram do quarto, foram para a cozinha e prepararam um lanche. — E então? Bruno sabia que Eduarda não lhe daria folga. Era persistente. — Depois do tratamento comecei a perceber as mudanças em meu corpo e comecei a malhar e voltei a trabalhar. Conheci o Marcelo lá no hospital e nos tornamos amigos. Para ele eu contei toda a história e ele me deu muita força para continuar. — Quem é esse Marcelo? — É aquele que estava comigo no Rio de Janeiro! Eduarda se lembrou dele. — E namoradas você teve? Ele a olhou com olhar sedutor.
— Está com ciúmes? — Não, mas posso ficar dependendo do que vai falar. — Não, Eduarda. Não tive namoradas. Até tentei, mas não ia pra frente. Eduarda sentiu ciúmes naquele momento. — Isso significa que teve mulheres... — Não vamos ficar falando disso. Não vale a pena. — O que fazia no Rio? — Estava de férias, passeando pelo Rio. Buscando você, lembra que adorávamos ir para o Rio? Só não sabia que estava realmente te buscando e que iria encontrá-la. — Quando pretendia voltar? — Não sei. Estava esperando o melhor momento. — Já pensou se eu tivesse me casado com Augusto? Seria um sofrimento maior. — Combinamos que não íamos falar das coisas que poderiam ter acontecido... O se não existe! Eduarda ficou olhando para Bruno. Amava aquele homem de uma forma arrebatadora! Se pudesse mostrar para ele o quanto o amava! As palavras não eram capazes de expressar, medir a dimensão do seu sentimento por ele. Sentiu um medo muito grande de perdê-lo. Ele virou-se para ela e a puxou para si. Envolveu-a pela cintura e começou a beijar seu pescoço, seu rosto, seus lábios. — Chega de perguntas. Agora é minha vez. — Pode perguntar o que quiser. — Quero me comunicar com você, mas de outra forma... – e então a beijou.
XIX
O
s meses seguiram de forma tranquila. Bruno fazia os exames e estava tudo bem. Continuou tomando a medicação, viam-se diariamente e a paixão entre eles era algo vivo, esplendido e renovador. — Eduarda, quero me casar com você! Ela o olhou com olhos marejados de lágrimas. Estava tão feliz! Não podia acreditar que ele lhe falara sobre casamento. Estava esperando ansiosamente pelo pedido! Desejou tocar no assunto, mas teve mede dele se sentir pressionado. Achou que Bruno jamais pediria, pois teria medo de prendê-la a ele. Claro que ela aceitou. — Estou tão emocionada... Oh Bruno! Eu te amo! Tive tanto medo que não me dissesse isso nunca mais. — Sempre desejei me casar com você. Tive medo de não aceitar. — Por que não aceitaria Bruno...? — Por tudo. Não querer prender-se a um homem com... – ainda era doloroso dizer aquelas palavras — HIV. — Bruno! Pare com isso, você não vai regredir agora! É você quem eu sempre sonhei, sempre te esperei... E você ter HIV para mim é como se tivesse problemas cardíacos. — Que comparação! – sorriu ele. — As pessoas que sofrem de problemas cardíacos precisam de alguns cuidados, alguns medicamentos e terão esse problema para sempre. Pode ser que de uma hora para outra o coração pare. Assim é o HIV, Bruno! E como médico, você sabe que a AIDS não é a doença que mais mata no mundo, ela está em 5º lugar. — Você fez a lição de casa! – falou ele sorrindo — Eu sei disso!
— E quais são as que matam mais? — De acordo com o relatório da Organização Mundial de Saúde, o câncer está em primeiro lugar, depois isquemia cardíaca, AVC e infecções respiratórias. HIV é a 5ª causa, está entre os 10 principais motivos de óbito. — Eu li que os profissionais de saúde e ativistas alertam que muitos jovens entre 15 e 30 anos deixaram de se prevenir, porque tem a falsa impressão de que a AIDS não é mais tão grave como antes, mas a doença ainda não tem cura. Outro problema apontado é que muita gente não se interessa em fazer os testes de HIV e só descobrem quando já podem perceber os primeiros sintomas. Às vezes a pessoa não sabe que tem o vírus e acaba transmitindo sem querer, justamente porque não tem o sintoma ou este demora a aparecer. — Você sabia que existem cerca de 40 milhões de pessoas diagnosticadas com AIDS? E observe que é uma doença que deve ser temida, está entre as 10 que mais levam ao óbito! Mas não quero falar disso agora. Por favor, estou muito feliz porque você aceitou meu pedido! Ele a olhou com o olhar apaixonado e continuou: — Eu te amo! Guardei esta aliança com todo amor e cuidado – ele retirou a aliança de noivado deles do bolso e mostrou a ela. Eduarda virou-se e foi até seu quarto. Abriu uma gaveta, pegou uma caixinha e retirou a sua aliança. — Eu também guardei – mostrou-lhe emocionada. — Se desejar, podemos trocá-las... — Jamais. Esse anel é muito mais do que lembranças... É um símbolo do nosso amor. Representa os projetos que traçamos, é uma aliança que resistiu às tempestades e indica que nenhuma luta romperá nosso amor! Toda vez que eu olhar para ela, terei a certeza de que o amor verdadeiro nunca morre, tudo pode, tudo suporta, tudo espera! — Pensei que jamais sentiria essa felicidade de novo, Eduarda! Com os olhos cheios de lágrimas ela respondeu:
— As palavras estão se embaraçando em meus sentimentos. Eu quero amar você mais e mais... Oh Bruno! Sinto-me uma criança que acaba de ganhar o melhor presente de sua vida! – ele colocou a aliança no dedo dela e ela no dele antes de se beijarem. — E mais uma vez eu digo sim e me rendo a esse amor... O nosso amor! – disse Eduarda ainda emocionada. — Eu não sei o que fiz para merecer tanta felicidade! A intensidade da dor que senti não pode ser comparada com a felicidade que sinto ao seu lado! Obrigada meu amor... – e selaram ali, com mais um beijo, o próximo passo. ooo Os dias seguiram na mais absoluta tranquilidade. Planejaram o casamento e aguardaram o tão sonhado dia. Eduarda desejou uma cerimônia mais simples, com poucas pessoas: família e os amigos mais íntimos. A cerimônia era no domingo pela manhã. O dia havia amanhecido perfeito! A luz do sol invadia o sítio da família de Bruno, que era muito bonito, com bastante árvores e jardins. Aconteceria próximo à piscina, onde havia um jardim de rosas todo florido! E havia árvores com copas bem grandes e largas, que eram perfeitas para sombrear os convidados e os noivos. Os convidados já estavam chegando! Havia uma mesa de café da manhã com muitas iguarias. O cardápio seria um Brunch: mistura de café da manhã e almoço. A decoração era toda de rosas cor de rosa com mini margaridas brancas, com semprevivas. Estava tudo muito simples e ao mesmo tempo luxuoso. Eduarda estava nervosa, porém feliz. Lembrou-se do dia do acidente, de quando se arrumava, de tudo. Um filme passou pela sua cabeça. Novamente um olhar azul penetrou sua mente... E ela sabia que seria assim para sempre! Então calmamente trancou a gaveta secreta, pois era o momento certo de fechá-la, porém guardou a chave. Estava quase pronta. Havia feito uma
trança belíssima e seu arranjo era de rosas naturais. Seu rosto mal tinha maquiagem, pois sabia que iria se emocionar, então era melhor não ficar toda borrada! Seu buquê era redondo de jacinto, fio de murta e mini rosas. Seu vestido era longo e de uma delicadeza impecável! Corpete bordado com apliques, saia evasê, aplicações de rendas bordadas à mão em formatos de rosas e trevos. O véu ia até a cintura em cascatas com aplicação de renda... Parecia um tecido de contos de fadas. Dessa vez resolveu arrumar-se no próprio local da cerimônia. Contratou uma equipe para poder ficar impecável, dar os últimos retoques e tudo pronto. Avisaram quando ela podia entrar. Ao som de um piano, tocando a canção Only Hope, Eduarda entrou. Seus olhos não conseguiram desviar dos de Bruno, era como se estivessem hipnotizados um pelo outro, como se estivessem sozinhos naquele lugar. Havia uma magia entre eles inigualável. Ambos se emocionaram e não tentaram esconder as lágrimas. Haviam esperado tanto por aquele momento! O destino fizera com que esperassem mais do que gostariam, no entanto, encontravamse ali, um para o outro, um pelo outro. Ao ver Eduarda entrar e caminhar em sua direção, Bruno sentiu seus olhos encherem-se de lágrimas. O coração dele chamou por Eduarda desde o primeiro olhar e o dela respondeu ao seu chamado e caminhava linda, deslumbrante para ele. Era completamente dela! Se morresse ali, naquele momento, já teria valido a pena viver, mas desejou viver muito, muito mesmo, para poder desfrutar da companhia dela por mais tempo. Dirigiu-se até ela e a recebeu com um beijo na testa, fechando os olhos. “Obrigado Senhor!” – agradeceu em pensamentos e sussurrou em seus ouvidos — Te amo! E jamais haverá noiva mais linda! Ela sorriu. Estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Havia um juiz de paz para celebrar aquele evento! Ouviram as palavras dele com bastante esforço para não desviarem o olhar e os pensamentos. O momento do sim foi muito emocionante
porque as lágrimas, de felicidade, rolaram pelos olhos de ambos. Os convidados ali presentes conseguiram sentir a emoção dos dois e muitos se emocionaram com eles. O juiz fez orações, falou um pouco sobre amor e concedeu-lhes o momento dos votos. Cada um deveria fazer os seus de acordo com os desejos do seu coração. Com voz rouca de emoção Bruno começou: — Eduarda, meu verdadeiro e único amor. Não sei nada sobre o amanhã, mas existe algo que sempre será eterno: O meu amor por você! Eu te prometo que, enquanto existir vida em mim, farei qualquer coisa para te fazer feliz. Prometo te amar, te respeitar e que eu serei sempre seu! Dou-te tudo que há em mim, o meu destino... Não existe Bruno sem Eduarda. — Bruno, desde o primeiro dia que meus olhos encontraram com os seus, meu coração bateu por você. Quando nos olhamos eu entendi, ali, naquele momento, que este amor era pra valer. Foi tudo tão lindo! E hoje eu sei que foi Deus quem deu você pra mim. Este amor é mais que emoção, é um presente de Deus. Neste momento eu posso dizer com certeza que jamais vou te deixar e faço o que preciso for por este amor. Vou te amar, respeitar, e estar sempre do seu lado. Eu te prometo, neste momento, e enquanto eu viver, que vou te amar e não há nada que eu possa querer mais do que estar com você! Eu te amo. O Juiz ali presente, emocionado com os votos, disse finalmente: — Atrevo-me a dar um conselho: saibam que problemas nunca vão faltar, mas vejo que vocês vão sempre superar pela força do amor de vocês. Assim como a felicidade também não vai faltar, tenho certeza! Diante dos votos de vocês, dos convidados e testemunhas não preciso dizer mais nada! E assim, eu, diante de vossa manifestação de vontade, de vos receberdes em matrimônio, eu, representando, neste momento o magistrado civil, em nome da lei vos declaro casados. Eles estavam olhando um para o outro, de mãos dadas. — Pode beijar a noiva! Bruno a beijou com toda delicadeza e paixão possível
para aquele momento. Como desejou ouvir aquelas palavras! Ela era sua esposa agora e para sempre! Foi uma cerimônia linda, contudo, o mais belo naquele lugar era o amor entre os dois, completamente visível a todos e os convidados cumprimentaram os noivos emocionados. — Eu já te disse que estava linda, mas vou dizer de novo! Linda! – elogiou Alice. — Obrigada – respondeu abraçando-a. — Eu disse que vocês iriam ficar juntos, não disse? — É verdade! — Sempre soube da força do amor de vocês e confesso que desejo um dia encontrar um amor assim! – seus olhos ficaram repletos de lágrimas pela lembrança de Cláudio. — Sei que vai encontrar! — Oh amiga, desejo-lhe tanta felicidade! — Eu sei Alice, e eu te desejo o mesmo! — Posso roubar a noiva um pouco? Eduarda assustou-se com a voz atrás dela. Seu coração acelerou e virou-se de imediato. A voz familiar e aveludada de Augusto provocou uma onda de tristeza. Lembranças invadiram sua mente, o calor de seu corpo, sua forma de ver a vida, seu jeito sério e extrovertido, sentiu uma onda de nostalgia e por um instante sentiu vontade de correr para os braços de alguém que a havia feito ver a luz quando tudo era sombrio e frio. Havia esquecido como aquele rosto a perturbava. Parecia inadequado sentir aqueles sentimentos, mas como controlar a emoções que espontaneamente e involuntariamente sentia? Era ridículo corar, mas foi exatamente essa reação diante do olhar iluminado de Augusto para ela. Sentiu-se presa naquele momento. — Augusto! – pronunciou enfim. Alice se assustou com ele ali, mas disfarçou. — Oi doutor Augusto, tudo bem? — Como vai Alice!
— Vou bem. Com licença vou ali e já volto – Alice saiu depressa sem dar tempo de resposta. — Você está magnífica! Sempre soube que seria uma noiva assim, linda! — Obrigada Augusto! E obrigada por ter vindo! — Não vou ficar muito tempo. Vim apenas para desejarlhe toda a felicidade do mundo! Pensei que não fazia sentido eu vir, mas era preciso! O rosto de Augusto estava enrijecido em uma máscara de amargura e dor que não era estranha para ela. — Augusto, eu... — Eduarda, eu te desejo toda a felicidade! De verdade! — Como desejo o mesmo para você! Você é ainda muito especial para mim. — Nunca tive dúvidas disso. Eu assisti a cerimônia e me emocionei. E hoje eu pude ver que não havia como lutar contra esse amor. Não vou te enganar! Meu coração ainda acelera por você e sinto sua falta, mas estou bem. Estou feliz Eduarda! Os olhos de Eduarda se encheram de lágrimas! — É tudo que mais desejo, que esteja e seja imensamente feliz. Ele a abraçou, apertou-a entre seus braços e depois de um longo suspiro, completou: — Se precisar de mim, sabe que pode me procurar, não sabe? Já te disse que não vou mudar meu número. Ela balançou a cabeça. — Obrigada mesmo por vir. Senti sua presença todos esses dias. Precisava te ver e saber que está bem – não teria como explicar para ele seus sentimentos. Então era tudo que podia dizer — Fique para a festa! Você é bem-vindo. — Obrigado, mas preciso ir. Tem uma pessoa me esperando. — Você está com alguém? – sentiu-se desconfortável com isso. — Sim. Assim como você agora é uma mulher casada! – sentiu o amargo de suas palavras. Não havia como esquecer o
quanto tinham sido íntimos — Seja feliz minha amada Eduarda. Seja feliz! É tudo que posso te desejar! — Você também. — Queria ver você de noiva, mas para mim. Como não foi possível, só vim mesmo para poder encerrar este ciclo e te desejar felicidades, porém não posso mesmo ficar. Vou embora agora e... — Como vai doutor Augusto? – disse Bruno, aproximando-se deles. — Olá! — Não pude deixar de ouvir. Você é bem-vindo nesta festa, Augusto. Não precisa ir agora! Augusto respirou fundo, sabia que era melhor ir embora! — Obrigado, mas preciso mesmo ir! Parabéns! Foi uma cerimônia linda e desejo muitas felicidades... — Obrigado! Augusto virou-se e foi embora e Bruno abraçou sua esposa. — Ele ainda mexe com você? Eduarda suspirou e respondeu: — Você mexe comigo, com meus sentidos. Augusto é especial, mas é apenas uma boa lembrança! Não precisa ficar enciumado! — Não é fácil para ninguém ver sua esposa conversando com o ex. — Augusto é um amigo, Bruno. Vamos mudar de assunto? — Claro meu amor, confesso que não desejo ficar falando do Augusto hoje! – ele a abraçou e perguntou — Vamos embora? — Está louco? Ainda vou cortar o bolo e jogar o buquê. — Então vamos? Estou cansado! Eduarda olhou com preocupação para ele. Disfarçou, mas estava preocupada. Tratou logo de partir o bolo e jogou o buquê. Quem pegou foi Cláudia, uma amiga do seu trabalho. Despediram-se dos convidados. — Vou ficar te esperando no Rio, meu amigo! Sinto sua falta lá, mas estou muito feliz por você!
— Obrigado Marcelo e pode ter certeza que vai me ver lá muito antes do que espera. D ou t or J an der e Doutor Pedro fo ra m o s ú ltimos a s e despedi rem. — Meu amigo! Fiquei emocionado de vê-los enfim juntos. Posso dizer que acompanhei o pior momento desse amor e agora sou testemunha de um dos momentos mais felizes. — Doutor Jander... — Bruno estou lhe esperando em meu consultório daqui a 20 dias. Não para uma consulta, mas uma proposta de trabalho. — Estarei lá. Quando eles chegaram ao carro, Bruno avistou sua mãe e irmã esperando. — Mamãe, Alice? O que fazem aqui? — Viemos desejar felicidades. Estou muito emocionada meu filho, e não quero chamar atenção para mim. — Oh mamãe! Obrigado! Os olhos de Eduarda encheram-se de lágrimas. Lembrouse de seus pais e irmãos. Como sentia falta de sua família! Havia mandado o convite, mas não foram. Bruno insistira para levarem pessoalmente, mas ela não queria. Este era outro problema que precisava resolver, em outra hora. Estava vivendo o momento mais feliz de sua vida e queria estar inteira, e sabia que esse não era um assunto fácil. Seus pensamentos foram interrompidos por Alice e Sônia, que foram abraçá-la. — Confesso que a palavra sogra não me agrada, mas estou muito feliz de você ser minha nora, Eduarda. Sempre torci pelo amor de vocês! E sei que serão felizes! — Obrigada! Assim Bruno e Eduarda partiram em lua de mel. Iriam para um hotel e na segunda-feira fariam uma viagem em um cruzeiro marítimo pelo litoral brasileiro. Chegaram ao hotel e a suíte Presidencial Real já estava reservada. Fizeram o check-in e foram de imediato para o quarto.
— Deixe-me olhar para você! Agora posso te olhar sem reservas, sem discrição. Você é linda demais, Eduarda! Como posso merecer tanto? — Estou tão feliz! Bruno se aproximou dela. — É estranho dizer isso, Eduarda... Estou completamente feliz, mas tenho um medo em mim que teima em ficar me atormentando! — Não vamos falar disso. Hoje não! — Eduarda, não vamos fugir do real. Nunca poderemos esquecer. Jamais me perdoarei se te contaminar. Você é linda, jovem, não sei como pôde se casar com um homem com... — HIV? Não hesite em dizer, não é vergonha! É uma doença, não é um crime! Tire essa vergonha de você. Nunca vi ninguém se envergonhar de adoecer e, na verdade, você não está doente, possui o vírus, que está controlado. Mas afinal, quem é o médico aqui? Eu me casei com você porque quando te olho, não vejo um homem com HIV e sim o homem que eu sempre amei, o homem que faz meu corpo levitar com um simples olhar. O homem que eu sempre desejei e com quem sempre sonhei, um homem tão lindo que chega a ser cruel tanta beleza em apenas um ser e sou eu que me pergunto como um homem tão lindo pode hoje ser o meu marido. — Desculpe-me de falar assim hoje, mas é que a simples possibilidade de lhe fazer qualquer mal me enlouquece. — Então não pense! – Eduarda beijou seu marido. Foi um momento magnífico! Não podia pensar em toda a sua vida que alguém podia viver a mais plena felicidade como ela estava vivendo. Bruno a segurou no colo e a deitou na cama, toda coberta com pétalas de rosas vermelhas. O quarto estava todo decorado para a ocasião, na mesa havia um champanhe e taças de cristais, bombons finos estavam à disposição na mesa e nos criados-mudos ao lado da cama. Bruno ligou o som e músicas românticas começaram a tocar
baixo no ambiente. Ele tirou o blazer do terno e a gravata, abriu o champanhe e serviu as duas taças: — Um brinde a nós! — Um brinde ao nosso amor. Com o olhar um no outro brindaram e beberam. — Sabe que terei todo o cuidado com você, não sabe? — Sabe que não tenho medo! Ent ão se en tregaram ao momen t o d e p u ra ma g ia e e n cant am ent o. No dia seguinte viajaram e todos os dias foram cobertos da mais pura magia e felicidade. Foi tudo romântico, perfeito! Um momento único, onde tudo entre eles acontecia sem esforço, com uma compreensão instantânea onde tudo fluía na mais absoluta harmonia. O sentimento entre eles renovavase como o ar ou a brisa do mar, fazendo soar sinos de sons deliciosos, acalentando a paz em seus corações. A reverência que um tinha pelo outro se intensificava, alicerçando o afeto dos próximos anos, que faria a diferença em suas vidas. Aquele era um momento tão sublime, que passou depressa demais e quando perceberam, já era hora de retornar. — Temos mesmo que voltar? Bruno sorriu com o comentário da amada. Estavam entrando no avião para retornarem. — A vida podia ser uma eterna lua de mel, não acha? — Meu amor, as férias, a lua de mel, são tão especiais porque acabam! Mas a nossa vida será sempre assim, linda e feliz! – disse Bruno, pela primeira vez, depois que tomou conhecimento que era soropositivo, entusiasmado com vida futura. — Sei que sim!
XX
R
etornaram da viagem e foram para a casa que haviam construído para eles antes do acidente. Ao estacionar o carro na garagem uma emoção forte tomou conta de Eduarda. Era outro sonho se realizando. Havia entrado e saído daquela casa várias vezes, mas era a primeira vez que entrava nela com o sentimento de pertencimento, como sua. Planejaram cada cômodo, cada ambiente, cada detalhe... Toda pintada externamente em tons pastel, telhado branco, toda clean. Uma casa no meio do terreno, com jardim na frente e um quintal imenso nos fundos. Eduarda havia plantado bastante árvores frutíferas como carambola, goiaba, manga, laranjas, limões, jabuticaba e uma horta. A mãe de Bruno cuidou das plantas com muito carinho e as árvores já estavam dando seus frutos! Havia uma área para churrascos com piscina aquecida. A casa tinha quatro quartos, a suíte principal com cama tamanho king, banheiro com uma imensa banheira e closet. Os dois quartos tinham sido planejados para os filhos que queriam ter. Nos planos teriam dois filhos, com sorte um casal. O 4º quarto era equipado como sala, sala de TV e com cama oculta para visitas extras. Havia feito uma sala de estar, um escritório para ambos trabalharem e estudarem, uma sala de jantar e uma imensa cozinha. A casa possuía grandes janelas de correr da Great Room até ao terraço e piscina, era toda decorada por eles mesmos. — O que está pensando meu amor? – perguntou Bruno interrompendo o silêncio de Eduarda. — Estou relembrando quando planejamos esta casa. Há quanto tempo Bruno! Mas finalmente estamos aqui. — Também me lembrei de muita coisa! Estamos juntos meu amor, neste sonho! É uma emoção que não consigo descrever.
Eduarda se lembrou da casa que planejou com Augusto. Não sabia por que se recordou disto naquele momento, mas as lembranças vieram e era muita coincidência as casas serem muito semelhantes! — O que foi Eduarda? Algo está no lugar errado? Eduarda não sabia o que dizer, sua expressão havia mudado e Bruno a conhecia muito bem. — Nada! Apenas cansaço da viagem. Bruno estranhou, mas achou melhor não comentar. Se ela não queria dizer devia respeitar! Eduarda sentiu-se culpada por mentir, mas como falar de Augusto para Bruno naquele momento? Ele poderia interpretála mal e ficar com ciúmes. Existiam coisas que eram melhor não serem ditas. Essa era uma delas! — Vamos tomar um banho? — Banho? Agora? – disse ela. — Sim. Vamos estrear nosso banheiro, nosso quarto... Eduarda percebeu o sorriso malicioso de seu marido e começou a rir. A vida conjugal estava começando ali, no lar, na vida dos dois! — Percebo segundas intenções neste seu olhar! — Está errada querida! — Estou? — Não tenho segundas intenções com você! Tenho segundas, terceiras... Todas as intenções do mundo – aproximou-se dela e colou seus corpos. Enfiou suas mãos nos cabelos sedosos de sua amada, encostou a testa na dela e fechou os olhos. Com a outra mão a abraçou, puxando-a para si. — Eu te amo! E não sei o que fiz para merecer viver este momento! — Eu é quem sou muito abençoada por ter o seu amor. Te amo! Ambos estavam com a respiração audível, embriagados por aquele momento. O mundo poderia acabar que eles nem perceberiam.
ooo Acordaram cedo uma semana depois que retornaram de viagem. Os dias passaram depressa demais. Terminaram de fazer a mudança deles, abriram os presentes de casamentos, colocaram as coisas no lugar e deixaram a casa com a cara dos dois. Ambos tinham que ir trabalhar em destinos diferentes, assim cada um foi no próprio carro. Bruno chegou ao hospital e ficou alguns segundos olhando para o imenso prédio a sua frente. Havia feito medicina para salvar vidas e que ironia do destino: não podia salvar a si mesmo! Suspirou fundo e entrou. Foi direto na sala do diretor do hospital, doutor Jander. — Bom dia! — Bruno! Que bom revê-lo! Eles se abraçaram. — O tempo está sendo generoso com você, meu amigo, ainda está com pinta de galã de novela. Ele sorriu com o comentário e sentou-se. — Como está Eduarda? — Está ótima! — E você Bruno, tem se cuidado? — Tenho! – uma expressão sombria tomou conta de seu rosto. — Ora, não fique neste estado. Precisamos conversar sobre sua saúde. — Estou bem. Tenho feito os exames de dois em dois meses. Eduarda não me deixa esquecer. Tenho estado atento e mais do que eu, ela não fala, mas sei que observa tudo que faço, o que como, os meus exames. Ela é muito preocupada comigo. — Você é um médico e não pode descuidar-se de sua saúde! Correto? Ele sorriu timidamente como resposta. — Bruno, tenho uma proposta, gostaria que se
reintegrasse à equipe de médicos do hospital. Gostaria que pensasse no assunto com carinho... — Eu aceito! Doutor Jander arqueou as sobrancelhas em sinal de espanto, mas em seguida sorriu. Achou que ele relutaria em aceitar a proposta, no entanto, aceitou de imediato. — Estou reconstruindo minha vida. Por sorte consegui estar com a mulher que amo e agora vou recuperar a minha grande paixão, que é a medicina. Quero recuperar tudo que amo, Eduarda já é minha esposa, agora falta o trabalho. — Nossa! É um Bruno diferente daquele que esteve aqui há alguns anos. Era um Bruno deprimido, desolado, sem esperanças para o futuro, rancoroso até! Eduarda conseguiu fazer um bom trabalho com você. — É verdade. — É preciso saber aproveitar a vida. — E tem mais uma coisa. Gostaria de trabalhar com pessoas soropositivas. Preciso de uma meta, estive pensando em dar palestras e ajudar as pessoas em como renascer após ser infectado. — Ótimo! – abraçou o amigo — Pode começar a trabalhar então, doutor! Ah, acho que não preciso lembrá-lo... — De que preciso manter meu sistema imunológico o mais forte possível e usar os equipamentos de proteção para não infectar ninguém... — Não! Acho que não preciso ensinar o caminho para a sua sala! Mas esses cuidados são importantes, tenho certeza que você não vai fazer nada para colocar seus pacientes e ninguém em risco. — Obrigado! Bruno ficou um tempo conversando com seu amigo e depois foi tratar de sua admissão, na verdade, de sua transferência de volta, já que havia tirado licença sem vencimento e desejava retornar. Depois de tudo acertado
foi para casa e assim que chegou começou a estudar. Queria se atualizar sobre alguns assuntos e preparar sua primeira palestra. Nem viu o tempo passar e nem percebeu quando Eduarda chegou. Ela bateu na porta e a abriu: — Oi amor! Atrapalho? — Oi! Claro que não! Tenho uma surpresa para você! – falou, levantando-se e indo abraçá-la. — Pela sua expressão é coisa boa! — Voltei a trabalhar no hospital. Eduarda o abraçou de alegria! — Estou tão feliz meu amor! Parabéns! — Obrigado! E como foi seu dia? — A h, ten h o uma p ilh a de p ro ce s s os me e s p e r ando. C asos n ovos ! — Senti saudades! — Eu também! Beijaram-se com paixão e saudade.
XXI
B
runo estava nervoso. Havia chegado cedo ao local onde realizaria sua primeira palestra, trabalhou arduamente para aquele momento, sabia que dominava o assunto, mas não conseguiu deixar de sentir uma ansiedade e certo nervosismo. Conversou com algumas pessoas da plateia antes da apresentação, queria ter uma aproximação com seus ouvintes. Também já havia lido que uma conversa rápida com alguns ouvintes ajudava a relaxar o orador, pois amenizava a imagem distante e assustadora do público que o esperava. Tinha todo o seu discurso na ponta da língua, o que reduzia a ansiedade, mas mesmo assim sentia as suas mãos suadas, a boca seca, e taquicardia ao ver que se aproximava o tempo de falar. Havia trabalhado nos últimos meses para este momento, contudo, era sua primeira palestra: “Por que e para quem falar de HIV?”. Bruno optou por um título bem simples, para que as pessoas se interessassem em ouvir. Também teve o cuidado de escolher as palavras, de forma mais popular, para que fosse compreendido, pois sabia que seu público seria diverso e sua intenção era realmente falar para o povo, os pacientes e a sociedade em geral. Estava no auditório da Universidade Federal e já iria começar. O auditório estava com sua capacidade total de 270 poltronas lotadas e mais algumas pessoas em pé! Sabia que havia muitos estudantes. Verificou algumas inscrições e possuía muitos portadores de HIV. Estavam sentados na primeira fileira, junto com Eduarda, sua mãe, irmã e o doutor Jander! Eles fizeram questão de estarem presentes. Bruno estava sentado na primeira fileira aguardando a formalidade do cerimonial, ouviu atentamente a oradora fazendo as apresentações iniciais, sua formação,
carreira, onde atuou, suas publicações e alguns méritos até ser chamado. Levantou-se, olhou para Eduarda e sentiu confiança em seu olhar. Precisava porque estava nervoso. Nos últimos momentos antes de falar em público, respirou lenta e profundamente, sabia que também amenizava os efeitos da ansiedade, pois aumentava a oxigenação no sangue e inibia a liberação de adrenalina. Respirou fundo de novo e começou: — Boa noite a todos. Bom, como ouviram sou médico, especializado em neurologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Devem estar se perguntando “o que um neurologista veio falar sobre HIV?” Normalmente infectologistas, geneticistas e outras áreas estão mais ligadas ao tema. Por que falar de HIV? – fez menção ao título de sua palestra — Porque sou médico e sei da importância da prevenção. Porque o número de pessoas que estão se contaminando com o HIV, continua aumentando e ao contrário do que muitos imaginam qualquer um pode ser infectado, independente de raça, religião ou orientação sexual. Só estes motivos aqui são o suficiente para prová-los da necessidade de falar sobre o HIV. No entanto, existe outro motivo, neste caso, um interesse particular de falar sobre o assunto. Esta palestra tem tudo a ver comigo porque sou soropositivo. Bruno olhou para Eduarda neste momento e a viu sorrir para ele. Continuou: — Tive muita dificuldade em dizer isso naturalmente, como quem diz estou gripado, estou com dor de cabeça, sou diabético, etc. Não foi fácil chegar aqui, ao dia de hoje e por isso decidi que eu tinha que falar, contar para as pessoas o que passei e tentar ajudá-las a não se contraminarem. Uma parte desta palestra será sobre meu relato pessoal e a outra científica sobre o HIV. Sei que estão pensando: Como um médico se contaminou? Vocês já vão saber. E para quem falar de HIV? Para o máximo de pessoas que minha voz puder alcançar. É preciso informar as pessoas e ajudá-las a prevenir. O vírus da AIDS pode ser transmitido em toda e qualquer relação sexual, seja ela anal, oral
ou vaginal, com penetração e sem camisinha. O preservativo é necessário do começo ao fim do ato sexual. O HIV também pode ser transmitido por meio de transfusão de sangue contaminado. O compartilhamento de seringas, agulhas e outros materiais que perfuram ou cortam a pele é um comportamento de risco para infecção pelo HIV. Se o sangue de uma pessoa contaminada fica no material, o vírus passa para quem usá-lo. É recomendado utilizar sempre materiais descartáveis. A mulher infectada pelo HIV também pode passar o vírus para o feto na gravidez, no parto ou durante a amamentação, se não fizer a prevenção da transmissão vertical, da mãe para o filho. Existem medicamentos que podem reduzir a 1% o risco de transmissão do vírus. O exame de sangue e o controle pré-natal desde o começo da gravidez são importantes para proteger o bebê. Tudo que eu disse aqui é que o vírus do HIV é transmitido principalmente por três vias principais de contaminação: através da relação sexual sem preservativos, através de uso de seringas coletivas para uso de drogas e contaminação vertical, de mãe para filhos durante a gestação. Estas outras formas de contaminação são de casos isolados e não condizem com a maioria. Respirou fundo novamente. — Eu não usei seringas coletivas, como podem perceber não sou mulher, então não posso engravidar – houve risos no auditório — Então fui infectado através da relação sexual sem preservativo. Não se espantem! Nossa, como pode? Assim como qualquer jovem e eu era muito jovem, estudante ainda e a moça era também uma jovem aparentemente saudável, de classe social alta e muito bonita. Então fui contaminado da forma mais simples, a que mais se ouve falar e que ninguém acredita que vai acontecer com ele. Acreditem, acontece! Bruno olhou para o público e viu que as pessoas estavam prestando atenção. Havia pouquíssima conversa no auditório. — Vou falar brevemente sobre o histórico desta epidemia. Quando a AIDS surgiu na década de 80 foi anunciada como a
doença dos marginalizados pela sociedade: os viciados em drogas, os profissionais do sexo e os homossexuais. Ainda na década de 1980, período em que a doença começou a ter maior notoriedade, as explicações para a AIDS circulavam em torno das mais variadas hipóteses. Inicialmente, alguns especialistas identificaram como uma espécie de câncer que acometia somente os homossexuais. Além disso, recomendava-se que o contato com os doentes fosse sistematicamente evitado. Por conta da alta mortalidade, várias noções equivocadas começaram a se direcionar contra os portadores do vírus HIV. Entretanto, nas últimas décadas, novas pesquisas indicaram as formas de transmissão da doença e que qualquer pessoa, independente da sua orientação sexual, poderia ser acometida pela síndrome. Paralelamente, o desenvolvimento de potentes medicamentos ofereceu uma qualidade de vida maior para os infectados, mas até chegarmos a este ponto os homossexuais foram rotulados como grupo de risco. Quando a epidemia se espalhou, as pessoas destes grupos começaram a se prevenir e o vírus começou a se espalhar de forma geral, deixando de se concentrar nestes grupos e o número de infectados pelo HIV entre os heterossexuais aumentou consideravelmente, principalmente entre as mulheres. Conseguem perceber esta evolução? — Graças a Deus este termo caiu por terra, não existe mais “grupo de risco”, o que existe hoje é comportamento de risco. Se você é homossexual, heterossexual, ou seja, qualquer que for sua orientação sexual, se tiver relação sem preservativo, usar seringas coletivas... Qualquer um pode contrair o HIV. Assim, seja homem ou mulher, jovem ou qualquer idade, em qualquer classe social, se tiver um comportamento de risco pode contrair o vírus. Qual-quer pessoa pode contrair HIV. Estou repetitivo e é intencional! Bru no começ ou a s en tir-s e m a is s e g u ro e já e s t ava m enos ten s o. — Perceberam o que uma simples palavra é capaz de
fazer? Grupo de risco versus comportamento de risco. Qualquer indivíduo pode ter um comportamento de risco. Falar em grupo de risco é rotular, é excluir ainda mais estas pessoas que já foram marginalizadas e deixar de incluir as outras pessoas que também precisam se proteger. É preconceituoso dizer grupo de risco e se achar acima do bem e do mal, que nada pode te atingir, afinal você não é do “grupo de risco”... Evoluímos bastante em relação ao HIV, mas ainda é um vírus que causa um impacto muito grande na vida das pessoas. Ainda que tantas informações sejam disponibilizadas, vemos que a questão do preconceito e de outros mitos estão ligadas à doença. Quando uma pessoa assume publicamente ter HIV, as pessoas ainda trazem conceitos preconceituosos e te olham indagando sua conduta e com pena! É uma doença que pode atingir qualquer pessoa, assim como uma gripe, uma meningite, etc... Basta você estar perto de um vírus e assumir um comportamento inadequado e de risco e pronto: contaminou-se. A palavra-chave aqui é uma: Pre-ven-ção! Sim, prevenir! Neste mundo, quantas doenças podemos evitar com hábitos saudáveis? A simples prática de lavar as mãos pode se evitar muitas doenças e com a AIDS não é diferente. Evitá-la é fácil. Sabemos como evitá-la! Difícil é conviver com ela. Ele respirou, fez uma pausa e continuou. — Bom, assumi um comportamento de risco, uma única vez e foi fatal. Mas não descobri a doença de imediato. Foi uma história trágica! Cada um tem a sua e a minha não é melhor e nem pior, é simplesmente a minha história. E decidi contá-la para tentar salvar pessoas. Estou assumindo sentir o preconceito na pele, mas como médico esse é meu dever! Como portador de HIV é uma missão que decidi assumir. É possível ter uma vida normal com HIV? Sim. Quando você a encara como uma doença crônica. Quando falo de vida normal me refiro a trabalhar, estudar, etc., mas eu tenho uma doença. Está controlada, mas está aqui. AINDA é impossível retirar o vírus do organismo. Não vamos ficar aqui fantasiando, sonhando, o fato é: por mais avanços tecnológicos e
estudos, ainda não existe cura para o HIV. Assim, um portador de HIV sempre terá que ter cuidados específicos com a sua saúde, com um agravante: você pode contaminar outras pessoas a sua volta. E isto é muito sério. Ninguém deseja adoecer, ninguém deseja ter que tomar remédios controlados, com hora marcada, efeitos colaterais, sua vida dependente destes medicamentos! Não é o sonho das pessoas. Não era o meu sonho! Quando você descobre que tem uma doença incurável você perde o chão, perde a esperança! Sou médico, mas antes de ser médico, sou uma pessoa como outra qualquer, cheia de sentimentos, sonhos e medos... Foi uma notícia que quase acabou comigo! – Bruno sentia as próprias palavras. — Posso falar de experiência, a AIDS ainda é encarada no primeiro momento como uma sentença de morte! Talvez ela traga esse peso devido a sua história, pois no início era assim mesmo, não havia medicamentos e a evolução da doença era muito trágica, muito sofrida. Uma pessoa sem imunidade, apareciam vária doenças, a pessoa ia se acabando até morrer. A imagem de um aidético passa por pessoas extremamente magras, sem cor, sem viço, feridas na pele... Uma imagem humana triste de se ver. Logo surgiu o primeiro medicamento: AZT. Muito caro, até o ano de 1991 muitas vidas foram perdidas até que o medicamento fosse distribuído gratuitamente. Ou se tinha muito dinheiro para comprar de importadores ou então... Eu presenciei muitos desses pacientes indo embora de forma relativamente rápida e traumática. Era estudante ainda! Bom, depois vieram os coquetéis, os avanços no tratamento e houve uma diminuição significativa de indivíduos que morrem por causa do HIV, mas sua transmissão está longe de ser interrompida. Enquanto Bruno explicava sobre a atuação do vírus no corpo, os slides em um telão atrás de si projetavam as imagens e mensagens importantes. — E assim posso assegurar-lhes que a notícia de que eu estava contaminado foi impactante em minha vida. Todos esses
conhecimentos pouco me ajudaram. Ao ouvir que estava com HIV, para mim, foi o mesmo que dizer que estava morto. Foi em um momento muito difícil, minha noiva havia sofrido um grave acidente de carro e estava internada no CTI precisando de uma transfusão! Resolvi doar sangue para ela. Graças a Deus hoje, a transfusão sanguínea é um método seguro. Claro que ela não recebeu meu sangue, foi quando descobri que tinha o HIV. Como eu disse, foi uma longa trajetória até aqui, bom hoje somos casados e ela não foi infectada pelo HIV. Artimanhas do destino, sorte, proteção divina, coincidência... Cada um atribui de acordo com sua crença. Eduarda não conseguiu segurar a emoção. Reviveu em sua mente momentos difíceis que passaram. Conteve suas reações, não queria chamar a atenção das pessoas. O foco ali era Bruno! O olhar de Bruno encontrou-se com o dela e a cumplicidade entre eles era evidente! As lágrimas escorriam no canto dos olhos silenciosamente. — São momentos íntimos que estou expondo e repito, quero que minha vida sirva para o aprendizado de outras pessoas. Vou lançar as sementes e se uma florescer já terá valido a pena, porque uma vida é importante demais! Mas se eu conseguir colher vários frutos e se houver um jardim florescido com as sementes que lancei, então minha vida terá valido a pena. Então, logo após descobrir que tinha HIV, eu passei por um longo período de depressão, de negação, rejeição de mim mesmo! Passava por um momento difícil em minha vida, meu lado psicológico estava totalmente debilitado. Sentia uma dor imensurável, uma dor palpável mesmo. Desejei morrer, mas não tinha coragem de tirar a minha vida! Fugi para o sul, fui morar em Porto Alegre e não queria amizades, relacionamentos, eu tinha tudo isso aqui, tinha ido embora para ficar sozinho. Abandonei minha noiva, minha família, tudo. Cheguei à beira da loucura. Tornei-me um ser assexuado, não me interessava por ninguém, só sabia me lembrar de minha tragédia pessoal. E achei que
jamais teria uma relação novamente, coloquei em minha mente que eu não merecia mais, era indigno. Não fui abandonado pela família, pelo trabalho, meu maior problema foi o autopreconceito. Eu sei que as pessoas não falam e existem leis contra preconceito e existem boas maneiras, mas o panorama da AIDS não mudou completamente. A imagem do HIV sempre permeia pelo lado negativo de alguma questão. O preconceito diminuiu, mas não tanto quanto gostaríamos. Ainda existem pessoas que separam o copo, limpam o lugar onde sentam, e sentem medo de estar perto de alguém com AIDS. Viver isso não é fácil. Bruno estava completamente seguro para falar. — Tive tanto medo do preconceito que preferi a dor solitária. Não queria também a pena, a dó de ninguém. E o mais difícil foi aceitar tudo isso que estou dizendo. Então para esquecer a dor me atolei no trabalho, não me tratei, queria provar a mim mesmo que poderia viver sem os medicamentos, e claro, adoeci, tive uma anemia... Bruno relatou com detalhes os momentos onde precisou se internar. Eduarda não conseguia parar de chorar. Amar alguém assim e não poder fazer muita coisa era um sentimento de impotência; de fraqueza. Bruno era um homem lindo. Eduarda sempre achou que ninguém podia ser tão bonito assim, devia ser proibido! Quem olhava aquela beleza não poderia jamais imaginar algo tão trágico. Assim Bruno relatou todos os acontecimentos com ele. — E aqui estou. Graças ao amor. Tive a ajuda de alguém que me ajudou a vencer o preconceito. Foi à força de um amor que me fez olhar no espelho e voltar a me enxergar, porque antes eu olhava e via um portador de vírus, na verdade, já me enxergava como um vírus e não uma pessoa. Foi graças a esse amor que me deu um novo sopro de vida e me fez querer viver mais. Redescobri o privilégio de continuar vivo. É muito importante a ajuda de pessoas por perto, porque na verdade se isolar é pior. A mente fica vazia e começa a se encher de inverdades sobre o HIV. Hoje eu consigo
sonhar com o futuro, mas sou realista, vivo cada dia intensamente. E como médico soropositivo, sei que algumas verdades sobre o HIV precisam ser ditas. Primeiro: ainda não existe cura para o HIV, causador da AIDS. Os tratamentos avançaram, de forma que é possível ter uma vida “normal” com o vírus. Segundo: quem tem HIV não tem necessariamente a AIDS. O HIV é a contaminação das células imunológicas pelo vírus causador da doença. Você pode se contaminar e ficar anos sem desenvolver a AIDS. A AIDS, nada mais é do que o estágio onde começam a aparecer doenças oportunistas na pessoa infectada pelo HIV, ou então, quando os exames apontam fraqueza em seu sistema imunológico. Doenças que se aproveitam da baixa imunidade. Uma gripe pode se tornar um grande problema, pois sem imunidade é como se estivéssemos nas mãos dos inimigos. Estas doenças, muitas vezes podem ser curadas e o indivíduo se reestabelecer. Terceiro: AIDS é um estado e não uma condição permanente. O termo AIDS é empregado quando as doenças oportunistas aparecem, então quando estas doenças são tratadas e curadas, a pessoa não é mais aidética. Assim, AIDS tem cura! E volto a afirmar, a contaminação pelo HIV não, ainda é irreversível! Quarto: não existe “grupo de risco”, como já falamos ao longo de nossa conversa. Precisamos rever nossos comportamentos! Por mais que se façam campanhas e divulguem, as pessoas não param de se infectar. Estamos longe ainda do que esperamos, mas não podemos parar de falar e de agir, uma hora as pessoas ouvirão, um dia qualquer as pessoas se conscientizarão e quem sabe conseguiremos tornar a AIDS ou HIV extintos, ou raros. Podemos sonhar, não podemos? — Eu quase morri, de verdade, e agora que a reconquistei de volta, vi que o HIV faz parte dela. Não tenho mais vontade nem motivo para negar isso. E graças ao amor! Aprendi a refazer meus planos. Sei que posso morrer a qualquer momento. Pode ser que eu morra de ataque cardíaco, acidente ou por causa do HIV. Quem pode dizer? E quem não vai morrer? Então ao invés de pensar na morte,
aprendi a viver a vida! Viver cada dia como se fosse o último, mas sempre fazendo planos para o futuro! Pensando na vida. Assim Bruno terminou a palestra. As pessoas o aplaudiram de pé. Depois houve um momento para perguntas. — Boa noite, eu sou Valéria, residente em infectologia. Doutor Bruno, você nos relatou seu caso e me emocionei bastante. Quero agradecer por compartilhar conosco momentos tão íntimos em busca de ajudar o próximo. Mas gostaria de saber uma coisa: exercer a medicina não faz com que assuma um comportamento de risco para os outros? Ou seja, para disseminar o HIV? — Valéria, posso lhe garantir que não. Estou com minha carga viral baixíssima, me alimento bem, pratico esportes, tomo as medicações necessárias, durmo bem, cuido de minha parte emocional, cuido de minha saúde e sou responsável. A partir do momento em que qualquer fator mudar e eu perceber que tem esse risco, imediatamente me ausentarei de meu trabalho, pois não quero transmitir o vírus. Meu desejo é salvar e não matar. — Bernardo, estudante de engenharia. Doutor, você relatou sua experiência com sua esposa. Tantos anos de relacionamento e ela não foi infectada. Como conseguiu evitar esta transmissão? Bruno olhou para sua amada e no momento em que seus olhares se encontraram, ela acenou positivamente com a cabeça, então ele respirou fundo e respondeu: — É uma pergunta íntima, mas vou responder. Minha esposa não pode tomar anticoncepcionais, então para evitar uma gravidez, sempre usamos preservativos. Estudávamos, queríamos nos formar, casar e só depois termos filhos. E assim ela foi protegida contra o vírus. Foram anos de relacionamento e ela não havia sido contaminada! Como eu disse, sorte, proteção divina... Sei lá, o fato de ela ser proibida de tomar anticoncepcionais a fez ficar protegida. Mas não é o que acontece certo? A maioria dos casais com relacionamentos sérios e duradouros não usam preservativos. E assim, Bruno respondeu mais algumas perguntas e então encerrou a palestra.
