Espaços de alteridade

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Espaรงos de alteridade



Espaços de alteridade Convivência, conflito e o outro na metrópole

Fabiana Barbosa Perazolo Universidade Presbiteriana Mackenzie Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Orientadora Prof.ª Dr.ª Maria Isabel Villac São Paulo, 2017



Sumário 4

7

23

Apresentação

Metrópole polifônica

O condensador social e a cultura de congestão

37

63

81

Memória

O jogo do caminhar

Arquitetura e a cidade

95

111

Encontro com o Outro

Fluxos, conexões e programa: Edifício Condensador


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Apresentação 1. ARISTÓTELES. Política. apud SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. (1994) Rio de Janeiro: Record, 2003. p.50.

Esta pesquisa é sobre a cidade, sobre as pessoas e, acima de tudo, é sobre a convivência com o diferente. Eu, nascida já na metrópole, ao ler sobre a cidade me senti parte dela, ao ler sobre os temas aqui apresentados, me senti parte da pesquisa. O interesse pelo tema nasceu das leituras realizadas, evoluiu instintivamente, se modificou inúmeras vezes, por meses não teve nome, ordem ou sentido. Pareciam assuntos de interesse pessoal conectados por um fio invisível que eu ainda não havia encontrado. Durante o ano não consegui explicar sobre o que estava pesquisando ou porque aquilo me parecia importante, só sabia que o era. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa o termo alteridade significa “qualidade do que é outro; diversidade”. É um termo estudado pela filosofia e pela antropologia como a condição de dependência do homem em relacionar-se, implicando constante diálogo e valorização das diferenças. Todos os conceitos e ideias tratados nesta pesquisa tratam da alteridade. Falam do conflito inerente às cidades e principalmente de como conviver positivamente com a diferença. A cidade é múltipla, diversa, conflituosa por definição, e a arquitetura não deve buscar apaziguá-la. Uma cidade é construída por diferentes tipos de homens; pessoas iguais não podem fazê-la existir.1 A estrutura do texto conta também sobre o processo. Durante a pesquisa foi necessário entender e estudar alguns temas que acabaram por influenciar diretamente o projeto de edifício proposto. Estes temas me pareceram complementares aos conceitos da antropologia e da sociologia sobre os quais escrevia, porém eles eram fechados em si e por isso os considerei independentes da estrutura principal. Sendo assim, os textos em azul - Metrópole polifônica, O jogo do caminhar e Encontro com o outro - constituem o andamento padrão da pesquisa. Embora sejam independentes entre si, estabelecem a linha de pensamento do texto e defendem a ideia principal, a alteridade na cidade. Em paralelo, os textos em vermelho, “enquadrados”, apresentam estes outros temas, análogos, um metatexto que deve ser lido no contexto da composição padrão.


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A metrópole será entendida como necessariamente diversa. A junção de milhares de pessoas em um mesmo espaço que condiciona grande diversidade de etnias, religiões, saberes, estilos, gostos e opiniões. Essa mistura, embora às vezes cause certo desconforto, é positiva na medida em que gera relações complexas e interessantes, próprias da metrópole. A partir dos conceitos de José Guilherme Magnani e de Richard Sennett, foi possível entender a relação entre os indivíduos e em relação ao que é a metrópole, um grande conglomerado de pessoas, informações e situações. O que Massimo Canevacci chamou de “cidade polifônica” defende justamente essa ideia, pois a polifonia consiste na multiplicidade de sons em um conjunto harmonioso. O caminhar é apresentado por Francesco Careri como prática necessária na cidade. O perder-se nas ruas nos conecta à cidade e aos seus espaços e, principalmente, nos leva de encontro com o Outro. Paola Berenstein Jacques irá trazer a discussão de Careri para um contexto mais nacional ao afirmar que a experiência de alteridade na cidade apenas é possível no caminhar e rompe com alguns preconceitos e medos em relação ao Outro desconhecido. No último capítulo são apresentadas as possibilidades de encontro com o Outro. Jane Jacobs irá defender a criação de vitalidade urbana por meio da diversidade de usos, em um enfoque tático e econômico que parte do entendimento das cidades reais. O projeto de multidão de Michael Hardt e Antonio Negri defende a discussão atualizada sobre a democracia e como é urgente desenvolver a ideia de um corpo político mais diverso e receptivo às diferenças. Por fim, Richard Sennett irá apresentar o conceito de cooperação como principal maneira de conviver com o diferente. Alternadamente ao texto central, os metatextos irão tratar de temas como o condensador social russo e a junção de programas, a cidade consolidada e como construir em um contexto adensado, a história da região do Anhangabaú e do Largo da Memória, onde o terreno de estudo está localizado, até chegar na apresentação do projeto desenvolvido durante o ano, o Edifício Condensador. Com este trabalho, pretende-se discutir as possibilidades de alteridade e demonstrar como ela é essencial na experiência da metrópole.


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Metrópole polifônica


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1. SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p.12. 2. MAGNANI, José Guilherme. Quando o campo é a cidade: fazendo antropologia na metrópole. (1996) In: MAGNANI, José Guilherme e TORRES, Lílian de Lucca (Orgs.). Na metrópole: textos de antropologia urbana. São Paulo: Edusp, 2000, p.19.

A ideia de que cada indivíduo é único e insubstituível surgiu, segundo Simmel1, com a noção de vida moderna. Após o liberalismo do século XVIII, que exigiu do homem uma especialização funcional do seu trabalho, o romantismo do século XIX desloca o valor do indivíduo em função à sua unicidade, criando a necessidade de diferenciarse dos outros e tornar-se indispensável. O ser metropolitano surge, então, lutando para preservar sua individualidade frente às forças de uniformização, ao mesmo tempo em que lida com a descontinuidade dos estímulos inesperados criados pela metrópole, determinando sua condição psicológica. A metrópole é por excelência o lugar da diversidade de pessoas e situações, e portanto, conflitos. São Paulo é um exemplo significativo “dada a procedência de seus habitantes, a riqueza de suas tradições culturais, a variedade de seus modos de vida, e, por conseguinte, a infinita possibilidade de trocas e contatos que propicia. Mas também alimenta representações que a identificam com o ethos do trabalho, com a formalidade e frieza das relações impessoais, o anonimato da vida cotidiana.”2 A investigação do antropólogo José Magnani na metrópole paulistana se interessa não apenas no reconhecimento e no registro cultural - tal como a disciplina da antropologia se dedicou preliminarmente - mas, principalmente, em entender o significado das experiências humanas

I. Na página anterior Parque Minhocão. II. Nesta página Viaduto Santa Ifigênia, São Paulo.


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a partir da pesquisa de campo. A antropologia surge no fim século XIX com o objetivo de entender a diversidade de costumes entre povos, principalmente entre a sociedade ocidental e os povos “primitivos” das colônias, associando o diferente ao atrasado. Hoje, já se provou equivocada e insuficiente essa visão evolucionista e, embora a antropologia siga com a preocupação inicial sobre diversidade cultural, foi imprescindível que o campo de investigação fosse ampliado para todos os tipos de sociedade. Agora, o “outro” não está mais relacionado ao exotismo. As possibilidades de diversidade se multiplicaram enquanto todos os indivíduos e suas relações de sociabilidade foram incluídos como assunto da antropologia. Se um optimum de diversidade é condição permanente do desenvolvimento da humanidade, podemos estar certos de que dessemelhanças entre sociedades e grupos não desaparecerão senão para se reconstituir em outros planos.3 Por volta dos anos setenta em São Paulo a antropologia toma uma nova importância pelo fato de que os grupos tradicionalmente estudados - índios, negros, favelados - passam de minorias à protagonistas de movimentos sociais e, assim, faz-se evidente que o estudo dos grandes centros urbanos e de seu cotidiano como um todo é não apenas pertinente, mas fundamental para a antropologia, que passa a interessar-se por conhecer de perto esses atores.4 A antropologia, lá ou cá, na floresta ou na cidade, na aldeia ou na metrópole, não dispensa o caráter relativizador que a presença do “outro” possibilita. É esse jogo de espelhos, é essa imagem de si refletida no outro que orienta e conduz o olhar em busca de significados ali onde, à primeira vista, a visão desatenta ou preconceituosa só enxerga o exotismo, quando não o perigo, a anormalidade.5 Os conceitos de comunidade e sociedade são usados muitas vezes para tentar explicar o comportamento do sujeito metropolitano. A partir do texto “Community and Society” de Tönnies6, entende-se que a comunidade é marcada por laços familiares, relações primárias e consensos, enquanto a sociedade é caracterizada por relações secundárias, convencionalismos e anonimato. Como Tönnies, Simmel irá expor a transição de uma comunidade tradicional para uma sociedade urbana e industrializada por meio da oposição entre vida

3. LÉVI-STRAUSS, Claude. “A crise moderna da Antropologia”, Revista de Antropologia, vol.10, n 1 e 2, São Paulo: USP. 1962. p.26. apud MAGNANI, José Guilherme. Texto citado, p.17. 4. DUHRAM, Eunice. A pesquisa antropológica com populações urbanas: problemas e perspectivas. 1986 apud MAGNANI, José Guilherme. Texto citado, p. 28. 5. MAGNANI, José Guilherme. Texto citado, p.21. 6. Refere-se ao texto “Community and Society” de Fernand Tönnies, 1963. apud MAGNANI, José Guilherme. Texto citado, p. 22.


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7. SIMMEL, Georg. Texto citado, p.17. 8. MAGNANI, José Guilherme. Texto citado, p.47. 9. ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995, p.12.

rural e vida metropolitana, buscando entender os sintomas do indivíduo metropolitano. A vida rural que, segundo o autor, se desenvolve de maneira lenta e uniforme, está baseada em relacionamentos profundos, localizados nas camadas mais inconscientes do psiquismo. Em oposição, o indivíduo metropolitano desenvolve em suas relações o intelecto que, localizado nas camadas mais conscientes do psiquismo, é adaptável às mudanças e ao contraste de fenômenos, e por isso tão eficaz ao ritmo metropolitano. Assim, a intelectualidade e a inteligência passam a ser essenciais no comportamento do ser metropolitano, que reage aos fenômenos por meio da razão, preservando a sua vida subjetiva. Simmel chama essa atitude mental com o Outro de reserva.7 Frente à impossibilidade de relacionar-se com todos - como nas cidades pequenas - e à desconfiança frente aos elementos superficiais da vida urbana, o indivíduo metropolitano acaba por agir com indiferença e, muitas vezes, com aversão e estranheza frente ao Outro urbano. É na proximidade física da cidade que fica evidente essa reserva e indiferença, a distância mental entre os indivíduos. Porém, o que Magnani irá defender é que os conceitos ‘comunidade’ e ‘sociedade’ não devem se contrapor como dois tipos de organização social que excluem-se. Trata-se de dois tipos de interação social que podem coexistir na metrópole,8 e não de uma “evolução” do modo tradicional ao modo metropolitano de relacionar-se, como defende Simmel. Na metrópole podem existir relações “societárias” - vínculos impessoais, racionais - e relações “comunitárias” - solidárias, de tradição e profundas -; os diferentes modos de relacionar-se criam redes de sociabilidade ainda mais ricas na vida dos indivíduos metropolitanos. Com a família e amigos, um indivíduo não irá agir de maneira fria e reservada apenas pelo fato de ser um habitante da metrópole, porém não haverá necessidade de criar vínculos pessoais com alguém sentado ao seu lado no metrô ou com seu chefe, mas isso não significa que não seja uma possibilidade. A escolha de relacionarse ou não e o nível de intimidade dessas relações cabe apenas ao indivíduo que, na metrópole, convive com milhares de outras pessoas diferentes, que diariamente também escolhem como irão relacionarse. É justamente na heterogeneidade que está baseado o conceito de metrópole, no pressuposto de que grupos diferentes podem conviver em um mesmo lugar, relacionando-se societária ou comunitariamente. Raquel Rolnik irá comparar a metrópole à um ímã, “um campo magnético que atrai, reúne e concentra os homens”9, concluindo


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que morar em uma cidade implica viver de forma coletiva. A grande diversidade de pessoas e possibilidades de relacionar-se em uma metrópole São Paulo reflete na mistura de estilos e acontecimentos da cidade, tendo como consequência o que Massimo Canevacci, italiano apaixonado pela capital paulista, chamou de uma “cidade polifônica”.

10. CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicacão urbana. (1993) São Paulo: Studio Nobel, 2004, p.15. 11. CANEVACCI, Massimo. Texto citado, p.138.

Uma cidade que se comunica com vozes diversas e todas copresentes: uma cidade narrada por um coro polifônico, no qual os vários itinerários musicais ou os materiais sonoros se cruzam, se encontram e se fundem, obtendo harmonias mais elevadas ou dissonâncias, através de suas respectivas linhas melódicas.10 A analogia a um coro de vozes autônomas que se unem, separam, sobrepõem e consonam para depois dissonar, é ideal para compreender uma metrópole como São Paulo. E entendê-la como um território aberto à diferença, que aceita todo tipo de gente, é o que faz esse coro soar harmonioso, um grupo de cantores de diferentes timbres. A assimilação da diferença - a sua tradução em identidade - produz a homofonia. A equalização das diferenças - o respeito à sua alteridade - libera as polifonias.11 Como estudioso de comunicação urbana, Canevacci acredita que a única maneira de se aproximar do entendimento da cidade é considerar a III. Parque Minhocão.


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12. CANEVACCI, Massimo. Texto citado, p.18. 13. CANEVACCI, Massimo. Texto citado, p.35. 14. CANEVACCI, Massimo. Texto citado, p.21. 15. CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. (1972) São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.49.

multiplicação de olhares e vozes12, e justamente a comunicação urbana, vista do ponto de vista antropológico, será resultado dos modos de pensar, de sentir e de agir dos habitantes e terá como consequência a exacerbação das diferenças urbanas. Diferentemente do estudo antropológico de Magnani, a cultura urbana se comunicará por meio dos edifícios, árvores, ruas, paisagens, as entrevistas não serão tão efetivas, e o necessário neste caso será a apuração do olhar e da linguagem dos signos. Compreender uma cidade significa colher fragmentos. E lançar entre eles estranhas pontes, por intermédio das quais seja possível encontrar uma pluralidade de significados.13 Além disso, o autor ao descrever suas impressões sobre São Paulo - que considera sua segunda cidade -, confirma a teoria de Magnani sobre a coexistência das relações de proximidade e indiferença na metrópole, e que talvez essa possibilidade de escolha seja o que provoque sentimentos contraditórios de pertencimento e autonomia. Quanto mais me sinto desenraizado num ambiente metropolitano - que une a familiaridade crescente a uma diferenciação irredutível mais sinto que minhas raízes nela se aprofundam.14 A partir da descrição dos signos urbanos e da singularidade dos habitantes da cidade, os contos de Italo Calvino em “Cidades Invisíveis” também nos apresentam a diversidade que pode ser encontrada nas cidades. No livro, o viajante Marco Polo conta ao imperador Kublai Kan suas impressões sobre as 55 cidades que visitou em sua viagem pelo império. Poéticas e metafóricas, as cidades são divididas em 11 temas; de acordo com sua “personalidade” suas histórias se relacionam à memória, ao desejo, aos símbolos etc. Em um olhar antropológico, poderíamos imaginar que Marco Polo não descreveu cidades diferentes, mas que na verdade o livro trata de uma única cidade, vista de diferentes pontos de vista, como as diferentes histórias que podem ser contadas sobre um mesmo lugar. Kublai Kan percebera que as cidades de Marco Polo eram todas parecidas, como se a passagem de uma para outra não envolvesse uma viagem, mas sim uma mera troca de elementos. Agora, para cada cidade que Marco lhe descrevia, a mente do Grande Kan partia por conta própria, e, desmontando a cidade pedaço por pedaço, ele a reconstruía de outra maneira, substituindo ingredientes, deslocando-os, invertendo-os.15


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[A cidade e as trocas 2] Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem. Quando se vêem, imaginam mil coisas a respeito umas das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam. Passa uma moça balançando uma sombrinha apoiada no ombro, e um pouco das ancas, também. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra toda a sua idade, com os olhos inquietos debaixo do véu e os lábios tremulantes. Passa um gigante tatuado; um homem jovem com os cabelos brancos; uma anã; duas gêmeas vestidas de coral. Corre alguma coisa entre eles, uma troca de olhares como se fossem linhas que ligam uma figura à outra e desenham flechas, estrelas, triângulos, até esfotar num instante todas as combinações possíveis, e outras personagens entram em cena: um cedo com um guepardo na coleira, uma cortesã com um leque de penas de avestruz, um efebo, uma mulher-canhão. Assim, entre aqueles que por acaso procuram abrigo da chuva sob o pórtico, ou aglomeramse sob uma tenda do bazar, ou param para ouvir a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias, sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantar os olhos. Existe uma contínua vibração luxuriosa em Cloé, a mais casta das cidades. Se os homens e as mulheres começassem a viver os seus sonhos efêmeros, todos os fantasmas se tornariam reais e começaria uma história de perseguições, de ficçnoes, de desentendimentos, de choques, de opressões, e o carrossel das fantasias teria fim.16

16. CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. (1972) São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.51.


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17. SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. (1994) Rio de Janeiro: Record, 2003, p.300. 18. SENNETT, Richard. Texto citado, p.36. 19. SENNETT, Richard. Texto citado, p.303. 20. SENNETT, Richard. Texto citado, p.303. 21. SENNETT, Richard. Texto citado, p.47.

