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Ah!

VITAL BATTAGLIA

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ah! 1ª Edição

Vital Battaglia



Ah!

ah!

Pensei algumas vezes em dar a este livro o nome de “Jornada”. Afinal, aqui está o resumo de quarenta e cinco anos de jornalismo. Mas “Jornada” não exprime tudo o que sinto. Precisava de uma palavra mais abrangente. Então fui pesquisar no Aurélio e ele me deu esta interjeição: “Ah!” Exprime admiração, alegria, desejo, dúvida, espanto, ironia, dor, tristeza. É tudo que eu sinto aqui.

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Ah!

Abertura

Um Zé qualquer Quando cheguei ao hospital ele já estava na sala de cirurgia esperando por uma operação, uma operação que poderia durar entre oito e dez horas. O médico, jovem ainda, estava em sua sala, examinando várias radiografias e se preparando para a longa jornada. Dei duas batidas leves na porta semiaberta, ele ergueu o olhar sob as lentes dos óculos. — É muito grave, doutor? — É. — Quais são as chances? — Uma em um milhão. Você é parente? — Sou amigo, apenas somos amigos. A noite foi interminável, entrou madrugada adentro e nada. Seria quatro e pouco quando, finalmente, uma enfermeira deixou a sala. Eu me levantei, fiquei atrás dos seus familiares, e percebi apenas que havia poucas notícias. A cirurgia havia terminado, ele estava sendo encaminhado para a UTI. Senti um alívio. Pelo menos estava vivo. Zé Maria, o meu amigo José Maria de Lima, tinha vencido a primeira batalha contra 999 mil possibilidades de derrota. Levou meses para se recuperar, emagreceu bastante, mas mantinha o olhar sereno. Logo voltaria ao trabalho no jornal Folha de São Paulo. Creio que nessa época já estava na editoria de educação. -7-


Vital Battaglia

Nos conhecemos na sala de aula no primeiro ano clássico do Colégio Fernão Dias Pais, na Rua Pedroso de Morais, em Pinheiros, São Paulo. Durante os três anos do curso, Zé Maria, eu e o Espanhol, Manuel Valverde Palenzuela, formamos um trio inseparável. O Espanhol trabalhava com seu pai na granja do Embu, eu era auditorjúnior no Banco de Boston e o Zé Maria vivia de poesia — mulato, um Machado de Assis. Teria mil laudas para escrever sobre esses dois amigos, mas foi para o Zé que prometi o prefácio deste livro. Qual a razão? Uma noite interminável, como todas as noites em que nos submetíamos ao exame oral no fim do ano, eu entrei para fazer a prova de matemática precisando tirar no mínimo nota 8. Havia conversado com o Zé Maria, não queria fazer a prova, já aceitando a derrota: — Zé, não adianta. Pode ser que eu tire essa nota com o professor Barcelos, mas com o Epinghaus nem por milagre. Ele me convenceu a fazer a prova. Havíamos estudado dias inteiros. Ele e o Espanhol nem precisavam estudar comigo, pois já estavam praticamente aprovados. E, agora, estávamos lá, na noite das garrafadas, no último ano do curso. Naquele tempo, a chamada era por ordem alfabética. Lá foi o Zé e viu o primeiro mestre lhe dar nota 8, que o segundo confirmou. Depois o Manuel Valverde, que foi muito bem. Eu, Vital, era um dos últimos. Passava da meia-noite quando me dirigi ao cadafalso. Lá, uma carteira diante do professor Barcelos. No fundo da sala, a torcida e a solidariedade dos dois amigos. Sorteei o ponto. Era um teorema que eu nem sabia por onde começar. Escrevi numa folha o número do ponto e, numa distração do velho mestre, atirei a bolinha de papel para o Zé Maria. Ele e o Espanhol abriram o livro e começaram a rabiscar. Eu, lá na frente, entregue a própria sorte. Em alguns minutos, percebi que o Zé Maria já estava com uma bolinha na mão. Esperamos por outra distração dos mestres, que seguiam com outros dois alunos, e lá veio a bolinha pelo alto. Levantei o braço, mãos espalmadas, e pedi a Deus (imagine se isso é coisa que se peça a Deus?). Quase chorei quando senti que havia agarrado. -8-


Ah!

Abri a página amarrotada e comecei a escrever rapidamente números, raízes quadradas e cúbicas e, finalmente, o CQD (“como queria demonstrar”), termo que os matemáticos usavam ao concluir com sucesso o problema. O professor Barcelos perguntou se eu estava pronto. Examinou minha prova e, aparentemente, parecia estar satisfeito. Então eu o vi escrevendo a nota 9 em sua caderneta. Faltava agora o impossível, uma nota 7 com o professor Epinghaus. Mas, para minha surpresa, os dois mestres — já cansados — trocaram uma palavra que não entendi direito e o professor Barcelos, que era o nosso professor (estava sendo auxiliado pelo outro), perguntou-me: — Está bem para você se o professor Epinghaus repetir a minha nota? — Sim. E comecei a chorar. Nossos caminhos se separaram logo depois. Eles foram fazer jornalismo; eu, direito. Mas nossos caminhos iriam se cruzar mais adiante quando fui contratado para trabalhar no jornal Última Hora, o Zé Maria no Jornal do Brasil, em São Paulo, e o Espanhol na Folha de São Paulo. Já não nos víamos com tanta frequência, mas às vezes íamos jantar e colocávamos a pauta em ordem. Creio que o Zé ainda não havia se casado quando nos contou que teria de fazer uma nova cirurgia. Nos rins. Teve de extrair um dos rins. Poucos anos depois, problema no outro rim. Extração. O Manuel, que parecia estar bem, pai de dois filhos, de repente entrou no hospital e não saiu mais, derrotado por um câncer de pulmão. O Zé fazendo diálise duas vezes por semana. Quando nos víamos, percebia que cada vez estava ouvindo menos, menos, menos. Até que um dia, quando cheguei em sua casa, como sempre fazia às vésperas de Natal, vi que ele estava com um bloco em branco nas mãos, e uma caneta. Sua esposa me disse que ele não estava ouvindo mais. Eu, então, escrevia as perguntas, ele respondia. Sempre irradiando amor pela vida. Quantas vezes me surpreendi falando de meus problemas para ele. Imagine se eu tinha problemas? — Zé, você está precisando de alguma coisa? — escrevi. — Não, só preciso dos meus amigos. -9-


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Faz alguns anos, sua esposa telefonou para avisar de sua morte. Não havia nenhum jornalista no velório. Eu já tinha decidido que ele faria o prefácio deste livro. Mas ele morreu. Pensei em outras pessoas, afinal sempre ouvi dizer que ninguém é insubstituível. Para mim, ele é. Por isso, este livro não tem prefácio. Tem apenas a história de um amigo. Era tudo que ele queria.

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Sumário ah!...............................................................................................................................5 Um Zé qualquer........................................................................................................7 Dois pra lá... ...........................................................................................................17 Falando no duro ....................................................................................................19 Gira de Exú .............................................................................................................21 Há meia hora, a morte passou por aqui .............................................................23 Coração ...................................................................................................................27 O casamento de Pelé .............................................................................................29 Missa no Carandiru ..............................................................................................31 O adeus de Zito ......................................................................................................33 Imprensa .................................................................................................................35 Bagaço .....................................................................................................................38 A ditadura dos militares e dos civis ....................................................................39 HAF .........................................................................................................................41 A viagem .................................................................................................................43 O pracinha ..............................................................................................................46 “NF” ........................................................................................................................48 Uísque paraguaio ...................................................................................................50 Você está demitido ................................................................................................52 Concentração .........................................................................................................54 O menor JLCF ........................................................................................................56 Diante de deus .......................................................................................................57 Escola gaúcha de vida ...........................................................................................59 Sono mexicano .......................................................................................................63 Preleção ...................................................................................................................65 Futebol e negócios .................................................................................................67 Segurança política .................................................................................................69 Condenado .............................................................................................................73 O homem e a máquina .........................................................................................77 A carne de Chernobyl ...........................................................................................78 A morte de Tancredo ............................................................................................79 Jogai por nós! .........................................................................................................81 Todo mundo nu .....................................................................................................83 O enterro de Tancredo ..........................................................................................87

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Mil vezes Pelé .........................................................................................................89 Moscou, 1980 .........................................................................................................91 Patriotada ...............................................................................................................95 Garrincha em Pato Branco ...................................................................................97 Bebê...to ............................................................................................................... 101 O juiz é nosso ...................................................................................................... 103 Seleção versus imprensa .................................................................................... 105 Veja Mané Corintiano ........................................................................................ 109 O menino da Copa ............................................................................................. 111 O corte de Bellini ................................................................................................ 115 Carteado .............................................................................................................. 119 Diretoriado clube ................................................................................................ 121 Nome e sobrenomede craque ........................................................................... 125 João sem medo .................................................................................................... 129 Casamento de jornalistas ................................................................................... 133 Zizinho e eu ......................................................................................................... 135 Pelé e Pepe ........................................................................................................... 139 Camarones a la diabla ........................................................................................ 143 Futebol e sexo ...................................................................................................... 145 Com dois enes ..................................................................................................... 149 Yeso ....................................................................................................................... 151 Quem corre é a bola! .......................................................................................... 155 Repórter de futebol ............................................................................................ 159 El Verdugo ........................................................................................................... 163 O Monstro ........................................................................................................... 165 Tiradentes ............................................................................................................ 167 Goleiro negro ...................................................................................................... 171 Pelé, 50 anos ........................................................................................................ 173 Yustrich na TV .................................................................................................... 175 Majestade ............................................................................................................. 179 Funeral ................................................................................................................. 183 Futebol de verdade ............................................................................................. 185 Jean e João ........................................................................................................... 189 Futebol nos EUA ................................................................................................. 191 O espanhol de Zamora ...................................................................................... 193 Tabu ...................................................................................................................... 195 Descobridor de talentos ..................................................................................... 197 O homem que morreu duas vezes .................................................................... 199

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Ah!

Eu não vi Leônidas jogar ................................................................................... 203 Felipe Zidane ....................................................................................................... 205 Pedro Rocha está vivo ........................................................................................ 207 Jogo de macho, pero no mucho! ....................................................................... 209 Fim de carreira .................................................................................................... 211 Arthur Friedenreich ........................................................................................... 213 Campo de concentração .................................................................................... 215 A família do jornalista ....................................................................................... 217 TV Globo ............................................................................................................. 219 Corrida ................................................................................................................. 221 Suor e fumaça ...................................................................................................... 225 Lei do Passe ......................................................................................................... 227 Segurança máxima ............................................................................................. 229 Opção ................................................................................................................... 232 Medos da ditadura .............................................................................................. 234 Profecia ................................................................................................................ 236 Rebú ..................................................................................................................... 238 Senna, assassinado! ............................................................................................ 240 Um craque ou um produto de marketing? ...................................................... 242 Eu bebo sim ......................................................................................................... 245 Romeu .................................................................................................................. 247 Nossa Senhora! ................................................................................................... 251 Tricolor de coração ............................................................................................. 253 “71” ....................................................................................................................... 255 É isso aí, bicho! ................................................................................................... 257 Time do povo ...................................................................................................... 259 O amor, ah!, o amor... ......................................................................................... 261 Armandinho ........................................................................................................ 263 Seleção de brasileiros ......................................................................................... 265 O copidesque de Gay Talese .............................................................................. 269 Prorrogação ......................................................................................................... 273

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Ah!

Dois pra lá... Não, claro que não. João Bosco ainda não tinha composto a música que Elis Regina cantava como se estivesse no táxi-dança Avenida. A nossa história começou muitos anos antes. Foi depois de outubro de 1963, quando boa parte da equipe que cobria a editoria de polícia na Última Hora transferiu-se para o jornal Notícias Populares. Numa daquelas madrugadas, depois do fechamento do jornal, o chefe da equipe, Romão Gomes Portão, estava indo com seu pessoal para o Avenida quando os encontrei, também de saída. Resolvi acompanhá-los. Eu tinha 21 anos, pesava 63 quilos, 1,71m de altura. Magrinho. Achava que já podia ser um dos “iguais”, aqueles repórteres policiais que terminavam a noite tomando conhaque e falando de sangue, crimes hediondos, investigações em parceria com a polícia. E mulheres, grandes mulheres da noite, grandes romances. Quase todos andavam armados, em geral um 38, cano curto, para não fazer muito volume debaixo do paletó. Entre eles Cícero Leonel, Nelson Néri, Waldemar de Paula, Rubens Capozzoli..., acho que só o Percival de Souza e o Renato Lombardi não tinham o costume de andar armado. Chegamos. - 15 -


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A turma era da casa, logo mesas se juntaram às outras para agrupar aqueles jornalistas e, antes de qualquer coisa, a garrafa de conhaque. Sentei-me ali como um dos iguais. Antes que pudesse perceber, meu cálice já estava cheio. Tinha que agir como um dos iguais. Virei, um gole só. Olhei do lado, todos já estavam vazios. E a pista lotada. Parecia uma sexta-feira para estar daquele jeito. Quando embarquei no segundo gole, tive impressão que a voz de Lucho Gatica já estava meio distante. Foi por ali que o Romão Gomes Portão me deu um toque. — Olha lá aquela morena de olho em você! Olhei do outro lado e realmente lá estava a morena, peituda, cabelos presos, me encarando. — Vai lá! Era minha primeira noite, a primeira noite de um jornalista quase igual, da fina malandragem. Dei um tempo para conferir. Não deu outra. A morena continuava lá, sentada, encarando, trocando pernas, mostrando as coxas gordas. Haja areia para o meu pequeno caminhão. — Vai lá! — insistia o Romão. No intervalo, criei coragem, peguei o cartão para picotar e esperei recomeçar a música. (O cartão servia para marcar os minutos que usávamos as dançarinas. Assim era feito o pagamento). Atravessei a pista, ela continuava me encarando. Não me faltou coragem. Atravessei aquela fumaceira, cheguei diante dos peitos — quer dizer — da morena e estendi minha mão, convidando-a para se levantar. — Você não se enxerga, não, moleque?! Quando olhei para trás, a editoria de polícia em peso morria de rir. Passada a armação, a morena veio até se desculpar, mas já era tarde demais para mim. Uns dias depois, a história estava na coluna do Romão. — Levou tábua no táxi-dança! Um caso extraordinário, o único, talvez, da história. Foi o meu batismo. Bom, pelo menos, depois daquela passei a ser um dos iguais.

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Falando no duro Era impossível vê-lo sem o charuto. Ele e seu charuto, uma personalidade só. Um não existia sem o outro. Chegava à redação no meio da tarde. Em geral, de paletó e gravata. Gostava de seu terno Príncipe de Gales, camisa azul, gravata de tonalidade mais escura. Quando iniciava a sua coluna — Falando no duro — assumia um ar ainda mais sério, sem paletó, de óculos, a fumaça entre ele e a máquina. Formado em direito no Rio, adaptou-se logo a São Paulo e chegou a diretor do jornal Última Hora, de Samuel Wainer. Casou-se com uma jogadora de basquete. Defendia seu ponto de vista como ninguém, até em coisas supérfluas, sem importância. Uma delas: a Seleção Brasileira que iria disputar a Copa de 1950 estava concentrada no Quitandinha. Após o treino, os jogadores saíam do banho descalços e caminhavam até os armários para se trocar. O auxiliar técnico Vicente Feola, observando muitas lâmpadas de flash das máquinas fotográficas da época, chamou a atenção: — Tomem cuidado! Usem os tamancos porque vocês podem pisar nessas lâmpadas e cortar o pé. Observando os fatos, o velho jornalista deu uma baforada com seu inseparável charuto e repreendeu: - 17 -


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— Ô, Feola, você não sabe que essas lâmpadas não cortam nada?! Para mostrar o que estava falando, apanhou duas delas, descartadas no chão, e as esmagou entre as mãos extremamente fortes. E, para espanto geral, permaneceu com as mãos fechadas. Gotas de sangue começaram a cair. Esse era Álvaro Paes Leme de Abreu, falando no duro.

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Gira de Exú Você é do ramo? Não tem importância, eu também não era. Pouca gente, até entre nós jornalistas, podia entender o que estava acontecendo com aquele menino, o Nei Oliveira, centroavante do Corinthians. Era craque, todos sabiam. Não havia dúvidas. Aos 18 anos, já era da Seleção. Mas não conseguia jogar. Vivia no departamento médico, com uma distensão muscular que ninguém conseguia diagnosticar. E o Corinthians precisava dele para enfrentar Pelé, o Santos de Pelé, e um tabu que não parecia mais ter fim. Eu o conhecia desde os juvenis, onde ele chegou a jogar com o meu primo Roberto, o Roberto Battaglia. Um dia, quando todos — jogadores e jornalistas — já haviam deixado o Parque São Jorge, percebi que Nei continuava no vestiário, chorando. Será que eu poderia ajudá-lo? — Ninguém pode me ajudar. Estou amarrado! Você sabe o que é isso? Fizeram um trabalho, um trabalho. Magia negra. Enquanto ele não voltasse ao terreiro de dona Conceição não conseguiria - 19 -


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voltar a jogar. Eu o incentivei a voltar ao terreiro. E lá fomos nós, numa daquelas sextas-feiras de maio, talvez de 1966. Fiquei lá no fundo do terreiro, ao lado do fotógrafo Geraldinho Guimarães. Nei entrou, deitou-se diante do altar. Escureceu! Tudo apagado, entrou uma senhora de seus setenta anos e começou a rodopiar em torno do craque. Descalça, com suas saias largas e pés ligeiros. Tinha um tridente nas mãos, uma cuia cheia de cachaça e fumava um enorme charuto, com as brasas voltadas para a boca. — Quem sou eu? — perguntava aos gritos aquela senhora de baixa estatura, gorda, cabelos grisalhos, que rodopiava pelo terreiro com a agilidade de uma criança. — É o Exu, de cavanhaque e bigode! — respondiam. Quieto, vi que minha hora tinha chegado quando ela caminhou na minha direção. E perguntou de novo: — Quem sou eu? — É a dona Conceição! Ela jogou o tridente na minha direção. Ainda bem que fazia frio, eu vestia uma japona. Furou a japona, a camisa, e me causou um ferimento superficial acima do umbigo. — É o Exu, de cavanhaque e bigode! — gritei. Ela afastou-se. Girou e girou em torno de Nei, ou melhor, de seu corpo deitado. Ele, imóvel. Foi assim que Nei voltou a jogar. Teve até um filho que foi jogador, o Dinei. Eu só fiquei com uma pequena cicatriz daquela noite. A noite da Gira de Exu, quando o diabo baixou no terreiro da Vila Ema e desamarrou as pernas do craque.

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Ah!

Há meia hora, a morte passou por aqui Foi a minha primeira experiência na cobertura de uma tragédia. Estava no jornal no começo de uma tarde de domingo para fazer a rotina, ir para o estádio e escrever sobre um jogo de futebol, quando chegou a notícia de que o acidente em Caraguatatuba tinha sido muito grave, gravíssimo, e precisávamos mandar mais gente para a cobertura. Para minha sorte, ou azar, eu era o único repórter que estava lá. Fui enviado para Caraguatatuba. Com a roupa do corpo. — Como eu vou chegar lá? — Se vira. Alguma alma piedosa conseguiu me mandar de carro até São José dos Campos. De lá, peguei um avião da FAB e fui até o aeroporto de Ubatuba. De Ubatuba, desci de caminhão para Caraguatatuba. Comecei a fazer anotações numa lauda, traçando o mapa do caminho, a minha trajetória até a cidade coberta pela lama e pelo medo. Quando entrávamos na cidade, havia uma enorme clareira no morro, vermelha de barro. Ali, onde antes havia árvores e casas. Ou melhor, casebres, gente pobre que desmatou o morro e vivia ali, nas mãos de Deus. Muita gente nas ruas, maltrapilhos, sobreviventes. Na prefeitura, vi um mapa da região fixado na parede. As áreas atingidas estavam em vermelho. - 21 -


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O prefeito, não sei o quê Nogueira, corria de um lado para o outro. Queria ajuda do governador, vacinas. Publicidade. A ponte sobre o rio Santo Antonio caiu, dividiu a cidade. O repórter Ferreira Neto tentou atravessá-lo pelas cordas e quase morreu afogado. Eu, mais leve, consegui chegar à outra margem. Logo se fez noite. Um médico operou a úlcera de estômago de uma velhinha à luz de velas, depois que caiu a energia. Ele tinha água até os joelhos. No dia seguinte, em voo de helicóptero, cheguei até um dos morros, onde um grupo de pessoas ficou isolado. Um bombeiro valente conseguiu resgatar duas crianças que haviam rolado morro abaixo junto ao barro, à lama e a outros detritos. E a muitos corpos, já em decomposição. Na volta, lá do alto do helicóptero ainda pude ver dezenas — seriam centenas? — de bois, atolados até o pescoço, com os olhos esbugalhados de quem está perto da morte, afundando. Lentamente. Eu sabia que tinha todos os ingredientes de uma tragédia: os heróis — o médico e o bombeiro —, a morte de muitas pessoas, a luta para sobreviver. Nesse ínterim, como em toda a tragédia, um momento de luz. Soube que no albergue montado em um colégio, pelo assistente social voluntário, o Ferreirinha — que anos depois trabalhou como RH da Globo —, uma criança acabara de nascer. Fui para lá. A mãe, de rosto cadavérico, ostentava a criança entre as pernas, sentada sobre um colchão, e o pai apenas olhava. Nesse momento, chegou ao local a comitiva do governador Abreu Sodré. Ele fazia gestos políticos, sorria para os miseráveis, prometia ajuda. Quando pessoas que o acompanhavam souberam do nascimento da criança, o prefeito teve a infeliz ideia de querer batizá-la ali mesmo, naquele momento. — Podemos batizá-las com o nome de Roberto! — sugeriu o prefeito, o mesmo nome do governador. Sentindo que o ato do prefeito não havia agradado, o governador procurou retirar-se dali o quanto antes. Uns vinte minutos depois, a criança morreu. Narrei todos esses fatos em minha reportagem, mas só no dia seguinte vi a manchete que o Murilo Felisberto havia dado: — Há meia hora, a morte passou por aqui. A primeira página ilustrada por uma foto imensa da mãe, com a criança... e os políticos que haviam passado por ali. - 22 -


Ah!

Coração Havia semanas, esperávamos de prontidão. A qualquer momento poderia ser realizado em São Paulo o primeiro transplante de coração da América do Sul pela equipe do doutor Zerbini. Eu era apenas mais um de uma imensa equipe de reportagem. Há algum tempo, o jornal havia me destacado para reportagens nesse setor. A evolução da cirurgia cardíaca, as substituições das válvulas, o material utilizado; mas havia uma questão que ainda não tínhamos uma resposta: a rejeição do órgão. O especialista do setor — se não me falha a memória, o seu nome era Francisco Antonácio — era um médico muito discreto. Não podia nem ver jornalista que logo se escondia. Procurei por seus melhores amigos, funcionários e até parentes. E nada. Ele não falaria sobre o assunto. Assim sendo, quando chegou na redação a informação que um sorveteiro tinha sido atropelado por um ônibus e que seria realizado o transplante num tal João Boiadeiro, senti que a cobrança sobre a imunologia (rejeição do órgão) iria ficar mais forte. Expliquei o problema para o meu editor, Hamilton de Almeida Filho. Ele, muito mais experiente, me pegou pelo braço. — Vamos lá. - 23 -


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E lá fomos nós. Ele, eu e uma mocinha nova no jornal. Chegamos ao HC e fomos até o setor do doutor Francisco. Eu o vi, mas ele fingiu que não havia me visto. Então, a mocinha que estava conosco, com seus olhos brilhantes, seus cabelos penteados e seu olhar angelical, aproximou-se dele. E começaram a conversar como se fossem velhos conhecidos. Ela e o Hamilton faziam perguntas, o médico respondia tudo, olhando fixamente para ela, e eu apenas anotava. Anotava tudo. Era o mínimo que podia fazer naquela circunstância. Dirimidas todas as dúvidas, agradecemos. Ele despediu-se dela. O nome dela, naquele tempo, era Cláudia Batista. Hoje ela é conhecida entre os budistas por Monja Cohen. Obs.: Diziam que o maior problema para o sucesso do transplante estava no organismo do paciente e nas drogas que tomava para impedir que seu organismo rejeitasse o novo órgão. Mas, segundo fortes boatos, não foi disso que João Boiadeiro, o primeiro paciente de transplante de coração, morreu. Disseram que ele estava sendo tratado com tanto cuidado por uma enfermeira que não resistiu. Morreu de parada cardíaca quando... se masturbava.

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Ah!

