Inventando Laura

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tr A coN se D-TVIN-ENANOLAURA Umainvestigaçãosobre aspáginasembrancodeumahistória L A U R A 2 0 2 2 m e m ó r i a s

tr A coN se Inventando Laura é um livro de memórias ficcional.

Esta breve ficção é uma amostra do nosso trabalho na escrita e no design gráfico. Nele, apresentamos uma das muitas possibilidades de construção de narravas: a mistura de trechos de um diário escrito pela personagem para sua filha e depoimentos de seu pai. Essa mistura de vozes no formato memórias foi a estrutura escolhida para contar a história da infância de Laura. O projeto gráfico foi pensado no sendo de acomodar, não apenas as memórias, mas também as lacunas que nela existem. Cada projeto contar-se é único e exclusivo. Somos parceiros, nós da contar-se e você, na elaboração da história e na produção do livro. Isso garante que ele saia da maneira como você imagina e quer contar-se. contarse.com.br

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Umainvestigaçãosobreaspáginasembrancodeumahistória. Abuscaporpovoá-lacomaquiloquehabitaotempoeo expandeparaalémdacronologia.Umtempoincerto,tecidopor umaoutraqualidadedememórias.Aquelasqueexistempara alémdosfatos. 05

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07 | Oconvite.....09 | Trêsemuma-Ofiodotempo.....10 | Oencontro.....13 | Abarrigadomundo.....15 | Achegada.....16 | Afilhadafilha.....17 | Afamíliaencantada.....18 | Osilêncio.....20 | Oroubo.....22 | Onovocontinente.....24 | Osentido.....25 | Nonno.....25 | Irina.....26 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

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/ oconvite 09

As primeiras lembranças de Laura começam com sua chegada ao Brasil aos cinco anos de idade. O ano era 1972 e a cidade de São Paulo recebia-a cinzenta e chuvosa. A sensação que a chuva fina lhe provocara parece jusficar a aversão que até hoje Laura sente por “dias úmidos”. Isso ela nos conta em nosso primeiro encontro, numa tarde também chuvosa, em um simpáco café na zona Oeste de São Paulo. Nascida na cidade de Roma, em 1967, Laura e seu pai, Maeo, desembarcam, no início da década de setenta, em um Brasil marcado por uma sucessão de governos militares e pela compressão violenta da ditadura. O momento não era dos melhores, mas permanecer na Itália não era uma opção. Chiara, mãe de Laura, havia morrido dois meses depois da filha completar quatro anos de idade, o que provavelmente fez com que as lembranças dos primeiros anos de vida da menina na cidade italiana tenham ficado fora de sua bagagem, recusando-se a cruzar o oceano com ela. Trinta e cinco anos depois daquele dia chuvoso e cinzento, prestes a completar quarenta anos e grávida de Irina, sua primeira filha, Laura senu a necessidade de revisitar sua infância. Por isso, nos procurou. E o convite para escrever sobre aquilo de que não se lembra de sua história foi rapidamente aceito. Maeo juntou-se, amorosamente, a nós nessa jornada. Juntos, começamos a criar uma letra para a música da infância de Laura.

“Eu ia dizer que não sei por onde começar, mas, pensando bem, a questão é justamente essa. Começo, meio e fim. Passado, presente e futuro. Essa coisa linear que sempre me afligiu, o tempo cronológico, as sequências de eventos que se autoexplicam e que só assim parecem ganhar sendo. O tempo sempre foi o grande tema da minha vida, esse “tambor de todos os ritmos”. Agora, por exemplo, eu estou aqui, ao mesmo tempo que prestes a cruzar a ponte em direção ao meu passado, à minha infância e com um farol maravilhoso dentro da minha barriga iluminando e apontando o meu futuro. E nessa confluência em que eu estou, vou levando quem eu sou para encontrar quem eu fui a pedido de quem eu ainda vou ser. A gravidez me colocou nesse lugar, nessa confluência, e hoje me sinto mãe e filha ao mesmo tempo, a mãe que também está sendo gestada e a filha que perdeu a mãe muito cedo e de quem mal se lembra. Por isso, me deu vontade de contar um pouco dessa história para você, filha. Mas, desde que eu decidi escrever sobre a minha infância, eu ficava o tempo todo me perguntando “escrever o que e como” se as minhas lembranças são tão poucas e tão peculiares. Sempre me intrigou essa relação entre o que a gente viveu e a memória do que se viveu. O que insiste e o que se recusa a ficar gravado em nós, o céu aberto e a neblina, entende? O García Márquez dizia que a

