Batalha nas ruas

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FABIANA DIAS

UM REGISTRO PELO OLHAR DE QUEM PARTICIPOU DAS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO DE 2013 EM SALVADOR

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Capa / Editoração eletrônica Rosalvo Marques S. Júnior Foto da capa/ Fotos internas Lúcio Távora | Agência A TARDE

DIAS, Fabiana. Batalha nas ruas: Um registro pelo olhar de quem participou das manifestações de junho de 2013 em Salvador / Fabiana Dias – Cachoeira (BA), 2014.

Livro reportagem resultado do Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo, pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL). Orientadora: Profª. Drª. Jussara Peixoto Maia

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Dedicatória Dedico este trabalho à minha mãe Maria Dias, que sempre acreditou e me ensinou que os estudos eram o caminho, ela que abriu mão de seus sonhos para colocar os meus à frente. Mãe, sem você eu não chegaria até aqui.

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AGRADECIMENTOS Quando achei que não conseguiria terminar este TCC a tempo entreguei nas mãos de Deus e lhe pedi que fosse feita a sua vontade esperando que a vontade dele fosse a mesma minha. E foi. Por isso, primeiramente, agradeço a Deus pelo dom da vida e por nunca ter me desamparado. Meus sinceros agradecimentos vão também para todos que de alguma forma doaram um pouco de si para que a conclusão deste trabalho se tornasse possível. A minha orientadora professora Drª. Jussara Maia pela paciência, pelo auxílio e por todo conhecimento transmitido. A minha família: minha mãe Maria Dias por tudo que sempre fez por mim e pelo apoio; meu pai Bartolomeu Vieira pelas orações e palavras de incentivo; meus irmãos que sempre acreditaram em mim; minhas sobrinhas pela torcida; e meus tios Alberto Dias e Iraci Dias pelo apoio e pela hospedagem em Salvador todas as vezes que fui fazer as 5


entrevistas. Agradeço por vocês existirem em minha vida. Aos entrevistados: Alexandro Mota e David Mendez que encontraram um pouco de tempo em meio à rotina corrida para responder às perguntas; Daniel Serrano que, voluntariamente, se propôs a colaborar com o projeto; Daniele Rodrigues, Janaína França, João Vitor Cardial, Luís Antonio Araújo e Tássio Santos, que disponibilizaram um pouco de tempo para dividir suas experiências e trazer ricas contribuições para o trabalho; e Lúcio Távora que, além de conceder entrevista, gentilmente, cedeu suas fotos para serem usadas no livro. Sem vocês esse trabalho não existiria. Aos colaboradores: Jonas Pinheiro que contribuiu doando material para a pesquisa; Marilucia Leal que colaborou com indicações de fontes; Morgana Damásio pelo livro de presente e pelas indicações de fontes; professor Antonio Eduardo Oliveira pelo empréstimo de livros; e Rosania Laranjeira pelo acolhimento, o que me fez ganhar tempo e por as leituras em dia. A ajuda de vocês foi fundamental. 6


Aos incentivadores: Na pessoa de minha amiga Sheila Barreto, agradeço aos colegas da turma de jornalismo 2010.1 pelo apoio moral; e na pessoa de Nayá Lôbo agradeço ao pessoal do estágio pelas palavras de incentivo quando pensei em desistir. Obrigada pela força. Aos inspiradores: Aline Sampaio pela força, incentivo, por acreditar em minha capacidade (até mais do que eu), pelos livros de presente e por ser uma amiga que se tornou uma irmã nesses quatro anos de jornada; e João Paulo Carmo pelo apoio, exemplo, empréstimo de livros e pela amizade desde o tempo de ensino médio. Vocês são dois exemplares de inteligência que me orgulham e me inspiram. A todos que, direta ou indiretamente, fizeram parte da minha formação, meu muito obrigada.

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Sumário APRESENTAÇÃO .................................11 CAPÍTULO UM Um despertar para a cidadania ......25 CAPÍTULO DOIS O campo de batalha .........................53 CAPÍTULO TRÊS Um tiro pela culatra .........................79 CAPÍTULO QUATRO Arriscando a própria pele ................105 PALAVRAS FINAIS ..............................127

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APRESENTAÇÃO Em

junho

de 2013,

o

Brasil

acompanhou uma série de manifestações populares que tiveram início em São Paulo e, em seguida, avançaram para diversas cidades do país. O que começou com protestos contra o aumento da tarifa do transporte público não se restringiu apenas

à

maior

capital

brasileira.

Milhões de pessoas foram às ruas como não se via há pelo menos duas décadas. De acordo com um levantamento feito pela

Confederação

Nacional

dos

Municípios (CNM), em 21 de junho de 2013, cerca de 2 milhões de pessoas de 438 cidades brasileiras participaram dos protestos no dia anterior. Os brasileiros registraram a indignação com o sistema de exclusão existente no país. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 37,3% dos habitantes andam a pé porque não têm dinheiro 11


para pagar ônibus, metrô ou trem. Um percentual que, separadamente, é maior que o dos que usam transporte coletivo (29,1%) e carro particular (30,4%). As primeiras reivindicações tiveram início em 06 de junho, quando a luta era pela redução da tarifa do transporte público, após o reajuste que aumentou 20 centavos na passagem, na maior metrópole brasileira. Depois de seis manifestações em São Paulo, no dia 19 de junho veio o anúncio de revogação do aumento. Mas os protestos pelos 20 centavos

tinham

gerado

outras

reivindicações. Ao longo do mês as pautas

foram

ampliadas

e

as

manifestações se espalharam por todo o país, portanto, as pessoas não saíram das ruas

quando

tiveram

a

primeira

reclamação atendida. De modo mais geral, a população protestou contra a má qualidade dos serviços públicos, contra 12


os gastos públicos com a Copa das Confederações e Copa do Mundo, contra a corrupção, pelo direito à cidade, pela mobilidade

urbana.

O

episódio

se

transformou num movimento amplo e generalizado protestos

e

a

através

possibilitou

a

organização de

redes

dos

sociais

ultrapassagem

das

barreiras geográficas, fez com que as manifestações

ganhassem

diversas

adesões e, consequentemente, força e visibilidade. Quem

acompanha

brasileira

não

a

realidade

estranhou

as

manifestações. Aquilo foi apenas o pico de uma situação que já vinha ocorrendo no país, o momento pontual, a válvula de escape.

Uma

resposta.

Quem

está

politicamente engajado, quem estuda movimentos sociais, ou, simplesmente, quem vivencia o dia a dia dessa realidade não foi pego de surpresa, pois 13


já existia o sentimento de que a qualquer momento haveria uma revolta, mas o que ninguém imaginava e surpreendeu a todos foi a proporção de reação que houve naquele momento. As demandas da sociedade já eram um copo cheio esperando

a

última

gota

para

transbordar. Mas qual foi a gota que fez o copo transbordar? O que foi o estopim? Quem forneceu pólvora para essa explosão? Qual o custo de tudo isso? Esses questionamentos, sobretudo o último, foram fundamentais para a construção deste livro, que faz um registro das manifestações de junho de 2013, na cidade de Salvador, capital da Bahia, Brasil. Em Salvador, foram quatro manifestações que aconteceram nos dias 17, 20, 22 e 30 de junho. Mas o recorte adotado para o livro foram os acontecimentos do segundo e terceiro dia 14


de protestos. A escolha se deu porque o livro

aborda

a

violência

nas

manifestações a partir da percepção dos participantes. De acordo com os relatos, os dias 20 e 22 foram os que agregaram mais pessoas e também os dias que houve mais registros de violência, portanto,

apesar

de

mencionar

acontecimentos de outras datas por uma questão de contextualização, os fatos narrados neste livro ocorreram nos dias 20 e 22 de junho. O livro observa e reflete acerca das diversas

formas

manifestações:

a

de

violência

repressão

nas

policial

contra manifestantes e jornalistas, que é uma violência socialmente legitimada sob a alegação de manutenção da ordem; os confrontos entre manifestantes e policiais, saques e depredações do patrimônio público e privado como forma de protesto, que é violência 15


socialmente condenável, e muitas vezes a única que é vista como violenta, de fato, pela sociedade. No entanto, o livro não deixa de lado as formas de violência implícitas, que são as mazelas que atingem a população e desencadeiam todas as outras formas de agressão. Como

qualquer

abordagem

sobre

qualquer assunto, o que é apresentado neste livro é um recorte, um relato jornalístico que interpreta o sentido das manifestações na capital baiana, a partir do olhar e da vivência dos manifestantes. Ao longo do livro, o leitor poderá acompanhar, através de depoimentos de ativistas e de jornalistas que participaram da cobertura, o processo através do qual se deram as manifestações. O primeiro capítulo traz uma contextualização do movimento, com a descrição do cenário que abrigou as manifestações de junho de

2013. 16

Também

é

feita

uma


abordagem histórica de ações coletivas no Brasil, acompanhada de uma reflexão sobre a relação entre a insatisfação com as mazelas da sociedade e a formação da consciência sociopolítica. Não é de hoje que o povo vai às ruas para

reivindicar

seus

direitos.

Se

voltarmos na história recente do Brasil, mais

precisamente

50

anos,

lembraremos que, a despeito de prisões, perseguições e torturas, os brasileiros resistiram à ditadura

militar. Mais

recentemente, os movimentos tiveram destaque com a luta pelo direito ao voto, como

parte

do

processo

de

redemocratização do país da década de 1980. O movimento Diretas já, que aconteceu entre 1983 e 1984 e almejava as eleições diretas para presidente da república no Brasil, agregou diversos setores da sociedade civil. O movimento teve a participação de partidos políticos 17


de oposição ao regime militar, de lideranças sindicais, de artistas, de jornalistas,

de

estudantes,

e

foi

importante para a redemocratização do país. Os brasileiros ocuparam as vias públicas e lideraram uma onda de protestos que resultou na retomada do poder

civil,

posteriormente,

na

aprovação de uma nova constituição e nas eleições diretas para a presidência da República. O

que

parecia

ter

ficado

na

reivindicação pelo direito a ter direitos do século passado, vem à tona na atualidade, quando milhares de pessoas lotam as ruas para clamar por mudanças no país. De modo diferente dos protestos do século passado, que empunhavam uma bandeira política e lutavam por uma causa específica, os que aconteceram em junho foram um movimento de grupos que se diziam apartidários, que agregou 18


multidões e se espalhou rapidamente pela

diversidade

de

temas

e

de

problemas pautados pelos manifestantes. Muitos pesquisadores e cientistas sociais reconheceram que os protestos brasileiros apresentaram características semelhantes às da série de manifestações populares no âmbito global que o mundo presenciou nos últimos três anos. Em 2010,

uma

denominada

onda

de

Primavera

mobilizações, Árabe,

que

começou na Tunísia, se espalhou pelo Oriente Médio e chegou a derrubar ditaduras; as marchas e ocupações que seguiram, em 2011 e 2012, com os Indignados na Europa, desestabilizaram governos

abalados

por

crises

econômicas e onda de desemprego; o movimento Ocuppy Wall Street, iniciado em Nova York, em 2011, questionou o modelo econômico e financeiro vigente.

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O despertar para a cidadania no Brasil, em alguns momentos, provocou um cenário de destruição. Os registros dos

protestos

em

Salvador,

nesse

período, demonstram que a violência se fez presente. A polícia utilizava bombas de gás lacrimogêneo, tiros de balas de borracha e spray de pimenta para dispersar os manifestantes e, a partir daí, surgiram os confrontos. Os resultados foram depredação do patrimônio público e

privado,

ônibus

incendiados,

semáforos destruídos, agências bancárias apedrejadas, comércio saqueado, prisões e agressões contra manifestantes e jornalistas.

É

essa

face

das

manifestações que o capítulo 2 aborda, através de relatos dos envolvidos no processo, o capítulo narra as ações, focando no problema da violência, a partir do ponto de vista de quem vivenciou os acontecimentos. 20


Por ser um movimento aberto, sem liderança definida, logo ganhou a adesão de

vários

grupos

manifestações

ideológicos.

contaram

com

As a

participação de jovens que protestavam pela primeira vez, que não tinham preferência político-partidária, ativistas de movimentos sociais organizados e, também, militantes de partidos políticos. O

movimento

bastante

plural

e

heterogêneo teve a presença de grupos contrários ao símbolo do poder, de pessoas

que

acreditam

que

as

depredações de patrimônio público e privado, de saques, de uso da força física em manifestações são justificáveis e, de certo modo, podem ser mais uma forma de protesto. De acordo

com uma pesquisa

realizada pelo Ibope no dia 20 de junho em Brasília e em mais sete capitais, entre elas, Salvador, 46% dos manifestantes 21


nunca tinham participado de outros protestos. O levantamento mostrou ainda que as pessoas estavam esperançosas e que 94% achavam que as reivindicações seriam atendidas. Outro percentual que chamou a atenção nos dados do Ibope diz respeito à atuação da polícia para conter as manifestações, quando 57% dos entrevistados responderam que os policiais agiram de forma muito violenta durante

os

protestos.

Havia

uma

preocupação em impedir que os grupos “manchassem” a imagem do país, que no momento, era o centro das atenções do mundo

por

Confederações.

sediar

a

Copa

das

A repressão policial

visava coibir a ação dos ativistas, mas, ao contrário do que os repressores esperavam, a repressão não fez com que os manifestantes saíssem das ruas. É sobre a atuação da polícia durante as

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manifestações, com atenção às críticas e aos excessos, que trata o capítulo 3. O que aconteceu em junho é que o povo deixou vir à tona a indignação contra uma série de problemas que afetam o Brasil. Os jovens voltaram a se interessar pela vida política do país, temas políticos passaram a ser centrais e presentes na conversa de todos e as pessoas perceberam a eficiência dos protestos. Houve enfrentamento com a polícia, centenas de pessoas foram presas e/ou ficaram feridas por todo o país, as pessoas se manifestaram nas ruas diariamente, atearam fogo em pedágios, ocuparam e interditaram rodovias e protestaram em torno dos estádios em plena Copa das Confederações, a fim de que suas demandas fossem atendidas. No capítulo 4, o leitor vai ver que as pessoas colocaram a própria segurança em risco em nome de suas causas. 23


Este livro não tem pretensão de ser a versão oficial desta história, muito menos de ser a única variante dela. A ideia é que se torne um registro de um momento histórico em que as pessoas buscaram, fortemente, por mudanças, queriam participar da vida política do país, ou seja, um momento em que houve certo despertar para a cidadania. Mas o eixo central do livro é a temática da violência, que é uma questão, muitas vezes, negligenciada ou apresentada apenas sob a forma negativa sem dá voz aos atores envolvidos nos acontecimento e sem uma reflexão dos fatores que levam à violência.