O casamento de Pelé Pepe Gordo, naquele tempo, era o pai branco de Pelé. Pepe Gordo o era apelido de José Gonzalez Ozores, um espanhol que imigrou para o Brasil e se tornou um pequeno empresário de construção em Santos e adjacências, deixando de lado seu diploma de professor de matemática, que não valia por aqui. Ele era o procurador de Pelé, o professor e seu tutor, em especial na época em que toda a família de Pelé ainda residia em Bauru. Às vésperas de seu casamento, Pelé estava no Chile, em excursão com o Santos; portanto, tudo que se relacionava à cerimônia estava nas mãos de Pepe. Pepe gostava muito do Jornal da Tarde, com suas fotos de página inteira, por isso não fazia segredos. Pelé iria se casar na casa onde morava com seus pais, na Rua Almirante Cockrane, e não na Igreja do Embaré. — Por quê? — É que na igreja não podemos vetar a entrada de ninguém. Pode aparecer uma multidão e destruir o altar, as imagens — respondia ele. Era até atitude, aparentemente, de bom senso. Conseguir um convite para um repórter e um fotógrafo seria um parto na montanha para os principais jornais, sem falar para os cinegrafistas de TV, gente de rádio. No dia do casamento, o sobrado de seu Dondinho e dona Celeste mais - 25 -


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parecia uma catedral. O altar estava na sala de entrada, centenas de pessoas na porta, e dois pastores alemães latindo acima de qualquer som. Podia-se notar o nervosismo de todos. Gente mais nervosa que a própria noiva, Rosemary Reis Cholbi. Os convidados entraram sob a vigilância de seguranças (e dos pastores), a cerimônia transcorreu sem maiores problemas e, em seguida, Pelé e Rose viajaram até São Paulo em sua Mercedes azul, e de lá foram para a Europa, a convite do empresário alemão Roland Adler, amigo do Rei. Do lado de fora, entre muitas pessoas curiosas, uma mulher segurava uma menininha no colo. Dizia, com voz suave e sem raiva, que aquela criança era filha de Pelé. Quem iria acreditar nisso? Dois anos depois, ao marcar o seu milésimo gol no Maracanã, Pelé fez um apelo pelas crianças abandonadas em nosso país, futuros trombadinhas e prostitutas. Naquele tempo, era impossível saber se ele era o pai. Muitos anos depois, a Justiça reconheceu aquela menina como sua filha.

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Missa no Carandiru Era praxe: no Natal, realizava-se a missa para os presos no Carandiru. Naquele tempo os evangélicos não se destacavam tanto, e não se falava em culto ecumênico. A maioria dos presos, não sei se por alguma relação com a Igreja ou simplesmente para algum conforto espiritual, costumavam ir a essa missa. Lá, em especial no Pavilhão 9, estavam detidos os homicidas, pessoas aparentemente cruéis, que haviam matado para roubar, para vingar a honra, ou, simplesmente, matado alguém por matar, depois de uns goles a mais de cachaça. Nessa missa que antecedia ao Natal, os presos também costumavam ver seus familiares e, de alguma forma, era possível sentir algum resquício de humanidade — era um meio para que ainda se pudesse acreditar na recuperação de um ou de outro. Quem sabe, um dia, saindo dali, não seriam novos cidadãos, trabalhadores, chefes de família? Era nisso que pelo menos o padre deveria acreditar. Havia outras pessoas que também acreditavam. Um deles, jornalista policial, era um rapaz franzino, aí por volta de 1,78m de altura, sempre de terno. Ele escreveu sobre a maioria dos “facínoras” que lá estavam enjaulados, como feras. Boa parte deles jamais deixaria aquela morada, com três, quatro, cinco ou mais crimes hediondos pesando-lhes às costas. - 27 -


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Sabia disso, estava nas páginas do jornal Última Hora ou no recéminaugurado Notícias Populares e, mais recentemente, no Jornal da Tarde. Entrava o padre no altar para rezar a missa quando ele apareceu lá nos fundos, segurando no colo uma menina de dois, três anos se tanto. Os detentos — em estado de liberdade — olhavam-se uns aos outros e, claro, para aquele homem com sua filha no colo. E assim transcorria a santa missa até o momento do ofertório, da presença do Cristo, do seu sangue e do seu corpo, a consagração. Eis que, num simples momento, um dos presos pede para segurar a filhinha do repórter. E, num gesto, a criança foi sendo transportada, de um para outro colo, e, de colo em colo, sobrevoou quase todos os corações feridos daquela igreja. Causou espanto! Pasmos, a gente aqui de fora soube de tudo aquilo com ar incrédulo. Não pela criança em si, em sua inocência, não pelos criminosos — que ali estavam pagando penitência —, mas pelo ar de absoluta fé com que o pai da criança via tudo aquilo acontecer, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Certos de que ali ficou demonstrado que todos podem se regenerar um dia, se não pela lei dos homens, pela lei de Deus. Ah, o nome do repórter é Percival de Souza. Um evangélico.

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Ah!

O adeus de Zito Sou pior que mineiro para horário. Nunca gostei de chegar atrasado a qualquer compromisso. O treino estava marcado para as 9 da manhã, mas às 8 eu já estava chegando a Santos, defronte ao estádio da Vila Belmiro, junto com o fotógrafo Domício Pinheiro, companheiro de tantas reportagens. Mal descendo do Fusca do jornal e quem vejo de saída? Era o próprio José Ely de Miranda, o Zito, símbolo do Santos vitorioso, oito vezes campeão paulista, cinco vezes brasileiro, dois sul-americano, bicampeão mundial interclubes, bicampeão mundial em seleções. O que estaria fazendo Zito ali, de saída? — Não vai treinar? — Não. — Está machucado? — Não. — Para onde está indo? — Para o meu sítio. — Está de folga? — Para sempre. Foi assim que Zito saiu da Vila Belmiro, depois de uns quinze anos, para pescar com seu filho em seu sítio na cidade de Roseira, perto de Taubaté. Estava se despedindo do futebol. - 29 -


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Não houve lágrimas. Não houve fogos. Nem um simples adeus. E, para minha surpresa, um dos maiores furos que dei em minha vida de jornalista. Ele não me enganou. Despediu-se uma única vez. Para sempre.

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Ah!

Imprensa Fui pego de surpresa quando o ex-craque Paulo Roberto Falcão — através de seu procurador Cristovão Colombo dos Reis Miller — me convidou para ser o seu assessor de imprensa. Ele estava assumindo como técnico da Seleção, logo após o fracasso brasileiro na Copa de 1990, na Itália. Queria trabalhar com um jornalista de relativa experiência para que o seu projeto tivesse a maior transparência possível. Não faria nada escondido, não iria privilegiar este ou aquele veículo de comunicação. O presidente da CBF ainda estava desgastado com a maioria dos jogadores que estiveram na Copa, inclusive os líderes que se insurgiram por servirem de garotos-propaganda da Pepsi-Cola, a patrocinadora da Seleção, sem receberem nada por isso. Assim sendo, a missão de Falcão não seria nada fácil. Era o que eu imaginava. Mas, para ele, não poderia ter acontecido nada melhor. Em seu projeto, que ele chamava de “laboratório”, Falcão estava muito consciente do que pretendia realizar. Os jogadores que estiveram na Copa, como Careca, Romário, Dunga, Taffarel e outros, ele já conhecia. Em seu laboratório iria convocar jogadores que a torcida e a opinião pública julgavam injustiçados, entre eles Neto, do Corinthians, Raí, do São Paulo, ou Veloso, do Palmeiras. Pretendia ainda dar oportunidade para jogadores de clubes menos conhecidos, como Mauro Silva — que despontava no Bragantino — e - 31 -


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Márcio Santos, no Novorizontino. Concomitantemente, Falcão pretendia ir formando uma Seleção jovem para disputar as Olimpíadas em Barcelona. Foi assim que Falcão iniciou o seu trabalho para disputar a Copa América, em 1991, e a Olimpíada, em 1992. Dos resultados teria a base da Seleção para as eliminatórias e para a Copa de 1994, nos Estados Unidos. Parecia tudo muito simples. Não era. Às vésperas de ser anunciado como técnico da Seleção, os principais jornais do Brasil garantiam que Zagallo era o preferido da CBF e, no dia em que foi apresentado como técnico, na sede da CBF, assim que descemos no aeroporto Santos Dumont vimos a manchete de última página do Jornal do Brasil estampando: — Zagallo é o técnico. A partir daquele momento, Falcão soube que tinha um inimigo de peso. Desde a convocação para o primeiro amistoso, na Espanha, ele sabia que não podia confiar em muita gente. Fazia a relação dos convocados, pedia que eu a redigisse, e só depois de anunciá-la à imprensa o supervisor Américo Faria a tinha em mãos para fazer as cópias. A cada convocação, os jornalistas tentavam adivinhar um novo nome. E, na maioria das vezes, quebravam a cara. Antes de certo amistoso, todos davam como certa a chamada de Donizetti, o Pantera Negra. Poucos dias antes dessa convocação, correu boato de que um empresário estava pagando caro pela convocação do jogador. Para azar dele, que estava na lista, o técnico foi obrigado a deixá-lo de fora. E houve quem sofreu uma grande perda, em dinheiro, por esse acidente. Às vésperas da realização da Copa América, já com uma boa avaliação do grupo, Falcão resolveu reforçar o time com alguns jogadores que tinham estado na Copa da Itália e que ele considerava que estavam em condições de chegar até a Copa dos Estados Unidos, como Taffarel, Ricardo Rocha, Renato, Branco e Mazinho. Na fase final da competição, o Brasil ganhou do Chile e da Colômbia, e perdeu para a Argentina por 3 a 2. A Argentina havia ganhado do Brasil e empatado com o Chile. Para ser campeão, o Brasil necessitava de um empate entre Argentina e Colômbia. Pouco antes do jogo começar, um empresário do futebol, amigo de Ricardo Teixeira, disse-me que se o Brasil quisesse ganhar aquele jogo - 32 -


Ah!

custaria 80 mil dólares. Era o que o árbitro queria. Falei com Falcão, ele achou aquilo um absurdo. Falcão disse-me que iria ficar para ver o jogo. Eu respondi: — Te espero no hotel. Antes que pudesse chegar até a porta da saída, a Argentina já tinha feito o seu primeiro gol. Batistuta cabeceou, o goleiro Higuita saltou e prensou a bola junto à trave e a jogou para o fundo das redes... Acho que Falcão tinha razão: não adiantaria comprar só o árbitro.

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Ah!

Bagaço Eu não estava lá. Ouvi a história que se espalhou pela redação. O elevador já estava fechando a porta quando ele chegou apressado, passos miúdos e rápidos, o juiz Hélio Bicudo. Conseguiu subir e foi cumprimentado por alguém que já estava lá dentro, Lenildo Tabosa Pessoa. Bicudo e Lenildo eram inimigos figadais. Bicudo odiava a sua subserviência à causa da ditadura e Lenildo achava que Bicudo era apenas um juiz sem causa. Bicudo não respondeu ao cumprimento. Lenildo insistiu. E obteve resposta: — Não cumprimento filho da puta! — Mas eu cumprimento!

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Ah!

A ditadura dos militares e dos civis Acompanhei a Revolução de 31 de março (ou de 1º de abril) como repórter do jornal Notícias Populares. Fui escalado para observar a movimentação do 2º Exército, em especial do Comando no Ibirapuera. Um coronel comandava as tropas. Seguia a Revolução com um radinho portátil marca Spika, colado ao ouvido, ligado aos acontecimentos de Brasília. De acordo com as informações, ora colocava a tropa em prontidão, ora descansar. As informações eram as mais desencontradas. Havia notícias de que o 3º Exército estava se movimentando em direção a São Paulo, já próximo à cidade de Registro, para se unir ao 2º Exército e pressionar o general Syzeno Sarmento, do 1º Exército no Rio, a garantir a ordem e o poder conferido a Jango Goulart. Havia outras notícias que diziam o contrário, que o governador paulista Adhemar de Barros já havia feito um acordo com os militares utilizando-se dos dólares depositados no cofre do palácio, sob cuidados de sua amante (cognominada dr. Rui), e que Jango já estava voando para fora do país, - 37 -


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talvez para o Uruguai. A mim só restava anotar cada informação com seu horário. Evidente que aquelas 32 laudas que consegui escrever já no final da noite de 31 de março nunca foram publicadas. Eu as guardei, certo de que algum dia poderia utilizá-las como testemunho vivo da história. O que sei dizer é que, nos vinte e poucos anos em que vivemos sob regime militar, os donos dos jornais entregaram as redações para os jornalistas. E estes, certos de que estavam numa guerra, aceitaram a luta como civis. E foram para a frente de combate como soldados, utilizando a perigosa arma do jornalismo. Muitos colegas foram presos nesse período, como Marcos Faerman, Flávio Tavares, Marco Antonio Rocha, Luís Merlino — que acabou sendo assassinado. Mas os jornalistas estavam felizes, escreviam o que podiam, tentavam ludibriar todas as noites os censores, sacaneavam os prepostos da Revolução e jamais se autocensuravam. Mas o tempo foi passando, nas patas do meu cavalo... E chegou o dia em que os próprios militares chegaram à dramática conclusão de que não adiantava mais. Não tinham nascido para comandar um país — no máximo, um quartel. Então, os donos dos jornais voltaram a galope para as suas antigas redações. Mas essas redações estavam ocupadas por jornalistas que não estavam dispostos a escrever o que eles queriam, como antigamente. E, para que tudo pudesse voltar a ser como antes (no Quartel de Abrantes) cortaram a cabeça de todos os jornalistas que tinham cabelos brancos, tal e qual Herodes com as crianças. E os seus jornais voltaram a ser o que eram.

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Ah!

HAF Tinha 16 anos incompletos quando publicou sua primeira reportagem no jornal Última Hora. Quer dizer: nasceu jornalista. Quando ele, ainda menino, assumiu a editoria de esportes do Jornal da Tarde e me convidou para trabalhar com ele, imaginava que soubesse alguma coisa de jornal. Eu estava enganado. Fui obrigado a esquecer quase tudo que havia aprendido. Jornalismo era outra coisa, era o que ele fazia. Provou isso em inúmeras reportagens, mas a que mais me chamou a atenção foi uma com o novo presidente do Brasil, Arthur da Costa e Silva, recém-empossado. Quem era o novo ditador? Ninguém sabia. Todos nós tínhamos medo de saber. Então ele se escalou para mostrar quem era o homem. E foi encontrá-lo num dia de grande prêmio no Jockey Club. Conseguiu passar pelo ajudante de ordens, Mário Andreazza, e aproximou-se do homem como se fosse velho conhecido. Deu palpites nas apostas do presidente. Mostrou para a nação a cara de um homem que envelhecia com a dureza dos quartéis, mas como um bonachão que poderia ser confundido com qualquer avô diante do seu neto. Era preciso ser homem para fazer essa matéria. - 39 -


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Para publicรก-la. E para sair na rua no dia seguinte. HAF eram as iniciais de Hamilton de Almeida Filho.

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Ah!

A viagem 1968. Eu ainda era um foca. Tinha seis anos de jornal, mas era um foca. Já lhes disse que o Hamilton de Almeida Filho tinha me mostrado que jornalismo era outra coisa. E, todo dia, ele insistia em me colocar numa prova de fogo. Dizia: — Vai ser jornalista, ou então volta a ser bancário. O medo de voltar a ser bancário era maior do que o de ser derrotado no jornalismo. Por isso, quando ele me chamou até a sua mesa naquele domingo, por volta de 13 horas, eu já comecei a tremer. Cheguei cedo ao jornal para me preparar para a cobertura de uma tarde de futebol, coisa a que estava habituado. Comentário do jogo, entrevista com os técnicos, o personagem da partida. Isso eu dominava, mas o Hamilton queria outra coisa: — O Lacerda tá aí no Hotel Jaraguá. Pega dinheiro no tráfego e acompanha ele por onde ele for. O Lacerda a que ele se referia era apenas o governador Carlos Lacerda, Carlos Frederico Lacerda! Você sabe de quem estou falando? Saí da redação e me dirigi até o saguão do hotel que ficava ao lado, ali na Major Quedinho, centro da cidade. Havia dezenas de jornalistas esperando pelo governador. Ele ainda iria - 41 -


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almoçar antes de seguir viagem. Seu automóvel, um Galaxie azul, estava estacionado diante do hotel. O motorista disse-me que o governador iria dali para o seu sítio em Petrópolis. Eu, com a roupa do corpo. O governador veio a São Paulo para ser paraninfo de uma turma da faculdade de economia. Correram rumores de que poderia haver um atentado contra ele. Você que é mais velho sabe que ele já tinha sido vítima de um atentado nos tempos de Getúlio Vargas. Percebi que não conseguiria uma grande matéria, como o Hamilton esperava de mim, correndo atrás do governador como mais um jornalista. Quando ele voltava do almoço, adiantei-me e me dirigi até o seu automóvel. Disse ao motorista que ele havia me autorizado a esperá-lo sentado no banco de trás. Para minha sorte, o motorista acreditou. Quando o governador chegou e me viu dentro do automóvel quis saber o que acontecia: — O doutor Júlio Mesquita mandou acompanhá-lo, governador. — Mas não tem espaço. Lacerda estava acompanhado de seu filho, do deputado Raul Brunini e — de um papagaio em sua gaiola. Eu estava ocupando o lugar do papagaio. Precisava resolver a situação do papagaio e pedi ao amigo Ricardo Kotscho, que era repórter do Estadão, que levasse a gaiola no Fusca que o jornal havia colocado à nossa disposição para seguir Lacerda por onde ele fosse. Assim consegui me garantir no banco de trás. No caminho, logo após entrar na Dutra, o governador percebeu que o Galaxie estava sendo seguido por uma patrulha do Exército. Mandou parar o carro. Um major apresentou-se: — Governador, tenho ordens do comando para garantir sua segurança até a saída do estado. Lacerda dispensou a segurança. O Galaxie seguiu caminho. Ao mesmo tempo em que traduzia o livro The Triunph, de Robert K. Galbraith, conversava com o deputado, com seu filho, e respondia algumas perguntas que eu lhe fazia. Antes de chegar a Petrópolis, de madrugada, passou na casa de sua mãe em Vassouras, para sossegá-la. Ela estava em companhia do pintor Di - 42 -


Ah!

Cavalcanti. Fazia frio quando chegamos a Petrópolis, mas o governador ainda mandou servir o jantar para nós e o Ricardo pode completar a sua matéria. Voltamos para o Rio de madrugada. Com uma grande matéria, como o Hamilton queria. E com uma prova de grande amizade de Ricardo Kotscho. Eu não sei se teria levado o papagaio para ele.

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Ah!

O pracinha Se você é do sul já sabe como é o inverno por aí. Se não é, nem queira saber. E lá estava eu viajando para Porto Alegre, onde o Corinthians iria enfrentar o Grêmio e o Internacional pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa, que ainda não era o Campeonato Brasileiro. Isso foi em 1967. Viajei no mesmo avião que a delegação do Corinthians. O técnico era o Zezé Moreira, que dirigiu a Seleção Brasileira na Copa de 1954. Seu Zezé era um homem de pouca conversa, pouco riso. E quando alguma coisa o irritava, ficava pior. Naquela viagem houve uma pequena discussão entre o artilheiro Flávio Minuano, que era gaúcho, e o craque do time, Roberto Rivelino, o Garoto do Parque. Seu Zezé achava que essa falta de harmonia entre o artilheiro e o craque acabava entrando em campo. E isso era prejudicial ao time. Era justamente sobre isso que eu estava escrevendo naquele fim de tarde que antecedia ao jogo, no meu apartamento, quando o repórter fotográfico (notem que escrevi “repórter fotográfico” e não apenas “fotógrafo”) Reginaldo Manente bateu à minha porta: — Estava ouvindo o rádio. Mataram um pracinha brasileiro na Faixa de Gaza e a companhia é daqui. Larguei a máquina, vesti o paletó e saímos até o quartel. Lá, encontramos - 45 -


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o endereço da família do soldado e nos dirigimos até a sua casa. Quando chegamos, sua mãe já tinha sido notificada. Alguém nos atendeu à porta, sua mãe estava trancada num quarto, podia-se ouvir, chorando. Sobre a mesa da sala notei uma caixa com várias cartas e fotos, e uma delas entreaberta, com folhas escritas e uma foto recém-recebida. Era a foto do pracinha, vestido de beduíno, e a carta era do dia das mães. O Reginaldo Manente olhou para mim. Precisava fotografar a mãe. Entendíamos só pelo olhar. Enquanto ele abriu a porta e a fotografava, eu recolhi as cartas e saímos às pressas. Um homem acabava de chegar. Era o padrasto. Assim que percebeu o que fazíamos, saiu nervoso atrás de nós. Tempo apenas para entrarmos no táxi que nos esperava e bater em retirada. Tínhamos um local de trabalho instalado no morro, atrás do Estádio Olímpico do Grêmio. Lá costumávamos escrever e enviar as reportagens e fotos através de um rádio SSB que um técnico que viajava conosco instalava. Passamos o resto da noite enviando a reportagem sobre o pracinha, com aquela foto recém-chegada e um texto comovente sobre o dia das mães. Fazia um frio, o maior frio que já senti na vida. Terminamos nosso trabalho e voltamos já muito tarde para o hotel. Estava tão cansado que nem pensava em comer. Tomei um banho fervendo, liguei o ar quente, e adormeci. No dia seguinte, cedinho, fui informado pelo gerente do hotel que metade dos jornalistas gaúchos me procuravam. Queriam a carta, a foto... Antes de deixar Porto Alegre, coloquei todo o material num envelope grande e o enviei para a mãe do pracinha. Faltou-me ética, mas foi uma reportagem única no Brasil. Será que valeu a pena?

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Ah!

“NF” Essas duas letras definiam a edição do jornal no dia seguinte. O JT começava a ser produzido pela manhã. Os chefes de reportagem chegavam cedo, liam os jornais, e depois se reuniam com o coordenador, que durante muitos anos foi o Laerte Fernandes. Nessa reunião eram definidos os assuntos que mereciam cobertura, maior ou menor, de acordo com a linha editorial do jornal. Quando acontecia algo extraordinário, como o incêndio no Edifício Joelma, o primeiro transplante de coração na América do Sul, ou coisa dessa importância, o jornal reunia seus principais repórteres e editores e se concentrava nesse assunto. Até ser esgotado. Desde a reunião da manhã até a noite a redação funcionava como uma locomotiva, soltando fumaça, apitando, rodando, produzindo. Às 7 da noite, os editores já tinham uma noção dos assuntos que tinham rendido mais ou menos e, em nova reunião, desta vez com o editor chefe, decidia-se o espaço que cada editoria fazia por merecer. Independente de qualquer outra coisa, todos nós sabíamos que as reportagens teriam de passar por um último crivo. Depois de exposto o assunto, se o dono desse último crivo silenciasse, a reportagem seria editada. Caso contrário, todos ouviriam a sigla: “NF”. Sinal de matéria vetada. Na ocasião do aniversário de cinquenta anos do Estado Novo, fui um - 47 -


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dos escalados para algumas reportagens. E eu queria fazer uma especial, embora soubesse do risco absoluto dessa matéria receber um NF. Não deu outra. Antes mesmo de chegar à reunião da noite dos editores, a matéria recebeu um NF na reunião da manhã. Quer dizer, não deveria nem ser pautada. Teimoso, insisti. À revelia da chefia, marquei uma entrevista com o professor Miguel Reale. Considerava que sem ele não haveria os cinquenta anos do Estado Novo. Ele era simplesmente autor e testemunha ocular da história. Como ignorá-lo? O professor Reale também sabia que a chance daquela entrevista ser publicada era igual (ou parecida) a zero. Mesmo assim teve a paciência de reproduzir a sua visão da história. Escrevi a matéria com todo cuidado, já me autocensurando, e, quando a entreguei à chefia, imaginei que não chegaria às mãos do patrão. Chegou à reunião da noite e recebeu um NF. No dia seguinte, por milagre, chegou às mãos do pai do NF. E, também por milagre, foi editada sem nenhum corte. Antes que vocês se desesperem, quem criou a expressão “NF” foi o Ruyzito Mesquita. Significava “nem fodendo”.

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Ah!

Uísque paraguaio Sempre tive admiração pela forma como o Fernando Portela produzia suas reportagens. Escrevia rápido, as laudas iam se repetindo no rolo da máquina de escrever e era raro encontrar um erro de ortografia ou concordância. Poucos jornalistas escreviam com tanta segurança sobre os mais variados assuntos. Trabalhar a seu lado tinha esse aspecto positivo, ele me passava essa segurança, era uma espécie de Grilo Falante. Por isso, quando nós dois nos olhamos diante da aula que o professor Ives Gandra Martins ministrava sobre tributação e constitucionalidade das empresas estatais, senti que ambos estávamos com o mesmo sentimento: não estávamos entendendo nada do que o professor dizia. Mas foi o Portela quem teve coragem de desligar o gravador, e eu — muito envergonhado — pedi ao professor que baixasse um pouco o nível de sua aula para que pudéssemos dar início a uma série de reportagens que acabou virando história no JT, a “RSSB” — República Socialista Soviética do Brasil. Era um sonho de Ruy Mesquita mostrar ao Brasil que a nossa economia era mais estatizada do que a da Checoslováquia naquele fim de ditadura militar, e que o país necessitava com urgência de um choque liberal na economia, de privatização. O Portela e eu fomos as últimas opções como coordenadores e autores da série. Antes de nós, jornalistas experientes na área econômica haviam recusado a tarefa, achando impossível levantar dados nas várias BRs que - 49 -


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haviam sido instaladas, como Nuclebrás, Petrobrás, Eletrobrás, sem falar de Itaipu, Banco do Brasil, Instituto de Resseguros, e por aí afora. Só mesmo dois jornalistas que não sabiam o tamanho da empreitada, como o Portela e eu, para toparmos a parada. E nossa pauta começou como descrevi acima, com essa aula do professor Ives Gandra. Depois de muitas horas de cassete, chegamos à conclusão que seria possível iniciar uma pauta recorrendo às sucursais de Brasília e do Rio e, em especial, às do exterior. Tínhamos companheiros de primeiro time para nos ajudar, nos orientar inclusive, como o Domingos Meirelles e o Reali Júnior. Encontramos, no nosso caminho, muita gente interessada em ajudar e, quando finalmente foi anunciado o primeiro capítulo da série, outros veículos de comunicação entraram no assunto, como se aquele tema fosse uma cruzada nacional. Ruy Mesquita era requisitado quase diariamente para dar entrevistas em rádio e televisão, e o assunto virou tema de congresso, com a participação de políticos ilustres no debate, como o senador Fernando Henrique Cardoso, a princípio não tão entusiasmado com a privatização. A editora gaúcha MPM contatou o editor do jornal para lançar a série em livro — seriam dois volumes de mais de quinhentas páginas. Mas o doutor Juca Mesquita não autorizou. Ele ainda estava magoado com a greve dos jornalistas, em 1979, e com uma ação coletiva dos funcionários contra a empresa exigindo pagamento de horas extras, movida pelo Sindicato dos Jornalistas. O doutor Juca vetou a edição do livro e, em represália, Portela não quis que eu enviasse a série para a disputa do Prêmio Esso de Reportagem naquele ano, se não me engano, de 1983. Lembro ainda que, depois do congresso pela privatização, no Maksoud Plaza, estávamos saindo do hotel quando, num gesto delicado e de reconhecimento, o diretor Ruy Mesquita nos convidou para um uísque. Eu já estava aceitando quando percebi que o Portela não estava a fim. Disse que tinha compromisso. Também agradeci o convite e recuei. Já estávamos de saída para o estacionamento quando ele me disse: — Eu não bebo com patrão!