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vida de uma pessoa não é aquilo que lhe acontece e, sim, aquilo que ela recorda e a maneira como recorda. É por isso que eu estou aqui agora, porque preciso resgatar, reunir, dar forma e, principalmente, legimar as minhas memórias. Preciso criar um espaço para elas, porque estão soltas, embaralhadas dentro de mim e eu não quero mais essa bagunça aqui dentro com você. Sempre duvidei um pouco das minhas lembranças, sempre me perguntando se eram reais ou inventadas, mas no fundo, bem lá no fundo, eu sempre soube. Eu não me lembro da minha mãe. Olha que doído, filha, eu te contar que não me lembro da sua avó. Não me lembro do seu rosto, não me lembro dela brincando comigo ou me pondo para dormir e me contando histórias, apesar de saber que ela fazia tudo isso. A maioria das lembranças que tenho dela, na verdade, não são minhas, nunca foram, me chegaram por fotos, objetos e alguns rolos de super 8 com cenas da nossa família que sempre me pareceram filmes de uma outra vida. E as histórias. As histórias que meu pai e outras pessoas da família me contavam. Tudo vinha de fora, dos outros, nada parecia ter correspondência com a minha vida, com o que eu me lembrava e como me lembrava. Eu nha 4 anos quando a minha mãe morreu e a sensação que eu tenho é que as minhas lembranças ficaram guardadas em vários lugares, não só na minha cabeça, na minha memória. Uma criança tão pequena assim deve senr e perceber o mundo de outra maneira, deve absorver as coisas de um outro modo, por outras vias, entende? O que eu quero dizer é que parece que só os meus sendos se lembram daquela época. Às vezes sinto cheiros que eu sei que são memórias minhas com ela. Eu sei que são. Talvez o cheiro do perfume que ela usava, do xampu, do creme. E outros cheiros também. Eles simplesmente me chegam, voltam, e é sempre muito bom. A memória mais viva e clara que eu tenho da época em que a gente morava em Roma, a única na 11

“...nessaconfluênciaemqueestou,euvou levandoquemeusouparaencontrarquemeu fuiapedidodequemeuaindavouser...”

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verdade, é de um passeio com a minha mãe. A gente caminhava na rua, fazia sol e eu estava com meu guarda chuva colorido, que eu adorava. Lembro de estar muito feliz. Eu saltava de mãos dadas com ela, o céu estava azul sem nenhuma nuvem e a saia florida do vesdo dela, ou bata, não me lembro, nha uma franja que balançava conforme ela caminhava e parecia saltar junto comigo. A sensação que eu nha era de sermos do mesmo tamanho, não sei se eu crescia ou se ela diminuía à medida que caminhávamos. Eu estava com um sapanho roxo, a mão da minha mãe era muito macia, parecia uma almofada e o meu guarda chuva fazia uma sombra colorida, quase um prisma em cima de mim. Meu pai, seu avô, conta que eu realmente gostava muito desse guarda chuva e que depois que minha mãe morreu não me desgrudei dele. Conta que eu dormia com ele aberto sobre a cama e me deitava embaixo como se fosse uma pequena cabana. Disso eu não me lembro, mas lembro de me senr protegida perto dele. Além dessa coisa com os cheiros, tem o meu corpo, filha, esse corpo que carrega você, essa nave mãe. Ele também se lembra do que eu não consigo me lembrar. Eu tenho o hábito de, de vez em quando, sobretudo quando eu não estou muito bem, levantar o braço direito para o alto. Parece apenas um gesto, um movimento, quase um espreguiçar, mas eu sei que é uma memória sica do corpo da Laura menina, talvez de quando eu brincava com minha mãe ou pedia colo, não sei. Tenho muitas dessas memórias que ficaram registradas no meu corpo, muitos cheiros que vira e mexe me voltam, sons de sininhos tocando, feixes de luz, esse po de coisa. Parece que só os meus sendos se lembram daquela época. E todos eles estão aguçadíssimos agora por causa de você.”