As relações com o Outro e com a cidade se efetivam por meio do corpo, e assim as vivências específicas de cada sociedade determinam a forma dos espaços urbanos.17 Ao longo da história da sociedade ocidental, o comportamento do homem e suas crenças moldaram de maneira diferente o que seria a cidade e que papel esta cumpria em cada época. Em Atenas por exemplo, a cultura cívica estava tão inserida no dia a dia da cidade que a palavra “pólis” significava também “espaço onde as pessoas alcançavam a mais alta expressão da unidade”. 18 As cidades cristãs da Idade Média, por sua vez, dividiam-se espacialmente entre o santuário puro e a rua de desordem incontrolável. O preconceito com o Outro chegou a um momento crítico na história quando os judeus e outros indivíduos considerados impuros de Veneza foram segregados em guetos. Este tipo de atitude higienista reaparece no século XIX na Haussman de Paris, que removeu quadras inteiras para criar uma cidade mais “limpa”, resultando em um vazio apático de boulevares.19 Para Sennett, estamos atualmente em um momento de passividade corporal,20 as dificuldades de se viver em uma metrópole claramente estão relacionadas ao modo como nos relacionamos com o Outro no espaço público, à falta de sensibilidade e tolerância e à dificuldade de aceitar o diferente como possível. Se a religião não é mais o agente responsável por estabelecer os limites morais para a sociedade, e tampouco a noção de coletividade ateniense é inerente aos indivíduos metropolitanos, o que irá impor tolerância ao diferente e estimular a troca com o Outro? Para o autor, encontrar um estado de compaixão cívica e aceitar a diferença do Outro será a única forma de viver nas cidades multiculturais. Voltando às origens do conceito de espaço público, nas pólis gregas existia uma clara dualidade entre o mundo político - do exercício político da liberdade - e o espaço privado do mundo doméstico. O exercício da liberdade referia-se à possibilidade de expressar-se no espaço público, como por exemplo na Ágora, conhecida como o primeiro espaço democrático, onde todos os cidadãos (homens, não escravos ou estrangeiros) participavam de diversas atividades e conversas que ocorriam simultaneamente, sem uma voz dominante. Segundo Sennett, na sociedade ateniense os “sítios urbanos mais amplos apresentavam perigo para a linguagem, pois neles, em meio às atividades concomitantes e ininterruptas, as palavras se dispersavam entre os murmúrios das vozes”. 21 A ideia do espaço público como lugar da liberdade, onde os cidadãos se expressam livremente, permanece


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IV. Parque Minhocão.

até hoje, porém deve atualizar-se com a noção de conflito, já que a sociedade metropolitana é muito mais diversa, conflituosa e inclusiva que a pólis grega. Sendo assim o espaço público torna-se também o lugar da mediação desses conflitos da sociedade. Os espaços públicos são, nas metrópoles assim como nas pólis, o espaço da voz da sociedade, e não podem ser pensados de forma autônoma à cidade ou à vida cotidiana. A grande concentração de pessoas da metrópole, unida à ideia do realizar-se no espaço público da cidade resulta em pontos de vista diversos e contrastantes, e assim, o conflito torna-se mais visível nos espaços de centralidade e na aglomeração dinâmica da vida metropolitana. Mas o conflito no espaço público não é visto aqui como problemático, o conflito é um excelente sinal da realização e uso de um espaço público. Vejamos a Praça Roosevelt por exemplo, após a reforma de 2012, com a melhoria dos acessos e da infraestrutura, passou a ser espaço de disputa e desejo entre skatistas, pessoas de terceira idade, moradores da região, que, com diferentes vontades, acabam por conviver nesse espaço do conflito. É lá [na cidade] que se desenvolve a cultura e o contato com o estranho, um contato aceito e tolerado com o que vem de fora. [...] a cidade ensaia a convivência com aquele que eu não conheço, que me é estranho, e que, no entanto, não é excluído.22

22. NEGT, Oskar. Espaço público e experiência. In: Cidade e cultura. Esfera pública e transformação urbana. Rio de Janeiro: Estação Liberdade. 2002, p.22.


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23. NEGT, Oskar. Texto citado, p.21. 24. NEGT, Oskar. Texto citado, p.21. 25. CALLIARI, Mauro. Espaço público e urbanidade em São Paulo. São Paulo: BEI Comunicação, 2016, p.21.

A cultura, a política e a opinião pública são partes essenciais e formadoras da cidade e portanto do espaço público. A importância da vida urbana sempre esteve ligada às formas de ambiente público, onde estima-se que exista equilíbrio entre intimidade e distância dos indivíduos, possibilitando a formação de um organismo social.23 Este equilíbrio, como bem se sabe, é bastante delicado e difícil de alcançar e, segundo Oskar Negt, está relacionado ao tamanho das coisas. Quando se refere às cidades, parece essencial também definir o tamanho dos edifícios, das praças, das ruas, que muitas vezes acabam por ser grandes demais ou pequenos demais, o que infere diretamente nas relações entre os indivíduos. As “unidades vivíveis” urbanas dificilmente assumem um nível intermediário, pois para a economia esse tipo de espaço é muito custoso, mas para Negt esse mundo intermediário é essencial para o desenvolvimento das cidades, pois “trata-se de um nível em que as pessoas se encontram numa relação equilibrada entre a intimidade e a distância”. 24 Espaços muito grandes como o Memorial da América Latina, de Oscar Niemeyer, não oferecem condições de acolhimento e encontro, causando estranhamento e resultando em não apropriação das pessoas, por outro lado, espaços muito pequenos não permitem o encontro e tampouco impulsionam a apropriação. Arquiteturas como o Sesc Pompeia de Lina Bo Bardi e o Centro Cultural São Paulo de Eurico Prado Lopes e Luiz Telles podem ser classificados como “espaços intermediários”, pois seu tamanho e suas condições permitem vários tipos de interação, desde a mais distanciada até a mais particular. A generosidade quanto às possibilidades de encontro criam espaços democráticos que permitem o uso público e a riqueza de experiências. Vivemos hoje um momento de amadurecimento da sociedade em relação à sua expressão no espaço urbano. Historicamente, no Brasil, a esfera pública nunca foi objeto de investimento, e a consequência disso está presente até hoje na falta de desejo dos indivíduos pelo lugar público urbano. Apesar disso, o atual interesse pelos espaços públicos e pelas ruas está presente nas ações da sociedade, em forma de manifestações, ocupações e movimentos de conservação de praças e bairros está o desejo de retomar a cidade. Segundo Calliari, esses movimentos de apropriação são resultado da decadência do modelo viário rodoviarista que prometeu economia de tempo e modernidade e resultou em enormes barreiras urbanas e congestionamentos.25 A transformação da configuração da cidade contemporânea é responsável também pela diminuição da importância da experiência urbana, como a


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perda do papel simbólico do centro, a predominância dos fluxos sobre os lugares e do privado sobre o público.26 A urbanidade toma lugar no espaço público e permite o encontro entre os indivíduos mais diversos, onde ocorrem as trocas e imprevistos entre desconhecidos durante o dia. E é nesse momento que aparece o conflito entre o eu e o Outro, resultado das diferenças. Para democratizar o espaço público e permitir que todos tenham acesso e sintam que aquele lugar também lhes pertence, é necessário reconhecer esses conflitos e não omiti-los.27

26. Olivier Mongin In: CALLIARI, Mauro. Texto citado, p.40. 27. CALLIARI, Mauro. Texto citado, p.23. 28. CALLIARI, Mauro. Texto citado, p.46.

A razão mais importante para o estudo do espaço público está ligada ao exercício da alteridade e da diversidade. É no espaço público que encontramos pessoas diferentes de nós.28 A partir da interpretação e estudo de autores como Benedito Lima de Toledo, Gilberto Freyre e Nestor Goulart Reis Filho, que analisaram a cidade de São Paulo historicamente, Mauro Calliari irá discutir a relação que a cidade teve com os seus espaços públicos, com foco na

V. “Praia” do Sesc Pompeia.


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29. CALLIARI, Mauro. Texto citado, p.90. 30. CALLIARI, Mauro. Texto citado, p.106. 31. CALLIARI, Mauro. Texto citado, p.108.

área do centro, para justificar o momento de retomada em que nos encontramos hoje. A época entre a fundação de São Paulo até o final do século XIX, o autor irá chamar de “comunidade”, que assim como o conceito de Tönnies constituia-se de uma população restrita “pautada por uma etiqueta específica de comportamento para cada grupo social”.29 O primeiro movimento em relação ao espaço público foi em 1750, com a abertura e revestimento em pedra de alguns logradouros, que antecedeu outras melhorias na condição dos espaços urbanos, inclusive a ladeira do Piques que será local de estudo. Além da prática do comércio, a ocupação das ruas ocorria principalmente em razão de rituais religiosos e atos cívicos, mas para Calliari, embora ainda se convivesse no mesmo espaço, apesar da diferença de classes, a atitude perante o espaço público era de indiferença. Além de sua localização geográfica estratégica, o tripé café-indústria-imigração foi o grande responsável pela implantação da ferrovia em São Paulo, que no século XIX deixa de ser uma vila para se transformar em cidade. Grandes transformações urbanas e arquitetônicas e o aumento de população - e portanto de culturas e nacionalidades - trouxeram novos conflitos que a sociedade teve que enfrentar. Os conflitos não param por aí. Estão por toda parte: onde jogar os dejetos das residências, que até então ficavam pelas ruas? Como lidar com a nudez dos que nadavam nas várzeas diante da nova moralidade pública? O que fazer com os animais soltos, agora que o bonde e depois os carros se tornavam os donos das ruas? Como melhorar a fluidez do andar, diante das quitandas nas calçadas? Ou, ainda, como lidar com as festas populares? Todas essas perguntas exemplificam o tamanho do conflito que se originou da poderosa combinação de crescimento econômico, expressão política e social com o aumento da população e, principalmente, com a introdução da diversidade na cidade. A ruptura do equilíbrio do período anterior, baseado na estrutura patriarcal, não pode ser subestimada. [...] A nova vida pública da cidade gerou uma miríade de interações sociais que simplesmente não existiam na época da comunidade.30 Calliari irá afirmar que talvez esses conflitos sejam símbolo do “nascimento da urbanidade na cidade de São Paulo: a garantia de que estranhos possam conviver num mesmo ambiente civilizadamente”. 31 A rua ganha especial atenção e movimentação, as mulheres passam a


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estar presentes nesse cenário assim como as famílias, o que fez as lojas se modernizarem com vitrines e iluminação. A presença de livrarias, teatros, cinemas, em uma cidade “moderna, barulhenta e vital,” 32 somada com a implantação dos bondes elétricos em 1901, facilitou o deslocamento entre os bairros e o movimentado centro. Neste contexto, o espaço público passa a receber investimentos e embelezamentos, claramente focados nos interesses da elite de usufruir da nova cidade afrancesada, enquanto a classe mais baixa era isolada em direção às periferias, criando um contraste claro entre os bairros ricos e pobres. São Paulo continua a crescer econômica e demograficamente, transformando-se em metrópole. Com a implementação do Plano de Avenidas no governo de Prestes Maia, a expansão urbana toma uma nova diretriz: o automóvel como transporte prioritário transforma o desenho da cidade, cria cicatrizes e obstáculos, dispersando a urbanização e transformando São Paulo em uma metrópole insustentável, com grandes distâncias a serem vencidas. Esses fatores criaram em São Paulo, segundo Calliari, uma “distinção entre a vida nos bairros, cada vez mais distantes do centro e separados entre si pelas cicatrizes viárias, e a vida no centro da cidade”. 33 As grandes avenidas e viadutos construídos no século XX, desvalorizaram o papel do espaço público em São Paulo e principalmente isolaram e dificultaram a presença do pedestre nas ruas, enquanto muitos dos espaços ocupados por calçadas e praças acabam se transformando em estacionamentos. Ao mesmo tempo que o centro segue concentrando a maior parte dos empregos, ele perde importância principalmente referente à diversidade de usos e ao uso do espaço público. Além desses fatores, o aumento da violência resultou em um sentimento generalizado de medo que alterou profundamente a dinâmica de ocupação dos espaços públicos. O aparecimento de condomínios, shoppings e centros empresariais segue a mesma lógica de configuração em relação ao espaço público, a do cercamento por muros e segregação, a busca por uma falsa segurança. Assim, conclui Calliari, desde a década de 60 os espaços públicos estiveram em posição de descaso e medo, principalmente no caso do centro, onde foram tratados de maneira desarticulada. Hoje, apesar da permanência da lógica dos condomínios fechados e do transporte rodoviário, nota-se uma tendência de retomar a cidade, principalmente o centro abandonado, pelos próprios cidadãos. Alguns exemplos de movimentos de reapropriação do espaço urbano são os da sociedade

32. CALLIARI, Mauro. Texto citado, p.115. 33. CALLIARI, Mauro. Texto citado, p.129.


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34. CALLIARI, Mauro. Texto citado, p.163. 35. CALLIARI, Mauro. Texto citado, p.163. 36. CALLIARI, Mauro. Texto citado, p.183.

civil, como o movimento de ciclistas, o movimento Parque Minhocão, A Batata Precisa de Você, a criação de hortas urbanas, parklets, food trucks, o carnaval de rua, a Virada Cultural, a Parada Gay e outros tantos eventos que tomam conta das ruas. Uma medida importante na questão do planejamento urbano foi o Plano Diretor Estratégico, promulgado em 2002 e aprovado em 2014, após um longo processo que envolveu “diferentes esferas da sociedade numa discussão sobre a visão coletiva do futuro da cidade”. 34 Embora a complexidade continue a crescer com a segregação espacial e exclusão social, segundo Calliari, “há evidências de novas tendências de reintegração e de reapropriação dos espaços públicos por diferentes setores da população”. 35 A história de São Paulo demonstrou que a apropriação do espaço é um processo desigual, não linear, que sofre a influência de diversos fatores e se exprime fisicamente numa rede variável e irregular de espaços públicos. O que parece evidente, porém, é que existe um claro desejo de reapropriação desses espaços. O embate dos próximos anos, portanto, talvez seja entre os cidadãos e as preexistências da cidade. De um lado, avenidas, viadutos, muros, edifícios, lojas e estruturas que se fecham para a rua. De outro, pessoas com disposição para retomar a sua, o convívio, o encontro.36

VI. Sala de estar no Parque Minhocão.


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VII. Sesc Pompeia. Instalação do grupo “Frente 3 de Fevereiro” em resposta a um episódio de racismo em um jogo de futebol. A bandeira “Onde estão os negros?” foi aberta em uma partida transmitida em rede nacional.

VIII. Sesc Pompeia, arquiteta Lina Bo Bardi.


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O condensador social e a cultura de congestão O renovado interesse pelo conceito do “edifício condensador social”, pensado por primeira vez pelos arquitetos e intelectuais das vanguardas russas do século XX, está relacionado com algumas das discussões de Rem Koolhaas, principalmente em seu livro de 1978 “Nova York Delirante”. Durante a juventude e formação em cinema, Koolhaas demonstrou especial interesse pelas vanguardas russas,1 interesse que anos mais tarde reapareceu em seu discurso por meio das ideias de congestão que procurou aplicar em sua arquitetura. Em 1972, cita o termo condensador social pela primeira vez em seu trabalho final na AA em Londres: “Exodus or the Voluntary Prisioners of Architecture”, que consiste em uma megaestrutura ficcional e utópica, inserida na malha urbana de Londres, na qual os “prisioneiros voluntários” cumprem um percurso que atravessa diversos ambientes e experiências, explorando os conflitos individuais e coletivos dos que se “internam” ali.

1. MONEO, José Rafael; CODDOU, Flávio. Inquietação teórica e estratégia projetual: na obra de oito arquitetos contemporâneos. São Paulo: Cosac & Naify, 2013, p.285.

I. Exodus or the Voluntary Prisioners of Architecture. Rem Koolhaas, Madelon Vreisendorp, Elia Zenghelis e Zoe Zenghelis, 1972.


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2. KOOLHAAS, Rem; ZENGHELIS, Elia. Exodus, or the voluntary prisoners of architecture, 1972. 3. CUNHA, Gabriel Rodrigues da. “A arquitetura russa nos primeiros anos da revolução: o construtivismo e a noção de “condensador social”. Dissertação (Mestrado em Teoria e História da Arquitetura) - Universidade de São Paulo, São Carlos. 4. KOPP, Anatole. Quando o moderno não era um estilo e sim uma causa. São Paulo: Nobel, 1990, p.74. 5. KOPP, Anatole. Texto citado, p.75.

The function of the Baths is to create and recycle private and public fantasies, to invent, test, and possibly introduce new forms of behavior. The building is a social condenser. It brings hidden motivations, desires, and impulses to the surface to be refined for recognition, provocation, and development.2

A vanguarda russa e os construtivistas Já antes da Revolução Bolchevique em 1917, existia na Rússia uma vanguarda interessada em tornar a arte parte da vida, tirá-la dos palácios e museus e dissolvê-la na cidade como um instrumento de transformação social, a chamada “arte de esquerda”. Com a implantação do regime socialista e o surgimento da URSS, essa vanguarda se tornou ainda mais ativa, interessada em fazer da arte um instrumento da revolução, que iria promover a transformação de uma população camponesa e analfabeta de acordo com a nova realidade política, econômica e cultural, conforme o projeto socialista.3 Já desde os primeiros projetos utópicos até o século XIX, estava claro que espaço e sociedade deveriam transformar-se simultaneamente. Nos anos 20 na URSS, a correlação entre projeto arquitetônico e projeto social não parecia mais tão utópica, visto que o governo socialista também apostava nessa premissa para a transformação da sociedade.4

II. Perspectiva do Edifício Narkomfin em Moscou. Arquitetos Moisei Ginzburg e Ignaty Milinis, 1928. O volume longitudinal corresponde ao conjunto de habitações e o anexo à esquerda abriga todas as atividades coletivas.

A escola “construtivista” de arquitetos e pensadores da época acreditava que uma arquitetura de causa social e política teria papel importante nesse processo. Para Anatole Kopp, mesmo que os motes de construção de uma sociedade igualitária não tenham tido resultado, este foi um momento único na história, em que os arquitetos soviéticos conceberam seus projetos na “tentativa de resolver ao mesmo tempo os problemas de construção da sociedade e do ambiente”. 5


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Dentre o grupo de arquitetos construtivistas, destaca-se a OSA (União dos Arquitetos Contemporâneos), que declarava fazer uma arquitetura “de esquerda”, a “nova arquitetura” que iria ser representativa e incubadora dessa nova sociedade. Não se tratava de fazer o homem operário ou camponês transformar-se em um homem moderno, culto, adaptado à vida moderna, mas sim de provocar uma verdadeira III. Cartaz de propaganda soviética “A luta pela qualidade da nutrição pública - a parte essencial da luta pelo plano industrial e financeiro.Vamos incentivar a construção em massa de refeitórios!” 1932.