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Ah!

Você está demitido Eram outros tempos. Não havia Internet. O que havia era o furo de reportagem que, às vezes, perdurava por muitas horas, dias... Eram momentos de rara felicidade dos jornalistas. Naquele domingo de 1967 não havia futebol. Era dia de eleições para a Assembleia Legislativa. Pensei que teria um dia de folga, mas fui escalado para fazer a cobertura eleitoral no Parque São Jorge, um dos colégios da cidade. E lá fui eu. Encontrei muitas pessoas conhecidas, sócios, diretores do Corinthians. Claro, o presidente do clube, Wadih Helu, era candidato. Eu o vi quase no fim da tarde, quando as urnas estavam para fechar. Sabia que lá era seu reduto eleitoral e que, por isso, devia ter percorrido outros locais para fazer boca de urna, deixando a Fazendinha para o final do dia. Fiz-lhe perguntas apenas sobre política e ele estava muito esperançoso. Antes de encerrar ali o meu trabalho, sem nenhuma razão, ele disse: — Amanhã eu vou mandar o Filpo embora. Era uma bomba! Don Nelson Ernesto Filpo Nunes era o técnico do Corinthians. Não havia o menor indício de que seria despedido, mas o presidente do clube não estava gostando do seu método, dele morar em Santos, enfim, não corria em suas veias o sangue corintiano. - 51 -


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Além disso, Filpo havia trabalhado no Palmeiras. Dirigiu a grande Academia de Futebol com Dudu e Ademir da Guia; Julinho, Vavá, Servílio. O time era tão bom que representou a Seleção Brasileira na inauguração do Mineirão, e Filpo foi o único técnico estrangeiro na história do nosso futebol que conduziu a Seleção. Repetia sempre, quando estava no Palmeiras, que em suas veias corria o sangue verde. Depois de escrever umas poucas linhas sobre a eleição, fui conversar com o editor de esportes sobre o furo que tinha conseguido. Num dia de poucos assuntos, seria a manchete da página de esportes, com chamada na primeira página. Entreguei a matéria e fui embora. Na segunda-feira pela manhã havia treino no Parque São Jorge. Fui pautado para dar suíte à matéria. Passei a noite imaginando se Wadih Helu iria cumprir a promessa. Cheguei ao clube quase na mesma hora em que vi o Fusca do jogador Clóvis estacionando. Ele trazia outro jogador, o Marcos, e, no banco de trás, estava Filpo Nunes. Quando ele desceu desajeitado do carro — tinha só duas portas — percebi que estava com o JT nas mãos. Olhou para mim com escárnio, mostrando a página do jornal. Seguiu na minha frente, andou uns cinquenta metros, quando virou a direita para ter acesso ao vestiário viu o presidente Wadih Helu e os diretores de futebol reunidos, à sua espera. Voltou-se então para mim: — Es verdad? Era. A manchete do JT era esta: — Filpo, você está demitido!

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Ah!

Concentração Você sabe o que são 22 jogadores numa concentração? Então, dá para imaginar? São homens que treinaram na terça-feira, dormiram no hotel para jogar na quarta, descansaram na quinta de manhã e se apresentaram ao clube à tarde. Dormiram em casa na quinta, mas na sexta já estavam treinando à tarde. Novo treino sábado à tarde e novamente concentração à noite para o jogo de domingo. Descansam na segunda, e na terça... Não, isso até que não é nada. É rotina. Problema sério é quando os jogadores se concentram por um período mais longo, para jogar uma Copa do Mundo, por exemplo. No clube, pode haver uma ou outra dúvida entre titulares e reservas. Na Seleção é diferente, são 22 cobras criadas, ídolos em seus times, e não estão ali para sentarem no banco de reservas. Não estão acostumados com isso. Daí, como fica a convivência? Tem uma turma que gosta de jogar sinuca — ou pelo menos gostava, antes desses jogos de computador. Outros preferem o baralho, que foi proibido por muitos técnicos porque ali o dinheiro rolava pesado. Numa partida de sinuca, se não tem dinheiro na parada, tem gozação. Foi numa noite dessas, a Seleção concentrada no Beira-Rio, que Renato Gaúcho e Sérgio Guedes disputavam uma partida. Do lado de Renato torciam os cariocas; do lado de Sérgio, os paulistas. E a bola rolando. Quem perdesse teria de passar por baixo da mesa. - 53 -


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Uma humilhação! Faltou pouco para sair uma briga, com tacos, não nas bolas. Outra foi depois do jogo entre Brasil e Polônia, pela Copa de 1974. Estava em disputa o terceiro lugar. Luís Pereira tinha sido expulso no jogo anterior, quando o Brasil perdeu por 2 a 0 para a Holanda. Em seu lugar tinha sido escalado Alfredo Mostarda, que curtia uma reserva longa, com uns quilos acima do peso. Por isso, o goleiro Leão gritava para o lateral-esquerdo Marinho Chagas não avançar. O ponta-direita adversário, Lato, era rápido, habilidoso, e Alfredo não tinha pernas para fazer a cobertura. Numa dessas avançadas de Marinho, a Polônia contra-atacou. Lato recebeu a bola nas suas costas, avançou e chutou cruzado. Gol. E o jogo terminou assim. E a briga começou na entrada do vestiário, quando Leão deu uma bofetada na cara de Marinho. Todo mundo viu. Ninguém apartou.

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Ah!

O menor JLCF Naquele tempo, menor de idade tinha de pedir autorização para os pais para jogar futebol, profissionalmente, à noite. Trabalhar podia. Os meninos começavam a trabalhar aos 14 anos. Como não tinham motos, não eram motoboys, eram apenas office-boys. Faziam o serviço a pé, pelo centro da cidade, onde se localizavam bancos e escritórios de empresas. Esse menino, que veio de Lins, trabalhava na Portuguesa de Desportos. Tinha pouco mais de 16 anos quando foi escalado para jogar contra o Santos de Pelé, pelos idos dos anos 1960, quando Pelé já era ele, o Rei. Era uma noite de quarta-feira, no Pacaembu. Daí, o menor JLCF recebe a bola na intermediária, quase em cima da linha lateral. Chegam dois jogadores adversários para lhe tomar a bola. Sem ter o que fazer, ele deu um leve toque e a bola passou por baixo das pernas do primeiro, que ficou parado, sem acreditar no que estava acontecendo. O menino pegou a bola mais à frente e foi embora. O adversário ficou olhando. Mas não era um jogador qualquer, era Pelé, o Rei. O que poderia ser feito para amenizar aquele ato? — Para todos os efeitos, o menor JLCF não pode ser responsabilizado pelo crime lesa-majestade... Foi assim que o redator Otoniel dos Santos Pereira fez o lide da matéria sobre o menino que ousou jogar a bola no meio das pernas do Rei, uma caneta, como se diria hoje. - 55 -


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O menor, hoje já podemos dizer, era João Leiva Campos Filho, o Leivinha. Já homem, consagrou-se com a camisa do Palmeiras e depois do Atlético de Madri e da Seleção Brasileira.

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Ah!

Diante de deus Havia umas duas semanas que aquele senhor gordinho, baixo, sempre de terno e chapéu, rondava a Vila Belmiro. E nada. Era um repórter chileno, e também fotógrafo, estava no Brasil para fazer uma entrevista com Pelé. Mas Pelé não o atendia. O rei não gostava de dar entrevistas naquele tempo. Só falava mesmo quando não tinha saída, e, de preferência, para veículos de comunicação que considerava importante. Não me lembro para qual jornal trabalhava o solerte repórter chileno, mas não devia ser importante. Ele estava hospedado numa pensão, o terno — surrado — era sempre o mesmo, amarrotado pelas idas e vindas e falta de um bom tintureiro. Enfim, ele não desistia. Estava sempre no lugar errado, na hora errada. Quando Pelé estava chegando para treinar, muitas vezes fora do horário do grupo, ele estava na cidade, tentando convencer Pepito — o porta-voz do rei — que a entrevista era uma questão de vida ou morte. Para ele, claro. E, de tanto ver o pobre chileno rodando a cidade, todos nós começamos a ficar com pena. Até que, numa tarde, o repórter Odair Pimentel, que era mais chegado a Pelé, forçou a entrevista. O chileno estava lá fora, Pelé tinha acabado de tomar banho. Ainda se enxugava diante de seu armário quando aquiesceu ao pedido do Odair e mandou chamar o desesperado repórter. - 57 -


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Assim que passou pela porta de entrada e deparou-se diante do Rei, o pobre chileno ajoelhou-se sobre o estrado, diante do banco onde Pelé tentava se vestir, e começou a chorar. Não conseguia falar outra palavra. Repetia em lágrimas: — Pelé, Pelé... Pelé sorria, pedia para o homem levantar-se, estava pronto para as perguntas. Mas o homem não parava de chorar e repetir: — Pelé, Pelé... Sempre ajoelhado. Odair pegou a máquina fotográfica do chileno, fez algumas fotos dele ajoelhado ao lado do rei seminu, até que todos perceberam que não havia a menor condição para uma entrevista. Quando o rei, finalmente, foi-se embora, o chileno ainda permanecia ajoelhado, no vestiário, abraçado à máquina fotográfica.

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Ah!

Escola gaúcha de vida O que mais me impressionava nesse gaúcho de Taquara era ver aquela cicatriz de uns vinte centímetros atravessando o joelho, subindo até boa parte da coxa e descendo quase até a canela, com as marcas dos pontos ao lado. Aquilo era o retrato de uma cirurgia de menisco no ano de 1947, quando foi obrigado a deixar a lateral direita do Palmeiras e iniciar uma das carreiras mais bem sucedidas como técnico de futebol. Acompanhando sua carreira de técnico podia-se perceber que seu forte não era a tática de jogo. Optava pela força física, pela gana de vencer, pelo amor à camisa. Queria a vitória de seu time a qualquer custo, até nos treinos coletivos, quando o time titular era o seu time e, os reservas, o adversário. Suado debaixo de sol inclemente, ensopado debaixo de chuva e de frio, eu podia ouvir os seus gritos, nem importava o time em que estivesse trabalhando: — Chega junto! O “chega junto” queria dizer: derruba, faça a falta, mate a jogada. Outros técnicos, como Telê Santana, por exemplo, costumavam pedir para seus jogadores chegarem antes, anteciparem-se à jogada, evitarem a - 59 -


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falta, o contato físico. Mas, com o gaúcho, futebol era chegar junto. E foi assim que conquistou vitórias memoráveis, títulos que ficaram na história da Portuguesa de Desportos, Corinthians, São Paulo, Palmeiras, Independiente, e até da Seleção Brasileira. Como conseguia as vitórias se não era um grande estrategista? Para ele, era muito simples. Tratava seus jogadores como se fossem filhos, irmãos mais novos. E, assim, sempre queria saber de tudo sobre a família do jogador, que era também a sua família. Você que é jovem não deve se lembrar; se for mais velho, certamente saberá que houve um jogo em que a Portuguesa de Desportos derrotou o Corinthians por 7 a 3. O goleiro corintiano era Gilmar dos Santos Neves, o São Gilmar, que viria um dia a ser bicampeão mundial de 1958 e 1962 na Seleção Brasileira, e também bicampeão mundial interclubes no Santos. Gilmar era pouco mais do que um menino. Poderia ter vinte, vinte e um anos. Foi acusado pela Fiel (Fiel?) de ter entregado o jogo com três frangos. Naquele dia, qualquer um teria decretado o fim da carreira daquele jovem, mas não o Gaúcho de Taquara. Levou o garoto pra sua casa. E o acolheu como seu filho. Já imaginou o que teria perdido o futebol brasileiro? Em outros tempos, trabalhando no Palmeiras, lá pelos anos de 1972 e 1973, até os mais fanáticos palestrinos achavam que os dias de Ademir da Guia estavam contados no futebol. Aos trinta anos já não era o mesmo. Estava mais lento, sem pernas. A diretoria contratou um argentino para substituí-lo, chamado Madurga. Mas o Gaúcho chamou Ademir de lado, andou com ele pelo gramado, com a mão direita às suas costas e lhe disse: — Seu pai — o grande Domingos da Guia — é meu irmão. Você é como meu filho. E vai ser o titular do meu time. O Palmeiras, naquele ano de 1972, ganhou os cinco títulos que disputou. Com Ademir da Guia com a camisa 10. E foi campeão em 1974, diante do Corinthians, e campeão pela última vez em 1976, quando, aí sim, se aposentou. Na Seleção Brasileira, ele foi o primeiro a se preocupar com a saúde dos jogadores. Queria saber como se alimentavam, chamou um dentista para cuidar da boca dos meninos, e classificou o Brasil para a Copa de 1958. Perdeu o lugar para Vicente Feola na Copa, porque com ele quem - 60 -


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mandava era o técnico. Não quis se submeter às ordens de Paulo Machado de Carvalho. Em 1976, de volta à Seleção, lançou Roberto Dinamite no Torneio do Bicentenário dos Estados Unidos. Foi campeão. Levou o Brasil à classificação na Copa de 1978, mas foi substituído por Cláudio Coutinho. Outra vez por não se dobrar aos dirigentes. Quando ele saiu, César Luis Menotti, técnico da Argentina, disse a amigos: — Agora sim, podemos ser campeões. Sem o Gaúcho eu não tenho medo do Brasil. O fim de sua vida aconteceu antes do fim de sua carreira. Seu filho Márcio, um jovem de vinte anos, morreu de câncer. — Isso é para mim, não para ele! — repetia. Quer dizer, foi a forma mais cruel com que poderia ser punido, pois o Gaúcho gostava mais de seu filho do que de si próprio. Pouco tempo depois, ele também contraiu a mesma doença. Os médicos queriam operá-lo, ele se recusou. Queria morrer. Ou melhor, já estava morto. Essa é apenas uma síntese da história do maior homem do futebol que o Brasil conheceu. E que conquistou muitos títulos em sua vida, não por ser um grande conhecedor de futebol, um estrategista como Elba de Pádua Lima, o Tim, mas por conhecer as pessoas como nenhum outro homem. Seu nome era Osvaldo Brandão, Gaúcho de Taquara, precursor da escola gaúcha de técnicos de futebol, ou melhor, de homens do futebol, como Luís Felipe Scolari.

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Ah!

Sono mexicano Ramón Márquez Carbajal trabalhava no periódico Excelsior, do México. Era alto, um grande topete preto, e gostava de cantar como se fosse Plácido Domingo. Eu o conheci em Guadalajara. Ficamos amigos. Ele gostava dos brasileiros, do futebol brasileiro, das brasileiras. De tudo que era brasileiro. Durante a Copa de 1970 ele foi incomparável ao nos ajudar a resolver problemas, em especial de transmissão de matérias. Naquele tempo, trabalhar era o mais fácil, colher informações. O difícil era ter saco para ficar horas diante de um telex, cuja linha caia a quase toda hora. Costumávamos jantar juntos após o trabalho. Ele nos levava para ver os mariachis. Numa dessas noites, colocou sua própria vida em risco para salvar um jornalista brasileiro de um enfurecido noivo mexicano. A moça apaixonouse pelo jornalista — sabe como são essas coisas, quando o cara fica uma, duas, três semanas fora de casa. Deu o fora no noivo e foi jantar com o novo namorado. Naquele tempo, mexicano resolvia essas coisas a bala. Ele apareceu com o revólver na mão, apontando para a mesa, e Ramón se colocou diante da arma, convencendo o rapaz a entregá-la. Foi um puta susto. Voltamos a nos encontrar na Copa da Alemanha e depois na da Espanha, em 1982. Ao invés de viajar de avião ou trem, Ramón gostava de automóvel. - 63 -


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Quase sempre ia sozinho, cantando. Esgotava o seu repertório de Madri a Barcelona. Numa dessas idas e vindas, Ramón foi escalado para cobrir um jogo em Madri. Saiu de Barcelona já tarde da noite. Encontrei-o alguns dias depois. Ele disse, em outras palavras: — Amigo, cheguei ao estádio, o jogo começou e, quando acordei, o jogo havia terminado. Não vi nada. — E como você fez a matéria? — Contei a verdade. Ramón começou assim a sua reportagem do jogo: — Se as horas de trabalho podem roubar as horas de sono, por que as horas de sono não podem roubar as horas de trabalho?

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Ah!

Preleção Antes dos jogos, logo depois do almoço ou do jantar, dependendo da hora da partida, os técnicos costumam reunir os jogadores para uma conversa final, cuidados sobre o jogo. Isso é um saco! Tem jogador que dorme. Preferia mil vezes estar tirando um cochilo, reunindo energia. Mas tem que ouvir o Professor. Fazer o quê? É lógico que a maioria dos jogadores tiram sarro, às escondidas, destas chamadas “preleções”. Nos tempos do grande Santos, os jogadores mais velhos costumavam brincar com o técnico Lula. Diziam que ele gostava de reunir os quatro cobras do time e orientava: — Vocês quatro vão formar um triângulo no meio de campo. Zito dizia que tudo era brincadeira. Antonio Fernandes, o Antoninho, que substituiu Lula, tinha outra conversa. Era rápido: — Vamos ver se decidimos esse jogo até os vinte minutos para depois tocar a bola e descansar. É que o Santos viajava muito e seus jogadores reclamavam sempre de cansaço. A preleção de Cilinho, Otacílio Pires de Camargo, era diferente. Ele não falava com os jogadores. Colocava bilhetes debaixo do prato, do travesseiro, em lugares que o jogador iria encontrar. Havia sempre ditados, frases de - 65 -


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apoio, recortes de jornais em que os adversários menosprezavam o seu time. Os que se interessavam mais pela parte tática faziam uma sabatina. Rubens Minelli fazia cada jogador responder: — Quem é o primeiro homem da barreira do lado direito? — E o segundo? Ai daquele que se esquecesse. — E se a falta for do lado esquerdo? Quem é o primeiro? Quando Paulo Roberto Falcão assumiu como técnico da Seleção, gostava de fazer preleções longas, alertando os jogadores sobre todos os perigos. Eu não entendia como ele, que gostava de atacar, podia ter se transformado num sujeito tão preocupado com a defesa. Assim, durante a Copa América de 1991, o Brasil chegou à primeira fase da competição precisando vencer o Equador por uma diferença de dois gols para seguir adiante. Estávamos conversando durante o almoço e Falcão começou a falar de suas preocupações com o adversário. — Eles têm um ponta-direita que é uma bala. Chega à linha de fundo com a maior facilidade. Eu só ouvindo. — O meio de campo deles toca muito bem a bola, quase não erram passes... Quando ele parou de falar eu lhe perguntei se iria passar isso aos jogadores brasileiros. Ele me perguntou por quê. — Porque eu acho o Equador uma bosta, eles não tem nem camisa. Vamos passar por cima deles! O professor João Paulo Medina, preparador físico da Seleção, sempre muito discreto, desta vez também concordou que as preleções de Falcão eram muito longas, ainda mais em se tratando de Equador. Não fui à preleção para saber o que Falcão falou, mas ganhamos por 3 a 1. O Dunga tem medo até da Venezuela!

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Futebol e negócios Quem trabalha com futebol não sabe falar em outra coisa. Isso dá até raiva. Minha mulher não aguenta. Ainda bem que nesse dia eu estava sozinho. Era a missa de sétimo dia, homenagem póstuma a Constantino Cury, um homem que muito amou o futebol. Um apaixonado. A Igreja Nossa Senhora do Brasil estava lotada. Gente de todos os clubes, dirigentes, ex-craques como José Carlos Bauer, o Monstro do Maracanã. Durante a missa, a música do maestro Baccarelli me fez viajar para muito longe. Lembrei-me da volta do Japão, quando o São Paulo ganhou o seu primeiro título mundial ao derrotar o Barcelona. Estávamos ainda na alfândega quando o seu Costa (como era chamado pelos amigos) veio ao encontro dos jogadores. Parou perto de Müller, tirou um maço de notas de cem dólares do seu bolso e o colocou no bolso do paletó dele. Creio que ali poderia ter uns dez mil dólares. Constantino Cury não ligava para o dinheiro. Mas sabia que o dinheiro podia estimular um pouco mais os profissionais. Finda a missa, encontro com amigos na escadaria da igreja. Estávamos conversando com José Maria de Aquino, Pierri (ex-superintendente da Fundação Cásper Libero e grande amigo de Constantino), quando chegou J. Hawilla. Ele nos disse que estava realizando um grande negócio para o Corinthians, a pedido de Vanderlei Luxemburgo, que era o técnico. - 67 -


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O negócio era o seguinte: o Cruzeiro cedia o passe do grande zagueiro João Carlos, de 26 anos, e em troca recebia o passe de Cris, de 22 anos, e mais quatro milhões de dólares. Não pude me conter: — Isso é estelionato. Como estávamos no meio do ano, Hawilla recomendou que esperássemos até dezembro para uma opinião mais segura. Respondi que não precisava esperar tanto. João Carlos foi chamado por Vanderlei para a Seleção Brasileira, fez dupla com Odvan (lembram-se do zagueiro-zagueiro?). Depois, João Carlos desapareceu. Cris foi campeão no Cruzeiro, transferiu-se para o Lyon, onde também conquistou títulos. E ninguém foi para a cadeia.

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Ah!

Segurança política Em determinadas ocasiões, o jornal insistia em me mandar cobrir assuntos extrafutebol. Como repórter especial, eu não tinha escolha. Uma dessas reportagens ocorreu num dia em que o presidente Médici vinha a São Paulo, encontro marcado com o governador Laudo Natel. Não era fácil conseguir alguma informação. Minha sorte era que Henri Aidar, ex-presidente do São Paulo, era chefe da Casa Civil do governador e ele me fazia um relato de tudo que estava acontecendo. Amigo de futebol é a melhor fonte que existe quando o assunto não é futebol. Nesse dia, o presidente Médici e Laudo Natel passaram horas conversando e a segurança mantendo todos os jornalistas muito vigiados, longe do local. Não dava para ouvir nada, os fotógrafos também não podiam se aproximar, logo, nem eles poderiam ouvir alguma coisa. E também não consegui qualquer informação de outras fontes. Voltei frustrado para o jornal. Eu não me conformava em voltar sem alguma matéria. Isso me irritava profundamente. Tempos depois, no dia em que Laudo Natel passou o Poder a Paulo Egydio Martins, novamente fui encarregado de fazer a cobertura da saída do governador. Todos queriam fazer a cobertura do governador que estava entrando; portanto, era moleza contar a história de quem estava saindo. - 69 -


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Passei o dia inteiro acompanhando os passos da família Natel. Desde manhã, quando ele foi batizar um netinho, até a noite, quando reuniu os amigos para um coquetel em sua casa nas cercanias do Pacaembu. Ao me ver o dia inteiro trabalhando, o ex-governador perguntou se eu ainda tinha alguma pergunta e falou que poderia fazê-la. Eu lhe disse que não tinha uma pergunta, mas uma grande curiosidade. E lembrei daquele dia em que ele esteve reunido com o presidente Médici, qual assunto conversaram que no dia seguinte não saiu em nenhum jornal. Ele sorriu. — Nós estávamos conversando sobre a troca de um jogador entre o Grêmio e o São Paulo. Ainda bem.

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Ah!

Lágrimas no Jornal Nacional Invejo aqueles profissionais que anunciam tragédias sem derramar uma lágrima. Fico imaginando como conseguem. Às vezes, penso que eles não são jornalistas e, por estarem apenas lendo o que está ali diante dos olhos, não fazem juízo do que leem. Não ligam para o conteúdo. Fiquei impressionado quando William Bonner leu a notícia da morte do companheiro dele, Tim Lopes, esquartejado e queimado no micro-ondas. Leu a notícia como macho, enquanto passava o filme do Tim Lopes e de sua esposa, do Tim em busca da notícia, das acusações contra a prostituição de menores nos bailes funk. Leu a notícia como se estivesse lendo as informações sobre o tempo. Nenhum outro jornalista foi saber direito como tinha sido o fim do Tim. Só o Percival de Souza teve a coragem de sair daqui de São Paulo, subir o morro na garupa de um caminhão de entrega de leite — como leiteiro — e nos trazer a verdade traduzida em livro. O que me deixou menos perplexo foi que William Bonner não é esse homem de ferro que se viu na morte de Tim Lopes. Quando ele anunciou a morte de seu patrão, Roberto Marinho, ele chorou. E foi aplaudido por seus colegas por chorar a morte de um homem quase centenário. - 71 -


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Não sei se o locutor da CNN já chorou alguma vez diante da TV. Não sei se aquele pessoal que lia notícia como Repórter Esso também já chorou um dia. Nada contra. Só pergunto por que o Jornal Nacional chorou na morte do Roberto Marinho e não derramou uma gota por Tim Lopes.

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Ah!

