enxerto para uma vida feliz
Copyright © Ana Chiara e Artur de Vargas Giorgi A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (lei 9.610/98).
Texto Ana Chiara Concepção e revisão Ana Chiara e Artur de Vargas Giorgi Imagens Reproduções fotográficas de trabalhos de autoria de Artur de Vargas Giorgi Projeto gráfico e diagramação Moema Mariani
Chi532 Chiara, Ana. Enxerto para uma vida feliz / Ana Chiara ; Artur de Vargas Giorgi. — 1. Ed. – Rio de Janeiro ; Florianópolis : Casa 12, 2012. 109p. ; 21x14,5cm. – ISBN 978-85-89077-06-4 (broch.) 1. Poesia brasileira. 2. Poesia visual brasileira. I. Giorgi, Artur de Vargas. II. Título. CDD B869.1 Bibliotecária Responsável: Amanda Araujo de Souza Carvalho CRB 7/6351
enxerto para uma vida feliz Ana Chiara (textos dos irrespir谩veis) Artur de Vargas Giorgi (imagens das garafunhas)
Rio de Janeiro/Florian贸polis dezembro de 2012
para Marina
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proposição para as garafunhas
a poética visual das garafunhas, de Artur de Vargas Giorgi, parte de um “sustenta, aí”, abertura para enfrentamento do furo, do oco, dos vazios/ pode ser o caminho de uma agulha que penetra e sai de restos de tecido, de algodão, de plástico-bolha, de materiais diversos, como diverso é o mundo, diversos são os corpos/ diversos e diferidos, neste modo são alinhavos, pequenas cicatrizes-memória/ garafunhas são também desenhos: corpos mínimos, minúcias que provocam, afetam, tocam o olho como cócegas de leve, carícia - sorriso irônico sustentando o medo, as dificuldades, as carências-querências/ traços, ranhuras em tabuinhas/ aqui e ali são frases samurais, miniescritas, grafadas à mão, sempre em minúsculas, nem títulos, nem comentários, são inscrições (em fuga...) desenhadas, poemas à parte, mas também poemas como parte/ se colagens, colam beijos de língua, como num flerte, mas, outras vezes, quando colam, grudam, prendem o sujeito numa poça/ quando estudos para sustentação de linha pensam uma arquitetura emotiva para o equilíbrio instável, para o que se pode romper a qualquer momento, fio de prumo de uma vida inteira desabável com um sopro/ experimentam linhas de força que podem aguentar o levíssimo de uma haste de flor, ou o pesadíssimo de toneladas dos carros empilhados/ como “enxerto para uma vida feliz”, garafunhas 7
suturam sem cicatrizar a ferida, basta prestar atenção nos laivos vermelho-sangue pressentidos como pele esfolada de algumas delas / garafunhas são cuidado1, princípio de delicadeza2.
Ana Chiara
NOTAS
1
Todorov diferencia os cuidados, como virtudes cotidianas, das ações heroicas quando estuda o comportamento das pessoas nos campos de concentração. In: Em face ao extremo. São Paulo: Papirus, 1995. 2 Barthes no verbete: “Sofro pelo outro”/ Compaixão/ Sofrerei portanto com o outro, mas sem me apoiar, sem me perder. A essa conduta, ao mesmo tempo muito afetiva e muito vigiada, muito amorosa e muito policiada, pode-se dar um nome: é a delicadeza: ela é como a forma sã (civilizada, artística) da compaixão. (Atê é a deusa da perdição, mas Platão fala da delicadeza de Atê: seu pé alado toca levemente). Dela o toque de Atê me interessa, a noção de “com o outro sem me apoiar, sem me perder”. In: Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. de Hortência dos Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, p. 49 . 8
proposição para os irrespiráveis
irrespiráveis, assim Ana Chiara se refere a estes textos, às vezes tão breves, mesmo, como um fôlego ligeiro demais, que não dá conta, e a força de querer se alongar, arejar, quem sabe abrir o próprio peito e deixar-se ir, deixar-se/ eles começam, aqui, pelo retorno, pela repetição, quer dizer, pela diferença/ penso no livro de performance crítica Ensaios de possessão (irrespiráveis)1, onde encontro a recorrência de certas imagens, certos significantes e fraseados, e essa projeção com que Ana Chiara aproxima a leitura e a escritura de algo muito pessoal, íntimo, entranhado, isto é, de algo ao mesmo tempo muito estranho, distante/ “As formas do irrespirável – palavras nascidas de um espasmo do corpo, vômito curto – têm a duração necessária para o organismo liberar-se daquilo que já não é mais dele, não é mais ele mesmo. Essas formas têm o fôlego curto dos asmáticos, dos doentes do pulmão. [...] São restos, detritos: tufos de cabelo, lascas de unhas, cacos de dentes, baba, saliva, fluidos, materiais excretados”2/ crítica-criação, imagem-texto, o que está em jogo passa pela justaposição que alinhava silêncios, vazios, caminhos, afetos, caprichos, espaçamentos incontornáveis (e por isso creio não se tratar de nenhum tipo de ilustração, de metáfora etc.) / há apenas algo que dura no tempo (pouco? muito?), entregue ao movimento entre um espaço e outro, um texto e outro, um corpo e outro/ aqui, os irrespiráveis 9
de Ana Chiara afetam as imagens, assim como – sendo imagens – se deixam afetar/ irrespiráveis, abertos, eles anunciam presenças – ela, ele, patas, asas, rabos, manhãs, estações, um guri, uma senhora, um cacto, um urso, uma mosca, um bêbado – cambaleantes, e se doam eles mesmos à instabilidade: buscam o abrigo do mundo; perseguem o vento, o amor, a loucura, o desejo.
Artur de Vargas Giorgi
NOTAS 1
CHIARA, Ana Cristina de Rezende. Ensaios de possessão (irrespiráveis). Rio de Janeiro: Caetés, 2006. 2 No ensaio que abre o livro, “As formas do irrespirável ou na trilha da lhama sorridente...”, p. 16.
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enxerto para uma vida feliz 11
73. o alagado 12
alagado Inaugura um novo impossível, pé deslizando no barro morno e mole do chão, alguns gravetos entre dedos, avista espaço vazio à vista, de onde sai, aonde vai, aluguel barato, buraco aberto, verdade ou mentira, na folha branca, alguém desenha. Báscula, pálpebra oscilante, longe, muito longe, não pode ver nada além de seu próprio nariz.
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baile III 14
carta cardíaca A vida aguda e uma saudade cardíaca do pai. As palavras colavam-se umas às outras, como frames numa edição. O esforço em apagar o nome da coisa a desgasta enormemente. Mente. O apego ao nome da coisa a desgasta enormemente. Acorda, afinal, sem janelas ou portas para abrir, presa dentro de sua própria ficção.
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a mรกquina vista por dentro 16
carta cardíaca 2 Presa dentro da máquina da ficção, sem poder sustentar visões internas, gozo petrificado, fratura óssea. Abscesso que força de dentro para fora, fisga, e não arrebenta a pele. Gostaria de flutuar, no ar rarefeito, se nadasse no éter, se ficasse levíssima, se soltasse liames, roldanas, gambiarras, na imensidão de um deserto, de uma praia, de um descampado, de um vazio, sem cordas, acordasse: coragem, coração.
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estudo para sustentação de linha
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carta cardíaca 3 As explosões continuadas liberam do sol a energia erótica reprimida. Uma ferida plantou-se no meio da face direita: florcicatriz. Aguarda que passe o efeito. Nada poderá acontecer na pasmaceira a não ser que consiga desligar a tomada ardente da máquina de energia solar. Uma estação, um passo interrompido, um poema, nada acontecendo. De repente se lembra da voz invadindo o espaço interior. Sustenta aí. Tenta levantar-se de novo sobre as patas da atividade caseira.
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estudo para sustentação de linha 20
carta cardíaca 4 Pergunta se o corpo é tédio ou melancolia. Tropical melancolia ou tédio tropical? Se preguiça ou moleza.Vinda da casa de vidro no planalto, onde repousara dos dias pesados e o azul a cortara em duas metades assimétricas. Ainda com a flor cicatriz fagulhando na bochecha direita, se uma agulha atravessasse a sua carne, se a carne fosse, de repente, paina, carne de algodão. Perdida em dúvidas, com as crias presas cada uma numa das mamas, sem saber mesmo aonde tudo irá dar, caminha sem endereço certo, em busca de comida e fome.