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6. KOPP, Anatole. Texto citado, p.76. 7. KOPP, Anatole. Texto citado, p.86. 8. KOPP, Anatole. Texto citado, p.92. 9. KOPP, Anatole. Texto citado, p.98.

revolução cultural na vida cotidiana em paralelo à revolução política e econômica.6 Assim, a arquitetura deveria voltar-se para esse novo utilizador: a classe trabalhadora, sendo a principal crítica dos construtivistas o modo de vida do pequeno burguês: Mesquinho, individualista, fechado sobre si mesmo, preocupado antes de tudo com os aspectos materiais da existência, etc. A essa maneira de viver os revolucionários opõem uma prática social fundada no coletivo ao invés do individual, no desprendimento, na abertura, no exterior, na participação de todos na direção dos negócios, na autogestão dos meios de produção, na transformação das relações entre os sexos, nas novas relações dentro da família.7 As experiências de vida comunitária se concretizaram principalmente no campo da habitação, com as chamadas Residências Comunais8, “na medida em que a habitação sempre fora o refúgio do individualismo e da família no sentido tradicional do termo, seria justamente nas “novas residências” que se concentraria o essencial das pesquisas dos construtivistas”. 9 Estas eram organizadas de modo a socializar o modo de vida dos trabalhadores, realizando o desejo construtivista de viver de modo mais “aberto e socialmente mais rico”, enquanto que algumas funções que tradicionalmente faziam parte da vida mais privada familiar são socializadas - como por exemplo a cozinha, onde as refeições

V. Residência Comunal Estudantil em Moscou. Arquiteto Ivan Nikolaev, 1929.

IV. Residência Comunal em Moscou, 1983.

VI. Na página seguinte Existenz Minimum, URSS, 1928. “Explorando a profundidade da habitação”


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10. KOPP, Anatole. Texto citado, p.98. 11. KOPP, Anatole. Texto citado, p.99. 12. MONEO, José Rafael; CODDOU, Flávio. Inquietação teórica e estratégia projetual: na obra de oito arquitetos contemporâneos. São Paulo: Cosac & Naify, 2013, p. 287.

passam a ser feitas em conjunto - no sentido de quebrar hábitos individualistas e incentivar trocas sociais. As Residências Comunais deveriam funcionar como condensadores sociais, transformando seus habitantes por meio da organização do modo de vida cotidiano, rompendo com os hábitos individualistas e substituindo-os por atividades de socialização, no sentido do conceito de “facilitar a vida cotidiana e libertar as mulheres dos trabalhos domésticos. [...] Podemos então considerar [também] como “condensadores sociais” potenciais os equipamentos destinados à primeira infância, as lavanderias coletivas e os ateliês de reparação de roupas, cuja criação facilitaria a vida das mulheres”. 10 Não foram muitos os edifícios condensadores sociais que realmente saíram do papel e lograram coletivizar o modo de vida da sociedade, mas a maioria incluía moradias coletivas que seguiam o mesmo modelo: uma célula mínima para o descanso e uma sala de estudos, espaços considerados necessários para atividades individuais. Os espaços de uso e trabalho coletivos, como os relativos à educação das crianças, à preparação das refeições, aos diversos trabalhos domésticos, mas também à cultura e ao lazer, estariam concentrados na área comunitária das Residências. Esse novo modelo de moradia romperia com o convencional unifamiliar, em um modelo onde pessoas diferentes passariam a conviver, criando novos tipos de relação. Em questões formais, a arquitetura moderna construtivista adaptava-se perfeitamente ao conteúdo sociopolítico dos condensadores sociais, ligada a estética industrial, tudo era “nu, claro, limpo e fácil de manter”, com abundância de ar, luz e sol. Kopp considera que o fracasso dessas experiências não foi arquitetônico, até porque nunca se imaginou que a arquitetura sozinha iria transformar a sociedade, e sim que na falta das condições sociopolíticas necessárias essa transformação não foi possível, por mais otimista que fosse o cenário político.11 Apesar da frustração das experiências russas construtivistas, chama a atenção o conceito que norteava a ação dos arquitetos: o condensador social. Capaz de “provocar nas pessoas uma reação intensa e positiva”, 12 inserido no contexto atual o condensador social não trata mais de transformar uma sociedade camponesa em uma socialista, ou uma sociedade capitalista em uma comunista, mas sim de transformar o modo como os indivíduos se relacionam na cidade, superar a lógica urbana individualista e produtivista, para uma lógica de troca e cooperação, rica e valiosa socialmente, como pregavam os


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VII. Projeto tipo para uma Dom Kommuna em Moscou. Arquitetos M. Barshch & V. Vladimirov, 1929.

construtivistas. Hoje parece coerente que a forma entre em segundo plano e a organização das atividades de modo mais coletivo seja protagonista na cidade, visto a timidez em que a vida coletiva existe no cotidiano urbano. Sempre em busca dos “condensadores sociais” da nova vida, ficou claro que não se tratava de realizá-los um a um, edifício por edifício; todo o ambiente humano é que deveria constituir um único “condensador social”. A arquitetura, no sentido restrito do termo, estava superada. Os problemas do ordenamento espacial estavam na ordem do dia.13

13. KOPP, Anatole. Texto citado, p.106.


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VIII. Corte do Downtown Athletic Club. Arquitetos Starrett & Van Vleck, 1931.


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Koolhaas e a cultura de congestão Em Nova York Delirante, Koolhaas defende que o arranha céu é o autêntico edificio condensador social, que não foi completamente alcançado pelos construtivistas, e se concretizou de maneira espontânea em Nova York, resultado da especulação econômica capitalista. Para ele, o arranha céu é o único tipo de edifício verdadeiramente revolucionário do século XX, que permitiu a vida metropolitana e alcançou “uma série de transformações fundamentais, técnicas e psicológicas”. 14 A condição metropolitana de hiperdensidade une-se em Manhattan às questões da diversidade e diferença, ocasionando por vezes conflito, mas também trocas e experiências únicas da metrópole. O arranhacéu, palco de tamanha densidade e diversidade, pressupõe a “criação ilimitada de terrenos virgens numa mesma área urbana”, 15 ou seja, o empilhamento de pavimentos possibilitado pelo elevador. Desde 1870, ele foi o grande emancipador de todas as superfícies horizontais acima do térreo e resultou em uma falta de relação vertical absoluta, vidas absolutamente fraccionadas reunidas por uma mesma localização geográfica horizontal. “O elevador gera a primeira estética baseada na ausência de articulação”. 16 O que os projetos de Koolhaas colocam em evidência é justamente esse empilhamento proporcionando a mistura, o convívio comum, e não mais o isolamento. Como cada um desses terrenos deve encontrar seu próprio destino programático particular - para além do controle do arquiteto -, o arranha-céu é o instrumento de uma nova forma de urbanismo incognoscível. Apesar de sua solidez física, ele é o grande desestabilizador metropolitano: promete uma instabilidade programática perpétua.17 Em cada andar, a “cultura da congestão” organizará combinações inéditas e divertidas de atividades humanas. Com a “tecnologia do fantástico”, será possível reproduzir todas as “situações” - da mais natural à mais artificial -, onde e sempre que se desejar.18 Em Nova York Delirante, sua cronologia histórica dos edifícios de Manhattan classifica o Waldorf - Astoria como “o primeiro arranha céu plenamente conquistado pela atividade social”. 19 Koolhaas descreve figuras como o arquiteto Raymond Hood e sua igreja/hotel/piscina/ garagem20 e o Rockeffeler Center como a união de cinco filosofias,

14. R. Koolhaas, “Life in the Metropolis or The Culture of Congestion”. Architectural Design, 5/77, p.320. apud MONEO, CODDOU. Texto citado, p.287. 15. KOOLHAAS, Rem; BOTTMANN, Denise. Nova York delirante: um manifesto retroativo para Manhatann. São Paulo: Cosac & Naify, 2008, p.109. 16. KOOLHAAS, Rem; BOTTMANN, Denise. Texto citado, p.106. 17. KOOLHAAS, Rem; BOTTMANN, Denise. Texto citado, p.110. 18. KOOLHAAS, Rem; BOTTMANN, Denise. Texto citado, p.151. 19. KOOLHAAS, Rem; BOTTMANN, Denise. Texto citado, p.169. 20. KOOLHAAS, Rem; BOTTMANN, Denise. Texto citado, p.201.


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21. KOOLHAAS, Rem; BOTTMANN, Denise. Texto citado, p.226. 22. KOOLHAAS, Rem; BOTTMANN, Denise. Texto citado, p.108.

IX. O Teorema de 1909 é um desenho que coloca o arranha-céu como mecanismo para a produção ilimitada de terrenos no mesmo local. “Cada nível artificial é tratado como um terreno virgem, como se os outros não existissem, para estabelecer uma área estritamente privada em torno de uma casa de campo com suas respectivas instalações, cocheira, alojamento para os empregados etc.”

cinco projetos distintos21, mas o protagonista que mais o intriga é o Downtown Athletic Club. O edifício de 38 andares dos arquitetos Starrett & Van Vleck é a efetivação do Teorema de 1909 22, construído em 1931, sua fachada padronizada em tijolo e vidro parece esconder as milhões de atividades diferentes que ocorrem em seu interior. Segundo Koolhaas, o Clube contrapõe-


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X, “Comer ostras com luvas de boxe, nus, no enésimo andar”

se à selva financeira de Wall Street para “restaurar o corpo humano” por meio de uma série de instalações ligadas ao esporte. Conforme se avança verticalmente pelos andares, as atividades vão de convencionais, como quadras e salas de bilhar, até excêntricas, como no 9º andar onde os homens são convidados a despir-se para lutar boxe em uma sala onde não entra luz alguma, para depois dirigir-se a um bar luxuoso com vista para a cidade onde reúnem-se e comem ostras.23 O edifício segue pelos pavimentos com luxuosas áreas de massagem, banhos turcos, bronzeamento artificial, barbeiros, piscina, e até a estranha transposição das colinas de um campo de golf com direito à córrego, ponte, grama e árvores, que materializam o “prado nas alturas” do Teorema de 1909, contido no 7o andar do Downtown Athletic Club. Depois dos exercícios intensos praticados nos andares inferiores, os atletas - hedonistas puritanos sem exceção - finalmente estão em condições de enfrentar o sexo oposto - as mulheres - numa pequena pista de dança retangular no jardim do 17o andar. Do 20o ao 35o andar, o Clube oferece apenas quartos. [...] No Downtown Atheltic Club, cada “planta” é uma composição abstrata de atividades que define, em cada uma das plataformas sintéticas, uma determinada “atuação”, que, por sua vez, é apenas um fragmento do espetáculo maior da metrópole.

23. KOOLHAAS, Rem; BOTTMANN, Denise. Texto citado, p.184.


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24. KOOLHAAS, Rem; BOTTMANN, Denise. Texto citado, p.185-187. 25. MONEO, José Rafael; CODDOU, Flávio. Texto citado. p.284. 26. MONEO, José Rafael; CODDOU, Flávio. Texto citado. p.285. 27. MONEO, José Rafael; CODDOU, Flávio. Texto citado. p.285. 28. MONEO, José Rafael; CODDOU, Flávio. Texto citado. p.287. 29. R. Koolhaas; B. Mau, B. S,M,L,XL. Nova York: The Monacelli Press, 1995, p.199. apud MONEO, José Rafael; CODDOU, Flávio. Texto citado, p.289.

Numa coreografia abstrata, os atletas do edifício sobem e descem por seus 38 “cenários” - numa sequência tão aleatória que apenas um ascensorista é capaz de executá-la - , cada pavimento equipado com elementos tecnopsíquicos para a remodelação pessoal dos homens. Tal arquitetura é uma forma aleatória de colocar a própria vida “em plantas”: na fantástica justaposição de suas atividades, cada pavimento do clube é o episódio independente de uma trama infinitamente imprevisível que glorifica a total rendição à instabilidade definitiva da vida na metrópole. [...] O clube anuncia a segregação iminente da humanidade em duas tribos: a primeira, dos metropolitanistas - literais self-made men-, que usaram todo o potencial do aparato de modernidade para atingir níveis únicos de perfeição, e a segunda, do resto da espécie humana comum.24 Na interpretação de Moneo, é a cultura de massa de Nova York que irá interessar a Koolhaas. Para ele, explorar a cultura de massa na cidade possibilitará encontrar as bases para produzir uma arquitetura coerente com a realidade.25 Koolhas irá entender o trabalho dos construtivistas como utópico, que buscou soluções em metas demasiadamente estabelecidas. Em oposição, os americanos aceitaram a cultura de massas e Manhattan “transformou a fraqueza em virtude”. 26 Assim, o arquiteto considera que seu trabalho ainda que esteja comprometido com a força da modernização, não será utópico por aceitar essa cultura das forças que modelam o mundo moderno: a tecnologia e a economia, e que elas se articulem com as ideias do projeto.27 A sua vontade de se conectar com a cultura de massa, uma cultura que constrói a cidade pela lógica do lucro, como resultado de intervenções onde carece o desejo estético da forma, transparece na importância que ele da ao conceito de densidade e à ideia da cultura de congestão que estão colocadas em Nova York. “A congestão e a densidade são como valores em si com os quais os arquitetos podem e devem trabalhar”. 28 Assim, em seus projetos Koolhaas entende como essencial “gerar densidade, explorar a proximidade, provocar tensão, maximizar a fricção, organizar os espaços intersticiais, promover os filtros, vigorar a identidade e estimular o impreciso”. 29


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XI. Downtown Athletic Club. Arquitetos Starrett & Van Vleck, 1931.


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Memória A área de estudo é o atual Largo da Memória e suas imediações, no distrito da Sé, São Paulo, e compreende desde a Rua Coronel Xavier de Toledo até o Terminal Bandeira. Buscando entender as dinâmicas que ocorrem no entorno, a aproximação ao território tem como objetivo alcançar uma visão mais próxima do local real e do seu cotidiano, inserido no centro histórico da maior metrópole nacional. I. Desenho aquarelado de Daniel Pedro Muller, engenheiro militar. Planta da Praça do Chafariz, localizada no Piques,1814.

O lugar passou a ser conhecido como Largo da Memória no começo do século XIX, e além de ponto de encontro e socialização dos moradores, era passagem obrigatória para a entrada de São Paulo, das tropas de burros vindas do interior. “Ao longo do século XIX, o Piques firmouse como um ponto dos mais movimentados de São Paulo, para onde convergiam todos os caminhos”. 1 O alargamento e encontro da Rua da Palha (atual Rua 7 de Abril) e da Estrada do Piques (atual Rua da Consolação) formavam o largo, que devido a sua localização estratégica de porta de entrada do núcleo urbano, em 1814 recebeu um chafariz e o primeiro monumento da cidade, “A Pirâmide do Piques”: um obelisco “à memória do zelo do bem público”. 2 Ali os viajantes e seus burros de carga paravam para descansar e se refrescar, além dos moradores que iam em busca da água potável do chafariz, configurando um espaço já considerado urbano e público, onde diferentes pessoas poderiam se encontrar e conviver.

1. TOLEDO, Benedito Lima de. Anhangabaú. São Paulo: Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, 1989, p.30. 2. TOLEDO, Benedito Lima de. Texto citado, p.30.


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II. Aquarela de Miguel Dutra, 1847. “Pirâmide e Xafaris do Pique”.

Era ali de fato o ponto mais comercial de São Paulo, pela concentração de grandes casas de negócios em grosso, girando com vultosos capitais. Daquele ponto irradiavam-se tôdas principais Estradas para o Interior e exterior da Província, com ligação a outras vizinhas [...] Pode-se, por isso, fazer idéia do intenso movimento de tropas que, diariamente, ali chegavam e dali partiam em tão diversas direções, transportando mercadorias de tôda espécie.3 Com a chegada da estrada de ferro e a substituição do transporte de mercadorias de burro pelo o transporte ferroviário, o papel de “porta de entrada” transferiu-se para a Estação da Luz, construída em 1901, e o Largo acabou por perder grande parte de sua importância.

3. Everardo Vallim Pereira de Sousa. apud TOLEDO, Texto citado, p.48. 4. BUCCI, Angelo. Anhangabaú, o Chá e a Metrópole. Dissertação de mestrado, São Paulo FAUUSP 1998, p.13.

A construção do Viaduto do Chá, em 1892, promoveu a ligação da cidade antiga - o “Triângulo” histórico entre o Largo São Francisco, o Largo São Bento e a Praça da Sé - à “Cidade Nova”, do outro lado do Vale do Anhangabaú, onde também se encontrava o Largo da Memória. Para Bucci,4 o Vale que antes servia de proteção da cidade histórica, agora se transformara em obstáculo que devia ser transposto em nível pelo novo viaduto. A construção do Teatro Municipal em 1903 e o alargamento da Rua Libero Badaró foram também iniciativas para a ampliação da cidade à oeste. A partir de então, segundo Benedito


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III. Ladeira do Piques, 1862. Vista para o paredão da atual rua Col. Xavier de Toledo.

IV. Ladeira do Piques, 1862. Vista para o triângulo histórico. Ao fundo é possível identificar o Convento de São Francisco.


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5. TOLEDO, Benedito Lima de. Texto citado, p.63. 6. TOLEDO, Benedita Lima de. Texto citado, p.65.

V. Mapa da cidade de São Paulo em 1810 pelo engenheiro Rufino José Felizardo da Costa. Pode-se observar a Igreja da Sé, o Mosteiro São Bento e o Convento São Francisco, que formam o triângulo histórico. Cruzando o Ribeirão do Anhangabaú, a Ponte do Lorena, a Ladeira do Piques e a Rua da Consolação que levava ao interior.

Lima de Toledo, “a “Cidade” compreendia, portanto, dois núcleos separados por um vale que, surpreendentemente, ainda mantinha seu caráter rural”. 5 Por volta de 1910 começam a surgir iniciativas para remodelação dessa área central, que incluía a área intocada do Vale, e aflora a preocupação com os espaços públicos e áreas livres para uso da população, influenciada principalmente pelo “Relatório Bouvard” - redigido pelo arquiteto francês Joseph Antoine Bouvard - após estudos sobre a cidade na época, e que recomendava: “Em todas estas disposições cumpre não esquecer a conservação e criação de espaços livres, de centros de vegetação e reservatórios de ar. Mais a população aumentará, maior será a densidade de aglomeração, mais crescerá o número de praças públicas, de squares, de jardins de parques”. 6 E assim, a vontade do arquiteto francês de que o Anhangabaú mantivesse sua função de parque, no papel de “reservatório de ar” para a população, foi levada à frente e o parque transformou-se em ícone na cidade.


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VI. Vista da cidade de São Paulo, provavelmente do Paredão do Piques. Desenho de Landseer, 1826.

VII. Na página seguinte abaixo Viaduto do Chá e o Parque Anhangabaú.


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VIII. Viaduto do Chá e o Teatro Municipal.

IX. Inauguração do Viaduto do Chá em 1907.


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X. Ladeira da Memória, começo do século XX, ainda cercada por grades.


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7. TOLEDO, Benedito Lima de. Texto citado, p.114.

Quanto ao Largo da Memória, é em 1919 que recebe sua configuração atual, quando o arquiteto Victor Dubugras elabora um projeto de reforma em comemoração ao Centenário da Independência encomendado por Washington Luis, e adiciona ao Largo um novo chafariz, um pórtico com azulejos e uma grande escadaria em pedra.7 Sobre a obra, Benedito comenta: O Largo, um barranco resultante da articulação de ruas e caminhos, mantém seu caráter de ponto de confluência. As escadas são enfatizadas como cascatas, esparramando-se em todas as direções e recebem tratamento de caráter “art-nouveau”, podendo-se ver, em alguns pontos, a típica solução daquele estilo “coup de fouet”, ou ainda, o guarda-corpo das escadas, com seus blocos de granito ondeantes, cujo desenho apurado se molda à curva reversa das escadas. [...]

XI. Desenho do projeto de Victor Dubugras para o Largo da Memória, 1922.

Quanto ao valor arquitetônico, importa mais atentar-se à configuração do conjunto e sua hábil articulação com o espaço urbano, ao tratamento apurado e requintado dos materiais (principalmente tratando-se de obra pública), do que colocarse na cômoca posição convencional de rotular a obra com algum “néo”, mesmo porque, nos elementos arquitetônicos que caracterizam um “estilo”, o que vemos na verdade é uma reinterpretação.


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XII. Acima Conjunto do Largo da Memória com os casarios antigos ao fundo. 1922. XIII. Abaixo O obelisco e pórtico do Largo da Memória, ao fundo os edifícios da rua Col. Xavier de Toledo, 1922.


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XIV. Detalhes das escadarias e do efeito chamado “coup de fouet”.