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CapĂ­tulo um

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26


Quase 10 anos depois que a cidade de Salvador abrigou uma onda de manifestações contra o aumento da tarifa do transporte urbano, no movimento que aconteceu em agosto de 2003 e ficou conhecido como “Revolta do Buzu”, a problemática veio à tona novamente. Em junho de 2013, os soteropolitanos saíram às ruas mais uma vez, dando seguimento à série de protestos que tiveram início em São Paulo, pelo mesmo motivo e, em seguida, avançaram para diversas cidades do Brasil. Embora semelhantes, as lutas de junho de 2013 apresentaram outro contexto e outro engajamento. Os protestos de junho trouxeram uma pauta de reivindicação ampla que abarcou demandas de vários setores da sociedade. As manifestações soaram como um grito dos que estavam revoltados com a falta de emprego, com a falta de moradia, com o custo de vida alto, com a corrupção. Surgiu como um desabafo para mostrar que do jeito que está não dá para continuar. O momento revelou que as pessoas saíram do conformismo. O país saiu da linha da pobreza, mas isso não é suficiente porque depois que se sacia a fome há uma série de direitos que ainda não estão garantidos. E esses direitos foram cobrados. 27


A classe média saiu do lugar de conforto. Há tempo que a classe média não vai às ruas dessa forma e o que se presenciou durante as manifestações de junho foi a presença maciça da classe média. Havia muita gente insatisfeita. Manifestantes que sabiam por que estavam ali, muita gente perdida que nunca tinha participado de manifestação e estava lá por conta da aglomeração, havia também aquela parcela da população, que não participa de nenhum movimento organizado, mas que está revoltada com a situação. Uma multiplicidade de bandeiras foi discutida, problemas que são fruto de uma sociedade historicamente desigual, demandas postas pela Constituição e pela própria sociedade que não são respondidas pelo Estado. Temas que estavam engavetados, como a democratização da mídia, a política de reforma agrária, a desmilitarização das polícias, a instituição do imposto sobre grandes fortunas, o fim do voto secreto dos parlamentares, a inclusão da corrupção no rol dos crimes hediondos - com o aumento da pena e o efetivo combate -, o repúdio às políticas de internação compulsória para dependentes químicos, o fim do extermínio da juventude negra, mais juízes, mais 28


promotores, mais médicos, mais defensores públicos. Todos esses assuntos foram colocados em pauta. A população discutiu esses temas ainda que sem a devida profundidade, mas dando um passo importante para o exercício da cidadania. O ato significou dizer que apesar de o Brasil ter crescido nos últimos anos, ainda vivemos em um país em que pessoas morrem nas portas dos hospitais, que uma parcela significativa da população ainda é analfabeta1, que mesmo pagando impostos altos a população não tem acesso a serviços públicos de qualidade. Sair às ruas em junho de 2013 foi dizer que é contra os investimentos bilionários em eventos esportivos enquanto não há preocupação em garantir mobilidade urbana, saúde, educação, moradia e bem estar social. As lutas não vieram do nada, as demandas da sociedade já eram um caldeirão em ebulição. O país vive uma espécie de paradoxo. As pessoas criaram uma consciência política e perceberam que embora o país tenha 1

De acordo com a mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2012 e divulgada em 2013, o Brasil tem 8,7% da população adulta com mais de 15 anos que não sabe lê nem escrever

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dado um salto qualitativo nos últimos dez anos é preciso mais. Milhões de brasileiros, outrora excluídos do sistema, foram incluídos no mercado de consumo, ascenderam à classe média, mas ter um carro, uma televisão LED e/ou HD, uma geladeira, um computador, um microondas, não bastam para uma existência humana digna. Afinal, a falência dos serviços públicos de saúde, de educação, de justiça, de segurança pública ainda é notória no Brasil. Os brasileiros tomaram consciência do que já têm e do que ainda podem alcançar. Portanto, a luta era por serviços públicos de primeiro mundo. A população queria escolas que ofereçam ensino de qualidade, universidades que preparem para o trabalho futuro e hospitais que não deixem as pessoas na fila de espera durante meses. A reivindicação também era por uma democracia em que a polícia não permaneça agindo como na ditadura militar, por um país com políticos menos corruptos, por menos desperdícios em obras consideradas inúteis, por uma justiça com menos impunidade. A relação simbólica com a internet e com as mídias sociais

revelou

que

as

manifestações

do

Brasil

apresentaram características comuns com atos que 30


aconteceram no âmbito global. A organização espontânea e difundida nas redes reuniu milhares de participantes em um curto

espaço

de tempo.

Movimentos sociais

organizados que marchavam individualmente se uniram em junho, muita gente que entrou por conta da aglomeração acabou voltando para o Facebook, enquanto outros viram nas manifestações a oportunidade de ultrapassar as barreiras do virtual e ir à luta por melhorias no país. Mas no caso brasileiro, é válido acrescentar que alguns ingredientes peculiares tornaram possíveis os atos do ano passado. O crescimento do acesso à educação que aconteceu nos últimos anos; a democratização e o acesso à internet, fruto do incremento da classe média, que tem crescido nos últimos tempos devido a geração de emprego, a ampliação do crédito e dos programas de transferência de renda. O pano de fundo global com o sistema capitalista do modelo societário consumista, a falta de representatividade dos partidos políticos e do modelo de democracia e a multiplicidade de casos de corrupção também contribuíram.

Mas o elemento fundamental

foram os bilhões gastos com a realização da Copa, prova 31


disso é que os estádios se tornaram um ambiente simbólico aglutinador nas lutas e nos protestos. O cenário que abriga as manifestações de junho de 2013, em Salvador, apresenta semelhanças e diferenças em relação à situação política, econômica, social e cultural vivida por outras cidades do país. Embora cada uma apresente suas particularidades, existem problemas que são comuns. As mobilizações baianas agregaram várias classes sociais, econômicas e pessoas de faixa etária variada. As manifestações demonstram a fragilidade dos modelos estatais, as pessoas mostraram-se desiludidas com os partidos políticos, porque acreditam que eles não atendem aos interesses da população. A pesquisa Ibope revelou que 65% das pessoas que participaram das manifestações

demonstravam

insatisfação

com

governantes em geral ou contra partidos políticos e sistema partidários Entre os desacreditados com os partidos políticos nas manifestações de Salvador, estava a estudante de comunicação social Janaína França de 24 anos. Ela tem quatro anos de militância no movimento estudantil e é contra a existência de partidos políticos no Brasil. Janaína 32


defende que se for para ter partidos políticos, que sejam no máximo dois, pois facilita as negociações e até o entendimento da ideologia de cada um por parte da população. No modelo atual, a estudante acredita que por mais que um político tenha uma boa ideia, só vai colocá-la em prática se tiver apoio dos partidos. Janaína está decepcionada com os escândalos de corrupção envolvendo os partidos políticos no país. Para ela, as pessoas que se dedicam à vida política não deveriam ganhar salários maiores do que outros profissionais e deveriam se dedicar só se realmente quisessem melhorar o país. Mas essa não é a realidade do Brasil, são poucos os que querem realmente ver o país mudar. E o que acontece é a conveniência de um aglomerado de siglas que defendem os próprios interesses. A estudante afirma que é a favor de pessoas que defendam pessoas, coisa que os partidos políticos não fazem, na sua visão. Assim como Janaína, o advogado David Mendez, de 26 anos, não acredita na eficácia dos partidos políticos no Brasil. David entende que os modelos de partidos existentes, hoje,

no país, são verdadeiros feudos

econômicos que impedem a realização de uma política 33


horizontal em seu seio. Integrante do Movimento Passe Livre (MPL – Salvador), o advogado atuou nas manifestações como ativista do movimento e como membro

de

uma

subcomissão

especial

provisória

vinculada à Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Estado da Bahia (OAB/BA). A comissão foi criada especificamente para acompanhar e ajudar, através de mediação, lutando pela legalidade no tocante à atuação policial, dando plantões em todos os atos e manifestações ocorridas em Salvador. Na visão de David, liderança é algo natural a todo e qualquer agrupamento de pessoas, mas não é incompatível com a horizontalidade. Dentro do MPL – Salvador buscase fazer política dessa forma, mas David salienta que o grupo não é ingênuo ao ponto de pensar que não existem lideranças. “Elas vêm naturalmente, pelo trabalho, pelo conhecimento, pela ética, enfim, pelos exemplos”, explica. Na relação política x partidos, um dos elementos é maior do que o outro. A política é muito maior que os partidos. Política é algo que está presente em diversos momentos, se faz política com a família, amigos, no ambiente de trabalho, na sua rua, no seu bairro. Mas, para 34


o advogado, é preciso diferenciar os tipos de luta existentes.

Existe

a

política

do

poder

político

institucionalizado, que incluem as eleições para o Executivo e o Legislativo, que só pode ser feita no modelo de democracia em que vivemos, através de partidos. E existe a política externa/exógena, tão importante ou mais que a política institucionalizada, que é feita pelo povo, pelos movimentos sociais organizados. Nesse sentido, David

acredita

que

é

possível

fazer

política

horizontalmente e independentemente de partidos no âmbito dessa luta política exógena/externa. Quem também reprova os modelos de partidos existentes é Luís Antonio Araújo, de 39 anos, graduado em ciências sociais e integrante de um coletivo anarquista. Luís acredita que sempre haverá necessidade da organização de um partido, mas não o que ele de partido do sufrágio universal, que seria o partido que participa do voto. Na sua visão, é preciso um partido para que seja o motor dos movimentos sociais. Uma espécie de partido inserido nos movimentos sociais, sem vinculação com o Estado, o que levaria ao processo de luta, que dentro do anarquismo é chamado de construção do poder popular. 35


As pessoas estavam decepcionadas com os partidos políticos,

cansadas

dos

escândalos

de

corrupção,

insatisfeitas com a qualidade da educação pública, da saúde pública, da mobilidade urbana e, essa insatisfação fez com que o brasileiro criasse uma consciência política. Foi essa consciência que levou milhares de jovens às ruas, em junho de 2013. As mobilizações não representaram apenas a luta por questões que interferem no cotidiano da vida urbana, mas pela cidadania. Pela primeira vez, as pessoas se opuseram a um mega-evento e a população mostrou que o país não é só carnaval e futebol. Os protestos eram a favor dos direitos dos cidadãos, mas também eram contra os desmandos da FIFA. O momento não poderia ser mais oportuno. Era a hora de mostrar para o mundo que o país da propaganda não condiz com a realidade. A luta que teria iniciado pelos 20 centavos tomou uma proporção bem mais ampla. ***** Enquanto as duas maiores metrópoles do país comemoravam o anúncio da redução na tarifa de ônibus, as ruas foram tomadas mais uma vez. Uma vitória tinha sido alcançada, os governantes de São Paulo e do Rio de 36


Janeiro haviam anunciado a revogação do aumento, mas só isso não bastou. O país queria mais vitórias. Se conseguiram uma, por que não lutar por outras? Naquele momento as ruas das 27 capitais brasileiras e, pelo menos, mais 100 cidades do Brasil estavam lotadas de pessoas que acreditavam na força dos protestos. Logo que explodiram as primeiras manifestações tendo como principal motivo o aumento da tarifa de transporte público surgiram questionamentos do tipo: “Mas são apenas 20 centavos”. “Por que lutar por tão pouco?”. Se tinham conseguido, enfim, revogar o reajuste, por que não parar com aquilo, celebrar a conquista e sair das ruas? Porque apesar do aumento ter sido significativo, a luta não era só por 20 centavos. As demandas da sociedade já eram algo emergente, o aumento do transporte fez explodir as manifestações porque se trata de um dos piores serviços públicos das capitais do país, mas vários outros problemas estavam afligindo a população. Embora não deva se resumir aos 20 centavos, esse acréscimo não pode ser negligenciado. Inclusive, há quem concorde que esse aspecto deve ser discutido. É o caso de Luís Antonio Araújo. O militante que participou dos 37


protestos em Salvador concorda que a luta também deve ser pelos 20 centavos porque um valor que parece irrisório tem um peso para a dona de casa que vai comprar um ou dois pães a menos, para o estudante carente que vai ficar um dia sem ir à escola. “Então é por vinte centavos sim!”, defende o militante.