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o amador 6
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tanguedias Não pronuncia a palavra de modo correto. Entre o balbucio e o uivo, eram restos noturnos que se interpunham entre ela e o dia. A criança loura repetia ao seu lado: “Nossos filhos não dormem, vão ficar sem comida. Eles são horríveis” e juntava as mãozinhas atávicas. Ria sentindo-se costurada pelo longo fio de tantas encenações. As pernadas de um tango evoluíam com tropeços. Talvez os dançarinos tivessem de aprender todos os dias a coreografia sem saber o que aquilo queria dizer.
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o amador 5
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tanguedias 2 Acorda cansada, deita com medo de dormir, a cabeça dói pela manhã e a ferida (aparentemente cicatrizada) coça. Acorda coçando a ferida. Adora, coçando a ferida... Mulheres são cansativas, queria o pragmatismo do outro.
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77. as graรงas que recebo
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a carta certa Emergiu do sono, madrugada fria, pios de passarinho. Uma cigana de olhos amendoados tirara a carta certa num baralho novo. Bebê com alta da neonatal, a vida envia um recado. Deseja caminhar pondo uma pata atrás da outra e que bolhas não estourem, nem dormências sufoquem o peito. Espera pela nova fantasia, sem penduricalhos. Cúmplice precário do acaso, o sopro novo da novidade a atingirá suave com a alegria de se esticar para sentir o ar da estação entrando pelas fuças, e, trêmula de prazer, poderá então ler a carta remetida pelo outro. O que virá. A novidade de asa aberta.
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o que se sustenta na zona de arrebentação, amor
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flor de antipatia Replantou a orquídea no vaso. Cultiva apenas uns poucos nomes junto às raízes. Usa o crivo mais agudo do cravo espetado na pata. O sol desfez a sombra, então puxou o vaso para o umbral, no limiar, no limite do que se aguenta. Amor, flor antipática.
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primeiro ensaio para Keith Jarrett 30
rebento Não tinha sido um conto de fadas, sendo mais abuso, roubo sem registro de ocorrência, carta-bomba, tapa na cara. Fantasma que bate e volta, zona de arrebentação, rebento gorado, veredicto anunciado vinte vezes ao dia, pássaro voando em torno da cabeça, amor.
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33(d). quatro ensaios para o irrespirรกvel 32
amigos desde sempre Batiam com a cabeça em ávidas perguntas sem resposta. Mergulhos sem boias, a respiração presa no fundo, só voltavam à tona quando as mães chamavam. Viam o mundo da perspectiva da pulga, de leve, e sugando o sangue da película.
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33(b). quatro coisas que deus quis 34
as estações Sol fraco, fraquinho, primavera tudo ilumina, com anúncio de verão, o incontornável da cidade. Aproveita para respirar. Vive como pode, vestida de outono.
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caracol
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tão só, tão só, tao A vida tamanha, esse assombro, quer pegar nas mãos, revirá-la como o pequeno globo terrestre em cima da escrivaninha do pai. Segue no vazio, na mudez, rainha grávida de surpresas, riscos e perdas. A vida, tão só. A vida, tal como é. Vida só, tao.
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autobiografia 38
autobiografia Cola o ouvido. Ouve o som de um búzio, é o mar, é o mar, é o mar aberto...
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35. tao
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no presente Deixou uma paisagem atrás de si. Cacos, cacofonias, restos, a dura pedra. Alguém cuidara para que tudo se tornasse pequeno agora. Não era para ser tão bonito assim, mas era.
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67. cabeรงa oca
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biografia Um grito, um nome aceso, no sem limite da espera. Um grito e cai no chão. Fica des-mon-ta-do. O grito e tudo aquilo vem em ondas até o gogó, o gorgomilo, goela, romã e arde, tarda. Parado na garganta, o grito. Fica ali, como um risco, um acidente de percurso. Esta, uma biografia por trás da cena.
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crivo 44
como fazem os cavalos-marinhos Matou o poema, bem morto, crivado por um Manet, por excesso de zelo, por cuidado, por ciĂşme. O cheiro que levantou no ar foi de flor, foi de festa, foi de beijo, foi de beija-flor, forma-flor. Sonzinho chiado do ar saindo no Ăşltimo suspiro poĂŠtico, saudades, benzinho, disse: matei sem querer, sem preparo, no ato, sem maldade. Foi por amor, perdoa.