8. TOLEDO, Benedito Lima de. Texto citado, p.114.

Importa atentar para a fluência das escadas e às alternativas que estas oferecem aos pedestres. Todos ali encontram seu passo; os mais apressados, pelo maior declive, os mais tranqüilos ou menos dispostos, pelas transversais, havendo, ainda, alguns patamares para retomada de fôlego. As árvores, vigorosas, fazem moldura ao conjunto, deixando desobstruída a vista para o Vale. Com essas obras, o Largo da Memória integrou-se ao Parque Anhangabaú. A Ladeira da Memória passou a ser rua exclusiva para pedestres, uma das primeiras do gênero na Cidade. Seu sentido escultural, que valorizou grandemente o Obelisco, sua hábil articulação com o espaço urbano, numa região de topografia difícil, e a alta qualidade de sua execução colocam o Largo da Memória como a Praça mais bem projetada da Cidade.8


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XV. Na página anterior Propaganda da inauguração do Largo da Memória. XVI. Nesta página acima Mapa Sara-Brasil, 1930. Anterior às reformas de Prestes Maia. XVII. Nesta página abaixo O Largo da Memória em 1920, logo após a reforma de Victor Dubugras.


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9. TOLEDO, Texto citado, p. 197. 10. “Redes de Mobilidade e Urbanismo em São Paulo: das radiais/perimetrais do Plano de Avenidas à malha direcional PUB”, Renato Luiz Sobral Anelli disponível em <http:// www.vitruvius.com.br/revistas/ read/arquitextos/07.082/259> Acesso em setembro de 2017.

Na década de trinta, o prefeito Prestes Maia lança um projeto de implantação de avenidas nos fundos de vale.9 A estratégia de um sistema de radiais e perimetrais a ser implantada desde o centro em uma lógica de expansão horizontal, deixava clara a aproximação à lógica rodoviarista americana do culto ao automóvel como símbolo de modernidade. Assim, o projeto de linhas de metrô da companhia Light foi recusado e favorecido o Plano de Avenidas de Prestes Maia, “revelando seu caráter de diretriz econômica e política que disputava a hegemonia no país.”10 Ainda que na idealização do plano pedestres circulassem em harmonia com os automóveis pelas grandes avenidas, o crescimento do fluxo de veículos sobrecarregou as novas avenidas e gerou conflitos que tornaram impossível concretizar a convivência entre carros e pessoas. O “Sistema Y”, contido no Plano de Avenidas, pretendia implementar três grandes avenidas no centro de dimensões impressionantes que causariam diversas demolições e cicatrizariam o território colocando a lógica rodoviarista acima da fruição urbana que era característica da região do Parque Anhangabaú.

XVIII. Planta Geral dos Melhoramentos Centrais, publicada por Prestes Maia no livro “Os Melhoramentos de São Paulo”, de 1945.


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XIX. Cartão postal da Avenida Nove de Julho na década de 40.

XX. O Novo viaduto do chá e o parque Anhangabaú usado como estacionamento. À esquerda a Prefeitura de São Paulo e à direita o prédio da companhia Light, hoje conhecido como Shopping Light.


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XXI. Acima Construção da Avenida 23 de maio, 1940. Ao fundo o Edifício Brasilar. XXII. Abaixo à esquerda Cruzamento que hoje ocupa o Terminal Bandeira, década de 50. XXIII. Abaixo à direita Avenida Nove de Julho, década de 50.


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O sistema tinha como complementares à Avenida Anhangabaú Inferior (atual Avenida Tiradentes), que ligava o Parque Anhangabaú à Ponte Grande, a Avenida Nove de Julho e a Avenida Itororó (atual Avenida 23 de Maio), e a convergência se dava justamente no Parque, mais precisamente no largo do Piques (depois conhecido como Praça da Bandeira, hoje ocupada pelo Terminal Bandeira), onde já se previu também implantar o Paço Municipal. Assim, o Parque perde toda a sua porção sul dando lugar ao entroncamento Y de avenidas, que acaba por criar uma barreira de avenidas entre o Largo da Memória e o Largo São Francisco, que historicamente constituiram o eixo que vinha do interior (pela Rua da Consolação) à cidade antiga, pela Ponte Lorena. O “Concurso público nacional para elaboração de plano de reurbanização do Vale do Anhangabaú” lançado pela EMURB em 1981 teve como vencedores Jorge Wilheim, Jamil Kfouri e Rosa Kliass, autores do projeto construído entre 1986 e 1992, e que deu a

XXIV. Praça das Bandeiras utilizada como estacionamento, 1960.


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11. BUCCI, Angelo. Texto citado, p.98. 12. BUCCI, Angelo. Texto citado, p.101.

XXV. Perspectiva geral do Vale com Edifício da Light à esquerda e Teatro Municipal ao fundo.

configuração atual do Vale. Após identificar diversos problemas do parque Anhangabaú na época, a principal preocupação da equipe foi “o empobrecimento funcional e desperdício do Vale como espaço urbano desfrutável”. Sua principal diretriz para isso foi a cobertura parcial da Avenida Prestes Maia entre o Viaduto Santa Ifigência e o Viaduto do Chá, de modo a eliminar o conflito entre carros e pedestres.11 Propôs também a construção de um novo terminal de ônibus na Praça da Bandeira - que na época já era ocupada por um estacionamento - além de passarelas peatonais que venciam em altura os entroncamentos das avenidas e davam acesso ao terminal. Para Angelo Bucci, o principal motivo pelo qual o projeto construído ficou reduzido a um espaço de desinteresse e estranheza é a falta de relação entre as dimensões local e metropolitana do Anhangabaú.12 Para o autor, no projeto de Wilheim essas duas dimensões se anulam, criando uma escala de desconforto para pedestres e automóveis. A laje criada com o objetivo de aumentar o espaço de fruição peatonal, “rouba” e esconde a percepção dessas duas dimensões, uma para com a outra: da metrópole à percepção do Anhangabaú; e inversamente também, do Anhangabaú à dimensão metropolitana dada pelo Plano de Avenidas de Prestes Maia. Talvez o maior erro foi acreditar que a melhor maneira de lidar com o conflito carros-pedestres, metropolitano-local era acabar com essa relação, escondê-la até mesmo do nível do olhar, como se não pudessem conviver em harmonia.


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XXVI. Perspectiva do Vale do Anhganabaú. XXVII. Projeto de implantação do novo Parque Anhangabaú. Jorge Wilheim, Jamil Kfouri e Rosa Kliass, 1986.


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XXVIII. Praça das Bandeiras, década de 50.

XXIX. Abaixo Praça das Bandeiras já transformada em Terminal de ônibus, 1977.


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XXX. Acima Anúncio da inauguração das passarelas do Terminal Bandeira. Publicado no Estado de S. Paulo de 9 de julho de 1988. XXXI. Abaixo Passarelas recém inauguradas, 1988.


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Outro fato relevante para a configuração atual do Largo da Memória foi a construção da linha 3 vermelha do metrô, de ligação nordeste noroeste, que iniciou-se em 1972 e hoje conecta a região da Barra Funda à Itaquera. Em 1983 foi inaugurada a estação Anhangabaú, composta de dois mezaninos de distribuição, com entradas pela Rua Coronel Xavier de Toledo e pela Rua Formosa, ladeando quase que por completo a escadaria de Dubugras. Estima-se que chegue a receber 20.000 passageiros por hora, número que, combinado aos passageiros que transitam pelo Terminal Bandeira (que distribui transporte rodoviário coletivo pelas três avenidas do sistema Y), acaba por configurar o Largo da Memória como um lugar de intenso movimento. Os dois pontos nodais de transporte a nível metropolitano transformam o largo em um espaço de passagem, uma passagem rápida, apressada, desconectada do espaço. Um café ou uma loja prendem a atenção de quem caminha, mas isso não interfere na principal característica da área: o trânsito apressado e cansado. Embora o Largo não tenha perdido seu caráter público e de conexão na cidade, ele se encontra hoje em situação de abandono e é considerado um lugar perigoso, assim como outras escadarias urbanas. Podese imaginar que isso seja decorrência dessa falta de uso público de

XXXII. Terminal Bandeira atualmente.


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permanência, falta de parar e atentar-se na qualidade do espaço. É curioso que um lugar com tanta história e importância na formação do centro de São Paulo seja hoje esquecido como espaço construído e passível de fruição urbana. Assim surge o interesse em devolver o Largo às pessoas, como um lugar rico de experiências e possibilidades, onde é possível conviver e vivenciar a metrópole em diferentes níveis. O terreno em que se pretende intervir está justamente no ladeirão peatonal que constitui o Largo da Memória, oposto ao metrô, inscrito entre três edifícios existentes (um de uso misto e dois habitacionais) e com três acessos (Largo da Memória, Rua João Adolfo, e Rua Alfredo Gagliotti). No estudo preliminar do território foi dada particular atenção à diferença de cotas, além da presença de diferentes fluxos já existentes entre os acessos, como Largo - Rua Alfredo Gagliotti e Largo - passarela que conecta ao Terminal Bandeira (parte do projeto de Wilheim). Iniciaram-se assim as análises da área e das dinâmicas existentes, a partir de um resgate histórico que auxiliou a compreensão do simbolismo esquecido intrínseco ao lugar. Diversas visitas a campo e conversas com frequentadores do Largo permitiram um entendimento do lugar como suporte da vida cotidiana.

XXXIII. Largo da Memória atualmente.


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XXXIV. Vista aérea do Terminal Bandeira com o Vale do Anhangabaú ao fundo, 1996.


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XXXV. Vista aérea do Anhangabaú com as avenidas Nove de Julho e 23 de Maio ao fundo, 1996.


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O jogo do caminhar


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1. BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna, original de 1863, publicado no jornal Le Figaro. apud JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2014, p.48. 2. CARERI, Francesco (2002). Walkscapes. O caminhar como prática estética. São Paulo: Gustavo Gili, 2013, p.32. 3. CONSTANT. “Un’altra città per un’altra vita”, In Internationale Situationniste, n.3, p.37, 1959. apud CARERI, Francisco. Texto citado, p.98. 4. BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império. In: Obras Escolhidas. Volume III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. apud JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2014, p. 55. 5. JACQUES, Paola Berenstein. Texto citado, p.54. 6. JACQUES, Paola Berenstein. Texto citado, p.55.

A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente. O observador é um príncipe que frui por toda parte o fato de estar incógnito.1 Hoje, o caminhar pela cidade para compreendê-la é redescoberto na arquitetura e no urbanismo como um meio para entender as dinâmicas urbanas com mais sensibilidade. O livro Walkscapes de Francesco Careri lança essa teoria combinando história e crítica; “o caminhar como prática estética”, afirma o retorno desse caminhar não só como um “instrumento cognitivo e projetual”, 2 mas também como prática essencial para construir uma nova noção de direito à cidade. Devia-se “passar do conceito de circulação como suplemento do trabalho e como distribuição nas diversas zonas funcionais da cidade à circulação como prazer e como aventura”, era preciso experimentar a cidade como um território lúdico a ser utilizado para a circulação dos homens através de uma vida autêntica.3 Baudelaire é o primeiro a recriar a figura do flâneur, na Paris do século XVIII, como personagem que tem como ocupação o caminhar pela cidade. Descrito por Benjamin como o homem da cidade moderna, o flâneur experimenta em suas flanâncias o caminhar lento: “Ocioso, caminha com uma personalidade, protestando assim contra a divisão de trabalho que transforma as pessoas em especialistas.”4 Não é coincidência que Baudelaire, crítico quanto às reformas de Haussmann em Paris - segundo Paola5, antecedente à espetacularização das cidades que os situacionistas irão criticar - coloca o flâneur em uma posição bastante ambígua “fruto da modernidade e da grande cidade; ao mesmo tempo que faz parte do contexto urbano da modernização, faz uma crítica contundente à efetivação prática das grandes reformas urbanas”, 6 sendo o primeiro personagem moderno a realizar caminhadas pela cidade em transformação com uma potente postura crítica.


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I. Abre Galeria em Sรฃo Paulo. II. Nesta pรกgina Ottawa, Canada. 2011.


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7. CARERI, Francesco. Texto citado, p.75. 8. CARERI, Francesco. Texto citado, p.78. 9. CARERI, Francesco. Texto citado, p.51.

Conforme Careri, é o movimento Dada que retoma o caminhar, leva a ação estética à realidade cotidiana da cidade e retoma a história do caminhar, a história dos primeiros homens nômades que mapearam o território em suas incessantes migrações. É com uma excursão ao jardim da igreja de Saint-Julien-le-Pauvre, em 1921, que os membros do movimento realizam o que Careri chama de um ready-made urbano, “a primeira operação simbólica que atribuiu valor estético a um espaço vazio e não a um objeto”. 7 Tal lugar fora escolhido justamente por ser um espaço familiar - no Quartier Latin de Paris - mas ao mesmo tempo desconhecido e banal, sem aparente importância na cidade, o que reafirmava o mote daquela exploração de realidades escondidas. O manifesto dadá assumia o desinteresse pela cidade do futuro, e atuava em prol do habitar a cidade banal, um espaço que “apresentase como um sujeito ativo e pulsante, um produtor autônomo de afetos e de relações. É um organismo vivente, com um caráter próprio, um interlocutor que tem repentes de humor e que pode ser frequentado para instaurar um intercâmbio recíproco”. 8 O caminhar, mesmo não sendo a construção física de um espaço, implica uma transformação do lugar e dos seus significados. A presença física do homem num espaço não mapeado - e o variar das percepções que daí ele recebe ao atravessá-lo - é uma forma de transformação da paisagem que, embora não deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o significado do espaço e, consequentemente, o espaço em si, transformando-o em lugar. O caminhar produz lugares.9

III. Nesta página Excursão Dadá a Saint-Julienle-Pauvre, Paris. 1921. IV. Na página seguinte Convite para a primeira edição das “Excursões e visitas Dada”. 14 de abril de 1921.


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10. JACQUES, Paola Berenstein. “Apresentação”. In: Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p.13. 11. FRANCO, La Cecla. Perdersi, l’uomo senza ambiente. Roma-Bari, Laterza, 1988. apud CARERI, Francesco.Texto citado, p.48. 12. CARERI, Francesco (2002). Walkscapes. O caminhar como prática estética. São Paulo: Gustavo Gili, 2013, p.85. 13. ARGAN, G. C. L’arte moderna 1770-1970. Firenze, Sansoni, 1970, p.431. apud CARERI, Texto citado, 2013, p.104.

É com a Internacional Situacionista, - grupo de artistas, pensadores e ativistas - no final dos anos 50, que o debate do caminhar recebe um novo termo e um novo significado: a deriva. Esta difere-se das experimentações do início do século pois trata-se de uma atividade lúdica, coletiva e investigativa, que registra suas experimentações espontâneas da cidade na forma de mapas psicogeográficos. A luta dos situacionistas era principalmente contra a cultura espetacular, que associada com a sua preocupação em propor uma arte integral ligada à vida, revelou o meio urbano como palco de sua investigação. Acreditavam que o único modo de combater a espetacularização era a participação ativa dos indivíduos, em uma corrente que ficou conhecida nos anos 60 como participacionista.10 Perder-se significa que entre nós e o espaço não existe somente uma relação de domínio, de controle por parte do sujeito, mas também a possibilidade de o espaço nos dominar.11 Os situacionistas rejeitavam as ideias de que a vida real era alienante e tediosa e que a imaginação levaria a uma interpretação fascinante da realidade; com as derivas e ações na cidade, era a própria realidade que deveria tornar-se fascinante aos nossos olhos - assim como a cidade banal dos Dada. Suas experimentações pretendiam transformar a realidade cotidiana e não criar fantasias, “era preciso agir, e não sonhar.”12 A primeira e única experiência arquitetônica que surgiu das discussões situacionistas, a New Babylon de Constant, consistia em uma cidade construída constantemente por uma sociedade nômade. Desvinculada das bases sedentárias da arquitetura funcionalista, a paisagem seria artificial, traduzindo a superação da arquitetura (assim como o dadá pretendia ser a superação da arte). A função do arquiteto desapareceria pois as cidades seriam construídas pelos próprios cidadãos neste jogo lúdico-participativo do caminhar nômade, que terminaria por unir o espaço construído ao espaço vazio em uma megaestrutura indivisível e labiríntica. A proposta foi considerada absurda por muitos, “projetar uma cidade para um povo nômade que nega a cidade é um contrassenso”, 13 principalmente no contexto situacionista, já que formalizar algo que deveria ser o resultado de uma construção coletiva não planejada seria o congelamento do próprio discurso.


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V. Acima Maquetes de estudo da Nova Babilônica, Constant Nieuwenhuys, 1956. VI. Abaixo Litografia de Constant da Nova Babilônia.


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14. JACQUES, Paola Berenstein. “Apresentação”. In: Texto citado, 2003, p.20. 15. JACQUES, Paola Berenstein. “Apresentação”. In: Texto citado, 2003, p.23.

VII. The Naked City, Guy Debord. 1957. “Ilustração da hipótese das placas rotativas em psicogeografia.”

O que afirma Paola Berenstein é que de fato não existiu um modelo de espaço urbano situacionista, mas sim uma forma situacionista de apropriação e experimentação da cidade.14 A autora propõe que a Nova Babilônia de Constant seja assimilada como uma reflexão crítica e utópica, para que então possamos enxergá-la na maneira em que sempre existiu, nas brechas da cidade construída, nos interstícios, nas suas informalidades escondidas, e que o jogo do caminhar que Careri propõe “seria um jogo do tipo detetive em busca dessas situações lúdicas já existentes nas cidades”. 15 Quanto aos mapas psicogeográficos, The Naked City talvez seja a melhor representação resultante de uma deriva, e também por isso tornou-se símbolo das ideias situacionistas. Consiste em uma cartografia composta de vários recortes do mapa de Paris - Debord os chamava de unidades de ambiência - que flutuam no vazio, em uma composição que não corresponde à sua localização real. Como


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explicado no verso do mapa, as setas vermelhas indicam as possíveis ligações entre essas unidades de ambiência: “the spontaneous turns of direction taken by a subject moving through these surrounding in disregard of the useful connections that ordinary govern his conduct”. 16 A razão pela qual estes “pedaços de cidade” muitas vezes apareçam flutuando nas cartografias situacionistas e tenham diversas maneiras de se conectar seja talvez pelo fato de que a noção unitária de cidade não é a mesma para todos, uma vez que cada indivíduo conecta os fragmentos de sua vivência urbana de maneira distinta. É possível imaginar que cada pessoa tem um mapa distinto em sua cabeça, definido pelos lugares que mais frequenta e os caminhos que tece entre eles. A cada um desses anônimos, aparentemente iguais, circulando pelos mesmos espaços, corresponde uma cidade íntima, particular. São Paulo são 12 milhões de cidades, 12 milhões de mapas sentimentais recortados pelas pequenas histórias de vida de seus habitantes. Cada homem comum tem a cidade que seus passos percorreram e que sua imaginação inventou. Cada homem comum possui secretamente, na imensidão esmagadora da cidade, os nichos que acolhem suas lembranças: memórias do vivido, fragmentos da precária identidade que o homem urbano consegue constituir.17 Ao considerar que essas unidades-ilha podem também mover-se, aparecer e desaparecer, aumentar e diminuir, rotacionar-se nesse líquido que corresponde às partes da cidade pelas quais nunca passamos ou não temos afinidade, as quais Careri chama de “amnésias urbanas”, faz-se clara a referência à metáforas marítimas. O próprio termo deriva é relativo ao “deixar-se ir” pelas águas, e Careri, ao descrever The Naked City, comenta: “Os bairros descontextualizados são continentes à deriva dentro de um espaço líquido, são terrenos passionais que vagam atraindo-se e rechaçando-se reciprocamente por meio do contínuo produzir de tensões afetivas desorientadas.”18 Usar a metáfora marina para discutir a metrópole é a estratégia também de Maria Lúcia Montes, no Pósfacio de “Na Metrópole”. Para a autora, a especificidade das práticas de sociabilidade de diferentes grupos na cidade, aparentemente sem nenhum elemento que os articule, é análogo a um arquipélago de ilhas, onde em cada ilha

16. JACQUES, Paola Berenstein. “Introdução”. In: CARERI, Texto citado, 2013, p.13. Tradução livre “As espontâneas mudanças de direção tomadas por um sujeito se movendo através desses arredores, desconsiderando as conexões úteis que habitualmente governariam a sua conduta”. 17. KEHL, Maria Rita. Olhar no olho do outro. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 07, página 22 - 31, 2015. 18. CARERI, Francesco. Texto citado, p.92.