No dia 20 de junho os baianos saíram às ruas pela segunda vez naquela semana para mostrar sua indignação Foto: Lúcio Távora | Agência A TARDE

Quem compartilha da ideia de Luís Antonio é a estudante Janaína França. A aspirante a comunicóloga considera a questão dos 20 centavos muito pertinente, pois não se trata de um fator isolado. Ela considera que há uma 38


questão econômica porque todo ano tem aumento da passagem de ônibus, de luz, de água, da cesta básica e os reajustes salariais como o aumento do salário mínimo não consegue suprir. Outro fator é qualidade do transporte público que deixa a desejar. Janaína que utiliza o transporte público em Salvador já passou por muitos percalços. Ônibus que quebram no meio do percurso seguido de horas de espera por outro transporte, assentos e janelas quebradas, superlotação devido à limitação da frota. Em apenas um ano, Janaína passou quatro vezes pela experiência do ônibus quebrar durante o percurso e ter sua rotina totalmente modificada por isso. A estudante lamenta o fato de ter precisado chegar a esse ponto para chamar a atenção dos governantes e conta que a militância contribui para a formação de uma consciência política. E foi essa consciência que lhe fez sair às ruas em junho para registrar sua insatisfação com a conjuntura atual da sociedade brasileira e soteropolitana. Também indignada com o que considera desmandos da FIFA, a estudante acha injusto construir obras com os impostos dos brasileiros para mostrar para o mundo e reverter em lucros para uma organização particular, 39


enquanto o sistema de saúde, o educacional, o econômico e o social se encontram em colapso. Para ela, não tem nada para o povo, que é excluído, já que o trabalhador brasileiro sequer tem condições de comprar um ingresso para assistir um jogo. Cidade sede da Copa das Confederações, Salvador, assim como o Brasil, era o centro das atenções naquele momento. Mas, contrariando o que aconteceu em outras cidades, em Salvador, não houve aumento de passagem em 2013 e o prefeito já tinha anunciado que não haveria. Logo o motor que moveu os manifestantes na capital baiana não foi os 20 centavos. Os baianos protestaram por qualidade na saúde, na educação, na mobilidade urbana e, sobretudo, confrontaram a Copa das Confederações e tudo que ela representava. Desde a inversão de prioridades de gastos públicos até a modificação da rotina da cidade, com o desvio do trânsito, por exemplo. O povo não se conformou em ter que chegar atrasado ao trabalho porque no período de jogos o trânsito foi desviado e era preciso andar mais de um quilômetro para chegar a um ponto de ônibus. Os baianos não aceitaram calados o fato de a FIFA não permitir que as tradicionais baianas de acarajé 40


vendessem seus bolinhos, durante os jogos, e se mobilizaram para lutar contra esses desmandos. A rotina de Salvador foi totalmente modificada durante a Copa das Confederações. Fazer o trajeto de ônibus da região do centro da cidade até a Avenida Paralela significava mais de três horas de estresse. O percurso de 12 quilômetros que poderia ser feito em 16 minutos de carro ou em cerca de uma hora de ônibus, em dias de tráfego normal, passou a ser feito em quase quatro horas. Quem mora nas proximidades do Dique do Tororó viu sua rotina mudar, sem ao menos ser consultado. Os pontos de ônibus do local foram desativados e as pessoas tiveram que andar mais de um quilômetro para chegar a um ponto de ônibus. Eles perderam o direito à cidade e tudo isso por conta da FIFA, com o aval dos governantes. A população soteropolitana estava revoltada ao ver que o seu direito de ir e vir foi cerceado. Não dava mais para se calar diante de tal circunstância. Houve mudanças em relação à realização da Copa no Brasil, o mega-evento que, inicialmente, estava previsto para ser custeado pela iniciativa privada, terminou gerando gastos que ficaram por conta do poder público. O 41


Congresso Nacional decretou e sancionou a Lei nº 12.663/12 – Lei Geral da Copa, que prevê uma série de restrições à liberdade civil, cria tipos penais, criminaliza condutas, gera inúmeros passivos que se traduzem nos bilhões gastos até o momento pelo governo brasileiro (união, estados e municípios) e isenta a FIFA de qualquer custo, sendo que, os lucros vão para a referida entidade de direito privado, o que pode ser compreendido como um verdadeiro estado de exceção. A alternativa que restou à população foi protestar. Em Salvador, as mobilizações foram organizadas pelo MPL – Salvador, movimento que surgiu em 2003, a partir do aumento das passagens de ônibus naquele ano e foi responsável por liderar o movimento conhecido como Revolta do Buzu. A partir das manifestações de junho de 2013 o MPL - Salvador foi totalmente reformulado. O movimento plural e heterogêneo é composto por membros de diversos segmentos da sociedade. Entre as entidades participantes estão: o Coletivo de Entidades Negras (CEN), sindicatos de professores, grêmios estudantis, sindicatos de rodoviários, OAB/BA, Levante Popular da

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Juventude, Observatório Popular da Copa, partidos políticos, artistas e jornalistas. O MPL – Salvador atua através de Grupos de Trabalho (GTs), formação de base com atividades de cunho educacional/pedagógico e mobilização popular com atos, passeatas, manifestações e ações políticas. O movimento pratica a horizontalidade - denominação usada para designar um movimento em que todos são líderes - na tomada de decisões e tem como principal finalidade a luta por um projeto popular de mobilidade urbana. Após se articularem e se organizarem, as pessoas se mobilizaram e protestaram estrategicamente. Os maiores protestos de Salvador foram, justamente, nos dias em que jogos da Copa das Confederações foram realizados na cidade. ****** Aos 21 anos, Tássio Santos teve a chance de expressar sua revolta contra os desmandos da FIFA, durante os protestos de Salvador. O jovem pode levantar sua bandeira e gritar que não aceitava o que estava acontecendo. O estudante de Comunicação Social é contra a Copa das Confederações, contra a Copa do Mundo e contra a FIFA. 43


Embora acredite que algumas pessoas aguardam pelo momento para participar de um jogo da seleção brasileira, ao vivo, e que algumas pessoas até aproveitem para ganhar um dinheiro extra, Tássio é taxativo: “Sei que é um momento importante para muita gente, mas sou totalmente contra”, desabafa. O motivo de sua revolta é o mesmo de milhares de brasileiros que saíram às ruas em junho para registrar sua indignação. Para Tássio existem coisas mais importantes para resolver no Brasil com o dinheiro que foi investido em um evento de futebol em que nem todo mundo sai ganhando. A maior parte dos lucros fica com a organização que controla o evento. O dinheiro que poderia ser investido na saúde precária ou na infraestrutura caótica, e beneficiar milhões de pessoas, vai para reforma de estádios, que em alguns casos, nem serão usados depois do evento. Sua indignação começou um pouco antes da explosão dos protestos. Em viagem para Belo Horizonte, em maio de

2013,

Tássio

observou

estádios

reformados,

monumentos com estrutura de primeiro mundo nos arredores dos lugares por onde os turistas costumam 44


passar, no entanto, quem estava à margem não era beneficiado. Para Tássio, as reformas maquiam para transparecer um país desenvolvido, enquanto no entorno as pessoas passam fome. Esses aspectos fizeram o estudante enxergar as coisas ao seu redor de outra maneira e perceber que a sociedade tem muitas mazelas que precisam ser reparadas. Se deparar com tais situações fez Tássio pensar que era preciso mudar e que o primeiro passo para isso era ir à luta, reivindicar por melhorias. Os paradoxos vividos pelo país incomodam pessoas politicamente engajadas, independentemente de participar de movimentos organizados. Mudança. Era esse o desejo dos manifestantes que acreditavam que precisam se envolver mais com política. Foi esse desejo que motivou o estudante de engenharia civil, Daniel Serrano de 23 anos, a participar das manifestações de rua em junho de 2013. Acostumado a acompanhar a realidade do país, quando ainda criança trocava os desenhos animados por telejornais,

Daniel

nunca

se

conformou

com

as

desigualdades da sociedade brasileira. Mas, embora se considere politicamente engajado e com opinião formada sobre o assunto, antes de junho o estudante nunca teve 45


uma atitude que pudesse ser considerada expressão de protesto. Sem integrar nenhum movimento, mas com uma consciência política formada, o jovem tímido viu nas manifestações de junho a oportunidade de lutar para mudar os rumos do país de alguma forma. Ele não se conformava em viver em um país onde uma parcela da população goza de regalias, enquanto a maioria sofre sem o básico. Jovens de origens, ideologias e histórias de vida diferentes, Daniel e Tássio estavam unidos num mesmo propósito, o desejo de mudança. Ambos participavam de um protesto pela primeira vez e tiveram as redes sociais como aliadas nesse processo, tanto para acompanhar antes de participar fisicamente, quanto para divulgar o que acontecia nas ruas. Cansado de compartilhar charges na internet com críticas que se perdiam ali mesmo, Daniel enxergou nas manifestações de junho a ocasião ideal para concretizar sua insatisfação. Empolgado com a possibilidade de lutar contra a corrupção e contra a falta de estrutura, nos diversos setores da sociedade, o jovem passou a participar das reuniões convocadas pelos grupos que encabeçavam 46


as mobilizações em Salvador. Durante os encontros apareciam pautas variadas que não visavam contemplar apenas um determinado setor da sociedade, o que facilitava o acolhimento de quem não era ligado à movimentos sociais. Animado como que viu nas reuniões, Daniel foi participar da sua primeira manifestação, no dia 22 de junho de 2013. Próximo ou distante de Daniel, em algum lugar da Praça do Campo Grande, estava Tássio, que também tinha ultrapassado as barreiras virtuais. Agora não era mais Facebook,

era

a

oportunidade

de

vivenciar

uma

experiência política, diferente daquela que estavam acostumados. Tinha chegado hora de gritar nas ruas e expressar a indignação contra problemas que afetam uma série de pessoas e acabam lhe afetando também. Para Daniel, era a hora de mostrar que o Brasil não está tão próspero assim, de desfazer a ideia de que brasileiro é aquele que dá um “jeitinho”, que o Brasil não é só samba, carnaval e futebol, mostrar que brasileiro sabe se envolver politicamente, que os brasileiros querem mais do que pão e circo. As histórias de Tássio e Daniel se cruzam, mas eles não são os únicos. Eles representam 47


milhares de outros jovens que foram às ruas exercer seu papel de cidadão durante as manifestações de junho de 2013. A população estava revoltada, inconformada com a situação em que o brasileiro vive. O país tem dois extremos, a desigualdade no Brasil é visível. De acordo com o relatório apresentado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a falta de moradia 2 afeta cerca de oito milhões de famílias no país. Embora seja um direito assegurado pela declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Constituição de 1988, por legislações posteriores, como o Estatuto da Cidade, a garantia da função social das cidades e da propriedade é um direito que acaba ficando apenas no papel. Não tem como não se indignar diante de tal situação. Enquanto um direito básico é negado, o dinheiro público é investido em construções de estádios. As pessoas continuam morando na rua, são afastadas dos centros, levadas para alojamentos distantes da zona da FIFA no período de jogos, mas os problemas 2

Relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) aponta déficit habitacional no Brasil disponível em: http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&view=arti cle&id=1237:reportagens-materias&Itemid=39 cesso em 02 2014

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não são resolvidos. São questões que fizeram a população não aceitar a copa de braços cruzados. Na visão do fotógrafo Lúcio Távora, esta foi a mensagem: “Não aceitamos a Copa de braços cruzados”. Ele acredita que a causa dos protestos foi, principalmente, a decisão do Brasil de sediar a Copa sem se preocupar em garantir questões básicas como a mobilidade urbana, o ir e vir, por exemplo. Sua participação nas manifestações de junho de 2013 foi como profissional, mas ele não nega que vibrou, enquanto cidadão, ao presenciar o levante popular. De certa forma, o cidadão Lúcio também estava presente naquele momento. “Fiquei muito feliz em cobrir as manifestações e colocar meu olhar enquanto profissional, mas estava vibrando enquanto cidadão, orgulhoso com aquele levante. Me senti mais brasileiro”, confessa. Assim como os manifestantes que clamavam por mudanças no país, o fotógrafo não aceita os paradoxos vividos pela sociedade brasileira. Ter nascido e crescido na capital federal, berço das contradições, fez com ele observasse essas questões desde garoto. Na verdade, inúmeros fatores fizeram com que o repórter fotográfico formasse uma consciência política. Em sua profissão é 49


comum transitar entre os dois extremos. Ao mesmo tempo em que Lúcio circula no meio do poder, fotografa políticos, governantes, responsáveis por fazer política, visita lugares mais remotos da Bahia e do Brasil e vê que existem pessoas que não tem acesso a coisas básicas. Emocionado, Lúcio conta que fica muito comovido ao fotografar as mazelas sociais, ao constatar que quando falta políticas públicas o tráfico de drogas domina, que muitos jovens entram no mundo do crime por falta de oportunidade e que problemas sociais que poderiam ser evitados são ignorados. O que mais lhe incomoda é saber que o que agrava essas desigualdades são questões que poderiam ser evitadas, como a corrupção, que ele abomina. O ato trouxe resultados. As conquistas alcançadas pelas manifestações são inegáveis. O grito de revolta que representa o conjunto de pessoas que não são assistidas deixou seu saldo positivo. O primeiro resultado naquele momento foi o freio no aumento da passagem em São Paulo, justamente, no maior centro econômico do país e isso se refletiu nas demais cidades. A população passou a acreditar que é possível mudar, percebeu que protestar 50


pode ser eficiente. A rotina política da sociedade foi modificada, a presidente da República foi à televisão falar para a população. Além de revogar o aumento da tarifa de transporte

público,

algumas

capitais

conseguiram

promessas de renovação da frota de transporte urbano, a câmara dos deputados aprovou a redução do PIS e Confins incidentes sobre os serviços de transporte público coletivo rodoviário municipal, metroviário, ferroviário e aquaviário de passageiros. Ao longo do movimento, a mídia mudou a forma de representar os manifestantes que, passaram de “baderneiros” a cidadãos conscientes que lutavam pelos seus direitos. Foi uma sensação de vitória simbólica por meio da luta das ruas, algo que as novas gerações ainda não tinham experimentado. O discurso era de que o Brasil havia acordado. Frases do tipo “o gigante acordou” ou “jogaram mentos na geração coca-cola” sugeriam que uma geração apática, havia, enfim, acordado para os problemas. Uma espécie de apologia ao presente e apagamento da história de luta já travada antes. Dizer que os brasileiros estão mais cidadãos seria exagero, mas é inegável que as manifestações de junho de 2013 foram um despertar para a cidadania. No 51


entanto, é valido lembrar que as mobilizações do povo brasileiro não é algo recente, principalmente, se levarmos em conta que grupos já se organizavam para lutar pela Independência do Brasil, pela abolição da escravatura, pela derrubada da monarquia. Historicamente,

uma

série

de

ações

coletivas

contribuiu para a criação de uma consciência sociopolítica no país. Não há como negar que as lutas sociais que começaram quando o país ainda guardava resquícios de colônia tiveram reflexos nos anos subsequentes. Ao longo dos anos surgiram movimentos organizados que lutavam pela cidadania, pela identidade, pela liberdade humana e por questões que interferiam no cotidiano da vida urbana. De lá para cá muita coisa mudou, principalmente, os campos temáticos de protestos e manifestações, mas é possível dizer que o desejo de alcançar mudanças através de ações coletivas talvez permaneça intacto.

52


CapĂ­tulo dois

53


54


Tradicional ponto de encontro dos foliões de Carnaval, o Campo Grande serviu como campo para concentração e partida das manifestações na capital baiana em junho de 2013. O local já havia sido usado, com a mesma finalidade, por militantes de diversas causas em manifestações anteriores realizadas em Salvador. O bairro, localizado no centro da cidade, fica a uma distância de aproximadamente 2,5 km da Arena Fonte Nova, estádio onde os jogos da Copa das Confederações foram realizados. O lugar era estratégico para a realização dos protestos, pois a intenção do grupo era marchar até o estádio e exercer o direito de livre manifestação. Mas, sob a alegação de manutenção da ordem, foi iniciada a repressão

policial

como

forma

de

dispersar

os

manifestantes. A primeira tentativa foi o controle ideológico. O direito da livre manifestação era tolerado desde que atendesse aos limites impostos, como hora e local marcados. O Estado estabeleceu uma margem, a manifestação seria permitida se ocupasse meia via, se fosse gritando palavras de ordem e parando na barreira policial. Alguns aceitaram os limites e ainda tentaram 55


frear os impulsos revolucionários de outros, mas não funcionou. Os manifestantes que saíram do Campo Grande no dia 20 de junho não se conformaram em parar na barreira policial, pois o destino deles era a Arena Fonte Nova.