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11. carĂŞncia
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extemporânea Ele disse vai passar. Ele disse, ele disse, ele disse. E soprava forte. Ela segurava pelas bordas onde doía. Prendia a respiração, engolia o choro, o nhém, nhém, nhém arrastado de toda a vida.
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big bang
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melodia do pensamento Dentro do corpo as coisas entrechocam-se, roçam-se vivas, viram outras coisas. São fetos saindo um atrás do outro pelo furo fértil. Conversa de bois no meio do mato, raspa das peles rugosas e mugidos serenos, ar do campo, vida aberta ao que vem...
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o homem idĂŞntico 50
parto Cria imagens fictícias para um rosto. São restos, vestígios. Sem bater à porta daquele sorriso, dá as costas com estupefação ao passado. A linha do umbigo foi cortada pela mosca varejeira, parto doído e seco. Voeja no vazio.
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nu e deserto
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pressentimento Espera um presente de olhos cerrados e ao abrir a janela estava sol. Apronta-se para o objeto inexistente, coisa viva pressentida? Aquilo que vem pela mão de outro, de alguém distante, sem um rosto, sem mãos, nem braços, um presente sem voz, presença incorpórea, uma caixa absurda viajando no ar? Aceitação incondicional, boca aberta gulosa de vida? Espera o que virá por ondas.
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nu em queda
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pathos em patas ... o pathos em patas livres transmudado, asas-patas no ar, músicas doces, em letras mortas a dor de tanto mirar-se transmigrada em alegria aérea, ouvisse novas músicas, miragens, e os atores da cena dançassem um novo balé. E mãos bailarinas sem margem, novos desenhos, linhas soltas, sem contornos, sem tintas, sem cores, holografia, linhas loucas, louca vida e ao futuro brindassem, um cão sem coleira corre, desligado de seu guia, ele agora, pura-poesia.
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71. o caminho leve na รกrea alagada
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brigando com as feras Por que te assustas, criança? Se o coração não pode mais e a cabeça dói inflamada de planos, joga tudo isso no rio e dá adeus ao infortúnio. Sopra onde dói que o sopro tudo cura. Fica no colinho da preguiça. Até o sol pede um gole de amor todas as manhãs, por que não?
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abandonar-se com cuidado
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onde tudo se perde... Come as raízes do passado, onde tudo se perde e passa. Pede proteção aos deuses vegetais, às árvores grandes, às flores mínimas, para não pôr o pé onde a pegada ainda é mole. Estuda com o poeta a geometria das árvores enquanto pássaros piam. O último trem vai partir para a estação do longe, muito longe. Alguém conta histórias pra boi dormir.
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21. quando meu corpo é um rio que não pode mais...
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quando meu corpo... Quieta. Abre bem a boca para engordar com as palavras que vêm de fora. Coloca a palavra única bem redondinha debaixo da língua e espera os efeitos da dormência. Olhos cerrados, tudo bambeia, e esvoaçam em torno o projeto amar, o concluso silêncio.
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19. quando meu corpo pode ser uma pedra que levita
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patas sagitรกrias Crescem patas novas onde antes havia mรฃos, membros de inseto, cactus espetados. Sopra as nuvens densas que sobre o caroรงo do olho impediam de ver melhor qual a diferenรงa entre luz acesa e luz apagada, entre a janela aberta e a porta fechada.
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cavalo alado
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ganhar asas Nuvem da neblina, frio de meias de lã, carvão da cidade no branco da manhã encoberta, esforço para ganhar asas, para sair dia afora, vida sem regra, dia sem agenda, mundo vasto, coração à larga, a galope, até a lembrança sumir, perder a graça, esfumar-se na espuma.
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rente 66
murmurejo A ironia não lhe interessa. Algo está selado. Talvez o peso dos fatos, talvez a leveza da mentira. Parada rente diante do relicário de uma boca entreaberta. Quase pode sentir escorrer a baba batendo e voltando na pele. Prefere não entrar ali. Ali não!
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s達o peixes
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prosa do mundo No alto de uma estante, um caderno. Dentro do caderno, furos boiavam entre linhas. Nunca conseguiria ler a prosa do mundo. A vida seguiria sendo um enigma. Quem escorregava mais, perguntava o guri, a mulher ou os peixes?
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estado de 창nimo 4 70
persistência da vontade Se tivesse tempo livre, faria da vida um origami. Coração diluído num copo de antiácido, devolveria a flor, a loucura, a máscara.