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19. MONTES, Maria Lúcia. “Pósfacio. Metrópole da Diversidade e da Fragmentação, cidade-síntese de tantas contradições” In: MAGNANI, José Guilherme e TORRES, Lílian de Lucca (Orgs.). Na metrópole: textos de antropologia urbana. São Paulo: Edusp, 2000, p. 303. 20. MONTES, Maria Lúcia. Texto citado, p.310. 21. CARERI, Francesco. Texto citado, p.171. 22. MONTES, Maria Lúcia. Texto citado, p.315.

determinadas pessoas se reconhecem pelos valores e experiências em comum, pela “forma semelhante de ver, sentir e pensar o mundo”, e que ao identificar-se como tal, se diferenciam das outras ilhas. Mas a autora defende que essa cidade-arquipélago não pode ser entendida como um território de histórias descontínuas, a experiência dos indivíduos na cidade não se dá por um percurso entre esses fragmentos desconexos. “Aos poucos, a totalidade caótica de sua diversidade começa a revelar a lógica que a ordena, permitindo-nos recuperá-la, como totalidade compreendida. De fato, nada que se entenda de cada uma dessas ilhas encontradas no percurso da cidade pode ser visto como se subsistisse por si só, flutuante, sem relação com o conjunto-arquipélago de que faz parte. Tal como as ilhas reais, que emergem do oceano como indícios, a assinalar a plataforma continental que as sustenta, também os pedaços da cidade deixam entrever uma ordem que a ela subjaz, organizando seus tempos e seus espaços”. 19 Assim, as redes de sociabilidade que atribuem significado ao espaço urbano, caracterizam também a relação de um grupo-ilha com o espaço físico e social da cidade e permitem aos indivíduos um ‘estar na cidade’ “através de um “nós” por cuja construção ele é responsável, seu pertencimento à cidade”. 20 Fica evidente a importância da existência dessas ilhas - a coexistência de diferenças - pois quando vistas no contexto urbano, dão novo sentido ao ser metropolitano, que cria uma dimensão de identidade no turbilhão de situações da cidade. O que me atrai na metáfora marina da deriva é que o terreno sobre o qual ocorre o movimento é um mar incerto, que muda continuamente com base na mutação dos ventos, das correntes, dos nossos estados de ânimo, dos encontros que se dão.21 A partir do entendimento da constante construção e desconstrução dos contornos da cidade, ao longo da viagem pelo arquipélago de Maria Lúcia Montes, compreendemos que por mais distantes de nós que possam parecer os habitantes de uma outra ilha, pertencemos todos a mesma realidade da metrópole da diversidade. Ao fim da viagem, aprendemos que por meio dos diferentes pontos de vista, a cidade é decifrada de acordo com suas práticas sociais, e coloca à vista as questões da vida na metrópole. Para a autora, esse percurso deixa de ser um vaguear entre ilhas e passa a ser indispensável à ação, o que foi apreendido possibilita intervir na realidade.22


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VIII. John Virtue, Norfolk No. 89. 2010.

Na atual crise de noção de cidade é coerente retomar a crítica urbana situacionista - que combatia o início dos movimentos de espetacularização que se estendem até hoje -, atualizá-la para o contexto específico das metrópoles e questionar como devem ocorrer os processos de transformação das cidades que parecem estar cada vez mais burocratizados e distantes do indivíduo. Hoje, em termos de “construção” de cidade, prevalecem ideias preservacionistas de museificação, transformando centros urbanos em “espetáculos estáticos”, ou a obsessão por construir o novo, retomando princípios modernistas tão inadequados como a Tábula Rasa ou gerando espaços caóticos como junkspaces e cidades genéricas.23 A cidade tornou-se campo de batalha da especulação imobiliária e não se sabe como reverter as consequências que isso trouxe para a qualidade dos espaços urbanos. Além disso, o choque e a confusão das dimensões privadas e públicas cria um desconforto que combinado com o universo das redes sociais resulta em um completo isolamento virtual do indivíduo, que evita situações de encontro e conflito urbano e preocupa-se em defender suas posições apenas virtualmente. Aos poucos, a relação entre o homem e a cidade foi se fragilizando, em alguns casos resultando em uma relação de negação e de abandono.

23. JACQUES, Paola Berenstein. “Apresentação”. In: Texto citado, p.14.


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24. JACQUES, Paola Berenstein. “Apresentação”. In: Texto citado, p.15. 25. JACQUES, Paola Berenstein. “Apresentação”. In: Texto citado, p.19.

IX. Avenida Paulista, São Paulo. 2016.

Diante da completa perda da paixão pela vida cotidiana e da falta de assimilação desta no debate urbano contemporâneo, a importância do pensamento situacionista hoje está principalmente em sua condição crítica da problemática urbana. Sua crítica ao urbanismo e ao planejamento urbano em geral (principalmente o moderno) tomou forma na teoria do urbanismo unitário (UU). Este consistia exatamente em considerar o meio urbano como terreno existente, onde as transformações se dariam por meio das experiências cotidianas, em uma construção coletiva da cidade, como em um jogo onde os participantes são os habitantes.24 Enquanto os modernos acreditaram, num determinado momento, que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a sociedade, os situacionistas estavam convictos de que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo. Enquanto os modernos chegaram a achar, como Le Corbusier, que a arquitetura poderia evitar a revolução, [...] os situacionistas, ao contrário, queriam provocar a revolução e pretendiam usar a arquitetura e o ambiente urbano em geral para induzir à participação, para contribuir nessa revolução da vida cotidiana contra a alienação e a passividade da sociedade.25


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Ainda que pareça um pouco radical, a rejeição da profissão do planejador urbano por parte dos situacionistas se justificava pela sua convicção de que a forma das cidades depende de seus habitantes, e por isso sua construção estaria inserida na vida cotidiana.26 Para alcançar essa condição deveria ocorrer, segundo a tese situacionista, uma transformação revolucionária no cotidiano - na época vinculado à alienação - que envolveria a transformação do tempo livre do dia a dia em lazer ativo, criativo e produtivo.27 Segundo Careri, os situacionistas pretendiam substituir os desejos impostos pela cultura dominante pelos desejos das pessoas, já adormecidos e esquecidos, e a partir desse momento o “uso do tempo e o uso do espaço escapariam às regras do sistema e chegariam a autoconstruir novos espaços de liberdade”. 28 Revisitar o pensamento crítico urbano situacionista, para Paola Berenstein, poderia ser “um convite à reflexão, à auto-crítica e ao debate. Um apelo contra a espetacularização das cidades e um manifesto pela participação efetiva da população nas decisões urbanas”.29 Em um ambiente de inquietação como o atual, e principalmente de embate entre tendências conservadoras e movimentos progressistas, parece inevitável que se escolha em que linhas de pensamento irão atuar não apenas os urbanistas, mas todos os indivíduos urbanos. A ideia dos situacionistas de que a uma revolução no cotidiano da cidade seria responsável por libertar os indivíduos das tendências alientantes impostas pelo mercado é análoga à interpretação de Magnani, sobre o lazer como ferramenta para construção de espaços urbanos de mais qualidade. Segundo Magnani, o lazer na sociedade moderna surge em oposição ao tempo de trabalho, consistindo basicamente no conjunto de atividades que preenchem o tempo livre.30 Para além disso, o autor irá enxergar o conceito de lazer vinculado ao modo de vida e às tradições da população, muito além da mera ocupação do tempo livre, o lazer está ligado à ideia do cotidiano, aos espaços e relações de sociabilidade. Sua primeira linha de pesquisa relacionada às formas de lazer compreende as relações de sociabilidade no âmbito da periferia de São Paulo, a partir das quais o autor define o conceito de pedaço.31 Ao deslocar seu objeto de pesquisa para o centro da cidade, Magnani afirma que as práticas sociais seguem sendo as responsáveis por dar significado aos espaços, e que no caso do centro essas relações não se dão mais por vínculos familiares ou de bairro, estando agora relacionadas aos lugares de encontro, onde

26. JACQUES, Paola Berenstein. “Apresentação”. In: Texto citado, p.19. 27. JACQUES, Paola Berenstein. “Apresentação”. In: Texto citado, p.21. 28. CARERI, Francesco. Texto citado, p.98. 29. JACQUES, Paola Berenstein. “Apresentação”. In: Texto citado, p.30. 30. MAGNANI, José Guilherme. Quando o campo é a cidade: fazendo antropologia na metrópole. (1996) In: MAGNANI, José Guilherme e TORRES, Lílian de Lucca (Orgs.). Na metrópole: textos de antropologia urbana. São Paulo: Edusp, 2000, p.31. 31. Ver mais em MAGNANI, José Guilherme Cantor. . Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São Paulo: Hucitec, 1998.


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32. MAGNANI, José Guilherme. Texto citado, p.31. 33. MONTES, Maria Lúcia. Texto citado, p. 305. 34. MAGNANI, José Guilherme. Texto citado, p.43. 35. Definição de E.B. Tylor na década de 90: “A cultura ou a civilização, entendida no seu sentido amplo etnográfico, é o conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, o costume e qualquer outra capacidade e hábito adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.” (1990:7) EB Tylor apud CANEVACCI, Massimo. Texto citado, p.34. 36. CANEVACCI, Massimo. Texto citado, p.35.

os frequentadores não se conhecem por vínculos do dia a dia, mas se reconhecem “enquanto portadores dos mesmos símbolos que remetem a gostos, orientações, valores, hábitos de consumo, modos de vida semelhantes.”32 É o que Magnani irá chamar de mancha, esse espaço que aglutina pessoas diferentes, multiplicando as relações possíveis em torno de equipamentos, edificações, vias, transformando-se em ponto de referência no espaço físico e imaginário. Na urdidura física do espaço da cidade aparentemente um dado, na fixidez seus acidentes, matéria de geografia, na verdade se entrelaça outra trama, tecida com os mais variados laços sociais relações de parentesco e vizinhança, práticas comuns de trabalho, vínculos religiosos, lealdades políticas, hábitos compartilhados de lazer para compor as extensas redes de sociabilidade que constituem, propriamente, a vida social.33 Assim como o arquipélago de ilhas de Maria Lúcia Montes, os pedaços e manchas pelos quais Magnani analisa o centro e a periferia não formam um aglomerado aleatório e excludente, as pessoas circulam entre eles, “fazem suas escolhas entre as várias alternativas - este ou aquele, este e aquele e depois aquele outro - de acordo com determinada lógica; mesmo quando se dirigem a seu pedaço habitual, no interior de determinada mancha, seguem caminhos que não são aleatórios”. 34 É no interior desses pedaços e manchas, por meio dos trajetos realizados no dia a dia, que ocorre o cotidiano das pessoas que vivem nas metrópoles. Em relação ao conceito de lazer de Magnani, o conceito antropológico de cultura35 abandona seu caráter globalizante e unitário, segundo Canevacci, sendo repensado “atravessado por fluxos contrastantes, confusos e desordenados, que fragmentam sua unidade em mil pedaços, não sendo nem sensato nem útil tentar reconstruir com eles aquele “conjunto unitário”. 36 Além de englobar os modos de pensar, agir e sentir de uma sociedade, agora a cultura passa a ser principalmente urbana: a arte, a educação, a intelectualidade, até mesmo a criminalidade é cultura no contexto urbano. Colocam-se, assim, como análogos e complementares os conceitos de cotidiano, lazer e cultura apresentados, ligados ao modo de vida das cidades, esses conceitos nos ajudam a compreender como se dão as relações de sociabilidade e como se constrói a imagem de uma sociedade urbana tão contrastante e diferente.


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É curioso que, dez anos após a primeira versão de Walkscapes, Careri adicione um prólogo à nova edição e coloca uma questão bastante desafiadora, que segundo o autor foi resultado de suas viagens pela América do Sul após a publicação do livro. Ele mesmo admite não saber caminhar na quadrícula colonial ou nas favelas, e mais essencialmente, sugere não ter considerado o medo que é enfrentado ao caminhar em algumas cidades, razão pela qual a prática pode não ser tão agradável e lúdica como seu livro apresenta. Essas cidades do medo são construídas prezando uma falsa segurança, a segurança dos muros e da exclusão social de Teresa Pires Caldeira.37 Jane Jacobs já havia argumentado nos anos 60: o que faz uma cidade segura é principalmente ter pessoas caminhando e habitando a rua, e Careri adiciona: “O único modo de ter uma cidade viva e democrática é poder caminhar sem suprimir os conflitos e as diferenças, poder caminhar para protestar e para reivindicar o próprio direito à cidade.”38 Medo da cidade, medo do espaço público, medo de infringir as regras, medo de apropriar-se do espaço, medo de ultrapassar barreiras muitas vezes inexistentes e medo dos outros cidadãos, quase sempre percebidos como inimigos potenciais.39

37. CALDEIRA, Teresa Pires Do Rio; MONTEIRO, Henrique. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2000. 38. CARERI, Francesco. Texto citado, p.170. 39. CARERI, Francesco. Texto citado, p.170.

X. Ruas de Havana, Cuba. 2013.


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XI. República, São Paulo. 2010.

XII. República, São Paulo. 2011.


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Para Paola, que na introdução para a nova versão de Walkscapes comenta o prólogo de Careri, este medo seria também o do encontro conflituoso com a alteridade radical urbana que o caminhar promove. Segundo a autora “os dissensos e conflitos urbanos não só são legítimos e necessários para a constituição da esfera pública e também dos espaços públicos, mas seria exatamente da permanência dessa tensão entre as diferenças não idealizadas nem pacificadas que dependeria a construção de uma cidade menos espetacular e mais lúdica e experimental”. 40 Dez anos após o lançamento de “Walkscapes. O caminhar como prática estética” Careri assume que gostaria de tratar o caminhar não mais apenas para perder-se, mas para encontrar com o Outro, sobre “a decisão de deter-se para construir um espaço de encontro entre diversos”. 41 O caminhar, o perder-se, o deambular, ou a deriva aparecem aqui como essenciais para encontrar o Outro na cidade, defrontar-se com ele e aceitá-lo como agente das situações urbanas. Este Outro aparece como agente transformador, principalmente relacionado à pluralidade, desde alguns dos escritos situacionistas, como em Formulaire pour un Urbanisme Nouveau de 1953, onde Gilles Ivain descreve uma “cidade mutante e continuamente diversificada pelos seus habitantes”. 42 Paola Berenstein comenta que, para o sociólogo Kracauer, até mesmo o flâneur de Baudelaire buscava o encontro com o Outro pois “era aquele que não se protegia psicologicamente; justo ao contrário, buscava o choque, buscava a experiência do choque com o Outro, com os vários outros anônimos, a embriaguez da multidão, a relação entre anonimato e alteridade que constitui o próprio espaço público metropolitano”. 43 A cidade é essencialmente diversa. É um convite ao ser diferente, e tem como consequência uma complexa vida social que é tecida por essas especificidades. O caminhar e permitir-se descobrir o Outro, o diferente, é o que multiplica cada vez mais essa rede de sociabilidade e apenas um caminhar livre de preconceitos e aberto ao encontro pode concretizar a experiência de diversidade metropolitana.

40. JACQUES, Paola Berenstein. “Introdução”. In: CARERI, Francesco. Texto citado, p.14 41. CARERI, Francesco. Texto citado, p.174. 42. CARERI, Francesco. Texto citado, p.88. 43. JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2014. p.59.


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Arquitetura e a cidade A arquitetura é a cena fixa das vicissitudes do homem, carregada de sentimentos de gerações, de acontecimentos públicos, de tragédias privadas, de fatos novos e antigos. O elemento coletivo e o elemento privado, sociedade e indivíduo, contrapõem-se e confundem-se na cidade, que é feita de inúmeros pequenos seres que procuram uma acomodação e, junto com ela, formando um todo com ela, um seu pequeno ambiente mais adequado ao ambiente geral.1 Na obra do arquiteto Rafael Moneo podemos apontar diferentes exemplos de como projetar em relação à cidade existente, condição tida hoje como inevitável. Visto que em geral os centros históricos das grandes cidades se encontram bastante consolidados, a única maneira de atuar nestes locais passa a ser entre edifícios e por vezes diretamente sobre edifícios históricos. Em conferência no Colégio de Arquitetos da Cataluña, Moneo afirma essa condição da arquitetura em sua fala “Construir sobre lo construído”. 2 A reflexão sobre o construído carrega consigo o conceito de continuidade, o compromisso com o passado que cabe aos arquitetos resolver construtiva e formalmente, antecipando o que será o “futuro”, entre permanências e transformações. Qualquer projeto colocado em determinado contexto conversa com o existente, seja por complementaridade, por rejeição, ou pela não-conversa. Para Moneo, o compromisso que um projeto tem com o passado não se dá necessariamente em termos de proximidade contextual, continuidade adjacente com o existente, mas principalmente ao compreender as especificidades que a realidade coloca para aquele projeto. Construir sobre lo construido” sigue siendo uno de los quehaceres primordiales del arquitecto y hasta me atrevería a decir que es uno de los que mejor definen su actividad.3 Não existem lugares vazios. Sempre há contexto, uma realidade anterior à qualquer intervenção, que não é apenas física ou histórica, mas também, e principalmente, uma realidade de cultura, memória e cotidiano. Tudo que existe é preexistência. O espaço, assim como as construções, guardam os vestígios de presenças anteriores em forma de transformações e adaptações. Apenas essa consciência da temporalidade do espaço possibilita uma ação arquitetônica coerente.

1. ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. (1977) São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.3. 2. “Construir sobre lo construído”. Rafael Moneo. Conferência realizada no “Colegio de Arquitectos de Cataluña - Tarragona”, 2004, Tarragona, Espanha. Na ocasião ocorria a leitura da ata do concurso de ideias para a ampliação da sede do Colegio. 3. Idem. Tradução livre “Construir sobre o construído segue sendo uma das tarefas primordiais do arquiteto e me atreveria a dizer que é uma das que melhor definem a sua atividade.”