A polícia,

por sua vez,

não

permitiu a

ultrapassagem e isso significou ferir o estado democrático de direito. A partir do momento em que o limite não foi respeitado, que o bloqueio policial foi furado, o controle militar foi acionado. A presença dos órgãos repressores desencadeava nos manifestantes a vontade de resistir, de brigar por seus direitos, de ser libertário e aquilo se tornou um barril de pólvora, um combustível para que os atos de violência se instalassem mais fortemente. Um aglomerado de pessoas se manifestando, policiais nas ruas, armas, munições, paus, pedras e vontade de enfrentar... Quando o direito de ir e vir e de circular livremente foi limitado, os ânimos se exaltaram e o conflito foi inevitável. Enquanto Nigéria e Uruguai se preparavam para o jogo do dia 20 de junho, do lado de fora da Arena Fonte Nova os preparativos eram outros. Por volta das 14h, os manifestantes começaram a se reunir no Campo Grande, 56


em frente ao Teatro Castro Alves. Cerca de 50 mil pessoas eram esperadas para participar das manifestações. De forma pacífica, os ativistas começaram a se organizar para descer a Avenida Sete de Setembro e caminhar rumo ao estádio. Ao começar o trajeto, os policiais passaram a acompanhar os manifestantes. Helicópteros circundavam a região do centro da cidade, viaturas circulavam, a polícia montada fazia ronda e manifestantes tentavam furar o bloqueio policial criado no Vale dos Barris com o intuito de chegar aos arredores do estádio. Quando os ativistas tentaram ultrapassar a barreira da polícia durante o percurso para o estádio e foram impedidos houve conflito entre policiais e manifestantes. A Tropa de Choque usou gás de pimenta e gás lacrimogênio para evitar o progresso do grupo, em reação, os manifestantes usaram pedaços de paus e pedras e tentaram se proteger atrás de sanitários químicos e em ruas transversais. Alguns ativistas pediam calma e paz, outros solicitavam que o grupo retornasse. Não paravam de ser lançados gás de pimenta, bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha.

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Os protestos que começaram de forma pacífica na tarde de quinta-feira (20), no Campo Grande, terminaram em confronto entre policiais e manifestantes Foto: Lúcio Távora | Agência A TARDE

O entorno da Arena Fonte Nova estava cercado de policiais. Por conta da barreira da polícia, a maioria dos manifestantes resolveu retornar e descer pelo Dique do Tororó, enquanto outros ativistas reagiram à repressão que impediu a passagem na altura do Vale dos Barris, quebrando pontos de ônibus e ateando fogo em ônibus. Em meio à multidão que se encontrava no Campo Grande naquela tarde, estava o cientista social, de ideologia anarquista, Luís Antonio Araújo. Embora não resida em Salvador, ele saiu de Cachoeira, com 58


companheiros de militância, e percorreu a distância de 110 quilômetros para participar dos dois maiores protestos que aconteceram em Salvador, nos dias 20 e 22 de junho. Logo que chegou ao Campo Grande, com uma câmera filmadora nas mãos, Luís Antonio, começou a fazer registros de toda movimentação. Nada fugia de sua observação, o perfil dos manifestantes presentes na Praça do Campo Grande, as atitudes dos envolvidos, as barreiras policiais, os helicópteros sobrevoando, a circulação de viaturas. Luís Antonio observava e registrava cada momento, cada movimentação. Portanto uma câmera, ele teve liberdade, até certo ponto, para circular de um lado para outro. Levar um equipamento que registre imagens para o ato foi estratégico. Uma câmera é um veículo poderoso, pois através de registros é possível fazer revelações. Logo a presença do equipamento pode inibir, intimidar ou incomodar. Por isso, ao mesmo tempo em que pode ser uma proteção poderá se tornar uma ameaça. A jornalista Daniele Rodrigues de 23 anos acredita que, querendo ou não, a câmera é uma proteção. Dezenas de manifestantes apanham e/ou vão parar na delegacia, já 59


com os jornalistas é diferente, quando se aparece com um crachá, quando se fala como imprensa, o tratamento é outro. Acontece em casos extremos, porque o policial sabe que vai ter retaliação. Para ela, isso ocorre por conta do respaldo social. Com o manifestante a população tem aquele olhar de que pode ser um vândalo, e a sociedade não vai se levantar para proteger um possível vândalo. Com o jornalista é diferente, a população enxerga que ele estava trabalhando e merece ser defendido. “Até a parte da população que acha que as manifestações são vagabundagem vai defender jornalista e não vai defender os manifestantes”. Embora não faça parte de nenhum movimento organizado, Daniele é politicamente engajada. Ela se considera uma militante e participa de manifestações na capital baiana desde a adolescência. Apesar de ser militante, na primeira manifestação de junho, ela participou como jornalista. Com o crachá do jornal para o qual estava fazendo a cobertura, com uma câmera na mão, separada dos manifestantes, a jornalista acreditou que não sofreria nenhum tipo de agressão. Manifestantes de um lado, policiais de outro e Daniele no meio fotografando. 60


Estava tudo muito tranqüilo. No início do trajeto alguns meninos tentaram atear fogo em uma lata de lixo, mas foram impedidos. Os próprios manifestantes chamaram a polícia para alertar. Parecia que tudo estava sob controle. Enquanto Luís Antonio e Daniele, que portavam equipamentos fotográficos, circulavam de um lado para outro fazendo registros, David Mendez estava no meio dos manifestantes. O advogado estava na linha de frente, juntamente com duas amigas, e mais um pequeno grupo de pessoas, comparado à multidão que havia no trajeto do Campo Grande à Piedade nas imediações do Vale dos Barris. Eles gritavam palavras de ordem e manifestavam a indignação através de cartazes, faixas e placas. De frente para eles, estava um batalhão da Tropa de Choque da PM e seus cães rottweilers, além da presença da cavalaria, da companhia de Rondas Especiais (Rondesp) e demais corporações da polícia. David estava, literalmente, na linha de frente, questionando os policiais acerca da razoabilidade de se impedir a população de protestar em frente ao estádio, tendo em vista que era uma manifestação pacífica.

61


O advogado perguntou diversas vezes aos três policiais se eles não eram brasileiros, se a luta por menos corrupção, por educação e saúde de qualidade, pela mobilidade urbana, pelo fim dos privilégios da classe política, pela democratização dos meios de comunicação também não era dos policias.Ele questionou também sobre a imoralidade e ilegitimidade da Lei da Copa, da subserviência aos interesses da FIFA sobre os verdadeiros interesses nacionais. A resposta era sempre a mesma: "concordo, mas eu apenas cumpro ordens”. Inconformado com a imposição de limite no que era para ser uma manifestação livre, o advogado continuava na linha de frente quando os policiais “afrouxaram” um pouco o primeiro cordão de isolamento. Nessa hora, o primeiro grupo começou a avançar em direção à Tropa de Choque e os policias tentaram coibir a ação dos manifestantes usando spray de pimenta e bombas de gás lacrimogêneo. Se até certo ponto a câmera foi uma aliada de Luís Antonio e Daniele, a partir do momento em que os manifestantes resolveram avançar em direção à Arena Fonte Nova e esbarraram na barreira policial a coisa mudou. Quando um grupo passou pelo primeiro pelotão e 62


sentou próximos aos cães da Tropa de Choque, o clima ficou tenso. Contrariando o pensamento da jornalista a “proteção” da câmera não adiantou muito nesse caso. Ninguém foi poupado, nem mesmo quem estava com câmeras ou, principalmente, quem estava com elas. Se até então o movimento seguia pacificamente, a partir do primeiro confronto, o ambiente se transformou num cenário de guerra. Chuva de bombas de efeito moral, explosões e caça aos manifestantes. Não teve para ninguém. De repente, Daniele que antes estava circulando livremente, ficou no meio do fogo cruzado. Cães, cavalos e homens com verdadeiras armaduras. O perigo vinha de todas as direções e a jornalista se viu desesperada em meio àquele conflito. “A tropa veio com os homens, todos de preto com um capacete gigante! Tum, Tum, Tum! Imagine. Trezentos homens em sua direção. Eu fiquei angustiadíssima!” desabafou. A câmera não garantiu, como imaginava Daniele, que ela ficasse imune no meio daquele processo. lém da violência física, quem estava no “campo de batalha” sofreu violência psicológica, foi o caso de Daniele. Na tentativa de conseguir uma visibilidade 63


melhor, de fazer boas fotos e de não ser confundida com manifestantes, a jornalista tomou uma atitude. Quando o grupo chegou próximo à Arena Fonte Nova, ela subiu em uma mureta. Ela portava apenas uma câmera em uma mão, na tentativa de registrar cada momento, e um pano na outra, na esperança de conseguir respirar no meio de tanto gás. Quando um policial avistou Daniele em cima da mureta ele foi para cima dela com spray de pimenta e ordenou que ela descesse dali imediatamente. A jornalista entrou em estado de choque e não conseguiu obedecer a ordem do policial. Quanto mais ela resistia mais era hostilizada. Gritos, xingamentos e mais spray, mesmo assim ela continuava ali imóvel e continuou sem conseguir se mexer até que alguém a puxou de cima da mureta. Encolhida e desesperada, Daniele parecia inofensiva para um policial armado e treinado para lidar com situações conflituosas. Mas ao mesmo tempo em que ela parecia inofensiva, o fato de portar uma câmera a tornava uma ameaça. Qualquer tipo de registro deixava todos os policiais muito nervosos. Foram momentos de tensão vividos pelos 64


profissionais de imprensa. Entre balas de borracha da polícia e pedras dos manifestantes, eles eram tidos como inimigos por ambos os lados. No meio do fogo cruzado, também estava Lúcio Távora, repórter fotográfico, com 15 anos de experiência. Acostumado a cobrir manifestações de todo tipo na capital federal, locais de conflito não são nenhuma novidade para ele. Lúcio gosta da adrenalina que a profissão proporciona e não abre mão de contar boas histórias através da fotografia. Embora

esteja

acostumado

com

situações

conflituosas, Távora viveu momentos tensos durante as manifestações de Salvador. Não diria que o foi o mais tenso de sua vida profissional, mas um dos mais tensos (senão o mais) destes sete anos que atua na capital baiana. Lúcio sofreu dos dois lados, pois foi hostilizado por manifestantes que igualavam todos da imprensa, por achar que os veículos reproduzem os interesses do capital e não da população, e por policiais que enxergavam nos jornalistas verdadeiros inimigos. Fotógrafos tiveram seus equipamentos quebrados ou foram obrigados a apagar imagens. Um policial ameaçou atirar em Lúcio com uma bala de borracha, mas ele teve 65


mais sorte do que o colega ao lado que acabou sendo atingido. A violência não vinha só da parte da polícia, os manifestantes

mais

radicais

também

reprimiam

a

imprensa. Revoltados, por acharem que a mídia não representa os interesses da população, os ativistas atacavam jornalistas com paus e pedras. Nada passou despercebido ao olhar atento e à lente de Távora. Tiros de bala de borracha que atingiam pessoas que estavam, simplesmente, passando pela rua, vidraças quebradas, barricadas, ânimos exaltados. Com o intuito de exercer o direito de informar, Lúcio ficou na zona de conflito, interessado em registrar de perto os lançamentos de bombas, os tiros, as pedras. Ninguém escapou. Moradores que só queriam sair de casa para o trabalho ou vice-versa, pessoas que estavam no conforto do seu lar, todos acabaram sofrendo. Lúcio conta com emoção que durante a cobertura presenciou um cidadão da janela do apartamento gritando desesperado porque sua casa tinha sido atingida com o efeito da bomba: “Parem de jogar isso aqui! Eu tenho uma criança recém-nascida, caiu gás aqui e minha filha está passando mal”. 66


Quando o grupo chegou à Avenida Joana Angélica começou uma verdadeira batalha. O clima era tenso, policiais não paravam de chegar com caixas de bombas. A polícia recuou e fechou todos os lados para dispersar os manifestantes. Bombas de gás lacrimogêneo, balas de borrachas e spray de pimenta foram lançados contra os manifestantes e jornalistas. Em reação os ativistas saíram quebrando e transformando em obstáculos o que conseguiam com intuito de se distanciar da polícia. O grupo recuava a cada metro que a Tropa avançava e a cada metro que a população recuava deixava um rastro de destruição, pedras lançadas e coisas quebradas. O que acontece todos os dias na periferia bateu à porta da classe média. Luís Antonio se recorda do momento em que, para fugir das bombas, alguns manifestantes foram buscar guarida em um condomínio no Campo Grande. A polícia tentou adentrar ao condomínio para pegar os manifestantes, mas foram impedidos pelos moradores que retrucaram, pois, se tratava de uma propriedade particular e a polícia não poderia entrar ali. Nesse momento os policiais

começaram

a

lançar

bombas

contra

os

apartamentos. Como o efeito da bomba não é direcionado, 67


tanto os manifestantes quanto os moradores de prédios do Campo Grande, que tinham panos brancos nas janelas sinalizando que queriam paz, foram atingidos. Depois de ficarem encurralados, jogando pedras na polícia,

os

manifestantes

voltaram

ao

local

de

concentração. A tropa seguiu os ativistas do Dique do Tororó até o Campo Grande. Nessa hora, Luís Antonio já tinha deixado a câmera de lado e estava enfrentando a Tropa, juntamente com companheiros de militância. Lúcio, por sua vez, estava bem próximo porque não queria perder nenhum detalhe. A polícia não queria que nada daquilo fosse registrado, por isso xingava, hostilizava, e atirava contra os profissionais da imprensa. No tumultuo, Luís Antonio quase foi atingido por uma bala de borracha, Lúcio recebeu uma pedrada na perna, e teve colegas que apanharam da polícia e de manifestantes. Quem também viveu momentos de tensão na volta para o Campo Grande foi o advogado David Mendez, recebeu bomba de efeito moral e respirou muito gás lacrimogêneo, além de sofrer ameaças, ouvir gritos e palavrões de policiais. Já era noite quando a manifestação da quinta-feira (20) foi encerrada e os manifestantes foram dispersados. 68