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estado de 창nimo 1
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reparai nesta ferida Não sabe se o que sente é tristeza ou dor de ouvido. Se blues. Um prego comprido prendeu sua língua à mesa para não dizer mais bobagens. Ouviu tum tum tum dolorido do ferro enfiando na madeira. A vida, esse vazio imenso para recomeçar do zero.
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17. quando meu corpo pode ficar para sempre, atĂŠ o fim da vida, jogado no chĂŁo 74
algaravia Pois que fique só o silêncio, e do silêncio, o desenho. E do desenho, o desejo. E nada mais importa. O teatro do nem um nem outro cerra as cortinas. Ninguém mais erra, erra a mais, e o verbo se move discreto na praça, onde um bêbado desaba sobre um cão. Onde um cão sustenta na boca a flor, essa palavra difícil, a palavra mãe ou ama, mar ou merda, palavra balbucio, rodeada de silêncio. Flormiosótis.
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23. o amor fรกcil
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difícil Ar se move por baixo, vestindo folhas como orixá das matas. Toma distância do coração da fera. Não diz mais palavra, nem brinca com saco de gatos, ainda guardava arranhões de anzóis na pele. Alguém se confunde na moita com a insustentável leveza de um não dito assim como quem cospe num prato. As coisas findas não ficarão.
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sem tĂtulo
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coração da fera... Pode ouvir a respiração da fera. Escondida numa árvore, sobre um galho? O ouvido dói. Deita o corpo no solo, peito contra peito, coração com coração da terra, respira. Vai-se tornando respiração solta. A fera respira forte, ela respira fraco. Dores do masoquismo, expectativa amorosa, tudo vai se colando à umidade da terra. Confusa escuridão. Ela, um pasto único.
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5. o maior presente da vida, meu bem
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amor devaneio da vontade Branco sobre branco. Amor devaneio da vontade. Estado de ânimo por um triz. Uma mulher encoberta, corpo desviado para o azul, perseguiria os ladrões: furo no lugar do coração, uma flor suculenta plantada num bowl. Vinho quente, os sentimentos triturados na mó da paixão - são pó, polvilho, pólen, tudo ou nada, nada sobre nada, vida quieta, poeira na estrada.
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9. carinho
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os ossos do amor Não mastigou aquele osso enorme, escondeu pra lamber depois. Amor, osso do mundo. Cerne duro de roer. Guardou tanto que esqueceu onde. Perdeu. Vingança remota das coisas em volta.
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7. as coisas do mundo, lembranรงa 84
amor de raiz O Cisne no estirão do voo à superfície do lago faz espetáculo de graça. Só ruído das asas e do motor aéreo. No fio prumo do nativo e do exótico, a língua da paisagem. Orquídeas, flores carnívoras, plantas alucinógenas, cosmococas. Amor de raiz solta sopra não finca. No parque, coração alheio, a vida, nem rústica, nem tecnológica, força o ar nos pulmões.
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como fazem os cavalos-marinhos
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leveza Um pouco solta, um pouco à solta. Às voltas, no parque, pelo contorno, pelas bordas, pela orla. No meio do parque, o espinho; por trás, a moita de espinheiro. Haicai discreto: o urso fareja o caracol. O caracol embrulha-se. O urso des-dobras do músculo. Ela rola cada vez mais para longe de si, pés no ar.
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estudo para sustentação de linha
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mastiga a água Água fria no rosto quente. Mastiga a água. Mastiga e sopra. Sopra e mastiga água. Limpa o vento grosso do pulmão, o peito não chia mais. Pergunta como se costura um sentimento? Os urubus no telhado, no limite do que se aguenta. A vida só impressão. E um fio prumo para manter essa coisa em pé.
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estudo para sustentação de linha: voz
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drama dos objetos Não faz drama. Passeia nos recantos, bergamota cítrico exótico para arribar sentimentos. Manteve a calma quando o remédio amargou, o mundo bola perdida no meio da rua, chão flutuando, coisas escorregavam das mãos, só um passarinho acompanhou, com um sambinha de uma nota só, seu dia dramático. A nem tudo que for convidada irá. A voz sustenta delicada a festa do amanhã.