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I. Nesta página acima Anexo à prefeitura de Murcia, Espanha. Rafael Moneo. 1998. O projeto está localizado na Plaza Cardenal Belluga, a mais importante da cidade devido à Catedral do século XIII. II. Nesta página abaixo Planta da cidade de Murcia. Entorno do projeto. Nota-se a grande ocupação das quadras e os pequenos espaços intersticiais, típicos das cidades medievais espanholas. III. Na página seguinte acima Imagem aérea da Plaza Cardenal Belluga. IV. Na página seguinte abaixo Plaza Cardenal Belluga.


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4. FERNÁNDEZ-GALIANO, Luis. Palimpsestos. Arquitectura Viva, Madrid, v. 162. 4/2014. p.3. Tradução livre “Como os pergaminhos medievais, que eram raspados para voltarem a ser usados quando a demanda de suporte para a escrita superava a oferta disponível, o solo urbano se esvazia periodicamente para levantar construções novas. E assim como os pergaminhos conserva pegadas do texto manuscrito anterior, a localização da cidade mostra os restos e as cicatrizes das sucessivas intervenções, sobrepostas em extratos e inexplicavelmente misturadas pela reutilização de materiais ou cimentos.”

V. Perspectiva do projeto. Conexão entre a rua Conselheiro Crispiniano e o Vale do Anhangabaú. VI. Perspectiva do projeto. Entrada pela rua Conselheiro Crispiniano.

Como los pergaminos medievales, que se raspaban para volverse a usar cuando la demanda de soporte para la escritura desbordaba la oferta disponible, el suelo urbano se despeja periódicamente para levantar construcciones nuevas. Y al igual que los pergaminos conservan huellas del texto manuscrito anterior, el emplazamiento de la ciudad muestra los restos y cicatrices de las intervenciones sucesivas, superpuestas en estratos e inextricablemente mezcladas por la reutilización de materiales o cimientos. 4 Com esta definição Luis Fernández-Galiano apresenta a edição “Palimpsestos”, da revista española Arquitectura Viva. Historicamente, o desenvolvimento dos sistemas de transporte possibilitou a extensão do território urbano e a preferência por construções em solo completamente virgem em detrimento à construção na cidade tradicional. No caso da escrita, a revolução digital resultou na difusão de textos e imagens de maneira desenfreada, por vezes criando um mar de informação inútil, enquanto que o crescimento e dispersão das cidades com base na lógica do automóvel criou um modelo urbano insustentável de grandes distâncias. Sendo assim, a “arquitetura do palimpsesto” passa a ser solução para uma cidade compacta, ainda conectada com o passado físico e simbólico, que se apropria do espaço da preexistência de forma a otimizar as distâncias e maximizar as relações. Logo, a condição de construir cada vez mais sobre camadas históricas de cidade torna-se cada vez mais frequente e o trabalho “arqueológico” dos arquitetos cada vez mais relevante.


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Nesse contexto, o projeto da Praça das Artes, do escritório Brasil Arquitetura, surge como uma oportunidade de reordenamento urbano de uma quadra no centro de São Paulo. Esvaziado e abandonado desde a década de 60, o centro tem grande vitalidade e movimento apenas nos dias de semana durante o dia, apesar dos esforços de alguns governos em implementar iniciativas culturais e econômicas, nos fins de semana e à noite toda essa vitalidade se transforma em silêncio. A infraestrutura desse centro tão novo, mas já em ruínas, só poderá ser recuperada com a combinação de diferentes incentivos, privados e públicos, culturais e principalmente habitacionais.

5. CALIL, Carlos Augusto. A Praça das Artes, passado e futuro. In: NOSEK, Victor (Org.) Praça das artes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p.7.

Nossa sociedade, no processo histórico que tornou obsoleto o Centro da cidade, abriu mão de um rico e dinâmico conjunto de espaços públicos e de edifícios notáveis, possuidores de características únicas em sua qualidade urbanística e arquitetônica. A redescoberta do Centro, a partir do aproveitamento desse enorme potencial adormecido, relança igualmente a própria ideia de espaço público, fragilizada pela proliferação dos shoppings centers, dos condomínios murados, das ruas de acesso restrito e das construções ilhadas de todo tipo.5 O programa da Praça das Artes nasce da expansão das atividades do Theatro Municipal, que conta com duas orquestras, duas escolas, dois corais, companhia de balé e um quarteto de cordas. A quadra

VII. Perspectiva do projeto. Avenida São João e Vale do Anhangabaú.


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6. LORES, Raul Juste. A Praça das Artes e os quarteirões doentes. In: NOSEK, Victor (Org.) Praça das artes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p.30.

escolhida para implantação, entre a Rua Conselheiro Crispiniano, a Av São João e o Anhangabaú, já predeterminava o restauro e incorporação do Conservatório Dramático Musical e da fachada do antigo Cine Cairo ao projeto. Todas as atividades do Theatro seriam reunidas em um mesmo espaço com a esperança de que essa condição de proximidade intensificaria a convivência de alunos, profissionais, aspirantes, passantes e curiosos, e, construtivamente, desempenhasse a função de conector dos espaços intersticiais da quadra. O projeto, enquanto conector, atende a dois enfoques: do programa, dos diversos usos e instituições ligados à arte e ao corpo; e da situação geográfica urbana, transformando uma realidade preexistente com um entorno de movimento intenso e de grande peso histórico. Raul Juste Lores irá defender que os arquitetos Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci optaram por requalificar a área a partir de um projeto que não pretende ser de alto impacto, soberano, desconectado com o degradado entorno; e nem por isso mimético, dissimulado na paisagem.6 O meio termo em que se encontra o projeto da Praça das Artes respeita e conversa com o entorno histórico, usando o térreo como transformador da dinâmica urbana, que toma forma de uma praça para conectar três lados da quadra. Para os arquitetos trata-se de uma “situação adversa”7, um exemplo de terrenos mínimos comprimidos

VIII. Relação visual do projeto da Praça das Artes com os edifícios do entorno.


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IX. O projeto da Praça das Artes em relação à paisagem do entorno.

por construções existentes, resultado de um urbanismo moldado pela lógica do lote e da propriedade privada, nos quais o projeto norteou seus parâmetros. Neste projeto, como em qualquer outro, o que deve guiar as escolhas é justamente a natureza do lugar, a “sua compreensão enquanto espaço resultante de fatores sociopolíticos ao longo de muitos anos - ou séculos - de formação de cidade. Compreender o lugar não somente como objeto físico, como diz Siza, mas como espaço de tensão, de conflitos de interesses, de subutilização ou mesmo abandono, tudo importa”. 8 A noção de espaço público urbano reivindica atributos qualitativos para se realizar, para entretecer a rede de serviços e equipamentos para a cidade ou a história acontecerem, para servir o espaço e o tempo entre as coisas, entre o morar e o trabalhar, entre espaços privados, entretempos e entre o ir e vir do cotidiano. O espaço público é um intervalo: noção espaço-temporal que pode ser representada por um vazio, uma fenda, uma ausência, uma suspensão, uma pausa, uma parada no fluxo intenso da vida na metrópole. Serve, sem exigir nossa atenção, acolhe sem nos constranger.9

7. FANUCCI, Francisco; FERRAZ, Marcelo; CARTUM, Marcos. A Praça das Artes. In: NOSEK, Victor (Org.) Praça das artes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p.35. 8. FANUCCI, Francisco; FERRAZ, Marcelo; CARTUM, Marcos. Texto citado, p.35. 9. JORGE, Luís Antônio. Sobre a espessura e as veredas das artes do projeto. In: NOSEK, Victor (Org.) Praça das artes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p.68.


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10. JORGE, Luís Antônio. Texto citado, p.68. 11. JORGE, Luís Antônio. Texto citado, p.68. 12. FANUCCI, Francisco; FERRAZ, Marcelo; CARTUM, Marcos. A Praça das Artes. In: NOSEK, Victor (Org.) Praça das artes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p.35. 13. CALIL, Carlos Augusto. A Praça das Artes, passado e futuro. In: NOSEK, Victor (Org.) Praça das artes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p.7.

Quanto ao partido arquitetônico, o professor Luís Antônio Jorge define a tática dos arquitetos como um “ataque pelas laterais”: edifíciosfronteiras, de pouca testada nas ruas e grande profundidade para o interior “emoldurando o território de atuação dos protagonistas do espetáculo”. 10 O desenho da Praça das Artes ao nível dos olhos abre-se generosamente para a cidade como um convite, contrário ao desenho comum das quadras fechadas impenetráveis. No nível da morfologia, das grandes vistas da cidade, da construção de um urbanismo relacionado com o existente, a Praça é caracterizada, segundo o professor Luís Antônio, “pela fricção com as diversas permanências e fronteiras, por meio de uma arquitetura incisiva de preenchimento de frestas, ocupação de brechas e de delimitação do espaço servido aquele com nítida vocação de espaço público. Um cerrar em fronteiras para construir o aberto”11 ou seja, pelo intenso diálogo com o existente. O “construir sob o construído” de Rafael Moneo se exemplifica aqui, no centro de São Paulo, em um entorno construído caótico do ponto de vista volumétrico, que segundo os arquitetos “possui uma situação privilegiada de humanidade ao seu redor, pleno de diversidade, vitalidade, mistura de classes sociais, de usos, de conflitos e tensões característicos da grande cidade - espaço da convivência e da busca de tolerância”. 12 O Centro da cidade é o território comum de todos os paulistanos. Todo cidadão tem duas referências: o seu bairro e o Centro histórico.13 Outro exemplo relevante na discussão de espaços públicos culturais no centro de São Paulo é o Sesc 24 de maio, inaugurado em agosto de 2017, do arquiteto Paulo Mendes da Rocha em parceria com o escritório MMBB. O centro cultural, esportivo e de convivência abriga um vasto programa que inclui teatro, comedoria, biblioteca, área de exposição, clínica odontológica, sala de dança e ginástica e piscina, com área construída de 28 mil m². Nas palavras dos arquitetos tratase de um “problema exemplar de transformação no patrimônio urbano construído”, já que o projeto intervém diretamente na estrutura existente de uma loja de departamentos desativada. Com a intenção de “aproveitar ao máximo a construção existente”, é uma evidente implementação do conceito de “Adaptive Reuse”, principalmente por se tratar de um edifício de nenhum valor patrimonial, de estrutura ordinária, mas com potencial de adaptação para outro uso. O construir sobre o construído de Moneo aparece neste projeto tanto em relação ao


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X. Acima Praça que conecta as diferentes ruas e os edifícios do projeto da Praça das Artes. XI. Abaixo A condição de “edifício fronteira” a que se refere Luís Antônio Jorge, emoldurando os acontecimentos internos.


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XII. Crianças brincando no espelho d’água do Sesc 24 de maio. Ao lado, a Galeria do Reggae.

XIII. Rampas do Sesc 24 de maio onde os olhares se entrelaçam e os usos se cruzam.


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entorno consolidado do centro de São Paulo quanto na ação sobre um edifício existente, na dificuldade de lidar com um preexistência. Apesar da abundância de programa, ao longo dos treze pavimentos o edifício é repleto de espaços livres de convivência e se mostra generoso a qualquer visitante, do assíduo ao descompromissado. A ausência de paredes contrasta com a enorme quantidade de pilares herdados do edifício existente e cria uma conexão visual das extensas lajes. Por fora, apresenta-se um bloco fechado envidraçado como tantos outros, mas a gentileza urbana se faz perceber já na liberdade do térreo e do caminhar que os arquitetos estabeleceram como um dos pontos norteadores do projeto: “Assegurar ampla e clara implantação no nível do pedestre na cidade, com o sentido de “passeio público” e acolhimento em praça coberta”. 14 Em uma primeira impressão, a fachada envidraçada causa estranhamento ao lembrar os controversos edifícios de lajes corporativas, porém internamente sua intenção torna-se clara: as vistas surpreendentemente próximas do entorno, em cotas antes nunca experimentadas, transformam o envidraçamento em diálogo com o contexto da cidade. O conjunto de rampas é protagonista na experiência do edifício: pretende ser extensão do percurso da rua, um percurso que perpassa e assiste de perto o empilhamento de usos, cumprindo a intenção clara dos arquitetos de “organizar um sistema de circulação vertical, de acordo com as normas, eficiente e claro e principalmente assegurar um conjunto de rampas que percorra toda a espacialidade do edifício para, além de sua função estrita, animar a vida do conjunto no seu evento cotidiano de modo desencadeado e lúdico, um passeio”. 15 A rampa que “tudo vê” opõe-se à desconexão e desarticulação da transposição vertical proposta pelo elevador enclausurado; embora desacelere a experiência - uma perda de tempo transformada em ganho de experiência - a rampa conecta os espaços como um passeio pela cidade. O empilhamento de funções e a verticalização de um programa tão diversificado ligado à cultura e ao esporte pode parecer uma decisão arriscada, já que usualmente associa-se o uso público/ cultural aos térreos e pavimentos mais próximos à rua. Neste caso, a verticalização é oportuna não apenas por se tratar de um edifício existente, mas principalmente por se tratar do centro de uma cidade bastante consolidada e que se espera que um dia volte a ser uma cidade compacta. O Teorema de 1909 definiu o arranha-céu como

14. Fonte <http://www.mmbb. com.br/projects/details/45/4> Acesso em setembro de 2017. 15. Fonte <http://www.mmbb. com.br/projects/details/45/4> Acesso em setembro de 2017.


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16. KOOLHAAS, Rem; BOTTMANN, Denise. Nova York delirante: um manifesto retroativo para Manhattan. São Paulo: Cosac & Naify, 2008, p. 107. 17. KOOLHAAS, Rem; BOTTMANN, Denise. Texto citado, p. 109.

“mecanismo utópico para a produção de quantidades ilimitadas de terrenos virgens no mesmo local metropolitano”, 16 cada nível é tratado independentemente, como se os outros não existissem, assim como os arranha-céus descritos por Koolhaas. No Sesc, não se trata de um arranha céu, mas as lajes cumprem o papel desses “terrenos virgens”, possibilitando o empilhamento das mais diversas funções e criando uma “combinação instável e imprevisível de atividades simultâneas”,17 enquanto que a conexão dada por meio das rampas rompe a ideia de que cada laje é independente e autônoma. As ilustrações utilizadas como identidade visual do Sesc 24 de Maio, da artista Carla Caffé, mostram o universo que os arquitetos imaginaram para aquele edifício de maneira muito honesta: a diversidade, o uso público, a mistura de pessoas. As lajes esvaziadas do corte técnico, que no projeto já simbolizavam espaços de apropriação, aparecem nas ilustrações repletas de vitalidade e cor, nas quais fica clara a simultaneidade e a sobreposição de usos que a verticalização de um programa cultural promove.

XIV. Ilustração de Carla Caffé.


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XV. Acima Piscina na cobertura do Sesc 24 de maio em relação ao entorno do centro de São Paulo. XVI. Abaixo à esquerda Parede de escalada no Sesc 24 de maio. XVII. Abaixo à direita Terraço, Sesc 24 de maio.


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Viver com o diferente


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Do choque da modernidade decorrente da transformação da cidade antiga em metrópole moderna ao anestesiamento contemporâneo, presenciamos hoje, segundo Berenstein, uma estratégia de esterilização dos conflitos. Relacionada à pacificação dos espaços públicos, onde as tensões são inerentes, essa tentativa de apaziguamento acaba por impossibilitar qualquer experiência de alteridade.1 Esse novo choque contemporâneo consiste em “uma hábil construção de subjetividades e desejos, hegemônicos e homogeneizados, operada pelo capital financeiro e midiático que capturou o capital simbólico e que busca a eliminação dos conflitos, dos dissensos e das disputas entre diferentes - seja pela indiferenciação, seja pela inclusão excludente - promovendo, assim, a pasteurização, homogeneização e diluição das possibilidades de experiência na cidade contemporânea.”2

1. JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2014, p.22. 2. JACQUES, Paola Berenstein. Texto citado, p.21. 3. JACQUES, Paola Berenstein. Texto citado, p.19. 4. JACQUES, Paola Berenstein. Texto citado, p.19. 5. Georges Didi Huberman. Sobrevivência dos VagaLumes. 2011. apud JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2014, p.29. 6. Georges Didi Huberman. Texto citado, p.30.

Em “Elogio aos errantes”, Paola Berenstein defende a valorização da possibilidade da experiência de alteridade urbana por meio das errâncias, reconhecendo que essas experiências são capazes de construir e reativar subjetividades e desejos.3 Assim como Careri, Paola afirma que a experiência de alteridade urbana existe nas brechas da cidade. Embora outros discursos afirmem o “empobrecimento, perda, destruição ou, até mesmo, expropriação da experiência na cidade contemporânea”,4 a autora acredita que a riqueza da experiência da extrema alteridade persiste na figura dos errantes urbanos. Assim como os vaga-lumes de Georges Didi Huberman, os errantes fazem parte de uma resistência à sociedade do espetáculo, reduzidos “à sobrevivências e às clandestinidades de simples lampejos à noite.”5 Devemos, portanto [...] nos tornar vaga-lumes e, assim, formar novamente a comunidade do desejo, a comunidade de lampejos emitidos, de danças apesar de tudo, de pensamentos a transmitir. Dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contentar em dizer o não da luz que nos ofusca.6 A condição de estranhamento que as errâncias podem proporcionar resultam em experiências de alteridade radical, encontros com o Outro, com a diferença, que são naturais da metrópole. Seria impossível viver em uma cidade com milhões de outros indivíduos e imaginar-se só, ou mais estranho ainda, rodeado de iguais. Segundo Sennett, no século XIX as cidades planejadas pretendiam, simultaneamente, facilitar a circulação das multidões e dificultar os movimentos e manifestações das mesmas. Hoje o isolamento e a velocidade da cidade “amortecem

I. Abre Operários. Tarsila do Amaral, 1933.


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o corpo moderno, não permitem que ele se vincule.”7 O que Sennett chamou de apatia dos sentidos, somada à indiferença frente ao Outro, dificulta as situações de troca e alteridade. A coexistência de pessoas voltadas para si mesmas que toleram-se apenas por indiferença é impossível vivendo em uma metrópole multicultural. Corpos individuais que transitam pela cidade tornam-se gradualmente desligados dos lugares em que se movem e das pessoas com quem convivem nesses espaços, desvalorizandoos através da locomoção e perdendo a noção de destino compartilhado.8 Dizer que a disparidade provoca afastamento mútuo inevitável significa negar à cidade multicultural um saber cívico participativo; é o mesmo que tomar o partido dos cristãos de Veneza, que só imaginavam a identidade entre os iguais.9 Ao lidar com situações não familiares os indivíduos costumam evitar o confronto. Como explica Roland Barthes, o indivíduo quando se encontra em uma situação complexa tende a classificá-la em categorias simples, baseadas em estereótipos. A partir do que o autor chama de “repertório de imagens”, o indivíduo assume um julgamento instantâneo e acaba por fechar-se e assumir uma atitude passiva frente ao diferente.10 Isso ocorre até no simples caminhar do dia a dia, no modo como as pessoas conduzem os seus corpos, antecipando o que resulte em menor contato físico ou visual possível com o Outro estranho. É o que o sociólogo Erving Goffmann chamou de “desestimulação defensiva” e sobre esse comportamento Sennett comenta: “Assim é possível reduzir-se a complexidade da experiência urbana - afastando-se dos outros, mediante um conjunto de clichês, o cidadão sente-se mais à vontade, ele pressente a realidade e desloca o que lhe parece confuso ou ambíguo.”11 Logo, a experiência corporal na cidade é cada vez menos valorizada e desejada, o medo do contato com o diferente leva ao afastamento e isolamento, e que levado a um extremo, poderia assemelhar-se aos guetos judeus. Viver junto é viver nas cidades. Não é viver em família, nem entre amigos. Viver junto não é problema da vida privada, mas da vida pública. Só a vida urbana nos obriga a conviver com uma multidão de desconhecidos; estamos permanentemente na dependência do contato com pessoas que não escolhemos.12

7. SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. (1994) Rio de Janeiro: Record, 2003, p.265. 8. SENNETT, Richard Texto citado, p.265. 9. SENNETT, Richard Texto citado, p.290. 10. SENNETT, Richard Texto citado, p.295. 11. SENNETT, Richard Texto citado, p.296. 12. KEHL, Maria Rita. Olhar no olho do outro. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 07, página 22 - 31, 2015.