Condenado Fui processado pelo Palmeiras, ou melhor, pela Parmalat, por causa da decisão de 1994 entre Corinthians e Palmeiras. Contei como Edmundo havia conseguido o efeito suspensivo no STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) para entrar em campo. O presidente do STJD na época vivia viajando como convidado da CBF e concedeu o efeito sem ouvir seus pares. Foi o que me relatou o vicepresidente do STJD naquela época, o advogado Rubens Aprobato Machado. O Rubens foi minha testemunha no processo. Chegou lá, disse que havia me contato tudo o que foi escrito, acrescentou mais alguma coisa. O juiz, em primeira instância, me absolveu, mas o advogado do Palmeiras/Parmalat, José Roberto Batochio, recorreu, o processo subiu, subiu, subiu e, quando chegou a Brasília, fui condenado a multa de 10 reais. Quando a Parmalat foi denunciada por lavagem de dinheiro fiquei pensando: Roberto Carlos, por exemplo, custou 650 mil dólares ao Palmeiras. Foi para a Internazionale por 7,5 milhões de dólares. Como esse dinheiro entrou no Brasil? O mesmo aconteceu com outros jogadores que saíram da Parmalat para a Itália e outros países naquela época. Tudo ficou comprovado na Justiça, anos depois. E os meus 10 reais?

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Ah!

O homem e a máquina João Mendonça Falcão foi presidente da Federação Paulista de Futebol. João Etzel Filho foi árbitro de futebol. Tinham uma coisa em comum: eram pobres e amigos. Falcão precisava de Etzel para fazer times do interior vencerem e, com isso, ganhar votos para se eleger deputado. Etzel precisava de Falcão para fabricar resultados, ganhar mais dinheiro, ter mais poder. O João Falcão foi cassado pela Revolução, em 1968. O João Etzel, depois de fazer muitos times campeões, perdeu o poder com a queda do amigo. E todos os demais que foram beneficiados com a corrupção continuaram por aí, nos estádios de futebol.

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Ah!

A carne de Chernobyl Você também foi fiscal do Sarney? Foi laçar boi no pasto como recomendava o delegado Romeu Tuma? O Brasil começou a trazer a carne de frigoríficos franceses. A tonelada saía lá dos portos franceses por 355 dólares e aqui em Santos chegava ao preço de 1.255 dólares. Quem trouxe toda essa carne para o Brasil, que, segundo o Ministério da Saúde, era carne de Chernobyl, foi a Interbrás, empresa que serviu de braço da estatização no exterior. Era uma carne imprópria para o consumo, segundo as autoridades sanitárias, mas como não havia carne no mercado, qualquer carne servia. Como quem atira no urubu e acerta no beija-flor, logo se descobriu que o mesmo problema estava ocorrendo com o leite, que também era importado e embalado irregularmente, fora dos padrões definidos pelo governo. Funcionários da Interbrás tinham privilégios no exterior. Ganhavam como embaixadores, moravam em mansões, carros com motorista. Essa reportagem ajudou a fechar as portas da Interbrás. Ninguém sentiu sua falta. Ao contrário.

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Ah!

A morte de Tancredo Tancredo Neves, o presidente eleito, morreu num 21 de abril — de 1985? Não sei dizer. Lembro apenas que ele chegou dias antes para o Hospital do Incor em São Paulo. Via pela televisão a chegada da ambulância e notei que um médico jovem estava entre os que o recebiam. Era o David Uip, ainda um desconhecido da imprensa, mas era meu vizinho, jogávamos futebol aos domingos pela manhã. Havia grande dúvida sobre o estado de saúde do quase presidente. Uma diverticulite? Era coisa grave? Lembro-me da foto que tiraram de Tancredo ainda no Hospital de Base em Brasília. Ele parecia um boneco tipo João Teimoso, encostado no sofá — como se encosta uma criança de meses para ela não cair. Um sorriso contido. — E aí David, quais são a chance do homem? — Um por cento. Percebi que o nosso quase presidente não tinha a menor chance de sobreviver. E, diante do hospital, o porta-voz da presidência, Antonio Britto, que depois se tornaria governador do Rio Grande do Sul, insistia em passar boletins sempre exigindo o “off ” dos repórteres. (“Falar em off ” significa que ele passaria a informação mas não autorizava - 79 -


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a divulgação da fonte). O meu colega Clóvis Rossi, muito mais afeito à cobertura política do que eu, concordava. Isso me encheu. Poucas horas antes da “verdadeira” morte de Tancredo, lá veio de novo o Brito para mais uma vez falar em off. Eu me levantei e disse-lhe: — Espera aí. Antes de você falar, eu vou embora. Tancredo estava morto. Em “off ”.

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Ah!

Jogai por nós! A cobertura da Copa de 1966 foi uma tragédia. A comissão técnica convocou 45 jogadores. Eram quatro para cada posição e mais cinco goleiros. Dezenas de repórteres se espalhavam pelas concentrações, que mudavam de local para atender apelos políticos. Ora estava em Serra Negra, ora em Teresópolis, Lambari. E a imprensa atrás, sem a menor estrutura para enviar as reportagens. Um fotógrafo do Diário de Notícias chegou a enviar seus filmes de Serra Negra para o Rio através de um caminhoneiro que fazia o transporte de frangos. Vicente Feola, o técnico, montava quatro equipes. E fazia questão de declarar que nenhum deles era o titular. Estava em período de testes. Ora, qualquer idiota podia deduzir que o time titular era aquele que tinha Pelé. Em cada uma das cidades por onde passava a Seleção aconteciam problemas. Quer entre jogadores, quer entre jornalistas, e tiravam a população de sua rotina. Lembro-me que, ao passar por Serra Negra, foram marcados dois amistosos na cidade de Campinas. No dia seguinte, começou a correr o boato de que alguns jogadores tinham visitado a Casa da Paraguaia, no Taquaral, e, não satisfeitos com os prazeres da carne, tinham quebrado metade da zona. Na cobertura de Seleção sempre existem muitos boatos, mas desta vez a - 81 -


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própria dona do estabelecimento ia fazer queixa na delegacia. Os craques foram salvos pelos dirigentes. A Seleção pagaria todos os estragos, mas aqueles que estiveram na casa seriam cortados da Seleção, por indisciplina. Entre os acusados estavam dois zagueiros. Um deles alertou: — Se eu for cortado vou quebrar a cara de alguém! O outro ficou quieto. O que ameaçou, foi para a Inglaterra. O que se calou, ficou. Por isso que, antes do jogo contra Portugal, quando o Brasil precisava desesperadamente da vitória para se classificar, o Diário da Noite deu esta manchete: “Pelé, jogai por nós”.

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Ah!

Todo mundo nu Era a primeira grande oportunidade da minha vida. O JT tinha decidido enviar um repórter para a cobertura da Seleção Brasileira que iria excursionar por quase dois meses, a partir da Europa, África e América. O gaúcho Belmiro Sauthier era muito mais experiente do que eu; além disso, falava alemão, inglês e francês e tinha sido contratado recentemente pelo nosso editor Marcos Faerman. Tinha tudo para ser o escolhido. Mas ele sugeriu meu nome. Coisas que aconteciam naqueles tempos. Eu seria, como dizia um dos slogans do jornal (e que nós levávamos muito a sério) “os olhos e ouvidos que o leitor confia”. As principais rádios e jornais do Brasil também mandariam seus profissionais, afinal tratava-se de uma pré-avaliação de jogadores que iriam disputar as eliminatórias da Copa de 1970. De São Paulo, para nossa surpresa, fomos apenas eu e o Cândido Garcia. Minha responsabilidade era grande, deveria enviar reportagens para três jornais da casa: Estadão, JT e Edição de Esportes. O Cândido trabalhava para o Diário Popular. Naquele tempo, além de ser repórter do JT eu também era repórter da rádio Jovem Pan. O locutor, ou “speaker”, era o Joseval Peixoto e, o comentarista, Leônidas da Silva, o Diamante Negro. Antes da viagem, o Cândido me telefonou. Dizia que os jornalistas - 83 -


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do Rio (Ricardo Serran, do Globo, Geraldo Romualdo da Silva, do Jornal dos Sports, Dácio de Almeida, do JB, e Ney Bianchi, da revista Manchete) estavam querendo fazer um “pool” de reportagem, isto é, todos se reuniriam no fim do dia e passariam as mesmas notícias, ou melhor, ninguém iria “furar” ninguém. Disse ao Cândido que não poderia aceitar. Era a minha grande chance e eu teria de mostrar que tinha futuro no jornalismo. Ele ainda me advertiu que o pessoal não iria gostar. Todos — Seleção e jornalistas — viajamos juntos pela Varig. Era o Didio Seixas que respondia pela companhia aérea e tinha feito todas as reservas de viagem. Ao me encontrar com o pessoal no avião, senti que a barra ia ser pesada. Seria eu contra eles. Fazer o quê? Já na partida de estreia contra a Alemanha aconteceu o primeiro problema. Durante a preleção no vestiário, o lateral-esquerdo Rildo — que jogava no Botafogo — disse para o técnico Aymoré Moreira que não aceitaria ficar na reserva de Sadi, que jogava no Internacional de Porto Alegre. Preferia voltar para o Brasil. Aymoré, que era muito fraco na parte disciplinar, contemporizou, mas não resolveu o problema. O chefe da delegação era o banqueiro Almeida Braga, que também não era do ramo. Era apenas amigo de Havelange, mas nunca tinha dirigido nem um time de futebol de botão. Durante o jogo, ainda não havia terminado o primeiro tempo, a Alemanha dominava. E atacava pelo lado de Sadi. Foi assim que surgiu o primeiro gol. Como eu estava com o microfone da Pan, assistia ao jogo ao lado dos reservas, e, assim que surgiu o gol, antes do técnico falar qualquer coisa, o preparador físico Admildo Chirol mandou Rildo aquecer. O gaúcho Sadi percebeu. Saiu de campo do lado em que estava, sem cumprimentar o companheiro. Como estava lá embaixo, fui a único a perceber que Sadi não estava machucado. A Alemanha venceu o jogo por 2 a 1, mas era para ter ganhado de 5. A Seleção de Aymoré jogou no 4-2-4, com Denílson e Gérson no meio de campo. Foi aí que Aymoré percebeu que esse esquema tático estava ultrapassado. O único time que jogava assim era o Santos, porque tinha Pelé. A derrota na estreia abalou o técnico. E deu margem a novas reclamações. Brito ganhou, também no grito, o lugar de Jurandir, zagueiro do São Paulo. - 84 -


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A Seleção seguiu para Varsóvia e goleou a Polônia por 6 a 3, com Rivelino formando o meio de campo ao lado de Gérson e Tostão, mas no jogo seguinte perdeu para a Checoslováquia por 3 a 2, e Aymoré pensou em fazer nova mudança na equipe. Disse-me: — Vou tirar o Tostão porque não posso jogar com três canhotos (já tinha Gérson e Rivelino) no meio de campo. Tostão tinha machucado o tornozelo, mas segundo ele sem gravidade. Aymoré queria que o médico Lídio Toledo engessasse o tornozelo do jogador para poder substituí-lo por um motivo justo. Tostão se recusou e entrou em campo contra a Iugoslávia, quando o Brasil venceu por 2 a 0. Estava na cara esse racha entre os jogadores. De um lado, liderados por Gérson e Carlos Alberto; do outro, Jurandir, Sadi e outros jogadores que não aceitavam os métodos dos cariocas. A cobertura jornalística estava superquente, e eu estava tendo minha grande oportunidade. A próxima partida da Seleção seria em Lourenço Marques, Moçambique, onde o Brasil enfrentaria Portugal na inauguração do estádio Oliveira Salazar. O Cândido Garcia me procurou e disse-me que não iria para a África, nem ele nem os demais jornalistas. Iriam ficar passeando pela Espanha e pela Itália: — Eu não vou ter como enviar a matéria de lá — disse-me. Realmente, seria algo muito difícil, mas eu contava com o canal de áudio aberto pela rádio e poderia usá-lo para mandar minhas matérias. Tinha uma excelente retaguarda na minha redação. A viagem para Lourenço Marques foi cansativa, mas repleta de novidades. O Brasil venceu com gol de Rivelino e, na volta, passei quase dez horas escrevendo durante o voo Lourenço Marques-Lisboa. Em Lisboa, o nosso correspondente, Santana Mota, estava à minha espera. Pegou todas as reportagens que eu havia escrito e as enviou para o jornal, enquanto eu seguia viagem — escrevendo — de Lisboa até o aeroporto Kennedy, em Nova Iorque, depois de rápida escala na cidade do México. Encontrei-me com os demais jornalistas no avião. Percebi que meu relacionamento com eles estava mais grave. Apenas o Cândido Garcia veio conversar comigo: — O pessoal tomou uma puta chupada da chefia no Rio. Disseram que o Estadão está lavando a égua com a Seleção enquanto eles não estão recebendo nada. - 85 -


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Um jornalista foi até ameaçado de demissão. No dia seguinte, quando amanhecia na cidade do México, o Cândido interfonou para o meu apartamento: — Meu, é melhor você não descer. O Almeida Braga está puto com você. — Por quê? — Disseram que você publicou que ele tinha dançado pelado numa boate em Varsóvia! Claro que eu não havia transmitido isso. Eu tinha que ir ao aeroporto enviar minhas reportagens e fotos que havia comprado de um jornal. Quando cheguei ao saguão, notei que o chefe da delegação olhou feio. Apenas isso. E o resto da viagem pelo México e Peru foi num clima ainda pior, até nosso retorno ao Brasil. O importante é que meu editor e o pessoal do jornal estavam muito satisfeitos com a minha cobertura. Passados alguns dias, numa tarde, eu estava na redação quando notei a presença do banqueiro Almeida Braga. Ele vinha acompanhado de Carlos Lacerda, velho amigo de Ruy Mesquita, dono do Jornal. Ambos entraram na sala do diretor do jornal. Vi o contínuo levar a coleção dos três jornais para a sala, com toda a cobertura. Umas duas horas depois, os visitantes saíram sem falar com mais ninguém.

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O enterro de Tancredo A agonia do nosso quase presidente durou até o dia 21 de abril, 21 de abril de 1985. Assim como Tiradentes, o doutor Tancredo morreu como herói, e, assim como ele, foi esquartejado, não pelos carrascos, mas pelos médicos. Não é a mesma coisa. A equipe escalada para cobrir a enterro foi: Rodrigo Mesquita, Fernando Portela, Moisés Rabinovich, Zé Márcio Mendonça e eu. O Zé Márcio, também mineiro, era o que tinha as melhores informações no meio político, conhecia todos e podia nos dar boas dicas. O Rodrigo coordenava o grupo. Decretada a morte do doutor Tancredo, num 21 de abril, acompanhamos a peregrinação do corpo e fomos para Belo Horizonte. Lá seria velado, no Palácio do Governo, Praça da Liberdade. Cada repórter foi escalado para cobrir um setor. A mim coube ficar no meio do povo, do lado de fora do palácio. A praça ainda estava vazia quando cheguei. Os policiais começaram a colocar obstáculos para o povo não se aproximar demais das grades, mas, ao passar do tempo, as pessoas chegavam cada vez mais e se acotovelavam para entrar e poder se despedir do falecido. Resolvi abandonar o meu posto e entrei no palácio. Coloquei-me atrás de uma das colunas, de onde poderia ver a movimentação das pessoas sem me expor a riscos maiores. Mas o povo avançava perigosamente pelo portão central. Os de trás empurravam cada vez mais os que estavam na frente. Os policiais tentavam - 87 -


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conter o portão, mas estavam em dificuldades. O portão balançava. Ia e vinha. Até que veio. A massa popular explodiu. Vi quando uma senhora obesa caiu e alguém de trás pisou em seu pescoço. E as pessoas continuavam avançando, caindo umas sobre as outras. Essa senhora obesa já chegou morta às salas de trás do palácio que passaram a servir de ambulatório. Havia muitos feridos, gravemente feridos. Felizmente eu não estava entre eles. E pude escrever o que vi. O sepultamento aconteceu na cidade de São João Del Rey, no cemitério que fica atrás da Igreja de São Francisco. O doutor Tancredo pertencia à Irmandade. O caixão saiu do sobradinho colonial carregado por seis soldados. Sua mulher, dona Risoleta, saiu junto. Notei que ela não estava mais usando a aliança. Muita gente ficou para trás; entre os políticos, o doutor Brizola, que ficou a pé. Fui andando ao seu lado até a igreja. E olhe que não era tão perto. Brizola foi contando algumas histórias de Tancredo e parecia perdoá-lo. Depois do enterro, já pelas tantas, todos estávamos muito cansados. Fomos jantar e a maioria votou por regressar de carro até Belo Horizonte. Ninguém queria ir dirigindo. Coube a mim a tarefa. Ao meu lado estava o Portela, que era o mais alto da turma. No banco de trás o Rodrigo, o Zé Márcio e o Rabino (nós chamávamos assim o Rabinovich). Entrei na estrada morrendo de sono, e acho que vim dormindo na direção a maior parte do caminho. Ninguém acordou. Eu só acordei quando já estávamos chegando a BH. Como é que diz aquele ditado: “Dirigido por mim, guiado por Deus”?

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Ah!

Mil vezes Pelé O jornal já estava cansado de gastar dinheiro. O suplemento especial já estava pronto há muito tempo. Aonde o Santos ia jogar ia uma caravana de repórteres, fotógrafos e toda estrutura para enviar as fotos e os textos. E nada de sair o milésimo gol. Até que chegou o jogo contra o Vasco no Maracanã. É hoje, tem que ser hoje. Peguei o avião pela manhã e fui para o Rio, direto para o hotel Novo Mundo, onde estava a delegação do Santos. Cheguei quase na hora do almoço. Os jogadores já estavam descendo para o restaurante. Encontrei-me com o Lima. — E aí? — Sei lá. — Você não acha que sai hoje? Gozador, Lima apenas balançou a cabeça: — Não sei não. Perguntei pelo Pelé e ele me respondeu: — Ainda tá lá em cima, no quarto do Ramos Delgado. Quer dizer, o Negão não estava no apartamento cuja lista na portaria dizia que ele estava. Ele sempre fazia isso para não ser incomodado ou porque estava fazendo outra coisa. Quando ele desceu, e logo depois desceu uma morena, de pantalonas verdes, deu para perceber que ele estava fazendo outra coisa. - 89 -


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O Lima olhou de novo para mim e riu. No saguão, um pessoal chegou para entregar um troféu para o Pelé. Estava uma zorra daquelas. Ele conseguiu atravessar a multidão, almoçou e logo em seguida subiu para o apartamento. Poucos minutos depois subiu a mulher, pela escada, e no primeiro andar deu para perceber que apertou o mesmo andar do Rei. Quer dizer: o milésimo estava comprometido. Pelé só desceu de novo quando já era noite, para ir para o estádio. Ao invés de assistir ao jogo da tribuna, resolvi descer até o gramado. Fui ver o jogo no banco de reservas, perto do técnico Antoninho, que era um tremendo boa gente e não se incomodava com nada. Jogo de poucas oportunidades. A defesa do Vasco era violenta. Mesmo assim, Pelé conseguiu cabecear uma bola que, de onde eu estava vendo, ia no ângulo. De repente, o goleiro deu um tapinha na bola, esta raspou a trave. Pensei: — Seria um golaço o milésimo. Mas nada. No segundo tempo, quando o árbitro marcou pênalti no Negão, ficou uns instantes naquele chove não molha, todo mundo olhando para o Pelé, e Carlos Alberto Torres correu até o banco e falou para Antoninho: — O Pelé não quer bater. Ele não queria fazer o milésimo de pênalti. Foi então que Antoninho deu a ordem para Carlos Alberto mandar todo mundo sair de perto da bola, vir para o meio de campo, deixar só Pelé lá na área. — Eu não aguento mais essa merda! — gritava Antoninho, já perdendo a calma. Daí o Rei foi lá e bateu o pênalti que ele havia sofrido de Ananias. O Andrada, goleiro do Vasco, ainda chegou a tocar a mão na bola. A imprensa invadiu o campo e Pelé, chorando, começou a pedir para todos olharem pelas criancinhas pobres do nosso país para evitar que no futuro não se transformassem em trombadinhas.

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Ah!

Moscou, 1980 Quando chegamos a Moscou fazia um frio danado. Do aeroporto até o hotel, Russian, fui olhando com grande curiosidade a cidade. Não havia quase ninguém na rua. Na medida em que avançávamos para o centro da cidade, observava construções magníficas e outras parecidas com a nossa cooperativa do BNH. As primeiras eram dos tempos anteriores à Revolução, as outras, mais recentes. Na frente do hotel notei que dois homens pescavam. Imaginei que aquilo já fazia parte da propaganda do sistema. Queriam provar que aquele rio que atravessava a cidade não era poluído? Chegamos. Na entrada do hotel, detector de metais. Subimos, tratados com muita gentileza. Desci do elevador e tive que andar muito até chegar ao quarto. Dias depois pude constatar que tinha de dar setecentos passos para ir do elevador até o apartamento. Em cada esquina de corredor havia uma mulher sentada atrás de uma mesa. Era uma recepcionista. Sobre a mesa, garrafas com água gaseificada. Excelente para acabar com a ressaca de vodka. Da janela vi os dois pescadores. Surpreendi-me quando um deles fisgou um peixe. A vara quase dobrou, o peixe tinha uns vinte centímetros. Desci para encontrar com os companheiros de viagem para retirar a credencial para os Jogos Olímpicos. No caminho, três jovens que nos seguiam falavam alto. Um deles se adiantou, aproximou-se de Castilho de Andrade e lhe deu um empurrão. Na mesma hora, surgindo não sei de onde, um homem de paletó e gravata - 91 -


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imobilizou o agressor, nos pediu desculpas e o levou com o braço torcido. Foi fácil entender o motivo da agressão. O Castilho estava com uma camisa com a caricatura de Mickey Mouse. Próximos à Praça Vermelha, onda estava exposto o corpo de Lênin, vários automóveis americanos e alemães novinhos estavam estacionados, com jovens sentados nos para-lamas conversando. Eram filhos de diplomatas. Aos poucos fomos conhecendo a cidade. Nos primeiros dias tínhamos a sensação de estarmos sendo seguidos. Então, entrávamos no metrô, descíamos em várias estações, trocávamos de vagão. Era só uma brincadeira, mas parece que deu certo. Nos perderam de vista e desistiram. O café da manhã era incrível. Muitas marcas de iogurtes, pães, geleias. Até que os russos não passam tão mal, pensava. Depois de uma certa intimidade com o rapaz que nos servia, parecia que a história não era bem assim. Um dia ele me disse que falava um pouco de português, que havia estudado em Portugal. Na medida em que conversávamos, percebi que estava mentindo. — Você fala como carioca. Tá na cara que já esteve no Brasil. Ele apenas sorriu. Uma manhã, percebi que ele olhava com ódio para alguns jornalistas americanos. Um deles abria um iogurte, experimentava uma colher e jogava no lixo. — Vocês estão tomando o nosso café da manhã de seis meses. A Olimpíada estava custando muito caro para o povo. No comitê de imprensa, levei uma revista playboy que havia comprado no aeroporto. Em poucos minutos, aqueles rapazes e moças que nos atendiam estavam em volta da revista. Um superior foi ver o que acontecia, pegou a revista e a levou embora, depois de dar uma reprimenda daquelas no grupo. A vitória dos russos e dos alemães orientais amenizava um pouco o clima pesado da cobertura. Era até engraçado verificar como aquela Olimpíada refletia o muro entre duas civilizações. Em especial nas mulheres. Enquanto as latinas andavam com roupas mais leves nos dias de sol e desfilavam a sensualidade pela Vila Olímpica, as mulheres russas e alemãs, em especial, e também as cubanas queriam mostrar que estavam ali para competir. A equipe de remo feminina da Alemanha Oriental era muito mais alta, e mais forte, que a equipe masculina do Brasil. Era nítida a diferença entre os objetivos dessas mulheres e o que elas - 92 -


Ah!

consideravam como fator essencial em suas sociedades. O contraste dessa situação era a romena Nadia Comaneci. Sempre que ela saía de seu apartamento na Vila provocava enorme correria entre os fotógrafos e cinegrafistas, em especial os japoneses. Num dia desses, de grande correria, não era a ginasta, mas sim o líder palestino Yasser Arafat que visitava a Vila. De repente, pessoas começaram a se atirar ao chão, procurar abrigo. Pareciam rajadas de metralhadora. Logo me veio à mente Munique em 1972, quando atletas judeus foram vítimas de atentado terrorista. Em poucos segundos notamos que era apenas um susto. Um dos cabos de TV estava em curto-circuito e provocou toda aquela bagunça. Encontreime com Orlando Duarte e Luiz Noriega, que eram da TV Cultura, eles também pareciam bem assustados. No último dia da Olimpíada, quando o mundo inteiro viu o Misha (ursinho) se despedindo do público com uma lágrima nos olhos, cerca de cinco mil jornalistas estrangeiros festejaram. No principal hotel da cidade, um jornalista inglês, ao piano, interpretou as principais músicas dos Beatles. A última música, Yesterday, foi apoteótica. Estava claro que a União Soviética nunca mais seria a mesma depois daquela Olimpíada, mesmo com o boicote dos atletas americanos. Em 2008, foi a vez da China.

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Ah!