“Quando descobrimos que Chiara estava grávida, ela gritava e pulava de alegria. De repente estávamos os dois dançando feito loucos pela sala do consultório médico, ela rindo e chorando ao mesmo tempo e eu gritando “cáspita, diventeró papá! diventeró papá”. O doutor Ferre, que se tornou nosso amigo, um sujeito realmente excepcional e que esteve conosco o tempo todo até Laura nascer, saiu de trás da mesa onde estava sentado e começou a dançar conosco. Foi muito bonito e muito diverdo também. Nós estudávamos na mesma universidade, a Universidade de Roma, La Sapienza, e nos conhecemos no úlmo ano do curso de Filosofia. Eu era um jovem de 20 anos, muito entusiasmado e imaturo, só pensava em música, em fazer e tocar música. Chiara já era uma mulher, apesar dos seus 19 anos. Ela era tão bonita, com uma personalidade muito forte, uma jovem avista que sabia exatamente o que queria: “una società più giusta per tu soprauto per le donne”. Chiara nha fome de vida. Queria saber de tudo, lia tudo o que podia, discua sobre tudo, conhecia todo mundo, estava em todos os lugares, militava, ajudava todo mundo, brigava muito, chorava muito, ria muito, e queria muito mudar o mundo. Vínhamos de mundos diferentes, ela filha de operários, eu filho de um advogado conhecido e de uma dona de casa. Foram tempos muito intensos, queríamos transformar o mundo e nos livrar do fantasma da guerra que assombrava a geração dos nossos pais, o que era muito pesado para nós também. Nos conhecemos em Florença, no final de 1966, na inundação que arrasou a cidade. Éramos “gli angeli del fango”, os anjos da lama. Muitos estudantes foram para lá como voluntários ajudar a salvar os livros, as obras de arte, ajudar no que fosse preciso. A cidade ficou coberta de lama,

2 / Oencontro 13

foi muito assustador, muito triste. Estávamos na Biblioteca Nazionale e éramos muitos estudantes, muitos mesmo. E, de repente, numa das correntes humanas que se formaram e que iam rando os livros da lama e passando de mão em mão para serem salvos, conheci Chiara. Nós também estávamos cobertos de lama e no movimento de vai e vem acabei me desequilibrando, escorregando e caindo em cima dela. É uma lembrança muito bonita, me emociona. Frequentávamos o mesmo curso, mas não éramos amigos nem próximos. Foi ali, em Florença, que tudo começou. Não teve nada a ver com “questa stronzata da amore a prima vista”, mas alguma coisa aconteceu ali. Logo depois começamos a namorar e no ano seguinte Laura chegou em nossas vidas. Foi tudo muito rápido. E Chiara era só energia, força e alegria com Laura crescendo dentro dela. Elas foram a grande revolução da minha vida.”

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3 / Abarrigadomundo 15

“Ouvir o seu coração batendo forte dentro de mim foi a coisa mais transformadora da minha vida. Até ouvir o primeiro tumtum, ainda não era você, Irina. Você, a gravidez, esse novo corpo, tudo era uma imensa e confusa abstração. Mas ali, naquele momento, deitada na maca do consultório, o tempo parou, tudo parou, e de repente no mundo só exisa aquele som, aquela pulsação aceleradíssima, aquela potência de vida. Parecia que eu estava dentro da barriga do mundo e o som primordial da vida pulsava dentro de mim. Você era um coração, um outro coração batendo dentro de mim e por um momento eu acho que o meu quase conseguiu alcançar o seu para depois quase parar”