— Vou deixar meu e-mail e o contato do hospital. Qualquer pessoa que quiser saber mais ou precisar de ajuda pode me procurar. E acredito que qualquer pessoa, com HIV ou não, deve aproveitar cada segundo de sua vida, pois é um presente e ninguém sabe o dia que ela será levada. Então deixo uma música para reflexão de todos. Obrigado! No telão imagens de Bruno em toda a sua trajetória passavam de um slide a outro ao som da música “Epitáfio”. Novamente o som das palmas invadiu o auditório e Bruno precisou controlar suas emoções. Estava feliz, achou que conseguiu transmitir a mensagem que queria. Eduarda se levantou e foi abraçálo. Foi um abraço comovente! Algumas pessoas se aproximaram para cumprimentá-lo. Foi uma noite muito emocionante e importante para Bruno. Havia dado um passo muito importante, havia assumido publicamente que era soropositivo e estava começando uma luta contra a discriminação e ajudar as pessoas a enfrentarem de cabeça erguida esta dura realidade. ooo Fizeram o trajeto de volta em silêncio. Eduarda ligou o som do carro e cada um ficou absorvido em seus próprios pensamentos. Ela ficou muito emocionada com o depoimento de Bruno. Amava-o tanto e nada podia fazer para tirá-lo daquela situação. Olhou-o enquanto ele dirigia e ficou admirando-o. Era tão lindo, tão viril. Não era possível olhá-lo e perceber que ele era soropositivo, pois parecia extremamente saudável e lindo! Quando chegaram em casa eles se olharam. — Você estava tão calado na volta. — Estava absorvendo tudo que aconteceu. O que você achou? Sob seu olhar penetrante ela respondeu: — Oh meu amor, eu amei. Amei cada palavra e me emocionei bastante! Você estava perfeito, tranquilo, falou fluentemente, como sempre! Lembrei-me de quando ia apresentar seus
trabalhos na faculdade, sua tese... Sempre foi brilhante, Bruno! Essa parte eu tinha certeza que você não iria falhar. — Oh Eduarda, tenho tanta necessidade de você. Ele se aproximou de Eduarda, segurou seu rosto entre suas mãos com seu olhar firme e intenso e ela prendeu a respiração por instantes e suspirou em seguida. Bruno tinha um efeito avassalador sobre as suas emoções. Então ele a beijou intensamente. Cada dia ao lado de Bruno era como se fosse o primeiro, cada beijo, cada toque... Esquecia-se do mundo, esquecia-se de si, só conseguia pensar e sentir Bruno. — Eu te amo tanto, e preciso de você. — O que está acontecendo, meu amor? Sinto você diferente... — Como? — Não sei, intenso, mas ao mesmo tempo misterioso. — Não há nada querida, apenas preciso desfrutar de cada minuto ao seu lado. Preciso de você e tenho que senti-la enquanto ainda é possível. — Como assim...? — Depois Eduarda. Depois conversamos... E assim a beijou novamente e a tomou para si. Era inebriante, doce, sedutor, terrivelmente mágico aquele momento. No entanto, sempre havia uma sombra entre eles. ooo Eduarda acordou e ainda estava abraçada com Bruno. Ficou olhando para ele por longos segundos. Adorava olhálo! Vestia apenas o short do pijama e Eduarda aproveitou para fazer carinhos em seu peito descoberto. Bruno se mexeu, mas não abriu os olhos, a sombra de um sorriso permaneceu em seus lábios por alguns segundos. — Bom dia para você também – falou ele, sem abrir os olhos, então avançou por cima dela e a olhou intensamente. Eduarda sorriu-lhe, beijando-lhe os lábios.
— Adoro quando me acorda assim, querida. — Vou sentir sua falta! — São apenas três dias querida! Logo estarei de volta. — Eu sei, mas cada dia longe de você parece uma eternidade. — Para mim também... — Bruno, conheço este olhar e sei aonde vai nos levar. — E você não quer? — Claro que sim, você é tudo que quero neste momento. ooo Eduarda resolveu ir ao cinema para se distrair um pouco. Bruno havia ido ao Rio de Janeiro para fazer sua palestra. Ele conciliava suas palestras com dias de folga dos plantões e às vezes trocava para poder viajar como agora. Ela queria muito ir, mas não conseguiu folga. Estava na fila da pipoca, distraída em seus pensamentos quando avistou Augusto na fila do cinema e para a mesma sala que ela. “Nossa! E agora?” – seus olhares se encontraram e então ele acenou-lhe com a cabeça e sorriu. Eduarda pegou a pipoca e o viu caminhando em sua direção. — Oi! — Oi Eduarda, como vai? Que surpresa! – disse beijando-lhe o rosto. Ela se sentiu desconfortável, e ao mesmo tempo as batidas do seu coração aceleraram. — Digo o mesmo. Pensei que estava em São Paulo. — Sim, eu estou lá ainda, mas tive que vir para fazer um trabalho por uma semana. E Bruno? – sua curiosidade era evidente, pois ela estava sozinha. — Foi ao Rio para um trabalho. — Está feliz Eduarda? — Oh sim, muito! E você? — Estou bem.
Eduarda estava tensa, Augusto despertava-lhe emoções estranhas. Por que ele lhe causava esse efeito? Nesse momento, a gaveta secreta sempre tentava abrir. — Coincidência estarmos aqui hoje, não acha? – sentiuse ridícula dizendo aquilo. — Não acredito em coincidências. Arrisco-me a opinar de que coincidências não existem, pois parece que, por trás da aparente desorganização da vida, o ser humano se depara com uma grande sincronicidade: cada coisa está em seu lugar e, por isso, nada acontece por acaso, embora não se consiga, algumas vezes, perceber claramente os vínculos que motivam e unem circunstâncias aparentemente díspares e imotivadas. Eu prefiro admitir que quando qualquer coincidência, positiva ou negativa, acontece, é porque Deus está presente. Eduarda não soube responder. Caminharam juntos para a sala de cinema, tensos. — Eduarda se preferir posso me sentar longe de você... — Não Augusto. De forma Alguma. Podemos assistir a um filme juntos, como amigos não? — Claro que sim. Sentaram-se lado a lado e começaram a comer pipoca. Durante as propagandas, e trailers não pronunciaram nenhuma palavra. Outra vez Augusto quebrou o clima tenso entre eles. — De verdade Eduarda, como está Bruno? Eduarda respirou fundo e o olhou. O olhar de Augusto a penetrou profundamente. “Nossa! Como é bonito!” — Está bem. A carga viral está baixa. Resolveu ajudar as pessoas a enfrentar este problema. Acho que é um passo muito importante para ele. Bruno sofreu muito autopreconceito e achou que não tinha direito a felicidade... Sentia como se fosse pecado para ele ser feliz, sabe! Mas agora ele conseguiu assumir para todos que é portador do HIV e isso faz com que ele se ajude também, de certa forma.
— Claro que sim. Fico feliz pelo progresso dele e pela sua saúde estar tão bem. Ela o olhou meio desconfiada e ele, muito astuto, percebeu e respondeu como se estivesse lendo seus pensamentos: — É verdade Eduarda. Não desejei e nunca desejarei mal para ele. HIV, câncer e estas doenças temerosas são difíceis de serem encaradas. Com o apoio da família, de quem se ama é mais fácil passar por estas fases de negação. E jamais desejaria mal para alguém, mesmo sendo para tê-la comigo. Ela engoliu em seco e nada pronunciou. Estava sem palavras, sem ação. — Não vou mentir que quando Bruno voltou desejei que ficasse comigo, mas sei respeitar as escolhas alheias. E jamais desejaria que ele adoecesse, pode ter certeza disso. — Você está com alguém? – Precisava dizer alguma coisa e foi o que veio a sua mente – “Por que perguntei isso? Não é da minha conta! Talvez seja apenas curiosidade...” Agora foi Augusto quem suspirou. — Sim. Estou namorando, uma médica também. Eduarda sentiu um desgosto, um amargo, um desconforto... Ciúmes? Não podia sentir ciúmes de Augusto. Ele também tinha o direito de seguir sua vida. — Que bom. Fico... – engasgou para dizer algo que na verdade não estava sentindo, mas conseguiu pronunciar — Feliz que tenha encontrado alguém. Espero que ela lhe faça feliz. — Estou bem Eduarda. Ela é decidida, independente, divertida, compreensiva e estamos caminhando. — Onde ela está? – Eduarda não o olhou, pois sabia que era muito transparente em demonstrar suas emoções e ele veria o descontentamento em seu olhar. — Em São Paulo. Ela é de lá e não pôde vir comigo desta vez. Estamos pensando em voltar. Nesta hora Eduarda o olhou. — Pensei que tinha ido fazer mestrado...
— Sim eu fui e estou fazendo. Recebi uma proposta de trabalhar em uma faculdade aqui e estou pensando em aceitar. A docência me chamou atenção nestes últimos anos. Ela sorriu para ele entendendo a analogia. — E já está terminando o mestrado? — Sim! Vou poder continuar daqui mesmo. Vou lá para fazer avaliações e arguições, defender minha tese e Júlia está para vir trabalhar aqui também, então acho que já é certo. O estômago de Eduarda revirou-se ao ouvir este nome! Então era assim que se chamava a namorada dele. Sentiu uma raiva imensa. Definitivamente não estava entendendo a própria reação diante de Augusto. — Pensei que fosse a Dariana? Ele a olhou intrigado. Ela se lembrava. — Não. Acabamos nos afastando. O silêncio bateu-se novamente e começaram a prestar atenção no filme por um tempo. Eduarda ouviu seu telefone vibrar dentro da bolsa e o pegou para olhar. Era Bruno lhe mandando uma mensagem. “Oi amor, estou com muitas saudades! Estou louco para estar em seus braços, gostaria que estivesse aqui comigo. Começarei a palestra daqui a 5 minutos, te amo. Volto amanhã. Beijos.” O coração de Eduarda aquietou-se ao ler a mensagem de Bruno. Também estava com saudades dele e então respondeu: “Também estou com saudades, meu amor. Volte logo! Boa palestra. Sei que vai arrasar.” Guardou seu telefone na bolsa e quando olhou para o lado, Augusto a olhava de forma fixa e seu coração começou a palpitar novamente – “Meu Deus, o que está acontecendo comigo?”
— E você como está? Digo, sua saúde... — Estou bem... – de repente Eduarda se calou. Não queria falar desse assunto com ele. Era estranho! — Tenho certeza disso! — Augusto você se desfez do consultório? — Não! Pretendo voltar a trabalhar lá. Eu cedi meu lugar a um colega, mas quando voltar, reassumirei meu consultório. Tem espaço para ele também! — Às vezes sinto vontade de ir lá, sabe! Sinto saudades de conversar com você! — Oh Eduarda! – falou ele quase que um sussurro. Era ridículo corar, mas foi exatamente essa a reação de Eduarda diante de suas palavras. Talvez estivesse indo para um caminho que era melhor não trilhar, mas era tarde demais. — Precisava ficar longe para poder respeitar sua decisão sem interferências. Nunca desejei ser seu amigo, sabe que sempre quis mais que isso, e confesso que ser seu amigo me dói! Saber que você já foi minha e agora é apenas a-mi-ga... Porém quero que saiba que, em qualquer época, em qualquer situação, pode contar comigo. Já superei o fora que levei, hoje já consigo assistir um filme ao seu lado sem tentar te tocar... – falou piscando-lhe um olho e com um sorriso maroto nos lábios. — Augusto eu... — Você foi, é e sempre será muito especial para mim. E nunca conseguirei virar as costas para você! Entende isso? — Sim. Neste momento o filme estava no auge do romance. A personagem se entregava ao seu amado e uma música romântica tomou conta do ambiente. Eduarda sentia-se extasiada, não conseguia olhar para ele, estava estranha. O sorriso de Bruno invadiu sua mente e ela fechou os olhos... Em questão de segundos começou a chorar. — O que foi?
— Nada, não se preocupe. Fiquei emocionada em rever você, com suas palavras e este filme... Sabe que sou emotiva! — Desculpe Eduarda, não queria lhe constranger! — Não! Não foi você. O que me disse foi lindo, e é muito bom saber que posso contar com você. Sabe que tenho poucos amigos... — O que foi então? Como dizer para ele da gaveta secreta? Que estava ali lutando para manter as coisas em ordem? Os sentimentos que teimavam em sair da gaveta, ela os colocava de volta e a fechava. Não suportava bagunça, era extremamente organizada com tudo, até mesmo com seus sentimentos e não poderia permitir que uma travessura colocasse tudo que estava guardado nesta gaveta para fora. Seria uma desordem total! Não permitiria isso com sua própria vida, mas ao mesmo tempo, sentiu algo estranho, uma sensação de perda e tristeza. — Oh Augusto! É difícil falar disso com você, mas ao mesmo tempo tenho tanta confiança em conversar contigo! Lembrei-me de Bruno agora e uma dor me invadiu o peito. — Algo errado? — Não! Mas de repente uma sensação estranha. Não sei explicar, é como se tudo o que tenho fosse acabar... — Está com medo? Ela o olhou neste momento e percebeu que ele a conhecia muito bem. E não conseguiu se segurar e o abraçou, chorando em seus braços. — Venha, vamos sair daqui! Ele a puxou pela mão e após caminhar um pouco, a conduziu até seu carro. — Aqui não somos observados por ninguém! — Por que seu carro não está no estacionamento? — Não tinha vaga lá dentro, então resolvi colocar aqui fora. Está perto! — Desculpe! Eu me lembrei de Bruno e de repente do
seu lado me senti estranha! Uma aflição, um aperto e não consegui controlar as lágrimas. — Você está com medo? — Está tudo tão perfeito! Não quero que Bruno adoeça! Eu tenho que ser forte e não converso sobre este assunto com ninguém, então... — Não pense nisso! Sabe que a vida é cheia de mistérios e surpresas. Pode ser que eu adoeça, você... A vida é inconstante! — Eu sei! Na verdade estava emocionada de estar ao lado dele. Amava Bruno, mas ele... Ele estava na gaveta secreta e era muito especial. Sentia vontade de tocar seu rosto, mas não podia! Não era certo! Augusto ainda mexia com suas emoções e ela não sabia o que pensar e nem o que fazer! — Sabe Augusto, eu sinto falta de um amigo, de alguém que não seja Bruno para conversar. Tenho um estranho sentimento que vivo um sonho e que a qualquer momento ele se tornará um pesadelo. Sabe o que é isso? Ele a olhou com carinho. Como resistir àquela mulher? Tão forte, tão doce, tão linda! — Não sei o que é isso. Chame de vida! Se soubéssemos o que encontraríamos no caminho talvez fosse mais fácil. No entanto, não é assim. É preciso viver e descobrir o resultado de nossas escolhas, colher os frutos de nossa semeadura. O prestígio não está em semear e sim em colher, porque o caminho que vem pela frente é mais importante do que o ficou para trás. ooo — Doutor Bruno, como médico e portador do HIV você deve saber profundamente com o que está lidando. Como médico não deveria sentir medo. O senhor sente medo? Bruno havia falado por uma hora e meia e estava no momento em que abria espaço para os participantes
perguntarem e esta pergunta o pegou meio de surpresa, mas de prontidão respondeu: — Sinto medo a todo instante! Por ser médico sinto medo, por ser homem sinto medo. Mesmo agora que estou bem e que o período de tribulação passou, sinto medo. A sensação é que vivo com uma bomba relógio dentro de mim e que pode explodir a qualquer momento. É aterrorizante. Às vezes tenho pesadelos. — E como faz para superar o medo? – insistiu na pergunta. — Não supero, convivo com ele. Procuro não pensar. Todos nós sabemos que nascemos para morrer, uns mais cedo, outros bem tarde, mas todos terão este destino. E ninguém fica pensando na morte, quando será, que dia será... Quando se tem HIV é diferente, isso passa a ser uma questão diária, pois a sensação é que estamos mais próximos da morte. Então... – ele passou a mão pela boca — É que o HIV traz isso implícito, ali nas entrelinhas, o tempo todo, se cuida ou morre! Mas tento encarar pelo lado positivo que consegui encontrar. Ninguém sabe a hora de sua morte, nem mesmo os “aidéticos”, então não precisa ficar pensando. Sei que qualquer descuido e vacilo pode ser fatal, então procuro viver cada dia como se fosse o último, vivo intensamente tudo! E acho que deveria ser assim com todos. Porque, afinal de contas, posso sair daqui e ser atropelado. Quem me garante que vou morrer de AIDS? É assim que penso, e assim tenho vivido. Definitivamente o amanhã não me pertence, então não penso nele. Existem coisas que não tem como evitar, então temos que conviver juntos. Aprendi que o medo foi feito pra ser vencido! O microfone foi passado para outra pessoa que lhe perguntou: — Doutor, você é casado, heterossexual e bem sucedido. É um médico e possui boa aparência. Mas sentiu algum preconceito ao assumir que era soropositivo? — Primeiro senti preconceito de mim mesmo, mas já superei como relatei. Porém percebo alguns olhares para mim como se estivesse perguntando: “Como foi deixar isso acontecer?” ou “Como uma pessoa como você pode pegar AIDS?” ou “O que você
fez?”. Ignoro. Não tenho que viver dando explicações e nem satisfazer a curiosidade alheia. E adotei um critério, de não ficar procurando os olhares, os gestos de preconceitos. O que os olhos não veem o coração não sente. Este ditado é muito verdadeiro! — As pessoas não acham estranho você estar casado com uma mulher que não é portadora de HIV? Bruno sentiu um aperto no coração ao falar de sua amada. — Não, eles acham o contrário estranho: O que ela está fazendo comigo? É como se eu não tivesse o direito de ter uma relação normal, ou que ela é louca de estar casada com um homem com HIV. Mas como eu disse, precisamos nos importar menos com o que as pessoas acham, devemos importar com o que pensam aqueles que amamos. Se formos tentar agradar toda a sociedade ficaremos loucos e morreremos sem esta realização, pois é impossível. A noite foi longa e cansativa, mas extremamente prazerosa para Bruno. Ele sentiu uma vontade imensa de voltar para casa e ligou para o aeroporto. Havia um voo que sairia dentro de uma hora. Precisava correr, assim estaria com Eduarda ainda naquela noite. ooo Eduarda estava deitada em sua cama pensando em tudo. Augusto estava infinitamente lindo. Sempre educado, gentil e atencioso. Que coincidência! No mesmo cinema, mesmo filme, mesma sala! Contudo, foi bom, estava com saudades dele e conversaram bastante. Rolou pela cama e sentiu o perfume de Bruno! Que delícia! Adorava aquele cheiro. Que saudade! Fechou os olhos para se lembrar de momentos com seu marido e acabou adormecendo. Estava sonhando com Augusto quando sentiu um beijo em seus lábios. Sorriu ainda sonolenta e com os olhos fechados sentiu o cheiro de Bruno tão forte, tão real, que era como se ele
estivesse ali. Rolou mais uma vez e sentiu um braço em volta de si. Abriu os olhos assustada e viu Bruno sorrindo. Sempre estaria presa nessa confusão de sentimentos. Era uma prisão. Uma sentença perpétua! — Bruno! Que dia é? Que horas são? — Calma, são 2h 30 min da manhã, melhor ainda é de madrugada. — Aconteceu algo? — Sim, saudade demais! Não consegui passar mais uma noite longe de você. Então, naquele instante, sem pretender, respirou fundo e pensou que era bom viver, apesar de toda dor e sofrimento pelo qual passamos na vida, era bom viver, mesmo que a cada dia fosse necessário descobrir e adotar novas estratégias e maneiras de agir e sentir. Ele a beijou e ela se entregou. Era sempre assim, um beijo e todo seu corpo regia como se fosse a primeira vez, uma adolescente! ooo — Bom dia meu amor! — Bom dia Bruno! Já de pé? — Levantei para preparar o café e correr um pouco. — Tão cedo! — Sim. Tenho plantão hoje e depois vou naquela ONG para dar um depoimento. Quer vir comigo? — Claro! Te encontro lá depois que sair de uma audiência hoje. Ele a beijou e sentou-se ao lado dela na cama. — E como foi o filme ontem? — Hã? — Não foi ao cinema? Disse que iria. O olhar de Eduarda ficou sombrio e distante. Não por causa do cinema e do filme e sim por causa de seu encontro,
imprevisto, com Augusto. E agora contava ou não para ele? Mas não foi nada marcado, foi coincid... — O que houve? O que está me escondendo? — Não estou escondendo nada! – falou desviando o olhar. — Eduarda, eu te conheço. O que houve? — Encontrei-me com Augusto no cinema – falou no ímpeto. O olhar de Bruno se escureceu. O brilho fora embora e o sorriso também. — Como assim? — Assim, coincidência. Ele estava lá no cinema assistindo ao mesmo filme que eu. — E o filme foi bom? O tom de voz do Bruno era ríspido. — Foi. Na verdade não tanto quanto esperava. — Vocês conversaram? — Sim. Conversamos um pouco. Ele está voltando para cá e está namorando uma médica. — Hum... — Bruno, não precisa de ciúmes. Sou sua esposa e ele já está... — Ele te ama! Ela o olhou apressadamente. — Como pode dizer isso? Faz tanto tempo e... — Ele te ama e me perturba você com ele. — Bruno não acredito! — Incomoda-me saber que está com alguém que te ama e que você... — Eu o quê? — É complicado – seu olhar se escureceu e seu rosto tornou-se sombrio. Como se estivesse sentindo uma dor aguda em alguma parte de seu corpo — Sei que ainda tem afeto por ele. — Como amigo. — Até eu voltar, ele era seu futuro marido! Acho que era mais que um amigo. — Bruno! Eu te amo! E jamais o trairia...
— Sei que me ama e nunca duvidei de sua fidelidade, mas não vou mentir, ele me incomoda! — Está com ciúmes? — Por quê? Não tenho direito de ter ciúmes de minha esposa? — Sabe que não gosto de ciúmes. Eu escolhi estar com você, sou toda sua... Ele a beijou, interrompendo-a, e ela aceitou este gesto como forma de encerrar o assunto. Tê-la em seus braços era melhor do que ficar discutindo! Não havia tempo em sua vida para isto.
XXII
O
s meses estavam passando rápido demais. Eduarda assustou ao perceber que já estava casada há quase quatro anos. Ela e Bruno viajaram, passearam por vários lugares, desfrutaram ao máximo a companhia um do outro, como nos romances. Parecia que o “para sempre” já havia chegado para eles. Bruno havia diminuído seu ritmo de plantões e se dedicava com entusiasmo a suas palestras. Ele começou timidamente e nem percebeu sua ascensão e quando se assustou havia virado um profissional dando palestras pelo país. Transmitia seu conhecimento e fez disso sua missão de vida, um trabalho que se tornou algo muito atrativo, importante, fonte de renda e uma felicidade profissional e pessoal em sua vida. Eduarda acompanhava sempre que podia, mas seu trabalho no Ministério Público e como professora também necessitava de dedicação e estudos. A vida estava seguindo seu curso, como um rio que segue sem retorno das águas. As águas, simplesmente se permitem seguir em frente. É um mistério, pois você pode ir ao rio no mesmo lugar por infinitas vezes e nunca estará diante das mesmas águas, sendo o mesmo rio, no entanto, quem sabe se você mudar o local e procurar locais mais distantes, talvez você consiga se banhar nas mesmas águas que outrora estavam em outro lugar. O rio estaria sempre em movimento, não para nem mesmo diante dos obstáculos, fazem curvas, passam por cima ou levam consigo. Até as quedas não o param, ao contrário, o tornam mais bonito. Transforma-se em lindas cachoeiras, quanto mais alta a sua queda mais nos encantam. E o movimento continua, segue seu curso. E ele tem
um objetivo a ser alcançado desde a sua nascente, em todo o seu caminho ele sabe que deverá chegar ao mar. Então ele nunca para. A vida era assim, também estava sempre em movimento. Eduarda estava imersa nestas reflexões, ouvindo músicas tranquilamente na sala, enquanto Bruno estava lendo no quarto. Talvez pelas emoções despertadas pelas músicas, Eduarda lembrou-se de seus pais. Passou muito tempo desde a última vez que falara com eles. Suspirou fundo e seguiu o ímpeto de seu coração. Pegou o telefone e ligou para sua mãe. Ao terceiro toque a voz de sua irmã fez o coração acelerar. — Alô! — Oi... – a voz de Eduarda estava agarrada — Oi Ester! Sou eu, Eduarda. — Eduarda! – percebeu que sua irmã havia abaixado o tom de voz para que ninguém escutasse. — Oi, como vão às coisas por aí? — Oh, meu Deus! Que saudade de você, Duda! — Também morro de saudades. — Vou a Belo Horizonte no mês que vem, onde está morando? — Eu mandei o endereço para a mamãe. E o número do meu telefone novo também! — Acho que papai pegou e escondeu, porque não sabemos. Perdemos o seu contato. — Oh céus, quando é que papai vai deixar de ser tão rígido e antiquado e me perdoar? — Duda vou te passar meu e-mail. Mande seus contatos para mim. Vamos nos comunicar assim, anote aí. Eduarda anotou o e-mail, emocionada, e logo em seguida ouviu a voz de sua mãe. — Quem é Ester? — Vou passar para mamãe. Beijos e me escreve hein? — Alô! Quem é? — Mamãe? — Eduarda, minha filha. O que houve com você?
— Oh mamãe... Eu... Neste instante ouviu um “tu... tu... tu...” do outro lado da linha e pode imaginar que seu pai havia chegado e desligado a ligação. Eduarda começou a chorar e Bruno se sentou ao seu lado e a abraçou. — Eu ouvi meu amor. O que eles disseram que a magoaram desta vez? — Oh meu amor, meu pai, não me deixa falar com minha mãe. — Sei que já me disse que não quer procurá-los, mas eu quero fazer isso com você e por você. Você me resgatou da escuridão, me deixe resgatar sua família... Ou pelo menos tentar! — Não sei se vale a pena. Ele a segurou pelo queixo e a fez olhar em seus olhos. — Pode ser que não dê certo, mas só vai saber se tentar. Quero poder estar ao seu lado neste momento. Não me negue isto. Quando eu for embora... — Pare com isto! — É sério. Quero deixar algo relevante em sua vida. — Você é relevante. — Vamos tentar? — Tenho medo. — Vamos enfrentar isso juntos, ok? Ela consentiu com a cabeça e deitou-se novamente em seu peito. Sabia que era algo que desejava e o que a impedia de ir adiante? ooo Bruno dirigia calado enquanto deixava Eduarda organizar suas ideias. Conversaram bastante sobre seus pais, mas ela estava insegura. Estava em uma reta imensa e o trânsito muito tranquilo, então ele segurou por instantes a mão de sua amada.
— Não se atormente tanto! Deixe o rio seguir seu curso e tudo terminará bem. — Meu pai é muito rude! Não sei se foi uma boa ideia. — Meu amor, o máximo que pode acontecer é ele se negar a falar com você. Eu estarei do seu lado. Por mais que desejasse, não conseguia deixar de se sentir insegura, amedrontada diante da situação. Mostrava-se forte, mas em seu íntimo havia um turbilhão de emoções e era preciso muita força para conseguir se manter equilibrada e sensata. Estava ansiosa. Encostou a cabeça no banco do carro e ficou olhando a paisagem da janela. Bruno não insistiu na conversa, sabia respeitar e entender o momento que estavam passando. Os pais de Eduarda moravam no sudoeste do estado. Guiado pelo GPS e pela memória de uma única vez em que esteve lá, Bruno dirigia tranquilamente. Era um trajeto de 401 quilômetros de Belo Horizonte, já estava em Passos e mais um pouco entraria no município de Cássia para atravessar o Rio Grande de balsa e então chegar a seu destino. — Não pense muito Eduarda. Só causa mais ansiedade. — Bruno faz mais de dez anos que não vejo meu pai... — Eu sei, mas não pode adivinhar o que ele vai fazer ou dizer. Então não sofra antes... Vamos apreciar a paisagem. Por isso decidi vir por este caminho. Sinta o vento, o ar... – dizia enquanto fazia a travessia na balsa. Ficaram abraçados até chegarem novamente em terra, o que durou 15 minutos. Logo estavam diante de um letreiro dizendo: Seja Bem-vindo a Delfinópolis! Entraram pela cidade e então, após 30 minutos, estavam diante da porteira da fazenda de seus pais. Eduarda desceu do carro e ficou por instantes olhando para a estrada dentro da propriedade que a levaria até a casa principal. Olhou para Bruno dentro do carro e tomou coragem. Ele estava enfrentando um problema muito maior e ela não podia fraquejar assim. Entrou no carro e foram em silêncio até a casa, estacionaram o carro
nas vagas próximas da propriedade e foi Ester, que estava na varanda, que os avistou primeiro. Fez uma expressão de espanto e surpresa colocando as mãos na boca como se fosse impedir o próprio grito. Eduarda desceu do carro e aguardou por Bruno, então, de mãos dadas, foram em direção à casa. Ester e Eduarda nada pronunciaram, apenas se abraçaram calorosamente e choraram uma pela outra. — Oh Ester! Você está tão bonita! — Digo o mesmo. Você está maravilhosa, Eduarda. Bruno estava em pé, parado perto delas, observando a tudo. Então Ester falou: — Oi Bruno! Pensei que jamais fosse vê-lo de novo – falou referindo-se ao fato dele ter desaparecido por um tempo. — É bom revê-la também, Ester! – cumprimentou-a com um aperto de mão. — Papai está em casa? — Não, mas volta daqui a pouco. Vamos entrar, mamãe não vai acreditar quando te ver. Eduarda se emocionou bastante ao entrar na casa onde nascera, crescera e passara muitos momentos felizes. Ela, sem perceber, apertou a mão de Bruno, nervosa, ansiosa e com receio. Não sabia o que iria acontecer. Sua mãe estava na cozinha, com sua ajudante, como sempre, cuidando do almoço, dos biscoitos, bolos e iguarias que ela preparava muito bem. Eça percebeu o movimento e se virou e, quando viu Eduarda entrando junto com Bruno, deixou a tigela cair no chão e pôs as mãos no coração! As lágrimas rolaram espontaneamente em seu rosto e sem dizer nada, correu e abraçou a filha. Foi uma cena comovente, Márcia a ajudante da cozinha, ficou boquiaberta, pois fazia anos que não via a pequena Duda, que agora era uma mulher linda e muito bem acompanhada, diga-se por sinal. — Oh mamãe, que saudade. — Não posso acreditar em vê-la aqui novamente minha filha.
— Oi Márcia, como vai? – disse Eduarda, cumprimentando a mulher que ajudara muitas vezes a cuidar dela e de sua irmã, sem soltar-se de sua mãe. Eduarda sorriu carinhosamente para ela. — Feliz por revê-la. Está uma linda mulher! — Mamãe, lembra-se de Bruno? — Claro, como poderia esquecer!? Como vai? – falou um pouco receosa e estendeu-lhe a mão. — Tudo bem, e é um prazer revê-la. — Vamos, vamos para a sala. A mãe de Eduarda não saía de perto dela, e junto de Ester ouviram a filha contar tudo que lhe acontecera nos últimos anos. Bruno quase nada dizia, estava observando e deixando mãe e filhas matarem a saudade. — Oh minha filha, queria tanto poder estar mais perto de você. Tê-la ajudado neste momento. Eduarda nada pronunciou, estava feliz por estar ali, mas também muito magoada. Havia sido expulsa de sua casa, impedida de voltar e sua mãe havia sido submissa todo este tempo. Precisou tanto de seu apoio, mas o que passou não adiantava lamuriar. — Fiquei surpresa quando Ester me contou que se casou. Mas achei que seria com A... — Eu entendo mamãe, mas me casei com Bruno, como sempre quis. — Estou feliz minha filha. Não estou te julgando, apenas estranhei, já que Bruno havia desaparecido. — Mamãe esta é outra longa história, que lhe contarei depois... — O que faz aqui? – neste instante todos pararam e olharam para o homem que estava parado na porta com um olhar severo e expressão de descontentamento. — Calma, José! A Eduarda veio em paz com o marido, só para saber notícias... Bruno observava tudo atentamente. Percebeu que a mãe
de Eduarda usou a palavra marido para tentar suavizar a situação, já que ele era tão conservador. — Já lhe disse várias vezes que não quero essa gente em minha casa. — José é a sua filha! — Pare com isso mulher, minha filha Ester sempre esteve aqui comigo! Nesta hora Eduarda tomou coragem e falou: — Pode me negar o quanto quiser, senhor José, mas não pode mudar isto, nas minhas veias corre o seu sangue, tenho o seu sobrenome e tenho o direito de ver minha mãe. Sem olhar para ela e respondeu: — Em minha casa recebo somente quem me é bem-vindo. — Não foi o senhor que sempre dizia que devemos encarar a situação de cabeça erguida? Olhe para mim, senhor José, quando se dirigir a mim. O clima estava tenso e Eduarda o olhava firmemente. — Como ousa falar assim comigo? — O tratamento é recíproco. Estou lhe dando de volta o que está me dando há muitos anos. — Foi você que resolveu ir embora para... — Para estudar. E foi o que eu fiz. Formei-me e... — Para quê? Para que é uma doutora advogada? — Como assim? — Para se casar com um... Aidético! Todos na sala ficaram perplexos. A mãe e a irmã de Eduarda não sabiam e Bruno e Eduarda não esperavam que seu pai soubesse, mas depois de segundos ela disse: — Como sabe? — Leio jornais. Vi a foto do casamento de vocês, vi a reportagem onde o doutor está dando palestras... Acha que não sei o que está fazendo de sua vida? Engana-se. — Isto nada muda. — Quando você nasceu, não acreditava que aquela
princesinha era minha filha. Tão linda, tão delicada, e foi crescendo e todos os rapazes em volta a cobiçavam e eu todo orgulhoso sonhei com seu futuro. Sempre soube que era muito inteligente e, de repente, você com 17 anos vai embora para a capital morar sozinha em uma república. O desgosto foi muito, não tinha criado você com tantos mimos, preocupação e amor para vê-la se perder. Nenhum pai suporta isso. — Foi o senhor quem quis assim. Não me deixou voltar e tive que me virar. Proibiu minha mãe e irmã de me ver e nem sequer pensou que eu estava sozinha e muitas vezes precisando de ajuda. — Quando um pai perde um filho a dor é muito grande, ele procura não pensar. E foi o que fiz, não pensei. — Eu me casei e você escondeu o convite de minha mãe! — Não deixaria ela ir assistir a essa palhaçada. — Não vou permitir que fale assim! Tome muito cuidado com suas palavras, porque não tenho mais 17 anos e... — E é uma advogada. Professora de universidade. Não temo suas ameaças. — Não estou o ameaçando! Estou dizendo que não vou ficar mais longe de minha mãe. — Não meça forças comigo! — Não está me deixando alternativas. — O que veio fazer? Veio me apresentar seu príncipe infectado? Todos olharam perplexos para ele. Bruno levantou-se nesta hora e o encarou. — Muito prazer, senhor José. Sinto não poder pegar em suas mãos, não quero correr o risco de me contaminar com sua ignorância e preconceito. — Como ousa seu doutorzinho! Acha que só porque é médico pode vir na minha casa e me dizer o que quiser? Acho que nem bom médico deve ser, afinal, está contaminado. — Estou acompanhando minha esposa para certificar-
me de que ninguém ousará fazer-lhe mal. E não me preocupo com seu julgamento, não é capaz de definir o que é ser um bom médico, afinal, o senhor não deve ser bom em definir nada. Saberia me definir o que é ser um bom pai? Um bom marido? Um bom amigo? Por que saberia o que é um bom médico? E cuidado, porque mesmo estando em sua casa, pode ser processado por discriminação. — Não tenho medo, doutor. — Tampouco eu, senhor José. — Parem com isso vocês! – bravejou a senhora Eça, muito nervosa. — Bom mamãe, eu já vou, mas voltarei para conversarmos. — Não vai voltar aqui Eduarda. Te proíbo. — Não precisa falar comigo, nem me olhar e pode me ignorar, mas não pode proibir-me de falar com minha mãe e irmã. Se continuar com esta atitude, serei obrigada a entrar com uma ação judicial contra sua tirania, e acredite, não vou perder! — Você não ousaria? — Não pague para ver, senhor José. Pensei que era assim comigo por ser conservador, mas depois de hoje, da forma que se referiu a meu marido, sinto pena de você. Pena de constatar que meu pai é dono de uma mente tão medíocre e de sentimentos desprezíveis. — Ora sua... Bruno se colocou diante dele e os dois se encararam. Senhor José saiu sem nada mais a dizer. — Oh Eduarda, sinto muito... Seu pai é... — Mamãe, eu sei bem o que ele é. — Não vá embora hoje. Vocês vieram de tão longe! São 6 horas de viagem. — Mamãe, não tenho condições de ficar aqui... — Iremos para um hotel. — Desculpe Bruno, pelo meu marido, na verdade ele não dá o braço a torcer, mas sofre muito.
— Não se preocupe, estou bem. — Mas o que ele disse é verdade? — Sim. Sou portador do HIV. Ela olhou atônita para Eduarda. — Como eu disse é uma longa história. Mas eu estou bem, não tenho HIV. Dona Eça não entendia muito bem, sabia muita coisa sobre a AIDS, sabia que não se pegava com aperto de mãos, com contatos físicos sem exposição ao sangue, mas Eduarda estava casada com ele. Como ela podia não se contaminar? — Precisamos conversar... Eu... — Ok. Eduarda, se quiser ficar mais um pouco... Posso dar uma volta lá fora Sra. Eça? — Claro que sim! Só temo... — Se avistar seu marido, prometo ficar bem longe. Ele beijou brevemente os lábios de Eduarda e saiu. Ester que até então estava paralisada disse: — Vou com você, Bruno! — Eduarda minha filha, como é isso? Bruno tem AIDS? — Mamãe, ele tem o vírus do HIV... Eduarda teve uma longa conversa com sua mãe. Explicou a diferença de HIV e AIDS e contou toda a história para ela. — Minha filha, você passou por tanta coisa! Gostaria de ter ajudado você, mas agora o que posso fazer? — Só me dar apoio. Eu amo Bruno e somos felizes. Foi ideia dele eu vir aqui... — Não fique com raiva de seu pai. Quando você sofreu aquele acidente ele ficou bastante perturbado. Não conte a ele, mas ele foi te ver no hospital. Não disse nada, mas conheço seu pai... Sofreu muito com medo de você morrer. Ele é orgulhoso e antiquado, mas no fundo só deseja o seu bem. — Talvez seja isso mesmo. Mas a forma que ele tratou Bruno... — Minha filha, ponha-se no lugar dele. Imagina sua filha casada com um... Portador de HIV. Não iria ficar preocupada?
— Talvez – os pensamentos de Eduarda foram para longe. Era difícil conviver com esta situação de preconceito, medo, insegurança por parte das pessoas. Era difícil ter que ser forte em todos os momentos... A voz de sua mãe despertou-a de seus devaneios. — Fique para o almoço. Eu... — Não posso. Bruno não está à vontade, mas voltarei antes de ir embora. Sua mãe a olhou amavelmente. Compreendia sua filha, apesar de querer ficar perto dela por mais tempo. — Ester vai precisar ir a BH nas próximas semanas. Pode ficar na minha casa, se quiser. – ofereceu Eduarda. — Ótima ideia! Assim podem conversar melhor e se reaproximarem. Gostaria muito que fossem amigas. — Nós somos amigas, mamãe! Só não podemos nos ver com a frequência que gostaríamos – havia decepção no seu tom de voz e sua expressão era triste. Eduarda anotou seu telefone, endereço e entregou a sua mãe. Depois a abraçou e foram juntas até lá fora. Bruno estava sentado na varanda com Ester, conversando. Pareciam distraídos, envolvidos no assunto, no entanto, quando Eduarda apareceu na porta ele se virou e sorriu para ela como se estivesse dizendo “estou aqui meu amor, não se preocupe!”. Ele se levantou, pediu licença para sua cunhada e foi ao encontro de sua amada, abraçando-a. — Podemos ir meu amor. Amanhã passamos aqui – disse dando um beijo em seu amado. — Então até amanhã. — Bruno! – Vocacionou sua sogra. Ele se virou para ela, que se aproximou dizendo: — Desculpe pelo nosso comportamento. Somos do interior e temos outro modo de vermos a vida, mas estou feliz que você e Eduarda tenham se reencontrado! — Obrigado! E não precisa se preocupar comigo. Estou aqui por Eduarda, é importante para ela!
— Agradeço por isso também. Sei que a encorajou a vir até aqui, apesar de tudo! — Quero que tudo fique bem! Até mais! Bruno não queria se pronunciar muito. Estava ali realmente por Eduarda, desejava profundamente que ela se acertasse com sua família, mas não estava certo se fez a coisa certa a incentivando a procurá-los. Caminharam até o carro sob os olhares de Ester e Dona Eça e quando entraram no veículo, fechou a porta e Eduarda suspirou, olhando para Bruno, que passou a mão por seu rosto e sorriu-lhe. — Bruno, quero que me leve até a plantação. Ele a olhou com dúvidas em seu olhar. — Meu pai com certeza foi para lá. E já que estou aqui, quero tentar falar com ele sozinho, só nos dois. Bruno mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça. Estava incerto se seria uma boa ideia, mas não discordou. — Tudo bem. Você sabe me guiar até lá? — Sim. Por ali. Enquanto Bruno dirigia, estava admirando a paisagem: inúmeros pés de café... Não se via mais nada por quilômetros. Quando chegou a certo ponto ela pediu para que ele parasse. — Mas não tem nada aqui. — Logo ali em frente tem o galpão onde colocam as sacas e papai tem um refúgio ali. Quero ir a pé, se não se incomodar. — Não meu amor. Estarei aqui e pode ficar o tempo que precisar! – seus olhos inspiravam confiança. Ela o beijou brevemente e desceu do carro. — Ah! Se precisar é só gritar! – falou Bruno piscando para ela. Ela sorriu e caminhou até o escritório de seu pai. Olhou por minutos tudo aquilo. Havia nascido, crescido ali, mas não se sentia daquele lugar. Tinha saudades do pai de sua infância, mas não queria ficar ali. Sentou-se um momento em um banco do lado de fora, pensando no que dizer. Pensou em várias coisas que queria falar, elaborou tudo em ordem e
tentou memorizar, repassando consigo os dizeres ao seu pai, então respirou fundo e entrou sem bater. Observou o lugar. Tinha mandado planejar o ambiente, estava mais arejado. A pintura também era nova e branca, havia diversas prateleiras e diversos papéis. Observou na parede certificados e licenças para o comércio. Parou o olhar por instantes e viu uma foto da família na mesa. Era uma foto em que ela estava e devia ter sete anos. Aproximou-se e segurou a foto nas mãos, percebeu que sua mãe, apesar de bem cuidada, havia envelhecido bastante desde então. Sentiu lágrimas querendo brotar em seus olhos, mas decidiu que não iria permitir que elas lhe molhassem o rosto. Precisava ser forte. — O que faz aqui? Eduarda se assustou e colocou de imediato a foto de volta no lugar. Não havia percebido a presença de seu pai ali, absorvida com as lembranças. Encarou-o com firmeza, vendo que estava abatido, mas firme. — Vim falar com você. — Não temos nada para falar. — Engana-se. Talvez não tenha nada para me dizer, mas eu tenho e vai me ouvir. — Não pode me obrigar. — Não, não posso. Mas não vou desistir, então é melhor ouvir logo e ficar livre de mim de uma vez, não acha? Seu pai suspirou e ficou calado, olhando para ela em silêncio. — Não sei por que tem tanta raiva de mim! Não consigo entender. José nada disse. Eduarda percebeu que de nada adiantou planejar o que iria dizer. As palavras sumiram diante da presença de seu pai e olhando para ele, percebeu o quanto o amava e o quanto estava magoada. Sentiu saudades dos momentos que não viveram e percebeu o quanto seu pai lhe fez falta. Sentiu tristeza e raiva. O que havia feito para ele guardar tanto ódio? — Por que tem tanto ódio? Nada fiz para alimentar tanta
raiva. Desejei estudar primeiro, antes de me casar, me formar... Formei-me em direito, pai! Não fui embora por motivos que poderiam te envergonhar, pelo contrário. Hoje sou professora de universidade, promotora pública e sou casada. Nunca me envolvi com nada ilícito, nada... Trabalhei duro, conquistei minhas coisas, casa, carro... Tenho uma vida boa! Qualquer outro pai sentiria orgulho! Ele desviou o olhar para a janela e continuou em silêncio. Eduarda não via mudança na expressão dele, era como se não estivesse ouvindo, mas sabia que estava, então continuou antes que fraquejasse. — Não sabe como foi duro para mim no início. Senti-me tão sozinha, vulnerável, desamparada. Impediu-me de falar com minha mãe e irmã, jogou-me ao vento à mercê da própria sorte! Precisei tanto de vocês! Senti tanta saudade de casa! Mas orava para Deus dar-me força, para poder suportar seu descaso e ele me ouviu. Colocou as pessoas certas na minha vida. Elas me ajudaram. Bruno foi um deles. Os ensinamentos que me deu quando criança também me ajudaram a alcançar meus objetivos. Enquanto falava Eduarda sentia a frieza de seu pai, ouvindo-lhe sem demonstrar nenhum afeto, raiva, nem outro sentimento. Não iria desistir. — Pensei tantas coisas para lhe dizer: queria jogar-lhe na cara tudo que conquistei e tudo que me fez passar, dizer-lhe tudo que poderia ter me acontecido de ruim... Mas ao olhar para você, meu coração pediu para ser verdadeira: deixar o orgulho e ressentimento de lado e dizer-lhe o quanto me fez falta! Que todos os dias, sem exceção de nenhum, pensei em vocês com muita saudade! Eu vou embora pai e não vou voltar mais. Não quero ser motivo de brigas entre você e a mamãe! Sei que ela sofre. Só não entendo uma coisa: como um homem que se diz tão religioso não consegue aceitar a filha cujo único sonho era estudar e ser alguém nesta vida? E mesmo se tivesse me perdido, andado pelo vale da sombra e da morte, não conhece a parábola do filho pródigo?