Patriotada A forma com que o general Ernesto Geisel colocou João Havelange para fora da presidência da CBD (naquele tempo era Confederação Brasileira de Desportos e incluía todos os esportes, além do futebol) deixou um rastro de vingança. Havelange tinha conseguido dinheiro do governo anterior para fazer campanha e ter os votos para derrotar sir Stanley Rous no Congresso da FIFA em 1974. Mas nem a presidência da FIFA saciava a sua sede de vingança. As Copas seguintes haveriam de mostrar isso. Em 1978, João vestiu a camisa da Argentina, aliou-se ao ditador Jorge Videla. Amigos próximos a João garantiam que o Brasil nunca mais ganharia uma Copa enquanto ele não voltasse ao poder. Você pode dizer que na estreia do Brasil frente à União Soviética, em 1982, o Brasil só venceu por 2 a 1 porque o árbitro não marcou dois pênaltis cometidos por Luisinho. Pode dizer também que na Copa de 1986, a Espanha fez um gol em que a bola entrou meio metro e o árbitro não deu. Mas quando a coisa esquentava, o Brasil deixava de ter qualquer ajuda. E foi assim contra a França, quando foi eliminado na decisão por pênaltis — para ser mais correto, em tiros desde a marca de pênalti. Os técnicos em arbitragem se referem assim à decisão, porque “pênalti” - 95 -


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significa “origem de uma falta”, e na decisão não existe falta, é apenas uma forma técnica de definir o vencedor de uma partida. Você deve estar lembrado que Zico, completamente fora de forma, perdeu um pênalti durante o jogo, e o resultado final foi 1 a 1. Na hora da decisão, quando Telê Santana entregou a lista dos cobradores, deu para ver que o zagueiro Julio César, um dos escalados, saiu correndo até o banheiro e só voltou quando as cobranças já tinham sido iniciadas. Sócrates bateu mal, o goleiro pegou. Platini também perdeu, e Júlio César mandou um canhão na trave. Quando chegou a hora decisiva, bastava o jogador francês Bellone marcar para a França sair com a vitória, o estádio ficou em silêncio. O francês correu, chutou, a bola bateu na trave, voltou, bateu nas costas do goleiro Carlos, que havia caído para tentar a defesa, e entrou. Estava mais do que claro que o árbitro não podia marcar o gol. O lance, pelas regras do jogo, havia terminado no momento em que a bola bateu na trave e voltou para dentro do campo. Por quê? É muito simples. O pênalti é a única infração que obriga o árbitro a prorrogar a partida independente de sua vontade. Se um árbitro marca um pênalti no último segundo de jogo, ele tem que esperar a cobrança para depois encerrar o jogo. E essa prorrogação significa apenas um lance, um chute em direção à linha de fundo. Se o jogador chuta, a bola bate na trave e continua em direção à linha de fundo, é gol. Quer dizer que a bola não mudou a sua trajetória. Mas, no momento em que a bola bate na trave, volta para dentro do campo e toca em outro jogador (podia ser no próprio árbitro) o lance está encerrado. Não é gol. Mas o juiz validou o gol e o Brasil foi eliminado. É claro que Telê não reclamou: ele, como tantos outros técnicos e jogadores, não conhece as regras do jogo, mas, por coincidência ou não, foi uma vitória de Havelange. E o Brasil só voltou mesmo a ser campeão quando ele retomou o poder na CBF. Quer dizer, o seu ex-genro, Ricardo Teixeira.

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Ah!

Garrincha em Pato Branco Nunca, no Brasil ou no mundo, tinha se visto um time tão glorioso. Reunia campeões do mundo e se exibia em cidades brasileiras que só os conheciam pela televisão, por fotos ou pelos jornais. Era o Milionários. Seu dono, presidente, diretor, técnico e roupeiro era o Toledo. Nos dias de semana, de segunda a sexta, trabalhava como zelador do Teatro Bandeirantes, na Brigadeiro Luís Antônio. Nos fins de semana, transformava-se no grande promotor de eventos. Toledo, em sua simplicidade, mulato de estatura mediana, bigode aparado, nunca jogou futebol em times profissionais. Era um peladeiro de praia e um apaixonado pela bola. Foi por isso que conseguiu reunir os maiores talentos do futebol brasileiro depois dos anos 1970. Reunia o grande circo nos fins de semana para o grande show. Desta vez, a viagem seria mais longa. Por isso, teve que reunir o time às 22 horas de sexta-feira para uma viagem que iria durar pelo menos outras doze horas, de ônibus, até a cidade de Pato Branco, no Paraná. Por volta das 8 da noite começaram a chegar os menos famosos, turma da reserva, digo, reserva de oxigênio, porque se tratava de jogadores mais jovens que faziam sucesso na várzea. Eles só entravam no segundo - 97 -


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tempo para fazer o resultado. O Milionários estava invicto há cinco anos, havia perdido uma única partida não sei onde. Pelo menos era isso que anunciavam. Não o Toledo, mas seu ajudante de ordens, o Catatau, que era meio mentiroso quando o assunto era o Milionários. Passando o tempo, os cobras começaram a dar as caras. Chegou o Minuca, ex-quarto-zagueiro do Palmeiras, depois o Tupãzinho, que fez parte da Academia Palmeirense, o Djalma Santos, Nilton Santos, o capitão Bellini, e, quando já passava da hora, com o Toledo quase no desespero, pintou o maior astro da companhia, o Mané. Mané Garrincha. — Porra, Nenê, sempre atrasado! Nenê (era assim que Toledo o chamava, e também Elza Soares) deu aquele risinho maroto, e antes de entrar no ônibus deu a primeira mordida em Toledo. Precisava de dinheiro para comprar cigarros. Todos presentes, motor aquecido, lá fomos nós para a longínqua Pato Branco, sabe Deus a quantos quilômetros de distância: setecentos, oitocentos? Depois de umas duas horas de estrada, a primeira parada para um lanche, nada além de sanduíches, média, pão com manteiga na chapa. Coisa simples, simples demais para aqueles homens que um dia frequentaram os maiores restaurantes e hotéis do mundo. Mas, como diria Fiori Gigliotti, “o tempo passa, torcida brasileira”. Dorval, o Macalé, aquele que jogou no ataque com Coutinho, Pelé e Pepe, foi um dos primeiros a descer. Nunca vi neguinho tão magro comer tanto. Dorval, como outros jogadores do Santos na época, ganhou bom dinheiro. Dizem que chegou a ter onze apartamentos. Agora não tinha mais nenhum. Seus amigos diziam: — O Macalé bebeu onze apartamentos! Tupãzinho, que era capaz de abrir uma lata de feijão com o pé esquerdo, tomou um café e voltou para o ônibus. Queria dormir. E toca pela estrada, quase todo mundo dormindo, Toledo fazendo os cálculos. Estava com 19 jogadores. Sabia quanto seria o cachê de cada um. Garrincha era o que mais ganhava, depois vinha Bellini, o capitão, em seguida Nilton e Djalma Santos... Para cada um, com o nome ou apelido escrito no envelope, a grana viva, logo depois do jogo, com vitória ou derrota. A delegação chegou a Pato Branco quando já raiava o dia. O hotel não era um cinco estrelas, nem quatro, nem três... Diríamos duas? Talvez. O pessoal foi dormir na cama, descansar. - 98 -


Ah!

Almoçaram depois da uma da tarde, deram uma volta pela cidade. Os mais famosos deram entrevistas à rádio e, à noite, a homenagem a todos num belo jantar, na melhor — e única — churrascaria da cidade. A galera estava animada. O chope, a carne, a caipirinha rolava legal pelas mesas. Lá pelas tantas, um político da cidade pediu a palavra para homenagear o grande time. Falou de todos, mas tinha uma admiração especial por Nilton Santos: — E você, grande Nilton, Enciclopédia do Futebol, que deu uma surra naquele prepotente do Armando Marques, uma não, duas... Cabisbaixo, Nilton resmungava: — Porra, fiz tanta coisa boa na minha vida, ele vai lembrar logo disso? Fim de festa, todo mundo na cama que amanhã tem jogo. A cidade está em festa, o estádio de madeira para seis, sete mil torcedores, promete lotar. E, às quatro da tarde, não dá outra. Casa cheia para ver Mané Garrincha e companhia. O time da terra é atrevido. Tem um pontinha-direita que pode ter uns 17, 18 anos. Domina a bola e tenta passar pelo Nilton, ameaça o drible, passa o pé sobre a bola... Nilton já está com o saco cheio desse pontinha. Ouço ele falar: — Menino, toca essa merda dessa bola, não vai querer crescer em cima de mim, vai? Bem que Nilton avisou. “Não vem tentar driblar que vai se dar mal”. E na jogada seguinte o pontinha domina a bola, faz aquela firula e Nilton dá o bote. Só vi a meia branca, na altura da canela do pontinha, começar a avermelhar. Foi substituído. Jogo que segue, Mané recebe a bola pela direita, tenta dar o drible como sempre, pela direita, mas sai com bola e tudo. O torcedor tira sarro: — Tá gordo, hein Mané? Outro: — Você agora é do time da CBD, come, bebe e dorme. Mané nem liga. Paulo Borges, jogando ali pela meia direita, faz o primeiro gol. Ele mesmo, o Paulinho que jogou no Bangu, no Corinthians. No segundo tempo, Toledo tirou a turma mais velha. Colocou sangue novo e aí foi um show de bola. De veterano mesmo só ficou o Djalma Santos. Fim de jogo, outra vitória do Milionários. Vestiário, banho tomado, - 99 -


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cachê pago, pé na estrada. Na saída, uma passadinha pela casa do prefeito, que insiste em servir um refresco para Mané Garrincha e os mais famosos. Meia hora depois, quando todos estão de volta no ônibus, Toledo se aproxima do banco de Mané e cochicha em seu ouvido: — Devolve Mané. Volta com uma pequena bandeja de prata e a devolve ao prefeito, com mil desculpas. No meio da viagem, Toledo vai distribuindo os envelopes para os jogadores. O que cada um fez por merecer, não pelo que jogou, mas pela história que construiu.

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Ah!

Bebê...to A maioria dos jogadores são tratados como crianças pelos dirigentes, mas tem exceção: aqueles que são tratados como bebês. Não são poucos. Quando Paulo Roberto Falcão estava quase definindo o grupo que iria formar a Seleção Brasileira para disputar a Copa América, no Chile, em 1991, o diretor Jorge Salgado, vascaíno fanático, vivia pedindo a convocação de Bebeto. Falcão repetia sempre a mesma coisa: — Ele não tem condições físicas para jogar. E não tinha mesmo. Estava com uma distensão muscular crônica na panturrilha. Não conseguia fazer exercício para levantar um quilo e meio com aquela perna, mas Bebeto teve sorte. O preparador físico Gilberto Tim garantiu: — Eu coloco ele em forma. Quando Tim falava uma coisa, tinha de ser respeitado. E, por causa dele, Bebeto passou a fazer parte do grupo. Não conseguia participar dos coletivos, passava horas no ginásio fazendo peso, sob olhares cuidadosos de Turíbio Leite de Barros, o fisiologista, e, com o tempo, foi-se recuperando. A Seleção Brasileira estava concentrada nas dependências do Beira-Rio. Numa das últimas reuniões da Comissão Técnica, antes da viagem para o - 101 -


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Chile, Gilberto Tim apresentou um relatório com dados fantásticos. Bebeto estava praticamente recuperado, fisicamente, para voltar aos treinos com bola. Já conseguia levantar 25,5 quilos de peso com aquela perna. O que ele precisava agora era participar dos coletivos, aprimorar a parte técnica, a movimentação em campo. Todos muitos felizes. Menos Bebeto. Numa noite, seria por volta das nove da noite, o doutor Lídio Toledo veio ao meu quarto. Estava procurando por Falcão, que havia saído: — É que temos um problema sério. O Bebeto está dizendo que se não for titular não vai viajar. Esperamos pela volta de Falcão. Ele disse: — Eu não garanto posição de titular absoluto para nenhum jogador. Temos 22 disputando posição, queremos todos estimulados, lutando pelo seu lugar. Ele também terá de lutar pela posição. Bebeto foi avisado. Queria ir embora naquela mesma noite. Eu disse a Falcão para não liberá-lo, para esperar o dia seguinte. Ele deveria sair pela porta da frente, quando todos os jornalistas estivessem presentes para ouvir suas explicações. Pela manhã, Falcão reuniu o grupo e explicou o caso Bebeto. Renato Gaúcho falou: — Se depender disso para ele ficar, diga que eu dou o meu lugar para ele! Claro, Falcão não concordou. O Brasil foi vice-campeão da Copa América. Falcão saiu. Em seu lugar chegou Parreira, que garantiu a posição de titular para Bebeto. E foi campeão do mundo nos Estados Unidos. Logo, está mais do que certo aquele provérbio que diz: “Quem não chora, não mama”.

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Ah!

O juiz é nosso Um jogo de futebol não se ganha apenas dentro de campo. Eu poderia citar mil casos em que o árbitro estava na gaveta, isto é, com o fundilho das calças preso no sopro do apito. Isso não acontece só aqui no Brasil. Desde que o jogo de bola passou a ser um grande negócio, corre muito dinheiro pela linha lateral do gramado. É lógico que um grande time sempre ajuda. Para não ir muito longe, você se lembra da Copa de 1962? Não? O Brasil perdia para a Espanha, levava um chocolate. Nilton Santos fez pênalti — ele mesmo garante que foi pênalti, que a falta foi dentro da área —, mas, esperto, deu um passo para fora. Quando o juiz chileno Sérgio Bustamante chegou, esbaforido, deu a falta ali onde ele estava. Bustamante também anulou um gol legítimo de Puskas, de bicicleta. E em 1966, quando o bandeirinha validou o gol da Inglaterra, na prorrogação que decidia o título, só para ferrar a Alemanha? Era comunista. Em 1978, a final entre Argentina e Holanda podia durar três dias que o caneco já estava garantido. Era de Videla, o ditador. Veja que em todos esses casos a decisão sempre foi política. Quer coisa mais política que o gol de mão de Maradona frente à Inglaterra? Se a FIFA queria uma arbitragem isenta, por que não escalou um grande - 103 -


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árbitro para aquele jogo, cercando-o de todos os cuidados? Mas a Copa de 1994 nos Estados Unidos foi a mais política de todas, e o grande vencedor não estava dentro de campo. Em primeiro lugar, era preciso eliminar os adversários mais perigosos, os contestadores. Ou você acha que foi por acaso que Maradona foi “sorteado” no exame antidoping para dar positivo em cocaína? Não foi por acaso que, às vésperas do jogo Brasil e Suécia, pelas semifinais, encontrei o dirigente brasileiro Hildo Nejar, que há anos faz a política do futebol, junto com árbitros sul-americanos, entre eles o colombiano J. J. Torres, no Hilton Hotel, em Los Angeles. E adivinha quem foi escalado por dirigir o jogo entre Brasil e Suécia? Adivinhão! Não é que numa bola dividida entre Dunga e Thern, o capitão da Suécia, no meio de campo, quando todos ficaram em dúvida para que lado era a falta, o senhor Torres Cadena não só apontou a favor do Brasil como deu o cartão vermelho para o nosso adversário, quer dizer, o Thern? Se você não estiver lembrado desse jogo, ou duvidar do que estou dizendo, recorra ao arquivo do jornal que eu dirigia, a Gazeta Esportiva. Naquele dia, bem cedinho, muitas horas antes do jogo começar, o jornal já circulava com esta manchete de primeira página: — O Juiz é nosso! Obs.: O ex-árbitro J. J. Torres Cadena vive hoje com sua família nos Estados Unidos, depois de ser ameaçado de morte na Colômbia por causa de suas atuações no futebol.

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Ah!

Seleção versus imprensa Que eu me lembre, desde a Copa de 1950 a Seleção Brasileira trava uma guerra surda contra a imprensa brasileira. Já passei por muitos problemas, não com os jogadores ou técnicos, mas especialmente com dirigentes do futebol brasileiro. Nosso trabalho sempre foi dificultado, sempre fomos acusados de torcer contra, de quanto pior melhor, e, enfim, de ser contra as coisas do Brasil. Mas o problema mais sério que já vivi, junto com muitos companheiros, ocorreu às vésperas da Copa de 1970, no México. O governo destacou alguns jovens diplomatas do Itamaraty para exercer certo tipo de pressão — censura mesmo — sobre o nosso trabalho, nos amedrontando com a volta para casa, lendo nossas reportagens antecipadamente nas oficinas de correio. Por isso, quando a direção da Seleção convidou os jornalistas para um churrasco no Parador San Javier, em Guanajuato, onde o time treinava, achamos a iniciativa excelente. Seria uma forma de acalmar a todos, e de todos poderem trabalhar com tranquilidade, sem medo, sem raiva. Houve um joguinho de futebol contra a comissão técnica. Todos riram muito quando o repórter Roberto Silva, jogando no gol, deu um voo fantástico e sua peruca foi para o espaço. Foi uma tarde divertida, com muita camaradagem. Estávamos ainda quase todos reunidos na piscina de nosso hotel, o - 105 -


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Castillo Santa Cecília, quando notamos a presença do Major Guaranys e seu ajudante de ordens conversando com o fotógrafo da Manchete, Jader Neves. Com aquele vozeirão, Jader gritou para nós: — O major Guaranys tá dizendo que roubaram o relógio do Jairzinho! Porra, roubaram o relógio do Jairzinho e o major vem procurá-lo entre nós? Considerei aquilo uma puta ofensa, e não apenas eu, todos nós. O major ainda falava do sumiço do relógio quando chegou um outro ajudante de ordens, cochichou alguma coisa no ouvido do major e, em seguida, este falou: — O relógio apareceu. O Jairzinho havia esquecido na bolsa do ônibus, depois do treino. E foi-se embora, deixando para trás o ódio que todos nós sentimos por aquela maldita ditadura.

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Ah!

Feliz, Felisberto Vivi, no jornalismo, quase toda a era Pelé em campo. Esse Negão nunca vai imaginar o trabalho que ele nos dava, noites mal dormidas, domingos perdidos, horas e horas de sono. Tudo que acontecia com ele, acontecia também conosco. A distensão muscular dele doía na nossa perna. O gol marcado, o gol perdido, os negócios que iam bem ou mal. A mulher dele ficava grávida e a nossa também. Ficávamos contando meses, dias para a criança nascer, momento de acordar para sair correndo para o hospital, como se fôssemos o pai da criança. Era assim. Pelé era assunto 24 horas por dia. Tomar um furo em qualquer coisa relacionada a ele era pior do que marcar um gol contra. Quando Rose, digo, dona Rose ficou grávida, já sabíamos que nossas férias no jornal iriam para o espaço. Aguardamos os nove meses riscando os dias na folhinha, até que numa bela noite o repórter de Santos mandou avisar: — Não passa de hoje! E lá fomos nós, de madrugada, correndo para a maternidade. Já pensou se eu chego atrasado? Graças a Nossa Senhora do Bom Parto chegamos a tempo. Agora só nos restava esperar. A criança havia nascido bem, era uma menina e iria se chamar Kelly, Kelly Cristina, se não me falha a memória. Algumas horas depois, pobre Rose, já estava arrumada em seu quarto. - 107 -


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Algumas dezenas de jornalistas querendo documentar a cena, a criança, os pais, a filha do Rei. — Sem flash! — gritava Pelé, para não ferir os olhos da menina com aquela luz de relâmpago. Muitos rolos de filme 35 milímetros na mão, muita informação, todo mundo passando bem. Já estávamos de volta, subindo a serra para a reportagem do dia seguinte. Com certeza, a capa do jornal. Antes que pudesse começar a escrever, o editor chefe me chamou. Ainda não tinha fotos na mão. — Então, como é a menina? — É uma menina, gordinha, risonha, com tanto de altura, tantos quilos e tantos gramas... — Não, como ela é? Ela puxou a mãe ou o pai? Entendi o que ele queria. Era saber se a menina era branquinha como a mãe ou negrinha como o pai. Só respondi: — Ela é a cara do pai. No dia seguinte, ao passar por uma banca de jornais, eu vi a manchete do JT: — Olhos de Pelé, nariz de Pelé, boca de Pelé. Assim posso definir a sensibilidade do nosso editor chefe, o saudoso Murilo Felisberto.

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Ah!

Veja Mané Corintiano Coisa de louco. Eu tinha a informação de que, no dia seguinte, às nove da manhã, Mané Garrincha viria a São Paulo para fazer exame médico. Se fosse aprovado, seria contratado pelo Corinthians. Nem precisava. Todo mundo sabia que Mané estava com o joelho estourado, era a palavra do médico Nova Monteiro, um dos maiores ortopedistas do Rio. Mesmo assim, o presidente do clube, Wadih Helu, fazia questão de trazê-lo até São Paulo, a pedido do seu irmão Jamil. Estávamos nos primeiros dias do ano de 1966. À noite, disse ao editor Mino Carta que Garrincha viria, mas não ia dar em nada. Ele estava acabado para o futebol. Ainda assim, Mino mandou que eu fosse ao aeroporto de Congonhas no dia seguinte, com fotógrafo, e levasse uma camisa do Corinthians para vestir em Mané. Deixei para arrumar a camisa no dia seguinte, mas passei por duas lojas de esportes e ambas estavam fechadas. Então, eu, o Zé Maria de Aquino e o fotógrafo Amilton Vieira nos dirigimos para o aeroporto. No caminho, o Zé lembrou que Rivelino morava lá perto, poderia conseguir uma camisa emprestada. O motorista deixou-me no aeroporto com o fotógrafo e o Zé foi atrás da camisa. - 109 -


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Vi o avião da ponte aérea aterrissar. Nada da camisa chegar. Mané já descia as escadas, junto a Elza Soares, e, ao mesmo tempo, vi o Zé Maria chegar correndo com a camisa listrada, número 10, de Rivelino. Juntos, e com Elza Soares superentusiasmada, ajudamos o craque a vestir a camisa do clube. No dia seguinte, uma foto de página inteira ilustrava a manchete do JT: — Veja Mané Corintiano! Não foi preciso fazer exame médico. Estava contratado. Quem teria coragem de tirar aquela camisa de Mané, sorrindo?

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Ah!

O menino da Copa A cobertura de uma Copa do Mundo é uma guerra. Não só dentro de campo. Fora, as equipes de jornalismo travam uma batalha sem tréguas pela informação, a melhor notícia, o furo de reportagem, a foto inédita. Sempre foi assim, desde que me conheço por jornalista. No início, a briga se resumia entre Rio e São Paulo. Em geral, eram convocados onze jogadores do Rio e onze de São Paulo, mas, a partir da Copa de 1966, mineiros e gaúchos entraram na guerra. Entre os 45 convocados estava o centroavante gaúcho Alcindo, do Grêmio, e o meia Tostão, do Cruzeiro. Na hora de definir o time titular era a mesma coisa. Só que, nesse caso, no mínimo, a disputa ficava em 6 a 5 para um ou para outro. Basta ver a Copa de 1958. Gilmar, De Sordi, Zito e Pelé, paulistas. Bellini, Orlando, Nilton Santos, Didi, Garrincha, Vavá e Zagallo, cariocas. 7 a 4 para os cariocas. Hoje, ninguém liga mais para essa bobagem. Nem dá para ligar. Entre os 22 convocados, 20 são de times europeus. Que eu me lembre, só Rogério Ceni era brasileiro, ou melhor, paulista, na Copa de 2006.

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Mas vamos ao que interessa nesta história. A Copa de 1982, na Espanha, vivia um ritmo frenético. Que o Brasil seria o campeão todo mundo já sabia depois da goleada na Escócia e o baile na Argentina. Era só passar pela Itália, que vinha caindo pelas tabelas, e na final pegar a França ou a Alemanha, que estavam mortinhos. Por isso a discussão era outra: quem seria o craque da Copa. Valdir Peres, o goleiro? Não, pouco votado. Assim como os zagueiros Oscar e Luisinho. Os laterais Leandro e Júnior estavam jogando muito, mas a própria posição não ajuda. Só se decidissem a partida final. No ataque, Serginho Chulapa e Eder não tinham muita chance. A briga estava mesmo no meio de campo entre Cerezzo, Falcão, Sócrates e Zico. Cerezzo não tinha o apoio da imprensa internacional, nem dos jornalistas do eixo Rio-São Paulo. Restavam, pois, Falcão, Zico e Sócrates. Falcão era o mais votado pelo bloco internacional, em especial pelos italianos, afinal de contas ele já era o Rei de Roma, campeão pelo Roma depois de quarenta anos. Sócrates estava mais interessado na cervejinha depois das vitórias, na paz e amor. Logo, a disputa era entre Falcão e Zico. Zico vinha do fracasso de 1978, quando chegou a ser reserva de Jorge Mendonça. E esta seria a sua Copa. Só não estava contente porque era obrigado a se sacrificar pelo time, jogar como um falso ponta-direita para distrair o adversário. E quem aparecia era a turma do meio, quer dizer, Falcão e Sócrates. No jogo contra a Itália, Zico quis jogar no seu lugar. Sócrates não se importou, foi fazer o papel de ponta. Zico foi marcado mano a mano por Gentile e, ali pelo meio, não conseguiu criar uma boa jogada. Como ponta, Sócrates acabou até fazendo um gol, mas essa disputa de egos levou o time à derrota, à incrível derrota diante da Itália. Significa dizer que os jornalistas — paulistas versus cariocas — também estavam sofrendo uma terrível derrota. E agora, quem seria o grande nome da Copa? O grande nome da Copa quem descobriu foi o repórter fotográfico Reginaldo Manente. Sua foto foi a capa do jornal, Prêmio Esso de Jornalismo. Debaixo dessa foto, apenas a data da tragédia: 5 de julho de 1982. - 112 -


Ah!

VocĂŞ deve se lembrar da foto. Era esta que o Manente me deu de presente. E que guardei atĂŠ hoje como prova dos tempos em que se fazia jornalismo.

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Ah!