4 / Achegada 16

“Laura nasceu no outono de 1967. Junto com ela nasceram também um papá e uma mama. Éramos tão jovens. Meus pais nos ajudaram financeiramente nos primeiros meses, o que permiu que eu vesse tempo para compor e procurar trabalho, e Chiara dividisse seu tempo entre cuidar de Laura e seguir na militância. Mas eu estava preocupado com ela porque apesar de não fazer mais parte do movimento estudanl, ela connuava frequentando algumas reuniões. E a coisa toda parecia estar tomando um rumo diferente, se desarculando, e eram cada vez mais frequentes os embates violentos. Quando ela saía, eu ficava com Laura em casa, mas sempre muito preocupado. Até que uns meses depois, Laura devia ter uns 7, 8 meses, houve um confronto bastante violento entre estudantes e policiais na Villa Borghese, e Chiara decidiu abandonar, com toda a convicção, o barco. Passou a se dedicar ao curso de alfabezação de adultos e a escrever histórias para Laura, que depois se transformaram em três livros publicados. Elas conversavam por horas. Chiara contava seus sonhos, pedia conselhos, falava das nocias, contava histórias e Laura parecia entender, ouvia com muita atenção, olhos nos olhos, e às vezes também falava, respondia, opinava, tudo ao modo dela, é claro. Era impressionante a conexão entre elas, era bonito de se ver. E quando eu tocava para ela acontecia o contrário, Laura desviava os olhos de mim e do violão e procurava o que esvesse mais longe para fixar o olhar e sumir. Eu acho que ela sena a música tanto quanto, de algum modo, entendia o que Chiara dizia.”

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“Como eu vou ser mãe se eu não me lembro da minha mãe? Eu queria tanto conversar com ela, fazer mil perguntas, deitar no seu colo e contar que a neta está chegando. Queria que ela esvesse comigo agora e quando Irina chegar. Queria que ela contasse para minha filha as histórias que ela escreveu para mim e que escrevesse outras para ela. Queria uma máquina do tempo, um portal. Queria contar como foi crescer sem ela, viver com essa ausência e como essa ausência se tornou a presença dela, possível. Queria encontrar dentro de mim a impetuosidade da minha mãe, a coragem dela, mas o que eu encontro agora é um tanto de medo. Queria que ela dissesse para mim e para minha filha que a história não vai se reper, que eu não vou morrer e deixar a minha filha, que com a gente não vai acontecer esse desencontro. Queria que ela dissesse “tá tudo bem, minha filha, a gravidez é assim mesmo, a gente entra numa montanha-russa e sente tudo da vida toda e do mundo inteiro”. Queria que ela me dissesse isso no meio de um abraço de mãe. Irina é a filha da filha de Chiara. Será que eu vou saber ser mãe? Eu preciso tanto encontrar minha mãe em mim.” Afilhadafilha “...IrinaéafilhadafilhadeChiara.Será queeuvousabersermãe?Eupreciso tantoencontrarminhamãeemmim.”

6 / Afamíliaencantada 18

Chiara passeava muito com Laura, e teve a ideia de comprar caixas de giz para ela desenhar pela cidade, no chão, nos postes, nos bancos de praça. Dizíamos para ela que Roma estava se tornando uma cidade mais bonita com seus desenhos e ela ficava toda feliz. Uma vez aconteceu uma coisa engraçada. Estávamos na Piazza Campo dei Fiori, sentados no chão, eu tocando violão, Chiara cantando e Laura desenhando, folhas e mais folhas de desenhos espalhadas pelo chão. E qual não foi a nossa surpresa quando um casal parou na nossa frente, ficou um tempo nos olhando e então deixou algumas moedas ao lado das nossas coisas. Chiara se jogou no chão de tanto rir, depois pegou Laura pelas mãos e saíram dançando enquanto ela gritava: “Bisogna meere insieme un numero: Maeo suona, io canto e Laura disegna: la famiglia incantata!”

“Laura foi uma criança muito curiosa. Prestava atenção em tudo, e desde pequena gostava de interagir com as coisas, mais do que com as pessoas. Fazia pequenos desenhos em tudo, nas suas roupas, nos brinquedos, nas almofadas, nas cadeiras, um perigo. Paredes e roupas eram lugares muito tentadores para ela. Éramos muito jovens e achávamos tudo isso lindo.