O olhar inexpressivo de seu pai encontrou-se com o dela. Havia conseguido com que ele a olhasse. — Meu marido tem HIV e é uma doença como outra qualquer. Abandonaria mamãe se ela tivesse câncer, diabetes? É só uma doença pai, e Deus mandou que amássemos o próximo como a nós mesmos na alegria e na tristeza; na saúde e na doença... Lembra-se? Só para saber, não tenho HIV. E Bruno é um homem de caráter, leal, responsável, médico, amigo... Poderia ficar aqui lhe dizendo todas as qualidades de meu marido por horas... Mas não precisa saber. Só interessa a mim, já que abdicou da minha vida há muitos anos. Ela deus dois passos e ficou mais próxima dele. — Não sabe como precisei de vocês e preciso. No entanto, me virei bem esses anos e saberei me cuidar sempre. Só quero que saiba que me dei bem na vida, apesar de seu esforço para que o contrário acontecesse. E lamento não poder fazer parte desta família que tanto amo. Lamento não poder receber sua benção, de ouvir seus conselhos, receber seu carinho. Lamento pelos anos que se passaram e nos tornamos estranhos um ao outro. Lamento saber que o senhor é preconceituoso e não terei oportunidade de mudar isto, nós que éramos tão próximos. Apesar de toda a dor, solidão, tristeza e raiva, existe um sentimento aqui dentro que teima em existir, mesmo sem eu saber o porquê, eu amo vocês! Novamente ele a olhou e neste instante Eduarda percebeu que a feição dura e fria de seu pai havia amenizado. — E antes de ir embora quero apenas lhe dizer mais uma coisa: perdoe-me por não ter sido a filha que desejou, mas não posso pedir perdão por ter ido atrás dos meus sonhos, porque não me arrependo disso. Eu não queria me casar sem amor com nenhum dos filhos de seus amigos fazendeiros! Você que tanto amou a mamãe e lutou para ficar com ela sabe o que estou dizendo. Eu queria viver o que estou vivendo, um amor para a vida toda. Eu encontrei pai! Encontrei um amor como sempre sonhei.
Eduarda mordeu o lábio superior. Precisava ir embora antes que se derramasse em lágrimas. — Adeus! Ela esperou por segundos, mas não ouviu um som da boca de seu pai, nem um gesto, uma expressão, um sorriso, uma lamentação: nada! Apenas a indiferença. Então se virou e foi em direção à porta. Antes de sair, virou-se para ele e disse: — Não guarde estes retratos de quando eu era criança. Para quê? Você a abandonou. Esta menininha não existe mais. Sou eu pai! Eu cresci e você nem ao menos consegue dizer o meu nome. Então não fique olhando para o que não existe. Você disse que me matou dentro de você, então me enterre. Ela se virou e foi embora o mais depressa que pode. Quando avistou o carro, viu Bruno indo em sua direção e ao se encontrarem, abraçou-o forte e chorou abundantemente.
XXIII
E
stavam em uma pousada bem aconchegante ainda no município de Delfinópolis. Passearam um pouco e depois se sentaram embaixo de uma árvore com vista para a cachoeira, que fazia parte das dependências da pousada. Sentaram-se na grama um ao lado do outro. — Desculpe! Ela o olhou sem entender o pedido de desculpas e encontrou o olhar firme e intenso de Bruno, que compreendeu sua expressão de dúvida e explicou: — Fiz você vir até aqui e viver tudo isto. Achei que daria certo! — Não tem que se desculpar. Eu queria vir. Tenho que te agradecer pela força e por estar ao meu lado! — Enquanto puder estarei do seu lado! – seu olhar ficou vago no espaço e Eduarda sentiu o tom fúnebre em sua voz e estremeceu. — Bruno, não gosto quando fala assim. Eduarda estava olhando para ele quando seus olhos fulguraram para ela. Segurou-lhe o queixo e seu olhar penetrou o dela. Bruno tinha o poder de comunicar-se com os olhos de uma forma que a fazia parar de respirar. Ficaram presos no olhar um do outro até que seu marido se aproximou o suficiente para beijá-la. Era sempre assim com ele. Parecia sempre a primeira vez! Uma emoção incontrolável e inexplicável e era difícil de descrever os sentimentos quando todos se misturavam intensamente. Com delicadeza, Bruno pousou a testa na dela e falou com os olhos fechados, como se estivesse tentando esconder a dor em sua fisionomia, mas era em vão, Eduarda sentiu a tristeza na sua voz.
— Eu te amo... — Sinto sua voz triste... O que está pensando? — Os pensamentos são individuais sabia? Alguns não devem ser compartilhados. — Eu sei, mas tenho certeza que estou neles, então de certa forma eles devem ser compartilhados comigo, não acha? – falou com sarcasmo, olhando fixamente o rosto dele, tentando avaliar sua reação. — Sou muito egoísta. E isto me deixa triste às vezes. Ela o olhou incrédula de sua revelação. Ficou em silêncio esperando que ele terminasse o pensamento para poder colocar os seus em ordem, pois suas palavras a pegaram de surpresa e não conseguia imaginar o motivo de tal afirmação. Ele a olhou enigmático, mas a expressão de dor ainda estava presente. — Não quero compartilhar isto agora. Estamos em um local lindo, com o som das árvores, da água, céu azul, pássaros, borboletas... E você! Cenário perfeito para um romance, não acha? — Concordo, mas não pense que esquecerei, voltarei a este assunto novamente. — Tenho certeza que sim – sorriu. Sabia que Eduarda não desistia nunca. Eduarda se sentiu desmanchar diante daquele sorriso. Era sempre assim! Não conseguia ficar imune diante dele. Sentia-se como uma adolescente tentando lidar com suas primeiras reações hormonais, e era assim mesmo! Seu olhar ficou preso no dele por segundos, então ela suspirou e tentou desviar para a paisagem, mas ele mais que depressa segurou seu queixo com delicadeza, mas firme, fazendo-a continuar olhando para ele. — Agora não tem como fugir mais de mim. — Não quero fugir. — O que deseja então, senhora Alcântara? – a tristeza havia desaparecido de sua feição e seus olhos estavam
iluminados com humor, como se estivesse desfrutando de alguma piada que só ele sabia. Antes que pudesse responder ele tomou seus lábios com voracidade, mas era tão doce, tão envolvente que ela se esqueceu do mundo e mergulhou em seus braços. Bruno colocou uma de suas mãos em suas costas, prendendo-a contra si e com a outra a fez se sentar no seu colo. — O que ia dizer? – sussurrou contra seus lábios, fazendo-a perder os sentidos. — Não me lembro. Estou à mercê dos seus desejos! Bruno espalhou beijos em seu rosto, pescoço e voltou para seus lábios. O sentimento era sufocante, intenso, voraz, completamente inebriante. Ele a deitou sobre a grama e ficou sobre ela e mais uma vez a beijou com fervor e Eduarda soube que jamais conseguiria resistir... — Eu te amo – sussurrou em seu ouvido. — Eu te amo... Tudo! Ele sorriu e deslizou pelo corpo dela. Como todos os momentos com Bruno, foi intenso, mágico e perfeito. Sentiu, depois de algum tempo abraçados, que suas funções cognitivas voltaram a ser reestabelecidas e que seu corpo novamente estava sobre seu controle. — Vamos tomar um banho de cachoeira? — Não trouxemos roupas de banho... Bruno! – ela entendeu seu olhar malicioso — Não está pensando em...? Está? — Hum... Sempre tão tímida... Com as palavras! Ela o olhou novamente, incrédula. — Bruno! O olhar gentil e intenso dele a fez amolecer novamente. Sentia que seus ossos ficavam moles quando ele a olhava daquele jeito. — Não tenho coragem. — Hum... Vou te ajudar – ele mais que depressa a pegou no colo e foi em direção à água gelada da cachoeira.
— Você é louco e se alguém aparecer? — Tenho certeza que se alguém vir tratará de ir embora sem ser percebido. Não vão querer atrapalhar este momento! Sentiram o gelo da água penetrar em seus ossos quando Bruno mergulhou de uma vez com sua amada nos braços. — De uma vez é melhor para acostumar com a temperatura da água mais depressa. O sol está quente, logo estaremos confortáveis. Eduarda estava retirando o excesso de água do rosto e cabelos e quando conseguiu respondeu: — Já estou confortável. Na verdade estou quente. Ele a fitou com seu olhar penetrante. — Preciso conferir – aproximou-se e a beijou. Ela sorriu e voltaram a desfrutar da tarde e da companhia um do outro. ooo Bruno e Eduarda haviam decidido passar a semana na cidade. Aproveitariam a viagem independente se o motivo pelo qual estavam ali não havia dado certo: reestabelecer vínculos com sua família. Mesmo assim iriam ficar e aproveitar o passeio. Estavam no restaurante do hotel, jantando quando uma mulher morena, de cabelos longos, olhos verdes e corpo escultural se aproximou da mesa onde estavam. — Doutor Bruno?! Não acredito! O mundo é mesmo pequeno! Os dois olharam surpresos para a mulher, que se aproximou sem perceberem. Eduarda tinha certeza que não a conhecia, mas Bruno, depois do espanto, sorriu para a bela mulher. — Oi Jaqueline! Que surpresa encontrar você aqui – levantou-se e beijou-lhe a face em cumprimento — Oh, esta é... — Eduarda! – ela o interrompeu e olhou para ela — Como vai? Prazer em conhecê-la. — Olá, J-Jaqueline?
— Oh sim. Desculpe, mas vi vocês de longe e não pude deixar de notar que estão usando alianças na mão esquerda. — Oh sim. Nos casamos! – disse Bruno — Sente um pouco conosco, Jaque! — Oh muita gentileza. Se não for atrapalhar os dois... — Não, não atrapalha – falou Eduarda observando os dois. — Então se casaram... Vejo que enfim encontrou sua Eduarda. — Enviei o convite para você. — Deve ter sido quando estava no Canadá. — Ah sim, Marcelo me contou que ficou um tempo fora. E você o que está fazendo? — Sabe como é. Acabei vindo para o interior, pagam muito bem por médicos especialistas. Então não pude recusar. — E como está fazendo sem o mar? — Isto sim é doloroso... Quando sinto muita falta vou até as cachoeiras daqui. São maravilhosas! Não é o mar, mas ameniza a saudade... Conhece alguma cachoeira daqui? — Sim – expressou Eduarda sem rodeios. — Eduarda nasceu nesta cidade. Seus pais moram aqui. — Hum... Você não mudou muito. Está com a aparência mais saudável. Sua pele está corada. Como vai sua saúde? – falou com tom misterioso em sua voz e Eduarda percebeu que ela sabia da doença de Bruno. Sentiu ciúmes. Quem era esta mulher? — Estou bem, Jaque. Bem mesmo. — O amor... Este sim salva! — Vocês se conhecem de onde? – perguntou Eduarda tentando parecer casual em seu tom de voz. — Nos conhecemos no Sul, em uma fase não muito boa. Ele era arredio, grosseiro, não permitia que as pessoas ultrapassassem uma linha, invisível, de aproximação, mas sou teimosa e não gosto de ouvir não, então acabamos nos tornando amigos... — Legal – foi o que Eduarda conseguiu dizer. — Vocês vão ficar até quando? — Até sexta pela manhã – informou Bruno. Havia a sombra
de um sorriso em seus lábios e seu olhar estava iluminado, divertia-se com a situação. Eduarda estava com as bochechas rosadas e só ficava assim quando estava tímida ou com raiva. Apostaria na segunda opção. — Se der passe lá no consultório para conversarmos, é bem no centro, não tem como errar. E se não der, foi muito bom revêlo. E não sei se lhe contei, mas meu telefone não mudou e não dói ligar para os amigos de vez em quando para dar notícias. — Desculpe... Mas não tive muito tempo e... — Eu entendo Bruno, mas de verdade, pode ligar para mim, pro Marcelo... Sentimos sua falta! Bruno viu sinceridade nos olhos dela. — Notícias do Marcelo? — Sim, nos falamos às vezes. E ele sente sua falta. — Vamos marcar um dia para nos reunirmos lá em casa – todos olharam para Eduarda surpresos — Podemos marcar um jantar com o Marcelo e você, se tiverem outros amigos... Faço questão de comemorar com os amigos de Bruno. — Comemorar o que amor? — Nosso reencontro, sua saúde, brindar a vida de seus amigos... — Acho uma boa ideia. — Então Jaqueline, anote meu telefone, pode me ligar para marcarmos. — Não vou me esquecer do convite. — Não é para esquecer! É sério. Jaqueline anotou o número em seu celular. — Vou dar um toque nele e assim salvar meu número. Bem... Já vou indo. Foi um prazer conhecê-la, Eduarda. E um enorme prazer em reencontrá-lo, Bruno! — Jante conosco! — Não obrigada! Já jantei. E sério, não tenho vocação para castiçal... – falou piscando para ele — Bom, vou ligar para o Marcelo e ver a folga dele com a minha e te ligo Eduarda, para marcarmos o jantar.
— Estarei esperando. Eduarda viu a mulher se afastar quando ouviu a voz de Bruno: — Psiu... Acho que eu vi uma cena de ciúme. Ela o fitou e respondeu: — Devo tentar elaborar uma história ou você me poupará e vai me contar o que aconteceu entre vocês? — Você fica linda assim e se não estivéssemos aqui, em público, juro que nada faria você sair dos meus braços – sussurrou em seu ouvido. — Não tenho dúvidas disso... E depois que terminássemos estaria embriagada de você, mas com certeza me lembraria de esperar pela história antes de dormir. — Não vai deixar pra lá, não é mesmo? — Hum-hum. Preciso saber onde estou pisando, já que eles vão jantar em nossa casa. — Foi ideia sua. — Prefiro o inimigo por perto – piscou ela sorrindo. Ele beijou-lhe os lábios. — Não são inimigos! — Não estou convencida disso. Bruno sorriu. — Estou ansiosa. Pode começar. Temos a noite toda! – continuou Eduarda. — Tudo bem, não tem muita coisa. Sabe como fiquei depois que lhe deixei. Estava arrasado e conheci Jaqueline lá no hospital. Não queria fazer amizades, não queria convívio com ninguém, queria trabalhar, trabalhar e trabalhar para o tempo passar mais depressa. Na verdade desejei sumir, assim a dor de tê-la perdido talvez desaparecesse. Era seco com ela, só falava o necessário, mas um dia estava almoçando no refeitório do hospital e ela estava lá. — Poderia resumir na parte em que ela se apaixona e... — Xiiii... Silêncio. Você quis ouvir, agora tenha paciência.
Bruno estava olhando para a bandeja sem fome. Nem sabia por que tinha ido almoçar, na verdade foi meio que mecânico quando o pessoal do plantão pediu que parasse um pouco e fosse almoçar. Estava perdido em seus pensamentos quando escutou uma voz feminina: — Posso me sentar aqui? — Na verdade eu prefiro... — Obrigada – ela se sentou, ignorando qualquer coisa dita. Bruno sorriu meio que irônico e zangado. — Não sei o que está pensando, mas posso lhe garantir que não sou boa companhia. — Não precisa dizer, você faz questão de demonstrar isso para todos. — Olha, não te conheço e não estou à procura de novas amizades... — Não quero novos amigos. E por favor, me deixe comer. Bruno ficou olhando por instantes e depois empurrou a bandeja e saiu sem nada dizer. Jaqueline apenas o fitou, mas logo voltou a comer. Bruno continuou trabalhando insaciavelmente e nem percebeu que sua saúde estava cada vez mais frágil. Os dias transcorriam na mais absoluta rotina: acordar, levantar, tomar uma xícara de café puro, escovar os dentes, vestir-se e trabalhar até o mais tarde possível, voltar para casa, tomar outro banho e deitar. Nem sempre conseguia dormir, pois seus pensamentos insistiam em torturá-lo com lembranças de sua amada e era muito difícil suportar estas lembranças doces e perfumadas. Conseguia ouvir a voz de Eduarda, sentia seu cheiro e as recordações eram quase palpáveis. Lágrimas insistiam em brotar, mas ele era teimoso e não permitia que caíssem. Havia escolhido esta vida e devia acostumarse a ela. Na verdade a vida estava sendo “madrasta”, então deveria se agarrar a única coisa que valia a pena ainda existir: a medicina. Ajudar vidas era muito gratificante! Poder ver os filhos abraçarem suas mães, maridos as suas esposas... E pessoas indo embora para o seio do lar com seus entes queridos... Algo que para ele, não seria possível. Para conseguir dormir fazia uso de medicamentos e assim entrava em sono profundo. Era o único momento em que, às vezes, em sua atual realidade, não sofria. No hospital Bruno se dedicava aos pacientes de
forma sobrenatural, assim ocupava sua mente e seus pensamentos conseguiam, por alguns momentos se afastar de seu passado tão lindo, tão feliz e que lhe fora arrancado de uma forma cruel. Ele havia decidido atuar apenas como neurologista em consultas ambulatoriais e passou a fazer uso das Precauções Universais e principalmente, a fazer restrições à realização de procedimentos invasivos, não por serem proibidos, e sim porque em caso de qualquer acidente com contaminação, a responsabilidade recaía sobre o profissional que a executou. Ele não queria infectar ninguém, sua missão era salvar vidas. Claro que isso também o deixou abalado emocionalmente, havia estudados anos para se tornar neurocirurgião e isto, o HIV, também tinha lhe tirado. Se as pessoas soubessem que mesmo tomando medicamentos, a vida como portador do vírus será sempre cheia de privações e lutas constantes, se preveniriam mais. Todos os dias, no refeitório, Jaqueline insistia em sentar-se à mesa dele. Até que chegou um dia em que ela o procurou no refeitório e não o viu... E assim foram os dias que seguiram. Ela o procurou pelo hospital, mas não o avistava mais, então perguntou ao companheiro de plantão do hospital e foi informada que Bruno estava internado em estado grave. Então, antes de terminar o plantão, foi visitá-lo. — Olá, doutor simpatia. Tudo bem? – ela lhe sorriu ironicamente. — O que faz aqui? — Sempre tão receptivo... — Falo sério. O que quer? Ela se aproximou e leu o prontuário que se encontrava em sua cabeceira. — Começo a entender seu ódio pelo mundo. — Não sabe o que diz. Ela o olhou, séria e disse: — Existem outras formas de suicídio mais eficazes, doutor. Deveria saber disso. Ele a olhou, indagando-a. — Ficar sem comer, trabalhar exaustivamente e com HIV. Devia saber que a morte seria dolorosa e lenta.
Ele continuou em silêncio. — Você deve estar com ódio do mundo para tal atitude... — Pare de falar como se me conhecesse. Não conhece! — Eu sei. É o que estou tentando fazer, descobrir você, mas construiu um muro entre você e a humanidade. Está difícil de ultrapassar. — Não tente. Vai se machucar e será em vão. — Também não me conhece, Bruno. Sou muito persistente e acho que será um longo período aqui neste quarto e acredito que mesmo o mais rude dos homens gostaria de alguém para conversar para ajudar a passar o tempo. Então... – puxou a cadeira para perto da cama dele e se sentou — Vamos fazer de conta que não tivemos esses momentos de conflito e estamos iniciando agora. — Iniciando o que doutora? — Uma amizade. — Não estou em busca de amigos. — O que está buscando? Ele pensou, respirou fundo e respondeu — Na verdade nada. — Como ela era? — Hã? — A mulher que te deixou neste estado de desejar a própria morte? — Do que está falando? — Um homem, quando mergulha na própria solidão e busca com todas as forças de sua alma a morte, é sempre por causa de uma mulher, uma grande paixão. — Foi mais que paixão... – ele falou com olhar perdido no infinito. Não queria se lembrar de Eduarda, era mais que tortura. Estava fazendo de tudo para se livrar das lembranças que o atormentavam — Não quero falar desse assunto! — Vai por mim. Fugir não vai te fazer sentir melhor. — Escute, por que cismou comigo? Não sei o que viu em mim, mas não posso oferecer-lhe nada! — Não desejo nada de você. Neste momento não! – ela o olhou firme nos olhos e sustentou o olhar quando ele também a mirou.
— Ok. Podemos conversar, mas não fique triste se não pudermos continuar... — Tudo bem doutor, vamos devagar. E assim foram todos os dias. Jaqueline ia visitá-lo sempre, conversavam e faziam palavras cruzadas e Bruno teve que admitir que foi melhor para ele tê-la por perto. — Você não se assusta com o fato de eu ser soropositivo. — Sou médica, por que deveria me assustar? — E por que invocou comigo? — Não são todos os dias que um homem com imagem de um deus fica no meio da gente. Já se deu conta de sua beleza, doutor? Ele a olhou e lembrou-se de Eduarda. Ela sempre lhe dizia aquilo. Não respondeu, só respirou fundo. — Sei que se lembra dela quando suspira assim. Ele a olhou novamente, mas desta vez havia a sombra de um sorriso em seus lábios. — Oh! Vejo que você está começando a melhorar. Vejo um sorriso se formando... Este foi outro motivo que me intrigou em você. Um homem divinamente bonito, que não usa deste artifício para sair por aí conquistando médicas, enfermeiras... Enfim, mulheres. Muito calado, misterioso, sério demais, sabe que esta é uma estratégia mais que eficiente de sedução? As mulheres deste hospital dariam qualquer coisa para ficar com você e você nem percebeu. — Acho que elas não agiriam assim se soubessem o motivo de tanto mistério – havia rancor em sua voz. — Pode ser, mas olhar para você faz a gente esquecer. Foi muito abençoado pela beleza. — Você também doutora. É muito bonita e atraente. E sei que sabe disso! — Tenho que usar as armas que tenho. — É realmente muito sedutora. Mas volto a dizer, não estou flertando com você. Não busco relacionamentos e não se esqueça de que tenho HIV. — Foi por isso que ela te deixou?
Bruno abriu a boca para bravejar, mas mudou de ideia. Não adiantaria. — Não vai me deixar em paz enquanto não descobrir, não é mesmo? Ela estava olhando e sorrindo para ele. — Ela não me deixou, eu a deixei. Jaqueline arqueou as sobrancelhas em sinal de espanto. Não esperava por esta resposta e assim ouviu Bruno relatar toda a sua história. — Pronto! Curiosidade saciada. Vai me deixar em paz agora? – sua voz deixou transparecer a dor e amargura que relembrar aqueles fatos lhe proporcionou. — Desculpe... Não queria que sofresse. E não poderia imaginar que havia algo tão trágico por trás desta muralha que construiu. Pensei que havia sido abandonado e ponto final. — É a primeira pessoa para quem conto esta história. E me sinto aliviado. — Não consigo imaginar tanto sofrimento... — Posso perguntar algo? Ela o olhou esperando. — Acha que fui um covarde? Acha que fiz certo? Novamente foi pega de surpresa. Respirou fundo e pensou um momento antes de responder. — Não acho que foi covardia, mas acho que se tivesse ficado, ela poderia se lembrar de você e este sofrimento poderia ser evitado. Porém, ela poderia não lembrar e você não precisaria fugir. — E vê-la vivendo sua vida sem recordar de mim... — Você poderia reconquistá-la. — Para quê? E se ela nunca se lembrasse? E eu tendo que contar que tenho HIV... Talvez ela não quisesse este relacionamento. — Acho que isso lhe doeu mais que qualquer outra coisa. — Pode ser. — Bruno vocês tiveram algo... Digo, ficaram juntos? – perguntou Eduarda, fazendo-o despertar de seus devaneios. — Para quê falar disso?
— Porque estou perguntando. — Eduarda, ela foi uma grande amiga, que me ajudou a passar aquele momento terrível. Ela e Marcelo foram os amigos que me ajudaram. Nunca foi mais que isso. Eduarda olhou para Bruno tentando desvendar aquele olhar, mas foi inútil. Sabia que não iria arrancar mais nada dele naquele momento, então, por enquanto, deixou o assunto pausado. Jantaram agradavelmente, passearam pela pousada que era toda iluminada dando um ar todo romântico à noite e foram dormir. — Bruno não o vi tomar os remédios hoje. Ele a olhou petrificado. Tentou ignorar o comentário e ela insistiu: — Você tomou os medicamentos hoje? Ele respirou fundo e desabafou: — Eu me esqueci de trazê-los. — Como assim? Você enlouqueceu? — Calma Eduarda. Não precisa ficar assim. Não vou permitir que nada aconteça a você. — Mas que merda é esta que está dizendo? Não estou preocupada comigo. Ele percebeu que ela estava bem nervosa. — Calma meu amor, minha carga viral está indetectável e posso ficar uns dias sem o medicamento... — É claro que não pode! Não sou médica, mas sei o que acontece quando a pessoa não toma sua medicação como devia, o que dá margem para que o número de cópias do HIV volte a crescer em seu organismo. E daí pode acontecer o azar de, nessa nova fornada de vírus, surgir alguma mutação resistente aos medicamentos que o paciente estava tomando. Que droga Bruno! Fico super preocupada com sua saúde e você deveria estar da mesma forma. Ele olhou-a com espanto e ternura. Ela estava mesmo inteirada do assunto e sabia tudo sobre o HIV, era muito
inteligente e estudiosa. Também pôde ver o quanto Eduarda estava apavorada. — Meu amor, não fique assim. Quando chegarmos, vou ao médico me certificar se está tudo bem. Não vou permitir que nada de ruim aconteça comigo. Ela o abraçou fortemente. — Fico louca com a possibilidade de perder você. Ele a abraçou com ternura e apertou em seus braços. Queria poder tranquilizá-la, mas não podia.
XXIV — Bom dia – sussurrou Bruno em seu ouvido pela manhã, beijando-lhe o pescoço. — Bom dia, amor. Por que acordou tão cedo? — Temos que ir. Ainda vamos passar na sua mãe. Ela se virou e espreguiçou-se. Ele estava certo, havia mais uma visita a fazer e a tensão voltou a tomá-la. Tomaram banho, se vestiram, arrumaram as malas e logo após o desjejum saíram. Chegaram logo na propriedade de seus pais e sem demora o carro estava estacionado diante da casa. Mais que depressa sua mãe e irmã apareceram e correram para encontrá-la no automóvel. — Oh querida! Tive medo que não viesse. — Mamãe, eu disse que vinha... — Eu sei. Oi Bruno, nos desculpe por aquele dia. — Está tudo bem, não se preocupe. Eduarda abraçou a irmã logo após abraçar sua mãe e entraram na casa. Conversaram bastante e sua mãe a convenceu a ficar para o almoço. Foi tudo agradável até a hora da partida. — Quando vou vê-la de novo? — Mamãe... Prometo telefonar. — Ester vai ficar com você quando for para a capital. — Que ótimo! Vou esperá-la. Vai ser bom. Por que não vai com ela? — Talvez. Preciso ver como as coisas estarão. — Mamãe, eu preciso ir. Quero chegar cedo a BH – estava ansiosa para voltar, para que Bruno retomasse o tratamento. Neste instante o barulho da porta se abrindo fez todos ficarem mudos. Ninguém disse, mas todos sabiam que era o pai de Eduarda, então ela achou melhor ignorar, antes que outra briga começasse.
— Então até logo. Ela se levantou, abraçou sua mãe e irmã, virando para a porta. Seu pai ainda estava lá, parado, estático. Bruno, próximo do sofá observando tudo. Ele caminhou e esticou a mão para sua sogra e cunhada despedindo-se: — Adeus. — Não. Sei que nos veremos novamente. Bruno olhou para ela e apenas sorriu. Caminhou primeiro para a porta, queria saber qual seria a reação de seu sogro, mas ele nada fez o deixando passar, mas quando Eduarda se aproximou, José falou: — Me acompanha até o escritório? Ela o olhou incrédula e Bruno parou neste instante, também o olhando. — Bruno me espere por alguns instantes – virou-se para dentro novamente e foi até o cômodo logo após a sala. Era o escritório interno de seu pai, não tão grande quanto o outro, mas bastante imponente. Seu pai entrou atrás de si, fechou a porta e caminhou até a sua mesa, sentou-se na cadeira. — Sente-se Eduarda. Ela obedeceu e ficou aguardando. — Não sei como dizer isso, sabe que não sou sentimentalista e nem romântico. Pensei muito em tudo que me disse. Só quero lhe dizer que não sinto e nunca senti ódio de você. Eduarda não conseguia pronunciar uma única palavra. — Quando vi você indo embora tão jovem, tão linda... Não tive raiva, tive medo. Você foi criada como uma boneca, uma princesa, tão protegida, tão mimada. Minha primeira filha, linda demais, todos os peões a cobiçando... Ouvia muitos cochichos a seu respeito. Outros rapazes querendo te conhecer e você uma menina com corpo de mulher – ele suspirou e encostou-se à cadeira. Passou a mão por entre os cabelos e voltou a falar — Não sabe como está sendo difícil para mim ter esta conversa, mas preciso que saiba que quando sofreu aquele acidente, quase morri. Eu estive lá.
Ela abriu a boca e arqueou a sobrancelha em surpresa total. Sua mãe havia lhe dito isto e acabou não dando importância, mas ouvir seu pai falar dava outro sentido. Por que nunca soube daquilo? — Não sabe como sofri. Encontrei-me com seu marido lá e ele me explicou toda a situação e eu... Eu... Enlouqueci. — Bruno sabia que foi me visitar? E por que ele nunca me contou? — Quando você se recuperou meu orgulho falou mais alto e o fiz me dar sua palavra que jamais te contaria. E pelo visto, ele cumpriu. — Por quê? — Me escute! Não me faça perder esta coragem, preciso terminar. Tive tanto medo das coisas que poderiam acontecer com você longe de casa, sozinha, em república, tão jovem e tão protegida, tão linda que achei que não saberia se virar sozinha. O mundo oferece muitos caminhos e vários são tão dolorosos, drogas, bebidas, orgias... Assassinatos! O mundo é muito cruel e só queria te proteger, então dificultei todas as coisas para que voltasse para casa. Eu queria que voltasse, mas você é como eu, tinhosa, orgulhosa... — Disse-me que não poderia voltar. — Era apenas para amedrontar... Claro que te aceitaria de volta e era o que eu queria. Mas aí você foi e deu um jeito de sobreviver. E conseguiu. Claro que me orgulhei quando se formou, quando comprou seu apartamento... Vi você crescer de uma forma que eu achei que seria incapaz, o que me fez sentir pior ainda. Saber que perdi parte de sua vida... E eu me vi endurecido pelo meu erro. — Mas você nunca demonstrou nada... E proibiu minha mãe, Ester... — Eu sei, um erro puxou o outro. Não quero me justificar, estou apenas contando o que aconteceu. Depois daquele acidente, conversei com Bruno no hospital e pude ver que havia
encontrado alguém que tomaria conta de você, mas aí você perdeu a memória, ele foi embora, sua mãe me relatava o que acontecia. Eu fingia não ouvir, mas prestava atenção em tudo. Depois veio aquele outro médico que iria se casar... — Augusto. — Pensei que estava bem novamente e então outra notícia! O rapaz sumido voltou: você não se casou com Augusto e se casou com Bruno. Não gostei dessa notícia. Esse rapaz te abandonou, por isso não deixei sua mãe ir ao casamento. Passa um tempo e eu leio nos jornais que o marido da minha filha estava dando palestras de como sobreviver à AIDS. Você nunca vai saber do que estou falando! Não tem filhos. Mas vou lhe perguntar: Acha que um pai fica feliz em ver sua filha casada com um homem que tem AIDS? — Isso não está em julgamento, eu... — Ele me disse que você não contraiu o vírus e que não vai permitir que... — Quando ele te disse isso? — Oh filha, preciso dizer que este homem é de caráter e de palavra. Sei que ele é um bom homem, mas você está correndo riscos. Eu liguei para ele assim que li o jornal. E mais uma vez combinamos que esta conversa era entre nós dois. Ela balançou a cabeça. — Não posso acreditar que as pessoas fiquem falando da minha vida sem me consultar. — Você é minha filha! — Não acha que é tarde demais para se preocupar? — Eu... — O que está pensando? Todos esses anos você foi omisso e agora quer me dar uma lição... Acho que não tem esse direito. — Sempre serei seu pai. — Eu sempre serei sua filha, mas não permitirei que tente ditar as regras agora. E não quero que fale de Bruno. Não sabe nada sobre nossa história então não pode entender. Agradeço a preocupação, mas a dispenso.
— Será que algum dia poderemos reconstruir os laços que se perderam? — Não sei. Mas acho que já começamos, não acha? E desejo que não piore as coisas. — Quero que saiba que não está mais proibida de visitar sua mãe nem o contrário. Eduarda sentiu que iria chorar e não queria que isso acontecesse de novo. — E gostaria que me perdoasse por não ter sido o pai que desejou. Bom, acho que é isso... — Claro que está perdoado, no entanto, as cicatrizes serão eternas. Precisamos dar tempo para os machucados sararem. Neste instante Bruno bateu na porta e após segundos entrou: — Desculpe, mas... — Por que não me contou que meu pai te ligou? E por que não disse que ele foi me visitar? — Eduarda seu pai me pediu e eu não queria que a situação entre vocês piorasse. Várias vezes desejei contar, mas precisava respeitar o tempo das coisas. Eduarda olhou para seu pai, depois para Bruno e saiu para o carro sem olhar para ninguém.
XXV
N
o finalzinho da tarde chegaram em casa. Eduarda, durante a viagem, manteve-se em silêncio, com o olhar perdido nas paisagens que via pela janela. Foram muitos minutos assim até que perguntou: — Para quê, Bruno? Por que tudo isso? Por que insistiu para que eu viesse? — Preciso ter certeza que você vai ter alguém para lhe ajudar quando eu for... Eduarda lhe lançou um olhar furioso, que se fosse capaz de se materializar, com certeza seria uma lança afiada. — Por que insiste em me lembrar... Por que almeja tanto que eu me acostume com a ideia de te perder? — Porque eu sei que é inevitável. Eduarda sentiu um nó na garganta e viu a raiva desaparecer em instantes e desejou abraçá-lo. — Não seja fraco agora! Você está bem, e pelo que sei sua vida será bastante longa. Ele nada disse, apenas sorriu-lhe. ooo — A popularização da camisinha e o acesso aos coquetéis antirretrovirais deram uma face mais amena à AIDS e para as novas gerações. Tanta facilidade, no entanto, abriu caminho para a falta de prevenção e de consciência de que a doença ainda mata e cria limitações físicas e sociais. Esse comportamento é reflexo do aumento de casos de HIV entre os adolescentes brasileiros e isso acontece porque essa população não vê mais
portadores do HIV à beira da morte como antigamente e não identificam a doença como algo que deve ser evitado a qualquer custo – Bruno fez uma pausa e continuou — Pessoas continuam morrendo de AIDS, inclusive no Brasil. O Auditório estava cheio. Bruno continuava com suas palestras e cada vez mais as pessoas participavam. Enquanto falava, atrás de si uma imensa tela projetava os dados, gráficos e imagens relativas ao assunto falado. — Existe um programa denominado de UNAIDS, que é um Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS, ele lidera e inspira o mundo para alcançar sua visão compartilhada de zero nova infecção por HIV, zero discriminação e zero morte relacionada à AIDS. O UNAIDS une os esforços com 11 organizações, ACNUR, UNICEF, PMA, PNUD, UNFPA, UNODC, ONU Mulheres, OIT, UNESCO, OMS e Banco Mundial, e trabalha em estreita colaboração com parceiros nacionais e globais para acabar com a epidemia da AIDS até 2030 como parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. De acordo com os seus dados, os avanços pelo mundo nos primeiros dez anos do século XXI perderam força. Dados revelam que se cerca de 43 mil novos casos eram registrados no Brasil em 2010, a taxa em 2015 subiu para 44 mil. Em termos globais, a agência de combate à AIDS aponta que o número de novas infecções pelo mundo caiu apenas de forma modesta, de 2,2 milhões em 2010 para 2,1 milhões em 2015. A plateia ouvia com atenção e alguns faziam anotações. — O Brasil e a América Latina, porém, caminharam em uma direção oposta. O poder da prevenção não está sendo realizado. Se houver um aumento de novos casos de infecção agora, a epidemia será impossível de ser controlada. O mundo precisa tomar medidas urgentes e imediatas, hoje são 36,7 milhões de pessoas vivendo com a doença pelo mundo e com 1,1 milhão de mortes. No total, a população vivendo com AIDS no Brasil passou de 700 mil para 830 mil entre 2010 e 2015, com 15 mil mortes por ano. Ainda, de acordo com a UNAIDS, o Brasil sozinho conta com mais de 40%
das novas infecções de AIDS na América Latina. Imagine que são 1,9 milhão de pessoas a cada ano desde 2010 em média que foram afetadas. A prevenção precisa ser fortalecida. Apesar dos avanços, apenas 57% das pessoas infectadas sabem que são portadoras do vírus e somente 46% dos doentes têm acesso a tratamento, cerca de 17 milhões de pessoas. Bruno fez uma pausa e bebeu um pouco de água antes de continuar. — Gosto de falar sobre os números, quantificar e mostrar que não é brincadeira. É muito sério – respirou fundo — Afirmo isso por conhecimento de causa, não apenas como médico, mas porque sou uma pessoa contaminada pelo HIV, faço parte desta triste estatística. Bruno ainda sentia um amargo ao dizer essas palavras. Sabia o que realmente significavam. — Gosto de dizer isso em todas as palestras. HIV não tem cara, não tem cor ou classe social. Qualquer pessoa pode ser contaminada. Uma única vez sem preservativos é o suficiente. A prevenção tem de ser hábito, rotina, fazer parte do dia-a-dia – continuou sua palestra com serenidade. ooo Passaram-se dois meses na mesma doce e mágica rotina. Estavam em casa no domingo à tarde quando Eduarda disse a Bruno: — Meu amor, quero conversar com você sobre algo. — Pode dizer! — Eu andei lendo sobre o assunto e descobri que é possível engravidar de um portador do HIV sem se contaminar e nem ao bebê e... — Jamais! Esqueça isso Eduarda. — Bruno, você sabe mais do que eu, a inseminação artificial quando a carga viral está indetectável e outros exames é possível...
— Mesmo assim, não tem 100% de certeza. E para mim 0,001 já é uma probabilidade alta demais para arriscar sua vida. — Esta escolha não é só sua. É a minha vida também. — Eu sabia que com o tempo este assunto seria um problema. Como outros que sei que ainda surgirão. Lembra quando conversamos sobre o fardo pesado, que você poderia ir embora e... — O que é isso Bruno, não quero me separar de você! — Você tem razão quando diz que tem direito de ser mãe e é verdade, mas não poderei ser o pai, compreende. Acho que chegamos ao fim da linha. — Não diga tolices. Você está sendo superprotetor e eu não suporto isso. Tenho o direito de escolher os riscos que vou correr. — Não depende só de você. Não quero ter um filho e não poder cuidar dele. Eduarda estava nervosa e sua voz já dava sinais de irritabilidade. — Você com esta conversa de novo!? Se fosse assim ninguém teria filhos, porque posso morrer amanhã e não vou cuidar dele... Se todos pensarem assim a humanidade será uma espécie extinta. — Você está nervosa... — Estou porque meu marido, o homem que amo, acha melhor que eu vá embora a ter um filho comigo. Bruno a encarou. — Meu maior desejo era ter você e termos nossos filhos. Não sabe como eu desejo ter um filho. Vejo meus colegas de trabalho relatando suas histórias, e quando vamos ao shopping, os pais com seus filhos no colo, outros andando rápido atrás de seus pequenos, que já sabem andar e saem correndo. Vejo nos parques... E sinto um vazio que sei que jamais será preenchido. Sinto como se estivesse vendo a vida passar de uma janela e que não posso ir até ela... Sinto que não vivo plenamente. — Você pode sim... Esta é com medo! Deixe-me falar.
— Então fale! — No nosso caso, você é portador do vírus, então existe um processo de lavagem do sêmen que possibilita às mulheres como eu, que não tem HIV, a terem filhos com homens soropositivos, a partir do espermatozoide do marido e terem filhos sem o vírus. A técnica consiste na seleção dos espermatozoides e introdução diretamente dentro do óvulo. Essa técnica é conhecida como ICSI – Eduarda leu a palavra que escreveu de caneta em sua mão — Injeção Intracitoplasmática de Espermatozoide permite que apenas um entre em contato com o óvulo. Ou seja, fertilização in-vitro e com a técnica de ICSI o risco de transmissão do vírus é desprezível. — Hum... — Nesses casos, tanto o homem quanto a mulher que desejam se submeter a tratamentos como estes, devem estar em dia com a administração dos antirretrovirais, ter os níveis de carga viral indetectável e, ainda, um acompanhamento médico especializado e rigoroso – ela parou por um momento — Mas que bobagem, eu te explicando uma técnica da medicina! Você sabe melhor do que eu. — Desprezível não é sinônimo de inexistente. — Você sabe que é possível. Do que tem medo? — Você não sabe o que diz... Não sabe como é viver com um som em sua mente todo o tempo: tic-tac, tic-tac, tic-tac... E que a qualquer hora, sem você fazer nada para isso, você vai ouvir “Bum”. Então não me venha falar sobre medo, porque ele, eu tenho que vencer todos os dias quando desperto. — Eu não... — Preciso dar uma volta. Sozinho – Bruno respirou fundo e saiu. Eduarda percebeu que seu conto de fadas ainda não tinha chegado ao final... Ainda estava no começo. A única coisa que conseguiu fazer foi deitar no sofá e permitir que as lágrimas rolassem e sem sentir o tempo passar, adormeceu.
Quando Bruno retornou se sentou na outra poltrona, de frente para a que Eduarda dormia. Ficou observando sua amada, sentiu uma dor imensa apertar-lhe o peito e permitiu que lágrimas caíssem, mas depois se recompôs. Tinha que estar inteiro para quando ela acordasse. Não demorou muito, Eduarda acordou e quando viu Bruno sentado olhando para ela, levantou-se num sobressalto. — Não vi você chegar... Ele observou os olhos inchados pelo choro e respirou fundo. — Desculpe por hoje. Não queria que chegássemos neste ponto, mas eu preciso lhe dizer uma coisa. — Eu também preciso me desculpar, sei que esse assunto te perturba e... Eu li que é um método seguro! Sei que é caro, mas podemos economizar e planejar! — Eduarda me escute. Minha carga viral não está mais indetectável. Está subindo. Ela ficou paralisada. — Quando foi seu último exame? — Há uma semana. — E só me diz hoje? Não em... — Estava tudo tão perfeito que não queria que acabasse. — Mas e agora? — Estou tomando novos medicamentos, por isso os enjoos... Ela correu, sentou-se em seu colo e o abraçou forte. — Não quero que adoeça Bruno, me prometa que não vai desistir. — Não consigo desistir de você. Por isso quero viver! — Me desculpe por hoje, não vou voltar a falar desse assunto. Ele sorriu. Sabia que ela nunca desistiria, mas no momento bastava. — Vou pensar e se tudo voltar a ficar bem, a gente pode conversar sobre o assunto – disse para confortá-la e ela o beijou carinhosamente.
XXVI — Bruno, estou preocupado. Mesmo tomando o 3 em 1, o vírus está conseguindo se reproduzir. Vou prescrever para você o que chamamos de milk-shake. Suas células CD4 estão baixas, o que significa... — Estou perdendo a guerra. — Não. Ainda não! Mas temos que ficar atentos. — Vou tomar ainda mais remédios... — Cerca de vinte comprimidos divididos nos dois grupos: inibidores de transcriptase e de protease. Eduarda ouvia a tudo atenta. Fazia três meses e a carga viral de Bruno estava subindo rápido demais, até que não conseguiu ficar mais calada. — Eu não entendo doutor, ele estava com carga viral zero e agora está subindo de uma vez... O que houve? — Eduarda, a carga viral de Bruno não estava zero e sim indetectável. O vírus não desaparece do organismo, senão poderíamos dizer que encontramos a cura do HIV. Quando a carga viral se torna indetectável, não quer dizer que o tratamento possa ser interrompido ou que o paciente esteja curado da infecção. Os medicamentos atuam no sangue, que pode ser chamado de seção periférica do organismo. O HIV também está no compartimento que didaticamente podemos chamar de central, localizado basicamente no tecido linfoide. Os dois compartimentos estão associados e um dos maiores reservatórios de HIV do organismo está no tecido linfoide do trato gastrointestinal, onde a combinação de antirretrovirais não atua. Eduarda ouvia em silêncio, preocupada. — O coquetel age basicamente onde o vírus está se replicando ativamente. Nessa parte central, eles estão em estado latente. Não
quer dizer que estão absolutamente sem se replicar, mas que fazem isso a uma velocidade muito menor do que o vírus periférico. Se o tratamento for interrompido numa situação em que, por exemplo, a carga viral está indetectável, as células em replicação latente são jogadas na corrente sanguínea, o processo é acelerado e a infecção volta com mais força, ou em caso de uma resistência secundária ou terciária. Vira uma bola de neve. Ele fica lá em algumas células e não podemos esquecer de que se trata de um vírus com capacidade de se tornar resistente aos medicamentos. E aí, quando isso acontece, eles voltam a se multiplicar. Estou modificando as combinações e acredito que teremos êxito, mas você Bruno, não vai ter como fugir das dores de cabeça, náuseas e diarreia. Vamos controlar também seu colesterol e aumento de peso, porém tudo isso é compensado pelo sucesso do tratamento. — Tudo bem. Eu entendo perfeitamente. — Bruno, não pode esquecer, nem deixar de tomar nenhum comprimido. — Não vou fazer isso. Não pretendo brincar com a minha vida! ooo Bruno rolava na cama de um lado para o outro, parecia ter pesadelos horríveis e suava bastante. Eduarda se sentou na cama e ficou olhando por segundos, até que o chamou, despertando-o. — Acorda meu amor. Ao colocar a mão nele, ela se assustou. Bruno estava ardendo em febre! Ele acordou e sorriu para ela. — Bruno, você está com febre! — Não se preocupe, vou tomar o remédio e vai passar. — Pego para você. Vou pegar outra blusa também, a sua está encharcada de suor. Depois de tomar o remédio, trocar a blusa, Eduarda se deitou perto dele e o abraçou.