Depois de um dia muita adrenalina, os envolvidos nos atos já se preparavam para os novos passos que seriam dados dali para frente rumo a um país mais justo e menos desigual. No dia seguinte não houve manifestação, no entanto, as mobilizações continuaram. O MPL – Salvador convocou uma reunião para a tarde de sexta-feira (21), que ocorreu no Passeio Público. O objetivo do encontro foi discutir o rumo do movimento, definir as pautas e planejar os passos seguintes, como, por exemplo, os atos marcados para o sábado (22), dia do jogo entre Brasil e Itália. ***** Para o dia 22 de junho foi marcada uma concentração no Campo Grande que deveria seguir até as imediações do Shopping Iguatemi, na Avenida ACM. A decisão do trajeto não agradou todos os envolvidos no movimento, por isso alguns manifestantes preferiram não seguir o trajeto definido e esperar o grupo em frente ao shopping. Entre os insatisfeitos com a redefinição do trajeto estava o advogado David Mendez. O primeiro problema que ele viu foi a distância entre os locais, o que significava cansaço e desgaste, o outro foi o fato de passar pelo Vale do Canela, local propício, do ponto de vista geográfico, 69


para que a polícia se posicionasse e massacrasse a população. Mas os argumentos do advogado não convenceram a maioria. Ele foi vencido e decidiu não seguir o percurso escolhido pela maior parte dos ativistas. Quem também preferiu ir direto ao Iguatemi foi a jornalista Daniele Rodrigues. Ela lembra que sentiu medo ao chegar ao Iguatemi, pois aquele dia foi de grande repressão a jornalistas, em que os policiais quebraram câmeras, ameaçaram, obrigaram os fotógrafos a apagarem imagens e agrediu jornalistas fisicamente. Embora não estivesse trabalhando no momento, portava uma câmera e isso já era motivo para sofrer repressão policial. Por isso ela não quis se posicionar, no primeiro momento. A jornalista se sentiu “só”, pois algumas pessoas das quais ela compartilhava da mesma ideologia ainda estavam no Campo Grande, por isso achou melhor ficar na região do shopping Iguatemi só observando a movimentação. Dois fatos não saem da memória da jornalista. O primeiro foi logo no início da tarde, quando ela percebeu que havia pessoas querendo se aproveitar da situação. “Um homem que aparentava 30 anos, bem vestido, usando terno e gravata, chegou ao local acompanhado da esposa e de 70


duas filhas. O homem quis fazer daquilo um palanque político, começou discursar para cerca de 20 pessoas que prestavam atenção nele e tentava decidir os rumos das manifestações”.

jornalista também não esquece o fato

de mesmo após os manifestantes terem andado do Campo Grande ao Iguatemi, já chegarem cansados, a polícia ainda reprimir o grupo. David também deu colaboração ao movimento indo diretamente ao Iguatemi. Ao chegar no local, o advogado ficou um tanto decepcionado com o número de manifestantes. Eram cerca de 300 ao todo, mas como havia a marcha que saiu do Campo Grande ele esperou a chegada para ver o desenrolar dos fatos. Ao olhar curioso do advogado, não escapavam observações que talvez passassem

despercebidas

aos

olhos

de

outros

manifestantes. David constatou que aquela manifestação, assim como as anteriores, era formada por jovens de classe média, cheios de energia, porém um tanto desorientados, o que considerava natural dada a originalidade e magnitude do movimento que sacudia o país há cerca de uma semana. Havia militantes que queriam direcionar a pauta para a questão da mobilidade urbana e a prática do passe livre, 71


havia pais e mães de família e a adesão, ainda que pequena, da periferia. O cenário era de verdadeiro embate, não paravam de chegar viaturas e policiais, a Tropa Choque da PM, a Rondesp, a Cavalaria e Praças e Oficiais da Polícia Militar dentre outras corporações da polícia estavam na Av. ACM naquele sábado. Por volta das cinco da tarde havia cerca de 500 manifestantes. Em meio a palavras de ordem, a encontros e desencontros o clima começou a esquentar. Quando o grupo que se reuniu no Campo Grande chegou ao Iguatemi escoltado por viaturas, um receio tomou conta dos presentes. O encontro entre os dois grupos foi uma explosão de ânimo e euforia, o que de certa forma provocou inquietação por parte dos policiais. Nesse momento, David encontrou um conselheiro da OAB/BA designado pelo presidente a fim de acompanhar, observar

e prestar assistência, se necessário, aos

manifestantes. Aquilo para o advogado foi ao mesmo tempo motivo de orgulho e de reflexão. “Tive o primeiro de dois momentos de muito orgulho em relação à minha profissão e sua respectiva entidade de classe, encontrei o conselheiro mais uma vez, assim como havia ocorrido na 72


quinta-feira (20/06), nos Barris. Algo que falta e deve ser cobrado de outras relevantes entidades como o Ministério Público, a Associação dos Magistrados, bem como dos Defensores

Públicos

do

Estado,

que

além

de

completamente ausentes, não emitiram sequer uma nota oficial a respeito do tema” desabafa. O segundo momento de orgulho da profissão que David afirma, foi ao final das manifestações, quando ele, juntamente com outros colegas voluntários da OAB/BA, foi para a 1ª Delegacias dos Barris e para a 9ª Delegacia da Boca do Rio prestar auxílio aos que foram detidos pelo crime de dano3. O crime de dano necessita de representação do ofendido, e só se consuma com a efetiva lesão do bem jurídico visado, por exemplo, lesão à vida, no homicídio; ao patrimônio, no furto; à honra, na injúria. A circunstância era de crime multitudinário, ou seja, cometido por influência de multidão em tumulto, o que dificulta a revelação da autoria. Desse modo, facilitou que a liberação dos manifestantes detidos.

3

Crime previsto Art. 163 do Código Penal- Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia: Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.

73


Os olhos atentos de David lhe fizeram perceber que no grupo que chegou do Campo Grande, a periferia estava presente. O nível de agitação e excitação era crescente de ambos os lados, manifestantes e policiais. Quem também se atentou para o fato foi Luís Antonio, um profissional que por definição investiga a estrutura da vida social do homem,

a

interação

funcionamento

e

a

social

(ação

evolução

dos

e

reação),

o

agrupamentos

sociais. Para o cientista social, não poderia ser diferente, era chance da população que sofre a opressão na periferia, a violência cotidiana sofrida pelo povo pobre e negro marginalizado, teve de se vingar. Era o momento deles de “ir à forra”. David concorda com Luís Antonio, nesse sentido. “Como você se sentiria ao ter a oportunidade de falar e gritar tudo o que sente ante o algoz seu de todo dia, aquele que só aparece pra bater/prender/matar/punir, que discrimina, que ofende/tripudia/massacra diariamente o povo negro, rasta, e pobre dessa cidade?”, indaga. Eles não tinham nada a perder, o único risco que estavam correndo era de respirar um pouco de gás lacrimogênio e tomar uns tiros de borracha, violência que não se compara 74


àquela sofrida diariamente nas periferias. Para quem arrisca a vida todos os dias, apenas por ser o que é e morar onde mora, aquilo era muito normal. Até então não havia nenhum ato de violência, mas o clima de tensão aumentava a cada minuto. Uma espécie de felicidade e agitação dos excluídos da periferia se misturava com o medo de alguns manifestantes e a vontade de bater dos policiais. Os manifestantes menos radicais, sentindo o clima de tensão crescente no ar, tentavam abafar e conter, de algum modo, o grito exaltado dos mais radicais. Alguns manifestantes pediam para que todos sentassem no chão, outros ficaram apavorados e começaram ir embora. David revela que neste momento percebeu que as pessoas da periferia tinham ido para as manifestações com a determinação de verdadeiros soldados, órfãos de uma liderança que esperavam encontrar na classe média. A classe média começava a despertá-los e trazê-los para as ruas. Para o advogado, aquelas pessoas que nunca tiveram oportunidade de vivenciar qualquer experiência política a não ser, no máximo, votar, estavam tendo essa oportunidade pela primeira vez. 75


David conversou com algumas daquelas pessoas, muitos, inclusive, envolvidos, com a criminalidade especialmente furto, roubo e tráfico de drogas. A maioria tinha alguma dívida a acertar com a polícia, oriunda de história trágica de perda de pai, irmão ou amigo em confronto com a polícia ou executados por ela. Mas, como advogado criminalista, David não julgou nenhum deles. Ele considera que são resultados do sistema, vítimas da sociedade. “São os filhos de um Estado pródigo em repressão/coerção/violência

e

ausente

em

tudo

o

mais/todo o restante... Produtos do meio. E, sendo o crime algo circunstancial, que todos nós estamos sujeitos a vivenciar/experimentar a qualquer tempo, a depender da situação fática a que formos submetidos, isso não lhes tira o caráter humano e, consequentemente, seu direito de (finalmente!) protestar”. Após a deliberação por parte de alguns manifestantes, para realizarem o direito de livre manifestação nos dois sentidos da Av. ACM, e a decisão de outra parte do grupo, de migrar no sentido para a Av. Paralela, houve confusão e, mais uma vez, o cenário formado foi o de uma “praça de guerra”, com chuva de bombas de gás lacrimogênio, spray 76


de pimenta e de tiros de balas de borracha, em frente ao shopping Iguatemi. Quem acompanhava tudo de perto, observou que novamente, o confronto começou a partir da repressão da polícia. O advogado David Mendez estava desafiando o perigo, na linha de frente mais uma vez. Bombas e gás se espalhavam por todo lado. Enquanto alguns manifestantes corriam e gritavam desesperados "Sem vandalismo, gente!!!" "Pra que isso?!?!", outro grupo, do qual o advogado fazia parte, resistia bravamente com fogos de artifício, pedras e paus contra os policiais e suas armas químicas, balas de borracha, cavalos e cassetetes. A solidariedade entre os "combatentes" era impressionante, estavam todos contra a polícia, que naquele momento representava o Estado corrupto, violento e autoritário. Pela terceira vez, naquela semana, Salvador era palco para as manifestações. Assim como nas anteriores, as ações começaram calmas, mas houve registros de confusão com o desenrolar dos fatos. Embora cansados, depois de percorrer mais de sete quilômetros a pé, os manifestantes ainda foram reprimidos na noite do dia 22. O cenário se repetia, os atos daquele sábado deixaram um 77


saldo de feridos e detidos, novamente houve quebraquebra. Carros quebrados no Campo Grande, embate no Vale dos Barris e na Avenida ACM, tentativas de invasão em lanchonetes na Graça, lojas saqueadas na Avenida Sete de Setembro, concessionárias apedrejadas na Av. Paralela, carros da FIFA e viaturas da polícia danificadas, módulo policial e ônibus incendiados, pontos de ônibus quebrados, relatos de abuso de autoridade. Os alvos eram sempre os mesmos, e não foi diferente naquele dia quando foram destruídas as vidraças do Iguatemi, bancos, pontos de ônibus, placas, câmeras, ou seja, tudo aquilo que os manifestantes consideravam elementos simbólicos do que eles apontam como inimigo opressor na luta de classes.

78


Capítulo três

79


80


A atuação da polícia militar nas manifestações de junho de 2013, na cidade de Salvador, foi considerada desastrosa e recebeu duras críticas. A OAB/BA e o Sindicato dos Jornalistas da Bahia (Sinjorba) divulgaram nota de repúdio a ação da PM e, o Ministério Público Federal abriu investigação para apurar as denúncias de violação dos direitos humanos. Mas, pelo histórico da polícia no nosso estado e em nosso país o resultado não é de se estranhar.

s manifestações foram “controladas” por

uma instituição que, em maio de 2012, a Organização das Nações Unidas (ONU) sugeriu que fosse extinta no Brasil. A recomendação de abolir a PM se deu, sobretudo, mediante as acusações de violações e execuções sumárias. A proposta foi apresentada pela Dinamarca e fazia parte de 170 recomendações apresentadas pelo Conselho de Direitos Humanos ao Brasil. Entre os principais problemas apontados no documento apresentado pela ONU estavam a situação das prisões e a atuação da polícia militar, envolvida em denúncias de práticas de tortura. A recomendação foi considerada inconstitucional pelo Brasil por violar a Constituição Nacional que prevê a existência de forças civis e militares. Em resposta, o país informou 81


que melhorou o controle das forças de segurança pública, por meio da instalação de corregedorias e de escritórios internacionais, e com o treinamento de profissionais em direitos humanos. Nas manifestações de junho situação fugiu do controle, a polícia agrediu manifestantes, jornalistas e até outros policiais. Mas não poderia ser diferente, os problemas referentes à Segurança Pública no Brasil são muitos. Os efetivos meios de controle sobre as corporações policiais pela sociedade civil não existem, o controle externo já exercido pelo Ministério Público, pelo Judiciário e pelas corregedorias é ineficiente. As questões como a formação dos policiais e a desmilitarização das polícias ainda precisam ser discutidas. Outra questão a ser levada em consideração é o acesso a serviços públicos de qualidade e a direitos básicos como educação, saúde, moradia, transporte, água, pois esses temas fundamentais para uma política de segurança pública eficiente. Nas reuniões lideradas pelo MPL – Salvador, a violência nos atos virou ponto de discussão. Como na maioria das manifestações no Brasil, em Salvador os atos também foram violentos. Além dos tipos de agressão 82


socialmente

condenadas,

como

os

saques

e

as

depredações, que por vezes, são os únicos que são vistos como violência, houve a repressão policial, utilizada sob a alegação de manutenção da ordem, que também é um tipo de violência, que embora legitimada por uma parcela da sociedade, é, na maioria das vezes, a mais cruel. As manifestações populares acabaram se tornando locais de conflito e a violência esteve presente nesse ambiente. O uso da força para conter manifestações foi uma prática corriqueira e, em resposta, os oprimidos usaram da resistência, que, geralmente, foi proporcional à força do opressor. A violência pode ser percebida como inevitável em Salvador, no mês de junho, tanto na forma socialmente condenada, da violência empregada pelos manifestantes, como sob a forma legitimada por alguns setores da sociedade, a violência policial. O jogo de forças se apresentou sob a forma de violência. Violência, que, no Brasil, foi construída historicamente desde o processo de colonização, sob diversas formas, e tem envolvido os indivíduos e a sociedade desde então, desencadeando revoltas, batalhas e até extermínios. Violência que tem se manifestado com a consolidação de uma sociedade cada 83


vez mais paradoxal e desigual. Violência que é inevitável em sociedades com tantas contradições e desigualdades, como a capital baiana. Violência que se apresenta em vários espaços, como desdobramento das fissuras da sociedade e está presente em diversos setores da vida social.