O corte de Bellini A Copa de 1966 começou com um grande erro. Para contentar a todos, clubes, dirigentes e jogadores, foram convocados 45 jogadores numa fase inicial de preparação. Na hora da viagem, 23 seriam cortados. Havia quatro jogadores em cada posição. Para o gol, cinco. O técnico Vicente Feola chamou os veteranos das Copas de 1958 e 1962. Achava que eles ainda aguentariam mais uma; outros membros da Comissão Técnica optaram pelas revelações, jogadores que estavam atingindo o auge da carreira. Então era assim: em cada posição, dois jogadores consagrados e duas revelações. Quem seriam os escolhidos? Vamos falar do meio de campo, por exemplo. Na posição de volante estavam convocados Zito e Dino Sani, campeões, e Denílson, do Fluminense, e Lima, do Santos. Feola formou quatro equipes com esses jogadores e vivia dizendo para os jornalistas que todos estavam disputando posição, não havia um time titular. Quer maior bobagem do que essa? Todo mundo sabia que o time titular era aquele que tinha Pelé. Os outros eram reservas. Quem levava a pior nisso tudo éramos nós, os jornalistas. Você já imaginou ter 45 jogadores para se preocupar, sem falar na comissão técnica? Era barra, meu! - 115 -


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A gente acordava cedo, ia dormir tarde. A Seleção ficava concentrada cada período numa cidade e nenhuma delas tinha estrutura de comunicações para receber tantos jornalistas. Mas o que nos deixava perplexos — nós que eu digo éramos os jornalistas do Estadão, da Folha, do Correio da Manhã, do Globo e do Jornal do Brasil — era a batalha que todos nós estávamos perdendo para a Última Hora, do Rio, que só tinha um jornalista fazendo a cobertura, enquanto nós tínhamos sempre dois, quando não três ou quatro. Estávamos então na cidade de Teresópolis, e a Seleção treinava na Granja Comary. A Última Hora vinha todos os dias com os assuntos que todos os outros jornais reunidos conseguiam levantar. Até assuntos que não faziam parte de acontecimentos diários. Por exemplo: se nós bolássemos uma matéria sobre os cobradores de faltas da Seleção, batata: no dia seguinte, a Última Hora também estava com esse assunto em suas páginas. Era muita coincidência. Tanta que o Ludenbergue Góes, editor do Estadão, mais experiente do que nós, começou a desconfiar. Numa noite, depois de entregar sua matéria na central dos correios (as matérias eram enviadas por telex), ficou à espreita, observando o funcionário encaminhá-la a uma das operadoras. Qual não foi a sua surpresa quando por lá apareceu o tal repórter da Última Hora. O chefe de operações dos correios entregou-lhe uma imensa fita picotada, quer dizer, todas as matérias deixadas pelos demais jornalistas. Naquela noite, na hora que os jornalistas se reuniam para jantar na Taberna Alpina, Góes contou o que viu. E propôs um plano que todos concordaram para desmascarar o “gato” de matérias da Última Hora. Passados dois dias, quando a Seleção se preparava para mais um dia de treino, com todos os jornalistas já preparados para a rotina, eis que o capitão Bellini e o preparador físico Paulo Amaral — ex-policial federal — deixam o grupo de jogadores no meio de campo e se encaminham em direção ao repórter da Última Hora. Este, já sabendo o que vinha pela frente, começa a querer fugir, sair de fininho. Mas era tarde demais. Bellini chega com o dedo em riste, quase no seu nariz, e grita: — Seu mentiroso, seu bosta! O repórter promete esclarecer tudo, desmentir. Corrigir o erro. Em suma, o plano de Góes foi o seguinte: todos os jornalistas iriam escrever uma história fantasiosa sobre o corte de Bellini da Seleção, por - 116 -


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indisciplina. E as redações já estavam avisadas de que aquela história servia apenas para desmascarar o repórter da Última Hora. Só ele não sabia disso. Por uma questão de piedade histórica, eu não vou dizer aqui qual era o nome dele. Quem não tiver piedade, basta recorrer à coleção do jornal.

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Ah!

Carteado Athiê Jorge Coury foi goleiro do Santos, depois corretor de café na Rua XV, presidente do clube e deputado federal. Athiê era o Santos. Usava os jogadores para fazer sua campanha política e não conseguia assistir aos grandes clássicos da tribuna. Ficava no vestiário. Sofria de desarranjos intestinais e tinha que ter um banheiro por perto. Quando os militares assumiram o poder, Athiê soube pelas suas fontes em Brasília que o jogo seria liberado em nosso país. E, mais do que depressa, tratou de negociar a compra do Parque Balneário, da família Fracarolli, que não estava bem das pernas. O Parque Balneário Hotel continuava suntuoso, como marca do que o jogo chegou a representar. E, com a proibição dos cassinos, a queda de faturamento foi uma consequência natural. Assim como aconteceu com o da Urca e com outras cidades que viviam basicamente do jogo. Seria uma grande aventura, um clube de futebol bancando o jogo, mas se queriam manter Pelé & Cia. era preciso buscar outras fontes de rendas. Naquele tempo, clubes espanhóis e italianos já haviam acenado com a fantástica soma de um milhão de dólares pelo passe de Pelé. A realidade é que o tempo foi passando e nada do Congresso (ou o que restava dele) aprovar a volta do jogo. E, assim sendo, o Santos começou a atrasar as prestações da compra do Parque Balneário. A família Fracarolli tinha dívidas com um banco em outras atividades - 119 -


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e, através de um dos dirigentes do Santos, Carlos Caldeira Filho, o banco aceitou saldar a dívida dos Fracarolli pelas dívidas do Parque Balneário. A garantia que Carlos Caldeira Filho pediu para o seu clube, o grande Santos, foi registrada em cartório. Era o passe de Pelé. Esse foi um dos motivos por que a Lei Pelé extinguiu o direito que os clubes tinham sobre os passes dos jogadores. Como diria Pelé: — Entendeu?

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Ah!

Diretoria do clube A diretoria deste clube de jogadores foi eleita por uma grande maioria de pessoas ligadas ao futebol, inclusive jornalistas. Para presidente foi eleito Gérson de Oliveira Nunes, o Canhota; para vice, Carlos Alberto Torres, o Capita, cara que levantou a Copa de 1970. Romário ficou com o cargo de secretário-geral, e, para diretor financeiro, Marcelinho Carioca. Zagallo, presidente de Honra. Não é difícil dizer por quê. Todos têm grande retrospecto. Gérson era especialista dentro e fora de campo. Dentro de campo, quebrou duas pernas. Uma do De La Torre, quando o jogador peruano não tinha a menor chance de defesa, a outra de Vaguinho, ponta do Corinthians, numa entrada criminosa. Fora de campo, vivia fazendo rodinhas com jornalistas para falar de companheiros de time, com quem vivia gritando e xingando. Dizia que isso era liderança. Nos seus tempos de São Paulo, dizia que escalava o time para o técnico Osvaldo Brandão, em 1971, e depois — já como comentarista —, reunia grande audiência entre os jornalistas. Durante o Torneio do Bicentenário dos Estados Unidos, em 1976, gabava-se de dizer que o mesmo e velho Brandão estava pedindo sua ajuda na formação do time. Entre os jornalistas, Gérson tinha o apelido de Papagaio. Falava muito, - 121 -


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muita merda, que nós, jornalistas, adorávamos ouvir. E publicar. Carlos Alberto Torres era outro. Vivia brigando com Pelé no vestiário. Quando ele estava jogando, tudo estava ótimo. Se ficava de fora da Seleção, como aconteceu depois que o Brasil foi goleado pela Argentina na Copa das Nações, em 1964, acusava todo mundo. No caso, o mais atingido era o supervisor Carlos Nascimento, que todo mundo sabia que era Fluminense, como torcedor e ex-jogador. Carlos Nascimento era um homem íntegro. Torres o acusava de não ir para a Seleção porque havia trocado o Fluminense pelo Santos e fora punido por isso. Também se voltou contra Falcão, quando este era o técnico da Seleção, por não ter convocado o seu filho, Alexandre Torres, que jogava no Vasco. Sobre Romário nem seria preciso falar, não é mesmo? Ele fala por si, das vezes que fugiu da concentração, inclusive durante a Copa de 1994, deixando o seu fiscal, o volante Dunga, em má situação. Dunga era o responsável pela disciplina do companheiro de quarto. Pior que isso. Quando o repórter da Folha descobriu e publicou que ele estava fazendo da concentração um bordel, chamou o jornalista antes de um treino no campo de Santa Clara e disse: — Você é um irresponsável por publicar uma mentira dessas! Olha aqui (mostrava a aliança no dedo), eu sou um homem casado, tenho minha família. Minha mulher já telefonou para saber o que está acontecendo aqui. Bem, aquela ex-mulher de Romário já deveria conhecê-lo melhor do que o repórter da Folha. Marcelinho Carioca também é fora de concurso. Levava as meninas para a concentração do Corinthians, acusava colegas, como Ricardinho, de entregar os companheiros para a diretoria, e conseguiu, nessa questão de caráter, dar um nó até em Vanderlei Luxemburgo. É fácil? Mas quem não tem não concorrente é o velho Lobo. Durante a Copa de 1994, trabalhando como coordenador, fiz uma pergunta para Parreira durante uma entrevista coletiva: — Por que você não faz como o técnico de 1970 e se rende à voz do povo, escalando um time mais ofensivo? Ora, Parreira estava jogando com três volantes de contenção — Mazinho, Dunga e Mauro Silva —, apenas Zinho na armação e Bebeto e Romário na frente. Ele tinha no banco de reservas Ronaldinho Fenômeno, que, apesar de jovem, já era craque, Müller e Viola. A referência que fiz ao técnico de 1970, Zagallo, era apenas para justificar - 122 -


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a escalação de Tostão, que o povo insistia e ele resistia. Zagallo ficou muito nervoso. Queria responder, mas Parreira o acalmou. Depois da entrevista ele me procurou e perguntou: — Por que você não gosta de mim? — Não tenho nada contra você. E, para mostrar que poderíamos nos entender, contou-me uma história que havia ocorrido há 24 anos: — Sabe por que eu tirei o Joel do time titular? Joel era o quarto-zagueiro titular em 1970. Perdeu a posição, não jogou um minuto sequer. Não teve sorte na carreira, ganhou pouco e, naquela época, já tinha vendido até a medalha de campeão do mundo para levantar algum dinheiro. Quer dizer, estava no chão. Continuou Zagallo: — Ele chegou bêbado na concentração, depois de uma folga! Esse clube nunca teve um nome. Nós apenas o chamávamos de “clube”, e era permitida a reeleição. Qual seria a sua sugestão?

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Nome e sobrenome de craque Armando Nogueira se referia a ele assim. Tinha nome de craque por causa de Ademir de Menezes, o Queixada, pernambucano bom de bola, artilheiro da Copa do Mundo de 1950. Ademir tinha uma explosão inigualável. Quando contra-atacava, nenhum zagueiro conseguia acompanhá-lo. Era bola na rede. Ademir de Menezes era tão bom que o técnico Gentil Cardoso, quando foi dirigir o Fluminense, pressionado pelos dirigentes, disse: — Me deem o Ademir e eu lhes darei o título! E Ademir trocou o Vasco pelo Flu, que foi campeão. Mas, é lógico, quem ganhou o título foi Ademir e não Gentil. Ele apenas cumpriu a promessa. E sobrenome? Claro, Ademir era, simplesmente, filho do Divino. Filho do Mestre Domingos da Guia, zagueiro que não tinha força para bater tiro de meta e, por isso, saía de sua área driblando, como se fosse um atacante. Foi o primeiro zagueiro brasileiro que sabia jogar. Assim era Ademir da Guia, que, a princípio, quando ainda era apenas uma promessa no Bangu, era chamado de Filho do Divino. Depois, passou a ser Divino, como o pai. Ademir da Guia jogou em duas academias de futebol que se criaram no - 125 -


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Palmeiras. A primeira delas era esta: Valdir Joaquim de Moraes no gol. Goleiro que saía de campo sem sujar o calção, tal a sua colocação. Tornou-se o primeiro treinador de goleiros do Brasil e formou essa escola que está aí desde Leão, Zetti, Rogério Ceni e tantos mais. Na lateral direita jogava Djalma Santos, bicampeão do mundo, e, na esquerda, Ferrari. O que tinha de feio tinha de raça. No meio da zaga, Djalma Dias, pai de Djalminha, um discípulo de Domingos da Guia. Tinha um físico privilegiado, não fazia faltas, não perdia bola de cabeça. Um craque. Tremenda injustiça não jogar a Copa de 1966. A seu lado, o clássico Aldemar; ou o líder, Valdemar Carabina. O médio volante era Zequinha, um pernambucano, reserva de Zito na Copa em 1962, e, na meia, Tupãzinho. Pela esquerda, Ademir da Guia. O ataque era Julinho (ou Gildo), Servílio e Vavá. Quer dizer, Julinho Botelho, que calou o Maracanã no jogo da Rainha da Inglaterra atuando em lugar de Garrincha em 1959, Servílio — filho de Servílio de Jesus —, e Vavá, o Peito de Aço, bicampeão do mundo. A outra Academia, que surgiu em 1972, jogava assim: Leão; Eurico, Luis Pereira, Alfredo e Zeca; Dudu — o novo e inseparável companheiro de Ademir; e, no ataque, Edu Bala, Leivinha, César Maluco e Nei. Lá estava Ademir, vencendo o tempo. Só não conseguia vencer os técnicos da Seleção. Em 1966, Vicente Feola preferiu levar Gérson, até aí tudo bem, mas para quem tinha convocado também Paraná, do São Paulo, deixar Ademir de fora era um sacrilégio. Em 1970, Zagallo optou por Gérson e Rivelino. Quando chegamos em 1974, o presidente João Havelange disse para Zagallo que ele, como técnico, iria convocar 21 jogadores, mas se reservava o direito de convocar um: Ademir da Guia. Como Gérson estava ausente, muitos imaginaram que o novo meio de campo da Seleção seria aquele de 1970, com Clodoaldo e Rivelino, e Ademir em lugar de Gérson. Perdeu quem apostou! Ademir da Guia foi para o banco de reservas e por lá permaneceu sem jogar uma única partida, um único minuto. Os preferidos de Zagallo eram Paulo Cézar Caju, Dirceu Guimarães, Carpegiani e Rivelino. Até que o Brasil se viu diante da Holanda e tomou um olé. Perdeu por - 126 -


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2 a 0. Restava disputar o terceiro lugar diante da Holanda, que havia perdido para a Alemanha. No dia do jogo, já com seus quilinhos a mais por absoluta falta de jogo, Ademir da Guia almoçou como antes dos outros jogos, como um rei. Eis que de repente, quando faltavam duas horas para o jogo, naquele sábado de sol, Zagallo resolve alterar o time, por causa de uma indisciplina de Paulo Cézar Caju. Ademir então teria a sua grande chance? Grande chance, com o estomago cheio, sem pernas, sem pulmão? E o Brasil foi a campo, sob o comando do Divino. Fim de primeiro tempo, 0 a 0. Na volta para o segundo, grande surpresa. Cadê Ademir? Não voltou. Substituído por Mirandinha. Seria uma substituição tática, a troca de um meia por um atacante? Nada disso. O Brasil perdeu por 1 a 0 e, após a partida, na entrevista coletiva, Zagallo diz aos jornalistas: — O Ademir pediu para sair. Estava cansado. Fui conversar com Ademir. Ele disse: — O Zagallo me perguntou se eu estava cansado. Disse que estava, porque estava há dois meses sem jogar. E ele me substituiu. Obs.: Na decisão do título paulista entre Palmeiras e Corinthians em 1974, ou “Ademir da Guia versus Rivelino”, o Palmeiras foi campeão.

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Ah!

João sem medo João, pelas histórias que nos contava, viveu quinhentos e poucos anos. Estudou administração na antiga Checoslováquia, mas ainda teve tempo para ser jogador e técnico do Botafogo, tradutor do sistema WM para o português, membro atuante do PC, primo do Tom Jobim, dar um tiro no goleiro Manga e ser comentarista de televisão, colunista de vários jornais e, em 1968, técnico da Seleção Brasileira — quando deveria estar com quatrocentos e poucos anos. Nos tempos em que eu estava começando minha carreira na Última Hora, João era colunista, ao lado de Nelson Rodrigues, Sérgio Porto, Álvaro Paes Leme e outros grandes nomes. Nas vezes em que vinha para São Paulo a trabalho, João reunia uma plateia de pelo menos cinquenta pessoas na redação, antes e depois dos jogos, para contar suas histórias. O debate entre ele e Álvaro Paes Leme era coisa do outro mundo. E era tudo de graça. Tudo verdade? Ora, isso era o que menos importava. Entre a lenda e a história, se a lenda era melhor, dane-se a história. Não sei quem disse isso, mas estou de acordo. João era nosso herói. O Paes Leme, vice-herói. Quando o João foi escolhido para ser o técnico de futebol, muitos jornalistas — inclusive os cariocas — foram contra. Claro, estavam em jogo - 129 -


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grandes contratos e grandes patrocinadores que certamente João levaria depois de deixar o cargo. Tudo indicava que ele não teria muita paciência para levar o barco adiante, mas o começo mostrou outra coisa. De cara, João mudou o perfil da Seleção. Antes dele, chamava-se “Seleção Canarinha”, um apelido do saudoso Geraldo José de Almeida. João achava que canarinho era coisa meio afeminada, de viado, por isso logo falou que seu time era formado por “onze feras”. E ficou “as feras do Saldanha”. Ele, que não era bobo, assim que assumiu como técnico peregrinou pelas redações dos maiores jornais, rádios e televisões do país. Aqui em São Paulo, quem recebeu João de braços abertos foi o gaúcho —como ele — Osvaldo Brandão. Reuniu os técnicos no bar de José Carlos Bauer, para que todos o conhecessem. E João escolheu Dino Sani para ser o seu olheiro aqui, isto é, indicar jogadores paulistas para a Seleção. A presença das feras nas eliminatórias para a Copa de 1970 foi avassaladora. O time de João arrepiava os adversários, inclusive o paraguaio, lá dentro dos Defensores del Chaco. Criaram um clima para esse jogo relembrando a guerra entre Brasil e Paraguai, com bandeiras de Solano López, mas, dentro de campo, o Brasil enfiou 3 a 0 com um ataque de Jairzinho, Tostão, Pelé e Edu. Claro que, sendo comunista, João incomodava alguns setores da Revolução, ainda mais porque seu nome passou a ter mais apelo do que o de Pelé. E a turma da Arena — Aliança Renovadora Nacional —, que apoiava os militares, começou a cutucar João. Os resultados na fase de preparação para a Copa também não eram nada bons. Primeiro disseram que o presidente Médici queria Dario na Seleção. “Eu não me meto na escolha dos seus ministros e ele não se mete na escolha dos jogadores” — teria respondido João. Verdade ou mentira? Mais ou menos. De verdade mesmo, é que alguns jogadores, entre eles Pelé, começaram a pular o muro da concentração no Retiro dos Padres, no Rio; outros estavam tão a perigo que começaram a dar em cima do cozinheiro. Isso foi enchendo o saco de João. Então ele resolveu a parada do seu jeito. Foi à televisão e disse para todo - 130 -


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mundo que Pelé não estava jogando bem porque não enxergava, era míope. Daí, o Negão se mancou. Saldanha perdeu o cargo, mas Pelé sentiu que se o Brasil perdesse a Copa ele teria que mudar de país. Tratou de cortar o cabelo como nos tempos em que era recruta do exército, em Quitaúna, e passou a vigiar todos os companheiros. Foi assim que João levou o Brasil à conquista do título!

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Casamento de jornalistas O risco era imenso. Se a turma soubesse que você iria se casar, podia se preparar para o pior. Lembro-me dos casos mais graves. O Percival de Souza casou-se na Catedral Presbiteriana, da Nestor Pestana. Foi uma bonita cerimônia. Quando ele e a noiva já desciam os primeiros degraus da escadaria, não se sabe de onde começaram a surgir viaturas policiais com suas sirenas a toda. Uns dez policiais saíram dos quatro camburões, algemaram e sequestraram o noivo. Percival permitiu ser algemado, desde que não jogassem pó de mico no pastor, como estavam ameaçando caso resistisse. Fizeram ligação direta no carro da noiva e a deixaram a pé. Saíram dando tiros para o ar, tiros de verdade. Percival e Yeda só foram se ver horas depois, na casa da noiva, onde haveria uma pequena recepção. É evidente que Carlinhos Brickman apareceu na festa. Propôs um brinde a Percival. Percival disse que só brindaria se trocassem as taças. Mas até nisso Carlinhos tinha pensando. Carlinhos havia misturado uns comprimidos à bebida. Percival só conseguiu dormir umas 72 horas depois de casado.

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Que lua de mel, hein? No caso do Rolf Kuntz, editor de economia, a situação foi absolutamente vexatória. Rolf havia convidado apenas os padrinhos e familiares para uma festinha após a cerimônia. Ele morava num apartamento pequeno no Largo do Arouche. A verdade é que depois da cerimônia começaram a chegar pessoas para a festa que não acabava mais. Cem, duzentas, trezentas... todas com um convite na mão, que Rolf já sabia de onde havia saído. Claro que todos desconfiavam. Só podia ser coisa do Carlinhos Brickman, aquele gordo maquiavélico da política. Haveria de chegar a vez dele. E chegou. Carlinhos casou-se na Sinagoga da Martinico Prado. Foi uma tragédia. Desde a manhã daquele sábado, Percival de Souza — com sede de vingança — e Antonio Carlos Fon já tinham conseguido caçar uns cinco urubus entre as carniças da marginal. Compraram um arsenal de bombinhas — daquelas que estalam quando pisadas ou atiradas ao solo — e estavam a postos. Carlinhos imaginou que convidando o diretor do jornal para seu padrinho estaria livre de qualquer brincadeira mais pesada. Enganou-se. Quando Carlinhos e a mulher deixavam a Sinagoga, soltaram os urubus, que sobrevoavam a igreja, amarrados pelas pernas. As senhoras, de vestido longo, pisavam nas bombinhas e quase soçobraram escada abaixo, e um menino de aluguel atirou-se no colo do noivo, suplicando: — Papai, não me abandone! Quando chegou minha vez, minha mulher, a Mariana, disse: — Só aceito se você não contar pra ninguém do jornal. Foi a única e decisiva cláusula para o sim.

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Zizinho e eu Você viu o Zizinho jogar? Então, antes de ler este capítulo, pergunte para alguém que viu, pesquise na Internet, veja o que falavam dele. Seu nome era Thomaz Soares da Silva. Jogava pra caramba. Fui ver o Zizinho jogar quando ele já estava no fim de sua carreira. Tinha uns 35 anos quando trocou o Bangu pelo São Paulo. Corria o ano de 1957. “Pô”, eu pensava, “se foi mandado embora do Bangu é porque não joga nada”. (Naquele tempo a televisão não mostrava os jogos do Rio, nem os jornais de São Paulo falavam muito dos jogadores cariocas). O meio de campo do tricolor ficou então com Dino Sani e Zizinho, quer dizer, Dino e Mestre Ziza. A defesa não era grande coisa. O ataque também não, a não ser pelo ponta-esquerda, Canhoteiro. O único José Ribamar que fez alguma coisa pelo Brasil. Zizinho ia lá atrás, quase na defesa, buscar a bola, e ia levando, passando, driblando, até chegar lá na frente. O adversário também não chegava até a área tricolor sem passar por Zizinho. Na partida decisiva do campeonato paulista de 1957, do outro lado estava o Corinthians. E o Corinthians tinha São Gilmar no gol, tinha Luizinho, o Pequeno Polegar com a 8, Cláudio Cristóvam de Pinho, o Gerente, com a 7. E o temido Osvaldo Brandão como técnico. - 135 -


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E o São Paulo, naquele jogo, não tinha Dino Sani. Mas tinha Zizinho. Então Zizinho enfiou a bola debaixo do braço ao entrar em campo, e fez aquela tarde se transformar num belo dia de sol para os são-paulinos. São Paulo, de Zizinho, 3. Corinthians, de todos, 1. Fui conhecer Zizinho pessoalmente durante a Copa de 1970. Ele fazia uma coluna para o Jornal dos Sports. O cara era um tremendo papo. Gostava de conversar sobre futebol e beber uísque. Como eu gostava de ouvir falar de futebol, passava todas as tardes na Praça do Sol e levava a garrafa para o seu apartamento. Zizinho falava da decisão na Copa de 1950 contra o Uruguai. E lá estavam sempre Mário Vianna — com dois enes —, o árbitro, e outros apreciadores do futebol. Quase todo dia o Gérson, isso mesmo, o Gérson de Oliveira Nunes, telefonava para Zizinho. Quando não, o Mestre ia lá na concentração para tirar qualquer dúvida do seu afilhado. Um dia, não sei quem lhe perguntou quem jogava mais: ele ou Didi, o Didi bicampeão mundial, que naquela Copa dirigia o Peru. O Mestre ficou indignado: — Você tá querendo me comparar com o Nego Benedito? E não falou mais nisso. Mas, naqueles tempos, os jornalistas costumavam disputar um torneio paralelo à Copa. E formamos a seleção brasileira. Nesse time jogavam o Michel Laurence no gol, o Trajano de lateral-direito, o Tim de zagueiro central, o Guilherme Cunha Pinto na meia, o Belmiro Sauthier na ponta; Ademir de Menezes, o artilheiro da Copa de 1950, era o centroavante; o Dácio de Almeida, do JB, na meia; o Sérgio Leitão na ponta esquerda. O Armando Nogueira apareceu um dia, de chuteira novinha. Só jogou por causa do seu texto. O futebol era o oposto ao texto. Eu era o quarto-zagueiro. Assim, fomos ganhando com certa dificuldade dos alemães, mexicanos, e outros, até que se formou uma seleção dos jornalistas do mundo inteiro para enfrentar o Brasil. E, naquele dia, Zizinho apareceu para jogar. Quando Zizinho começou a tirar a roupa no vestiário e ficou só de cuecas, parecia um garoto de 20 anos. Tinha o físico parecido com o de Jairzinho, o Furacão, embora estivesse com 48 anos. Aos 27, fiquei com vergonha de me trocar a seu lado, pois já tinha aquela barriguinha de cerveja. - 136 -


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O Zizinho entrou em campo e logo fez 1 a 0, em cobrança de falta. Vinha buscar a bola no nosso pé, driblava o time deles e passava para alguém marcar. Xingava Ademir: — Deixa de ser burro, Ademir. Estou te lançando lá na meia esquerda e você sai do outro lado? (Imagino o que ele não deveria falar para o Ademir nos tempos da Seleção). Foi 9 a 1. E ele ficou puto quando tomamos um gol. Depois daquele jogo, eu nunca mais escalei seleção de todos os tempos. Já pensou se eu não tivesse visto o Zizinho jogar? Assim como não vi o Leônidas, o Arthur Friedenreich. E você, que não viu o Pelé, cuidado quando alguém disser que o Zico, Cruyff, Maradona, Ronaldinho ou Kaká foram melhores do que o Rei.