— Eduarda, não fique tão preocupada. Estou bem! — Amanhã vamos procurar o doutor Clovis. Ele precisa saber disso! Bruno respirou fundo e nada disse. Abraçou-a junto ao seu peito e ficou quieto, até que ela adormeceu. Pela manhã, acordaram e logo após o café foram ao hospital. — Bom dia doutor Clóvis – disse Eduarda preocupada. — Bom dia. O que houve para vocês estarem aqui tão cedo? Bruno passou a mão pelos cabelos e nada disse. Respirou fundo e continuou em pé, parado em frente ao médico. Eduarda puxou a cadeira, sentou-se e foi logo falando: — Bruno ardeu em febre esta noite, teve calafrios e suou ao ponto de encharcar a camisa. Teve até que trocá-la. Ele está com febre ainda... Doutor Clóvis arqueou as sobrancelhas e olhou para Bruno, passou a mão pelos lábios e tentou passar uma tranquilidade que contradizia seu olhar. — Vou pedir alguns exames e gostaria que fizesse imediatamente. Assim que estiver pronto voltamos a conversar. Ele prescreveu os exames e os entregou a Bruno, que pegou os papéis e enfim se pronunciou. — Vou fazer os exames e vou trabalhar. Depois volto aqui. — Bruno! Você vai trabalhar? – perguntou atônita Eduarda. — Vou. Enquanto eu tiver forças, desejo trabalhar. Não me peça para fazer outra coisa Eduarda, porque acredito que em um futuro muito próximo não poderei mais exercer a medicina. Então sabem onde me encontrar. — Bruno... — Vou fazer os exames querida, não se preocupe! – ele se aproximou, beijando-lhe levemente os lábios e saiu. Eduarda, por instantes, ficou em silêncio, olhando para a porta por onde Bruno saiu. Como se a ficha estivesse caindo, ela dirigiu-se ao doutor Clóvis: — Ele está piorando?
— Eduarda, a febre não é um bom sinal, mas preciso esperar os exames. Tente ficar calma. — Eu não entendo. Ele estava bem. O que houve? Por que ele começou com estes sintomas...? — Olha Eduarda, a medicina ainda tem muitas sombras em relação ao HIV/AIDS. Não temos ainda, muitas explicações. Até hoje, 30 anos depois de registrados os primeiros casos da doença, ninguém encontrou a resposta. Algumas pessoas, contudo, podem ficar décadas sem desenvolvê-los, ainda que não tomem remédio. São os “sobreviventes de longo prazo” (SLP), que representam 5% do total de infectados. Segundo o virologista Jay Levy, professor da Universidade da Califórnia (Ucla) e um dos pioneiros na identificação o HIV, a chave para o enigma provavelmente está nas células de defesa do organismo chamadas linfócitos T CD8. Elas funcionam como “soldados”, atuando na linha de frente contra vírus, bactérias e outros invasores, mas dependem de ordens enviadas pelas células CD4, os “generais”, sem as quais não conseguem desempenhar esse papel. É justamente nelas, as CD4, que o vírus da AIDS se instala para se multiplicar. Como o trabalho das CD8 é combater células infectadas, o resultado é uma espécie de curto-circuito no exército de defesa. Chega um momento em que o número de células CD4 presentes no sangue é tão baixo, em decorrência do ataque das CD8, que o sistema imunológico fica vulnerável a infecções oportunistas. É quando os sintomas da AIDS começam a se manifestar. Os sobreviventes de longo prazo, porém, conseguem manter a defesa natural contra o vírus durante muitos e muitos anos. Nessas pessoas, as células CD8 produzem um fator antiviral capaz de bloquear a replicação do HIV sem matar as CD4 infectadas. Acreditamos que é o estudo deste fator de onde poderá sair uma vacina efetiva contra a AIDS nos próximos anos. — Estou entendendo... — Antes, acreditava-se que o vírus destruía o sistema imunológico de todos os portadores. Agora se sabe que uma
parcela deles pode sobreviver por décadas sem os sintomas. É por isso que estimulamos as companhias farmacêuticas a pesquisarem também o sistema imune e não apenas o vírus. Enquanto uns apostam nas CD8, outros cientistas acreditam que a resposta está no CCR-5, um receptor que atua como mensageiro entre as células. Por causa de um “defeito” genético, as células dos sobreviventes de longo prazo não têm esse receptor. E, sem ele, o HIV não consegue invadi-las. O problema dessa teoria, no entanto, é que ela explica apenas uma parte da história. A falta do CCR-5 pode proteger as pessoas da infecção pelo tipo R5 do vírus, afirmam pesquisadores da Ucla, mas, quando elas são infectadas pelo tipo X4, que usa o receptor CXCR-4r para se espalhar, a progressão da doença ocorre normalmente. Uma terceira hipótese está relacionada às células dendríticas plasmacitóides (PDC). Elas produzem a proteína IFN-a, que também seria capaz de bloquear o vírus. Uma proteína desse tipo pode ser a explicação para o misterioso caso das “prostitutas de Nairóbi”. Nos anos 80, centenas de quenianas ficaram conhecidas assim porque mantinham relações com homens infectados pelo HIV, sem camisinha, mas não desenvolviam AIDS. Por outro lado, pessoas que estão saudáveis, reagindo bem aos medicamentos, começam a ter suas defesas invadidas e começam a manifestar os sintomas da AIDS. Eduarda tentava acompanhar o raciocínio do médico. Eram muitos termos científicos, mas o médico pacientemente continuou: — Como eu gostaria de ter a resposta para sua pergunta. Com certeza eu seria um homem mundialmente famoso! — Vou esperar os resultados e... — Posso te dar um conselho? Ela o olhou firmemente, esperando. — Vá para casa, para o seu trabalho. Deixe eu e o Bruno conversarmos sozinhos. Somos médicos e juntos podemos encontrar a melhor forma de tratamento para ele. Percebo que ele se sente um pouco desconfortável ao seu lado...
— Mas só quero ajudá-lo e saber o que está acontecendo... — Sei disso e Bruno também sabe. Deixe que ele te conte. Sinto que ele não quer que você se desespere... Para ele isso vai ser pior. Ela mordeu o lábio superior em sinal de preocupação. Sabia que algo estava acontecendo e eles queriam esconder, mas por outro lado, fazia sentido o que o médico estava falando, e se era para o bem do Bruno, iria esperá-lo em casa. — Você pode dizer a ele, por favor, que fui para o trabalho e depois o espero em casa? — Claro que sim. Não fique brava comigo! Só quero o melhor. — Eu sei. Se Bruno se recusar a me contar... — Sim, mas eu tenho certeza que Bruno nunca vai esconder de você nada. Você conhece seu marido melhor do que eu. Eduarda estava realmente preocupada. — Obrigada doutor.
XXVII — Bruno, não quero perder você. Ele a olhou com ternura e respondeu: — Você não vai me perder. Nosso amor será eterno. Tenho certeza. — Você fala como se fosse uma despedida. Isso me apavora... — Sei que é estranho, e não pense que não estou assustado, mas estou doente Eduarda. E conhecemos esta doença. Talvez eu... Não melhore. Precisa se preparar para isso. Os olhos de Eduarda estavam repletos de lágrimas. Não queria chorar diante de Bruno, mas não estava conseguindo se manter forte. — Lembra uma vez que conversamos sobre vida após a morte? – perguntou Bruno. Eduarda olhou para ele tentando buscar em sua mente a conversa que tiveram. — Penso nela agora mais do que tudo – continuou ele — Nunca pensei muito no que aconteceria após a morte, mas quando você se sente perto dela é difícil não imaginar. — Pare com esta conversa. — Você me disse que a morte não era o fim. Que nós iríamos descansar com Cristo para um dia ressuscitar e morarmos no paraíso. — Foi o que aprendi na igreja de meus pais na minha infância. E certamente acredito nisto, sou uma mulher de fé, cristã, que acredito na Bíblia como palavras de Deus. E sim, é isto que acredito. — Pois de todas as teorias, descobri que esta é a que eu acredito. Recuso-me a acreditar que morremos e vamos ficar
neste mundo perambulando, lembrando e sofrendo pelas pessoas que amamos e não podemos mais tocar, ouvir, falar... Já pensou que agonia eterna morrermos e termos de ficar aqui vendo tudo que não podemos mais ter? Ou desfrutando de uma paz e uma imortalidade e vermos nossos entes queridos passando por dificuldades, problemas, tristezas e não podermos ajudar? Ou até mesmo alegrias e não poder compartilhar? Também não quero acreditar que acabamos assim, que como poeira, deixamos de existir. Tem que ter um sentido para tudo isso. — Nunca havia pensado dessa forma. — Agrado-me da ideia de descansar em Deus e não ter memórias. De não ficar apegado às coisas terrenas que ficaram. E que um dia, vamos nos reencontrar, mas até lá, as pessoas aqui seguem sua vida e as que partiram descansam. — Bruno... — Você me ensinou isso, Eduarda. Eu não me esqueci, então não se esqueça também. — Só que quem fica não perde as lembranças... — Sei que vai encontrar uma forma de conviver com elas. — Você está com uma conversa que não me agrada. Não quero ficar me preparando para sua perda, porque não vou te perder. Eduarda saiu do quarto e foi para o jardim. Precisava ocupar sua mente e adorava cuidar das plantas quando estava deprimida. Assim que saiu, Bruno respirou fundo e socou a cama. Estava com raiva, com medo! Então sentiu as lágrimas rolarem. Estava mais difícil do que imaginou, precisava ser forte diante de Eduarda, no entanto, não sabia mais de onde tirar forças. Não queria morrer, mas não estava mais reagindo aos medicamentos. Era difícil estar ao lado da mulher que ama e saber que não poderia mais ser para ela o protetor, o marido, o amante... Era difícil não sentir pena de si mesmo. ooo
Era ainda bem cedo e Bruno já estava correndo ao redor da lagoa da cidade, era uma paisagem muito bonita. Precisava manter a forma, a lipostrofia era algo que não desejava sofrer, os medicamentos faziam com que houvesse um acúmulo de gordura no abdômen e ele sentia que já tinha problemas demais para enfrentar e não queria ter mais um com a sua vaidade. Após sua corrida de uma hora e alguns exercícios localizados, alongou-se e sentou na orla da lagoa e ficou ali, observando a paisagem e as pessoas que passavam. Sentiu-se vivo quando a brisa morna tocou-lhe o rosto e recordações de momentos felizes lhe invadiram os pensamentos. Os minutos passaram e ele nem percebeu. Tinha urgência em reviver aquelas lembranças. Sentia que estava perdendo o controle sobre sua vida, de seu destino e por mais que lutasse não teria outro caminho. Decidiu que não se entregaria, mas que também não iria se desesperar, estava feliz e não queria abrir mão desta felicidade! Tinha uma escolha e seria lutar por sua vida, no entanto, viveria a vida da forma que ela se apresentaria para ele. Levantou-se e foi embora observando cada detalhe. As crianças brincando, casais namorando, pessoas indo para o trabalho, outras correndo como ele fizera, passeando com seus animais de estimação... Enfim, pessoas que viviam e ele também ainda estava vivo. Precisava viver sem pensar na morte, apesar de achar que era praticamente impossível.
XXVIII
B
runo retomou suas palestras. Havia tido uma melhora e sua carga viral estava novamente baixando. — O resgate histórico somente tem importância quando os fenômenos relatados podem oferecer alguma ilustração ao momento atual e muita coisa aconteceu mais que esses breves relatos que fiz. A pessoa contaminada pelo HIV pode ficar até dez anos sem qualquer manifestação que indique a presença do vírus. Infelizmente a identificação da doença geralmente ocorre tardiamente, quando o organismo já está bastante prejudicado pela viremia e apresenta uma série de infecções oportunistas devido à baixa imunidade; a deficiência nas defesas no organismo, situação que provoca um elevado índice de morbidade e mortalidade. As estatísticas indicam que a identificação tardia ocorre em cerca de 40% dos casos notificados. Para evitar tais situações, o Ministério da Saúde tem promovido campanhas anuais denominadas “Fique Sabendo”, em que as pessoas são chamadas para realização do teste sorológico. A verdade é que não temos esta cultura e ninguém faz este exame como um exame de rotina. Até mesmo o exame está inserido em um contexto de preconceito: “Eu?! Fazer exame de HIV? Não preciso!” Percebem o contexto? É claro que o teste de AIDS não deve ser feito de forma indiscriminada e a todo o momento, não é isto que estou dizendo. Bruno olhava sério para a plateia. — O aconselhável é que quem tenha passado por uma situação de risco, como ter feito sexo desprotegido, faça o exame. É importante informar aqui que também tivemos evolução neste quadro de exames. Até recentemente só havia
a possibilidade de realização dos testes por coleta de sangue e envio para laboratórios, o que poderia ocasionar muita demora no fornecimento dos resultados para as pessoas. Houve época em que a demora chegou há noventa dias; agora existe o teste rápido, realizado no ambulatório de atendimento, demorando menos de uma hora para apresentação dos resultados. Os testes rápidos são realizados a partir da coleta de uma gota de sangue da ponta do dedo, que é colocado em dois dispositivos de testagem e para chegar ao resultado, o profissional que realiza o teste segue um fluxo determinado cientificamente. Se os dois dispositivos tiverem os mesmos resultados, o diagnóstico já é fechado. Porém, se houver discordância entre os resultados, é feito outro teste com um terceiro para confirmação. Assim, o resultado tem a mesma confiabilidade dos exames convencionais e não há necessidade de repetição em laboratório. O neurologista percebeu surpresa nos rostos dos expectadores. — Esse método permite que, em apenas meia hora, o paciente faça o teste, conheça o resultado e receba o serviço de aconselhamento necessário. Distribuído gratuitamente para serviços de saúde da rede pública, este teste rápido é utilizado na maior parte das ações do “Fique Sabendo” do Departamento de DS, AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, principalmente devido a sua agilidade e praticidade. Os testes de coleta com envio a laboratórios têm dado respostas em uma semana ou duas... – ele deu uma pausa e bebeu um pouco de água — Os testes para detectar o vírus HIV são realizados pelo Sistema Único de Saúde, o SUS, sigilosa e gratuitamente nos Centros de Testagem e Aconselhamento, CTA, que são unidades da rede pública. Laboratórios da rede particular também realizam estes testes. Ao receberem o resultado, os pacientes passam por um processo de aconselhamento, feito de forma cuidadosa, com o objetivo de facilitar a interpretação do resultado.
Mais uma vez terminou outra de suas palestras. Bruno sempre permitia que seus ouvintes perguntassem o que quisessem, pois considerava enriquecedor por envolverem e tornarem a palestra interativa. Para o público era ótimo, porque era nesse momento que pontos controvertidos ou discrepantes serão esclarecidos. Um dos ouvintes fez uma pergunta: — Boa noite Dr. Bruno, primeiro quero agradecer pelas informações que nos trouxe e gostaria de esclarecer uma dúvida. É verdade que quando uma pessoa contaminada pelo HIV, com a carga viral indetectável, pode ter relações sexuais sem medo, pois não transmite o vírus? Bruno respirou fundo. — Os últimos estudos demonstraram que soropositivos que tomam sua medicação adequadamente e baixam sua carga viral para níveis indetectáveis não transmitem o vírus HIV para outras pessoas. O estudo concentrou-se exclusivamente em casais homoafetivos masculinos da Tailândia, Brasil e Austrália. Nenhuma transmissão do HIV foi observada entre os 343 casais de homens gays soro discordantes, em que o parceiro soropositivo fazia tratamento antirretroviral e tinha carga viral indetectável. O dado foi obtido pelo estudo Opposites Attract, divulgado no fim de julho na 9ª Conferência Internacional da Sociedade de AIDS sobre Ciência do HIV, a IAS 2017, em Paris. Foram quatro anos da pesquisa. Os especialistas avaliaram que a probabilidade de alguém contrair HIV quando faz sexo com um soropositivo que está com a carga viral indetectável está entre zero e 1,56%, ou seja, tão pequena que chega a ser desprezível, comprovando que quando o paciente inicia o tratamento com antirretrovirais caem, em até 90%, as possibilidades de transmissão do vírus, pois a contaminação está diretamente ligada à quantidade da carga viral. Este estudo indicou que não há transmissão quando a carga viral estava abaixo de 200 cópias por ml. Repetindo –frisou novamente Bruno — Enquanto a carga viral estiver abaixo de 200 cópias/ml é considerada “viralmente reprimida” e, tal como indetectável,
não pode transmitir sexualmente o HIV. É importante também informar que os tipos de exposição sexual estabelecem diferentes categorias de risco de contaminação, podendo-se afirmar que o maior risco de transmissão em relações sexuais está associado a relações anais receptivas sem preservativos. No entanto, embora esteja demonstrado que o uso da TARV e a CV sanguínea não detectável reduzem o risco de transmissão sexual do HIV entre casais heterossexuais soro discordantes, com as evidências atualmente disponíveis, não é possível afirmar que esse risco esteja completamente eliminado. — É importante que o parceiro soropositivo permaneça sob cuidados médicos regulares e não deixe de tomar seus medicamentos antirretrovirais, para que sua carga viral permaneça sempre indetectável. Por isso a campanha acredita que esta informação promova uma busca das pessoas com HIV a começar e a permanecer em tratamento antirretroviral, a cuidar da própria saúde e evitar a transmissão do vírus. Quanto mais as pessoas vivendo com HIV, que conhecem seu status estiverem em tratamento bem-sucedido, mais saudáveis serão e mais próximo chegaremos ao fim da epidemia. Vou frisar aqui então a questão: a campanha define uma carga viral indetectável como inferior a 40 cópias/ ml de sangue. Enquanto uma carga viral abaixo de 200 cópias/ ml é considerada viralmente reprimida e, tal como a indetectável, não pode transmitir sexualmente o HIV. Em outras palavras uma pessoa vivendo com HIV com uma carga viral consistente de 200 cópias/ml ou menos não pode transmitir o HIV. Espero que tenham sido esclarecidas todas as dúvidas! Vou deixar meu e-mail e assim poderão entrar em contato comigo e me perguntar algo mais. Na medida do possível, eu responderei. Agradeço a presença de todos e não esqueçam: prevenir para quem não tem HIV é fundamental e para quem tem, tratamento é a solução. Bruno encerrou a palestra ao som de aplausos. Sentia-se cansado fisicamente, contudo estava extremamente feliz.
ooo Bruno não parava com as palestras. Resolveu tirar uma licença a que tinha direito no hospital e se dedicava cada vez mais à nova tarefa, que não deixava de ser rentável. Empresas, prefeituras e estados o convidavam para palestrar e quando ele percebeu estava sendo uma atividade lucrativa e cresceu mais do que o planejado. Havia sido convidado por uma ONG para palestrar em São Paulo no município de Franco Morato, no entanto, esta ele decidiu doar seu tempo e a verba que seria seu pagamento para a própria ONG fazer outras ações necessárias. — Boa noite a todos, eu estou muito feliz de estar aqui hoje com vocês. Agradeço imensamente o convite e a confiança depositada em mim. Ele sempre iniciava as suas palestras contando um pouco de sua vida, como havia se contaminado e assumindo ser soropositivo. — Quando a gente assume, naturalmente vai ter uma perda. Tem gente que vai rejeitar e se afastar, mas é um alívio e a sensação de liberdade é indescritível! Não falo para ninguém o que deve ser feito. As pessoas têm direito ao sigilo e se não quiser contar também. Cada um escolhe a forma que achar que será melhor. Para mim esta é a melhor. Bruno sentia-se cada vez mais cansado, porém lutava contra este cansaço e seguia: — No início da epidemia não havia a preocupação com a vida das pessoas contaminadas, porque o diagnóstico da contaminação era o vaticínio de morte breve. A história mudou em 30 anos, não se fala mais de sobrevida a partir do diagnóstico de AIDS, mas de qualidade de vida, pois as pessoas estão vivendo cada vez mais, se propalam os cuidados para uma vida normal, apesar ainda dos problemas com a medicação. Hoje temos medicamentos gratuitos, a lei federal Nº 9.313, de 13 de novembro de 1996, dispõe sobre
a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do HIV e doentes de AIDS, sendo periodicamente revisada e atualizada a lista de medicamentos abrangidos pela lei... Bruno também discursou muito sobre o preconceito. — O preconceito contra pessoas que vivem com HIV é tanto, que a descriminação foi definida como crime através da Lei nº 12.984, de 2014, e pode levar à prisão por 1 a 4 anos e multa. O estigma faz com que mais de 30 anos depois do seu surgimento, muitas pessoas não saibam sequer diferenciar as siglas usadas para descrever o vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS). Uma pessoa pode ser portadora do HIV e não ter AIDS, e muita gente não sabe disso. Bruno estava cansado, mas continuava com entusiasmo. — Pesquisas indicam que o preconceito é o maior mal para quem vive com HIV. Apesar das incertezas e desconfortos de ter uma doença que pode levar à morte e para qual ainda não existe cura, pacientes e profissionais de saúde concordam que o preconceito e o estigma da doença são obstáculos a serem vencidos. O medo da reação da sociedade ainda faz com que muitas pessoas não façam o teste, escondam sua sorologia e, pior, não façam o tratamento. Estamos diante de uma doença biológica e outra social. Esta é uma das causas sociais que precisam de atenção nas lutas políticas: o combate a discriminação e a intolerância, resquícios das reações chocantes ao primeiro diagnóstico da doença no país no início da epidemia. É preciso ter esperança, traçar metas e trabalhar constantemente. Nunca desistir! Estava ansioso para voltar para casa. Sentia saudades de Eduarda.
XXIX
B
runo não estava se sentindo muito bem com os novos medicamentos, mas mesmo assim insistia em trabalhar. O trabalho o fortalecia e o fazia se sentir vivo, produtivo e que ainda não era o fim. Trabalhava em casa, em um artigo que iria publicar quando sentiu que seu corpo estava ficando paralisado. Não esperou muito e foi depressa para o hospital, estacionou o carro e sentiu dificuldades para andar e mesmo assim insistiu. Quando sentiu uma repentina e excruciante dor lombar unilateral, tão forte, parou de caminhar por instantes e percebeu que sentia dificuldades para respirar e também enjoos. Com dificuldades conseguiu chegar à recepção. — Doutor Bruno, o Senhor está passando mal? – perguntou uma enfermeira que o avistou. — Sim, me ajude, por favor. Chame o doutor Clóvis... Bruno se sentou em uma cadeira de rodas que estava perto e a enfermeira saiu às pressas. Quando o doutor Clóvis chegou apressado e assustado, Bruno relatou com extrema dificuldade tudo que estava sentindo e foi rapidamente conduzido ao ambulatório e o médico pediu vários exames com urgência. — Ligue para Eduarda, por favor! – pediu Bruno. — Vou pedir para ligar. — Acho que eu estou com algum problema renal, tenho todos os sintomas. — Deixe de ser médico, agora você é paciente. Já pedi os exames e prescrevi medicamentos para a dor, logo estará melhor. ooo
Eduarda chegou assustada ao hospital e logo o Doutor Clóvis a chamou para conversar. Ela foi apreensiva para sua sala e se sentou quase que mecanicamente, vendo-o se sentar a sua frente, em sua cadeira e respirar fundo. — Não tenho boas notícias. — Onde está Bruno? — Calma, ele está bem. — Não me esconda nada. — Não vou esconder. Vou explicar o quadro para que possa compreender tudo, Ok? — Sim. — A infecção pelo HIV está associada a variadas formas de acometimento renal. Vou te explicar de modo simplificado o caso de Bruno. Ele está com nefrotoxicidade por medicamentos. Seu exame deu alterações renais, considerando-se que frequentemente é possível a coexistência de mais de um fator desencadeante. Diante de todo o quadro clínico dele chegamos a este diagnóstico. Alguns antirretrovirais podem causar estas alterações agudas da função renal. Em adição à nefrotoxicidade direta, causada por estes medicamentos e as alterações metabólicas relacionadas, podem apresentar impacto potencial sobre a função renal. — E o que isso quer dizer? — Bruno está com uma insuficiência renal aguda, causada provavelmente pela nefrotoxicidade pelo uso dos antirretrovirais. — O que isso significa? — Insuficiência renal aguda é a perda súbita da capacidade de seus rins filtrarem resíduos, sais e líquidos do sangue. Quando isso acontece, os resíduos podem chegar a níveis perigosos e afetar a composição química do seu sangue, que pode ficar fora de equilíbrio. Melhor dizendo, é a perda das funções dos rins. No caso de Bruno, ele teve uma perda rápida de função renal que está abaixo de 20%, o que requer que ele faça diálise imediatamente. — E ele vai melhorar?
— Eduarda, ele está com um comprometimento grave nos rins. Está à beira de uma falência renal, o que significa que seus rins não estão funcionando. Neste caso, a hemodiálise é feita com uma máquina de diálise que bombeia o sangue do paciente para um dialisador, às vezes chamado de rim artificial e, depois da filtragem, de volta para o corpo do paciente. A diálise é muito eficaz para insuficiência renal. Pacientes que, sem o tratamento, poderiam morrer de insuficiência renal podem continuar vivendo de forma produtiva. É preciso deixar claro que a diálise não cura a doença do rim, é apenas uma substituta para a função normal do órgão. Da mesma forma, a diálise não trata qualquer dos outros problemas de saúde que o paciente possa ter, como o HIV. Vamos tratar primeiro a insuficiência renal, tentar revertê-la e simultaneamente vamos tentar tratar a causa da insuficiência, que no caso dele é a nefrotoxicidade. Como isto será feito? Vamos trocar os medicamentos para HIV de Bruno. — Novamente? — É preciso. Ele está sendo acompanhado por mim, que sou o infectologista e por um nefrologista e tem uma equipe médica inteira cuidando dele agora. Também é bom você saber que a diálise pode ter efeitos colaterais, os mais comuns são relacionados a problemas com a remoção dos fluidos. Alguns pacientes podem experimentar quedas de pressão arterial ao fazer uma diálise, outros reclamam que se sentem abatidos, fatigados ou excessivamente cansados depois do tratamento. — É muito grave doutor? — Sim, mas estamos fazendo o melhor. — Posso ir vê-lo? — Eu preciso contar... ele está na UTI. Eduarda sentiu o salgado das lágrimas em seus lábios. Não conseguia dizer nada. — Vou pedir para que aguarde o horário da visita, porque infelizmente a UTI tem regras rígidas, mas pode ficar tranquila, ele está sendo bem cuidado e monitorado.
— Qual o horário da visita? — Às 15 horas. — Ainda são 10 horas da manhã... — Eu sei, mas é preciso esperar. Ela esperou, tomada de angústia, medo e desespero. Então se lembrou de ligar para sua sogra e Alice. Como que em uma eternidade as horas passaram. A mãe e a irmã de Bruno chegaram e Eduarda deixou que elas entrassem antes e visitassem Bruno. Alice foi a primeira e quando saiu sua mãe entrou. — O achei bastante abatido e inchado. Eduarda nada disse. Sentia-se tensa demais e qualquer coisa a faria desabar em lágrimas. Quando a mãe de Bruno saiu, percebeu que estava chorando e Alice a abraçou. — Vou entrar agora e não precisam me esperar. Leve sua mãe para casa, Alice. Eduarda realizou todo o procedimento de visitas em UTI e entrou na sala até que o avistou. Foi preciso muita força e autocontrole para não se desesperar. — Oi amor, como você está? — Estou bem. Foi apenas um susto. — Como foi que aconteceu isso? Bruno relatou o ocorrido. — Acredito que serei transferido para o quarto logo. Ela o beijou. — Bruno vocês estão me escondendo alguma coisa? — Claro que não, amor. E você está chorando por quê? — Estou com medo. — Não tenha. — Nossa, precisa mesmo ficar ligado a todas estas máquinas? — Estar internado em uma UTI indica que o caso inspira cuidados. O paciente que precisa de uma unidade de tratamento intensivo é aquele que necessita de monitoramento constante dos seus sinais vitais, do estado hemodinâmico e da função
respiratória. Por isso estou aqui, para ser monitorado todo o tempo. Não se assuste com a quantidade de máquinas ligadas e dos procedimentos médicos invasivos. São apenas para poder fazer com que eu volte logo para casa. — Me assusta muito. — Para tentar diminuir esse trauma, vou explicar o princípio das máquinas que estão ligadas em mim. Todo paciente internado em uma UTI precisa estar monitorizado. O monitor serve para a equipe médica avaliar de modo contínuo os sinais vitais do paciente. Através de eletrodos, aparelhos de pressão automatizados e sensores ligados ao paciente é possível acompanhar a frequência cardíaca e respiratória, a pressão arterial e a saturação de oxigênio do sangue. O monitor cardíaco também nos fornece um traçado simples de eletrocardiograma, onde é possível identificar o surgimento de arritmias cardíacas e é programado para alarmar sempre que houver acelerações ou desacelerações da frequência cardíaca, picos hipertensivos ou hipotensão, queda da saturação de oxigênio no sangue. — Bruno você é o paciente agora! E fala como se estivesse falando de outras pessoas. — Só para não assustar você – ele sorriu e piscou para ela — Continuando, bombas infusoras – apontou para o aparelho — Pacientes internados em unidades de terapia intensiva frequentemente necessitam de drogas infundidas de modo contínuo. A bomba infusora permite a administração venosa de drogas em ritmo constante e podem ser usadas para administração de insulina, antibióticos, diuréticos, aminas vasopressoras, drogas usadas para aumentar a pressão arterial em caso de hipotensão persistente, sedativos, hipotensores, etc. Muito usada para tratamento do choque que visa o aumento da pressão arterial, de modo a garantir uma boa perfusão de sangue para os órgãos. Esta elevação da pressão arterial é feita através da infusão de drogas. — Estou entendendo...
— As mais usadas são a noradrenalina e a dopamina. Como ambas são drogas muito potentes e de curtíssima duração, elas precisam ser administradas continuamente e com velocidade estável. Assim como podemos tratar hipotensões com medicamentos, um pico hipertensivo de difícil controle também pode ser controlado pela administração venosa de drogas através de uma bomba infusora. Deste modo, conseguimos administrar drogas muito potentes para uma redução gradual e controlada da pressão arterial, sem risco de causar uma hipotensão. Ela também é usada nos casos em que precisamos manter os pacientes sedados, como naqueles que estão em ventilação mecânica, que não é meu caso, ainda – nesta hora Bruno suspirou. — E nem vai precisar. — Não me interrompa, minha aula ainda não terminou – sorriu feito criança e apontou para o parelho de ventilação mecânica — Uma das principais indicações de internação em uma UTI é a insuficiência respiratória, com necessidade de ventilação mecânica, um respirador artificial. Se o paciente tem uma doença pulmonar e/ou cardíaca, que dificulte sua respiração, o mesmo precisa de auxílio mecânico para não evoluir para parada respiratória. O ventilador mecânico é uma máquina que garante a entrada de oxigênio nos pulmões dos doentes que apresentam insuficiência respiratória, isto é, incapacidade de manter boa oxigenação dos tecidos. Eduarda balançou a cabeça, concordando. — O respirador mecânico é capaz de fornecer oxigênio mesmo que o paciente já não consiga respirar por conta própria. Para se acoplar o paciente a um ventilador mecânico é necessário primeiro que o mesmo seja submetido à intubação das vias respiratórias. A intubação orotraqueal consiste na introdução, pelas vias aéreas, de um tubo plástico semirrígido, para que este possa ser ligado ao respirador. Pacientes que necessitam de ventilação mecânica por vários dias são normalmente submetidos a uma traqueostomia. Deste modo, o tubo pode ser
ligado diretamente à traqueia, não precisando mais passar pela boca. Este procedimento reduz os riscos de complicações, como lesões das cordas vocais, pneumonias e extubações involuntárias. — Posso concluir que se você não está ligado nele é um bom sinal? Ele sorriu, acariciando suas mãos. — Sim – olhou para ela com grande ternura — Continuando. Punção de veia central — mostrou uma agulha que estava ligando dois caminhos, um de cor azul e outro vermelho, que se encontravam em um só, ao lado do ombro, abaixo da clavícula — Este é o cateter implantado na veia subclávia direita. O paciente que precisa de UTI costuma não estar em condições de tomar comprimidos, além disso, muitos dos medicamentos usados em situações graves só existem na forma de administração venosa. Isto significa que o paciente em uma unidade de terapia intensiva recebe diariamente dezenas de medicamentos através de suas veias. Este é o meu caso. Nem todas as drogas podem ser administradas nas pequenas veias periféricas que temos nos braços. Dois exemplos comuns são as drogas para aumentar a pressão arterial, usadas no choque circulatório e a nutrição parenteral, usada quando os pacientes são incapazes de se alimentar. Nestas situações, o tratamento só pode ser administrado em veias de grande calibre, que costumam ficar em áreas profundas do corpo. As veias profundas mais utilizadas são a veia subclávia, a veia jugular interna ou a veia femoral. O médico escolhe uma destas veias e implanta um cateter para poder administrar as drogas necessárias. O cateter venoso profundo também pode ser usado nos casos em que não se consegue mais puncionar uma veia periférica dos braços ou das pernas. Se o paciente precisa de drogas intravenosas e não apresenta veias adequadas nos braços, uma veia profunda pode ser a solução. Ele respirou mais uma vez. — E o cateterismo vesical. Está vendo esta bolsa coletora aí? – apontou para a cama — Pois é, está ligada em mim. Todo paciente com sinais de instabilidade hemodinâmica é submetido
ao cateterismo da bexiga. Deste modo, conseguimos aferir precisamente o débito urinário do paciente. Além de ajudar na avaliação do funcionamento dos rins, que é um dos primeiros a sofrer quando há instabilidade... A quantidade de urina produzida em 24 horas nos auxilia no planejamento do volume de líquidos que será infundido ao longo do dia. Pacientes graves, com instabilidade dos sinais vitais, costumam apresentar insuficiência renal aguda, ou seja, ausência de funcionamento dos rins. Um dos sinais de sofrimento dos rins é a diminuição da diurese, ou seja, da produção de urina. Quando o paciente está com um sonda urinária é possível medir a produção horária de urina, sendo fácil detectar alterações da diurese. E este aparelho grandão aqui é o de diálise. A insuficiência renal aguda é uma complicação comum nos pacientes em estado crítico internados em um CTI. Quando os rins param de funcionar, é preciso iniciar um tratamento chamado hemodiálise. A máquina de hemodiálise procura fazer o papel dos rins, retirando as toxinas do organismo e controlando o volume de água e os níveis de eletrólitos do sangue. O paciente ficará fazendo hemodiálise até que os seus rins mostrem sinais de recuperação. As sessões de hemodiálise podem ser contínuas, isto é, por 24h ininterruptas, ou por apenas algumas horas durante o dia, dependendo da gravidade do caso. Existem vários outros procedimentos médicos invasivos realizados em uma UTI. Estes são apenas os mais comuns. Os procedimentos que descrevi visam monitorar e substituir essas funções até que o organismo seja novamente capaz de desempenhar esse trabalho por conta própria. — Bruno pare de falar como se não fosse você. — Já disse, apenas para não assustar você. — Essa é a vantagem de ter um marido médico. Você vem visitá-lo e ele te dá uma aula sobre os procedimentos que estão realizando nele – seu tom irônico não passou despercebido. — Querida, é apenas para descontrair você! Não quero você triste e nem preocupada!
— Você está inchado. — É normal. O edema é nada mais do que excesso de água na pele. Pacientes com doenças graves costumam apresentar um quadro de inflação em todo o organismo. Nossos vasos sanguíneos apresentam poros microscópicos que permitem a passagem de água de dentro para fora e de fora para dentro, conforme o organismo ache necessário. Quando estamos com um estado de inflação sistêmica, esses poros aumentam de tamanho, permitindo a passagem além do desejado de água do sangue para os tecidos, principalmente para a pele. Além da inflamação dos vasos sanguíneos, mais três fatores contribuem para o edema: redução da produção de urina, o que provoca retenção de líquidos; Administração excessiva de líquidos através de soros e medicamentos; Diminuição das proteínas no sangue, que ajudam a segurar a água dentro dos vasos. Apesar de assustar, o edema da pele por si só não traz grandes riscos. Ele é basicamente uma consequência do estado grave do paciente. Conforme há melhora do quadro clínico, o organismo consegue restaurar a distribuição normal da água corporal. Em geral. Não se preocupe com isso, quando receber alta, já não estarei mais inchado. Toda esta conversa fez com que Eduarda não percebesse o tempo passar, o que era exatamente a intenção de Bruno! A enfermeira chegou e avisou que o horário havia acabado e ela não podia mais ficar. — Sou vou me despedir e já vou - informou. Docilmente a enfermeira se afastou. — Claro que te ver assim me assusta, me apavora. Mas o que mais me aflige é não poder ficar com você. — Eu compreendo você. Vai passar rápido. Para mim também é difícil. — Eu sei que sim. Voltarei amanhã. Queria passar a noite aqui... — Nem pense nisso. Não deixarão você vir aqui
novamente, então não tem necessidade de ficar. Descanse. Estarei aqui em boas mãos e logo estarei de volta. Foi apenas um susto. — Bruno, nem ouse desistir de lutar. Tenha fé! Ouviu? — Você me ensinou a ter fé, e eu tenho! — Fique com Deus meu amor! – ela o beijou e saiu. ooo Eduarda saiu do hospital e foi para casa. Não havia condições de trabalhar. Estava atordoada demais e o doutor Clóvis deu-lhe um atestado médico para três dias. Um vazio imenso a fez chorar ao entrar e saber que Bruno estava no hospital. A casa vazia parecia grande demais. Tomou um banho e tentou assistir TV, ler um livro, mas nada conseguia fazê-la desligar-se de Bruno e por fim, foi para internet ler sobre o caso de seu marido. Acabou ficando mais assustada, porque parecia só encontrar tragédias, nada de coisas boas, esperanças, então levantou e tomou um remédio para dormir. Deitou-se e esperou o sono chegar. ooo Já havia passado três dias da internação de Bruno e Eduarda teve uma boa surpresa quando chegou ao hospital. — Ele vai sair da UTI e vai para o quarto. — Isso é bom doutor? — Sim, é um progresso. Ele a conduziu até o apartamento para onde Bruno seria levado. — Pode esperar que daqui a pouco a enfermeira vai trazê-lo. Ela se sentou na poltrona. Quinze minutos depois Bruno estava entrando no quarto conduzido por uma enfermeira em uma maca. Seu coração acelerou de alegria, emoção
e amor. Seus olhares se encontraram e ele piscou para ela sorrindo. Estava abatido. Depois de instalado em seu leito a enfermeira se ausentou. — Que bom vê-la! Estou com saudades. Ela correu para perto dele e o abraçou. Então percebeu que não retiraram o cateter. — Cuidado. Ainda preciso dele. Continuo fazendo hemodiálises. — Eu sei. Doutor Clóvis me explicou. Também estou com saudades – beijou-o. — Acho que vou ficar um tempo ainda aqui. Ela o olhou, preocupada. — Fico pensando... Você como médico sofre mais por saber o que está acontecendo? Ele a olhou surpreso. — Não havia pensado desta forma ainda. Pode ser, às vezes o conhecimento nos leva à loucura. — Por que você não escreve? — Escrever o quê? — Sua história, seus relatos, suas memórias, seus sentimentos... — Por que faria isso? — Ajuda a passar o tempo e quem sabe depois não fazemos uma compilação, editamos e publicamos um livro. — É, não é má ideia – falou desanimado. — Bruno, estou falando sério. — Eu sei meu amor, mas talvez não tenha tempo para isso. — Não fale assim, sabe que me apavora. Bruno então se lembrou de sua amada no hospital e então se deu conta que sabia o que ela estava sentindo. Decidiu que não iria mais causar-lhe este medo. — Tudo bem, posso escrever algumas coisas. — Vou providenciar o material para você. Eduarda o olhou com imenso amor.
— Ah! E vamos ter que adiar o jantar que havia marcado para este final de semana. Seria uma surpresa. — Que jantar? – ele a olhou curioso. — Lembra-se de sua amiga médica? Jaqueline? – fez uma expressão de ciúmes. Ele abriu a boca para dizer algo, mas ela não permitiu, falando primeiro. — Estava tudo certo para eles irem lá em casa este final de semana. Ela, Marcelo e Alice. Os três amigos que cuidaram de você. Ele sorriu da cena. — Obrigado querida. Quando sair daqui você remarca – seu olhar estava longe! — Claro! — Não precisa ficar o dia todo aqui. Eu estou sendo bem cuidado. — Eu sei. Não preciso, mas quero, faço questão e não abro mão. Eu já dei entrada ao meu pedido de férias-prêmio e conversei no setor com meu superior e será providenciado em caráter de urgência. — Ok. Não vou discutir com você – ele começou a tossir. Eduarda se assustou. Por que estava tossindo? O problema não era renal? Ela o observou atentamente. Mesmo abatido, a beleza era uma marca da pessoa de Bruno. Segurou suas mãos e o olhou com amor. ooo Bruno havia aceitado a sugestão de Eduarda de escrever. Contar seu relato pessoal de como enfrentou e enfrenta o HIV. Ele no início achou bobagem, não levava jeito para escrever, mas acabou aceitando para ajudar a passar o tempo e acabou virando uma compulsão.
Quando a epidemia de AIDS surgiu no mundo na década de 80 era uma sentença de morte. Não havia remédios, tratamentos, cura... A doença mostrou seu lado cruel. Mas hoje, na 4ª década, tentase passar uma imagem diferente daquela apavorante. O que mudou depois de tantos anos e com tantos estudos? A medicação te dá uma expectativa de vida com qualidade e adia a temida morte. Talvez além de uma sentença, entrelinhas de morte, você tem uma nova perspectiva de vida: a do preconceito. Família, amigos, trabalho... De você mesmo! Não tem como fugir. Para onde você for sempre haverá um medo, uma dúvida, um olhar de condenação e pena! Ou você enfrenta isso ou vive se escondendo. É preciso lutar contra o preconceito, e mais ainda investir na prevenção. Mais do que isso, é preciso urgentemente lutar por pesquisas que busquem a cura pela infecção do HIV. Há 20 anos estamos praticamente parados. Interesses econômicos, violação dos direitos humanos implicados com a epidemia... A indústria dissemina a ideia de que os remédios controlam a doença, mas na realidade não é bem assim! Só quem convive todos os dias com esta bomba ameaçadora dentro de si sabe o tamanho da pressão e da responsabilidade que tem nas mãos. Existem medicamentos que te possibilitam uma boa qualidade de vida e que se consiga viver, no entanto, você tem hora pra dormir, pra comer, tem que fazer academia... É uma vida controlada pelo vírus, ou então, ele te mata! Não é possível recuar, voltar atrás. A batalha está sendo travada e só terá um destino: a batalha final. Sinto que estou nesta batalha e definitivamente não vejo muitas possibilidades de sair vitorioso. Os dias se passaram e Bruno continuava internado e Eduarda não saía de perto um só dia. Cuidava dele com amor e dedicação incondicional. Desejava e precisava acreditar que Bruno iria se recuperar, não podia perdê-lo e desta vez seria diante de seus olhos, de forma irreparável. Não podia nem ao menos pensar nesta possibilidade. Percebia que Bruno cada dia estava mais abatido, via
nitidamente o progresso da doença. Continuava com as hemodiálises, estava mais magro, sem viço, abatido, um pouco amarelo e muito cansado. Não perdia a alegria, a sensibilidade, não ficava nervoso, mas percebia a tristeza em seu olhar. Eduarda acompanhava tudo de perto e cada dia ela sentia mais medo de perdê-lo. Precisava ter esperanças. Bruno teve outro ataque de tosse, seca e rasante. Ela correu para ajudá-lo. Havia perguntado ao médico destas crises de tosse e ele explicou-lhe que era efeito colateral de medicamentos. — Obrigado meu amor, por me ajudar mais uma vez. Ela apenas sorriu. Estava realmente preocupada com ele. O HIV já foi detectado em diferentes concentrações de materiais ou líquidos orgânicos: no sangue, no esperma, nas secreções vaginais, na saliva, na urina e no leite materno. Porém, ainda não se comprovou qualquer caso de infecção por meio de saliva ou urina. Comprovadamente, pode se dar por meio de transfusões sanguíneas, pelo uso compartilhado de seringas ou agulhas e nas relações sexuais, além da transmissão vertical, no parto e leite materno. O vírus HIV ao atacar o sistema imunológico responsável por defender o organismo, normalmente as células mais atingidas são os linfócitos T CD4+, alterando a estrutura genética, o DNA dessa célula, onde o HIV passa a fazer cópias de si mesmo. Depois de se multiplicar, rompe os linfócitos em busca de outros para continuar a infecção... Bruno escrevia sem parar. Havia encontrado uma ocupação para os longos dias naquele hospital. ooo Eduarda havia conversado com o médico, que explicou que Bruno estava com complicações renais sérias. — Eduarda a doença renal impacta o organismo de diversas maneiras. Especialmente quando há uma liberação de
proteínas na urina, a proteinúria. Pode ocorrer uma calcificação excessiva nas artérias, causando doença arterial periférica e complicações de má circulação. É muito comum que pessoas com doença renal tenham anemia, como é o caso de Bruno. Por isso ele está com sintomas de fadiga e dificuldades respiratórias. Por isso, também a falta de apetite, náuseas, subnutrição e perda de massa muscular. Também estamos tratando de uma hipertensão, que é uma das causas mais comuns de insuficiência renal e, uma vez que a função do rim é reduzida, a hipertensão arterial pode ser mais difícil de controlar. Por esse motivo, a diálise está sendo feita para realizar algumas das funções dos rins normais, predominantemente a eliminação de substâncias tóxicas do sangue e o excesso de líquidos no corpo... O que também gera um abatimento, uma fadiga. — Me diz doutor, ele está correndo risco de morte? — Eduarda, posso dizer que estamos fazendo de tudo para melhorar o quadro clínico dele, mas não se esqueça de que ele tem HIV, o que complica todo o processo. Eduarda fechou os olhos. Sentia que o quadro dele era grave... Não podia perder a fé.