Com três anos Laura foi para escola. Chiara nha conhecido umas pessoas no projeto de alfabezação de adultos que lhe contaram que em Reggio Emilia havia uma pré-escola com um novo sistema educavo, uma pedagogia nova, mais humana. Nós nos informamos melhor, conversamos muito com várias pessoas e decidimos, então, nos mudar para lá. Essa nova fase foi muito esmulante para Chiara. Ela connuou com seu projeto de alfabezação de adultos em Roma, voltava uma vez por semana para lá, mas parece que se encontrou, ou melhor, encontrou em Reggio Emilia o seu lugar de ação, social e políca, na educação. O projeto era realmente muito bom, os pais, as famílias parcipavam avamente do processo todo, era uma comunidade que pensava e agia de forma muito

19 compromeda com a formação das crianças. Laura demorou a ler e escrever e Chiara, junto à escola, criou um experimento que consisa em esmular Laura a fazer desenhos que correspondessem às letras e depois sílabas, o que funcionou muito bem. Esse é um capítulo à parte da sua história, talvez valesse um livro. Foi muito bonito todo o processo. Há anos eu dei para Laura uma pasta imensa com os registros de parte do processo.

Voltamos à Roma para comemorar com a família e os amigos o aniversário de 4 anos de Laura e foi uma festa, uma alegria, uma celebração da vida.” Meu pequeno arco-íris, Há quatro anos eu encontrei o pote de ouro não no fim, mas no começo da viagem mais incrível da minha vida. Há quatro anos eu sou feliz como nunca imaginei que pudesse ser, não que antes eu não fosse, mas a vida é tão melhor com você! Hoje a gente vai dançar e você vai poder escolher uma parede de casa para você desenhar o que você quiser. E eu acabei de comprar o presente mais legal do mundo para você. Hoje a gente vai comemorar a sua vida, Laura, e esses seus olhos que veem tudo e guardam tudo dentro de você.”

Pouco depois Chiara passou a dar aulas lá, onde Laura nha toda a liberdade para desenhar o mundo nesse novo mundo que se abria para ela. Foi um ano de muitas mudanças, de muito aprendizado, um ano que parecia abrir as portas para um futuro muito bonito para nós, para nossa família e para todos individualmente também. Chiara lecionava muito feliz, Laura crescia num ambiente maravilhoso, eu nha feito muitas pontes na música, novas parcerias, tocava bastante, tudo seguia às mil maravilhas.

(Bilhete de Chiara para Laura, entregue junto com o presente, o guarda-chuva colorido, em seu aniversário de 4 anos)

“Chiara morreu em um acidente de carro pouco depois do aniversário de 4 anos de Laura. Foi horrível. Como é que uma coisa dessa pode acontecer? Em um momento tudo está bem, a vida correndo às mil maravilhas, você é jovem, tem uma filha pequena linda, uma mulher maravilhosa e aí, um belo dia, você está com sua filha na casa nova, brincando e tocando violão para ela, sua mulher está dando aula e na volta para casa acontece isso, o acidente. Não gosto de falar sobre isso, mesmo já tendo passado tanto tempo. Foi a coisa mais triste e mais dicil que me aconteceu na vida. Por outro lado, eu gosto da ideia de contar um pouco dessa história, da história de Laura, dessa infância tão singular e do que a fez chegar até aqui e ser quem é. Um dia minha neta vai ler isso, eu espero.

Depois da morte de Chiara, Laura foi, aos poucos, deixando de falar. Começou a ficar monossilábica, depois se comunicava por gestos, foi criando uma linguagem própria. Foi muito dicil, para mim, ver a minha filha se calando e se fechando. Com o tempo, eu percebi que Laura estava senndo e falando de uma outra maneira. Ela desenhava muito, muito mesmo, e começou a desenvolver uma sensibilidade incomum. Algumas pessoas que nos ajudaram, médicos, amigos, disseram que é relavamente comum, em situações traumácas assim, a criança desenvolver uma maior sensibilidade aos pensamentos e às emoções alheias, sobretudo as crianças que param de falar. Ela sempre foi uma criança sensível, muito inteligente, mas era diferente, parecia que ela sabia o que a gente estava pensando, senndo, não falhava. E nesse processo todo a música foi um canal de comunicação muito importante entre nós. Compusemos algumas canções nos meses seguintes à morte de Chiara. Digo compusemos porque às vezes eu estava com o violão e Laura vinha dedilhar nele. Ela me olhava primeiro como que pedindo permissão e logo levava a mãozinha até as cordas e começava a dedilhar. Outras vezes, ia sozinha até o violão, dedilhar nas cordas, e muitas vezes saiam melodias bonitas, ao acaso, claro, 20