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Pelé e Pepe Não, não estou me referindo à maior ala esquerda do Santos de todos os tempos. Juntos marcaram quase dois mil gols. Nem Jair Rosa Pinto, o Jajá de Barra Mansa, chutava mais forte do que Pepe, de pé esquerdo. Estou querendo falar de Pepe Gordo, o espanhol José Gonzalez Ozores, que foi o “pai branco” de Pelé quando ele chegou de Bauru para brilhar no Santos. Pepe Gordo era um pequeno empresário, construía casas para a classe média baixa e levava a sua vidinha, até que foi apresentado a Pelé. Depois de passar pela pensão de dona Georgina, Pelé foi morar com a família de Pepe Gordo. Pepe me disse que dava aulas de português e matemática para Pelé — aliás, ele era professor de matemática antes de trocar a Espanha pelo Brasil. Até depois de comprar a casa em Santos, o sobrado da Almirante Cockrane, e trazer toda a família de Bauru, muitas vezes Pelé ficava conversando até tarde com o seu procurador, e acabava dormindo em sua casa, junto aos seus três filhos. Pelé tinha tanta confiança em seu procurador que costumava levar sua noiva, Rose, consigo para tratar de muitos assuntos particulares, inclusive a escolha de casar em casa, ao invés da igreja. — Podem quebrar todo o altar — disse-me Pepe. — Casando em casa, podemos definir quem vamos convidar. Foi uma guerra conseguir um convite. - 139 -


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Até as vésperas do casamento, quando ainda estava em viagem pelo Chile com o time de futebol, foi Pepe que tratou de tudo. Pelé chegou às vésperas do casamento, durante o Carnaval de 1965. Depois que o casal voltou da lua de mel pela Europa, Pepe começou a sentir um certo distanciamento de Pelé. Segundo Pepe, a esposa começou a separá-lo do Rei. Achava que ele tinha muita influência em sua vida. E era verdade. Durante uma conversa, Pepe Gordo reclamava da torcida e dos dirigentes. Dizia que eles ainda iriam acabar com Pelé, como haviam acabado com o grande toureiro Manolete, na Espanha. — Exigem mais, cada dia querem mais. Querem que ele jogue machucado, com injeção. Fizeram a mesma coisa com Manolete. Sempre queriam que ele se aproximasse mais do touro. Um dia, ele ajoelhou-se diante do touro e foi morto. Os negócios de Pelé não iam nada bem. Eles — Pelé e Pepe — tinham aberto uma loja de material de construções, e concorrer com lojas tradicionais de Santos era algo quase impossível. Pelé passou a ter dívidas, foi pedir empréstimo a João Havelange e a situação ficou caótica. Pessoas que queriam afastar o Rei acusavam o espanhol de tê-lo roubado. No meio dessa situação, houve um dia em que Pelé foi convidado para uma mesa redonda na TV Record, onde eu trabalhava. Veio acompanhado de seu advogado, Vicente Cascione Neto. Perguntei a Pelé: — Quero apenas que você diga sim ou não: o Pepe Gordo o roubou? Pelé mudou de assunto e não respondeu. Tive a oportunidade de fazer a mesma pergunta para Pelé por mais sete vezes, e nas sete vezes ele saiu fora. Pelé perdeu muito dinheiro e Pepe Gordo quebrou. Perdeu até o apartamento onde morava, que estava em nome de Pelé. Pepe Gordo me procurou no dia em que estava sendo despejado do apartamento, com sua família, segundo ele por imposição de Rose. — Já que ele diz que eu o roubei, eu quero que você escreva um livro sobre a nossa verdadeira história. Eu vou mostrar quem é o Pelé. Pepe Gordo já sabia de muitas coisas, inclusive o maior segredo: ele tinha uma filha fora do casamento. O Brasil já estava de olho na Copa de 1970, o que poderia acontecer se escrevesse um livro? — Olha Pepe, para contar a verdade sobre Pelé você terá de mudar do - 140 -


Ah!

Brasil. Esse é o tipo do livro que tem que ser escrito na Inglaterra, na França ou na Itália, para depois repercutir no Brasil. E prepare-se para nunca mais voltar com sua família. Pepe percebeu que nada poderia fazer. Voltou ao seu antigo negócio, tinha crédito entre as pessoas que o conheciam. Para o resto do povo brasileiro, continua sendo o ladrão. E não um ladrão qualquer, o ladrão que roubou Pelé.

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Ah!

Camarones a la diabla Seu filho é enjoado para comer? Se é, recomendo que faça jornalismo. Já viajei por grande parte do mundo a trabalho, frequentei grandes restaurantes, cozinhas simples, pensões e muquifos da pior espécie. Já me fartei de comer e já passei fome. Você não vai acreditar. Na festa em que Pelé fez 50 anos, em Milão, só pude chegar a um restaurante que ainda estava aberto por volta das onze da noite. Bateram a porta em minha cara. — Já estamos fechando! E não era por falta de dinheiro. Como quando estive em Varsóvia, em 1968; não consegui encontrar um maldito botequim que estivesse aberto depois da meia-noite. Cheguei ao hotel morto de fome, não me alimentava bem há uns dois dias. Tudo fechado, até a cozinha do hotel. Apenas uma alma piedosa que ainda não havia se retirado me conseguiu uma lata de sardinhas. Sardinhas saborosas, maravilhosas, pena que não tivesse um pãozinho de anteontem para acompanhar. De qualquer forma, deu para dormir. Durante a cobertura da Olimpíada de 1980, em Moscou, se você ficasse trabalhando até depois das dez, adeus. Não comia mais. Cheguei um dia em cima da hora no restaurante. O garçom jogou o - 143 -


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cardápio sobre a mesa e ficou me encarando, como se dissesse: — Escolhe logo, meu! O cardápio estava em russo e inglês. No que deu para ler estava escrito: Omelete surprise! Imaginei uma omelete com meia dúzia de ovos, queijo, bacon... Fiz o pedido. Alguns minutos depois ele trouxe o meu pedido numa bandeja grande. Era realmente uma grande surpresa: a tal omelete surprise era na verdade sobremesa, bolas de sorvete cobertas por clara flambada. O que eu fiz? Comi. Tanto fazia, àquela altura do campeonato, doce ou salgado. Eu precisava comer alguma coisa. Mas tudo isso foi brincadeira perto daquele restaurante em Guadalajara. Um belo restaurante. Pedi camarones a la diabla. E que belo prato. Camarões fritos em molho de tomate — parecia molho de tomate —, mas na verdade era um molho da pior pimenta que o mundo possa imaginar. A primeira garfada quase sufocou. — Chamem os bombeiros! — foi o que disse, assim que pude dizer alguma coisa. Passei o resto a Copa advertindo garçons mexicanos de norte ao sul, a cada pedido. — Sin chili! Mas, no México, não existe comida sin chili. Para desgraça dos estômagos de todos os jornalistas que habitam este planeta, abaixo da linha do Equador.

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Ah!

Futebol e sexo Dá para imaginar vinte e três homens reunidos, treinando pela manhã e a tarde, na flor da idade, durante sessenta dias, um olhando para a cara do outro, sem ver uma mulher por perto? Quem consegue ficar calmo? Nas Copas de 1958 e 1962, o chefe da delegação — Paulo Machado de Carvalho — sabia como resolver esse problema de sexo. Na Suécia, mandava o médico Hilton Gosling examinar as moças selecionadas para servir aos craques. Quem estava a fim, bastava ir ao encontro. Mané Garrincha estava sempre a fim. Foi num desses encontros que nasceu o seu filho sueco, reconhecido tantos anos depois. Com a substituição de Carvalho por Havelange, a preparação para a Copa de 1966 foi uma grande baderna. Alem dos 45 jogadores convocados, da mudança para pequenas cidades, atendendo a compromissos políticos, os jogadores não tinham para onde ir nos raros dias de folga. Até que foram marcados amistosos na cidade de Campinas. Alguns jogadores aproveitaram a deixa e foram visitar a Casa da Paraguaia, no Taquaral. As meninas atenderam aos craques com grande receptividade, mas na hora do pagamento houve divergência nos serviços prestados e nas bebidas consumidas. Além de não pagar, os jogadores ainda quebraram alguns copos e outras coisas mais. - 145 -


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E a conta acabou chegando para a comissão técnica, além dos nomes dos arruaceiros. Brito, que era um dos acusados, advertiu: — Se eu for cortado da Seleção por causa disso, vou quebrar a cara de alguém. Ele foi para a Inglaterra, mas o outro zagueiro, que jogava muito mais do que ele, Djalma Dias — também acusado de estar na bagunça, perdeu a sua grande chance de jogar uma Copa. A Seleção que excursionou pela Europa, África e América em 1968 também fez estragos com esse problema de concentração. Alguns jogadores exigiram um dia de folga em Varsóvia e aproveitaram. Tanto que tiveram de regressar para o Brasil alguns dias depois, bem antes do fim previsto da viagem. Estavam todos com gonorreia. Os jogadores da Seleção Brasileira que jogaram na Copa de 1974 — o chefe da delegação era o general Eric Tinoco (seria esse mesmo o nome dele?), e havia um agente civil com o apelido, ou nome verdadeiro, de Lobo, um lobo mau — passaram pelas mesmas privações. A Seleção foi para a Alemanha, para um lugar chamado Herzogenhorn, na Floresta Negra, quase um mês antes do início. Não tinha folga. Já viu, né? Começaram a pintar histórias escabrosas de homossexualismo. A concentração era atendida por funcionários, fazia um frio de rachar, chegava a nevar em algumas regiões. E essa espécie de concentração acabou dividindo o grupo. Jairzinho comprou um vídeo, com filmes pornográficos, e reunia boa parte dos jogadores cariocas. De outro lado ficava a maioria dos paulistas, em especial jogadores do Palmeiras que estavam na Seleção: Leão, Luís Pereira, Alfredo, Ademir da Guia e Leivinha. Antes mesmo da viagem para o exterior, o clima de concentração já era desgastante. Depois de um treino, Leivinha — que era um garoto superdisciplinado — chamou o Tuca, que era jornalista do Estadão e muito seu amigo, para fazer um pedido: — Cara, me traz umas duas latinhas de cerveja que eu não aguento mais. Tuca veio conversar conosco. Queria saber nossa opinião a respeito. Seria ético ele atender ao pedido? Eu respondi: — De minha parte, não vejo nada demais, mas se os vigilantes te pegarem você vai perder a credencial. - 146 -


Ah!

Tuca resolveu atender a vontade do amigo. Levou trĂŞs latinhas de cerveja e, sem ser percebido, as colocou no saco de material esportivo onde Leivinha levava as chuteiras e o agasalho. E nem por isso Leivinha deixou de jogar o seu grande futebol que o levou a titular da equipe.

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Ah!

Com dois enes Um tipo inesquecível. Foi a primeira pessoa que conheci que raspava a cabeça com navalha. Sua careca brilhava. Tinha estatura mediana, metro e setenta, setenta e dois, encorpado, e estava com seus cinquenta e poucos anos quando este fato aconteceu no Rio de Janeiro. Foi policial federal, daqueles que andavam em motos de dezenas, centenas de cilindradas atrás dos tipos mais perigosos do Rio, atrás de malandros que sabiam usar a navalha. Daí a ser árbitro de futebol foi moleza. Se não tinha medo dos bandidos, iria ter medo de jogadores? E a maioria dos jogadores sabia que não podia facilitar com ele. Expulsos de campo, saíam quietinhos, sem contestar a decisão. Pois esse senhor, de pele queimada, que nadava todo dia no mar, um valente, tinha na verdade um coração mole, era um chorão diante de algumas situações. Uma delas acontecia no dia de Natal. Vestia-se de Papai Noel dos pés à cabeça, e saía com seu carro conversível pelas ruas da Urca repleto de brinquedos à procura de crianças pobres. Nesse Natal, especificamente, justamente quando ele passava vagarosamente com seu conversível, cinco marmanjos começaram a tirar sarro quando o viram parar e presentear as crianças. Também queriam - 149 -


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presentes, mas como não foram atendidos, por serem adultos, passaram a fazer chacota do velho: — Aí Papai Noel viado. E o Papai Noel acabou perdendo a calma. Partiu para cima dos cinco e deu-lhes a maior surra. Sob aplausos das crianças: — Aí Papai Noel, enche eles de porrada! O nome do Papai Noel era Mário Vianna, com absoluta questão dos dois enes.

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Ah!

Yeso Ele queria conhecer o mundo, viver grandes aventuras. Não tinha dinheiro, nem era de família rica. O seu passaporte era uma bola de futebol. Se ficasse aqui no Brasil, naqueles idos de 1947, quando o Brasil ainda sentia os efeitos da guerra, suas chances seriam muito limitadas. A chance de conseguir ser titular naquele time de Luizinho, Sastre, Leônidas, Remo e Teixeirinha eram iguais a zero. Inconformado, foi tentar a sorte na Argentina. Logo percebeu que por lá também as chances eram as mesmas. Nem o grande Heleno conseguiu adaptar-se ao Boca. Voltou para o Brasil e, enquanto todos os brasileiros estavam sofrendo com a derrota para o Uruguai, ele estava embarcando num navio (pode ser o Conte Grande?) para, imaginem, Paris. Não perguntem como ele conseguiu uma passagem de segunda classe. Ele rola, enrola e não abre o jogo. O que se sabe é que desembarcou na cidade luz com o seu melhor terno, branco, de linho 120, sapatos de verniz pretos e aquele bigodinho do Bixiga. E lá estava ele. Além de ser um meia habilidoso, era ainda mais habilidoso na arte de fazer amigos. E foi assim que ganhou um lugar no Mônaco, time do príncipe, que logo se transformou em seu amigo do peito. Ele mesmo, estamos falando do príncipe Rainier. O príncipe o convidava para tomar sol na piscina real nos dias de folga no clube. Numa dessas tardes, o monarca confidenciou: - 151 -


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— Estou gostando de uma linda mulher, mas não posso casar. Ela não é nobre. Realmente, ela não era nobre, mas também não era plebeia. Era ninguém menos do que a atriz Grace Kelly. — Se você está apaixonado, casa com ela e manda o trono pro espaço! — teria dito o nosso amigo, meia-direita, com a intimidade que o príncipe lhe permitia. E não é que o príncipe acabou seguindo seu conselho? De quebra, ele conseguiu um convite para o fotógrafo Luiz Carlos Barreto. Naquele tempo, Barreto ainda era fotógrafo da revista O Cruzeiro. De Mônaco, ele foi para Nice. Lá, entre os torcedores, conheceu o alfaiate Mário Sapone, que não era um alfaiate qualquer. Mário era o alfaiate de Pablo Picasso, exilado na cidade. Só que Picasso andava meio duro (desculpem, meio sem grana) e Mário costurava suas calças em troca de desenhos que o artista fazia nos cadernos de sua filha. Duvida? Naquela manhã chuvosa em que Picasso morreu, a Agência FrancePresse começou assim a notícia de sua morte: — Morreu Pablo Picasso. Entre os amigos que começaram a chegar a sua casa estava o alfaiate Mário Sapone... Abusado, foi ver um show de Maurice Chevalier, acompanhado do Nelson — que trabalhava na Air France — e da atriz Gina Lollobrigida. Não, ela não deve ser do seu tempo. Lá, depois do show, foi recebido por M. Chevalier. E, com a cara de pau — agora já sem o bigodinho brasileiro, que estava totalmente fora de moda —, perguntou-lhe: — Monsieur Chevalier parce qu’il vous chantez... — é melhor falar em português mesmo — Senhor Chevalier por que o senhor canta com o chapéu cobrindo os olhos? — É que quando comecei tinha vergonha de olhar para a plateia e o chapéu cobria os meus olhos. Ah, bom. Foi jogar no Torino, deixou de pagar impostos, e teve que fugir. A turma da União Corsa — seus amigos — simulou que ele iria tomar um banho de mar. Ele nadou, nadou... e logo adiante havia uma lancha esperando-o para tirá-lo do país. Você não acredita em nada disso, não é? - 152 -


Ah!

Eu também não acreditava.

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Quem corre é a bola! Depois de Pelé, o que mais impressionava no time do Santos era a capacidade de liderança de José Ely de Miranda, o Zito. “Chulé” para os amigos que gostavam de irritá-lo. Gritava durante o jogo inteiro, até com Pelé. Gritava e corria. Chegava, às vezes, a correr seis quilômetros numa partida. Era o recorde brasileiro. Mais do que isso, só no exterior. Zito corria atrás da bola e também corria com ela nos pés. Tomava a bola do adversário — quase sempre sem fazer faltas —, cortava passes e, como não sabia fazer lançamentos longos — como Gérson —, entregava a bola em domicílio, como dizíamos. Nos pés dos companheiros. Era o exemplo da raça. Ao contrário de Zito, era muito interessante ver o velho José Castelli, o Rato, que foi campeão no Corinthians, primeiro como meia-esquerda, depois como técnico, orientar aqueles meninos candidatos a craque. Eu ficava ao seu lado, vendo os meninos correrem feito loucos naqueles campos de terra, que todos chamavam de “terrão”. Não tinha grama nem para cobrar escanteio, imagine na grande área. Um desses dias, apareceu por lá um garoto alto, jogando de cabeça erguida, quarto-zagueiro. A bola vinha em sua direção, ele dominava no peito, baixava na terra,


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saía jogando com precisão. O seu Zé, como eu chamava o Rato, parou de olhar as barbadas de domingo no jornal e passou a prestar mais atenção naquele garoto. E olha que para ele prestar mais atenção num jogador do que num puro-sangue não era fácil. Eis que o garoto domina a bola lá atrás, e sai tabelando com alguém no meio de campo, recebe lá na frente, passa pelo primeiro e arrisca o chute. Bola por cima. O goleiro adversário bate o tiro de meta, o adversário contra-ataca e, antes que o garoto bom de bola chegue, gol. Seu Zé chama o garoto até a cerca de madeira. Ele mal consegue respirar. — Meu filho — diz o técnico — veja o que aconteceu. Você precisa aprender que, no futebol, quem corre é a bola, que não tem pulmão. E terminou ali uma grande vocação a craque de futebol. Mal sabia o velho Rato que, nos dias de hoje, qualquer jogador — acho que até o Rogério Ceni — corre muito mais do que Zito ou aquele menino. Cafu chegava a correr de doze a treze quilômetros em um jogo. Logo, a bola deixou de correr. Hoje, quem corre é o jogador. Acabou-se o tempo em que a bola era mais importante do que o craque.

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Ah!

Traíra Ele não era do futebol, aliás, tinha pouco a ver com o mundo do futebol. Seus esportes preferidos eram mergulho e vôlei, mas aproveitou uma grande oportunidade de penetrar nesse círculo fechado e, com sua inteligência, alcançou o poder como ninguém poderia imaginar. Cláudio Coutinho era capitão do exército e professor de Educação Física. Como estudioso de novas técnicas, caiu-lhe às mãos o Método de Cooper, ou melhor, o tipo de treinamento que os astronautas realizavam para ir, literalmente, para o espaço. Fluente em inglês, fez a tradução do método e mostrou para Admildo Chirol, que era o chefe dos preparadores físicos da Seleção. O técnico ainda era João Saldanha. Quando João foi demitido, o supervisor Russo — por uma questão de solidariedade — também o acompanhou. E aí se abriu a vaga que o oportunista Coutinho não deixou escapar. Passou a ser, mais do que qualquer outro, os olhos do exército na Seleção, agora com o cargo de supervisor. Coutinho não sabia chutar uma bola. Não tinha a menor habilidade, nem de jogador de praia, mas tinha grande interesse em aprender. E estava atento a todos os detalhes, sempre. Foi assim que, num dia de folga da Seleção — já às vésperas da Copa de 1970 —, eu me encontro com o jogador Fontana pelas ruas de Guadalajara. - 157 -


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Começamos a conversar. Fontana era o titular absoluto da quarta-zaga, ao lado de Brito, seu companheiro no Vasco. Era um jogador alto, quase 1,90m, de boa impulsão e alguma técnica. Fontana contou-me, quase casualmente, que estava com um problema no joelho. Reclamou que os treinos estavam sendo muito fortes e estava com medo de agravar o problema. Não era só ele que reclamava. Pelé também tinha tido um pequeno estiramento muscular em Guanajuato — onde a Seleção fez a sua preparação — e Gérson chegou a ficar fora do jogo contra a Inglaterra porque teve distensão muscular. Meia hora, quarenta minutos depois de me despedir de Fontana, acabei esbarrando no capitão Cláudio Coutinho pela cidade. Eles estavam de folga, mas eu não. Tinha muito espaço para preencher no jornal. Notei que Cláudio Coutinho também estava um pouco preocupado com o excesso de preparação física, e ele me disse que iria colocar o assunto em discussão na reunião do dia seguinte da Comissão Técnica. Foi aí que, ingenuamente, contei-lhe o caso de Fontana. No dia seguinte, logo no começo da tarde, quando os jogadores voltaram aos treinos, notei que um jogador se dirigia até mim, saindo desde o meio de campo, deixando o treino de lado. Já podia imaginar. Bem mais próximo, ele disse: — Eu não sabia que você era um traíra. Fontana confirmou a Coutinho que estava sentindo o joelho e por isso Zagallo o substituiu por Piazza. Cláudio Coutinho chegou a técnico da Seleção em 1978. Nunca mais conversamos.

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Ah!

Repórter de futebol Nos primórdios do futebol profissional, os jornais esportivos costumavam designar seus repórteres para a cobertura de clubes e entidades. Eles viviam a vida dos clubes durante as 24 horas do dia e se identificavam como torcedores desses clubes, quase diretores — e tinham tanta ou mais influência que os próprios diretores. A Gazeta Esportiva, por exemplo, designava Milton Peruzzi para escrever sobre o Palmeiras; Solange Bibas era do Corinthians; Walter Lacerda, sãopaulino... Emílio Colella era o setorista — chamavam-se setoristas — da Federação Paulista de Futebol. E assim por diante. Ninguém sabia mais desses clubes do que eles. Os dirigentes telefonavam para dar “furos” de contratações, dispensas, viagens... mas tinha a contrapartida. Os dirigentes jamais eram criticados. Lembro-me do dia em que o repórter Solange Bibas marcou uma entrevista com meu primo, Roberto Battaglia, que iniciava a sua carreira no Corinthians em 1957, substituindo o insubstituível Cláudio Cristóvam de Pinho. Minha tia foi ao cabeleireiro, meu tio não foi trabalhar, os irmãos tomaram banho e vestiram as melhores roupas. Afinal, iriam receber Solange Bibas, e fotógrafo, para uma reportagem. - 159 -


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Os jogadores logo entenderam que aqueles jornalistas — se é assim que podemos chamá-los — não eram seus amigos, ao contrário, eram amigos dos dirigentes. Quando jogavam mal eram criticados pelos dirigentes, e os tais setoristas publicavam tudo, sem piedade. Logo, criou-se outra vertente do jornalismo, em especial em jornais que não eram apenas esportivos, mas tinham uma seção de esportes. Essa outra vertente colocava-se claramente ao lado dos jogadores. Os repórteres os defendiam na renovação de contrato, apoiavam suas reivindicações e forçavam a barra para que fossem atendidos. Por outro lado, os jogadores também sabiam que não podiam virar as costas para aqueles setoristas dos jornais esportivos. Tinham medo de seu prestigio junto aos dirigentes. Com essa bola dividida, os jogadores passaram a ter cada vez mais intimidades com os repórteres independentes que trabalhavam na Última Hora, Folha, Estadão ou Notícias Populares. No jornal Notícias Populares, onde eu era o editor, contratei um repórter que conhecia muito futebol. Era comentarista da rádio Marconi e, além de tudo, com um físico de quase 1,90m de altura, jogava bem de zagueiro. João Carlos Guidi era seu nome. Era amigo de todos, sujeito simpático, sorridente. Parecia que não tinha problemas. Eu o designei para fazer a cobertura do Palmeiras. E, em seu trabalho, era absoluto. Sabia de tudo que acontecia no clube, não por causa dos dirigentes, mas o técnico e os jogadores, funcionários, todos gostavam dele. Diariamente, João conseguia reunir jogadores que iam visitá-lo na redação ou eram convidados para dar entrevistas. E ele passava horas atendendo a todos, presenteando-os com fotografias de treinos e jogos que o jornal não iria usar. Seu prestígio chegou tão longe que, às vezes, era convidado para treinar entre os jogadores. Não em coletivos sérios, mais naquele rachão que acontecia após os treinos, que era mais para descontrair a turma. Mas, num desses rachões, sem querer, João Carlos acertou o tornozelo de Aldemar... e, aí, os dirigentes resolveram proibi-lo de treinar. Todo mundo lamentou, até o próprio Aldemar, vítima do João. Outro repórter que tinha livre acesso aos jogadores era Fausto Silva, repórter da rádio Jovem Pan e, depois, repórter do Estadão. Quando Fausto chegava para cobrir a Seleção Brasileira, os jogadores o recebiam com grande festa e muitas brincadeiras. Fausto sabia tirar proveito dessa situação, em especial com jogadores - 160 -


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mais famosos, como Zico, Sócrates, Júnior — enfim, os líderes da equipe. Como havia o quadro do Capitão Gay, no humorístico de Jô Soares e da Mônica, o treino podia estar fervendo que sempre um ou outro jogador gritava do campo: — Capitão Gay. Fausto fingia invadir o campo, nervoso. Fazia cena. Foi assim que ele começou a sua brilhante carreira na televisão. Um dia, quando já apresentava o Perdidos na Noite, na Band, ele me disse: — Eu vou ser o Chacrinha sem fantasia.