XXX
B
runo estava escrevendo quando foi pego de surpresa. — Olá Bruno! — Jaqueline! Ela se aproximou e o abraçou. Respirou fundo e começou a ler as prescrições médicas e olhar o soro... — Pare de agir como médica! Sente-se aqui. Ela obedeceu. — Você veio sozinha? — Não, Marcelo também veio. Já está chegando. E você está só? — Eduarda foi lanchar e já volta. — O que foi? Por que está aqui desta vez? — Nefrotoxicidade associada à TARV e complicações – percebeu o olhar de preocupação da amiga. — Gostaria de ajudar de alguma forma! — Eu agradeço. Só de ter vindo já é uma ajuda. — Bruno, sabe do meu afeto por você. Somos amigos apesar de tudo. Marcelo entrou nesta hora. — Tenho a impressão de já ter visto esta cena antes. — Olá campeão! Cumprimentaram-se. Também leu as prescrições e sondou os medicamentos. — Que mania de médico. Pare com isto! — Com certeza que iríamos mesmo esta semana te visitar, mas não era nestas circunstâncias. Os três conversaram um pouco como antes e, quando Eduarda entrou, espantou-se ao vê-los ali.
— Que surpresa! — Não podíamos deixar de visitar o Bruno. Temos uma amizade muito bonita e queremos que ele saia logo daqui para podermos comemorar. Bruno sentiu-se alegre com a presença dos amigos. Têlos ali por perto demonstrava o carinho, cumplicidade e solidariedade dispensada à ele. Amava aqueles dois de uma forma especial! Olhou saudoso para ambos e com imensa ternura. Encontrou o olhar de Jaqueline, que havia sido sua âncora quando estava prestes a afundar. Nada disseram um ao outro. Assim foi com Marcelo, que além de amigo, era médico e sabia das complicações envolvidas. Não precisavam dizer nada. Se entendiam no olhar. No livro O Pequeno Príncipe disse bem: “As coisas mais belas do mundo não podem ser vistas ou tocadas, elas são sentidas com o coração”. E ali, naquele quarto de hospital, estava uma das mais belas coisas do mundo: a verdadeira amizade, daquelas que vão durar até que ele pisque pela última vez. Todos sorriram. Era a esperança e desejo de todos.
XXXI
E
duarda havia ido para casa, enquanto Alice estava com Bruno. Relutou em ir, porém aceitou diante da insistência da cunhada. — Bruno você não pode desistir de lutar! — Estou lutando minha irmã. Contudo, sei que não terei êxito. — Você não pode pensar assim. Lembre-se da outra vez que cuidei de você! Estava bem ruim e você se recuperou. — Se acontecer algo pior comigo, me prometa que cuidará da mamãe. — Pare com isso. Você vai sair do hospital. — Claro que vou! – seu olhar estava perdido no espaço. Uma incógnita. — O que escreve tanto neste caderno? — Eduarda me sugeriu escrever sobre AIDS e HIV, é meu relato. A ideia dela é publicar um livro. — Legal! E você já escreveu muito? — Quase tudo! Diversos estudos da literatura nacional e internacional apontam que a adesão ao tratamento medicamentoso nos tratamentos de doenças crônicas como hipertensão, diabetes, obesidade, etc, gira em torno de 50% de pessoas que conseguem utilizar corretamente 80% da medicação. E para aderir a um tratamento é preciso considerar a adoção de novos hábitos de vida, como os exercícios físicos e a alimentação saudável, isto faz o índice cair para próximo de 22%; praticamente apenas uma em cada cinco pessoas segue a prescrição completa do tratamento. Na terapia antirretroviral se exige das pessoas vivendo com HIV um nível de 95% de utilização correta dos medicamentos, ou
seja, é imprescindível que siga à risca as orientações médicas com medicamentos e hábitos de vida, além de outros fatores recomendados para o enfrentamento da doença. Este fator, no entanto, interfere no tratamento e esta aderência diminui à medida que a complexidade e a duração aumentam. O regime proposto interfere nas atividades, estilos de vida e nos hábitos alimentares, além dos inconvenientes efeitos. Ou seja, é uma exigência difícil de aceitar como possível para pessoas comuns, tantos são os fatores contrários a uma adaptação plena e a todas as recomendações técnicas. Apenas um terço das pessoas em tratamento chega perto dos índices desejáveis, o que leva a denominar como desafio urgente a necessidade de implantação de monitoramento no tratamento antirretroviral, devido às possibilidades de falência terapêutica. Porém não existe um meio fácil e seguro de se monitorar a adesão, visto que a pessoa não vive só para tomar os antirretrovirais, tem mais coisas na vida, convive com todo tipo de gente e situações das mais diversas. Na verdade, o que importa mesmo para o médico é a resposta terapêutica, são os objetivos de melhoria de saúde sendo percebidos nos exames de contagem de carga viral e de contagem de linfócitos CD4+, mas nem sempre os resultados dos exames corroboram a aderência ao procedimento medicamentoso; algumas pessoas, apesar da precisão na administração dos medicamentos continuam com carga viral alta e CD4+ baixo, por outros fatores que não a medicação em uso, e outras com razoável adesão conseguem resultados melhores. Eu estou neste índice que apesar da precisão na administração dos medicamentos, continuo com carga viral alta e CD4+ baixo após um período de carga viral indetectável. Precisei trocar os medicamentos e meu corpo me traiu, ou seja, esses vírus estão ganhando uma guerra dentro de mim. Este tratamento já levou meus rins e acho que de forma ermanente. Desejo não definhar, não ficar nesta cama por muito tempo. Se tenho que ir, que seja breve e rápido. Lamento por tudo que deixarei aqui, porém não vou me apegar nisto para ficar sofrendo nesta cama e fazendo as pessoas sofrerem ao meu redor. Este assunto é delicado... O fim da vida é um assunto espinhoso. Não chega só para quem viveu uma vida plena, tranquila, e agora se despede tranquilamente
da existência. O fim da vida pode ser, como no meu caso, uma luta contra uma doença incurável, contra dores insuportáveis e sem alívio, contra a falta de esperança. E a morte, às vezes, é dolorosamente demorada. Realmente não desejo isso para mim. Pensar nisso é um sofrimento muito grande. E sei que as pessoas que me amam vão sofrer, mas como médico, lido com a morte todos os dias. Sei que o luto passa e que as pessoas acabam vivendo suas vidas. Deveriam saber que ninguém merece ficar sofrendo em uma cama por muito tempo se vai morrer. Como médico, sei que lutamos pela vida das pessoas ao máximo. Até o último suspiro, mas como disse, algumas vezes sabemos que a morte será inevitável. Bruno parou de escrever e relembrou uma conversa que teve quando estava quase completando dois meses de internação... Conversava com seu amigo e médico Dr. Jander. — Sabe o que penso sobre isso Bruno. — Claro que sei e é por isso que estou te pedindo. — Aqui neste hospital buscamos, acima de tudo, a qualidade de vida. Trabalhamos a vida, enquanto ela existe, em uma abordagem multidisciplinar. Há o alívio da dor e dos sintomas, a avaliação dos procedimentos invasivos. Buscamos tratar e curar nossos pacientes... — Dr. Jander, sabe que não tenho cura. Sabe que estou com falência renal, não estou pedindo para me matar, só não quero que prolongue minha vida apenas para meu sofrimento e de minha família. Não peço que antecipe nem adiante, peço que a deixe acontecer. Sabe do que estou falando. — Bruno, você está vivo, enquanto existir vida há esperanças. Neste hospital lutamos até o fim pelo paciente. Não será diferente com você. Bruno respirou fundo com muita dificuldade. Estava quase completando três meses de internação.
— O que foi Bruno? Por que está com essa expressão sombria? – perguntou Alice. — Apenas meditando. Alice, você acredita em vida após a morte? A irmã o olhou com doçura e preocupação. — Que é isso Bruno? — Sério! O que pensa sobre isso? — Quer mesmo ouvir? — Não teria perguntado se não almejasse a resposta. — Sim acredito. — E como você acha que é? — Ah, Bruno, sabe que sou cristã. Ele arqueou as sobrancelhas e olhou para ela com ar curioso. — Não se preocupe com o tempo, não vou a nenhum lugar mesmo. Pode me contar tudo. Ela sorriu do humor do irmão, que mesmo diante de fortes dores, estado visivelmente fraco, sempre estava sorrindo e de bom humor. — Acredito no que diz a Bíblia. Apesar de não termos explicitamente na Bíblia a expressão “ir para o céu”, temos muito claro que, sair desta vida significa estar com Cristo, o que é ainda melhor. Portanto, tudo aponta para o céu, seja nossa esperança, seja o desejo do Senhor para estarmos com ele, e isso imediatamente após nossa morte. Não há nada na palavra de Deus que mostre um inferno de sofrimento como destino da alma dos que creem, mas sim do incrédulo. Para o crente, nada poderá separá-lo DaquEle que o salvou: Jesus. Nem sequer a morte será capaz de fazer isso, supostamente lançando a alma do crente em um estado intermediário no inferno ou em alguma espécie de sono. — O que você chama de crente e quem é salvo para você? — Todo aquele que crer em Cristo Jesus e na sua obra verdadeiramente é crente. — Não conhecia este seu lado religioso.
— É mais que religião, meu irmão. É uma convicção que tenho. E você? O que pensa? — Acredito em tudo que disse. Eduarda é como você e me ensinou a crer e ter fé. — Então pratique sua fé e acredite que vai sair daqui. Bruno respirou devagar e profundamente. — A minha fé está em saber que vou para um lugar de descanso, este que você acabou de mencionar. O meu milagre foi esse, acreditar em Deus. Estou pagando pelo erro que cometi, vocês precisam aceitar isso. Não foi o destino que sonhei para mim, claro que não! Mas se estou aqui hoje, foi devido à uma má escolha que fiz, um momento de prazer, um momento apenas que determinou toda a minha trajetória. Estou aqui hoje por ter cedido aos instintos e impulsos carnais. Por ter aquela visão de que “não vai acontecer comigo”. Aconteceu! Poderia ter sido evitada e não foi. Estou pagando o preço, que foi alto demais! O preço foi minha vida! Alice aproximou-se do irmão e segurou sua mão.
XXXII
O
dia havia acabado de amanhecer e em um hospital, a rotina começa cedo, às vezes ela nem termina. Era de manhã, por volta de oito horas quando Bruno lhe falou: — Eduarda vá para casa. Você precisa descansar. Prometo que não vou a lugar nenhum – sorriu. — Não estou cansada. — Sei que está. Do que tem medo meu amor? Pode ir tomar um banho decente, dormir na nossa cama, depois você volta. Tenho várias enfermeiras e médicos para cuidar de mim. — Está me trocando por estas enfermeiras, Bruno? — Claro que não meu amor. Só quero que descanse um pouco, desligar a mente deste ambiente hospitalar. — Não quero Bruno. Acha mesmo que vou conseguir dormir com você aqui? Aquela cama é muito grande só para mim. Quero estar onde você estiver. — Eduarda, não se sacrifique tanto! – incitou ele. — Bruno, deixe de ser teimoso. Não quero! — Daqui a pouco minha mãe e Alice chegam. Não vou ficar só. Faça isso por mim. Quero vê-la descansada. Não quero me sentir um fardo. — Você nunca foi e jamais será um fardo para mim. Quando vai entender isso? — Sabe que te amo, não sabe? — Claro que sei! E eu te amo e neste momento a minha prioridade é cuidar de você, porque nesta vida devemos dedicar nosso tempo àquilo que nos é importante. — Não terei tempo nesta vida para lhe retribuir tudo que fez por mim. — Não diga bobagens.
— Você me trouxe a luz e não sabe o quanto a luz é importante. — Ih! Não quero ficar falando como se fosse uma despedida. — Seja realista meu amor, pode ser que eu morra a qualquer momento... — Eu também. E já lhe disse que isso não vai acontecer! — Tudo bem, então pode me fazer este favor? Vá para casa, descanse um pouco... Por mim. Estou te pedindo. Não posso fazer nada por você, aqui onde estou. Então faça isso por mim. — Tudo bem... Você venceu. Eu vou por você, só porque insiste. Contudo, não pense que vou dormir lá. Eu voltarei mais rápido do que pensa. — Não rápido o bastante para que não sinta saudades. Ela o olhou com ternura e amor. Mesmo fraco, debilitado, ele conseguia ser lindo! Seus olhos sempre amáveis e gentis. Bruno segurou-lhe as mãos e a olhou como se quisesse atingir sua alma. — Eduarda, não pode imaginar o quanto eu te amo! Gostaria que tivesse sido diferente, mas não fui capaz. Uma escolha errada há muitos anos me trouxe a este momento, e não sabe como lamento! — Sei disso. E não te culpo. — Fui fraco quando deixei me contaminar, fui fraco quando te deixei depois do acidente e fui fraco ao permitir que você voltasse para minha vida. — Pare com isso. Eu quis voltar! Está deprimido porque estamos aqui neste hospital, mas logo estaremos em casa. E nossa vida voltará ao normal. — Quero que me perdoe... — Bruno, pare! — Não! É importante. Perdoe-me por todas estas fraquezas e por qualquer erro que tenha cometido, pelas vezes que te magoei. Saiba que não foi por querer. Ninguém machuca a si mesmo de propósito, e você é parte de mim. Eduarda estava segurando para não cair em lágrimas. Precisava ser forte.
— Eu perdoo, Bruno! Você é a pessoa mais importante da minha vida, é tudo que tenho de mais precioso. E eu acredito que você vai melhorar. — Não pense assim. Esteja preparada para minha partida. Prometa-me que quando eu partir, você vai... — Não! — Ouça! Prometa-me que não vai se entregar e que vai viver uma vida linda... Por mim! — Não vou prometer isso! — Eduarda, eu preciso disso. Por favor! – disse quase sussurrando. A ruga de preocupação na testa se aprofundou e Eduarda pôde sentir a sinceridade em seu olhar. — Não estamos nos despedindo, estamos? Eduarda sentiu um medo estranho. Ouviu várias vezes que algumas pessoas sentem a sua hora chegando e por instantes sentiu medo de ser isso, por isto Bruno estava tendo aquele tipo de conversa. — Não – respondeu com um olhar perscrutador — Apenas não vamos deixar para depois o que podemos fazer agora. — Eu... — Prometa. O que prometer agora vai valer pelo resto de sua vida. Mesmo que eu morra daqui a 10, 20 ou 100 anos – Bruno sorriu, mas ela pode notar que ele segurava as lágrimas. — Tudo bem Bruno! Eu prometo. — Fui feliz com você de todas as formas que um homem pode ser feliz ao lado de uma mulher e preciso que você seja feliz! Sua vida não acabará quando eu for. Preciso que fique bem – ele suspirou — Já prometeu. Então não pode mais voltar atrás. — Eu prometo e pare com essa conversa. — Obrigado. Partirei mais tranquilo. Sei que quando fechar meus olhos para a eternidade não terei lembranças, mas enquanto estou vivo me tranquiliza saber. — Não gosto de pensar.
— Não pense. Apenas não receie a minha morte. Talvez seja mais cedo do que pensamos – sorriu. — Mesmo assim, você é tão lindo! Como pode dizer essas palavras cruéis e continuar sendo tão atraente? – ela queria mudar de assunto. Piscando para Eduarda, com sorriso nos lábios, Bruno respondeu: — É um truque, querida. Preciso fazer com que se lembre de mim assim. E não debilitado em uma cama de hospital. Novamente Eduarda sentiu uma sensação estranha. Sentia que o tempo com Bruno estava acabando. Era a primeira vez que sentia aquilo e por instantes teve certeza que iria perdê-lo. Uma dor profunda, aguda, apoderou-se dela! Sentiu medo, mas afastou estes pensamentos e o abraçou. — Você sempre brincalhão. — A doença faz parte da vida. Todos morrem um dia. Cada um a sua maneira... Acidente, doença, dormindo, ataque do coração... É um fim que ninguém escapará. Por isso não devemos sofrer tanto. Devia ser mais natural, porque morrer faz parte da vida. Existem coisas piores do que a morte... — Para quem fica a dor da saudade deve ser terrível. — A gente se acostuma com tudo. E devemos pensar que é o fim de todos e um dia estaremos juntos novamente. Uma viagem. — Sem volta! — Mas que todos farão! — Bruno, eu te amo, não quero perdê-lo – o olhar de Bruno ficou vago. — Você nunca me perderá. A parte física, da matéria pode ser que sim. O amor que tivemos, nossa amizade, nossa cumplicidade, nossa história estará dentro de você para sempre! Guarde os bons momentos... Lembre-se deles... Eu-te-a-mo. Bruno estava cansado até para falar. Um ataque de tosse tomou conta dele mais uma vez. Ela sacudia-lhe o peito e o fazia forçar a cabeça para frente. Era outro ataque violento. Eduarda o
ajudou, segurando-lhe a cabeça e o tórax para frente, mas pode fazer muito pouco. Viu a secreção com sangue sair no momento da tosse e quando o ataque cessou, ele fechou os olhos para se recuperar. Então Eduarda, com todo cuidado, pegou lenços e o limpou. Queria negar, mas era visível o progresso da doença. Aproveitou que Bruno estava de olhos fechados e segurou-lhe as mãos, fechou os olhos também e pensou: “Preciso ter fé, esperança!” Quando abriu os olhos encontrou o olhar de Bruno penetrando-lhe como se quisesse ler seus pensamentos. Ela passou a mão por seus cabelos, aproximou-se dele e o beijou nos lábios suavemente. — Eu te amo Bruno. E se fosse possível daria a minha vida para salvar a sua – sussurrou-lhe. — Você é a única razão pela qual eu lutei por minha vida. Não permitiria que você a sacrificasse pela minha. Agora vá para casa. Está enrolando. — Eu não... — Precisa descansar. Já disse. Não quero me sentir um fardo. Os médicos já estão vindo, vão me medicar e devo dormir. Pode ir sem pressa. Alice já deve estar chegando com minha mãe. — Parece que deseja se livrar de mim – ela juntou suas coisas na bolsa e se virou para beijar-lhe novamente. Quando ia sair, ele a agarrou pelas mãos e a fitou profundamente. — Bruno, eu já lhe disse. Acredito em milagres. Nós vamos para casa! — Também acredito, meu amor. Aprendi com você, que me ensinou e me fez acreditar que existe um lugar na família de Deus para mim. — Já disse, vamos voltar para casa. — Eu sei. Vou voltar para meu lar. — Claro que vai! — Obrigada por me dar um lar querida! É tudo de que preciso. Saber que tenho um lar com amor me esperando!
— Pode apostar que sim! — Agora vá, preciso descansar! Quero apenas olhar para você... Quero que esta seja a última imagem quando eu fechar meus olhos. — Preciso apenas buscar algumas coisas e volto rápido. Ela o beijou mais uma vez e saiu devagar do quarto. Ao olhar para ele da porta viu sua mão acenando-lhe um tchau e ouviu seu sussurro. — Te amo! Ela mandou-lhe um beijo e saiu. Ao chegar perto do corredor avistou doutor Clovis e foi falar com ele. — Oi doutor. Estou indo em casa, Bruno insiste que eu vá tomar um banho em casa e descansar... Minha sogra e minha cunhada já estão chegando. Não quero ir, mas ele deseja muito isso. Não tem problema se ele ficar sozinho? — Bruno não estará sozinho. As enfermeiras cuidarão dele, pode ficar tranquila. Estou indo lá agora. Vou examinálo mais uma vez. — Ele não está reagindo, não é mesmo? — Vá descansar um pouco! Na volta me procure. Os resultados dos últimos exames sairão daqui uma hora, assim poderei ter mais precisão. Talvez voltaremos com ele para a UTI. — Oh! Então não vou demorar. Na verdade estou precisando buscar algumas coisas, mas voltarei rápido. — Eduarda você precisa sair um pouco deste ambiente. Precisa se cuidar para não adoecer também. — Não vou adoecer. Estou bem! Cuide dele doutor, não demoro. — Estou indo lá agora. — Obrigada e até mais. O elevador chegou e ela entrou. Sentiu um calafrio lhe percorrer dos pés à cabeça. Não sabia explicar o porquê, mas começou a sentir frio! Chegou ao térreo e caminhou para a porta de saída, entregou seu crachá de acompanhante e saiu
para o estacionamento. Sua mente não se desligava de Bruno, estava sentindo arrepios pelo corpo. De repente imagens de momentos felizes com Bruno invadiram sua mente. Lembrou-se de cada um deles e não sabia explicar o porquê, mas seus olhos se encheram de lágrimas. O olhar de Bruno... Seu sorriso invadiu sua memória como se fossem flashes de imagens projetadas. Era real, como se ele estivesse ali na sua frente, então recordou de Bruno relatando que alguns pacientes esperavam os familiares saírem para partir. Era como se eles estivessem segurando-os. Em sua mente viu a imagem de Bruno acenando-lhe e dizendo adeus. Só então a ficha caiu: ele realmente estava se despedindo! Novamente os calafrios percorreram seu corpo e não conseguiu evitar. Sentiu uma angústia, um desespero... O terror se apoderou dela com tanta força que... — Não! – tentou gritar, mas sua voz saiu em um sussurro. Virou-se bruscamente e começou a correr de volta para o quarto de Bruno. Passou pela portaria em desespero e não soube como não foi barrada, talvez fosse por já ser conhecida de todos. Chamou o elevador, mas ele estava subindo, então foi em direção às escadas. Sua bolsa estava pesada e a jogou no chão, fazendo com que as pessoas que estavam descendo a fitassem atônitos. Seu desespero era evidente, lágrimas escorriam por seu rosto como cachoeira e o terror preenchia sua expressão. — Moça... Sua bolsa! – chamou em vão uma jovem. Ela nem olhou para trás, subia dois, três degraus de uma vez, e em instantes estava no andar de Bruno. Mais que depressa chegou à porta do quarto e havia muitas pessoas lá dentro. Conseguiu reconhecer as enfermeiras e doutor Clóvis, viu o desfibrilador nas mãos dele, não era médica, mas sabia para que era usado! Parecia em vão, mas eles insistiram nas tentativas de trazer Bruno de volta. Presenciou as massagens cardíacas, injeções de adrenalina... nada! Ela se sentiu congelada e naquele instante não conseguia se mover para nenhuma direção. Não sabia de onde vinham
tantas lágrimas, elas apenas brotavam e inundavam sua face. Acompanhou tudo parada na porta sem conseguir reagir. Não faziam dez minutos que estava ali conversando com seu amado, segurando suas mãos... E agora estava presenciando técnicas de ressuscitamento. Fechou os olhos e respirou fundo. “Meu Deus! Por quê?” As tentativas cessaram e um silêncio mórbido tomou conta de toda a equipe. Todos pararam diante da cama de Bruno e cabisbaixos sofreram em silêncio. As lágrimas no rosto de Eduarda eram tão abundantes que lhe dificultavam a visão. “Volta Bruno, por favor, volta... Estou aqui!” Viu a linha reta do monitor cardíaco em vermelho e pode ouvir de onde estava o bip contínuo indicando a situação. Continuava sem conseguir mover sequer o dedo de sua mão, então se lembrou das palavras de Bruno a instantes atrás: — Também acredito meu amor. Aprendi com você, que me ensinou e me fez acreditar que existe um lugar na família de Deus para mim. — Já disse, vamos voltar para casa. — Eu sei. Vou voltar para meu lar. Ela fechou os olhos em desespero! “Por que não me disse que se referia ao céu, Bruno? Por que me deixou aqui? Não sabe que deveríamos retornar juntos para casa?” Quando abriu os olhos, avistou novamente os médicos e enfermeiros em silêncio. Dr. Clovis apoiava os braços no leito de cabeça baixa em sinal de derrota. Alguns segundos se passaram e ele ergueu a cabeça, olhou para a equipe e acenou em um sinal que eles entenderam. Ela também entendeu e levou as mãos à boca como se fosse tampar o próprio grito. A equipe estava evidentemente emocionada! Aqueles segundos, parada ali na porta, pareciam eternos, Eduarda não conseguia se mover, estava em um pesadelo e acordaria a qualquer momento. Precisava acordar! Viu quando
começaram a retirar os fios e aparelhos ligados em Bruno e sentiu uma dor tão aguda que era quase palpável. O monitor cardíaco ficou sem luz, sem vida. Doutor Clovis mirou a porta e deparou-se com Eduarda. Seus olhares se encontraram e ele caminhou em sua direção, mas antes que chegasse perto, ela se virou bruta e inesperadamente e saiu correndo. — Eduarda! – chamou o médico. Neste instante todos olharam para a porta. Ela não parou e nem olhou para trás. Mais rápido do que subiu ela desceu os degraus e em segundos estava na rua. Não sabia para onde iria, mas foi correndo para longe... Bem longe! Doutor Clovis ainda estava no quarto de Bruno quando uma moça se aproximou. — Com licença! Vi uma moça saindo daqui e ela deixou cair esta bolsa quando subiu as escadas. Ele olhou para a jovem a sua frente. Estava difícil enxergar através das lágrimas, mas precisava usar de toda sua força e racionalidade. — Oi. Vamos lá para fora. A jovem não deixou de observar a movimentação dentro do quarto e um paciente imóvel sob os lençóis. Não foi difícil de adivinhar do que se tratava. — Desculpe. Quando fui entregar a bolsa, ela saiu correndo novamente, nem viu quando a chamei. Vi que ela saiu daqui e pensei que alguém aqui a conhecesse. — Obrigado. Vou entregar a ela. — Será que vai vê-la novamente? Quer que eu deixe na recepção? — Vou vê-la sim, eu a conheço. O marido dela, médico deste hospital, acabou de falecer. — Nossa! Por isso chorava tanto! — Obrigado moça, mas preciso ir. Obrigado – ele pegou a bolsa e saiu. Foi procurar o doutor Jander. Estava transtornado,
não desejou aquele desfecho, ele e toda a equipe fizeram de tudo para salvá-lo. Queria chorar, mas precisava ser forte! Não sabia até quando... Foi caminhando mecanicamente com a bolsa de Eduarda em suas mãos, sua mente não se desligava do seu colega e amigo, que agora era um corpo frio e imóvel. Ao chegar à sala dele foi logo falando com a secretária. — Preciso falar com doutor Jander. É urgente! Ela se levantou e foi na sala dele, mas doutor Clovis não esperou, foi entrando e ao ver a expressão de desagrado da secretária e o médico atrás dela com cara de desespero, Jander largou os papéis que estava lendo e se levantou. — Desculpe doutor, mas não tenho boas notícias. Olhou-o preocupado e acenou para a secretária em sinal de que estava tudo bem e que podia sair. — Bruno acaba de falecer! Doutor Jander se sentou novamente em sua cadeira. Passou a mão pelos cabelos e tirou os óculos. Ouviu todo o relato do companheiro, dos últimos acontecimentos e ficou segundos em silêncio, em seguida com olhos marejados perguntou: — Eduarda? — Ela havia saído para ir um pouco para a casa. Havia acabado de falar com ela e fui para o quarto dele. Estava indo examiná-lo. Quando entrei no quarto ele já tinha parado... Chamei a urgência, tentamos os procedimentos, mas não conseguimos. Quando terminamos todas as tentativas, e depois de atestar o óbito é que percebi que ela havia voltado, não sei por que, mas estava parada na porta. Fui falar com ela, mas saiu correndo... Não sei para onde. Então uma moça me trouxe isso. — Uma bolsa? Da Eduarda? — Sim, saiu correndo e a deixou para trás – falou e os dois choraram em silêncio.
XXXIII
E
duarda andava sem parar, não havia rumo nem direção, não queria parar. Ela não queria acreditar... Não podia ser verdade, iria acordar a qualquer momento e Bruno estaria lá, ao seu lado! Havia diminuído seu ritmo, mas não parava. Não conseguia chorar, não queria chorar... Se permitisse que as lágrimas rolassem seria como se estivesse concordando, aceitando a situação. Tal realidade era inconcebível, então andaria e assim ninguém poderia achar-lhe e confirmar o fato em si. Se ninguém contasse e se não visse, poderia acreditar que não havia acontecido. Bruno não havia feito aquilo com ela, com certeza ele estaria lá a esperando, então caminhou moderadamente esperando que despertasse do pesadelo. Mais uma vez seus pensamentos voltaram ao momento em que estava parada na porta. Flashes de imagens invadiram sua mente mesmo que não permitisse: Bruno despedindo-se, sorrindo, acenando e ela parada na porta no momento em que a equipe inteira tentava reanimá-lo. Até que pararam e pôde ver uma linha, reta, sem curvas, constante, sem oscilações no aparelho ao lado de seu corpo. Viu a equipe lamentar-se e confirmar até que o médico a olhou. Não precisou dizer, era como se o tivesse visto partir. Não queria dizer, nem pensar, mas esta palavra invadia sua mente mesmo que proibisse: morte. “Vou voltar para meu lar.” As palavras de Bruno invadiram sua mente. Não era de sua casa que falava... Ela não se deu conta, mas estava andando por cerca de cinco horas sem parar, sem comer ou beber. Estava imersa em seu sofrimento e não queria parar... Iria andar até não ter forças e cair. Assim, talvez, sentisse algo que não fosse aquela dor.
ooo O sol estava em seu ponto mais alto. A temperatura devia estar por volta dos 39°, no entanto, não conseguia enxergar nada, apenas sombras, que pareciam se deslocar como se fossem criaturas vivas por sobre a sua cabeça. Até onde conseguia discernir, não havia mais nada, apenas um vazio muito grande, uma ausência de cor. O movimento de carros era grande na avenida, tinha consciência disto, mas não conseguia ver nem ouvir nada. De repente o mundo ficou mudo, o único som era o gemido secreto de sua alma e um candente fio de desespero perpassava seu coração. Não tinha para onde correr. Nada mais poderia ser feito. “O que fazer quando nos deparamos com alguma situação em que somos apenas espectadores?” Com toda certeza estava diante de uma destas situações. Como era dilacerante apenas assistir! Quisera poder agir de alguma maneira para mudar aquele enredo, mas nas circunstâncias que a cercavam um terror imenso e intolerável lhe afirmava que era demasiadamente concreto o que vivia. Poucas coisas na vida são irremediáveis! Quisera ser outra pessoa para não viver aquele momento terrível e irremediavelmente eterno. Suas emoções lhe trancavam em um abismo profundo e de companhia a dor mais agonizante e desesperadora que já havia experimentado. Dizem que quando a dor é aguda demais se fica anestesiado: por que não estava? Também dizem que quando se está no fundo do poço só existe uma coisa a ser feita: Subir. Por que não conseguia? Tentava a todo custo lançar mão de sua razão, mas todo o resto de seu ser lhe afirmava: não haveria jeito! Havia uma incontrolável certeza de que o poço tinha sido trancado e que por mais que escalasse não teria saída, pois o poço em que foi arremessada não tinha fim, estava escuro e não via a saída
porque ela não existia. A razão tentou mais uma vez lhe trazer a realidade, mas somente o desespero conseguiu lhe dominar e sentiu que estava escorregadio, não havia como subir... Estava condenada a viver naquele fundo para sempre. Não havia nenhuma fresta por onde fosse possível entrar um mínimo de luz para poder lhe direcionar para outro lado que não fosse o abismo sem fim. Em alguns fragmentos de segundos a razão lhe indagava: que final era este? E toda aquela história de milagres? Que depois da noite nasce o sol, depois da tempestade a bonança, após a tristeza sempre havia uma alegria e que no final do túnel sempre haveria uma luz? Neste momento tinha absoluta certeza: não haveria sol, bonança, alegria e luz. Lamentou tudo que ouvira dizer, eram casos de contos, inventados por alguém para fornecer, sem claros motivos, falsas esperanças. Estava condenada a viver com aquela dor que a consumia a cada respiração, a cada segundo. De repente sua vida era pura escuridão! Então seria assim, tentar acostumarse com aquela situação. O ser humano se adaptava a todas as circunstâncias, então precisava encontrar uma forma de se adaptar ou então enlouqueceria. Como? Como uma pessoa podia suportar tanta dor? Não sabia qual seria o próximo passo, sentiu vontade de se entregar à morte. Como fazer para encontrá-la? Somente assim não precisaria enfrentar e conviver com tanta tristeza! Estava fechada em si mesma sem sentir o mundo a sua volta, sem se dar conta que pessoas a olhavam e tentavam entender e ajudá-la. Completamente imersa nesta escuridão, tomada até a alma pela dor, prestes a entregar-se foi que, em um instante, em um milésimo de segundos que sentiu uma força tentando puxá-la. De onde vinha? Quem era? Tentou olhar em volta, no entanto, nada viu além do escuro. Estava absorvida demais em sua dor para perceber um carro se aproximando. Ouviu a buzina, mas nem mesmo olhou para ver quem era. Não era com ela... E nada lhe importava mais neste mundo.
O motorista gritou seu nome. — Eduarda! Aquela voz era familiar. De onde vinha? — Eduarda! Quando se está em um pesadelo poderia entrar em outro? Ficou confusa. De onde vinha aquela voz? Sabia de quem era... Como ele a encontrou? Será que estava no mesmo pesadelo que ela? Como havia entrado? Ele não tinha esse direito... Era seu pesadelo. — Eduarda precisa parar! A voz familiar e aveludada de Augusto provocou-lhe desespero. Eduarda parou, mas não se virou para ele, que acelerou, estacionou um pouco a frente, desceu do carro e caminhou na direção dela. Quando ela se deu conta, girou o corpo e tentou correr em sentido contrário, mas foi impedida por fortes mãos que a seguraram. — O que está fazendo? Onde está indo? Ela nada disse e então as lágrimas rolaram pelo rosto. — Eduarda... Ela se ajoelhou no chão, tampando os ouvidos e ele se agachou junto dela e a fez olhá-lo. — Não fale nada. Não quero ouvir! – falou de olhos fechados. — Eduarda... Não pode reagir assim! Onde está indo? O que está fazendo? Ela sentou no chão, continuou tampando os ouvidos com as mãos e colocou a cabeça no meio das pernas e chorou. Um choro sofrido, profundo. Ele se aproximou e a abraçou. Então era isso... A dor dela também doía nele, mas ele precisava tirála daquele estado de choque. — Onde estava indo? — Lugar nenhum. Só queria... Desaparecer e acordar desse pesadelo.
— Tire as mãos do ouvido, Eduarda. O que não quer ouvir? Ela nada disse. — Olhe para mim, Eduarda. Sei que é difícil, mas você precisa enfrentar... — Já disse! Não quero ouvir nada. — Olhe para mim Eduarda. Ela não respondia, apenas chorava. Recusava-se a abrir os olhos. Augusto pensou muito, mas tinha que ajudá-la. Podia parecer inadequado dizer aquilo, mas não conseguia cogitar nada melhor. Segurou-lhe as mãos, tirando-as de seus ouvidos e então disse da forma mais direta que podia. — Eduarda, Bruno morreu! — N-Não... Não Augusto! Não quero ouvir – neste instante ela abriu os olhos e o fitou. Quando seus olhares se encontraram em um instante, em um milésimo de segundos que sentiu, novamente, uma força tentando puxá-la. Tentou olhar em volta, no entanto, nada viu além do escuro, contudo, quando a luz chega, as trevas de imediato se afastam. E mais que de repente, de forma inesperada, sentiu quando aqueles olhos penetraram nos seus de forma intensa. Olhos que se transformaram misteriosamente em luz e ela conseguiu enxergar. E eles a aqueciam. Onde estava à noite naquela hora? Tudo estava confuso, quando havia saído do fundo do poço? Estava lá ainda ou ele estava lá também? Novamente aquele olhar penetrou-lhe de uma forma abusada, sem pedir licença, simplesmente entrou e seu corpo involuntariamente começou a reagir. Estava gelada e sentiu o calor chegando e tentando aquecê-la. Sentiu algo mexer com seus sentidos, de uma forma que jamais saberia explicar. Parecia uma luz tentando entrar no túnel. Então se deu conta que ainda estava no túnel. Por onde ele entrou? Por onde? Ela o olhou em pânico, balançava a cabeça negativamente e rendida à dor, afundou a cabeça em seu tórax em sinal de desolação. Augusto precisava ser forte e trazê-la para a realidade.
— Mais do que ouvir, você precisa aceitar, ele partiu! Eduarda então se deu conta que ainda estava no túnel, mas por onde ele entrou? Por onde? — Vamos! Não pode se entregar assim? Não havia morrido? Estava realmente ouvindo? Era real ou apenas um desejo? Com imensa dificuldade balbuciou: — Não percebe o que está acontecendo? Acabou! — Sim acabou. — Você não pode entender. Eu senti, Augusto! Eu senti a hora em que ele se foi. Ele também sabia! Despediu-se de mim! Mandou-me para casa, não queria que eu presenciasse... Se eu tivesse ficado, Bruno não teria ido. Eu sei disso! — Não se culpe e não pense desta forma. Sei que está sofrendo e que está doendo, mas precisa enfrentar! Você é a esposa. Estão todos te esperando para saber do funeral, onde ele será sepultado... Essas burocracias. Tem certeza que não quer se despedir dele? Ela nada respondeu, continuou parada com olhar perdido no espaço. — Não pode pensar desta forma! Ele estava doente e por mais que tivessem esperanças ele sabia... Você sabia que ele estava correndo risco de morte. Pelo que soube hoje, Bruno iria partir mesmo se você tivesse ficado. — Como assim? — Doutor Jander me ligou e me explicou tudo... — Vocês se conhecem? — Não! Bruno deu a ele meu telefone caso isso acontecesse, para eu poder ficar com você e te ajudar neste momento. Perplexa ela o encarou. — Bruno o quê? — Vou te explicar tudo depois, querida. Vamos! Estão todos te esperando. Vamos! Não pode se entregar assim... — Não percebe o que está acontecendo? Acabou! — Você é que não vê. Está apenas começando.
— Não sei do que está falando? — Chegou a hora de deixar a luz aquecer e enxergar o extraordinário. — Extraordinário? Você está sendo ridículo, o que pode haver de extraordinário nesta situação? — Terá que sair do fundo do poço para enxergar! — Não vejo a saída dessa situação. Você vê? Você sabe o que aconteceu? Estou em um túnel sem saída. — Então se lembre: se não consegue ver a luz no fim do túnel é porque não chegou ao final dele. Então se apresse que a luz te espera! — Não existe luz, nem saída. Não vê que meu mundo acabou? — Quando o meu acabou, fiz o melhor que pude para refazê-lo e estou aqui, não estou? Não vou abandoná-la. Se não consegue sozinha, vou guiá-la até que encontre um novo mundo onde possa viver em segurança. — Você está louco! — Não! E não permitirei que você enlouqueça. Eduarda estava com dificuldades de raciocinar. — Como me encontrou? — Foi sorte. Estou rodando pela cidade desde manhã a sua procura. — Quero entender esta história de Bruno ter pedido sua ajuda! — Já disse, depois. Neste momento precisa de forças para se despedir dele. Não pense em nada, não queira entender nada, apenas viva o momento, sofra o seu luto, depois você procura as respostas. Ele se levantou e estendeu-lhe a mão. Ela aceitou e foram juntos para o carro. Ao entrar Eduarda avistou sua bolsa no banco de trás, então se lembrou do momento em que subiu as escadas correndo e a jogou no chão. Ficou intrigada de como havia parado ali. Suspirou fundo, não tinha forças para perguntar, então resolveu aceitar o conselho de apenas sofrer seu luto. Já era difícil demais!
Encostou-se ao banco e fechou os olhos, enquanto sentia o movimento do carro. Em meio às lágrimas, sua mente viajou para uma conversa que teve com Bruno há uma semana: Estavam assistindo a um filme na TV para ajudar a passar o tempo no hospital. O filme era muito bonito, mas triste. — Não gosto de filmes assim. Sinto-me triste! Sempre torço para que aconteça um milagre e as pessoas se salvem. — Nem sempre as pessoas se salvam, meu amor. É preciso entender que a morte também é necessária. E para algumas pessoas a morte é o melhor milagre! — Está falando de você? — Talvez. Se analisar friamente, a morte será minha cura! – ele examinou seu rosto, enquanto ela refletia. — Por que não pode esquecer? Por que não pode simplesmente viver? — Porque é inevitável. Não tem escapatória, nenhuma alternativa, garantias, nada! Nada pode mudar o meu final... — Não acredita em milagres? — Você acredita? — Claro que sim! Você está aqui! Achei que tinha te perdido... — Meu amor, toda a nossa vida é determinada em uma decisão tomada em um fragmento de segundo. Porém só percebemos isso depois. Talvez tentamos mudar, tomar outra decisão. Em alguns casos é possível reverter, não é o meu. — Está falando do que exatamente? Nada neste mundo é para sempre, podemos consertar as coisas e mudar nosso destino. — Tentamos, mas nem sempre é possível. É uma viagem só de ida, podemos até mudar a trajetória, o percurso, mas o destino final já foi traçado e é inevitável. — Acho que você não tem fé. Devemos acreditar que algo extraordinário está nos esperando no final dessa trajetória, não acha? — Acredito que nem sempre o extraordinário é o que desejamos. Devia rever seu conceito de milagre. — É mais do que um conceito, Bruno. É real. Foi essa fé, essa
força que me fez ver e viver este milagre. Eu tinha perdido você Bruno e foi a minha fé que me impulsionou para este momento. Você está aqui. — Com HIV. — Sim. E o que isso muda? O milagre às vezes é sutil e esperamos vê-lo de um jeito e ele se revela de outro. Você ainda está aqui. Mesmo quando você desapareceu de dentro de mim, eu tinha fé que, no final, o surpreendente me encontraria. — Percebe o que me disse, Eduarda? Não espere que o milagre seja a minha cura. Tente ver o surpreendente de outra forma. — Pare de querer tirar minha fé! — Não quero isso. Só quero que esteja preparada, porque nada vai mudar o final. Vou morrer! — Oh! Sinto em te dizer doutor, eu também. Ou melhor, todos nós iremos, um dia – respondeu ironicamente. Bruno a segurou pelos ombros e a fez olhá-lo. — Claro que sim. Todos em seu tempo e o meu está chegando. E antes de fechar meus olhos, quero que saiba que vivi intensamente e foi preciosa cada lágrima, cada sorriso, cada segundo... Não se esqueça, encontre o surpreendente dentro de você. Eu te amo! — Não se despeça de mim, porque você não vai a lugar algum. — Ah, Eduarda... Você que tem tanta fé, deve aceitar que o milagre nem sempre é o que desejamos. Peça a Deus que ele se revele e que no final você entenda o motivo. Se não entendeu, aguarde até que ele se revele a você! — Chegamos. Ela despertou de seus pensamentos. Observou onde estava e ficou um pouco confusa. — Te trouxe para minha casa. Vamos entrar, você vai tomar um banho, trocar as roupas e depois vai se alimentar. Só então iremos para o hospital. — Vamos? Não tinha ânimo para nada, mas era preciso. Então como uma filha obediente seguiu todas as orientações. Entrou no
apartamento de Augusto e mesmo com toda tristeza não deixou de reparar na decoração, no espaço. Era um apartamento novo, não sabia quando ele o tinha comprado. Por que deveria saber? Fazia muito tempo que não se falavam. Augusto a conduziu até o banheiro da suíte. — As toalhas estão limpas, pode usar qualquer uma. Saberá onde encontrar sabão e não precisa de pressa. Vou deixar roupas para você na cama. Onde ele conseguiu as roupas? Não importava. Nada mais importava... Ela entrou, retirou as roupas quase que mecanicamente e só quando o jato de água caiu em suas costas é que sentiu o peso do cansaço. Então sentiu dor, física, mental, emocional... Estava em um estágio de dor profunda. Nada naquele momento, nada poderia doer mais. Ali, debaixo do chuveiro, deixou as lágrimas rolarem. Naquele instante a dor era maior, precisava chorar... Descarregar e lavar a alma. Será que algum dia seria possível se livrar daquela dor? Saiu do banho com as roupas limpas e um lanche já estava servido na mesa. — Não ouse recusar. Tenho certeza que não comeu o dia todo. — Como foi? Pode me contar, enquanto eu como. — Tem certeza? — Por favor. Preciso ocupar a mente. Ela se sentou e começou a comer vagarosamente. A comida não tinha gosto, nem cheiro, fazia um bolo em sua boca e com grande esforço é que conseguia engolir. — Doutor Jander me ligou e... O telefone tocou e ele atendeu. Era do hospital. O que poderia ser? — Bom dia. Falo com Doutor Augusto? — Sim. — Sou doutor Jander, diretor do Hospital Estadual. — Em que posso ajudar?