7 /Osilêncio

21 que eu cheguei a usar em algumas composições, pequenos trechos, frases musicais. Tenho guardadas algumas fitas-cassete com esses registros até hoje. Às vezes eu penso que esse foi o jeito que Laura encontrou para me ajudar a seguir em frente. Tivemos muita ajuda da família, dos amigos, dos parceiros da música, de todos. Todos foram muito amorosos com a gente, acolheram Laura, levavam-na para passear, ficavam em casa com ela, inventavam coisas o tempo todo para distraí-la e respeitavam muito, muito mesmo, toda a dor e todo silêncio dela. Não sei o que teria sido de nós se não fosse essa presença maciça em casa, com a gente o tempo todo, porque o buraco e o vazio que Chiara nha deixado eram imensos. Às vezes Laura ficava agressiva também e começava a quebrar coisas, parecia que um pequeno furacão saía de dentro dela. Mas logo passava, e então ela chorava muito. Acho que ela precisava disso para não se quebrar também. Depois ela corria para sua cama, abria seu guarda-chuva colorido, que foi presente da Chiara, se deitava debaixo dele e ficava ali até adormecer. Parte das coisas que ela quebrava eu jogava fora, parte eu guardava, sem saber o porquê. Um tempo depois fiz duas pequenas esculturas com os cacos. Uma dor desse tamanho não podia mesmo caber dentro de uma menina tão pequena.”

Pequenas esculturas feitas por Maeo

8/Oroubo 22

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“É um vazio, um buraco no meio do quebra-cabeça por falta das peças perdidas, um roubo. É, um roubo. Eu me lembro da saia dela balançando enquanto a gente caminhava, das mãos dadas, do sol, da felicidade e isso é tudo que tenho. Depois, nada. Não me lembro do acidente. Nada. Parece que eu dormi depois do passeio e abri os olhos do outro lado do mundo. Outra vida. Sem lembrar do pesadelo. Nada.”

“Uns dias depois da morte de Chiara, o Sergio Bardo, meu padrinho na música, sem saber do que nha acontecido, ligou me convidando para uma reunião de despedida do Chico Buarque, que nha se exilado em Roma, e estava com a volta marcada para o Brasil. Ele ficou arrasado ao saber, gostava muito de Chiara e ficou muito preocupado comigo e com Laura. Na semana seguinte me ligou de novo perguntando como poderia nos ajudar. Ele não parava de falar, perguntava se eu queria ir para a casa dele, se eu estava precisando de dinheiro, dizia que Laura precisava de outras crianças por perto. Eu ouvia tudo calado até que ele disse, quase gritando: me diz como eu posso te ajudar. Olha, até hoje eu não sei o que aconteceu, mas eu dei um pulo da cadeira onde estava sentado e respondi: eu quero ir para o Brasil e preciso de trabalho por lá. Ele ficou em silêncio por um tempo e então disse: ok. E desligou. Bardo enviou as passagens, o endereço de onde nos hospedaríamos, uma casa de amigos no bairro da Lapa, e no dia da viagem nos levou ao aeroporto. No caminho foi tecendo suas considerações de por que São Paulo e não Rio de Janeiro, mas confesso que não prestei muita atenção. Sabíamos que a situação políca no Brasil não era nada boa, por isso São Paulo, por isso a casa na Lapa, por isso os vários contatos e a rede de amigos que nos acolheu. Mas eu só queria ir embora da Itália. No dia 17 de março de 1972, eu e Laura desembarcamos no aeroporto de Viracopos, na cidade de Campinas. Chovia muito. Pouco tempo depois ouvi, extasiado, Águas de março, de Tom Jobim, e essa se tornou a canção das nossas vidas, minha e de Laura. Éramos eu e meu violão, Laura e seu guarda-chuva, duas malas com algumas roupas, o fim de um caminho e a promessa de uma nova vida nos nossos corações.”