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estudo para sustentação de linha 92
lugares do amor Álbum oculto pela folha, ritmo de uma folha-página, de algo que se folheia, ou folha vegetal desdobrada levada no chão pelo vento, tudo se vê pela metade, tudo rima, tudo ímpar, tudo surpresa na calma do cenário. Na imagem por trás, lugares do amor vazados, “banalidades arejadas”, rendas, aleatórios de nadas, acidentes de percursos, caminhos tortos. Ela não está rica, empobreceu a miserável.
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mimetismo
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nona esquina É Beethoven, criança. Matéria delicada. Isso que se move, coleia, se arrasta, o que se busca, se procura, se agacha, meio sombra, meio luz, meio cachaça, às folhas tantas de um livro que se rasgou, foi rasgado. São as coisas semoventes no peito em brasa, um apelo da vida que se come pelas beiradas. Assim meio bolero, como um grito abafado numa nona esquina, num tempo passado.
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flerte
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sob folhas Sobressalta a ternura. O jardim refloriu durante o sono espichado. A vida an么nima chamava para o dia, poderia vencer as horas. Um n煤mero infinito de poemas, escondidos embaixo de folhas, obrigavam a reescrever todo dia um novo final para aquilo que nem tinha nome. Talvez pudesse ser apenas comer a vida sem pressa.
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palavra 1
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sob folhas 2 As folhas verdes beberam a chuva da noite. Ela se escondera sob a moita das palavras brancas, sereno, serena, serenata. Tirou, aos poucos, o piercing do coração, onde acumulava mágoa sobre mágoa, escoimou a mole gordura. Sangue perdido, desimpedido da falsa joia, o músculo bate aéreo.
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estudo para sustentação de linha
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fantasmas Cavalo puxando o desejo para trás. Enquadra aquela foto. Encara o fato absoluto, o sentido do fio que mantém a coluna sentada sem que desmonte a boneca inflável. Segura o fio que a puxa, a reza, os quarenta e nove mantras de amor à vida, a poesia das garafunhas, os enxertos para uma vida feliz. Rosa mosqueta na face, amor fraco e frouxo na despedida.
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homem-pรกssaro
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pode ser Talvez tivesse chegado o inverno de uma antiga lembrança. Talvez viesse socorrĂŞ-la uma geometria nova, canteiro verde, fruto maduro e proibido, a ponta da lĂngua vermelha sustentando o momento oportuno, corria rumor Ă boca pequena, e Ela.
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estudo para sustentação de linha
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sutura Umas voltas em volta, e tudo se abre assim com os furos na pele. A menina nos olhos, borboleta suave na barriga, passo da dança equilibrando os quadris nas pedras soltas. Os passos, as passagens, leve bater de asas, toc toc do salto no soalho. Se o véu se sustenta sem furos na pele? Das solturas, da pele caindo, das dobras, desdobras. Se aquilo volta a incomodar, quando? Dormências no corpo todo, câimbras, o irmão Caim, o irmão não, dores fraquinhas, piados de pássaro, agulhadas das tatuagens a serem refeitas, outras apagadas. Enervações do rosto, tudo agudíssimo e a foto no celular, como recordação para o nunca. Pergunta?
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estudo para sustentação de linha 106
dolls Ela cultivava plantas venenosas e hábitos estranhos: enquanto desejava apenas que o amor fosse devoto, furasse os olhos com uma agulha finíssima e pontiaguda, costurasse as pálpebras. Danação lenta por necessidade. Lia nas cartas da Ilha o desenhodesígnio de uma Ipanema sem sol, da vida como literatura, do trabalho da citação, a boneca de um livro jamais escrito, enquanto anotava as violências sutis e invisíveis dos amores contrariados. A cabeça latejava do lado direito fantasia atada por uma corda vermelha à fantasia do outro. Aquilo tudo parecia uma ficção de um coração alheio.
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estudo para sustentação de linha
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viver bem Caminha pela Auroreal até a rua do Pequeno Príncipe. Vinha de derivas, vozes, reversos. Sacudiu o lodo dos ohs! E depois de tanto não ainda permanece o lirismo das coisas. Segue a borboleta, o estômago pensando em peixes, uvas verdes, luvas de pelica, ovos ocos. Agora, só seguir reto toda a vida.
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Este livro foi impresso na cidade do Rio de Janeiro, em janeiro de 2013, na Sir Speedy - grรกfica digital