— Estou ligando porque... – ouviu um suspiro profundo — O doutor Bruno faleceu. Houve um silêncio do outro lado da linha. — Doutor Augusto? — Sim, pode continuar, estou ouvindo. — Bruno me deixou orientações caso isso acontecesse de ligar para você. A esposa dele saiu daqui em um estado preocupante e deixou a bolsa para trás. Não tenho outro contato da família dela e... — Estou indo para aí imediatamente – sem esperar pela resposta, desligou e saiu em disparada. Trinta minutos depois Augusto estava entrando na sala do doutor Jander. — Muito prazer em conhecê-lo doutor, apesar das circunstâncias. — Muito prazer, doutor Augusto. Sente-se. — Sinto muito por Bruno. Como foi? — Sabe que ele tinha HIV? — Sim, eu sei. — Ele teve complicações renais devido ao uso de antirretrovirais, precisou trocar os medicamentos e estes não estavam reagindo... E teve uma resistência terciária. A carga viral dele aumentou demasiadamente e foi rápido. Conseguimos reverter o quadro e a carga viral estava diminuindo, as CD4 estavam aumentando, chegamos a ficar otimistas, mas hoje cedo ele teve uma parada cardíaca, ocasionada por embolia pulmonar e não resistiu. — E Eduarda? — Saiu correndo desse hospital desesperada. Não sei para onde ela possa ter ido. Não tenho contato da família dela e... – ele passou as mãos pela face, segurou as lágrimas e continuou — Desculpe-me, Bruno era mais do que um amigo para mim. Estou muito abalado com sua morte tão prematura. Hoje em dia é difícil ver um jovem como ele morrer tão cedo por AIDS. Apesar de não ter cura, é uma doença que a gente consegue controlar por muito tempo. — Eu sei... E também estou abalado. Não era meu amigo, mas... — Ele me contou de seu envolvimento com a esposa.
— Foi antes dele voltar. — Sim, eu sei. Ele me contou tudo doutor. — Não pense que estou feliz com esta situação. Já faz muito tempo e estou triste também. Jamais desejei ou pensei em sua morte. E estou preocupado com Eduarda. — Bruno me fez prometer que ligaria para você. Para ele, você seria o único capaz de ajudá-la neste momento. — Eu sei... Vou procurá-la. — Preciso saber se ele vai ser enterrado, cremado... Onde será... — Vou encontrar Eduarda, mas pode ir preparando o velório e as outras coisas... Depois te ligo quando encontrar Eduarda. Pode preparar tudo de acordo com o que a mãe e a irmã dele decidirem. — Você sabe onde ela está? — Não tenho ideia. Só tenho certeza de que irei encontrá-la. — Pode levar a bolsa dela? — Claro! — Tudo bem. Fico esperando. — Então saí e comecei a procurá-la. Por sorte, estamos aqui. — Obrigada! – disse baixinho — Então ele teve embolia pulmonar. Não podia imaginar... — Pelo que fiquei sabendo, ele estava reagindo ao tratamento renal e a carga viral estava diminuindo. Foi uma fatalidade. Ela colocou as mãos na boca, como se fosse abafar o próprio grito. Augusto então segurou as suas mãos e Eduarda deixou as lágrimas rolarem novamente. Ele desejou abraçála e foi o que fez, e Eduarda se aconchegou em seus abraços, tomada pelas lágrimas e pela dor. Após alguns minutos ele a deixou e buscou uns remédios e um copo d’água. — O que é isso? — Não se preocupe, não vão te fazer mal e nem te
fazer dormir. São apenas para aliviar a tensão e a dor física que vai sentir, caminhou por muito tempo. Pode tomar sem medo, é para o seu bem. Eduarda pegou os medicamentos e tomou. Confiava nele. Augusto esticou as mãos para Eduarda com um gesto de “é hora de enfrentar a realidade”. Ela o olhou e tentou decifrar sua fisionomia, mas deparou apenas com uma máscara imperscrutável. Certamente ele estava ansioso para terminar com aquilo logo e voltar para sua vida, então deulhe as mãos e foram para o carro. Novamente o silêncio se abateu no veículo e Augusto manteve sua atenção na direção. Quando chegaram ao hospital, Augusto novamente segurou-lhes as mãos. — Vou estar do seu lado. Não precisa segurar seu choro, permita viver sua dor, sua perda. Quando digo para ser forte, não estou dizendo para reprimir seus sentimentos, apenas para não adiá-lo. É importante que viva este momento, o luto é importante para que você possa, futuramente, seguir sua vida. — Nada melhor do que um psiquiatra nestes momentos! – ironizou ela. — Estou sendo, neste momento, apenas um amigo. Mas se quiser posso ir embora... — Não! Desculpe-me. Preciso mesmo de um amigo. Ele sorriu e desceu do carro para abrir-lhe a porta, mas quando chegou do outro lado ela já estava em pé, do lado de fora, esperando-o. Ao entrar no hospital, caminhou até a sala do doutor Jander e avistou a mãe e a irmã de Bruno. Elas foram lhe receber e a abraçaram em um silêncio doloroso. Suas lágrimas eram compartilhadas. Doutor Jander se aproximou e a cumprimentou. — Ficamos preocupados com você! — Eu sei, estou bem, desculpem-me. — Precisamos que assine alguns papéis e... Sua sogra
assinou alguns e ele já está na funerária. Estamos esperando você para decidir o que será feito. — Vamos fazer o velório na capela do cemitério Parque. Uma vez Bruno disse que queria ser enterrado lá e... – as palavras não saíram e sim lágrimas. — Tudo bem querida, vamos cuidar de tudo. Venha. — Quero vê-lo. Onde ele está? — Vamos ligar para a funerária, informar tudo e ela nos orientará o horário que ele vai chegar lá. Eduarda se afastou das pessoas que ali estavam. Queria ficar só. Discretamente subiu até o apartamento onde ele estava e ao chegar à porta parou. Estava tudo limpo, arrumado, esperando o próximo paciente... Nem sinal de que Bruno esteve ali. Ela entrou e se sentou na poltrona e ficou olhando para a cama vazia. As lágrimas dificultavam a visão, mas conseguia visualizá-lo sorrindo, piscando para ela, “sussurrando eu te amo” como ele sempre fazia quando o olhava. Então se lembrou de algo e levantou. Foi até a cama e procurou debaixo do colchão, mas não estava lá. Nesta hora a voz da enfermeira a despertou de seus devaneios. — Com licença! Ela olhou para Rose, conhecia a enfermeira que cuidou de Bruno. — Meus sentimentos Eduarda. Nesta hora avistou nas mãos de Rose o caderno onde Bruno fazia as anotações. Ficou observando a enfermeira se aproximar. — Durante a limpeza do quarto encontrei e guardei para você. Vi você entrando no quarto e fui buscá-lo para te entregar. Eduarda pegou o caderno muito emocionada. Rose a abraçou sem conseguir segurar as lágrimas. — Estamos todos muito tristes e consternados. Eduarda não conseguiu dizer nada apenas chorou. — Com licença, vou voltar ao meu trabalho – disse Rose com lágrimas nos olhos.
Eduarda a olhou partir. Segurando o caderno nas mãos, aproximou-se da cama, fechou os olhos e sentiu seu perfume. — Eduarda? – Augusto a chamou — O velório começará às 23 horas. O enterro será amanhã às 14 horas. A funerária avisou. Ela se jogou em seus braços, que a envolveram de imediato, e chorou abundantemente. ooo Desceram do carro e caminharam em silêncio até a sala onde Bruno estava. Eduarda avistou a esquife de longe e já sentiu seu corpo enrijecer. Vê-lo dentro daquele caixão, sem vida, seria muito difícil. Há algumas horas estava conversando com ele e a cena de seu olhar no leito, sorrindo e acenando-lhe em sinal de adeus voltou a sua mente! Como podia? Não deveria ser assim! Estava com ele pela manhã. E agora? Respirou fundo e entrou na sala, aproximou-se dele. Ficou alguns instantes o olhando... Apenas olhando. Queria tanto um sinal de vida, uma respiração, um movimento, mas nada, totalmente imóvel. Todos a olhavam, mas ela nem percebia, absorvida pela imagem de seu amado. Haviam se passado segundos, mas para ela era como se fossem horas e com grande dificuldade conseguiu mexer suas pernas e foi em direção a ele. Seu suspiro foi audível por todos e sem demora, em abundantes lágrimas, debruçou-se sobre o amado e se assustou ao constatar a temperatura gélida de seu corpo. — Meu amor – sussurrou ela — O que vou fazer sem você? E assim, sem mais conseguir evitar, um rio de lágrimas deslizou de seus olhos e ela ficou um tempo assim, apenas chorando em seu peito. Alice se aproximou dela e a abraçou. — Ele estava feliz. O semblante dele está tranquilo... — Oh Alice... Elas se abraçaram. — O problema Alice, não é ele. Ele se foi, e sei que está
bem, mas a gente está aqui, sentindo a falta... A saudade já me consome. Choraram juntas pela perda. O velório seguiu na capela do cemitério como Eduarda desejou. Ela não saiu de perto dele um segundo sequer. Muitos amigos e familiares vieram se despedir dele. O dia já estava amanhecendo, estava em pé ao lado de Bruno, passando a mão na mão pétrea de seu amado quando avistou entrando sua mãe, irmã e seu pai... E a emoção tomou conta dela novamente. Abraçou a mãe, a irmã e quando seu pai foi abraçá-la, atirou-se em seus braços e o abraçou forte. — Você veio... — Minha querida, estamos aqui. E pode contar conosco! Não poderíamos permitir que passasse por isso sozinha. A mãe de Bruno também estava incontrolável, havia sido medicada e encontrava-se sob o efeito de calmantes! Assim foi todo o tempo. Seus pais, a sogra e a cunhada ao seu lado. Amigos e colegas de Bruno do hospital vieram se despedir, assim como amigos de Eduarda, do Ministério Público e da faculdade. Todos estavam lá. Marcelo e Jaqueline também vieram. — Meus sentimentos Eduarda – disse Marcelo muito comovido. Ela o abraçou e depois fez o mesmo com Jaqueline. Rafael também estava lá. — Oh Eduarda, Deus te conceda força. — Obrigada meu amigo. Ele a abraçou e ela chorou muito em seus braços. Estava lotado, não era festa, mas muitas pessoas vieram despedir-se de Bruno e desejar-lhe forças para seguir em frente. Sabia que todos estavam tristes, como também sabia que era ela quem iria voltar para o vazio de sua casa. As pessoas seguiriam sua vida... E ela? Será que tinham dimensão de sua dor? O momento final estava se aproximando e a despedida foi dolorosa. Ela beijou-lhe levemente a testa, depois os lábios
e observou seu amado pela última vez. O pálido estandarte da morte havia se abatido sobre ele, no entanto, os traços da beleza ainda eram perceptíveis e assim ela se aproximou e sussurrou: — Sei que já está descansando em paz, meu amor. E um dia... Vamos nos reencontrar. Te amo, para sempre! – ela se afastou. Era muito doloroso ver a tampa do caixão se fechando. Resolveu ficar mais longe, porém próximo o suficiente para assistir a tudo, avistou a mãe de Bruno despedindo-se do seu filho em desespero profundo, passando mal e tendo que ser acudida pela filha, que também estava aos prantos pela morte do irmão. Fizeram uma oração, alguém estava dizendo umas palavras sobre Bruno. Não conseguia prestar atenção, estava imersa em uma angústia dilacerante e nada podia sentir a não ser a imensa dor... Nada podia ver senão o negro da morte, sentia seu cheiro. Não conseguia entender nada daquele ritual de exéquias. Será que fazia sentido? Viu os agentes funerários chegando e se aproximando. Tinham pressa. Pressa de quê? Bruno já não tinha pressa de nada. Será que sabiam disso? Bruno agora possuía todas as manhãs, tardes e noites da eternidade. Neste último momento do ataúde cabem muitos sonhos, muitos desejos e sonhos. Então a tampa foi fechada, já não era possível ver o rosto de seu amado, o rosto de Bruno desaparecera ficando somente a imagem da morte. Os primeiros passos em direção à sepultura foram dados e iniciou-se o cortejo para o local onde seria enterrado. Seriam os últimos passos de Bruno. Era o último momento com ele. Pessoas o seguiam, ele ia à frente, direcionando, seu último comando, fazia parte de seu séquito. Eduarda seguia bem atrás do esquife, era a primeira, acompanhada pela mãe de Bruno e Alice. Quando chegaram à sepultura, num último rito, ela ficou ao lado enquanto faziam a última oração e colocaram o caixão dentro da cova. Eduarda jogou uma rosa branca por cima e nesse momento mandou-lhe um beijo, virando-se para trás e caminhando para longe. Caminhou por um tempo até que se sentou em um local reservado. Precisava de um lugar assim para externar sua dor
e se permitir sofrer. Não queria ninguém olhando, não queria o olhar de pena. Estava tão absorvida em sua dor que não percebeu Augusto se aproximando. — Vi você saindo e fiquei preocupado. — Estou bem. Só não queria ver o final. Vou esperar as pessoas saírem. Não quero me despedir de mais ninguém. — Quer que eu fique? — Obrigada, mas acho que quero ficar sozinha. Meu pai disse que vai me levar para casa... Aliás, quem ligou para eles? Como ficaram sabendo? — Eu liguei. — Como? — Sua bolsa, seu celular. Lembra que estavam comigo? — Augusto, você sempre cuidando de tudo. Mais uma vez obrigada! — Não precisa agradecer. Amigos são para estes momentos – com a sombra de um sorriso nos lábios ele se despediu — Se precisar, pode me ligar. Meu número é o mesmo. Ela se levantou e o abraçou. Ficaram assim por minutos em silêncio. — Até mais. Tem certeza que deseja ficar sozinha? Vai ficar bem? — Fique tranquilo, doutor. — Eduarda, não sei o que te dizer, apenas que lamento muito e que Deus possa te conceder forças para passar por esse momento. — Obrigada Augusto. Obrigada por estar aqui neste momento de tanta dor para mim. Ele nada disse apenas a olhou. Eduarda sentiu uma sensação de paz ao olhar para aqueles olhos azuis. Era como se transmitissem luz e calor naquele momento escuro e frio. Apesar de toda a dor, conseguia sentir o carinho através daquele olhar. Ele então se afastou e ela sentou novamente.
XXXIV
D
uas semanas haviam se passado. Seus pais já tinham ido embora, queriam ficar mais tempo, mas Eduarda insistiu que desejava ficar sozinha. Sentia necessidade do silêncio, da quietude. Bruno havia conseguido trazer seus pais de volta até ela. Seria sempre uma lembrança daquele relacionamento que teve tantos momentos intensos e perpétuos. Tão permanente quanto à morte é a lacuna que ela deixa. Ao perder alguém que faz parte de nossa vida, o que nos resta é a presença da ausência. Ficam as fotos, as lembranças, o quarto vazio. É saber que quem estava ali não vai mais estar. Para Hamlet, a morte é tratada como aquele “país ignorado de onde nunca ninguém voltou”. Bruno não iria voltar! E assim cada vez que via uma roupa, um objeto era doloroso demais! “Será que a gente tem que morrer também para a dor ir embora?” Foi quando decidiu juntar todos os objetos pessoais de Bruno: roupas, sapatos, livros de medicina... Juntou tudo que pode e doou para instituições de caridade. Foi muito doloroso passar por isso, mas era necessário. Não fazia sentido ficar guardando roupas que jamais seriam usadas novamente se permanecessem guardadas. Não podia ficar apegada a estas coisas materiais. Claro que havia feito uma caixa de memórias com alguns objetos dos quais não iria se desfazer, objetos que considerava preciosos e que desejou muito guardar! Após ter feito esta separação, ela comprou uma caixa e fez uma etiqueta com nome Bruno, assim poderia rever os objetos quando desejasse. Para Eduarda, o momento que esvaziava o guardaroupa significava encarar a dura realidade de que Bruno não iria mais voltar. Era o momento da constatação da perda.
Houve uma sensação de vazio e ela sabia que nada nem ninguém seria capaz de preencher. Ficou paralisada por minutos, vendo a caminhonete que tinha alugado para fazer o carreto, partir com os objetos de Bruno. Sentiu um vazio enorme. Era como se tivesse cometido um pecado e se arrependeu de ter se desfeito das coisas dele tão rápido. Podia ter esperado um pouco mais. Sentiu como se Bruno... tivesse... morrido! Mas era exatamente isso! Ele não estava mais ali. Encontrava-se à beira da loucura. Sua razão dizia que fez certo em dispor dos objetos, mas seu coração sentiu como se tivesse traído a memória dele. Entrou em casa, correndo em desespero e atirou-se na cama, em que pela primeira vez teve coragem de deitar. Estava dormindo no quarto de hóspedes. Ao se jogar, o perfume de Bruno lhe invadiu o olfato e então as lágrimas tomaram conta novamente. Abraçou o travesseiro dele e ficou ali, por horas até adormecer. Os dias continuaram passando lentamente. Alice foi visitála algumas vezes. Não gostava muito, desejava ficar sozinha, não queria conversar, mas a amiga também estava deprimida e não conseguiam conversar sem falarem e chorar por Bruno. Quando o período de férias acabou, ela sentiu um alívio, havia algo para ocupar sua mente. Doce engano! Não tinha nada que a fizesse esquecer sua tristeza. Onde estava, a dor e as lembranças a acompanhavam. Então seus dias passaram a ser: acordar, trabalhar, chorar, dormir, às vezes comer. Não conseguia livrar seus pensamentos das lembranças. Fechava-se cada vez mais em si. Desejava sumir... Talvez assim aquela dor absurda sumisse junto com ela. O tempo foi passando e nada a fazia esquecer, nada a tirava do vazio. O interfone tocou e ela foi atender. Era uma entrega. O hospital havia mandado entregar o carro de Bruno. Estava tão absorvida na dor, que havia se esquecido. Abriu o portão da garagem e ficou assistindo o veículo ser estacionado. O motorista
era funcionário do hospital. Ele a cumprimentou e visivelmente triste, entregou-lhe as chaves e partiu. Ela ficou olhando para o Toyota Prius, o carro de seu marido. Tomada por uma crise de raiva, uma recaída, ela pegou as chaves do carro e acelerou. Tinha pressa. O dia já havia começado há algumas horas. As pessoas já estavam em seus trabalhos, estudantes nas escolas, ou seja, rotinas já haviam começado. Passou em uma floricultura e comprou flores e foi até o túmulo de Bruno. Ao se aproximar sentiu um vazio tão grande, uma impotência. O choro foi novamente sua companhia. Como poderia olhar para aquele túmulo? Via somente uma placa de mármore e o nome do amado. Sabia que ele estava ali, enterrado, em processo de decomposição. Bruno, que era sempre tão caloroso, tão amável, que há uns meses estava deitado ao seu lado, agora era impossível de tocar. Estava insuportável viver daquela forma. Sabia que seu espírito já não estava ali e sim só o corpo como um invólucro vazio. — Oh Bruno! Sei que não me ouve, que não me vê. Não podes saber, mas a vida está muito ruim sem você. Estou perdida, sem direção... Sinto que vou me entregar, não estou conseguindo “segurar a barra” e a sensação de que ela vai cair e esmagar meu peito é a única certeza que me acompanha. O que faço, meu amor? O que eu faço? Ela sabia que falava para si. Eduarda havia conseguido um túmulo bem debaixo de uma árvore. Ela se sentou e apoiou-se no tronco e ficou ali, pensando por horas. Não queria ir embora, não queria mais nada, já não se importava consigo, com os outros, emprego, casa... Nada! Queria apenas ficar ali, naquela sombra, sentindo o vento em sua face. Havia feito isso com Bruno várias vezes, contudo, desta vez estava só. Eduarda ficou refletindo que a rotina que cumpriam já não existia. Que sempre esperava Bruno chegar naquela hora como de costume, mas ninguém batia à porta... No horário do
telefonema, ele simplesmente não tocava… Ouvir a voz dando bom-dia ou falar qualquer coisa... As fotos traziam lágrimas, pensava em todos os instantes que podia ter feito tantas coisas, que podia ter falado mais, ter feito algo diferente, ainda que não tivesse feito nada de errado. Sabia que a morte era um processo que exigia tempo para que conseguíssemos lidar melhor com a situação, com a ausência em si... Mas não estava funcionando com ela! Havia perdido mais que alguém, era parte dela. E nunca havia pensado no quanto doía perder alguém. Mas a vida seguia seu rumo, impiedosa. Os dias continuavam passando a cada 24 horas e o resto de sua vida caminhava a passos largos. Estava impossível desvincular o emocional de sua rotina diária, mas a sociedade apressada não quer saber disso. A saudade lhe corroia como ácido em metal. A dor era insuportável e a única coisa que sabia fazer era chorar. Sem perceber o tempo passar, estava de olhos fechados pensando em Bruno. Era como se viajasse e pudesse reviver os momentos que teve com ele. — Eduarda! A voz de Augusto a assustou e a fez despertar novamente. — O que faz aqui? – perguntou assustada. Ele caminhou lentamente e se sentou perto dela. — Não foi trabalhar ontem e hoje e me ligaram da faculdade. Fiquei preocupado, fui até sua casa, vi que seu carro estava lá, te liguei, ouvi o toque de seu celular e vi que você não estava. Fiquei algum tempo pensando onde estaria e imaginei que estivesse aqui. Acho que te conheço bem. — Não entendo o motivo do pessoal da faculdade ter ligado para você... – disse enraivecida. — Bruno esteve lá, conversou com seu coordenador e pediu que me ligasse caso acontecesse alguma coisa com você. — Por que ele fez isso? Será que fez isso com todo mundo? Distribuiu seu telefone para todos?
Ele suspirou e a olhou profundamente. — Não está sozinha neste mundo, me preocupo com você, sabe disso... — Todo esse tempo você não me procurou. — Respeitei seu luto. Você me disse que queria ficar sozinha. Não significa que não tenha ficado por perto! Ele se aproximou um pouco mais dela debaixo da sombra da árvore. — Como assim? — Estive perto o bastante para verificar se estava bem e longe o suficiente para não te importunar e respeitar seu momento! – disse e ela encostou a cabeça em seu ombro e ficou em silêncio alguns instantes. — Está muito difícil. Estou tentando, mas onde quer que eu vá, as lembranças e a dor me perseguem. Não sei o que fazer para amenizar esta falta, essa ausência... Não sei o que fazer para poder sobreviver. Consegue entender o que eu digo? — Perfeitamente... Ela ficou em silêncio. Havia compreendido o que estava subentendido. Eduarda começou a se dar conta que a presença de Augusto não a incomodava, que sempre que estava com ele, àquela dor insuportável era amenizada. Ficou confusa com esta constatação e se levantou de seus ombros bruscamente. — O que foi? Era ridícula aquela situação, mas corou diante dela. Tentou sorrir, mas o riso ficou preso na garganta. Passou a mão pelos cabelos, nervosa, parecia inadequado dizer aquilo, naquele lugar, naquela situação, mas não conseguia raciocinar e não conseguiu dizer outra coisa: — Percebi que quando estou com você me sinto melhor, mais calma – olhou para o outro lado, não queria encará-lo depois do que disse. — Então passe mais tempo comigo! – sua voz saiu fraca ao se pronunciar.
— Augusto, eu... — Eduarda, não estou pedindo você em namoro. Calma! Sei perfeitamente o que sente por Bruno. No entanto, aceite que ele se foi. Eu gosto de estar com você, mesmo que seja assim, como amigos. E se você se sente melhor comigo, podemos ser amigos, não acha? Permita que ajudemos um ao outro! — Só amigos? O contraste entre o que dizia e sua expressão eram evidentes. — Pelo menos por um tempo... Ela abriu a boca para dizer alguma coisa, mas Augusto foi mais esperto e disse antes: — O que faz aqui? Por que não foi trabalhar hoje? — Eu... Eu – ela olhou para baixo onde havia depositado as flores — Acordei muito nervosa, recebi o carro de Bruno de volta e me deu um ataque de raiva e desespero... Uma saudade me consumia e quando vi, estava aqui. Não sou assim, Augusto, não sou apegada a essas coisas, sei que ele não está mais aqui, mas foi aqui que ele esteve pela última vez. Foi aqui que o deixei. É aqui que seu corpo está. Então não tinha para onde ir e... O choro tomou conta dela novamente. Ele a abraçou com placidez e ela se aconchegou em seus braços. — Sinto muita falta dele! — Eu sei! — Esta dor vai passar? — O tempo cura todas as feridas, e esta sua ferida vai parar de sangrar e cicatrizar. Porém sempre vai estar aí, como uma marca eterna, que às vezes, do nada, começa a doer para te lembrar de que está aí. Não se assuste, conseguirá viver com isso. Eduarda o olhou com tristeza. — Posso te levar em casa? — Eu vim de carro! O carro de Bruno. — Imaginei, então vim de táxi. Deixei meu carro em frente a sua casa. Ela o olhou incrédula.
— Como sabe se viu meu carro em casa? — Liguei para o hospital e me falaram que devolveram o carro hoje. Então apenas conclui. — Você é mesmo maquiavélico! — Não! Apenas planejo as coisas. Se vim te buscar, não podia ter dois carros, certo? — Certo. Ok, vamos para casa... Ela passou a mão pelas flores e então aceitou as mãos estendidas de Augusto para se levantar. ooo Ao entrar na casa de Eduarda pela primeira vez, Augusto não pode deixar de notar a semelhança da residência com a que eles haviam construído juntos. Seus olhos ficaram sombrios com a constatação de que mesmo sem memória, ela inconscientemente não havia apagado Bruno e seus sonhos do seu coração. Observou tudo atentamente. Os móveis, a decoração, a iluminação. Então se deu conta que havia apenas uma foto no aparador dos dois juntos. Não viu mais nada por onde olhou... Então a fitou atentamente. Eduarda não conseguia ter ideia do que se passava em sua mente. — Incrível! – quebrou o silêncio perturbador. Ela o olhou, esperando pela conclusão do comentário. — Nossa casa era muito semelhante a esta! – havia espanto misturado com angústia em sua voz. Frustração, esta era a palavra! Ela corou ao recordar que havia notado a semelhança entre as duas. O que dizer a ele? — Não fique embaraçada, a culpa não foi sua! — Você ainda tem aquela casa? – perguntou ela. — Não! Eu vendi. Ela arqueou a sobrancelha em sinal de espanto. Sentiu uma pontada de decepção e tristeza e não entendeu a própria reação. Não podia esperar que Augusto mantivesse a casa, mas era como
se ele tivesse se desfeito do amor dos dois. Um tormento a pegou de surpresa! Estava perdida nas próprias emoções quando o ouviu. — Você reatou com Bruno, se casaram e eu não tinha esperanças de ter você de volta. Então me desfiz da casa, não suportava olhar para ela e me lembrar de tantos sonhos e planos que jamais seriam concluídos. — Eu sei! Não estou te cobrando nada! — De verdade, Eduarda, acredite. Jamais imaginei e desejei este final. Ela o olhou com cumplicidade, sabia que ele estava sendo sincero. — E sua namorada... Ele a examinou. — Vocês estão juntos ainda? — Sim. — Quando me apresentou, disse-me que era sério. Fez até bastante elogios a respeito dela. — Temos um relacionamento bastante maduro e sincero. Um sorriso ameaçou aparecer nos lábios de Augusto e um brilho novo em seus olhos a fez corar novamente. Estava sendo ridícula, que ódio! Estava com ciúmes de Augusto. Tratou de virar para tentar disfarçar o evidente. Sentiu uma raiva despertando todos os seus músculos e tendões e seu sangue esquentar. O que dizer agora? Estava confusa e constrangida de ser tão transparente. A gaveta secreta estava começando a querer abrir. Fechou-a imediatamente. — Vou preparar o almoço para nós. Aceita almoçar comigo, doutor? – foi o que conseguiu dizer para mudar de assunto. — Sim, hoje estou livre. Posso ajudar? Ela sorriu e indicou o caminho da cozinha. — Acho que conheço o caminho! – disse presunçosamente. — Você não sente incômodo de estar aqui? — Não entendi. — Na casa de Bruno.
Ele sorriu ironicamente. — Hoje eu dirigi o carro do Bruno, estou na casa dele, com a viúva dele. Eduarda se assustou ao ouvir a palavra viúva. Era a primeira vez que ouvia aquilo, o que a trouxe de volta à realidade: Bruno morreu. Mas realmente era impossível se sentir desconfortável perto de Augusto. Sentia falta de Bruno, mas conseguia sorrir novamente ao seu lado. Sentia-se segura, confortável e mesmo quando se lembrava do marido morto, quando estava com ele, era menos doloroso. Eduarda se agarrou a isso para sobreviver. Assim como em uma guerra, onde cada um se esconde como pode para não morrer, ela se agarrava nele. Porém, quando a noite chegava e voltava para seu quarto, abraçava o travesseiro e chorava até dormir. A saudade de Bruno e a dor de sua perda seriam eternas. Passou a conviver mais tempo com Augusto. Se perto dele se sentia melhor, como ficar longe? Assim os dois passaram muito tempo juntos nas semanas seguintes, ele a levava para casa com frequência, ficava para jantar de vez em quando e às vezes a acompanhava ao cinema ou a um passeio qualquer. Eduarda aceitava todos os convites, a menos que realmente tivesse outro compromisso, e via a dor se dissipar quando estava ao seu lado. Sentiu-se mais forte e preparada para ler o caderno e as anotações de Bruno. Havia recebido no hospital, mas até então não ousara abri-lo. Com emoção nos olhos, pegou o caderno em sua gaveta na cabeceira da cama e com as mãos trêmulas, segurou-o e se ajeitou na cama para ler. Bruno havia começado seu relato explicando como se contaminou e como descobriu o HIV em sua vida. Relatou o acidente que ela sofreu. Eduarda, ao ver a letra de seu amado, emocionou-se. Chorou novamente em abundância, pois era como se ele fosse entrar pela porta a qualquer momento e dizer: “Amor, cheguei!”
Leva um bom tempo até se aceitar como portador de HIV. Você recebe um pedaço de papel dizendo que tem o vírus, mas se olha no espelho e não vê nada. Como médico, eu sabia o que isso significava, como homem estava desesperado. Naquele momento só pensava em Eduarda, em como ela reagiria. Tive medo de perdê-la. Não suportaria ser abandonado por ela e como ela estava em coma, decidi não pensar nisso até ela sarar. Então me foquei na recuperação dela. Eduarda fechou o caderno e os olhos. Estava emocionada demais para continuar a leitura. Podia ouvir a voz de Bruno em sua mente enquanto lia. ooo Ao acordar pela manhã, a primeira coisa que fez foi abrir o caderno e continuar lendo. Eduarda passou por mim e eu não acreditei. Era ela! Fugi dela todos estes lamentáveis dias e agora ela estava ali. Fiquei olhando-a entrar no mar... Precisava ir embora antes que me reconhecesse, mas não consegui. Era mais forte que eu... Eu amava aquela mulher mais do que tudo e na verdade tive tanto medo de ser rejeitado que resolvi ir embora para que ela não se lembrasse de mim. Podia viver com o HIV, mas com sua rejeição, jamais! E ela continuava linda... Perfeita! Meu amor, minha essência, meu tudo. Como pude viver esses dias sem ela? Que tolo fui. Eduarda se levantou, preparou seu café e continuou a leitura. Às vezes parava, porque as lágrimas a impediam de continuar, estava mergulhando novamente na tristeza, mas a campainha tocou e foi atender. — Olá Augusto! — E estes olhos inchados? O que houve? Ela mostrou-lhe o caderno.
— Entre. — O que é isso? — O diário de Bruno. Suas últimas anotações. Só agora consegui ler. — Importante – Augusto ficou sem ação. — Augusto, quanto tempo dura o luto? Quando vou parar de sofrer tanto? — Por que acha que sei a resposta? — Você é médico, psicólogo, psiquiatra... Deve saber como lidar com as tristezas alheias. Ele sorriu. — Na verdade, não existe um tempo certo para superar a perda de alguém, isso depende de cada pessoa, do modo como ela enfrenta e aceita a situação. Para alguns pode demorar meses, para outros, anos. O primeiro ano após a perda é o mais difícil, porque é nesse ano que ocorrem todos os primeiros aniversários sem a pessoa próxima. Isso não significa que seja necessário um ano exato para superar a morte. Um processo de luto é bem sucedido e finalizado quando a pessoa consegue superar a perda e seguir em frente. Não é que ela vai esquecer a pessoa, pois as lembranças e a ausência continuarão. Entretanto, a perda não vai mais ocupar um lugar de destaque. Compreende o que digo? — Nunca vou parar de sofrer? — Vai sim, a dor aguda vai passar, vai diminuindo até que você ache-a suportável. De repente ela se jogou nos braços dele e pediu: — Ajude-me a diminuir esta dor. Preciso viver ou morrer. Este estado intermediário está acabando comigo! — É o que estou tentando. E assim, em seus braços, ela chorou. ooo O tempo era realmente um remédio, era curativo de cada
dor… Ele tratava lentamente das feridas mais sangrentas e deixava cicatrizes no corpo e na alma. Umas era possível ver, outras apenas sentir com o coração! A imagem do olhar doce de Bruno, seu sorriso e a piscadinha que ele sempre dava para ela era uma visão constante e diária. Descobriu que não precisava vê-lo para senti-lo. Conseguia não mais chorar diante das lembranças, o que não significava sentir uma imensa dor e tristeza com sua partida. Sempre existia um vazio, uma tristeza constante. A solidão era seu maior problema. Tinha sido lançada em uma circunstância que nunca esperava, que nunca havia se preparado. Demorou a acreditar que era real. Foi preciso encerrar seu casamento, sua vida com Bruno, sua história, seus sonhos... Encerrar não era tão simples. Estava sendo um tempo difícil. Sentiase deprimida e angustiada, dormir era o que mais gostava de fazer. Sua tristeza ainda era visível aos outros, conseguiu criar uma aparência de conformidade, no entanto, a tristeza estava lá, interna, difícil de dizer em palavras. Sua vida mergulhou em um imenso vazio, que teria que ser coberto a qualquer custo. Era preciso. Quando estava ao lado de Augusto sentia-se bem e conseguia sorrir novamente, apenas ele conseguia tirar-lhe daquele mar de solidão e a trazia para um lugar quente, iluminado, onde gostava de estar... Mas por que aquilo parecia tão assustador? Augusto, sempre muito educado e sutil, convidou-a para irem ao cinema. Fazia 15 dias que não o via e, portanto, 15 dias que só saía de casa para trabalhar. Percebeu que tinha ânimo e vontade de sair para encontrá-lo e se perguntava o que estaria acontecendo para se sentir assim. Estava aguardando Augusto chegar à sala de espera do cinema e ao avistá-lo, sentiu-se novamente aquecida. Seria sempre assim! Ele iluminava seus dias, aquecia seu coração, amenizava suas dores e tristezas, mas quando ficava longe se sentia perdida, só, em uma gélida solidão. — Como vai? – perguntou ele, cumprimentando-a — Estou atrasado?
Eduarda sorriu. — Oi. Chegou bem na hora. Augusto a abraçou e beijou-lhe a testa. Eduarda se sentiu suspensa no ar quando sentiu aquele abraço, mas quando o telefone dele tocou, Augusto atendeu perto dela. — Alô! – fez-se uma pausa e respondeu — Não estou em casa. Estou no cinema. Eduarda estava curiosa para saber quem era. — Na hora que sair passo aí na sua casa. Beijos. Após ver Augusto desligando o telefone perguntou: — Era sua namorada? — Sim. Achou que eu estava em casa e talvez iria lá hoje após sair do plantão. Eduarda se sentiu terrivelmente incomodada com aquela notícia. — Vamos, a sessão já vai começar – falou para tentar amenizar o que estava sentindo. — Vamos sim. Eduarda não conseguia se concentrar direito, então comeu sua pipoca e tentou entender um pouco do filme, mas não adiantou muito. Quando a sessão terminou saíram em silêncio. — Gostou do filme? — Sim – respondeu ela. — Você ficou tão quieta... Parecia não estar gostando. — Não é isso. Acho que estou cansada. — Vou levá-la para casa. — Não quero te atrapalhar. — Não vai. Caminharam em silêncio até o carro. — Está acontecendo alguma coisa, Eduarda. Você está estranha hoje! — Não sei o que há comigo. Hoje estou assim, sem disposição, sentindo-me deslocada da vida.
O percurso foi feito em silêncio e pouco tempo depois Augusto estacionou em frente à casa de Eduarda, desceu do carro e foi abrir a porta do veículo como um bom cavalheiro, no entanto, ela não esperou. — Não precisa me acompanhar. Você está atrasado. — Hum? Atrasado para quê? — Sei que você tem compromissos e não quero atrapalhar. — Não está atrapalhando, se tivesse eu falava. Vou entrar e preparar um chá para você. Precisa relaxar. Ela não respondeu. Eles entraram e foram para a cozinha. — Augusto, sua namorada não fica enciumada de você sair comigo? Ele parou a sua frente e respondeu. — Deveria? Seus olhares se encontraram. — Não, s-sim, sei lá... Ela não acha estranho você sair tanto com sua ex-noiva? — Talvez, mas neste momento somos apenas amigos – sorriu para ela maliciosamente. — Se eu estivesse no lugar dela não iria gostar! — Se fosse você no lugar dela, eu não estaria aqui, e nem com mais ninguém a não ser você! – falou sério, olhando-a profundamente. Quando Eduarda pensou em responder ele continuou. — E para falar a verdade, não estamos mais namorando. O olhar de Eduarda se sobressaltou. — Como assim? — Já faz uns dias que resolvemos dar um tempo. — Mas foi ela quem te ligou hoje... — Sim. Quer mesmo saber? — Sim. Estou curiosa. — Não estamos namorando, no entanto, nos vemos algumas vezes. — E por que não me contou?
— Hã... não achei necessário, nem importante. — Claro que é! — Por quê? – ele a olhou profundamente. — Somos a-amigos e tudo a seu respeito me interessa. Augusto nunca havia tocado em assuntos de namoro, amor, saudades, nada, comportava-se apenas como amigo. Não sabia necessariamente quando foi que esta situação começou a incomodá-la, mas deu-se conta de que, devagar, seus pensamentos começaram a furar o muro da dor e estavam empurrando o terror da perda de Bruno para o mais fundo que podia. Os sentimentos da gaveta secreta estavam saindo lentamente sem o seu consentimento, causando bagunça. Percebeu que voltara a ficar atraída por ele. Na verdade, qualquer mulher ficaria atraída por Augusto! Era bonito, inteligente, amável e com um senso de humor fantástico! E aqueles olhos azuis... Sabia que estava novamente atraída, o que era muito confuso. Tinha deixado de estar algum dia? Sentia que era como se estivesse traindo Bruno... Precisava compreender seus sentimentos e reorganizá-los. Não podia ficar com Augusto. Não! O que as pessoas pensariam? Como fazer aquilo dar certo? Augusto ficou em silêncio. Tomou o chá que preparou e se despediu. — Até amanhã. — Se estiver ocupado não precisa vir. — Poderia estar mil vezes ocupado e largaria tudo só para estar com você. Não percebeu isso ainda? Eduarda sentiu-se tensa, não conseguiu pronunciar nenhuma palavra. Ficou imóvel vendo Augusto se movimentar. — Boa noite! Volto amanhã como combinado – aproximou-se e beijou-lhe a testa carinhosamente. Eduarda fechou os olhos para sentir o beijo terno de seu amigo! E assim Augusto e virou, desceu as escadas para a rua e saiu.
Sentiu as lágrimas querendo escorrer pela face e enxugou os olhos. Não podia deixar que seu relacionamento com Augusto passasse de amizade. Era adulta e sabia que estava atraída por ele, no entanto, havia feito uma escolha no passado de ficar com Bruno. Nunca se arrependeu dessa decisão, mesmo sendo difícil deixar Augusto, mas agora ele retornou para sua vida e Bruno havia morrido. Não era certo, não era justo. Precisava colocar um ponto final nessa história antes que se machucassem mais.
XXXV
A
s árvores já lançavam sombras protetoras sobre a casa que se erguia entre elas. Eduarda estava sentada na varanda larga que contornava a residência. Lia um livro quando ouviu o barulho de um motor desligando, imediatamente sentiu seu coração disparar e ficou nervosa com esta reação. De longe, entre as grades, viu Augusto descer do carro e se dirigir ao portão, então foi até a sala, pegou o controle e o abriu. Da varanda, acenou-lhe quando ele a avistou. — Boa tarde moça! — Como vai Augusto – ela quase não o olhava nos olhos. Estava embaraçada e ele logo percebeu. — Aconteceu alguma coisa, Eduarda? — Não... Eu estou apenas confusa com meus sentimentos. Eu... Eu... Não sei o que estou dizendo nem fazendo – passou as mãos pelos cabelos em sinal de nervosismo — Está tudo bem sim. — Tem certeza que está tudo bem? — Sim. — Você está diferente! — Augusto, é engraçado como sempre senti facilidade em conversar com você. Eu que sempre fui muito reservada, e com você sempre consegui expressar o que sentia, mas nesse momento não estou conseguindo... Na verdade, nem sei o que estou tentando dizer. Augusto estava em pé, sorrindo com carinho para ela. Sempre foi um bom ouvinte e sempre esperava o momento certo para falar. — Você não vai dizer nada? — Qual é mesmo o assunto? — Oh, Augusto! Não seja tão cruel. Está sendo sarcástico!
Ele se aproximou e a envolveu em seus braços. Era a primeira vez que eles se abraçavam desde o enterro de Bruno. Eduarda então percebeu que lágrimas escorriam por seu rosto, lágrimas de alegria, confusão, desespero! Tentava, inutilmente, controlar as fortes batidas do seu coração. Augusto acariciou seu rosto, enxugando suas lágrimas. — Oh Eduarda. Não estou sendo sarcástico, só queria aliviar a minha tensão. Desculpe se foi esta a impressão que lhe causei. Também fico nervoso e nem sempre sei o que te dizer. Há tempos que estou tentando expressar com palavras o que sinto e desejo, e me vejo num fio sem fim... Todo esse tempo estive do seu lado sem dizer sobre os meus sentimentos, apesar de acreditar que sempre foram óbvios. Mas colocá-los em palavras poderia quebrar o que temos e apressar as coisas. Não quero precipitar nada e... Ah, Eduarda! Como é bom abraçá-la novamente. Você é meu alento! — Você tem sido maravilhoso, o problema é... — Eu sei! Apenas feche os olhos e sinta meu abraço. Não diga nada. — Sabe que seremos somente amigos, que nunca seremos mais que isso. Sabe disso, não sabe? Ele então se afastou e a olhou com imensa ternura. — Você também sabe que sempre fomos mais que isso, não sabe? Ela o olhou, confusa. ooo Alguns dias se passaram e Augusto e Eduarda estavam novamente juntos. Eduarda estava alegre e sorria com suas brincadeiras e assim os meses passavam mais rápido. — Ai Augusto, essas suas piadas me matam de rir. O que seria de mim sem você? — Não precisa ficar sem mim – falou Augusto, sedutor, olhando-a intensamente.
— Eu... – Eduarda se viu confusa e, de repente, tensa. O sorriso havia se dissipado. — Eduarda, eu amo... — Não! – sua resposta saiu como uma ordem. Pavor estava estampado em seu olhar. Augusto se afastou e a olhou com olhos arregalados e sérios. De forma constante, ele esperava pela conclusão de sua negativa. — Eu ainda o amo e sinto falta dele! — Vai completar um ano que ele se foi e... — E mesmo assim sinto a falta dele como se fosse ontem! Claro que não vou ficar falando dele o tempo todo, mas o fato de não falar, não significa que já esqueci. As palavras de Eduarda tiveram o mesmo efeito de um soco no estômago. No entanto, ele precisava seguir. Sabia que ela amaria Bruno para sempre, mas precisava lutar, só não sabia quem seria o vencedor. — Eu sei! Jamais duvidei ou duvidarei desse sentimento. Quando Bruno faleceu, eu realmente me preocupei com você, por isso me reaproximei, só quis ajudá-la naquele momento tão difícil. Nunca desejei me aproveitar da situação, não pensei na possibilidade de reatarmos. Não posso permitir que este tipo de pensamento passe por sua mente. — Não passou... Mas agora vejo que estamos indo para um caminho onde não posso ir. Ele suspirou fundo e perguntou: — Qual caminho? Ela nada respondeu. Augusto se aproximou e a segurou pelo queixo, fazendo-a olhar para ele. — Eu te amo. Sabe disso, não sabe? Eduarda continuou em silêncio. — Sei que seu coração se alegra comigo e sei que podemos ser felizes!
— Augusto, eu não... Eu... – não conseguia encará-lo. Sabia que ele a estava olhando com aquele olhar terno, contudo, não ousou encará-lo, receosa do que encontraria em seus olhos azuis. — Sabe que pode trilhar esse caminho comigo! — Eu te disse que nunca seríamos mais que amigos... — Bruno será eterno em suas memórias, em seu coração e sua alma. Jamais pedirei que o esqueça, mas sei que existe um lugar para mim, um lugar que será meu e que não fará concorrência com o lugar que Bruno ocupa. — Não sei como trilhar esse caminho. Ele não disse nada. Aproximou-se e então a beijou de um jeito tão sensual que a deixou com o coração palpitante e a respiração entrecortada. Ela pensou em corresponder, mas se lembrou de Bruno e sentiu-se congelar. Assim, quando Augusto se afastou, havia frustração sombreando seus olhos, deixando-os escuros e em silêncio ele se afastou. — Eu disse... Não posso fi-ficar com você. — Pode me explicar os motivos? — Já sabe. — Não Eduarda, não sei. — Claro que sabe! Bruno... — Ele morreu Eduarda. — Mas o meu amor não! – respondeu rispidamente. Ele estava com raiva. Sabia que ela jamais esqueceria Bruno, mas como a fazer despertar para a nova vida? Precisava continuar vivendo. Pensou em desistir, mas a amava demais para isso. — Então vai viver uma vida solitária, sem perspectivas de outro amor e se entregar ao luto eterno! – havia ironia em sua voz. — Não foi isso que pensei... Eu estou confusa! — Se Bruno estivesse aqui, sei que não estaríamos tendo esta conversa, porém, ele não está mais aqui. Será que não pode guardar este amor em seu coração como uma lembrança boa de bons tempos vividos? Não estou pedindo que o esqueça, sei que
isto não acontecerá. Contudo, sei que pode viver um novo amor, e neste caso, reviver o nosso amor que foi intenso, real... Lembra-se? Eduarda começou a tremer, mas desta vez de frio, o tempo havia fechado e ela nem percebera. O céu estava negro e pela aparência uma tempestade se aproximava. Notou que o mesmo acontecia dentro dela, estava imersa em uma escuridão. Queria Augusto e não conseguia se livrar de um sentimento de culpa. Sentia que estava fazendo algo terrível se permitisse ficar com Augusto. Quando estava com ele... Esses eram os únicos momentos em que se sentia feliz, mas não podia passar daquele limite que havia sido imposto. Mas quem havia determinado tais limites? Quando? — Vamos entrar? Estou com frio. Ele a seguiu para dentro. — Não fuja mais de mim. — Não consigo, Augusto. Você é importante para mim, talvez mais do que possa imaginar. Aliás, mais do que eu mesma imagino. Você me ajudou nos momentos de escuridão em minha vida e me trouxe luz. Gosto de sua presença, mas não me peça mais que isso. Não estou pronta. Acho que devemos dar um tempo, ficarmos longe... Você está criando ilusões que não poderei corresponder. Ele se aproximou dela e sentiu que a respiração de Eduarda estava ofegante. — Já estava conformado em não ter você para o resto da vida. A vida nos reaproximou, e o meu amor que estava guardado lá no fundo voltou à tona. Não posso mais me segurar e sei que desperto o mesmo em você, só não consigo fazê-la entender isto. Estou ficando desesperado! — Está enganado, eu... — Você diz uma coisa, mas seus olhos dizem outra. Sinto sua respiração acelerada como a minha – ele colocou as mãos em seu peito e disse próximo de seu ouvido em um quase sussurro — Seu coração está acelerado, seus olhos me mostram o desejo que tem, não é imune a mim e isso me enlouquece.