Com armas químicas e equipamentos de segurança, a tropa da Polícia Militar reprimiu os manifestantes no segundo dia de protestos Foto: Lúcio Távora | Agência A TARDE

Durante as manifestações, a OAB/BA chegou a instalar

uma comissão

de direitos humanos para 84


acompanhar as ações. Mesmo nos atos pacíficos, os policiais utilizavam bombas de gás lacrimogêneo, tiros de balas de borracha e spray de pimenta para dispersar os manifestantes e, a partir daí, surgiam os confrontos. Os resultados foram depredação do patrimônio público e privado,

ônibus

incendiados,

semáforos

quebrados,

agências bancárias destruídas, comércio saqueado, prisões e agressões a manifestantes e a jornalistas. O que era para ser um despertar para cidadania, em alguns momentos, virou um cenário de destruição. O balanço do dia 20 de junho, divulgado no site da Secretaria de Segurança Pública (SSP/BA) no dia seguinte, informava que três ônibus urbanos foram incendiados, três agências bancárias foram depredadas, dois módulos da Polícia Militar depredados, quatro viaturas da Polícia Civil tiveram seus vidros quebrados e três ônibus foram apedrejados, dois deles com o adesivo de identificação da FIFA. Além desses danos, consta no balanço da SSP/BA que telefones públicos, placas de sinalização

e

banheiros

químicos

também

foram

destruídos, mas não informa dados sobre a quantidade. O balanço divulga as ocorrências registradas até as 7h da 85


sexta-feira (21) e levantadas pela Coordenação de Documentação e Estatística Policial (Cedep), da Polícia Civil. Constam no relatório: três lesões corporais dolosas, um roubo a transeunte, 11 danos, sendo que uma pessoa foi presa em flagrante por dano qualificado ao patrimônio, sete roubos a ônibus e a condução de uma pessoa à delegacia por desacato. Em uma das mais violentas repressões policiais contra manifestações na cidade, a tarde e a noite de quinta-feira (20) foram marcadas por conflitos entre policiais militares e manifestantes em diferentes áreas da cidade. A Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) registrou 44 atendimentos a pessoas feridas em postos municipais, enquanto nas unidades de saúde do Estado, pelo menos nove civis e seis policias feridos foram atendidos, a maioria das ocorrências era de pessoas com escoriações e intoxicação por gás. Relatos de violência gratuita e abuso de autoridade por parte da polícia demonstraram o despreparo e a falta de habilidade da instituição para lidar com situações como essas, em que envolve um aglomerado de pessoas e ânimos exaltados. Muitos problemas envolveram a ação da 86


Segurança Pública durante os protestos. As agressões e prisões durante os confrontos, de certa forma, foram negligenciadas e sequer foram mencionadas no balanço da SSP/BA, divulgado no dia 21 de junho de 2013, que só contabilizou os prejuízos materiais contra o patrimônio público e privado e o número de policiais feridos. O governo não respondeu às denúncias de excessos cometidos pelas corporações, como a circulação de um vídeo que mostra um disparo de arma de fogo vindo de um carro oficial, como as acusações de prisões arbitrárias e o uso excessivo da força. No encontro do MPL – Salvador, no dia 21, foi formado um grupo específico para discutir a forma como a Polícia estava agindo durante os protestos. Para compor a comissão que discutiria a ação da PM e os aspectos jurídicos foram convocados os advogados e os policiais presentes naquela reunião. Estrategicamente, ou não, quem participava da reunião no Passeio Público na tarde daquela sexta-feira (21), era um representante da associação de policiais da Bahia. Formado o subgrupo, se debateu a necessidade da desmilitarização da Polícia, o fortalecimento do poder judiciário e a cobrança de um 87


posicionamento do Ministério Público da Bahia em relação à atuação truculenta de policiais durante as manifestações. A familiaridade do advogado David Mendez com as leis fez com que ele participasse do grupo que discutiria a ação da PM e os aspectos jurídicos. Foi nesse momento que o advogado teve a oportunidade de ouvir do representante da associação de policiais como funciona a estrutura interna da Polícia Militar no Estado, das divisões e das companhias independentes. O movimento chegou a discutir estratégias para convocar os policiais para aderir às manifestações, sob a alegação de que seria uma luta de todos. Surpreendentemente, a discussão revelou que os Praças, soldados e boa parte dos Oficiais tinham vontade de aderir, mas temiam por represálias tanto por parte do Governo como dos próprios manifestantes. Não poderia ser diferente, após a atuação desastrosa da PM no dia anterior, especialmente as companhias independentes, como a da Tropa Choque e da Caatinga, os manifestantes viam a polícia como inimiga, portanto as represálias seriam certas.

88


Ainda nessa discussão, os ativistas pediram que a OAB/BA

se

manifestasse

em

relação

à

inconstitucionalidade da Lei da Copa, que cerceia garantias individuais alçados à categoria de direitos fundamentais pela Constituição de 1988 em prol de uma entidade de direito privado (FIFA). O objetivo era fazer com que a OAB/BA pressionasse o Conselho Federal a entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) para que o Supremo Tribunal Federal declarasse a inconstitucionalidade da lei. Outra reivindicação do grupo junto à Ordem foi a apresentação de uma ação com o pedido de mandado de segurança coletivo em favor dos ativistas que queriam ter seu direito constitucional de manifestação pacífica reconhecido, no entorno do estádio ou onde quer que seja. Observando aquela discussão, David se deu conta de que era equívoco rotular toda a Polícia como inimiga. O advogado pensou que, talvez, atacar os principais postulados do militarismo, hierarquia e disciplina, lembrando aos policiais que, antes de tudo, eles são seres humanos e, portanto, seres pensantes, que possuem capacidade de autodeterminação e não estão obrigados a 89


cumprir ordens manifestamente inconstitucionais, injustas, mesmo legais, ilegítimas, fosse uma estratégia que funcionasse. No entanto, seu pensamento era que isso só funcionaria com os praças e oficiais da PM, porque depois da discussão, o advogado chegou a conclusão de que com os integrantes da polícia especializada não adiantava, não haveria diálogo. Ao entender o funcionamento das corporações, a opinião do advogado era de que as companhias

independentes

da

PM

formam

“cães-

humanos” treinados bater e matar. A ação policial demonstrou que as críticas em relação às práticas da corporação têm todo sentido. Sua atuação guarda vestígios da origem da instituição Polícia Militar, que historicamente foi criada para dar emprego aos capitães do mato e controlar a população negra recém liberta e as práticas violentas, agravadas pelo regime antidemocrático dos governos brasileiros, sobretudo, pela ditadura militar pós 1964. ***** Os relatos de abuso de autoridade não paravam de surgir, Tássio Santos lembra que presenciou uma cena de abuso de autoridade no momento em que estava na 90


Avenida Joana Angélica. Um homem chegou perto da barreira para conversar com os policiais e foi recebido com spray de pimenta. O estudante lembra revoltado que o homem não tinha nada nas mãos, portanto, não havia motivo para os policiais reagirem daquela maneira, mas foi o que aconteceu. A forma como os manifestantes que saíram do Campo Grande foram recebidos pela polícia especializada demonstrou a falta de preparo para lidar com situação de manifestação. Os cidadãos que pagam impostos e, consequentemente, os salários dos policiais, e deveriam ser os destinatários dos serviços públicos por eles prestados, na verdade, foram atacados. A maneira truculenta como a polícia tratou os manifestantes revoltou o advogado David Mendez, que acredita que não tinha como ser pacifista diante de uma situação daquelas, tomando tiros, com explosões ao lado, debaixo de uma nuvem de gás lacrimogêneo, observando a polícia perseguir todos como se fossem criminosos. “Trataramme (e aos demais) como inimigos do Estado - e inimigo é inimigo...” desabafou.

91


Tássio concorda com David, no sentido de que, diante do modo como os manifestantes foram tratados, não era surpresa que o ato terminasse em pancadaria. As pessoas estavam caminhando, gritando palavras de ordem, cantando o hino nacional, exigindo seus direitos, falando sobre os problemas do Brasil e foram recebidas com balas de borracha e bombas de gás. Não seria surpresa se a reação de algumas pessoas fosse de atacar algum prédio, quebrar alguma vidraça, ou jogar pedras nos policiais. Os manifestantes queriam se defender de alguma forma, resistir para que o seu direito de se manifestar não fosse negado. O estudante considera a ação vergonhosa, pois a polícia estava insegura, agindo com truculência. Depois de tudo que leu e conheceu da História do Brasil, Tássio se sentiu como se ainda houvesse ditadura militar, diante daquela situação. Para Lúcio Távora, de fato, a polícia ainda guarda resquícios da Ditadura Militar, ele foi militar do exército, afirma que o treinamento de um policial ainda é igual ao da época da ditadura. Lúcio também criticou ação da polícia durante as manifestações, uma vez que presenciou policiais humilhando as pessoas com palavras de baixo 92


calão, tanto manifestante quando a população que só queria sair do trabalho e ir para casa ou vice-versa. Não há como negar que a atuação da polícia foi desastrosa. As bombas lançadas acabavam atingindo até quem estava trancado em suas casas. Depois do empurra-empurra entre manifestantes e policiais militares, na Avenida Joana Angélica, onde banheiros públicos viraram trincheiras e restos de construção viraram munição para os manifestantes, o caos se instalou. Até os oficiais e praças da PM, que faziam a escolta, tomaram chuva de bombas e correram junto com os manifestantes. Isso mesmo, a polícia atingiu até a própria polícia, foi o que David chamou de “fogo amigo”. Pessoas desnorteadas, gritando, correndo sem saber qual direção tomar. No meio da correria estava Tássio acompanhado de uma amiga. Com o susto da explosão da bomba sua única reação foi correr, mas no desespero ele seguiu para o mesmo lado da fumaça e acabou inalando todo gás. “É uma sensação muito estranha porque parece que vai queimando tudo por dentro, começa a arder as narinas, os olhos começaram a lacrimejar, o gás fica por toda a cara”, contou. Pessoas passaram mal, como a 93


amiga de Tássio que estava com ele no momento da correria. Para amenizar o efeito do gás, os manifestantes contaram com a “brigada de saúde”, uma espécie de “cruz vermelha” formada por estudantes da área saúde de três faculdades de Salvador, que acolhiam e prestavam os primeiros socorros aos manifestantes feridos. Para David, a falta de habilidade da polícia para lidar com aquela situação revelou que o mais certo a ser feito é seguir as orientações do Conselho da ONU e acabar com a corporação Polícia Militar no Brasil, que agride e intimida. Lúcio acredita que a população é vista pelo policial como um inimigo e vice-versa. Pelo histórico de violência policial, na visão do fotógrafo as pessoas têm muito medo da polícia, sobretudo, da polícia especializada, como a Tropa de Choque, a Caatinga, a Rondesp, enfim, as companhias independentes que vão para manifestações para combater, conter os ânimos e para atacar. Ele acredita que isso ocorre também pelo próprio histórico da polícia de chegar aos locais para fazer operações e atingir pessoas inocentes. Isso faz com que a população veja a polícia apenas como repressora. Lúcio acredita que essa postura tem a ver com o treinamento que esses policiais recebem, 94


eles expressam o que é passado durante o treinamento. David concorda com Lúcio no sentido de que o treinamento reflete na conduta e vai além. Para o advogado, a polícia militar são os capitães do mato do século XXI que funcionam como instrumentos de opressão e manutenção do status quo. David é enfático ao fazer distinção entre os Praças e Oficiais da PM e os policiais das Companhias Independentes durante as manifestações. A atuação era completamente diferente, enquanto

os PMs foram

escalados para acompanhar as passeatas e, em alguns, casos, dialogar com os manifestantes, as polícias especializadas tinham a função de reprimir através do uso da força. A estudante Janaína França, que tem uma amiga que faz parte da corporação da PM, revelou que os policiais militares foram retirados de operação porque a ordem era bater e essa parte ficava por conta da polícia especializada. Na delegacia dos Barris, David e mais três amigos chegaram a conversar com três Oficiais da PM sobre os acontecimentos do dia 20, sobre a onda de protestos, sobre as estruturas de poder dentro das polícias do Estado, sobre 95


a atuação do governo e sobre a Lei Geral da Copa. O resultado foi surpreendente. Os policiais se mostraram desconfortáveis com a situação, descontentes com o governo e, sobretudo, insatisfeitos com a Lei Geral da Copa, que retirou a soberania nacional para entregá-la à FIFA. A tarde e a noite da quinta-feira (20) foram marcadas por atos de violência. Enquanto a imprensa transmitia a informação de que os manifestantes começavam a atacar e a polícia reagia para conter os manifestantes, a versão de quem estava no campo de batalha era outra. O discurso da mídia incomodou bastante Tássio Santos, que estuda para ser um profissional da Comunicação, por isso ele utilizou formas alternativas para divulgar o que presenciou e vivenciou durante as manifestações. Nesse sentido, a internet foi uma aliada nesse processo. O estudante acredita que graças à influência que as redes sociais têm hoje na vida das pessoas, foi possível ter informações do que estava acontecendo, a partir de veículos de comunicação diferentes dos meios tradicionais. Quem comunga da opinião de Tássio é a também aspirante a comunicóloga, Janaína. Para ela, se não fosse a 96


divulgação através da internet muita gente não teria noção do que estava acontecendo ou teria apenas uma visão deturpada do que foi o movimento. Na televisão e em outras mídias tradicionais as coberturas colocavam os manifestantes como marginais e vândalos, mas as filmagens e relatos de pessoas que estavam no “campo de batalha” que foram divulgados através do Facebook, do Twitter, do YouTube demonstram que as coisas foram diferentes. Para Janaína, a divulgação por meio de veículos alternativos não permitiu que o movimento fosse sufocado. Os manifestantes se mostraram na rede mundial de computadores, não teve como esconder da sociedade, já que a truculência dos policiais foi apresentada pelos manifestantes e gerou uma onda de insatisfação. Muitos que estavam insatisfeitos em casa perceberam que não estavam insatisfeitos sozinhos. A população toda estava revoltada e isso foi motivo de ânimo, porque uma coisa é ir contra o sistema sozinho, outra coisa é quando o povo todo está contra o sistema. Quem vivenciou de perto não negou que houve atos de violência por parte dos manifestantes, mas ressaltaram 97


que em todos os casos era sempre uma reação à ação da polícia. Para a jornalista Daniele Rodrigues, uma coisa era clara: a violência dos manifestantes começava a partir da violência policial. Ninguém começou a quebrar as coisas do nada. Só a partir do momento em que a polícia jogou as primeiras bombas é que o quebra-quebra começou. As pessoas reagiram porque estavam querendo protestar, em um país, teoricamente, democrático onde o direito de expressar opinião e se manifestar são assegurados por lei, mas na prática acontecia o contrário. A violência dos manifestantes era sempre uma resposta à repressão. Uma resposta à repressão daquele momento, mas também à repressão do dia-a-dia. Durante os atos, moradores de bairros periféricos de Salvador saíram em “defesa dos manifestantes” e do alto de morros eles atiravam pedras em policiais. Mas, essa atitude tem uma questão simbólica por trás, pois não era pura e simplesmente

defesa

dos

manifestantes,

mas

a

oportunidade para se vingar de alguma forma. A chance de revidar a violência sofrida pela população negra, pela população pobre. Era o momento para enfrentar aquela polícia que entra na favela atirando, matando o jovem 98


negro, que muitas vezes é um trabalhador que não tem ligação com criminalidade, que se torna vítima por estar no lugar errado, na hora errada, por morar onde mora ou simplesmente por ser quem é. Os meninos da periferia que todos os dias sofrem repressão policial, que todos os dias têm que passar pelo baculejo4. Evidente que quando tiveram oportunidade se voltaram contra isso. Foi uma forma de mostrar força para a polícia que chega colocando a arma na cabeça das pessoas na favela. Por parte dos manifestantes também houve atos de violência. David presenciou depredações e danos ao patrimônio público e privado, no entanto, ele afirma que entende tais condutas e que não existe um movimento social que não tenha como alvo os símbolos do Estado burguês e do capital. Os alvos dos manifestantes foram bancos, pontos de ônibus, ônibus, placas de sinalização e câmeras de seguranças. Em sua visão, estes elementos representam o sistema capitalista e o estado opressor e vigilante. Assim como David, Luís Antonio entende que em toda ação contra o patrimônio existe uma motivação 4