II. Projeto Humanae da fotógrafa brasileira Angélica Dass. Consiste em retratos de mais de 2.500 pessoas ao redor do mundo com o objetivo de registrar diversos tons de pele, provando que a população mundial é muito mais diversa e complexa do que apenas brancos x negros.


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13. KEHL, Maria Rita. Texto citado. 14. FREUD, S. (1939). Moisés y la religión monoteísta. Obras completas , v. XXIII. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1976. 15. KEHL, Maria Rita. Texto citado. 16. KEHL, Maria Rita. Texto citado.

A presença ameaçadora do Outro desconhecido, aquele que supostamente ameaça a nossa liberdade ou a nossa existência apenas por ser diferente, é um choque necessário e constitutivo da subjetividade do indivíduo. Segundo Maria Rita Kehl, a convivência com o outro não pode ocorrer à base da indiferença, por meio da negação de sua existência, pois o outro é um semelhante, um indivíduo comum.13 O medo do Outro, na verdade, vem do que Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”. Segundo o autor, o sentimento de intolerância entre o eu e o outro decorre principalmente de um isolamento pessoal baseado em pequenas diferenças, e não em diferenças fundamentais.14 O medo de identificar no outro aquilo que há de ruim em mim e que reconheço nele resulta em angústia e repulsa, que quando levadas a um extremo levam à segregação, ao racismo e a outras manifestações de intolerância. Para a autora, é reconhecendo que somos todos pertencentes a um mesmo grupo que poderemos viver com o outro de maneira solidária e tolerante, ao “perceber que tudo o que diz respeito a ele também diz respeito a mim.”15 Assim, Maria Rita Kehl defende que o caminhar nas ruas, o caminhar de Careri e de Paola, o caminhar como experiência de alteridade, é a solução contra a indiferença e, principalmente, contra a intolerância. O caminhar nos leva de encontro com os outros e, segundo Kehl, esse encontro olho no olho é condição de convívio. A autora conclui que andar nas ruas é um modo de “evitar que o medo, cujo principal fundamento é a fantasia, nos torne violentos.”16

III. República, São Paulo.


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A urbanista e ativista Jane Jacobs, estudiosa da cidade de Nova York na década de 60, defende que a diversidade de usos é a melhor maneira de alcançar o que ela chamou de vitalidade socioeconômica que resultaria em uma cidade mais inclusiva e promoveria a convivência harmônica entre diferentes indivíduos.17 A necessidade que as cidades têm de uma diversidade de usos mais complexa e densa, que propicie entre eles uma sustentação mútua e constante, tanto econômica quanto social. Os componentes dessa diversidade podem diferir muito, mas devem complementar-se concretamente.18 A existência da cidade depende da grande mistura de pessoas de diferentes gostos e necessidades, e, segundo Jacobs, essa variedade urbana está ligada à diversidade e combinações de usos e ofertas econômicas.19 A autora levanta quatro condições necessárias para gerar diversidade nas ruas: 1. diferentes funções e usos que garantam a presença de pessoas nas ruas em horários diversos e por motivos diferentes; 2. quadras curtas, criando oportunidade de virar esquinas e percorrer caminhos diferentes; 3. combinação de edifícios de diferentes idades e estados de conservação, no sentido de criar rendimento econômico diverso; 4. grande densidade de pessoas, principalmente residentes. A maior parte da diversidade urbana é criação de uma quantidade inacreditável de pessoas diversas e de organizações privadas diversas, que têm concepções e propósitos bastante diversos e planejam e criam fora do âmbito formal da ação pública.20 A decadência dos centros das cidades, de acordo com Jacobs, se deve justamente pela falta da mistura de usos principais. Geralmente o que ocorre é a separação de usos de lazer dos usos de trabalho, além da criação de bairros exclusivamente residenciais, o que acaba por criar longas distâncias a serem percorridas durante um dia, uma situação decorrente do pensamento de um falso planejamento urbano ordenado.21 A autora ainda comenta: “a maioria dos centros das grandes cidades preenche - ou já preencheu no passado - as quatro condições necessárias para gerar diversidade. É por isso que conseguiram se tornar centros das cidades. Hoje, eles normalmente ainda preenchem três das quatro condições. Mas passaram a voltar-se predominantemente para o trabalho e têm muito pouca gente depois

17. JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p.1. 18. JACOBS, Jane. Texto citado, p.13. 19. JACOBS, Jane. Texto citado, p.163. 20. JACOBS, Jane. Texto citado, p.267. 21. JACOBS, Jane. Texto citado, p.188.


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22. JACOBS, Jane. Texto citado, p.181. 23. JACOBS, Jane. Texto citado, p.222. 24. JACOBS, Jane. Texto citado, p.244. 25. JACOBS, Jane. Texto citado, p.246. 26. JACOBS, Jane. Texto citado, p.165. 27. JACOBS, Jane. Texto citado, p.485-489.

do horário comercial.”22 Essa falta de densidade de pessoas morando no centro tem como consequência o esvaziamento das ruas em horários não comerciais, um problema que existe também no caso contrário, nos bairros exclusivamente residenciais, onde não existe diversidade de usos suficiente que leve as pessoas para a rua.23 As pessoas reunidas em concentrações de tamanho e densidade típicos de cidades grandes podem ser consideradas um bem positivo, na crença de que são desejáveis fontes de imensa vitalidade e por representarem, num espaço geográfico pequeno, uma enorme e exuberante riqueza de diferenças e opções, sendo muitas dessas diferenças singulares e imprevisíveis e acima de tudo valiosas só por existirem.24 Contrário ao que se imagina, a diversidade de usos e idades dos edifícios não resulta em má aparência, desordem e congestionamento. Segundo Jacobs, é justamente a homogeneidade que é caótica por gerar uma “desorganização de não implicar direção alguma”,25 ou seja, devido à sua monotonia e uniformidade ela gera uma paisagem que é desnorteante. A diversidade de usos apresenta um conteúdo com diferenças autênticas, contrário aos usos semelhantes e homogêneos que optam por diferenciar-se por meio de exibicionismos ou falsas inovações. Se estamos convencidos de que a diversidade urbana significa acaso e caos, é claro que sua geração imprevisível parece um mistério. No entanto, é muito fácil descobrir que situações geram a diversidade urbana se observarmos os locais em que a diversidade floresce e pesquisarmos as razões econômicas que permitem seu surgimento nesses locais. Embora os resultados sejam complexos e os ingredientes que os produzem tendam a variar bastante, essa complexidade fundamenta-se em relações econômicas tangíveis, que, em princípio, são muito mais simples do que as intrincadas combinações que elas possibilitam nas cidades.26 Para Jane Jacobs, a grande falha do planejamento urbano moderno foi tentar resolver os problemas das grandes cidades usando um sistema de pensamento de duas variáveis, e enquanto não for reconhecido o tipo de problema real que são as cidades, o campo do planejamento urbano continuará estagnado.27 Para a autora, as cidades são problemas de complexidade organizada. Como nas ciências biológicas,


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devem ser considerados não apenas o número de variáveis, mas principalmente o fato de que essas variáveis são “inter-relacionadas num todo orgânico”, ou seja, as variáveis são diversas, mas não são desordenadas.28 A compreensão de um problema não significa que a solução encontrada é aplicável em todas as situações, uma vez que, assim como nas ciências biológicas, a tática surge a partir da visão microscópica ou detalhada.29 As duas principais estratégias que devem ser usadas para entender as cidades são, segundo Jacobs, refletir sobre os processos individualmente, pois estes serão diferentes de acordo com as circunstâncias e o contexto, e raciocinar no sentido inverso, do particular para o genérico, pois “os processos urbanos, na prática, são complexos demais para serem rotineiros; particularizados demais para serem aplicados como abstrações.”30

28. JACOBS, Jane. Texto citado, p.482. 29. JACOBS, Jane. Texto citado, p.489. 30. JACOBS, Jane. Texto citado, p.491. 31. NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Multidão. Guerra e Democracia na Era do Império. São Paulo: Record, 2005, p.12.

De um ponto de vista mais sociológico, Michael Hardt e Antonio Negri irão apresentar o conceito de multidão como possibilidade para alcançar a democracia na contemporaneidade. A globalização é entendida pelos autores como a criação de circuitos de cooperação que vão além das nações, afirmando que apesar das diferenças existentes é possível descobrir modos de comunicação para agir em conjunto.31 Entende-se que o corpo político desse mundo globalizado é a multidão. Ela é diferente do povo uno, da população diversa e das massas indiferentes, pois abrange a “multiplicidade de todas as diferenças singulares” e caracteriza uma rede em crescimento. IV. República, São Paulo.


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32. NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Texto citado, p.12.

A multidão é composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única - diferentes culturas, raças, etnias, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes maneiras de viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos.32

33. NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Texto citado, p.14. 34. NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Texto citado, p.15. 35. NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Texto citado, p.139.

Talvez o maior desafio da multidão seja encontrar o “comum” que lhe permite comunicar-se e agir em conjunto, visto que internamente as diferenças devem ser mantidas. Esse “comum” não é algo a ser apenas descoberto, pois é constantemente construído a partir das relações dentro da multidão.33 Essa produção do comum é frequente em formas de trabalho que funcionam por meio de relações e da própria vida social, projetos imateriais que não criam bens materiais de condição econômica, chamado pelos autores de “produção biopolítica” pois “afeta e produz todas as facetas da vida social, sejam econômicas, culturais ou políticas.”34 Esta produção biopolítica e consequentemente a expansão do comum na multidão são, segundo os autores, confirmações da possibilidade de uma democracia global. Embora composta de um conjunto de singularidades, a multidão, como descrita por Hardt e Negri, é um “sujeito social cuja diferença não pode ser reduzida à uniformidade”,35 ou seja, embora múltipla, a multidão não é “fragmentada, anárquica ou incoerente”. A multidão é, acima de tudo, um conceito de classe. Não a classe do proletariado V.


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que luta contra o capital (unidade) nem as infinitas classes sociais do liberalismo (pluralidade), mas sim a classe em que as diferenças sociais estão sempre presentes embora não sejam igualadas na uniformidade.36 Sendo assim, a multidão é o governo de todos por todos, não é um corpo político em que alguns comandam e outros obedecem, “a multidão é carne viva que governa a si mesma”,37 e por isso se apresenta como capaz de implementar integralmente democracia.

36. NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Texto citado, p.143145. 37. NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Texto citado, p.140. 38. NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Texto citado, p.141 39. SENNETT, Richard. Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação. Rio de Janeiro: Record, 2015, p.10.

Quando dizemos que não queremos um mundo sem diferenças raciais ou de gênero, e sim um mundo no qual não determinem hierarquias de poder, um mundo no qual as diferenças possam expressar-se livremente, estamos exprimindo um desejo de multidão. E, naturalmente, no que diz respeito às singularidades que compõem a multidão, para acabar com o caráter limitador, negativo e destrutivo das diferenças e transformá-las em nossa força.38 A multidão produz cooperação, comunicação e relações sociais, elementos essenciais para a convivência com o Outro. O conceito da cooperação é explorado por Sennett como uma habilidade necessária e que “requer a capacidade de entender e mostrar-se receptivo ao outro para agir em conjunto.”39 Contrária às tendências tribais de solidariedade apenas com os semelhantes, a vida na cidade tem como condição a convivência com o diferente, partindo do princípio que cada indivíduo é uma “mistura de sentimentos, afinidades e VI.


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40. SENNETT, Richard. Texto citado, p.16. 41. SENNETT, Richard. Texto citado, p.9. 42. SENNETT, Richard. Texto citado, p.27.

comportamentos”. A cooperação é, de maneira resumida, uma troca em que ambas partes se beneficiam e pode ocorrer de maneira formal ou informal, por exemplo “as pessoas que batem papo em uma esquina ou bebem em um bar estão fofocando e jogando conversa fora sem pensarem de maneira autorreferencial: “estou cooperando”. Esse ato vem envolto na experiência do prazer recíproco”. 40 A cooperação azeita a máquina de concretização das coisas, e a partilha é capaz de compensar aquilo que acaso nos falte individualmente. A cooperação está embutida em nossos genes, mas não pode ficar presa a comportamentos rotineiros; precisa desenvolver-se e ser aprofundada. O que se aplica particularmente quando lidamos com pessoas diferentes de nós; com elas, a cooperação torna-se um grande esforço.41 A cooperação entre pessoas diferentes é ainda mais exigente, porém, Sennett comenta que ela nos proporciona uma melhor compreensão de nós mesmos. Segundo Erikson a cooperação antecede historicamente a individuação, já que “aprendemos como estar juntos antes de aprender como nos manter à parte”, e de fato as relações entre indivíduos são constituintes de suas próprias subjetividades. Assim como Canevacci, Sennett irá usar da música para exemplificar a cooperação entre diferentes. Segundo o autor, embora um músico tenha se aperfeiçoado em sua própria parte, ele deve ter a capacidade de ouvir e cooperar com os outros para alcançar um objetivo. Este objetivo buscado na música em grupo nunca é a homogeneidade monótona, “a força e o temperamento da música, pelo contrário, manifestam-se através de pequenos dramas de deferências e afirmação; na música de câmara, em especial, precisamos ouvir os indivíduos falando com vozes diferentes que às vezes entram em conflito.”42 Esta cooperação e convivência entre diferentes instrumentos de diferentes “personalidades” que se unem por um fim assemelham-se às relações na metrópole. Na música o fim que se busca é muito mais claro e reconhecido por todos os músicos, enquanto que na cidade o objetivo de viver de maneira mais harmônica parece não prevalecer sob os interesses individuais. Segundo Sennett, existem dois modos de praticar uma conversa, por meio da dialética ou da dialógica. A primeira, embora não pressuponha a mesma argumentação, tem o objetivo de chegar a um entendimento


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VII.

comum, enquanto a segunda caracteriza uma discussão em que não é necessário chegar à uma concordância.43 A conversa dialógica pode ser muito útil para encontrar pontos de convergência e gestionar a discordância em situações difíceis, e além disso “embora não se chegue a um acordo, nesse processo de troca as pessoas podem se conscientizar mais de seus próprios pontos de vista e ampliar a compreensão recíproca.”44 Em uma conversa, os sentimentos de simpatia e empatia também transmitem reconhecimento e vínculo com o Outro, porém a primeira deixa de lado as diferenças para imaginarse no lugar do Outro, enquanto a empatia considera a dor do Outro em seus próprios termos.45 Todos estes mecanismos de diálogo e reconhecimento são necessários na prática da cooperação, no entanto a dialógica e a empatia apresentam um desafio maior pois funcionam considerando que não é necessário entender o diferente ou concordar com o Outro para conviver. A conversa é como um ensaio, que depende da capacidade de escuta. Ouvir bem é uma atividade interpretativa que funciona melhor quando focalizamos a especificidade do que está sendo ouvido e buscamos entender com base nesses elementos específicos o que a outra pessoa dá por descontado, sem chegar a dizer explicitamente.46 A questão de como viver juntos é então apresentada por Sennett ao defender a necessidade de cooperação entre diferentes, e será no

43. SENNETT, Richard. Texto citado, p.31. 44. SENNETT, Richard. Texto citado, p.32. 45. SENNETT, Richard. Texto citado, p.34. 46. SENNETT, Richard. Texto citado, p.37.


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47. BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p.127.

cotidiano que iremos encontrar as bases de uma convivência harmônica e talvez encontrar o desejo de relacionar-se com o diferente.

48. BAUMAN, Zygmunt. Texto citado, p.130.

As relações na era da modernidade líquida também são tratadas por Bauman em “Amor Líquido”. Segundo o autor “é comum definir as cidades como lugares onde estranhos se encontram, permanecem próximos uns dos outros e interagem por longo tempo sem deixarem de ser estranhos.”47 A proximidade de estranhos na cidade é inevitável, mas o modo como os indivíduos irão lidar diariamente com essa proximidade, de modo a tornála minimamente suportável, é questão de escolha e pode dar-se por ação ou omissão.48 Esta é uma condição desafiadora da cidade, pois não há como saber as verdadeiras intenções desse estranho e por isso ele causa medo e ansiedade.

49. BAUMAN, Zygmunt. Texto citado, p.133. 50. BAUMAN, Zygmunt. Texto citado, p.133. 51. BAUMAN, Zygmunt. Texto citado, p.137.

Bauman irá então discutir o conceito de mixofobia, o medo que “conduz a ilhas de semelhança e mesmidade em meio a um oceano de variedade e diferença.”49 As situações que provocam o afloramento da mixofobia podem ser eventualmente evitadas, porém isso implicaria em viver de maneira absolutamente uniforme. Sem se expor a situações diversas com o estranho o indivíduo está propenso a “desaprender” as habilidades necessárias para compartilhar e conviver com um Outro diferente. Esse distanciamento do estranho e do diferente é o que irá causar, segundo Bauman, o medo de confrontamento. Conforme a polifonia e a diversificação cultural do ambiente urbano na era da globalização entram em cena - com a probabilidade de se intensificarem no curso do tempo -, as tensões oriundas da exasperante/ confusa/irritante estranheza desse cenário provavelmente continuarão a estimular impulsos segregacionistas.50 A extinção total da mixofobia na cidade é algo impossível, porém o diálogo e a assimilação da alteridade podem amenizar o medo do diferente. Enquanto viverem nas cidades, estranhos serão obrigados a conviver lado a lado, e será necessário perceber que a condição de alteridade é uma ferramenta indispensável para isso. Quanto ao papel dos espaços na cidade, Bauman comenta que “a homogeneidade social do espaço, enfatizada e fortalecida pela segregação espacial, reduz a tolerância de seus moradores à diferença e assim multiplica as possibilidades de reações mixofóbicas.”51 Sendo assim, a criação de espaços públicos que acolham pessoas diferentes e provoquem a convivência entre elas é imprescindível para criar condições de alteridade.