Eduarda não esperava esta proximidade e ficou estática. Não conseguia pensar com ele tão perto. Conseguia sentir na face sua respiração e se surpreendeu com um desejo súbito de beijálo. Amava Bruno, mas percebeu o efeito inebriante que Augusto lhe causava... E quando Augusto beijou seus lábios, sua reação imediata foi beijá-lo e Eduarda logo constatou que resistir seria inútil e, com desespero crescente, concluiu que seus próprios sentidos a traíam, instigando-a a ceder, mas um tremor súbito e irreprimível tomou conta dela ao se lembrar de Bruno. Alarmada, ela produziu um som que era em parte soluço e em parte suspiro, as lágrimas lhe queimando as pálpebras. Augusto rompeu o contato e ela virou o rosto, tentando esconder as lágrimas. — Eduarda! — Ele lhe acariciava o rosto e ela tentou em vão desviá-lo — Eduarda! – o tom era imperativo. Ela abriu os olhos, dando vazão ao pranto e Augusto a fitou, seus olhos brilhantes e inflexíveis como safiras. — O que está acontecendo? Como explicar-lhe que com a mesma intensidade e desejo vieram as lembranças de Bruno e o reconhecimento de que o havia perdido para sempre? Com estas lembranças veio a dor pungente e inesperada de entender que jamais seria beijada novamente por Bruno, tocada ou... E ao mesmo tempo, estava gostando daquele beijo e queria aquele abraço. Então empurrou Augusto bruscamente para longe de si. — Eduarda, sei que gostou... Sinto seu medo e posso ajudá-la. — Ao me beijar senti que estou viva, que ainda tenho desejos, mas sinto em dizer que meus pensamentos foram para os beijos de Bruno e uma dor imensa me invadiu quando senti que não era ele quem me beijava! Entende que não posso ficar com você? O rosto iluminado de Augusto enrijeceu em uma máscara de amargura e dor que não eram estranhas para ela. Sem nada dizer ele caminhou até a porta.
— Aonde vai? Não percebeu ainda que está chovendo? Tem uma tempestade lá fora! — O que vai me matar é esta tempestade que está aqui, dentro do meu peito e não posso fugir dela – então ele saiu batendo a porta. Eduarda foi para seu quarto e se jogou na cama. Um turbilhão de sentimentos invadiu sua mente. Pegou seu álbum de fotografias e ficou ali por horas, olhando e relembrando de momentos mágicos vividos com Bruno. Chorou de saudade! Seu coração traiçoeiro havia lhe colocado naquela armadilha eterna. Jamais conseguiria se livrar. Augusto e Bruno! Não havia saída. Nunca haveria um fim.
XXXVI
A
s semanas seguintes foram tranquilas externamente, mas em seu interior existia uma tempestade que não cessava. Novamente a rotina de acordar, trabalhar, dormir e chorar havia voltado. Augusto não havia a procurado mais e estava sentindo falta dele. Resolveu ir correr para aliviar a tensão e ficar bastante cansada para dormir logo, sem ficar rolando na cama, mas mesmo correndo, sua mente não se desligava e lembranças de Augusto a preenchiam. Lembrou-se do calor de seu corpo, sua forma serena de ver a vida, seu jeito extrovertido, seus olhos azuis, tudo a fez sentir outra onda de nostalgia e por instantes sentiu desejo de correr para os braços de alguém que a havia feito ver a luz quando tudo era sombrio e frio. Sentiu as lágrimas rolarem e desta vez eram de saudades de Augusto. Parou de correr e sentou-se de frente para uma lagoa e deitou no gramado, fechando os olhos. Estava mesmo sentindo falta dele. Não podia procurá-lo e dizer que queria apenas a sua presença. Não era justo com ele. Uma dor atingiu-lhe em cheio ao imaginar que Augusto estaria nos braços de outra para tentar esquecê-la. “Meu Deus, estou com ciúmes.” Percebeu que esse tempo longe de Augusto serviu para entender que sentia falta dele. Seus pensamentos estavam constantemente arremessando-a para ele. Estava esquecendo Bruno? “Ah, Bruno!” – suspirou fundo – “Sinto tanto a sua falta.” Lembrou-se de Bruno e de suas últimas conversas. Fechou os olhos e em questão de segundos se encontrava em outro mundo, onde Bruno ainda estava presente. Passou
alguns minutos absorvidas em suas lembranças e recordou da promessa que fez a ele, de que não se entregaria e seria feliz. Subitamente levantou-se e voltou correndo para casa e assim que entrou na residência, pegou o diário de Bruno. Precisava terminar de ler aqueles relatos. Hoje li uma reportagem on-line que os Cientistas nos Estados Unidos afirmaram ter conseguido curar completamente ratos vivos infectados com HIV por meio de uma ferramenta de edição genética conhecida como CRISPR/Cas9. Para a medicina é um avanço. A próxima etapa seria repetir o estudo em primatas, um modelo animal mais adequado onde a infecção pelo HIV induza a doença, a fim de demonstrar ainda mais a eliminação do DNA do HIV-1 em células T altamente infectadas e células cerebrais, onde o objetivo é um ensaio clínico em pacientes humanos. Como médico, estou feliz, porque é um caminho para a cura da infecção pelo HIV, mas não posso deixar de temer, porque as pessoas perderam o medo do vírus devido aos tratamentos que permitem uma vida longa aparentemente saudável. Será que a cura definitiva poderá desencadear um quadro de novas infecções ainda maior do que hoje? Não sou contra a cura do HIV, claro que não, como médico e portador do vírus seria um sonho ficar livre desse pesadelo definitivamente, no entanto, é preciso reforçar as campanhas e sensibilizações de prevenções. Não é porque uma doença tem cura que não preciso temê-la. Esse conceito deve estar na mente das pessoas. Muitos acham que não serão infectados mesmo se praticarem sexo sem proteção e, se forem, basta tomar uma pílula e pronto. Mas isso não é verdade. A vida será seis anos mais curta se não tomar as drogas de forma correta, se não for ao médico no tempo certo. Os medicamentos apresentam efeitos colaterais sérios, como o aumento do risco cardiovascular, por exemplo. Cerca de 30% dos doentes fracassam porque não tomam os remédios direito. O vírus fica resistente e eles adoecem. As pessoas precisam entender que a vida com HIV não é nada fácil.
Eduarda sabia bem disso. Era sempre uma preocupação com horários de medicamentos, alimentação, exercícios físicos... Bruno não podia se descuidar um instante sequer. Lembrouse de seu marido com grande saudade e dor, mas continuou a leitura com lágrimas nos olhos. Leu sem parar por horas. Foi quando chegou à parte em que ele começou a adoecer. Sinto que meu tempo está chegando ao fim. Os remédios não são mais eficazes e terei que mudar meu tratamento. Sei que vou ter que contar para Eduarda, mas isso me dói. Ela ainda não entende. Não tenho medo de morrer! Eduarda me ensinou que existe um céu e um Deus bom que tem misericórdia de todos. Sei que vou para lá. Sabe que isso me conforta? Ninguém deveria ter medo de morrer e ir para o céu. Não ter sofrimento, choro, injustiça. Acho que minha alma tem pressa de ir para lá, porque sei que lá realmente serei feliz! Isto se chama fé. Só lamento por Eduarda. Eu a amo de uma forma indescritível. Por isso preciso pensar em algo para deixá-la bem. Neste momento Eduarda chorou – “Meu Deus, Bruno acreditou em tudo que eu disse. Valeu a pena Senhor, porque ele acreditou no amor de Deus e no sacrifício de seu filho!” Procurei por Augusto. Pedi a ele que tomasse conta de Eduarda para mim. Como eu sempre soube, ele ainda ama Eduarda. Ficou indignado com minha proposta, jogou na minha cara que não precisava de um pedido meu para cuidar dela. Eu sempre soube disso. Sei que é fácil amá-la! No entanto preciso confessar que quis lhe socar a cara. Como pode falar de minha mulher assim na minha frente? Confesso que ele é corajoso e ama minha Eduarda, no entanto, nesse momento estou pensando nela e não em mim... Não sei onde encontrei forças para não socá-lo! Na verdade, não sei onde encontrei força para procurá-lo. Resisti à vontade de brigar e pedi a ele que cuidasse dela. Deixei um papel com alguns contatos e saí antes que perdesse o autocontrole. Pude ver a raiva dele também.
Procurei o doutor Jander e dei o número do telefone do Dr. Augusto para entrar em contato com ele caso eu não resista. Preciso confessar que peguei o número dele no celular de Eduarda. Senti uma raiva e um ciúme enorme ao ver que ela não havia apagado o número dele. Não disse nada a ela. Controlei. Por um instante, apenas por um instante de razão eu compreendo. Não é fácil pensar que vai morrer e sentir saudades da própria vida, mas é assim que sinto! Não sei explicar. Sinto que preciso deixar as coisas arrumadas. Eduarda estava incrédula. Era verdade. Bruno havia procurado por Augusto. Continuou lendo seu relato até que seus olhos paralisaram: Bruno havia escrito uma carta para ela! Eduarda meu amor, Se chegou até aqui é porque teve coragem de ler tudo. Você é muito corajosa! Meu grande e eterno amor. Estou aqui neste hospital e vejo meu quadro piorando. Sei tudo que está acontecendo comigo e por saber é que lhe escrevo. Não se engane. Escrever isso é a coisa mais difícil de minha vida, sou homem, te amo e tenho ciúmes só de pensar, no entanto, se eu tiver morrido não estarei aqui para cuidar de você, então alguém o precisa fazer. Permita-se amar novamente e viver sua vida linda com um belo futuro. Tenha os filhos que sempre quis e que não pude te dar. Perdoe-me por todos os sofrimentos causados, mas não se entregue ao luto. Erga-se novamente. Você é jovem e linda e deve refazer sua vida. Escrevo não por ser bonzinho, mas por amar-te mais que tudo e o amor... Ah, o amor: O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta! E o meu amor é assim, sem inveja, orgulho... Refaça sua vida, seja feliz! Eu não estarei mais presente e assim não estará me traindo,
a morte nos separou! Se for com Augusto não se preocupe, eu entendo, você também o amou, ou o ama... Não importa mais, o que importa é que encontre alguém que te ama e faça-a feliz, assim como fomos, porque sei que fomos felizes. E essa felicidade, este amor que levo comigo é a certeza de ter valido a pena viver só por ter amado você! E assim me despeço definitivamente querida! Queime, rasgue esse caderno, desfaça desses objetos que te obrigam a se lembrar de mim... E que ao se lembrar, que seja pela brisa, pelo perfume, pelo sorriso, em um abraço... Nunca pela tristeza. Lembre-se de mim com alegria, porque é assim que tem que ser querida! Agradeça a Deus a oportunidade de viver um grande amor e de ter salvado um homem como eu, porque você me salvou da perdição. Apresentou-me seu Deus que agora é meu também. Um milagre se fez! Não existe motivo para choro, vou para os braços do Pai e um dia, bem longínquo, vamos estar todos juntos. SEJA FELIZ! Porque onde estiver eu estarei. Não olhe para trás e siga em frente. E Lembre-se: Você me prometeu ser feliz e não desistir de sua vida. Lembra-se? Então é isso que tem que fazer. Te amo, Seu eterno Bruno. E assim Bruno terminou. Não escreveu mais nada, não teve tempo. As lágrimas rolavam pelo rosto de Eduarda. Saudades, muitas saudades! E uma felicidade imensa daquelas palavras. “Apresentou-me seu Deus que agora é meu também. Um milagre se fez!” Ela sorriu. Caminhou até a varanda de sua casa e olhou para o céu. Abraçou aquele caderno e sentiu seu rosto molhado pelas lágrimas, então fitou o céu e sussurrou: — Você me surpreende mesmo depois... Fechou os olhos ao ver que não teve coragem de pronunciar... Quando os abriu, aquela imagem do céu anil se misturou com a imagem de um olhar azul que teimava em resistir em sua mente. Bruno era mesmo um homem inesquecível. E era verdade, precisava agradecer a Deus por ter tido a oportunidade de
conviver com ele e partilhar momentos de amor. Foi então que percebeu que era uma mulher de sorte, se assim podia dizer. Muitas mulheres passam por esta vida e não encontram alguém capaz de fazer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, que não vivenciam trocas de olhares com o mesmo brilho intenso entre eles. Que não sabem o que é sentir os olhos se encherem de lágrimas ao toque intenso dos lábios, em um beijo apaixonante e que nunca sentirão algo mágico entre ela e alguém. Que não possuem uma pessoa onde o primeiro e o último pensamento do seu dia é para essa pessoa. Onde a vontade de ficar juntos chega a apertar o coração. Pessoas que nunca saberão o que é receber um abraço, um sorriso, um afago nos cabelos pelo simples fato de ter errado e pedido perdão, onde os gestos valerão mais que mil palavras. Que nunca saberão o que é sentir que você e alguém foram feitos um para o outro. Pessoas que sempre estão sozinhas, e que por vários motivos desta vida sofreram e nunca tiveram outra pessoa para sofrer o mesmo sofrimento, chorar as mesmas lágrimas e enxugá-las com ternura pelo simples fato de te amar, e saber que poderá contar com ela em qualquer momento de sua vida. Viver com alguém e achar a pessoa maravilhosamente linda, mesmo ela estando de pijamas velhos, chinelos de dedo e cabelos emaranhados... Viver aquele momento onde não se consegue trabalhar direito o dia todo, ansioso pelo encontro que está marcado para a noite... Onde jamais consegue imaginar, de maneira nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado... E que você vai ter a certeza que vai ver a outra envelhecendo e, mesmo assim, tem a convicção que continuará sendo louco por ela... E que você prefere fechar os olhos, antes de ver a outra partindo! “É, muitas pessoas não sabem o que é o amor verdadeiro.” – muitas se apaixonam várias vezes na vida, mas poucas amam ou encontram um amor verdadeiro. Às vezes encontram e, por não prestarem atenção ou por medo, deixam o amor passar, sem permitir que aconteça verdadeiramente.
Eduarda sentiu-se emocionada. Ela sabia que havia encontrado o amor e que algo do céu mandou um presente divino: o amor e duas vezes! Neste instante sentiu o olhar azul lhe invadindo o corpo e a mente! Colocou as mãos na boca em sinal de susto, espanto! Deu-se conta que sentia tudo aquilo por Augusto. Amava-o. Sempre o amou! Não estaria traindo Bruno se ficasse com Augusto e pela primeira vez conseguiu aceitar o fato de que gostava de Augusto sem culpa. Havia sido agraciada por ter a sorte de encontrado o amor por duas vezes, de forma plena em toda a sua essência e verdade. Eduarda ainda se refazia do choque de descobrir os próprios sentimentos, quando mais tarde, naquele mesmo dia, telefonou para Augusto. Ninguém atendeu. Ficou tentada a procurá-lo na casa dele, mas teve receio de encontrar outra com ele. “Como fui tola!” – e como previa, rolou na cama por horas e não conseguiu dormir. Ligou a TV para tentar se concentrar em algo e assim fazer o sono chegar. Tudo em vão, pois ficava trocando de canal a cada cinco minutos, nada prendia sua atenção! Só então resolveu tomar um comprimido para dormir. Cinquenta minutos depois, estava em sono profundo e conseguiu então descansar.
PARTE III
”Acima de tudo, porém, revistam-se do amor, que é o elo perfeito.” Colossenses 3:14
XXXVII
E
stava sonolenta quando, em sua mente, o som da campainha a despertava. Demorou um pouco até notar que era a sua campainha. Levantou-se meio zonza, vestiu um roupão e foi ver quem era, pegou o interfone e com desânimo aparente disse: — Oi. — Eduarda, sou eu Augusto. A voz aveludada e familiar teve o poder de despertar-lhe por completo. Nem precisava identificar-se, ela reconhecia sua voz. Apertou o botão e escutou o tic dele se abrindo, correu para abrir a porta da sala e lá estava ele: calça jeans, camisa para fora da calça, os primeiros botões desabotoados, barba por fazer, sinais de olheiras e divinamente desalinhado e lindo! Estava absolutamente pasma diante de sua beleza. “Como dizer a ele o quanto fui tola?” — Como gostaria de saber o que se passa em sua mente... Mas vamos começar com um bom dia. Posso entrar? — Ah! Claro! Bom dia. — Sei que é cedo, mas vi sua chamada no meu celular, o esqueci no carro e hoje cedo ao buscá-lo vi suas ligações. Relutei em vir, sei que me pediu para ficarmos longe, mas confesso que... Poderia ter apenas retornado a ligação, mas queria te ver! Não fique brava. — Também queria te ver. Sabe que dia é hoje? Ele a olhou sério, em silêncio e apenas balançou a cabeça. — Hoje completa dois anos que ele se foi! Seu olhar de desolação a atingiu em cheio. Queria abraçálo e dizer que tudo ficaria bem entre eles. Ele pegou sua mão e não esperava por este gesto... Sentiu o beijo sobre seus dedos e o
viu fechar os olhos enquanto fazia isso, então Augusto percebeu que ela ainda não havia tirado a aliança do dedo. Ele a olhou impassível e Eduarda ficou perdida. Seu rosto havia escurecido e, de forma nervosa Augusto passou a língua nos lábios. — Por que me ligou? Agora ela estava nervosa. Não tinha como ser direta, estava com medo, insegura, ainda sentia a presença forte de Bruno dentro dela, mas desejava-o. Como compreender estes sentimentos ambíguos? — Queria conversar com você, ouvir sua voz. Senti sua falta... – as últimas palavras saíram em quase um sussurro, mas foram suficientes para iluminar o rosto de Augusto novamente. — Cuidado Eduarda! Não me torture – disse quase em uma súplica. — Não quero torturá-lo. Senti sua falta e você sabe disso. — Vejo que acordei você. Vamos preparar um café? — Claro. — Pode ir tomar um banho e se arrumar, que vou preparar algo para nós. Eduarda sorriu. Quando ela retornou Augusto a olhou com paixão. Estava com cabelos molhados e um aroma de frescor, de sabonete que lhe invadiu o olfato. — Está pronto. Vamos comer? — Vamos sim. Estou com fome. Sentaram-se à mesa e enquanto comiam Eduarda perguntou: — Augusto, você sente raiva de Bruno? Olhando fixamente para ela respondeu: — Não posso ter ódio, raiva ou qualquer sentimento negativo de Bruno. Ele foi a ponte que te fez atravessar para o outro lado, onde eu estava. Ela parou de comer. — Não posso, não quero e não vou desistir de você, Eduarda. Estava trêmula.
— Não sei como explicar, sei que a vida continua quase que milagrosamente. Sei que eu teria sido tragada pela tristeza, no entanto, Deus me deu simultaneamente o veneno e o antídoto. Não sei se vou saber me expressar. Lentamente, você foi ocupando um lugar de extrema importância em minha vida e hoje não sei mais ficar sem você! — Eduarda, eu te amo e nunca escondi isto. Sabe que se precisar de mim não serei capaz de te negar nada, mas não posso mais ser apenas seu amigo, meu coração já não suporta mais esconder este sentimento e eu... — Augusto, estou tentando te dizer que... – precisou parar um pouco e continuou — Esses últimos meses sem vê-lo foi importante para mim. Senti sua falta e então percebi o quanto você é essencial pra mim! — Eduarda, já tentei fugir deste amor de todas as formas. Fui para longe, me afastei, procurei outras mulheres, mas nada me fez esquecer você. Já te disse, não desejei isso, mas a vida me deu outra chance de ter você e não sei o que fazer para trazê-la para mim. Não quero desistir de você, a não ser que me peça isso. — Agora eu enxergo tudo com clareza, Augusto. Uma vez Bruno e eu conversamos sobre destino, trajetórias e milagres. Hoje eu compreendo tudo! — Bruno... Bruno... Admiro seu amor por ele, mas estou começando a perceber uma obsessão e... — Preciso terminar, me ouça! – seu tom imperativo o fez parar — Eu dizia a ele que acreditava em milagres e ele desejava me fazer compreender que às vezes o milagre não é bem do jeito que esperamos, e se revela de outra maneira. Ele queria que eu acreditasse que o milagre não era a cura dele. Hoje vejo com clareza que Bruno tinha quase certeza que seu fim estava próximo – havia tristeza em sua voz neste momento — E hoje, só agora consegui entender o que ele tentou me mostrar. Vejo nitidamente que ele tinha razão. No caso de Bruno o milagre foi a cura de sua alma, seu espírito, sua salvação. Pra mim, o extraordinário ainda
não tinha acontecido. Não havia chegado ao final e você é o meu milagre! Fui abençoada por Deus e hoje sei que ele zela por mim. — Não brinque comigo... – Augusto estava emocionado. — Não estou brincando, você é a prova real do cuidado de Deus por mim. Todo esse tempo... Só agora enxergo com clareza. O acidente... Minha perda de memória teve um objetivo: conhecer você! Se eu não tivesse perdido a memória não teria conhecido e me apaixonado por você. Ele cuidou de tudo, nos apaixonamos, minha memória voltou e reencontrei o Bruno. Precisávamos viver nosso amor, porque ele foi lindo! Deus já sabia que ia leválo e que eu precisava de outra pessoa, então trouxe você de volta para mim. Percebe o caminho que trilhamos? — O que está tentando me dizer? — Augusto, vou sempre amar Bruno! Nossa história será eterna e não me peça para esquecê-la. Onde quer que eu vá ele irá junto comigo. Porém, tem outro amor aqui dentro que ressurgiu com uma força que está me assustando. Na verdade, me sufocando, não sei explicar qual foi o momento que ele ressurgiu, ou se sempre esteve aqui. Existem coisas que não tem explicação, apenas existem. — Eduarda... — Você é tudo que eu preciso. Eu te amo! Só te peço agora que cuide deste sentimento, porque estou com medo. A vida me levou Bruno, mas me deu você e se eu perdê-lo não saberei me reerguer novamente e não suportarei esta dor. Preciso viver... E eu preciso viver esse amor, com você. Augusto colocou as mãos no rosto. Pressionou os dedos nos olhos e a olhou intensamente. Sua feição antes rija, agora estava plácida, serena e seu olhar brilhava. — Esperei tanto por isso! Desde o primeiro dia meu coração bateu por você e... Você é meu maior sonho! Sempre foi amada, desejada, mesmo quando não era minha. Devia mesmo haver um motivo para não conseguir arrancar você de dentro de mim, estava predestinada a ser minha. E agora sem nada que nos
ameace, sem sombras, sem escuridão. Foi difícil esperá-la, mas meu coração não aceitou te esquecer! Eu... Eu... Augusto se levantou e a puxou de seu lugar para perto dele e a beijou. Estava ávido por senti-la. Era como se estivesse atravessando um deserto e ela era o oásis. Tinha urgência em tê-la. Ela correspondeu ao beijo com um pouco de reserva, abraçando-o, mas estava tímida. De repente ele se lembrou da data daquele dia e recuou. — Desculpe, eu... Oh Eduarda, não sabe como eu amo você! Não existe nada que possa dizer ou fazer para que eu te ame mais. Ter você tinha se tornado impossível para mim... Entende isso? Eu tinha inveja da chuva, do sol que podiam tocar sua pele e eu não. Te desejei o melhor que o mundo pôde oferecer, mesmo longe de mim e agora o impossível se faz acontecer. Quero gritar, correr, sei lá! Uma alegria imensa está explodindo em meu peito e preciso extravasá-la, só não sei como. — Eu... Sou muito feliz, poucas pessoas conseguem viver e enxergar o caminho de milagre que percorreu e eu o vejo. Deus abriu uma porta onde não tinha saída, colocou luz onde era só escuridão... E o impossível se revelou extraordinariamente para mim. Só te peço um pouco mais de paciência. Aos poucos conseguirei me libertar completamente deste medo, receio, e ser sua por inteiro! Aceitar e assumir esse amor que sinto por você já foi difícil, porque tenho a sensação de que ao aceitá-lo estou traindo Bruno. Sei que é infantil, mas é assim que me sinto e por isto te peço ajuda. Pode me ajudar doutor? — O que eu não posso é ficar longe de você! – a emoção era tanta que chegava a ser quase palpável. — Eu posso lhe assegurar que não quero viver neste luto eterno, eu quero sonhar os teus sonhos e desejo viver... Oh Augusto, como eu quero viver! Quero novidade de vida, quero um novo caminho e agora sei que não existe mais nada que possa nos separar. Antes havia um medo, uma lembrança oculta que poderia despertar e acabar com nossos planos, mas agora sei quem sou,
quem fui, e sei o que quero ser! E hoje eu sei que sempre caminhei para os teus braços, para o teu coração, para você! Ele então a abraçou. Gostaria tanto de ter o poder de materializar o seu sentimento e fazê-la ver e sentir a grandeza do que sentia por ela. Sabia que existia algo forte entre os dois, mas que ainda havia uma batalha para ser vencida. Precisava fazê-la se libertar de seus fantasmas. Augusto sabia que seria questão de tempo, havia esperado tanto, e um pouco mais não era tão insuportável assim. Queria beijá-la, amá-la, sentir-se novamente no céu, então a apertou ainda mais em seus braços. “Calma, é só questão de tempo!” – esperou tanto por este momento e enfim ele chegou.
XXXVIII
E
duarda foi ao cemitério levar flores ao túmulo do seu eterno amado. Chegou mais cedo, sabia que outras pessoas iriam e queria um tempo sozinha. Sua razão lhe dizia que ele não estava ali, que era, devido ao tempo, apenas uma ossada, mas seu coração não ouvia muito a razão e ele a pediu para conversar com Bruno. Eduarda se sentou novamente na pedra que estava debaixo da árvore, bem ao lado da sepultura. Fechou os olhos, o vento batia levemente em seu rosto e então ela fez uma viagem. Conseguiu enxergá-los juntos. Foi como se tivesse, em segundos, ido ao encontro de Bruno. Sorriu ao ver aquele rosto novamente, tão lindo, tão perfeito e sorrindo-lhe. Era assim que ele sempre estava, sorrindo para ela! — Será que sabe a saudade que sinto? Não dá nem para explicar! Aprendi da forma mais cruel, que a gente não precisa estar junto e que nem mesmo preciso te olhar para te ter no meu mundo, porque onde quer que for, você irá comigo. Você está em tudo, porque você está em mim Bruno! E mesmo quando eu completar 100 anos será do mesmo jeito! Não tivemos muito tempo juntos, mas o que tivemos será eterno! Pena que tudo acabou, não é? Vou fazer o que te prometi, vou seguir minha vida, tentar viver, já vai ser muito, não? Tenho que aceitar que acabou para nós dois. Demorei, mas aprendi que o que eu sinto não vai ter fim, não vai acabar nunca, porque o que é imortal não morre no final. Não somos imortais, mas o nosso amor sim. Eduarda ficou ali em silêncio. Lembrou-se do sorriso de Bruno, de como ele era dedicado à medicina, do seu olhar de amor para ela. E pela primeira vez estas lembranças não a machucaram.
— Preciso dizer que não voltarei mais aqui – respirou fundo — Não com esta mesma intensidade. Sei que não está aqui, que não me ouve. É estranho, mas às vezes precisamos de alguns ritos de passagem que não fazem sentido algum, mas que são necessários. Vim dizer Adeus. Sentiu o salgado das lágrimas quando estas alcançaram seus lábios. Sentiu saudades, sentiu-se triste porque ele não estava mais ao alcance de suas mãos, mas conseguiu lembrar-se sem ter a sensação de que seu coração iria parar e que o ar lhe faltava. Seus olhos avistaram a mãe e a irmã de Bruno caminharem lentamente em sua direção e aos poucos se aproximarem. Elas lhe dirigiram um sorriso afável e depositaram as flores lentamente sobre o túmulo. A mãe de Bruno não conseguiu controlar e caiu em prantos. Ajoelhou-se e passou a mão por cima, como se quisesse fazer um carinho no filho. Alice abraçou a mãe e ficaram assim por minutos. — Oi Eduarda! – Alice disse-lhe então. — Oi. A mãe de Bruno a abraçou. — Não consigo me conformar. Um jovem tão bonito, tão inteligente, boa pessoa... Por que pessoas assim morrem e outras cruéis, sem caráter continuam vivas? Ele foi cedo demais! Não tem um dia sequer, um minuto do dia em que eu não lamente e sofra a falta dele. Como eu faço para conseguir esquecer por um minuto apenas e fazer esta dor amenizar? — Não posso lhe responder estas perguntas simplesmente porque não sei. — Deus devia ter colocado uma regra: uma mãe jamais deveria enterrar seu filho. Lembro-me do instante do seu nascimento, do primeiro sorriso, do choro, primeiros passos, as primeiras palavras... Cada detalhe, cada dia... E agora não posso nem mesmo ouvir meu filho, tocá-lo! Ah, Eduarda, não poder mais comemorar seu aniversário e sim ter que vir aqui visitá-lo, o tempo agora corre ao contrário, começou a contagem de há
quantos anos ele se foi, e o máximo que posso fazer é ajoelhar neste gramado e... – o choro tomou conta dela. — Mamãe nós todas sentimos muita falta dele. — Bruno foi um homem digno, decente e devemos agradecer a Deus por nos permitir viver este tempo com ele. E não devemos ficar questionando as coisas pelas quais jamais teremos respostas. Temos que pensar na felicidade dos momentos em que o tivemos. Estas lembranças destes momentos irão nos aquecer quando a saudade doer demais. Alice olhou para a amiga e notou que havia algo diferente nela. — Você ainda sente falta dele, Eduarda? Ela olhou nos olhos da ex-sogra e disse amavelmente: — Em cada respiração, em cada batida do meu coração, desde o momento em que acordo até ao que vou dormir, não se passa um segundo sem que eu lamente e sinta a sua ausência. Nem mesmo quando durmo, porque meus sonhos me levam até ele. — Desculpe te perguntar assim, mas você está tão serena, tão calma... Ela respirou fundo antes de responder: — Isso só mede que estou conseguindo evoluir. O luto não pode nos dominar, estamos vivos. De forma alguma mede o tamanho da minha saudade! — Você está namorando? Ela arqueou as sobrancelhas e ficou pensativa. — Pare com isso, mamãe. Não viemos aqui para brigarmos. Eduarda também amava Bruno e como nós, sente sua falta. — Tenho certeza que ninguém sofre mais do que eu pela morte do meu filho! — Tenho certeza que sim, dona Sônia. Não sou mãe, mas suponho que nenhum amor pode ser maior do que o de uma mãe. E se eu puder fazer alguma coisa para ajudá-la? — Eduarda, gostaria de ficar sozinha com Alice! – havia um pouco de rispidez em sua voz.
— Claro! Eu já estava indo, cheguei faz mais de uma hora e preciso mesmo ir. Até mais. — Eduarda – chamou Alice — Posso passar na sua casa mais tarde? — Claro. Pode sim! Vou te esperar. Ela olhou para o túmulo, as flores depositadas e uma lágrima escorreu em sua face. Era o Adeus. Virou-se e partiu.
XXXIX
E
duarda cuidava das flores de seu jardim quando avistou pelas grades do portão a amiga e foi ao seu encontro. — Oi Eduarda! Elas se abraçaram assim que Eduarda abriu o portão. — Oi Alice! Vamos, entre! Não sabia que tinha voltado! Fiquei surpresa ao vê-la no cemitério! — Cheguei ontem, mas não vou mais embora! Vou ficar. Fico viajando muito. Ela olhou para a amiga esperando pela conclusão. — Minha mãe não pode mais ficar só. A morte de Bruno realmente foi algo que a desestabilizou e a saúde dela não está boa. — Sinto muito! — Desculpe a minha mãe. Ela não está muito bem! E não se conforma com a morte do meu irmão. — Tudo bem Alice, não se preocupe – Eduarda pensou e depois acrescentou — Tive a sensação que ela estava hostil comigo. — Ela ficou com muito ciúme de vocês. Achou que Bruno a trocou por você. No hospital ela queria ficar com ele e vocês dois não se separavam. Depois que ele faleceu você... Deixa pra lá. Minha mãe, como eu disse, está perturbada. — Termine de me contar! – disse imperativa. — Ela queria ficar com esta casa. — Hã? Por quê? — Quando Bruno foi embora e você perdeu a memória, ela cuidou dessa casa. E foi aqui que ela esteve com ele antes de vocês se casarem. Na cabeça dela, ela desejava a casa porque Bruno a construiu. — Eu participei da construção desta casa! Planejamos
cada lugar, cada detalhe... E não foi só isso, tem dinheiro meu também! Eu e Bruno poupamos tudo para esta casa! E não vou me desfazer dela. Na verdade, ela sempre esteve no meu nome. Só não me lembrava! — Eu sei Eduarda! Não compartilho os mesmos pensamentos de minha mãe. Calma! Você queria saber e estou lhe contando! — Desculpe. — Ela procurou um advogado! Eduarda a olhou com espanto! — Eu te disse que ela está perturbada! Pensou que como Bruno havia construído a casa antes de se casarem, que você não tinha direito a ela... — Nós compramos o terreno e a escritura estava no nosso nome! — Quando ela soube disso ficou arrasada! — Eu estou arrasada! Não vou me desfazer desta casa! — Não te incomoda a lembrança de Bruno? — Não! Pelo contrário, gosto de me lembrar dele. Não quero esquecer! Foi muito doloroso no início, teve vezes que queria morrer ou sumir, ou perder a memória novamente. Agora consegui superar e estou bem. — Ela também ficou magoada quando você se desfez das coisas dele e não mandou para ela. — Claro que não! Ela também precisava desapegar. Você também me condena, Alice? — Não! Pelo contrário. Mas preciso cuidar dela, é minha mãe! — Você está certa! — E você, o que tem feito? — O mesmo. Trabalho, trabalho, trabalho... — Nada de novo? – Alice estava com aquele olhar malicioso. — Seja direta. O que deseja saber? — Algum romance? Conheceu alguém? Eduarda ficou pensativa. Será que devia contar para a
amiga sobre Augusto? Ela entenderia? De relance pensou em esconder, mas depois achou que não tinha motivos para isso. — Na verdade eu e Augusto nos reaproximamos e... — Augusto? — É... Ele me deu forças para superar... — Eduarda, não percebe o que está fazendo? – Alice estava perplexa — Ele ficou ali esperando a morte de Bruno e... Estou enjoada! Não esperava por isso. — Alice está enganada! Augusto não estava esperando a morte dele! Claro que não! Foi uma fatalidade e a vida nos reaproximou. — Olha Eduarda sabe que sempre estive do seu lado, sempre fomos amigas. Porém, não posso compartilhar com isso. — Alice! Você está confundindo as coisas. — Não Eduarda. Como posso compreender isto? Augusto esperando meu irmão morrer para reatar com você e o pior, ele conseguiu! — Alice não foi assim! Sabe que não foi! — O que eu sei é que meu irmão te amava mais que tudo, abdicou de tudo que pode para fazer você feliz! E você, na primeira oportunidade, o traiu desta maneira! Estou triste Eduarda. Triste porque as coisas acabaram desta forma! — Não acredito que está dizendo isso. Eu não traí Bruno. — Eduarda, não sei como não enxerga. Augusto aproveitou-se da situação. — Não sabe o que diz. Vejo que você e sua mãe se recusam a enfrentar a realidade e que precisam de ajuda para seguirem em frente. — Eduarda, Augusto sempre quis você! — E eu sempre esperei por ele. Sei que você nunca compreenderá, e não espero tal coisa. Não julgue o que não sabe. Houve um silêncio estranho entre as duas até que Eduarda continuou. — Alice, Bruno morreu por embolia pulmonar aguda.
Como acha que Augusto saberia de uma coisa dessas? Foi uma fatalidade. Augusto se reaproximou de mim a pedido de Bruno... — Só falta dizer que é vontade dele que fique com Augusto. — Claro que não é isso... Mas ele se foi amiga, precisamos viver e seguir em frente. Sinto muito a falta dele. Aproximei-me novamente de Augusto pelas mãos do destino e... Ah, Deixa pra lá! Não posso acreditar que pense isso de mim. — Confesso que não estava preparada para ouvir isso. Não vou contar nada para minha mãe senão ela enlouquece. Agora eu preciso ir. — Alice eu... — Tchau Eduarda. Ela saiu apressadamente. Eduarda não tentou detêla. Estava cansada para isto e não queria continuar aquela discussão. Não queria provar nada para ninguém. Não achava que devia. O tempo faria com que Alice percebesse o engano. Gostava da amiga, mas ela havia lhe entristecido por pensar tal coisa a seu respeito. Voltou a cuidar de suas rosas e chorou pela amiga! Chorou por tudo! ooo — Oi! — Oi Eduarda! Como foi seu dia? – Augusto beijou-lhe a testa. — Foi, digamos, revelador. Augusto a observou curioso. Eduarda relatou o encontro que teve no cemitério e depois a visita de Alice. — E você? O que pensa? Acha que me aproveitei da situação? — Augusto se pensasse tal coisa a seu respeito não estaríamos aqui agora. — Lamento pelo ocorrido! E como está? — Estou tranquila. Gosto de Alice, mas não vou ficar tentando provar nada. — Eduarda eu não lhe contei ainda, talvez porque não tive
oportunidade, mas creio que já consegue entender. Sei que já te contei que antes de morrer Bruno me procurou. — Sim eu sei. Ele também escreveu sobre isto. Então se lembrou do diário e o que Bruno escreveu. Ele a pegou pelas mãos e a conduziu ao sofá. Sentaram-se próximos e Augusto continuou. — Eu estava no consultório, trabalhando e ele marcou um horário. Quando ele entrou não tinha associado o nome Bruno a ele. Pensava que era outro Bruno. — Bom dia! Augusto olhou para o homem parado diante dele. Ficou surpreso e perplexo. Conhecia-o e não conseguia imaginar os motivos que o teriam levado até ali. — Doutor Bruno! Não posso crer que veio se consultar comigo – havia ironia em sua voz. Bruno se sentou na cadeira diante dele e ficou olhando-o antes de responder. — Não – estava sério. — Então marcou horário comigo, pagou uma consulta para quê? Estou curioso. Bruno por instantes sentiu vontade de sair pela mesma porta que entrou sem nada dizer. Sentiu-se desconfortável diante de Augusto. Ao lembrar-se do motivo que o fizera ir até ali, tomou coragem e falou: — Estou aqui por Eduarda. Augusto franziu a testa em preocupação. — Doutor Augusto sabe que sou soropositivo, não sabe? Ele balançou a cabeça em afirmativa. — Bem... – sentiu um gosto amargo em sua boca e uma sequidão, mas precisava continuar — Estou tendo problemas com os medicamentos e... – ele coçou o nariz e passou a língua nos lábios — A minha imunidade está caindo rápido demais e a carga viral aumentando. Sabe o que significa, não sabe? Augusto continuou sem nada dizer. Balançou novamente a cabeça e encostou-se à cadeira.
— Não estou confortável e nem me agrada estar aqui, mas preciso de sua ajuda. — Não consigo imaginar como? – disse Augusto. — Bom, não estou sendo hipócrita, nem mesmo posando de bom moço, mas gostaria que cuidasse de Eduarda caso eu... – ele baixou o olhar, depois olhou firme para Augusto e disse — Caso eu morra! — Bruno eu... Faz tempo que não vejo Eduarda... — Sei disso. No entanto, sei que a ama. — Estou com outra pessoa. E olhando para você, francamente, não vejo motivos para acreditar que está morrendo. — Augusto, não estou feliz em estar aqui. Sinto-me ridículo! Mas me preocupo com Eduarda. Ela não tem muitos amigos, sua família é muito distante. Tentei reaproximá-los, eles se reconciliaram, mas Eduarda não consegue reestabelecer os vínculos que foram perdidos. Augusto fez uma expressão de espanto. Ele havia conseguido fazer com que Eduarda se reconciliasse com os pais. Era um homem persistente e corajoso. Mais uma prova disto é que ele estava ali, pedindo sua ajuda. — Sinto que Eduarda precisará de ajuda e não consigo pensar em outra pessoa a não ser você. Ela não poderá ficar sozinha e como eu disse, não tem muitos amigos, sua melhor amiga é minha irmã e quando eu morrer creio que ela não será capaz de ajudá-la, já que também precisará de ajuda. — Não está sendo pessimista demais? — Pode ser. Só sei que não estou reagindo à medicação e não sei explicar o porquê e confesso que não me agrada que se aproxime novamente da minha mulher, mas depois que eu partir não estarei aqui para ver e sei que cuidará bem dela. Augusto sentiu uma pontada ao ouvi-lo dizendo “minha mulher”. — O que te faz pensar que ela aceitará minha ajuda? Bruno sentiu-se fraquejar, mas precisava seguir. — Eduarda te amou muito. Sei que tem um carinho muito grande por você... E sei de seus sentimentos por ela. Tenho certeza que encontrará o caminho de volta ao coração da minha esposa e conseguirá fazer com que ela consiga se recuperar.
Bruno respirou fundo. Conseguir dizer aquelas palavras não foi fácil. Seu orgulho masculino, ciúmes, uma mistura de dor... — Amei muito Eduarda, Bruno e olhar para você é olhar para minha derrota. E sinto vontade de lhe socar a cara! Não acha muita prepotência de sua parte vir até aqui e dizer-me tal coisa? Fica subentendido que Eduarda escolheu a você, mas que quando morrer, posso ficar com ela! Ora Bruno, por mais raiva que sinto de você não posso aceitar o que me pede, porque apesar de tudo, não desejo sua morte. Seria um preço alto demais para tê-la de volta, não acha? — Não quero que fique com ela nem mesmo após a minha morte. Se dependesse de mim jamais tocaria novamente em minha esposa. Não foi isso que vim lhe pedir e mesmo porque esta decisão não é minha e nem sua. Eduarda precisa querer você. Não acha? — E você tem dúvidas de que ela vai me querer? Não sabe nada de Eduarda e eu. — O que está insinuando? – desejou socar a cara dele. — Não estou insinuando – Augusto o olhou com firmeza e com um sorriso irônico continuou — Não julgue Eduarda tão frágil. Ela é mais forte do que pensa. — Eu sei, não precisa me dizer nada sobre Eduarda, a conheço muito bem. O clima entre eles estava tenso. — Acha mesmo né, Bruno! Acredita mesmo nisso? Quando você despareceu Eduarda se apaixonou por mim, íamos nos casar e sei que foi real tudo que vivemos. — Mas quando voltei, ela voltou para mim. — Não seja tão triunfante. Ela me amava, mas... — Ela me amou muito mais. Ela escolheu a mim. — E já se perguntou por quê? Na verdade, ela não te escolheu, eu deixei o caminho livre doutor. Ela não terminou comigo. Eu terminei com ela, sou ciumento demais para dividi-la com você mesmo que fosse em pensamentos. Bruno sentiu ódio de tal revelação e a vontade de socá-lo estava aumentando.
— Está sendo ridículo! — Claro que estou. Abrir mão dela foi à coisa mais difícil e a mais tola de toda minha vida e ainda quer que eu seja o quê? — Nunca abriria mão dela! — Claro que sim, tanto que o fiz. Esqueceu-se que fui embora? Sei que Eduarda te amou, mas quando voltou ela amava mais uma ideia do que a você mesmo. A ideia do primeiro amor! Ela “escolheu” você, porque em seus sonhos desejou viver para sempre com o primeiro amor dela. — Doutor, não sabe o que diz. Não sabe nada sobre mim e Eduarda e não pretendo lhe explicar. Só preciso saber que alguém vai cuidar dela... Só isso! — Por mais que eu deteste te dizer isso, você tem razão e eu amo Eduarda. E lamento te dizer que ainda estou presente nos sentimentos de sua mulher. Não precisamos estar juntos para amarmos. Amo Eduarda para amá-la e não para ser amado, visto que nada me dá mais prazer do que vê-la feliz. Consegue amá-la assim, doutor Bruno? Seria capaz de abrir mão do amor de sua vida para vê-la feliz? E tem mais, estou feliz, tenho uma mulher bastante legal ao meu lado. Amo demais Eduarda para desejar sua morte! Desejo que viva bastante, sem hipocrisias. — Fui capaz de abrir mão do amor de minha vida para vê-la feliz. — Ela estava sem memória e você desesperado por saber do HIV. Suas emoções estavam abaladas. Não conta. Eu abri mão dela, enquanto ela sabia que me amava. Ela não quis terminar, eu é que fui tolo e não pude suportar que ela nutria algum tipo de sentimento por você, mas você sabe que ela nunca me esqueceu, caso contrário não estaria aqui. Bruno desejou muito quebrar-lhe a cara. — Se não amasse Eduarda mais do que a mim mesmo, com certeza não estaria aqui agora. Não duvide disso. E não sabe a força que estou tendo que fazer para não quebrar a sua cara. — Compartilho do mesmo sentimento. Bruno entregou-lhe um papel dobrado. — O que é isso? — É o telefone da família dela, de alguns contatos, meu médico para se inteirar de algo... Ou seja, caso aconteça algo, para você poder avisar.