24 9/Onovocontinente

“Durante boa parte da minha vida sen que tudo o que eu vivia, todas as experiências, todos os acontecimentos correspondiam exatamente a tudo que eu não nha vivido com a minha mãe. A sensação que tenho hoje é de ter passado muito tempo olhando para trás. Sabe quando alguém passa por nós e segue na direção oposta e a gente olha para trás para tentar ver um pouco mais, reter um pouco mais daquela imagem? Eu passei muito tempo olhando por cima dos meus ombros para tentar recuperar um pouquinho do que nha ido embora, um pouco da minha mãe, para tentar validar o que eu estava vivendo, validar a minha vida. E agora, filha, você me revela o que nha ficado com as costas voltadas para mim: a vida. A experiência de ter você crescendo aqui dentro corresponde exatamente a isso, vida. Vida e mais vida. Esse é o sendo. Todo um futuro pra a gente criar, inventar, construir. Você é um farol, Irina.” /Nonno “Não foi fácil, mas eu tenho orgulho da nossa caminhada até aqui. Laura é uma mulher extraordinária, uma pessoa rara. Eu fiz o que pude como pai e acho que não me saí tão mal assim. E tem a arte que sempre esteve presente nas nossas vidas. É fato que a arte salva e nos salvou. Laura passou a vida se relacionando com o mundo através dos seus desenhos, das suas pinturas, das suas criações. Foi a ponte de ligação entre ela e a vida. Laura exala fragilidade, mas se impõe na vida com uma força extraordinária. Agora mais do que nunca. “E ancora non riesco a credere che diventerò nonno!”

10 /Osentido 25

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26 12 /Irina

“Eu queria muito que a minha mãe vesse me deixado um diário ou algo assim contando um pouco da sua história. Eu teria um pouco mais dela, contado por ela, não pelos outros. Faz muita diferença a gente conhecer um pouco do mundo de dentro de uma pessoa. Ajuda a entender o mundo que ela consegue construir do lado de fora. Hoje, o meu mundo de dentro é você, Irina, que cresce muito e rápido, acho que com vontade de vir aqui para fora, chegar. Você se mexe, chuta, reage e está fazendo uma revolução dentro e fora de mim. Aliás, dentro e fora ganham um outro sendo agora, se misturam. Como vai ser quando você sair de mim, quando a gente se dividir? Tem um poeta que diz que nascer é muito comprido. Que assim seja, minha filha! Que ao entrar na órbita dessa vida você se anuncie a plenos pulmões, que você se acople em você mesma sempre e cada vez mais, que você cresça forte e linda, e que eu possa estar de algum modo perto no bom e no ruim, que exista sempre um tempo e um lugar para a gente se dar as mãos, que eu seja uma mãe bacana, que eu consiga te dar o que você precisa e que o que eu não conseguir seja a pista que te indique por onde procurar, que você seja feliz, minha filha, e quando não for, que você venha aqui para essas páginas beber um pouco desse amor que é maior que você, que nós, e lembrar que existe Gilberto Gil e Beatles, a aurora boreal, helado de pistacho, passeio de balão, cavalos e passarinhos, pé de pitanga, a poesia (dos livros e da vida), os lápis de cor, as viagens, os abraços, o choro e a gargalhada, e o tempo, Irina. O tempo das coisas. Tem uma mãe que vai nascer junto com você e enquanto eu espero por nós, cheia de medo, de alegria e inundada de amor, começo a escrever a nossa história. Que nunca é só nossa. E isso é só o começo, filha.”

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tr A coN se Inventando Laura Teresa Athayde Fabiana Pacola | Arquivo pessoal| |texto projeto gráfico fotos

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