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A fusão exigida pela compreensão mútua só pode ser resultado da experiência compartilhada, e esta é inconcebível sem que haja um espaço compartilhado.52

52. BAUMAN, Zygmunt. Texto citado, p.138.

VIII. Manifestação no Rio de Janeiro contra a censura nos museus de arte.


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Fluxos, conexões e programa: Edifício condensador O projeto pretende, a partir da combinação de diferentes usos e programas, criar um espaço democrático para o estar e o parar na cidade. Com o objetivo de permitir e estimular o encontro entre diferentes pessoas, o conceito de condensador social russo atualizado neste projeto exalta os conflitos urbanos e transforma-os em parte essencial da convivência na metrópole, criando espaços de discussão e coexistência.

I.


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Aproximação Compreendendo as transformações e permanências da área do Anhangabaú foi possível estudar o terreno de implantação do projeto de maneira mais objetiva. Há três acessos, sendo duas vias carroçáveis - rua João Adolfo à noroeste e rua Alfredo Gagliotti à sudoeste - e o calçadão peatonal do próprio Largo da Memória à nordeste. Além disso, o perímetro do terreno está limitado por três edifícios: dois habitacionais de onze pavimentos com térreo comercial e acesso pela rua João Adolfo, e um edifício de uso misto de vinte e três pavimentos com diferentes acessos desde a avenida Nove de Julho, construído em 1943 e conhecido como Edifício Brasilar.

II. Contexto


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III. Praça da República

Copan

Edifício Itália

Biblioteca Mário de Andrade

Teatro Municipal

Shopping Light

Prefeitura Municipal

Ocupação Cambridge

Edifício Joelma

Câmara Municipal

Além dos edifícios citados que ladeiam o terreno, há outros equipamentos de importância na área como a Biblioteca Mário de Andrade, a Ocupação Cambridge, o Metrô Anhagabaú, o Shopping Light, o centro cultural Red Bull Station, o Edifício Joelma, a Câmara Municipal de São Paulo, a Prefeitura Municipal, além do próprio Terminal Bandeira e do Vale do Anhangabaú. Outro elemento de importância na paisagem é o mural da artista Tomie Ohtake. Pintado em 1984, o mural está localizado na empena cega de um edifício na rua Col. Xavier de Toledo e tem 55 metros de altura e 22 metros de comprimento, logo, acaba por emoldurar a paisagem do Largo da Memória e ser referência na paisagem do centro de São Paulo.


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Cartografias 1. MAGNANI, José Guilherme. Quando o campo é a cidade: fazendo antropologia na metrópole. (1996) In: MAGNANI, José Guilherme e TORRES, Lílian de Lucca (Orgs.). Na metrópole: textos de antropologia urbana. São Paulo: Edusp, 2000, p.36-37. 2. MAGNANI, José Guilherme. Texto citado, p.37-38.

As cartografias realizadas durante a pesquisa foram essenciais para interpretar e compreender a realidade cotidiana do lugar. Na fase de reconhecimento de campo foram feitas caminhadas pela área com o objetivo de treinar o olhar buscando identificar as dinâmicas existentes, evitando se influenciar por uma realidade familiar. Segundo Magnani, para alcançar esse olhar dirigido é necessário “obedecer a um timing que a distinguisse do andar apressado e alheio do usuário habitual, assim como do passeante descomprometido”,1 o caminhar do pesquisador é de reconhecimento, embora lento tem um plano determinado e deve ser de contínua observação. É importante recordar que o cenário dos acontecimentos não é fixo e determinado, ele é produto das práticas sociais, sendo transformado continuamente pelas pessoas. Delimitar o cenário significa identificar marcos, reconhecer divisas, anotar pontos de intersecção a partir não apenas da presença ou ausência de equipamentos e estruturas físicas, mas desses elementos em relação com a prática cotidiana daqueles que de uma forma ou outra usam o espaço: os atores.2

IV. Cartografia colagem Pretende ser uma investigação formal da escala do terreno em relação a edifícios e equipamentos de escala familiar. Situação atual, residência, Igreja da Sé, Masp, Copan, Fau Mackenzie.


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V. Cartografia impressões Tentativa de unir as percepções do local, a junção das situações que compõem a realidade do lugar.


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VI. Cartografia colagem histórica Sobreposição, soma e subtração de tempos.


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VII. Cartografia sons percebidos


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Cotas Sendo um declive de noroeste a sudeste, em direção ao Vale do Anhangabaú, o terreno apresenta variação de cota do Largo da Memória (cota 736) para a rua João Adolfo (cota 739), e para a rua Alfredo Gagliotti (cota 735). A decisão de projeto em relação às cotas é rebaixar o acesso do Largo da Memória em 2m, resultando em um térreo semi enterrado na cota 734 e, por meio de um pé direito de 5m, possibilitar o acesso em nível pela rua João Adolfo (cota 739). Desta maneira o edifício passa a ter acesso rebaixado pelo Largo da Memória e em nível pela rua João Adolfo, constituindo dois térreos.

VIII. Cotas.


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Caminhos Com base em fotos de época foi possível confirmar que até a década de 60, com os três edifícios do entorno já construídos, o terreno esteve ocupado por casarios coloniais e um estacionamento que alcançava a avenida Nove de Julho, anterior à abertura da rua Alfredo Gagliotti. Supõe-se que apenas na década de 80, em decorrência da construção das passarelas de acesso ao Terminal Bandeira, esses casarios tenham sido demolidos para a criação de um braço de acesso desde o Largo. Sendo assim, atualmente é possível atravessar o terreno até a rua Alfredo Gagliotti e, também por ele, acessar a rampa do Terminal Bandeira. Estes dois trajetos são de intensa movimentação durante o dia, pois conectam o Terminal e a avenida Nove de Julho ao Largo, que por sua vez dá acesso ao metrô Anhangabaú. Percebe-se então que a área é repleta de caminhos e fluxos, constituindo um espaço de passagem rápida e de conexão entre os diferentes modais de transporte público. A decisão projetual referente às cotas considera e coloca em evidência os fluxos existentes que atravessam a área, incorporando os percursos ao edifício e abrigando o caminhar apressado.

IX. À esquerda Situação do terreno de intervenção na década de 50. X. À direita Mapa VASP, 1954.


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Programa 3. “Compor hoje significa criar os programas. Os inventamos ou propomos; os misturamos, lhes damos suporte, ou os desnaturalizamos. O programa não equivale à função. É mais porque não é unívoco nem direto. É menos porque se define por ações e atividades (verbos) e não por convenções (substantivos). É também mutável, transformável com o tempo. Temos que definir os programas para logo esquecê-los, ou transformálos.” Definição de programa. Tradução livre. Original em espanhol. In: GAUSA, Manuel. Diccionario metápolis de arquitectura avanzada: ciudad y tecnología en la sociedad de la información. Barcelona: ACTAR, 2000. 4. KOOLHAAS, Rem; MAU, Bruce. S,M,L,XL. Nova York: The Monacelli Press, 1995, p.199. apud MONEO, José Rafael; CODDOU, Flávio.Texto citado, p.288. 5. KOOLHAAS, Rem; MAU, Bruce. Texto citado, p.288. 6. TSCHUMI, Bernard. Architecture and disjunction. MA: The MIT Press, 2001, p.126-127. 7. “Os espaços são condicionados pelas ações tanto quanto as ações são condicionadas pelos espaços. Um não é consequência do outro, eles existem independentemente. Apenas quando se cruzam eles se afetam.” Tradução livre. TSCHUMI, Bernard. Texto citado, p.130.

Componer hoy significa crear los programas. Los inventamos o los proponemos; los mezclamos, les damos soporte, o los desnaturalizamos. El programa no equivale a la función. Es más porque no es unívoco ni directo. Es menos porque se define por acciones y actividades (verbos) y no por convenciones (sustantivos). Es también mutable, transformable en el tiempo. Tenemos que definir los programas para luego olvidarlos, o transformarlos.3 O programa do edifício está inspirado nos ideais russos do condensador social, especificamente o de unir de diferentes funções em um mesmo edifício, com o objetivo de unir a sociedade e motivar a coletivização das atividades. Ao relacionar diferentes programas em um mesmo edifício, espera-se criar também o cruzamento de múltiplos públicos, ocasionando trocas e relações entre pessoas presentes na cidade por diferentes motivos e de diferentes ideais. Além disso, entende-se neste projeto que o programa é, segundo Koolhaas “uma categoria que propicia a construção de edifícios imprecisos e abertos.”4 Nem a forma nem o programa de um edifício são determinadas pelas atividades que podem ocorrer dentro dele. Quanto à forma, já se verificou que muitos programas foram bem sucedidos em edifícios construídos para propósitos completamente diferentes, provando que não há relação causal entre forma e função ou entre a tipologia de um edifício e seu uso. Koolhaas será ainda mais radical ao dizer “Onde não há nada, tudo é possível; onde há arquitetura, nada mais é possível”,5 no sentido de que a arquitetura como extrema definição de espaços e usos restringe a liberdade do indivíduo, compreendendo que, hoje, os espaços devem permitir e incentivar diferentes modos de apropriação, definidos pelo usuário. Segundo Tschumi, a relação entre arquitetura e eventos é uma relação sutil, que pode se realizar em diferentes níveis.6 O espaço e o programa podem, por exemplo, ser absolutamente independentes entre si, sendo a estratégia arquitetônica indiferente ao uso, ou em outros casos podem tornar-se completamente interdependentes e condicionar sua existência mutuamente. Spaces are qualified by actions just as actions are qualified by spaces. One does not trigger the other; they exist independently. Only when they intersect do they affect one another.7


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Além disso, Tschumi irá defender que a arquitetura e os eventos constantemente transgridem suas próprias regras, confirmando que, embora tenham pontos de referência, ambos podem ser constantemente questionados, permitindo a liberdade desejada por Koolhaas, a de experimentar no espaço. A arquitetura e os eventos não podem estar dissociados, contudo as atividades mais absurdas podem tomar forma nos espaços mais convencionais enquanto que as organizações de espaço mais incompreensíveis podem acomodar as atividades mais banais.8 Para Tschumi, o conceito de programa segue de extrema importância e não deve ser eliminado da arquitetura ou visto como opcional, entretanto, deve ser reinterpretado, reescrito e desconstruído no objetivo de criar espaços adaptáveis e coerentes com as necessidades contemporâneas.9

8. TSCHUMI, Bernard. Texto citado, p.146-147. 9. TSCHUMI, Bernard. Texto citado, p.204.

XI. Grupo de dança em performance na abertura do Sesc 24 de maio.


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Projeto 10. TSCHUMI, Bernard. Texto citado, p.205.

O projeto aqui apresentado apropria-se do que Tschumi irá definir como “transprogramming”, ou seja, a combinação de dois ou mais programas, independentemente de suas incompatibilidades, cada um com as suas respectivas configurações espaciais.10 Os programas que compõem o Edifício Condensador são variados e se relacionam de diferentes maneiras com o público e com a cidade. Os três primeiros pavimentos apresentam um caráter mais público e conectado com o nível urbano, trazendo a ideia de um uso mais aberto e menos determinado, e definemse basicamente por lajes extensas sem obstáculos físicos ou visuais. Nesse chão contínuo e sombreado da cidade, os usuários decidem: se estarão de pé, sentados, deitados, sozinhos ou acompanhados, em uma atividade de ação ou contemplação. O espaço permite a escolha sem restringir a ação, apenas abrindo-se para as invenções e possibilidades de ocupação que Koolhaas e Tschumi defendem. Restaurante, café, cozinha coletiva, solário, redário, vestiários, são aqui apenas suporte para o cotidiano urbano. As extensas lajes “vazias” usam das conexões com as cotas urbanas e da continuidade dos fluxos existentes para abrigar e criar situações de encontro com o Outro. O térreo semi enterrado permite o caminho Largo da Memória - rua Alfredo Gagliotti, enquanto o primeiro pavimento será também térreo para a rua João Adolfo. A passarela existente de acesso ao Terminal Bandeira, construída em 1988, é também incorporada ao segundo pavimento, agora apoiada na estrutura do edifício. O espaço inabitável ocupado pela subida de sua cota original é eliminado, e a rampa surge do térreo de acesso da rua João Adolfo. Para a estrutura do edifício optou-se por lajes nervuradas de 40cm de altura, com cubetas de 80cm x 80cm x 30cm, com o objetivo de diminuir a altura das vigas e criar uma grelha homogênea de concreto aparente que se relaciona com a ideia das lajes amplas e livres. No espírito de reforçar e incentivar o percurso cidade-edifício-cidade, os três primeiros pavimentos estão conectados também por uma rampa de estrutura metálica atirantada nas nervuras da laje. A rampa transforma os percursos e deslocamentos em experiências de contemplação e enquadra os eventos do edifício. Em consonância com a transposição de cotas do entorno, seja pela ladeira do Largo ou pela passarela do Terminal, a rampa metálica permite a trasposição de níveis de maneira fluída, na intenção de proporcionar um percurso de fruição.


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Com o termo “percurso” indicam-se, ao mesmo tempo, o ato da travessia (o percurso como ação do caminhar), a linha que atravessa o espaço (o percurso como objeto arquitetônico) e o relato do espaço atravessado (o percurso como estrutura narrativa). Pretendemos propor o percurso como forma estética à disposição da arquitetura e da paisagem.11 A partir do quarto pavimento o nível de envolvimento com o programa é maior e os usos, embora ainda públicos, tem usuários menos descompromissados. A piscina e o terraço ainda permitem a relação do olhar com os passantes do Largo da Memória. Do alto da rua Col. Xavier de Toledo pode-se avistar um homem de sunga e crianças com bóias, bem como os que vão ali dar um mergulho em um dia quente estão condicionados à paisagem da cidade. Aqui fica claro um dos principais partidos do projeto: a assimilação e incorporação da cidade no edifício, não apenas por meio da presença dos fluxos reais, existentes e apressados, ou da liberdade permitida nos pavimentos livres, mas também a partir da aproximação da paisagem. A cidade e a caoticidade de sua imagem física e mental não são omitidas, e sim incorporadas à experiência do edifício.

11. CARERI, Francesco (2002). Walkscapes. O caminhar como prática estética. São Paulo: Gustavo Gili, 2013, p.31.


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Seguem pelos pavimentos a sala de ginástica, a biblioteca, o terraço de leitura, a recepção e bar do hostel e os quartos para hospedagem. A mistura de usos e generosidade dos espaços cria oportunidades de encontro entre os indivíduos, incentivando o convívio entre diferentes. Esta pesquisa, assim como o projeto apresentado, defende a ideia de que a convivência entre pessoas diferentes é essencial em uma metrópole, e, estruturalmente, é o que torna a experiência de viver em uma metrópole tão rica e interessante. Neste sentido, o edifício incentiva o cruzamento de diferentes públicos com o objetivo de criar situações urbanas de troca e alteridade. Es éste un tiempo de diversidades, que proclama la constante simultaneidad de acontecimientos individuales en estructuras globales: esa condición “multi” - plural - enlaza lo local con lo global, lo particular con lo general, lo general con lo individual evidenciando la incidencia - y emergencia - de lo singular en lo colectivo, no ya como “parte de un todo” sino como especificidad “interconectada con el todo” (como presencia independiente - autónoma - y copartícipe, a la vez) hablando, entonces, de combinación y de entrelazamiento, de coexistencia y de simultaneidad. De relación y de discontinuidad.12

12.“É este um tempo de diversidades, que proclama a constante simultaneidade de acontecimentos individuais em estruturas globais: essa condição “multi” - plural enlaça o local com o global, o particular com o geral, o geral com o individual evidenciando a incidência - e emergência - do singular no coletivo, não mais como “parte de um todo” se não como especificidade “interconectada com o todo” (como presença independente - autônoma - e associada, ao mesmo tempo) falando, então, de combinação e entrelaçamento, de coexistência e simultaneidade. De relação e descontinuidade”. Tradução livre. Original em espanhol. Definição de diversidade. In: GAUSA, Manuel. Diccionario metápolis de arquitectura avanzada: ciudad y tecnología en la sociedad de la información. Barcelona: ACTAR, 2000.


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Vista desde a rua Col. Xavier de Toledo


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Entrada pelo Largo da Memรณria


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Rampas


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Piscina e Terraรงo


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Restaurante


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Vista para a entrada do Largo da Memรณria


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Corte AA


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Corte BB


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Implantação | Térreo Largo da Memória


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Primeiro pavimento | Térreo Rua João Adolfo


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Segundo Pavimento | Pausa


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Terceiro Pavimento | Piscina e Ginรกstica


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Quarto Pavimento | Biblioteca


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Quinto Pavimento | ConvivĂŞncia Hostel


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Sexto Pavimento | Quartos Hostel


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SĂŠtimo Pavimento | Quartos Hostel


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O Largo hoje

I. O terreno de estudo, inserido no calçadão do Largo da Memória, ao fundo, entre os dois edifícios existentes.


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II. A escadaria, projeto de Dubugras. Ao fundo a estação Anhangabaú do metrô e o painel de Tomie Ohtake.

III. A escadaria, embora configure um local de descanso e parada sombreado pelas árvores, funciona como um local de passagem.


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IV. Conexão entre a rua Col. Xavier de Toledo e o Terminal Bandeira. Ao lado esquerdo o metrô Anhganabaú e à direita a escadaria do Largo.


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V. Entrada para a travessia do Terminal Bandeira pelo Largo da Memória. Ao fundo a Avenida Nove de Julho.

VI. Vista do terreno de estudo pela parte mais baixa do Largo. A banca de jornal indica o caminho de acesso à passarela. Entre os edifícios vermelho e branco está a conexão com a rua João Adolfo.


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VII. O terreno de intervenção visto de frente. À esquerda o Edifício Brasilar.


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VIII. Passarela de acesso ao Terminal Bandeira ao fundo.

IX. Acesso à passarela.


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X. Vista do Largo desde o início da passarela de acesso ao Terminal Bandeira.

XI. O Largo da Memória ao fundo e as grandes árvores do terreno à esquerda. À direita o acesso direto para a rua Alfredo Gagliotti.


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XII. Vista do terreno e do entorno desde a passarela.


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XIII. Vista do Terminal Bandeira desde a passarela.


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XIV. XV. Relação do Edifício Brasilar com o terreno.


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Obrigada À minha família, pelo apoio e amor incondicionais, principalmente à minha mãe e à minha irmã que estiveram ao meu lado em todos os momentos, Aos meus amigos Felipe e Hugo, pela amizade e companheirismo que criamos ao longo da faculdade, À minha orientadora Maria Isabel Villac, que me ensinou sobre a dualidade das coisas e me incentivou a pesquisar seguindo o meu coração. E a todos os professores que me inspiraram e me ensinaram o valor de ser arquiteta, À todos os amigos que estiveram presentes durante a minha formação, por todas conversas de corredor e reclamações de cansaço. Larissa, Christian, Amanda, Florencia, João Paulo, Yuri, Victoria, Vinicius e tantos outros, À Silvana e Abilio, pelo aprendizado durante o ano e por me inspirarem como profissionais, Aos Outros urbanos, os diferentes, os estranhos, os excluídos, os errantes, que me ensinam todo dia a vencer meus próprios preconceitos e abraçar a experiência da alteridade.


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