Baculejo – expressão utilizada para se referir a abordagem policial

99


política. Ao destruir uma lanchonete de cadeia fast food, ou uma loja multinacional eles estão contra o processo de exploração que estas empresas implantam nos países subdesenvolvidos. Os ativistas acreditam que existe uma questão simbólica, pois eles estão destruindo o símbolo do capitalismo. Os saques, as depredações são socialmente condenáveis, mas esses atos não são puramente violência. A jornalista Daniele também pensa assim, ela não vê problema em queimar

ônibus,

principalmente, em

Salvador. Em sua visão, é um favor que a população faz a si mesma porque os ônibus estão sucateados e ao serem queimados, inevitavelmente, a frota será renovada. Quebrar a vidraça de um banco, em seu entendimento, vai além de um ato de violência “É um banco. Nós somos violentados por essas grandes corporações todos os dias. Essa é só uma resposta”, defende. Para Daniele, não se trata de violência primária, mas de uma resposta à violência que a população sofre cotidianamente. Mas a jornalista pondera em alguns momentos. Ela é contra a destruição de uma loja pequena, por exemplo, pois dificilmente o dono conseguiria se reerguer.

100


Janaína França pensa um tanto diferente, pois, embora entenda os ataques aos símbolos de poder como uma resposta, continua contra qualquer tipo de ato violento, pois acredita que violência desperta mais violência. David mostra-se mais radical e não considera os manifestantes que têm esse tipo de atitude como vândalos, mas, pelo contrário, acredita que eles utilizam o dano como forma de ação política, uma vez que as tradicionais formas de manifestação não vinham dando resultado. Em sua concepção, os manifestantes são vítimas do Estado, que pratica violência diariamente contra todos os cidadãos. “Paradoxalmente,

o

Estado,

é

quem

edita/promulga/publica as leis e, ao mesmo tempo, quem mais as viola, negando-lhes, malferindo-lhes direitos diariamente”, afirma. Além de violência física, como os tiros e as bombas, os manifestantes sofreram violência psicológica. Foi o que aconteceu com as ameaças sofridas por David, tanto nas ruas quanto na delegacia, enquanto atuava como membro da OAB libertando manifestantes presos. Do mesmo modo, Lúcio foi alvo também de ameaças e xingamentos enquanto trabalhava na cobertura e, também, xingamentos 101


e hostilidade deixaram a jornalista Daniele em estado de choque. O uso intencional da força ou do poder, de forma real ou por meio de ameaças, individualmente ou em grupo, nos atos de protestos em Salvador deixaram seu saldo de lesões e danos psicológicos. A ação truculenta foi um tiro no pé. A repressão que visava coibir a ação dos ativistas teve efeito contrário. Os repressores esperavam que os manifestantes saíssem das ruas, mas em vez de abafar os atos, o movimento ganhou mais força e visibilidade. Não teve como esconder as desigualdades, que gritam por onde quer que se ande em nosso

país.

Por

conta

da repressão

policial,

os

manifestantes ganharam apoio popular e parte da população que antes não estava engajada na luta passou a apoiar as manifestações. As manifestações de junho permitiram traçar um raio x da sociedade em que vivemos: alguns cidadãos frustrados, outros esperançosos, polícia repressora e despreparada e um Estado omisso. Enquanto alguns manifestantes usavam paus e pedras como munição para resistir às armas químicas utilizadas pela polícia, outros preferiam gritar “sem violência”, entoar o hino nacional, 102


sentar-se e dizer que só queriam protestar, que estavam exigindo seus direitos ou, simplesmente, preferiram voltar para suas casas. Os policiais perderam o controle da situação ao agredir manifestantes, moradores de bairros no entorno da zona de conflito, jornalistas e até outros policiais, e o governo do Estado não conseguia responder às acusações de excessos da polícia.

103


104


CapĂ­tulo quatro

105


106


As manifestações de junho foram um movimento aberto, que ganhou a adesão de diferentes grupos ideológicos, de jovens que participavam de protestos pela primeira vez, de pessoas que não tinham vinculação político-partidária, de movimentos sociais organizados. O país era o centro das atenções do mundo naquele momento por conta da Copa das Confederações, por isso não cabia a divulgação de uma imagem negativa. A ideia era garantir que o evento acontecesse e que os episódios ficassem fora da zona que o mundo enxergava. Nesse contexto, atuar através da repressão policial era uma forma de coibir a ação dos ativistas. Mas, ao contrário do que os repressores esperavam, os manifestantes não saíram das ruas e o movimento ganhou mais força e visibilidade, inclusive no âmbito internacional. Os ativistas perceberam que quanto maior fosse a força dos protestos seria mais fácil conseguir algo naquele momento. A radicalidade dos atos se fez necessária, após entender que as manifestações que não atrapalham, consideradas legítimas pelo governo, não dão em nada. Não adiantaria marcar um ato com 50 mil pessoas só para dar volta no centro. O que outrora seria vista pela 107


sociedade como algo negativo, despertou o espírito de solidariedade por parte da população, que assistiu perplexa à repressão, e ficou tão enfurecida que deixou de ver problema no travamento de pistas e ruas, em fazer barricadas e resolveu ir à luta também. Em resposta, o governo brasileiro anunciou várias medidas para tentar atender às reivindicações dos manifestantes. O Congresso Nacional votou uma série de concessões, a chamada agenda positiva, como tornar a corrupção um crime hediondo, arquivar a PEC 37 5 e proibir o voto secreto em votações para cassação de mandato de legisladores acusados de irregularidades. Houve também a revogação dos então aumentos das tarifas nos transportes, em várias cidades do país, com a volta aos preços anteriores ao movimento. Cada um como o seu papel, o governo buscou gerenciar a crise, mas nem todos os manifestantes se agradaram com essa atitude. O cientista social Luís Antonio, que tem ideologia anarquista, não vê muitas

5

PEC 37 - Proposta de Emenda Constitucional 37/2011 previa que o poder de investigação criminal fosse exclusivo das polícias federal e civis, retirando esta atribuição de alguns órgãos e, sobretudo, do Ministério Público.

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vantagens nas medidas do governo. Como o anarquismo prega a desconstrução da organização do Estado, Luís Antonio acredita que lutar contra a corrupção, por exemplo, não resolve porque mantém o Estado dividido em classes da maneira que está. Ele se mostra ainda mais radical quando diz que o governo brasileiro se preocupou naquele momento em manter o interesse da FIFA. A resposta foi apenas para garantir que a população se acalmaria e que o evento aconteceria. Em sua visão, isso seria mais uma prova de que o governo não serve ao interesse do povo e sim ao capital. Não por acaso, posteriormente, o governo assumiu uma posição firme para que fosse mantida a Copa e ressuscitou a Lei de Segurança Nacional. A lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983, trata dos crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão: a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito, a pessoa dos chefes dos Poderes da União. A Lei da época da Ditadura Militar voltou a ser usada para enquadrar os manifestantes, enquanto juristas defendem que, na verdade, para

109


enquadrar os ativistas bastaria que fossem aplicadas as sanções previstas no Código Penal. Apesar de os resultados ainda serem poucos diante da magnitude do movimento e das demandas históricas represadas de direitos sonegados, valeu a pena arriscar a própria pele para conseguir alguns avanços. O fim do voto secreto entre os parlamentares, a redução das tarifas de transporte público em 59 cidades, incluindo 15 capitais e a democratização e aprofundamento das discussões políticas de temas como reforma política e combate à corrupção. Houve resistência frente aos ataques da polícia, pois os manifestantes não aceitaram que deviam apanhar e perder sempre. Eles retrucaram. Pedras, coquetel molotov6, interrupção de trânsito. E assim foram resistindo, apanhando num dia, mas no dia seguinte estavam lá, firmes, lutando pelos seus ideais. Os primeiros resultados das manifestações mostraram que o povo venceu e que os governantes tiveram que ceder. Isso foi um avanço. E essa sensação foi o motor que mobilizou mais e mais pessoas para protestos que sobreviveram a balas de borracha, a gás lacrimogêneo, a 6

Bomba de fabricação caseira

110


spray de pimenta, a prisões e levou multidões a enfrentar a polícia. Sim, eles conseguiram alguma coisa. Mas a que custo? Os manifestantes assumiram um risco. Eles atentaram contra a segurança pessoal. Em nome das causas, as pessoas arriscaram seus corpos, se colocaram nas ruas para enfrentar a polícia com seus cães, seus cavalos, suas armas químicas e suas balas de borracha. Sabendo dos riscos que estavam correndo, os próprios ativistas tomavam precauções. Na internet, integrantes do MPL–Salvador

compartilhavam

documentos

com

orientações de segurança. Entre as recomendações, o documento fornecia informações sobre a “Brigada de Saúde” que estava lá para ajudar nos atos, orientava os ativistas a não usarem a Bandeira Nacional como forma de assegurar a integridade física, a não provocar a polícia, a utilizar registros de imagens como armas pacíficas e fornecia dicas de como se prevenir e se proteger durante os atos. A lista de recomendações continha também orientações jurídicas e de como se comunicar com outros manifestantes. Para garantir a integridade física, o MPLSalvador orientava, inclusive, sobre o que levar e o que não levar para os atos. Entre os itens que deveriam 111


acompanhar os manifestantes estavam: documentos, celular, água, solução de antiácido e soro fisiológico para minimizar o efeito do gás lacrimogêneo. Entre os que não deveriam ser levados: drogas, armas e máscaras, pois atrapalhavam em caso de fuga. Pelo que estava acontecendo em outras cidades já era possível prever que em Salvador não seria diferente. Numa manifestação em que as pessoas estavam dispostas a correr riscos não era nenhuma novidade que seus corpos sofressem as consequências. Na capital baiana, um grupo resolveu se colocar em risco para ajudar os demais. Esse grupo era formado por estudantes da área de saúde de faculdades particulares de Salvador. Eles já entraram nas manifestações pensando em atuar no apoio de primeiros socorros. Além da indignação geral, que eles também compartilhavam,

o

objetivo

de

participar

das

manifestações de junho de 2013 sempre foi desde o inicio com o foco nos primeiros socorros. Entre as pessoas que faziam parte desse grupo estava João Vítor Cardial, de 21 anos, massoterapeuta e estudante de fisioterapia. A iniciativa foi dos alunos do curso de medicina de uma faculdade particular da capital baiana, que se uniram 112


a

alunos

dos

cursos

de

psicologia,

fisioterapia,

enfermagem, odontologia e terapia ocupacional para discutir como foram as manifestações nas outras cidades e como seriam em Salvador. Só da faculdade de João Vítor eram cerca de 40 estudantes. Eles montaram estratégias para as ações nas manifestações e tiveram um dia de treinamento de primeiro socorros. Depois passaram a manter contato com outras faculdades, dando origem à “Brigada de Saúde” para atuar nas manifestações. Os grupos se encontraram no primeiro dia de manifestação, dia tranquilo que não houve represália militar e nem teve agressão por parte de manifestantes. Os socorristas não tiveram muito trabalho nesse dia e puderam organizar como seriam divididas as tarefas dali por diante. O aspirante a fisioterapeuta concorda que as pessoas arriscaram

seus

corpos

em

nome

das

causas,

principalmente, a partir do segundo dia de manifestação. Para João Vítor, ver as pessoas com máscaras, com óculos de natação, com vinagre com água, foi a prova de que as pessoas estavam preparadas para a guerra. João que estuda o corpo, as expressões corporais, conseguia identificar nas manifestações quem estava ali só por conta da 113


aglomeração e quem estava ali para o que desse e viesse, que enfrentaria a polícia para defender suas causas, se fosse preciso.