— Já lhe disse que não vou fazer isso! — Bom, não tem que me responder agora, não pretendo morrer hoje. Até lá você decide se vai ajudá-la ou não. — Bruno, ajudaria Eduarda em qualquer ocasião. Não preciso que me peça isso, não percebeu isso ainda? — Era o que eu queria ouvir. Bruno se levantou e caminhou até a porta, saindo sem olhar para trás. Augusto ficou olhando o papel sobre a mesa e sentiu vontade de rasgá-lo e jogar na cara dele. Que arrogante! Pegou o papel dobrou-o e guardou na gaveta de sua mesa. Augusto contou em detalhes a visita de Bruno. — Então, 15 dias depois fiquei sabendo que ele estava internado e que seu estado havia piorado. — Agora faz sentido o Doutor Jander ter ligado para você. Bruno pediu a ele que entrasse em contato com você, porque tinha lhe pedido para fazer o resto. — Acho que foi isso. Tive muita raiva dele, Eduarda. Não precisava que ele me pedisse nada, sempre estaria do seu lado. Basta olhar nos meus olhos e assim verá o que tenho no coração. É o mais puro sentimento, é a verdade! — Eu sei disso Augusto. Não duvido de seus sentimentos e nem do que me diz. Você me ajudou e sei que foi por vontade própria. E não me importaria se fosse por causa do pedido de Bruno. Ele estava certo, eu precisava de alguém para me ajudar a fazer uma leitura positiva da perda e não importa o que te trouxe para mim, o que importa é que chegou. — Leitura positiva? — Sim. A vida, ela continua, quase que milagrosamente. Augusto sorriu para ela. — Eduarda eu te amo. Ela fechou os olhos e uma lágrima escorreu pela sua face. Uma mistura estranha de tristeza e alegria... Uma
combinação estranha era o que sentia. Pode visualizar o rosto amável e plácido de Bruno lhe sorrindo, como se fosse uma aprovação. Sentiu-se liberta. — Desde o dia que entrei naquele consultório em busca de respostas e te vi, meu coração bateu por ti. Foi ali que Deus começou a nos unir e me mostrar que existe uma luz em toda escuridão. Foi muito sutil, mas foi intenso, planejado, detalhado... Não importa o que vão dizer, conseguiremos seguir em frente e vencer as barreiras. Eu sei, hoje eu sei, foi Deus quem deu você para mim e não vejo motivos para ficar triste, porque se este amor nasceu das mãos de Deus é porque seria assim, e não posso mais fugir. — Então não fuja – sua voz saiu emocionada. — Eu-te-amo Augusto – havia conseguido pronunciar o que seu coração gritava — Eu te amo! – sua voz saiu entre lágrimas. Naquele momento sentiu que as portas da prisão haviam sido abertas, que a luz havia entrado definitivamente na escuridão. A liberdade era algo que precisava para sentir a felicidade plena. E, de repente, sentiu-se livre. Não sabia quando havia sido presa e nem por quem ou por qual motivo, mas só naquele momento pôde perceber que vivia com medo de julgamentos e de ser condenada por seus deslizes e que vivia uma liberdade vigiada, controlada... Ao pronunciar aquelas palavras, sentiu-se definitivamente livre. Ela se aproximou de Augusto e acariciou seu rosto, que se inclinou para receber seu toque. Ele fixou seu olhar no dela com tal encantamento que palavras não seriam capazes de descrever. Havia esperado muito para ouvir aquela declaração. Eduarda já havia dito que o amava, no entanto, havia a ameaça de recordar-se de Bruno. Sabia que ela gostava dele, que havia conseguido tocar-lhe o coração, mas o amor de Bruno, os sonhos e o encanto de reviver o primeiro amor havia sido terminal para seu relacionamento com ela. Viu suas esperanças acabarem quando Bruno retornou para a vida de Eduarda, então se acostumou a viver sem ela e seguiu sua vida.
A vida, porém, possuía caminhos que jamais pensamos trilhar. E esta era a magia de se viver! O inesperado, o surpreendente... Fazem valer cada respiração, cada pulsar do coração. Claro que existiam surpresas desagradáveis e dolorosas, mas sempre encontraremos flores entre os espinhos e as alegrias valiam por cada lágrima. O sol sempre encontra uma forma de brilhar. Jamais poderia se imaginar caminhando novamente para ela, seu grande amor. Mas a vida, surpreendentemente, encarregou-se de uni-los. Não foi fácil. Não desejou a partida de Bruno, mas estava ali, nos braços de quem sempre desejou e amou mais que todas, mais que tudo! E agora, não permitiria que mais ninguém lhe tirasse esta felicidade! — Eduarda! Posso te garantir que não desejei nem por um segundo sequer a morte de Bruno! Mas não me peça para negar que sempre te desejei! Eu morri todos os dias esperando você. Não sei explicar, mas toda vez que tentei te esquecer, meu coração me dizia que te encontraria. O tempo trouxe o seu coração para mim. Não sou capaz de negar que estou feliz por ter você pra mim. Não queria que tivesse sido da forma que foi... Ah, Eduarda, não vou ficar me desculpando com as pessoas e nem tentando entender o destino. Eu me afastei, fui embora, fiz tudo que fui capaz para ficar longe e te esquecer e, no entanto, estou aqui, onde sempre quis estar! Eduarda não conseguia desviar seu olhar, era como se estivesse hipnotizada por ele. Era tão intenso e tão real, mas parecia estar sonhando. Ele então se aproximou, não precisava de mais palavras e a beijou, ávido por aquele momento, sem se importar com mais nada. Segurou-a com firmeza e ao mesmo tempo com toda doçura que era capaz! Sorriu beijando-lhe e sabia que agora ela era sua. Um dilúvio de emoções aconteceu naquele momento. Eduarda havia guardado Augusto em uma gaveta secreta dentro de seu coração e deixou que Bruno tomasse conta das outras,
no entanto, não sabia em qual momento Augusto havia saído e preenchido todas as gavetas e quem estava guardado na secreta agora era Bruno. Quando isso aconteceu? Não importava mais. Havia encontrado a luz e sempre quando a luz chega é possível enxergar o que sempre esteve ali oculto pela escuridão que se fazia presente. Augusto estava ali, seu grande amor! Abraçou-o com mais força. Lágrimas rolavam pela sua face. Augusto colou sua testa na dela sem soltá-la de seus braços. — Porque está chorando meu amor? – sussurrou em seu ouvido. — Não se preocupe, estou tão feliz que as lágrimas são de felicidade. Percorremos por caminhos que já não era possível voltar. Seguir foi um tormento secreto e constante. E estou aqui agora, com você, onde eu também sempre quis estar, Augusto. Ele a abraçou. Entendia cada palavra que ela dizia... E naquele momento toda tristeza pareceu ficar muito longe.
XL
E
duarda havia prendido os cabelos com fios soltos moldando-lhe o rosto, sob o círculo de pedras brilhantes e transparentes. Ao se olhar no espelho, reconheceu que o vestido era lindo e achou-se bonita. Estava impecável no dia do casamento! Havia um ar de fragilidade, ao contrário da imagem que transmitia no dia-a-dia. A partir daquele momento a realidade começou a se anuviar e com os sentidos entorpecidos viu-se parada na porta da igreja e de braços dado com o pai. Era impossível não se lembrar dele: Bruno. A presença de seu pai ali era mais uma prova do quão companheiro e cuidadoso ele havia sido. Sentiu uma saudade, mas estava feliz. — Está linda! – seu pai comentou com efusão, após ajudar a noiva a se preparar para entrar pelo salão principal. — Obrigada – disse quase inaudível. — Eu também me lembrei, hoje, dele! Eduarda o olhou com surpresa! Será que era tão nítido que seus pensamentos sempre voltavam em Bruno? — Se ele estivesse vendo, lá onde ele está, tenha certeza, estaria lhe achando linda! E estaria feliz. — Eu... — Não diga nada, filha. Bruno foi um homem muito digno e correto enquanto viveu. E isso não muda pelo fato dele ter partido. Se estiver de lá vendo, continuaria sendo integro e justo. Lamento não ter dito isto a ele. Sei que ele aprovaria esta união. Ao caminhar por esse tapete, ao centro do salão, não pense nele, veja apenas seu noivo, olhe-o e veja apenas Augusto! Esteja inteira e seja só dele. Assim como foi de Bruno! — Não precisa me dizer isto pai, farei isso! Amo Augusto.
E ele sabe que Bruno será sempre uma lembrança para mim, e que não pretendo apagá-lo de minha memória! A porta se abriu e ao som da marcha nupcial ela entrou. Ao visualizar Augusto de pé, esperando-lhe, seu coração se aqueceu. Era sempre assim, e teve certeza que seria para sempre! Não havia frio, escuridão, tempo ruim, tristezas ao seu lado. Ele tinha o poder de transformar suas lágrimas em sorrisos e fazer com que ouvisse notas musicais apenas com seu olhar, mesmo se estivessem no mais absoluto silêncio. A emoção foi evidente e tocou a todos. Os olhos de Augusto marejaram de lágrimas. Não foi possível segurar. Eduarda já sabia que se emocionaria. Cada passo que dava naquela igreja em direção ao seu amado, resumia toda sua trajetória, tudo que viveu, tudo que passou foi para poder chegar àquele momento. Não havia dúvidas. Foi uma cerimônia simples, para pouquíssimas pessoas. Muito reservada. Todos ali sabiam da história dos dois e não teve como não sentir emoção, alegria e saudade... Fizeram os votos nupciais e somente quando ele colocou a aliança em seu dedo que não conseguiu mais segurar e sentiu as lágrimas rolando em seu rosto. Estava usando um brinco que havia feito com as alianças de seu casamento com Bruno e estava recebendo uma nova aliança. Nesse instante, o tempo pareceu parar. Ela se conscientizava de ter prometido amar e honrar Augusto até que a morte os separasse, assim como Bruno o fizera em relação a ela. Então fechou seus olhos e pediu em pensamento: “Senhor, não me leve este amor também. Abençoe que nossa união seja longa, duradoura e feliz. Que desta vez eu vá primeiro ao seu encontro. Já passei por esta dor e, por favor, se puder poupa-me de repetir tamanha tristeza.” Antes de abrir seus olhos sentiu os lábios de Augusto sobre os seus. Felicidade? Não, precisaria encontrar outra palavra para expressar o que sentia, porque felicidade era pouco! Olhou para Augusto e seus olhares se encontraram em cumplicidade. Não precisavam pronunciar nada, era um encontro de almas.
Finalmente chegou a hora de assinarem o livro de registro e em seguida receberem as congratulações da família e dos amigos. A Igreja possuía um salão de festas onde todos foram recepcionados. Procurou por Alice, mas ela não estava presente. Entristeceu-se por segundos, mas quando avistou doutor Jander, sorriu. Ele se aproximou e a abraçou. — Obrigado por ter vindo. — Estou muito feliz por você. Está muito linda! Parabéns minha querida, desejo-lhe toda a felicidade. Ela apenas sorriu. Estava emocionada. A presença de Bruno se fazia constante. Todos os convidados daquela cerimônia conheceram Bruno e sua história com ele. No entanto, eram seus amigos, familiares e pessoas que estariam em sua vida para sempre e que também faziam parte de sua história com Augusto. Sabia que todos se lembraram de Bruno. Não tinha como não se recordar de alguém que havia sido tão amado e que seria assim para sempre. Eduarda aprendeu que não precisava ver, ouvir e estar com Bruno para senti-lo e amá-lo. Sabia que seu amor era eterno! Um amor para recordar com as mais belas lembranças. Augusto, que estava conversando com Dr. Jander, aproximou-se dela e a abraçou pela cintura. — Posso adivinhar o que está pensando? — Me conhece tanto assim? — Posso dizer que te conheço bastante, não o quanto gostaria, por isso preciso de mais mil anos ao seu lado. Eduarda sorriu. — Sei que se lembrou de Bruno. Eu também. Ela se virou para ele e quando tentou falar, Augusto colou seus dedos com carinho em seus lábios, impedindo-a de pronunciar qualquer coisa. — Houve uma época que meu maior medo era de que você se lembrasse de Bruno. Hoje eu posso dizer que não temo mais suas lembranças. Sinto um pouco de ciúmes, mas eu sei que não tenho o direito de impedir suas memórias, elas são suas. Saberei
controlar meu ciúme que por instinto tenta aflorar, mas sou racional e sei que me ama e agora é minha! — Augusto eu... — Não me explique nada, não precisa. Sei de toda nossa trajetória até aqui e o que mais quero é descobrir o que a vida tem para nós daqui para frente. Você é livre meu amor. Viva suas emoções, seus sentimentos... E me ame! Serei feliz sempre, só pelo fato de ter o seu amor. Ele a beijou com uma emoção jamais sentida antes. Ela agora era sua esposa, sua companheira, sua mulher. — Vamos sair daqui... – sussurrou ele em seus ouvidos. — Doutor, que feio! Sair da festa antes de partir o bolo! — Vamos resolver isso agora – sorriu e piscou para ela. Levou-a pelas mãos até o bolo e as pessoas juntaramse em sua volta. — Agradeço a presença de todos. Vocês são parte de nossa história, nossa trajetória e estamos muito felizes de vocês, hoje, estarem presenciando este momento que é tão único, mágico e especial para nós. Obrigado a todos! Todos brindaram e eles partiram o bolo. — Pronto, partimos o bolo. Falta mais alguma coisa? – voltou a cochichar no ouvido de Eduarda. — Não compreendo tamanha pressa! Mas falta sim, jogar o buquê. — Não entendo porque tantos rituais em casamentos. Eduarda sorriu e respondeu abraçando-o. — E temos que conversar um pouquinho com cada convidado. O “pouquinho” durou até depois das três. Caixas de champanhe, montanhas de caviar e pilhas de canapés fascinantes. A música estava alta, porém agradável, a banda era animadora. Alguns minutos de conversa aqui, outro momento ali, corroeram horas do tempo. Enredada na alegria de sua amada não se importou. Na pista de dança lotada, ele permitiu-se relaxar nos braços de Eduarda.
— Não sabia que dançava bem! – comentou Eduarda. — Vai descobrir que faço outra coisa muito melhor que dançar! Eduarda sorriu da malícia de seu amado. — Não conhecia esse seu lado tão... — Não sabe a força que fiz para me controlar. No entanto, só consigo olhar para você agora e saber que é minha, minha mulher. — Está me assustando doutor. — Não é isso que seus olhos estão me dizendo. — E o que eles dizem? Ele a envolveu pela cintura e trouxe-a para junto de si com firmeza. — Vou te contar quando estivermos só nós dois. Havia uma intensidade naqueles olhos que chegou a perder o fôlego. E assim tudo foi muito lindo, sem intercorrências. Augusto e Eduarda enfim haviam ido para um hotel. — Poderia passar a noite dizendo o quanto a amo e estou feliz... — Mas? — Acho que posso fazer melhor, Sra. Eduarda Cristina Ignacchiti Bersan – sussurrou ele — Posso lhe mostrar? — Só se for imediatamente – responde ela em seu ouvido. — Por quanto tempo deseja que eu faça estas demonstrações? – Augusto estava retirando o paletó do terno e afrouxando a gravata. — Só quero se for por toda a minha vida. Ele a segurou em seus braços e desta vez não iria soltá-la. Com olhar inebriante de paixão, desejo e amor ele respondeu: — Por toda a minha vida é um bom começo para mim! O amor é paciente, é benigno, o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece; não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo suporta. O amor jamais acaba; agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior destes é o amor. 1 Cor 13 : 4-13
XLI Página 1 Comecei a escrever este diário por causa de um acidente que tive e me fez perder a memória. Passei por momentos ruins e me vi perdida em uma solidão que estava apenas em mim. Tentei me lembrar de todas as memórias apagadas inutilmente e quando desisti de lembrar, as memórias vieram como avalanche e destruíram meu mundo. Não sobrou nada. Bom, se eu perder a memória novamente terei este diário, que vai me contar, por mim mesma, minha vida, pois se perdi a memória uma vez, posso perder outra. Quem pode saber?! Por seis anos vivi com pessoas ao me redor que me contavam histórias sobre minha vida que não faziam o menor sentido para mim. Em 1992 entrei para faculdade de Direito e conheci Bruno, que já estava em seu quarto ano de medicina. Um rapaz popular, lindo, estudante brilhante e dedicado. Um rapaz que se dizia livre, que veio ao mundo para ser feliz e não queria se prender a ninguém. Conhecemonos em uma destas festas de faculdade. Senti-me um pouco deslocada porque não conseguia acompanhar o ritmo daquela turma que bebia, dançava e namorava sem compromissos. Bruno se aproximou de mim e perguntou se eu desejava sair daquele local. Sabia que ele queria apenas uma chance comigo, no entanto, não resisti aos seus encantos e me apaixonei. Por sorte ele também e em 1993 começamos a namorar e em maio de 1999 íamos nos casar. Eu estava com 25 anos, já havia me formado e feito mestrado, tive muita sorte de conseguir um mestrado no último período de faculdade. Bruno já era médico e trabalhava no hospital... Depois contarei de nossas carreiras. Então naquela manhã, foi um dia que amanheci radiante, uma felicidade que não cabia em meu peito. Eu e Bruno vivemos muitas
coisas juntos, a faculdade, as festas, viagens, fizemos tantos planos e eles estavam apenas começando naquele dia. Arrumei-me para a cerimônia com todo encantamento, sonhos de uma moça que se apaixonou e casaria com sua primeira paixão, seu primeiro amor. Passei um dia incrível em uma dessas casas de noiva, onde durante todo o dia cuidaram de mim, massagens, cabelo, unhas, pele... Um dia de princesa. Então no horário marcado eu estava pronta, linda, radiante. Estava tudo perfeito, exceto pela ansiedade que não conseguia controlar. ... Página 4 Cada detalhe daquele dia havia sido planejado por dois anos, quando começaram a falar em casamento. Planejei a música que iria ser tocada, os convites, as flores e toda decoração, cerimonial... Enfim, cada mínimo detalhe foi planejado por mim. Conversei com Bruno aquele dia por telefone. Ele também estava ansioso. Recordo-me de suas palavras: — Não vejo a hora de te ver entrar pela igreja e enfim você e eu sermos um só! Sei que meus olhos nunca viram e jamais verão noiva mais bela que você! Amo você querida! Então fui para o carro radiante, feliz, como qualquer noiva a caminho da igreja. Alice esteve o dia todo comigo. Fomos juntas no carro. Cláudio, o noivo da Alice, dirigia o carro. Seriam padrinhos. Estávamos conversando alegremente e a cada minuto me sentia mais ansiosa. Estava sozinha no banco de trás, o vestido bastante evasê e a cauda imensa ocupava todo o espaço de trás do veículo. Estávamos por volta de uns 70km/h na direita da rodovia quando, de repente, sentimos um choque... Não deu para ver muita coisa e nem mesmo raciocinar. Ouvi um barulho imenso, ensurdecedor. Senti meu corpo sendo arremessado e um impacto forte quando quebrei o vidro do para-brisa com meu corpo e a dor foi imensa! Foi apenas segundos, mas pude ver o olhar de pavor de Alice, que gritava e colocou as mãos na face para proteger-se dos cacos que voavam em sua direção e pude ver Cláudio todo sujo de sangue, parecendo imóvel no banco do motorista. E assim,
como se fosse um filme em câmara lenta, me via sendo arremessada para longe, não do veículo e sim de um sonho que sonhei por toda minha vida, de um sonho que planejei com Bruno há seis anos. Estava sendo jogada para longe de uma vida linda que me esperava a menos de dez minutos. Lembro-me do meu desespero e que orei em silêncio pedindo a Deus para não me levar! A gente não sabe quanta coisa é possível pensar e perceber em segundos, quando se está em uma situação como esta. A dor que senti quando meu corpo bateu em choque com o chão foi tão intensa que desmaiei. Não vi mais nada. Quando acordei no hospital, senti-me tão confusa, tão estranha. Não sabia o que estava fazendo ali. Então vi Alice sorrindo para mim. Tentei sentar e não conseguia me mexer direito. Sentia dores terríveis e assim começou meu martírio. Informações de que eu estava indo me casar, que tinha um noivo, o nome Bruno, nada fazia sentido para mim. No início, achei que fosse piada, pegadinha, mas todos diziam a mesma coisa, então entendi que era verdade. E onde estava este tal de Bruno? ... Página 8 Tive alta, fiz fisioterapia por meses, vi todas as fotos, li todas as cartas, li a matéria que saiu no jornal, mas nada me fazia lembrar. Não fazia sentido para mim. A minha mente havia apagado completamente qualquer lembrança de Bruno. Não suportava mais aquele assunto. Bruno... Bruno... Onde estava este fantasma? Cansei de tentar lembrar, de buscar por lugares e pessoas que pudessem me fazer lembrar. Estava intrigada pelo fato de Bruno ter ido embora. Não fazia sentido. Nada nesta história fazia sentido para mim. Comecei a me sentir deprimida, angustiada, sem vontade de fazer nada. Fechei-me em meu mundo e percebi que estava afundando em solidão e depressão e precisava de ajuda. Foi então que resolvi procurar, após muita relutância, um psicólogo e psiquiatra. Havia dado sorte de encontrar um médico psiquiatra e terapeuta. Jamais me esquecerei daquele dia. Ao olhar para o médico naquela
sala meu coração saltitou dentro do peito. Senti minhas bochechas corarem e o coração acelerar. Era bonito demais e jovem demais para ser médico. Desejei ir embora, tinha a sensação que ele poderia ver o que se passava comigo. Eu sei que me apaixonei naquele instante em que ele parou de olhar para o papel na mesa, ergueu a cabeça e olhou para mim. Seu olhar veio de encontro ao meu e misteriosamente sabia que eu iria amá-lo por toda minha vida! Tentei fugir, me enganar, achava que estava sendo uma adolescente boba... Em vão. ... Página 12 Quando conheci Augusto, Bruno era um estranho em minha vida. Apesar de todas as provas e evidências de um relacionamento sério e duradouro, eu não me recordava de nada. E cada vez mais Bruno deixou de existir para mim. Antes eu ficava tentando me lembrar dele, mas quando conheci Augusto essa busca por Bruno cessou sem nenhum esforço. Não foi proposital, simplesmente fui tomada por uma felicidade tão intensa que não havia lugar para tentar resgatar essas lembranças perdidas. Para quê? Novamente não fazia sentido me lembrar. Amava Augusto com todas as minhas forças e com toda intensidade que alguém é capaz de amar outro. Apesar de sempre sentir um misterioso vazio. ... Página 15 Quando recuperei a minha memória, foi um dos piores dias da minha vida. Um turbilhão de emoções me invadiu feito um tsunami que não permite nada ficar no lugar. Devastou com minha vida. Senti como se tivesse acabado de acordar do acidente. Toda a dor que eu deveria ter sentido há quatro anos e quatro meses atrás. A dor de um casamento interrompido; a dor do abandono da pessoa amada; a dor dos sonhos que jamais voltariam. Eu sabia que mesmo se reatasse com Bruno, aqueles sonhos haviam se perdido para
sempre. Senti que o tempo não havia passado, porque as emoções, o amor que eu sentia por ele voltou como se sempre estivessem lá e nunca houvesse ido embora! Mas eu sabia que haviam se passado quatro anos e quatro meses do acidente, porque quando me lembrei de Bruno eu não me esqueci de Augusto. Um terror se apoderou de mim. Era imoral dizer que amava os dois. No entanto era isto. E queria uma explicação de Bruno pela sua ausência. ... Página 20 Não era uma escolha fácil e simples, mas meu coração não aceitava a ideia de ficar longe de Augusto. Eu o amava e iríamos nos casar. Iria dar um jeito de esquecer o que sentia por Bruno. Nunca tive pena de Bruno. Jamais fiquei com ele por dó, mas o fato dele ter ido embora para não me expor à dor e ao sofrimento me fazia odiá-lo e amá-lo ainda mais. Sentia-me uma pecadora. ... Página 29 Quando Augusto terminou comigo, eu não acreditei. A dor que senti foi dilacerante. Chegou a ser física. Amava-o e não queria perdê-lo. Só depois de muito tempo pude entender o que Augusto queria dizer. Não seria capaz de esquecer Bruno e ele não seria capaz de conviver com isso... Foi difícil encontrar um jeito de viver e ser feliz sem ele. Demorou muito. ... Página 35 Quando Bruno me olhou, senti meu mundo parar. Naquele dia eu não era mais noiva de Augusto. Era como se eu estivesse livre para reviver e retomar a minha vida, que havia sido arrancada de mim por
um caminhoneiro bêbado. Eu sabia que jamais esqueceria Augusto, mas que a vida estava me dando outra chance de viver os planos feitos há muitos anos. Então quando Bruno disse que ainda me amava, era como se o tempo tivesse voltado e aquele acidente não houvesse acontecido. Quando ele me beijou, eu soube que meu amor ainda era o mesmo, exatamente o mesmo. ... Página 40 Fui muito feliz com Bruno. Tivemos momentos maravilhosos. Aprendi muito com ele sobre o HIV, o preconceito e todos os temores em relação a essa doença. Bruno precisava de mim e eu dele. Fomos parceiros, amigos, amantes. Não me importava se não teríamos muito tempo juntos, embora desejasse que fosse para sempre. Nunca foi por pena! Isso me faz muito feliz. E ele também sabia, isso bastava. ... Página 50 Quando Bruno partiu, de certa forma, também parti. O que vivemos foi algo que não consigo descrever com palavras, pois qualquer uma será fútil e banal diante da magnitude de nosso amor. Sua partida ainda me dói, mas a gente aprende a viver com tudo: até com a dor! Sei que esta dor nunca irá sarar! É uma perda irreparável. Desejei por várias vezes perder a memória novamente, em definitivo para poder esquecer, apagar esta dolorosa lembrança. No entanto, se isso acontecesse as melhores recordações também seriam perdidas. Não quero esquecer-me do seu sorriso, do seu olhar, seu abraço, seu cheiro, seu gosto... Então decidi viver meu luto de forma sadia: não nego minha perda e vivo as lembranças da forma como elas veem. Se são tristes, me permito chorar e sentir a dor da saudade. Se forem alegres, me permito ser feliz e até mesmo sorrir sozinha. Conhecer Bruno foi algo maravilhoso que aconteceu em minha
vida. Com ele vivi momentos emocionantes, felizes e marcantes. INESQUECÍVEIS. Ainda não me conformo com sua ida tão cedo, tão brusca e triste. Mas aprendi a respeitar a decisão daquEle que está acima das minhas vontades. No entanto, não pense que fui sempre tão pacífica! Senti raiva! Muita raiva da vida ter levado ele tão cedo, de não nos permitir seguir nossos planos por completo. Comecei a sentir-me à beira da loucura! Hoje, consigo sentir alegria e agradecer a Deus todos os dias por me permitir viver este amor! Aprendi que não preciso tocá-lo para sentilo, porque sou capaz de sentir sem tocar! Não preciso vê-lo para tê-lo ou para que ele esteja em meu mundo, embora deseje vê-lo e tocá-lo todos os dias. Ele se faz presente onde quer que eu esteja. Se eu descer ao mais profundo mar ou subir ao mais alto monte sei que ele vai estar lá, porque vai comigo, onde quer que eu vá. Quando estou só, fecho os olhos e vejo a gente. Em segundos estou lá, no nosso mundo, na nossa vida... Mesmo em lugares diferentes estaremos sempre juntos. Foi um processo lento e doloroso! Não foi fácil. Mas o que é fácil nesta vida? Hoje acredito que tudo tem seu tempo e que o tempo é o melhor remédio para curar a alma. Sei que levará uma eternidade para expurgar a sensação de estar em seus braços e esquecer todas as emoções e sensações vividas ao seu lado. Não se esquece o primeiro amor! Não se esquece um amor, nunca. É muito difícil pra mim dizer isso, e sei que será para outros que lerem isto, mas hoje me dou ao luxo de dizer o que sinto da forma que sinto. Eu sempre amarei Bruno. É um fato inevitável. Seu corpo não está mais aqui, mas o que ele foi, o que representou, o que vivemos estará sempre vivo dentro de mim. Somente quando eu partir é que serei capaz de apagar tudo que vivemos. ... Página 52 E assim ele se foi e deixou-me com as lembranças. Pensei que nunca mais seria feliz, mas o Senhor cuidou de mim, assim como cuida
de todos os seus filhos! Trouxe luz para minha escuridão, calor para meu frio, alento para o meu desespero através de uma pessoa, Augusto. Augusto! Ah, Augusto! Amo! Amo! E vou amar para sempre! Realmente Deus foi generoso comigo, deu-me dois amores reais e verdadeiros, enquanto algumas pessoas passam pela vida e não sabem do que estou falando. Tive a sorte de ter dois grandes amores. Augusto é lindo, gentil, amoroso, firme, decidido, carinhoso... Um sonho! Amo estar com ele, conversar com ele. Adoro seu abraço, seu cheiro. Amo sua voz, que me aquece e enlouquece. Amo seus beijos... Ou seja, amo Augusto de todas as formas que uma mulher pode amar um homem. Ele me ajudou a superar a perda de Bruno! É Estranho, mas é como se Deus me aplicasse uma dose letal de veneno – a morte de Bruno – e aplicasse o antídoto – Augusto – simultaneamente. Foi bem assim que senti! Não falamos muito de Bruno, guardo comigo minhas lembranças, porque são minhas e não preciso despertar sentimentos ruins com memórias tão boas! Sei que ele compreende meus sentimentos e sabe que um amor nunca concorreu com o outro. Ele sabe que jamais deixarei de amar Bruno, que na verdade é muito mais do que uma lembrança, no entanto, Augusto sabe, e sabe bem, o tamanho do meu amor por ele. Incomparável, imortal. Um verdadeiro encontro de almas. Escrevo estes sentimentos para que não se perca caso minha memória venha a falhar. Se algum dia perder a memória novamente, quero saber, através de mim mesma, o que se passou. ... Hoje eu sei e não tenho mais vergonha: amo Bruno e amo Augusto. Por muito tempo achei imoral, mas o amor não é imoral. Nunca desejei ter os dois ao mesmo tempo. Essa sempre foi a minha dor, para ter um era preciso abrir mão de outro. E hoje sei que amei amar o Bruno da faculdade, que me protegeu, que acolheu e me ensinou a deixar de ser a menina e ser mulher. Amei o sonho de me casar com meu primeiro amor... Amei! Hoje vejo com clareza, que meu amor por Augusto, embora guardado na gaveta secreta, sempre existiu e que qualquer caminho me levaria de volta para ele.
Nestes últimos quatro anos, Augusto e eu viajamos, dançamos, namoramos e vivemos juntos cada momento plenamente. E agora nossa vida está entrando em outra fase. Augusto me proporcionou o que Bruno não teve tempo para fazer, e embora seja difícil aceitar, não seria com ele. Existem mistérios que jamais teremos respostas. Sempre soube que seria Augusto o meu futuro. Nossa história agora será única, porque teremos o fruto do nosso amor. Estou grávida de uma menina... Volto a dizer, tenho alguém lá no céu que verdadeiramente gosta de mim! Não tenho o direito de duvidar, nem por um milésimo de segundo que Ele não existe! Um dia, quando eu partir deste mundo, quero vê-lo e poder agradecer por todo o cuidado que teve comigo, uma simples mortal! Eduarda ouviu o barulho do carro estacionando na garagem. Fechou o diário e guardou-o na gaveta. Levantou-se com cuidado e foi receber o marido. — Oi amor. Como vocês estão? — Estamos bem! – Eduarda o abraçou – Cuidado! Está abraçando duas de uma só vez! – Ele a beijou sorrindo! — Isto sim é mágico! – Augusto se abaixou e beijou sua barriga. — Já arrumei as bolsas. Está tudo pronto para irmos para o hospital. — Eu disse que ajudaria você! — Está tudo tranquilo! Não se preocupe. — Estou ansioso. Não sente o mesmo? — Não sabe o quanto! Não vejo a hora de ter minha filha nos braços, ver o rostinho, saber que estará mesmo tudo bem... Eduarda não engordou muito, mas não teve como não ficar com uma enorme barriga. Teve algumas complicações durante a gestação. Fez bastante repouso e até tomou medicamentos para segurar um pouco mais. Conseguiu segurar a gestação até 36 semanas, o que para os médicos foi o máximo! Devido ao peso, seu útero começou a dilatar antes do tempo. Estava ansiosa e com medo.
Não conseguiu dormir bem à noite, a barriga grande demais a atrapalhava, dor nas costas, falta de ar e ansiedade. Pela manhã iriam ao hospital. O parto estava marcado para as nove horas. No outro dia, ainda bem cedo, levantou-se. Augusto virou e perguntou: — Tudo bem? Ela sorriu-lhe e disse: — Achei que estava dormindo. — Eu sei. Mas sabe que estou de olho, não quero que nada aconteça com vocês. Ele se levantou e ajudou-a. Era engraçado ter que ajudála a se vestir e tomar banho. Tudo era mais difícil com aquela barriga! Contudo, fazia com enorme prazer e Eduarda era muito forte, não reclamava de nada! Entraram no hospital tranquilamente apesar da ansiedade. Todos os procedimentos realizados, tudo dentro do esperado e então entraram para a sala de parto. Augusto acompanhava tudo de perto, segurando sua mão e seus olhares sempre se encontravam em mútua cumplicidade e felicidade! Então depois de alguns minutos, ouviu-se o choro do bebê e Eduarda olhou ansiosa para tentar vê-la. Maísa! Eduarda queria ver a filha e saber se estava tudo bem. Tentava se mexer para ver, mas estava imóvel da cintura para baixo. Não podia imaginar que um choro de bebê pudesse significar tanta alegria! Mas logo a enfermeira trouxe-a para seu colo e então a emoção foi algo sobrenatural. Não havia palavras, não havia nada comparado àquele sentimento. Segurou a filha nos braços e chorou de emoção. Olhou para Augusto e viu as lágrimas em seus olhos, também estava emocionado! — Bem vinda meu amor! Acho que já sabe, é a mamãe e o papai! “Oh Deus, muito obrigado!” – Augusto as abraçou e depois a segurou no colo.
Se alguém lhe tivesse contado há cinco anos que sua vida seguiria até aquele momento, duvidaria. Sempre sonhou em ser pai e com a mulher amada é uma emoção sem tamanho. Não podia explicar com palavras o que significava olhar para aquela vida que acabara de nascer. Sabia que era amor, mas não tinha ainda a dimensão de tudo. Era como se estivesse sonhando, voando e ainda estava nesse êxtase. Eduarda já estava no quarto e Maísa ficaria um tempo na incubadora de observação. Era prematura e precisava certificarse de que estava bem. Augusto se dividia entre suas amadas: ora estava com Eduarda, ora com Maísa, observando-a através do vidro e ambos compartilhavam a felicidade. ooo Eduarda e Maísa já estavam em casa. A pequena dormia e Eduarda ficava olhando-a sem parar. — Ela se parece com você! – sussurrou para Augusto. Eduarda sentiu que seria capaz de passar a vida toda olhando para sua filha. Percebeu que ela só existia há vinte dias, mas que já era a pessoa que mais amava. Não se lembrava de sua vida antes dela! Seria capaz de dar-lhe a própria vida! Sabia que a amaria para sempre e que não havia nada capaz de mudar este amor. Percebeu que todas as emoções que viveu desde as alegrias profundas até a mais aguda tristeza, tudo que pensou que havia vivido intensamente, nada se comparava com o que sentia por ela. Tudo acabara de cair por terra e um novo caminho se revelava. Parecia impossível, mas era um amor tão intenso, tão forte, tão unânime que não existia amor no mundo capaz de superar o amor de uma mãe pelos seus filhos. Na sua vida havia um novo sentido, novas prioridades e tudo que lhe era importante ficara de repente insignificante diante de sua pequenina Maísa. Sentiu uma sensação
nova, era como se seu coração batesse fora de seu corpo. Simplesmente inexplicável! Olhou para Augusto e sentiu que seu amor por ele havia fortalecido, e que ele agora lhe era ainda mais importante, que agora era além de seu marido, amor, amante, era o pai de sua filha. Haveria um laço eterno entre os dois. Sorriu ao saber que este laço seria impossível de ser desfeito, irreversível. Seu amor por ele havia chegado ao nível máximo, ao mais espetacular de todos os níveis. Sentiu-se plena, realizada, feliz! Então era assim, a felicidade plena existia, e estava ali, na sua casa, na sua vida! Sabia que agora, não existia nada que não fosse capaz de enfrentar. Valeu a pena cada oração, cada minuto de sua vida, que a levou até aquele momento! Enfim, o rio deságua no mar! Lembrou-se da mãe de Bruno e por instantes sentiu a dor que ela havia sentido. Percebeu o que Sônia havia lhe dito, sobre uma mãe perder seu filho e sentiu um aperto, um desespero, uma vontade de proteger sua amada. Sentiu-se impotente ao descobrir que a vida dela não estava em suas mãos. Então pensou em algo que desejava fazer! Foi até a gaveta do criado-mudo e a abriu. Segurou em suas mãos o caderno de memórias de Bruno. Olhou para ele por instantes, como se estivesse olhando para seu falecido marido, fechou os olhos e suspirou. Estava decidida. Escreveu algo em um pedaço de papel, colocou dentro do caderno e embrulhou-o de presente. Foi até a cozinha e chamou por Ângela, sua ajudante desde o quinto mês de gestação. — Ângela, preciso que me faça um favor! Vou anotar o endereço aqui e preciso que leve esta encomenda para mim. Precisa ser agora. Maísa está dormindo, vou dormir um pouquinho também. — Claro, Eduarda. Não demoro! Ficou parada vendo-a sair. Foi até o quarto de sua pequena e sentiu vontade de parar o tempo e niná-la para sempre! Mas era
muito egoísmo. Teria que saber aproveitar enquanto ela estava ali, antes de crescer e seguir sua própria vida. Desejou ter forças e vida para poder vê-la trilhar estes caminhos. Então percebeu a relação estabelecida com seu amado Augusto, porque quando os filhos fossem viver a vida, eles voltariam a ser apenas um para outro até que a morte os separasse. Ela suspirou, eram tantos sentimentos e se deu conta que estava apenas começando. Fechou os olhos e sorriu para Bruno, que lhe sorria em seus pensamentos. Quando os reabriu sentiu o olhar penetrante de Augusto. Ele lhe sorria. Não precisavam dizer mais nada... Não precisavam porque eles entenderam o significado de serem um só, porque compartilhavam os mesmos sentimentos e emoções, mas mesmo sem precisar eles diziam, como uma forma de carinho. — Eu te amo! – sussurrou ele. — Eu também. Eles olharam para a pequena que dormia, deram as mãos e disseram juntos em um sussurro: — Te amamos! – não haviam combinado, mas falaram juntos. Sorriram e sabiam que todos os dias iriam continuar vendo o extraordinário se revelar diante de suas vidas. E agora estavam juntos para poder ver e esperar pelos próximos acontecimentos. A vida havia lhes ensinado que de nada adiantava ficar ansiosos por coisa alguma, porque na verdade existiam coisas que não estavam em suas mãos controlar e que querendo ou não aconteceriam. Aprenderam que alguns chamavam isso de destino, outros de coincidência, mas juntos descobriram que era apenas a vontade de Deus se cumprindo na vida de cada um. E que quando se entregavam ao amor, este caminho sempre se revelaria com sol, flores e alegria.
XLII
D
ona Sônia não conseguia parar de chorar. — O que foi mamãe? Ela lhe entregou o caderno e respondeu em lágrimas. — Recebi de Eduarda ontem! Não consigo parar de ler. Alice abriu e começou a ler. Logo reconheceu a letra de seu irmão e as lágrimas também rolaram por seu rosto. — O que é isto? — Uma espécie de diário! Alice se lembrou de que o irmão escrevia no hospital. — Mas porque só agora? A mãe lhe entregou a carta de Eduarda. Dona Sônia, Faz tempo que não no vemos, não é mesmo? Preciso pedir-lhe perdão por muitas coisas, mas também preciso agradecer pela vida de seu filho Bruno! Incentivei Bruno a escrever no hospital e por muito tempo guardei para mim! Não pode imaginar o quanto o amei e ainda amo! Jamais deixarei de amá-lo! No entanto, só agora consigo saber o que é um amor de mãe! Minha filha está com menos de um mês de vida e já sei que sou capaz de morrer por ela! Então olhei para ela e pude sentir a sua dor. Somente uma mãe pode sentir e hoje eu sei disso, porque sou mãe. Neste caderno Bruno conta toda sua trajetória, a contaminação, nossa separação e reencontro! Mas fala também do amor que sentia pela mãe e irmã! Entendi que como mãe, tem o direito de saber, pelas palavras do filho, tudo que aconteceu! Coisas que eu não imaginava e sei que o mesmo acontece com a senhora! Perdoe-me por ter guardado isto só para mim! Fui egoísta, mas estou me redimindo ao entregar-lhe estas memórias.
Desejei publicá-las em um livro. Sei que as palavras de Bruno ajudarão muitas pessoas e que seria uma maneira de Bruno ajudar, mesmo após sua morte física! E se alguém tem o direito de dar vida a este projeto, é com certeza a senhora, que é a mãe de Bruno, quem o trouxe ao mundo e o educou, o amou e o criou de forma tão maravilhosa que me fez apaixonar e amá-lo por toda a minha vida! Abraços, Eduarda Alice segurou o caderno com força em suas mãos. — A senhora já leu tudo? — Sim! Você vai se surpreender com todas as revelações que estão aí. Alice nada disse. Estava emocionada e foi para seu quarto com o caderno.
XLIII
A
cena era a seguinte: ambiente fechado, mas amplo, muitos livros distribuídos em mosaicos sobre grandes mesas, muitas prateleiras e estantes, todas repletas de livros. Um grande telão mostrava pequenos trechos de um livro ao som de uma música que fazia muito sucesso no momento de Ana Vilela, que tinha a seguinte letra: “Não é sobre chegar ao topo do mundo e saber que venceu É sobre escalar e sentir que o caminho te fortaleceu É sobre ser abrigo e também ter morada em outros corações E assim ter amigos contigo em todas as situações A gente não pode ter tudo Qual seria a graça do mundo se fosse assim? Por isso eu prefiro sorrisos E os presentes que a vida trouxe para perto de mim” Em um canto, duas pessoas sentadas, debruçadas sobre uma mesa redonda, de cabeça baixa com um copo d’água ao lado de cada uma. Elas empunhavam canetas e se concentravam, pareciam escrever sempre alguma coisa nas primeiras páginas de um livro sempre igual, que outras pessoas, postadas em pé em fila à sua frente, vinham lhe estendendo. Ali, ao redor, outras tantas conversam em rodas. O coquetel estava perfeito, em ambiente extremamente agradável. Augusto observava tudo com tranquilidade. Eduarda e Sônia autografavam os livros que as duas juntas produziram
sobre os relatos que Bruno deixou: “Por Toda a Vida: In memoriam”! Sentia certo ciúme, mas logo passava quando via a alegria de Eduarda. Era espantosa a forma que amava aquela mulher! Era indescritível e imensurável! Ao seu lado tudo ficava tão mais fácil de superar. O cansaço, quando estava em seus braços, desaparecia. Uma vontade absurda de amá-la cada dia mais e mais. Sabia que estaria ao lado dela em qualquer momento, em qualquer circunstância! Após algumas horas estavam voltando para casa. Entraram e foram direto olhar a filha que estava dormindo no quarto! — Ah, Augusto! Estou tão feliz. Olha como é lindo olhar para ela dormindo! — Sim! — Vamos! Vamos tomar um banho e descansar um pouco! — Será que vai ser sempre assim? – indagou Augusto! — Como assim meu amor? — Sinto que encontrei meu pedaço do céu! – ele a abraçou! — Tenho certeza que sim. — Confesso que senti ciúme hoje. — Sabe que não precisa. — Não é questão de precisar, é incontrolável. Sei que me ama, mas Bruno se faz presente em sua vida e agora se eternizou nesse livro. — Sabia que ele cita você? — Eu? – arqueou a sobrancelha. — Sim. Decidimos publicar tudo que Bruno escreveu. E tem um capítulo que ele fala de você. — O que ele disse? — Não vou contar. Vou esperar você ler, principalmente a dedicatória. — Eduarda... — Augusto, sei que quando pensa em tudo que vivemos, existe uma parte que não é de boas lembranças, sei de tudo que
passou. No entanto, estamos aqui, casados, com uma filha linda, planejando ter outros filhos... Leia o livro. Sei que disse que não queria ler, mas estou te pedindo, leia. Você precisa dar um final para este enredo. Apenas lendo entenderá. E posso te assegurar que hoje eu te amo ainda mais, sempre penso que te amo tudo, mas esse tudo encontra uma forma de aumentar e aumentar infinitamente. Eu te amo! — Eu sei! – sussurrou ele — Eu sei! Augusto a beijou. Era sempre a mesma emoção do primeiro beijo e sabia que seria assim sempre! — Eu te amo Eduarda, por toda a minha vida! — E hoje eu sei que o extraordinário sempre fará parte de toda a nossa vida! Aquele que não ama permanece na morte. 1 Jo 3:14
A Autora
F
abiana Botinha nasceu em Contagem, Minas Gerais. Passou toda a adolescência na companhia de livros, que se tornou sua grande paixão e hobby. Casada e mãe de dois filhos, acredita no poder do amor e da família em toda a sua plenitude! Bacharel, e Licenciada em Ciências Biológicas, é professora da rede Municipal de Betim e professora da rede Estadual de Minas Gerais. Possui cinco pós-graduações, todas na área do ensino e da ciência: Especialização em
Educação Ambiental; Especialização em Gestão e Consultoria Ambiental; Especialização em Saúde Pública; Especialização em Psicopedagogia Clínica e Institucional com Ênfase em Educação Inclusiva; Especialização em Neuroaprendizagem e o Transtorno de Aprender. Além disso, possui diversos cursos e atualizações e está sempre estudando. Seu primeiro livro une o romance com a ciência, pois defende a ideia de que é preciso entender o que ocorre entre o sentir e o aprender, a emoção e a imaginação, para compreender, através da leitura, crenças e valores que norteiam a vida do ser humano. Site: www.fabianabotinha.com.br E-mail: fasbbotinha@gmail.com Instagram: @fbotinha Facebook: www.facebook.com/fabiana.botinha