Em meio a gases e bombas os manifestantes resistiram à ação policial durante as manifestações Foto: Lúcio Távora | Agência A TARDE

João Vítor presenciou algumas cenas de violência policial, mas a que mais lhe chocou foi quando estava na região da Estação da Lapa e viu um homem sozinho entre 12 policiais, e os 12 lançaram spray de pimenta contra o homem. Foi nessa hora que o massoterapeuta sentiu que o seu próprio corpo também estava em risco. Os policiais 114


foram para cima com a cavalaria e soltaram os cães contra João e mais cinco colegas, nesse momento a única reação deles foi correr. Havia uma preocupação por parte dos socorristas e a ideia era que eles seriam os últimos a serem atacados porque, caso contrário, dificultaria o processo, pois, não teria quem cuidasse deles nem dos demais. Mas estava cada vez mais difícil ficar imune em meio a toda confusão. A Lapa tinha virado um campo de guerra, chegou um momento em que o grupo de socorristas não teve mais com atender os manifestantes que estavam ali. Eram muitas pessoas feridas e o material que eles tinham não davam conta de tudo. Por parte dos ativistas, João presenciou manifestantes atirando paralelepípedos na cabeça de policiais, durante os confrontos na Av. Joana Angélica. Mas como os policiais usavam capacetes o nível de trauma não foi o mesmo que seria se tivessem sem o equipamento. Quem também estava no meio da multidão, arriscando o seu corpo, era o jovem jornalista Alexandro Mota. Aos 23 anos, no dia 20 de junho de 2013, ele teve a responsabilidade de cobrir, pela primeira vez, um evento 115


que envolveu uma multidão. Alexandro não estava em um local privilegiado de visualização e como o repórter de texto não é visualmente identificado, já que não tem uma câmera e não há uma equipe ao seu redor, acaba tornandose, literalmente, mais um na multidão. Alexandro sentiu medo e temeu por sua segurança pessoal. Ao mesmo tempo em que ele estava em meio a multidão, era só ele seu bloquinho e um gravador. Pela primeira vez, o jornalista teve que falar para o gravador o que seriam as anotações porque se sentia exposto parando para anotar as informações. Usar o gravador era também uma tática do jornalista para tentar evitar ser tão facilmente confundido com um manifestante. Alexandro temia sofrer algum tipo de represália de policiais, que estavam com armas municiadas de balas de borracha, com gás lacrimogêneo ou gás de pimenta. A pauta de Alexandro era a polícia, os conflitos. Ele temia também sofrer agressão por parte dos manifestantes, por isso quando estava em algum lugar e avistava um grupo estilhaçando um ponto de ônibus ou fazendo saques em lojas, procurava tomar o máximo de cuidado. Mesmo assim Alexandro não pensou em recuar em nenhum 116


momento porque ele também estava ali em nome de uma causa. Ele se expôs em nome de uma causa fundamental para o jornalista: informar. Mas confessa que participaria enquanto manifestante porque ele acha que as pessoas reclamam muito do governo e pouco interagem com a condução da coisa pública, quase não mostra essa insatisfação a quem de direito. No fim do dia, o jornalista estava esgotado fisicamente, mas tudo que ele vivenciou e presenciou naquela tarde estava muito vivo. O seu corpo cheirava a manifestação - ele esteve a maior parte do tempo próximo das bombas de gás lacrimogêneo, e também foi surpreendido com os primeiros lançamentos do artefato, o cheiro de vinagre estava impregnado em suas roupas. O seu corpo doía, afinal ele tinha andado cerca de três quilômetros acompanhando a manifestação que se espalhou pelo centro da cidade. Ele teve dificuldade até para escrever o texto no mesmo dia, relato jornalístico que, de acordo com a recomendação do seu diretor de redação, não deveria conter adjetivos. Assim como João Vítor, na tarde e início da noite do dia 20 de junho, Alexandro tinha visto excessos de ambas 117


as partes nas manifestações, mas como jornalista precisava se ater aos fatos. Manifestações sempre acontecem em Salvador, mas Alexandro nunca tinha visto o emprego de força policial para conter como aconteceu ali, nada do que ele já tinha presenciado tinha sido tão amplo nem envolvido tantas pessoas, movidas por insatisfações múltiplas. Para João Vítor, manifestação também não era novidade. Aquela era sua terceira experiência com atos dessa natureza. Ele já foi do grêmio estudantil por três anos, participou de uma manifestação contra o Salvador Card, em 2006. “Quando se pensou em tirar os vales dos estudantes, a gente fez uma manifestação que foi no Costa Azul que teve a participação de várias escolas públicas e particulares”, disse. Ele integrou também uma marcha contra a intolerância religiosa. João ainda era da 8ª série quando participou de uma manifestação pela primeira vez. Ele lembra com bom humor que naquela época todos se uniram para defendê-lo quando foi atingido por um murro durante os protestos e considerou importante perceber que nesses movimentos a pessoa não está sozinha.

118


A diferença básica que o estudante observa entre as manifestações de que ele participou outrora e aquelas que aconteceram em junho foi a adesão de pessoas adultas e idosas. Enquanto na manifestação contra o Salvador Card tinham muitos estudantes e na manifestação religiosa era um tema específico de um grupo religioso, nas manifestações de junho de 2013 tinham pais com criança no colo, tinham idosos, pessoas de várias idades. “Essa manifestação tinha gente nova, gente velha, gente de várias idades. Isso pra mim foi uma das coisas mais marcantes. Outra coisa que observei é que também foi a mais agressiva”, afirmou. Alexandro concorda com João nesse ponto e, assim como o estudante, o jornalista observou que a agressividade e a pluralidade foram marcantes

nas

manifestações

de

junho

de

2013.

“Manifestações sempre acontecem em Salvador, mas nunca tinha visto o emprego de tanta força policial para conter isso. Nunca vi nada desse gênero, envolvendo tantas pessoas e principalmente envolvendo a classe média e pessoas tão jovens”, disse. Por um momento, uma corporação da polícia de choque tentou impedir o trabalho de Alexandro. Na 119


Avenida Joana Angélica, a polícia avançou afastando os manifestantes, quando uma senhora se feriu e foi levada para um posto de atendimento. O jornalista foi acompanhar e quando quis voltar para a Joana Angélica uma equipe da polícia que já estava montada na rua não o deixou passar para a zona de confronto. Mesmo ele se identificando como imprensa, não teve acesso ao trecho. A determinação era de que só poderia passar por algumas ruas próximas ao estádio Arena Fonte Nova quem tivesse ingresso para o jogo. Não era o caso de Alexandro, mas ele não queria acessar esse trecho, pelo contrário, já estava nele e queria retornar, mesmo assim os policiais não deixaram. Mas o jornalista, que conhece bem a cidade, conseguiu retornar por ruas que tinham atrás de onde ele estava e saiu à frente de onde estava a equipe da polícia. Não foi só Alexandro que quase foi impedido de fazer o seu trabalho. O mesmo aconteceu com o grupo de socorristas que João fazia parte. O grupo que prestava primeiros socorros foi padronizado e todos estavam de blusa branca com uma fita vermelha no braço, carregando cartazes com cruzes vermelhas, munidos do kit com o material necessário. Estava com luva, gaze, água 120


oxigenada, água com vinagre, máscara e João levou seus óculos de natação. O grupo usou borrifadores de jardim onde colocavam água e vinagre, mantendo-os na mochila. O atendimento inicial era passar o spray de água com vinagre no rosto das pessoas, uma vez que a maioria dos atendimentos era para manifestantes que inalavam gás lacrimogêneo ou que tinham sido atingidos por gás de pimenta. Mas o trabalho do grupo da “Brigada de Saúde” não foi fácil. No dia 22 de junho, o grupo sofreu represália, os socorristas foram os mais afetados devido ao trabalho que vinham desenvolvendo. As pessoas estavam resistindo aos ataques porque contavam com os integrantes do grupo de saúde para fazer o atendimento. Cientes disso, os policiais passaram a atacar os grupos de estudantes que prestavam os primeiros socorros. Não era difícil identificar os grupamentos, os policiais fiscalizavam as mochilas e a abordagem não era amistosa, já que confiscavam todo material e sem o kit a brigada não podia trabalhar. **** No dia 20 de junho, João atendeu quatro pessoas, mas dois atendimentos lhe chamaram a atenção. O primeiro foi 121


de uma menina que estava com um pedaço de vidro cravado no pulso. Enquanto os policiais atiravam a menina atendida por João tentou se proteger atrás de um microônibus, mas o tiro atingiu a vidraça do ônibus que caiu em cima dela e um dos cacos ficou cravado em seu pulso. A garota saiu correndo desesperada e neste momento encontrou João, na subida do Politeama. Nesta hora, os policiais fechavam todos os lados nas imediações do Orixás Center. Os manifestantes já estavam ficando encurralados quando uma senhora chamou João e disse que eles entrassem em sua casa. Na frente do prédio era um estabelecimento comercial e nos fundos era a casa da senhora que ofereceu ajuda. Eles ficaram ali escondidos até que a confusão diminuísse. João fez o primeiro atendimento à garota ferida e lhe orientou que fosse para o hospital. “Ela queria tirar o caco de vidro, mas eu falei não tire porque a gente não sabe o que furou aqui, vá para o hospital porque lá vão cuidar disso”, explicou. O segundo atendimento que o estudante se recorda foi a um manifestante que foi pisoteado no meio da confusão. O rapaz ainda conseguia andar, porém estava muito machucado.

Os

amigos

dele

122

estavam

chorando,


desesperados com a situação e foram pedir ajuda. Quando o aspirante a fisioterapeuta chegou, dois integrantes do grupo já estavam fazendo o atendimento. Os outros dois socorristas estavam fazendo as imobilizações dos braços do rapaz e João ficou para imobilizar a perna. Já era noite, o material deles já tinha terminado, então foi preciso improvisar. Eles amassaram os cartazes para fazer uma tala e orientaram que menino fosse para hospital, mas, surpreendentemente, mesmo depois de ter os membros imobilizados, o rapaz queria continuar lá, o que não aconteceu porque foi impedido pelos colegas e pelos socorristas que o convenceram de que aquilo seria uma loucura. João resume as manifestações de junho de 2013 como um exercício de cidadania. O massoterapeuta não entende o ato dele e dos demais que participaram da “Brigada de Saúde” como um ato de solidariedade. Para ele, trata-se de responsabilidade social.

“Eu levo muito a sério o meu

conceito de profissional de saúde, então eu acho que é responsabilidade social. Eu vou me formar pra que? Para passar um gelinho no seu joelho e dizer eu sou fisioterapeuta?” 123


Talvez tenha sido a mesma responsabilidade que fez com que uma conhecida de João que é médica abrisse a porta da garagem de sua casa, que fica localizada no bairro Caminho das Árvores para ajudar as pessoas que foram feridas no terceiro dia de manifestação, quando os grupos protestaram na região do Iguatemi. Para João, as manifestações trouxeram experiência para a vida, mas trouxeram também experiência para a profissão. As pessoas estavam dispostas a correr riscos e talvez tenha sido esta a origem do discurso de que a população nunca esteve tão engajada. Não porque a nação outrora fosse apática, mas pelo fato de as ações políticas serem limitadas. Marchas pacíficas, gritando palavras de ordem e dando a volta no centro da cidade, ações que, muitas vezes, não alcançavam resultados. Desta vez, a defesa foi pelo direito de se manifestar, de protestar e se isso significava enfrentar a polícia, eles enfrentaram. Havia uma insatisfação coletiva, a indignação tomava conta da população. Daí a ameaça a radicalidade dos atos. As manifestações que poderiam apenas ser mais uma em meio a tantas que já ocorreram no país, não se resumiram a isso

124


por que os atores envolvidos no processo fizeram a diferença. As manifestações junho de 2013 encontraram milhares de jovens assim como os estudantes Tássio Santos e Daniel Serrano que não deixaram que o movimento virasse apenas mais uma foto bonita para postar no Facebook. Assim como a estudante Janaína França e milhares de soteropolitanos que enfrentaram a violência dos protestos porque já estavam cansados da violência diária, da humilhação de esperar por duas horas ou mais em um ponto de ônibus e mais duas horas no engarrafamento. As manifestações contaram com dezenas de pessoas, como o massoterapeuta João Vítor Cardial e sua turma que têm consciência de sua responsabilidade social. Teve ainda a participação de centenas de cidadãos, como os jornalistas Alexandro Mota e Daniele Rodrigues e o fotojornalista Lúcio Távora que arriscaram seus corpos como profissionais, em nome do papel de informar, mas que ficaram felizes enquanto cidadãos com as conquistas alcançadas pelos manifestantes. As manifestações de junho contaram com a presença de milhares de baianos, como o advogado David Mendez e o cientista social Luís 125


Antonio Araújo que naquele momento acreditaram que, ainda que houvesse riscos imprevisíveis, valia a pena correr o riscos de uma intoxicação por gás, de uma surra de cassetete ou de tiros de borracha. Era a oportunidade de peitar a mesma polícia que mata na periferia enfrentando apenas as suas armas não letais.

126


PALAVRAS FINAIS Ao escrever sobre as manifestações de junho de 2013 foi possível constatar que as demandas, que não começaram com os 20 centavos e não terminaram com

a

revogação

do

aumento,

estimularam as pessoas a participar e se envolver mais com a vida política do país. São cidadãos de todas as idades que perceberam que não adianta não gostar de política, já que ela está vinculada à vida social e interfere diretamente em nossa vida, na vida dos nossos pais, dos nossos amigos, dos nossos filhos, dos nossos netos. Os primeiros resultados alcançados com os atos tiveram um caráter simbólico e funcionaram como uma motivação para a população seguir com os protestos. Os atos e relatos mostraram que os cidadãos que foram às ruas no mês de 127


junho estavam determinados a alcançar conquistas e para isso estavam dispostos a

correr

riscos.

Documentos

e

depoimentos revelaram que a violência sempre

permeou

e

permeia

as

manifestações populares e, dificilmente, deixará de se fazer presente nesse tipo de acontecimento. A violência pode ser percebida como uma forma de expressar o jogo de forças, a audácia e o exercício de afirmação, elementos característicos de movimentos sociais, logo, vai fazer parte de protestos. Os testemunhos revelaram que a insatisfação com o cenário sociopolítico atual

e

o

propiciaram

anseio a

por

mudanças

explosão

das

manifestações de junho de 2013 e, nesse contexto,

a

batalha

nas

ruas

foi

inevitável. Isso pode ser constatado quando David e Tássio dizem que não tem como ser pacífico ao ser tratado 128


como inimigo; ao Daniel dizer que acredita que a violência se manifesta como forma de demonstrar força; no discurso de Lúcio de que a cada ação violenta uma reação proporcional será gerada e no pensamento de Luís Antonio de que não há transformação sem violência. A violência nas manifestações de junho de 2013 em Salvador foi usada até mesmo como forma de missão 7. Ela se apresentou sob diversas formas, foi usada como obrigação tanto por policiais que, por um lado, tinham a função de conter os atos, quanto por manifestantes que, por outro lado, tinham a finalidade de resistir à repressão.

7

A violência como forma de missão é a que se apresenta como um modo de ser do herói, do defensor da pátria. Octávio Ianni, Capitalismo, violência e terrorismo (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004) p.184

129


As

manifestações

foram

um

fenômeno que, em algum momento, desafiou a compreensão do que foi, uma vez que pautou a agenda política da sociedade

e,

em

alguns

casos,

transformou em possibilidade mudanças sociais

e

políticas

que

pareciam

inalcançáveis. E, atualmente, desafia a compreensão do que ainda pode vir a ser, pois esses acontecimentos revelam um momento histórico em que o país busca por mudanças, em que as pessoas querem participar da vida política do Brasil, em que os cidadãos estão dispostos a se tornar atores sociais e vão utilizar

toda arma que tiver

conseguir isso.

130

para


131


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