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Ah!

El Verdugo Pelé nunca foi de colocar azeitona na empada de ninguém, muito menos de jogador de futebol. Depois da Copa de 1966, jornalistas europeus anunciavam um novo rei do futebol, o moçambicano Eusébio, o Pantera Negra. Eusébio foi descoberto por um brasileiro, o Bauer — José Carlos Bauer —, que jogou no São Paulo e na Seleção Brasileira. Bauer era técnico da Ferroviária e foi para lá em excursão quando o futebol africano ainda era considerado café com leite. De regresso, via Lisboa, encontrou-se com seu velho mestre Béla Guttmann, que dirigia o Benfica. Este lhe perguntou: — Viu algum jogador interessante? E Bauer lhe falou de um negrinho espigado, de pernas finas, ligeiro, que podia aprender a jogar futebol de chuteiras. Quando passou a onda Eusébio, e Pelé mostrou quem era o verdadeiro rei, na Copa de 1970, apareceu Johan Cruyff, camisa 14, líder da Laranja Mecânica, a seleção da Holanda, que havia encantado o mundo na Copa de 1974. Como quem ficou com a taça em 1974 foi a Alemanha, Pelé encontrou uma saída para que não descobrissem um novo rei: — Meu sucessor será aquele que ganhar três Copas e marcar mais de mil gols! - 163 -


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Pelé só não resistiu ao futebol de El Verdugo. Já o conhecia dos tempos do Peñarol, mas quando ele veio para o São Paulo, em 1971, e começou a encantar a torcida brasileira, o Rei declarou, sem ninguém lhe perguntar: — Ele está entre os cinco maiores jogadores! Foi assim que também pararam de falar que Zico era o Pelé loiro, depois o Ronaldinho Fenômeno, depois o Ronaldinho Gaúcho... Quer dizer, o rei é o Rei. Eternamente Rei. Ainda mais porque Pedro Virgílio Rocha, El Verdugo, que desde os 17 anos se tornou o maior talento do futebol uruguaio, nunca falou nada. Pedro falava com o pé esquerdo, com o direito e com a cabeça. Falava a linguagem da bola na rede.

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Ah!

O Monstro É o ciclo do futebol e da vida. Não foi por acaso que o jornalista João Máximo ganhou o prêmio Esso com a reportagem “Futebol, o longo caminho da fome à fama”. Faltou apenas escrever o caminho de volta, a volta à fome. Quando as luzes dos estádios se apagam para o ídolo, quando ele tem de voltar à real, ao que era antes, é aí que ele vai descobrir, ou redescobrir, o que é a vida. Outro dia, passou na televisão a história de uma semana vivida por Paulo Cézar Lima, o Caju, campeão de 1970. Jogou na França, aprendeu meia dúzia de palavras em francês, e agora vive tentando relembrar o passado. Aparece para tomar uns trocados por aqui, outros por ali. Visita os amigos ricos de antigamente, aparece — ou aparecia — para jogar um futebolzinho no sítio do doutor Lídio Toledo e assim vai indo. Até que as pessoas vão ficando com o saco cheio de vê-lo e deixam de atender o telefone. Outros, menos cara de pau, vivem tristes, sozinhos com o passado. Não pedem nada para ninguém, têm vergonha da roupa que usam. Só são vistos esporadicamente em algum enterro, missa de sétimo dia de algum velho colega, quando o clube faz questão de prestar homenagem e colocar a bandeirinha do clube sobre o caixão, para demonstrar que ele não foi abandonado. Vi o Bauer, pela última vez, na missa por Constantino Cury, velho - 165 -


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dirigente do São Paulo. Fazia calor naquela manhã, mas ele estava com um casaco surrado, magro, pálido. Zé Maria de Aquino, que era seu amigo, colocou a mão sobre seu ombro, passou-lhe algum dinheiro sem que quase ninguém pudesse perceber. Aquele homem, José Carlos Bauer, era o Bauer, o Monstro do Maracanã, titular da Copa de 1950. Depois daquela derrota, saiu do Maracanã para a estação ferroviária. Sozinho. Pegou o trem e veio chorando até São Paulo. Naquele último dia em que o vi, fazia uma semana que o Monstro do Maracanã não comia um pedaço de carne.

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Ah!

Tiradentes Voltava, naquela noite, para casa ouvindo a Voz do Brasil. Tinha essa mania de ouvir a Voz do Brasil no automóvel, enquanto enfrentava a marginal do Tietê. A maioria das pessoas achavam um saco aquela voz oficial, mas, às vezes, era possível tirar algumas ideias de reportagem. Estava já no meio do caminho, quase chegando à Ponte da Cidade Universitária quando ouvi a notícia, do Ministério da Fazenda. O locutor dizia que havia sido concedida pensão para descendentes de Tiradentes, isso mesmo, descendentes de Joaquim José da Silva Xavier, o maior herói que este país já produziu. Fiz o retorno ali mesmo, sobre a ponte, e regressei ao jornal. Enviei um telex para a redação da Voz do Brasil para saber mais detalhes, enfim, quem eram esses descendentes? Aprendi no grupo escolar e no ginásio que o nosso grande herói foi julgado, condenado e enforcado. Esquartejado, teve partes de seu corpo expostas em via pública. Sua casa foi destruída e salgada para servir de exemplo. Que ninguém mais se atrevesse a se insurgir contra os poderosos portugueses. E toda a sua família foi considerada maldita para sempre. Quando era pequeno, chorava toda vez que lia o capítulo da morte de Tiradentes. Ele, um alferes da cavalaria, sujeito simples, foi o único que não pediu clemência, não implorou pela vida, por exílio ou coisa que o valha. - 167 -


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Tinha algumas imagens dele, uma delas vestido de militar, barba feita; a outra — já preso —, de túnica branca, uma barba enorme. Era ainda jovem, não tinha um fio branco. Jamais soube que tivesse deixado algum descendente, que fosse ao menos casado. Ele foi enforcado sob aplausos dos presentes à Praça da Lampadosa, no Rio de Janeiro. De onde viriam esses descendentes? Fui pesquisar, estudar naquela mesma noite, ver os principais livros sobre o nosso Mártir da Independência, e não encontrei nada a respeito de seus descendentes. Mas a redação da Voz do Brasil me dava indicações de que os descendentes de Tiradentes que haviam se beneficiado da pensão moravam nas cidades de Divinópolis e Indaiá das Dores, ou Dores do Indaiá, Minas Gerais. Naquela mesma noite, consegui convencer o Laerte Fernandes sobre a importância dessa reportagem e, no dia seguinte, pela manhã, já estava na estrada, junto ao fotógrafo Oswaldo Maricato, para rodar mais de dois mil quilômetros à procura dos descendentes do nosso herói. Fui encontrar parte da família, duas velhinhas e um velhinho, em Dores do Indaiá. Elas pouco puderam me ajudar, mas o velhinho se dizia trineto de Tiradentes. Foi ele quem me contou que Tiradentes teve um filho e uma filha. O filho morreu ainda jovem, mas a filha foi a responsável pela família. E a prole foi grande, um neto do herói se casou duas vezes e teve muitos filhos. Seguia o avô até na arte de extrair dentes, pelo sertão mineiro. — Tiradentes usava barba ou só a deixou crescer na prisão? O velhinho olhou bem as duas fotos que eu lhe mostrava e ficou em dúvida. — Agora você me pegou! Mas nos informou que os outros descendentes talvez pudessem me esclarecer sobre isso, os descendentes de Divinópolis. Viajamos, o Maricato e eu, durante o dia inteiro. Em Divinópolis não foi nada fácil achar a casa dos outros descendentes. Ficava num bairro muito afastado, uma casinha muito simples. Encontramos lá um senhor. Era impossível determinar direito a sua idade, mas aparentava entre cinquenta e sessenta anos — nem ele sabia direito dizer quantos anos tinha. — O senhor tem parentesco com o Tiradentes? — Tenho, até vou receber uma pensão do governo. - 168 -


Ah!

E foi só o que conseguimos saber. O descendente do nosso grande herói não tinha muito tempo para nos atender. Às 5 da manhã tinha de estar na roça. Era um boia-fria.

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Ah!

Goleiro negro É coisa meio antiga, mas vale a pena lembrar. Vale a pena lembrar como o Brasil passou uma boa fase perdendo jogos porque não tinha grandes goleiros e, hoje, exporta para os maiores times do mundo. Aí estão Júlio César e Doni jogando na Itália, por exemplo. Mas, há coisa de cinquenta anos, tudo era muito difícil. O grande Carlos Castilho — que tinha o apelido de Leiteria nos tempos do Fluminense, porque pegava tudo e tinha muita sorte — bastava vestir a camisa da Seleção para começar a tremedeira. O mesmo acontecia com Veludo, também do Flu. No clube, pegava tudo; na Seleção, não pegava nada. E os grandes clubes brasileiros passaram a contratar goleiros argentinos e uruguaios. Foi assim que José Poy se eternizou no gol do São Paulo, que Maidana brilhou no Palmeiras, Mazurkiewicz no Atlético Mineiro, Cejas e Rodolfo Rodriguez no Santos... e por aí afora. A fama do goleiro brasileiro era tão ruim que faziam piadas. Perguntavam: — Sabe qual é a diferença do goleiro brasileiro e do argentino? — Qual? — Quando a bola é cruzada na área, o brasileiro grita para o zagueiro: vai que é sua! E o argentino grita: deixa que é minha! A coisa andou tão feia pelos idos de 1950, 1960, que um técnico, Aymoré Moreira, começou a defender uma tese que nem Gilberto Freyre seria - 171 -


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capaz de analisar. Aymoré não gostava de escalar goleiro negro. Dizia que o atacante tinha mais visão do gol por causa da cor. Para se defender de qualquer racismo dizia que era contra o goleiro jogar vestido de preto, devia usar a cor mais neutra possível. Havia gente no futebol que apoiava Aymoré. Diziam que o negro, neste caso o goleiro, não tinha estrutura para suportar tamanha pressão na prática da profissão, diante de milhões de torcedores. De um jeito ou de outro, muitos goleiros negros (e brancos) sucumbiram na Seleção ou em grandes clubes, como foi o caso de Veludo, Manga, Pompéia, César (o pequeno grande César, do Corinthians), Jairo e outros. Houve um tempo, em que dirigia a Portuguesa, que Aymoré tinha dois bons goleiros. Um era Félix, branco, magrinho, cujo apelido era Papel. Félix, que depois se consagrou no Fluminense e na Seleção de 1970, era um goleiro voador, quer dizer, gostava de fazer grandes — ou pequenas — defesas voando como um passarinho. Orlando, o outro, era negro. Tinha uma perna pouco mais curta do que a outra, mas era um goleiro seguro. Aymoré não gostava de nenhum dos dois. Teve a ideia de ir buscar um goleiro no time de basquete da Seleção Brasileira. O escolhido foi Valmir, o Diabo Loiro, o rei das tabelas. Não me lembro se Valmir chegou a treinar na Lusa, mas não deu certo. Esse tabu começou a ser quebrado com Gilmar dos Santos Neves, o São Gilmar, mesmo depois de ter sua carreira quase encerrada depois de levar sete gols num jogo contra a Portuguesa. Reabilitado, foi bicampeão do mundo em 1958 e 1962, na Seleção, e também bicampeão interclubes, já no gol do Santos. E, nos anos 1970, quando o ex-goleiro Valdir Joaquim de Moraes começou a sua Escola de Goleiros, o Brasil começou a fabricar produtos de exportação. Emerson Leão jogou dez anos como titular da Seleção Brasileira. Na Copa de 2002, devemos o título a grandes defesas de Marcos. Pela primeira vez, nosso goleiro foi o melhor da Copa, embora a FIFA tenha dado o troféu para o alemão, Kahn, que na final tomou um frango. E quando poderíamos imaginar que teríamos o goleiro mais moderno do mundo, o artilheiro Rogério Ceni? Mas, voltemos ao assunto. Quero saber a sua opinião. Por que não temos grandes goleiros negros?

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Ah!

Pelé, 50 anos A cidade escolhida para a celebração dos 50 anos de Pelé foi Milão. A Seleção Brasileira iria enfrentar o Resto do Mundo naquele outubro de 1990. Em todas as entrevistas o Rei dizia que estava se preparando, treinando pesado, fazendo esteira. Por isso as pessoas não o viam na Vila Belmiro nem em outro lugar aberto. Treinava escondido. O Rei dizia, vaidoso: — Estou com o mesmo peso da Copa de 1970. Paulo Roberto Falcão, técnico da Seleção, queria saber de Pelé qual a sua preferência: começar jogando ou entrar no segundo tempo, quando o adversário já estivesse mais cansado. Orgulhoso, o rei queria começar jogando. Desde o primeiro minuto. E queria ficar em campo pelo menos 45 minutos. Convenhamos, uma tremenda pedreira para um cara de cinquenta anos. Do outro lado, entre outros, estaria van Basten. Era uma festa, mas o Brasil não podia dar vexame, tomar de saco. Mas o Rei, como sempre, queria faturar cada minuto daquela festa, em todos os sentidos. Como de hábito. Na véspera do jogo, seu empresário — Hélio Viana — queria vender todo tipo de publicidade, em qualquer espaço. Chegou a entrar em acordo com a Panasonic, para a entrevista de Pelé, - 173 -


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incluindo Falcão. Quando Falcão sentou-se e viu a publicidade às suas costas, retirou-se para o outro lado. Ele não estava ganhando nada com aquilo e, na Itália — especialmente em Roma —, Falcão também é rei. Hélio Viana queria escalar a Seleção Brasileira, colocar Careca ao lado de Pelé, afinal — como ele dizia —, era uma festa de Pelé e ele tinha esse direito. Também não deu certo. A verdade é que Pelé não aguentava o ritmo do jogo e, em menos de dez minutos, já estava com a língua parecendo uma gravata. Conseguiu pegar a bola fora da área, todos esperavam um chutão — como nos velhos tempos — mas a bola saiu rasteira, mal chegando à meta. Do outro lado, van Basten estraçalhava, fazendo um belo gol. Houve um lance em que a bola sobrou a meia altura na área, entre Pelé e Rinaldo, um ponta que jogava no Flu. Rinaldo tentou uma bicicleta impossível, foi acusado de tirar o gol de Pelé. Basta ver o taipe. Pelé também não iria dominar a bola. Como todos estavam a fim de faturar, Ricardo Teixeira liberou a cobertura ao vivo do jogo para Milão por cem mil dólares. Seria uma forma de premiar os 23 jogadores da Seleção que tanto se esforçaram para a festa e eram os únicos que não estavam faturando nada. E olhe que, naquela época, em início de carreira, para Cafu quatro mil dólares seria um bom dinheiro. Mas, antes que o jogo terminasse, alguém já tinha passado na tesouraria e pego os cem mil dólares. Como ele disse depois, era uma festa de Pelé. Ele deu a festa e ficou com todos os presentes!

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Ah!

Yustrich na TV Dorival Knipel era o seu nome. Yustrich era o apelido de goleiro. Depois que parou de jogar ganhou uns trinta, quarenta quilos. E, para o seu metro e noventa, um novo apelido, Homão. Quando não estava trabalhando, “descansando sem estar cansado”, como geralmente acontece na vida de técnico de futebol, vivia em seu sítio em Vespasiano, solitário, apenas em companhia de uma filha, se não me engano, psicóloga. Só podia ser. E ai de quem se aproximasse da filha. Yustrich tinha um trauma. Pelo menos era isso que contavam, de pé de ouvido, uns para os outros. Jogava ainda no Flamengo quando convidou um grande companheiro, o cobra do time, para uma visita ao Cristo Redentor. O companheiro bem que estranhou o convite, mas partindo de Yustrich, um velho camarada, tudo podia acontecer. Era um dia de semana, folga dos treinos. Quando ambos chegaram lá, aos pés do Redentor, já no fim de tarde, não havia viv’alma. Yustrich começou uma conversa meio estranha: — Você é meu grande amigo. Você sempre foi o meu confidente, sempre disposto a me ouvir. Você sabe que eu confio em você como confio em um irmão. E o amigo cada vez mais desconfiado. A amizade entre ambos, ele não - 175 -


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imaginava fosse assim tão forte. E Yustrich foi levando o amigo, mão no ombro, cada vez mais próximo à beira da cerca, à beira do abismo. Lá embaixo, tudo pedra. E a mesma conversa. Até que chegou aos finalmentes: — Se eu sou tão teu amigo, por que você foi tão desleal comigo? — Por que você foi tão covarde, cafajeste? — Filho da puta... Nessa altura, ele já estava com a mão no pescoço do “amigo”, quase o empurrando lá para baixo, e este, desesperado. — Eu sei que você tentou cantar minha mulher... O amigo, lógico, desmentiu, jurou. E teve um respiro. Queria se mandar de lá o mais rápido possível. E conseguiu, deixando o Homão chorando, sentado num canto, de mãos na cabeça. Nunca se confirmou a história. Podia ser pura imaginação de Yustrich? Acho que sim. A verdade é que, naquele ano de 1973, quando veio para ser técnico do Corinthians, essa mesma história, ocorrida há tantos anos, vinha quase sempre à tona. Daí encontrar aquele homem tão solitário, que morava sozinho na concentração. Sem amigos. No fundo, aquele não era o verdadeiro Yustrich. Lembro-me de uma outra história que me contaram. Às vésperas de um grande jogo, o ponta-esquerda Tião, do Atlético Mineiro, conseguiu se safar da concentração para ir ao velório de sua mãe. Yustrich chegou a dar-lhe algum dinheiro para ajudar nas despesas. Passava da meia-noite quando, por acaso, Yustrich — conversando com um diretor do clube — deu a notícia da morte da mãe do Tião. — Mas a mãe do Tião já morreu no ano passado. Yustrich apertou um amigo mais próximo de Tião, que estava ali concentrado, e tirou a confissão. Já sabia o nome do bar. Saiu pela noite. Encontrou o seu ponta, o ponta de sua melhor jogada tática, a “cavadinha”, pronto para mais uma tacada, pronto para matar mais uma bola sete. A mesinha ao lado, repleta de casco escuro, bem gelada. Tião apanhou com o próprio taco. Sem passar o giz. E, depois, seguiu sozinho para a concentração. No domingo, acabou com o jogo. Foi por isso que, naquela noite, diante das câmeras da TV Record, eu estava meio desconfiado (ou seria receoso?) com o que poderia acontecer. - 176 -


Ah!

Era um dos críticos do técnico, dos seus métodos ultrapassados de treinar, de exigir força, apenas força, nenhuma técnica dos jogadores. Estávamos em quatro jornalistas. Eu numa banqueta alta, onde não conseguia tocar os pés no chão diante do meu metro e setenta de altura e 65 quilos. O programa estava começando quando lhe fiz a primeira pergunta, exatamente sobre seus métodos de trabalho, que ele tanto prezava. Ele deu um pulo com extrema agilidade da poltrona onde se acomodava e se insurgiu rápido em minha direção. Todos imaginaram que ele fosse me agredir. Ele avançou uns quatro ou cinco metros até ficar diante de mim. E eu, parado, diante dele, com o microfone na mão. O programa saiu do ar. Poucos puderam acreditar por que eu não tinha fugido. Era muita coragem? Na verdade, ele tentou um golpe psicológico que faria com que eu nunca mais tivesse coragem de aparecer diante das câmeras. Como diria Vanzolini, na voz de Noite Ilustrada, “ali onde eu chorei, qualquer um chorava. Dar a volta por cima que eu dei, quero ver quem dava”. Que deu vontade de sair correndo quando vi o Homão crescer para cima de mim, lá isso deu. Mas se eu corresse aquele dia, estaria correndo até hoje.

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Ah!

Majestade Que fique bem claro: Estou falando de Pelé. Não do Edson Arantes do Nascimento. Conversar sobre futebol sempre foi minha paixão. Desde pequeno gostava de ouvir histórias. Meu tio Nino (o nome era Saturnino, que maldade né?) era o mais corintiano da família. O filho mais velho chamava Roberto, o Roberto Battaglia, que chegou no clube aos 14 anos e, aos 17, já estava substituindo o Cláudio Cristóvam de Pinho, o Gerente, legendário ponta do Timão. O seu segundo filho chamou-se Osvaldo, por causa de Baltazar. Baltazar, na verdade, chamava-se Osvaldo Silva, e o terceiro chamou-se Cláudio, por causa do Gerente. Para o meu tio, Brandão era o maior técnico do mundo e Alfredo Ignácio Trindade o maior presidente. Todos no Corinthians eram os maiores do mundo. Por isso, ficava difícil saber quem não era o maior. Mas eu tinha um conselheiro imparcial. Seria capaz de ficar ouvindo-o contar histórias do futebol durante horas, dias, semanas. Ele e o Yeso Amalfi. Mas ele, Elba de Pádua Lima, o Tim, não tinha histórias de tantas aventuras como o Yeso, tinha algo que poucos têm: vivência. Digo vivência através de seu olhar para o campo de jogo, incluindo todas as qualidades técnicas do jogador, além do homem: personalidade, liderança, bondade, caráter, felicidade... tudo que se possa incluir em um ser humano, bem entendido, - 179 -


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dentro de campo. Uma coisa é o jogador em seus 90 minutos de jogo. Outra é o homem, fora de campo, em sua rotina. Numa dessas conversas, quando Tim dirigia o grande Santos e Pelé já anunciava a sua despedida dos campos, lá na concentração do clube, na chácara de São Bernardo, conversava com Tim sobre as qualidades de Pelé, uma comparação com outros jogadores, outros grandes craques que ele tinha visto jogar em seus cinquenta anos de futebol. Foi então que o velho Tim tentou estabelecer um parâmetro do que era Pelé. E os outros. — Você acha que o Baltazar cabeceia bem? — Foi o melhor que eu vi. — O Pelé cabeceia melhor do que ele. De olhos abertos e com mais força, força que vem do pescoço. O Pelé tem um chute de cabeça. — Quem você acha que tem a maior visão de jogo? — O Zizinho. Ele enxerga cada palmo do campo. (Eu tinha visto Zizinho jogar no São Paulo em 1957, já em fim de carreira). — Você acha que o Zizinho faria aquela jogada que o Pelé fez contra a Checoslováquia na Copa de 70, quando viu o goleiro — Viktor — adiantado do meio de campo, sem levantar a cabeça? — Quem você acha que foi o atacante mais veloz do futebol brasileiro? — Dizem que foi o Ademir de Menezes! — Você já viu alguém chegar antes do Pelé quando ele arranca para o gol? (Daí eu me lembrei do gol que Pelé fez contra o Fluminense quando pegou a bola no meio de campo e avançou até bater Castilho). — Quem chutava de pé esquerdo melhor do que o Jair? — perguntoume Tim. E respondeu: — Ele. Com uma diferença, o Jair era canhoto e o Pelé não. — Quem batia pênalti melhor do que o Cláudio? — (o Cláudio Cristóvam de Pinho). Eu não me lembrava de nenhum pênalti perdido pelo Cláudio. E já tinha visto Pelé perder um, contra o Corinthians. Mesmo assim, perdeu um, que eu me lembrasse. O que Tim queria dizer é que Pelé era a síntese do futebol. Ele tinha tudo o que os melhores jogadores tinham de melhor. Comece você a pensar nos cinco ou seis maiores jogadores do mundo - 180 -


Ah!

nos dias de hoje. Vai ver que cada um tem alguma coisa de Pelé. Uma coisa só. E são craques?

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Ah!

Funeral Não sei se você já ouviu falar de Carlos Joel Nelli. A maioria, acho que não. Eu não o conhecia pessoalmente, nem nos meus primeiros anos de jornalismo. Eu era ainda jovem, tinha uns vinte anos, e só conhecia o homem por fotos. Todos conheciam. Nelli era o diretor de A Gazeta Esportiva. Adorava sair em fotos, e era figurinha fácil nas páginas do seu jornal, mas em época de São Silvestre ele se excedia. Numa dessas edições, ali pelos anos 1970, nós, na redação do JT, contamos. Ele havia saído em 89 fotos, em uma única edição. Ele aparecia entregando troféu para corredor, ao lado do governador, do prefeito, do primeiro brasileiro, enfim, Nelli estava em todas. Não sei se ele não se importava ou se não tinha conhecimento das gozações que todos faziam a esse respeito. O importante é que lá estava ele, em quase todas as páginas do seu jornal. Lembro que a primeira vez em que fui entrevistá-lo sobre uma das corridas, a primeira coisa que aconteceu assim que apertei sua mão foi o flash. Lá estava eu ao seu lado, ou melhor, ele de frente, eu meio de perfil. Foi o único contato que tivemos. Em 1992, quando Constantino Cury era o presidente da Fundação Cásper Líbero e fui convidado pelo Hélio Gama para ser o seu chefe de redação, o bom velhinho já não estava mais por lá. Nem saía em fotos, uma - 183 -


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única foto, nem nas vésperas nem no dia da corrida. Tinha se afastado há algum tempo. Sei que em 1992 ou 1993 chegou a notícia de que Nelli estava muito mal de saúde. Faleceu dali a alguns dias. Fui representando o jornal no seu enterro. Estavam lá três velhos amigos, dos tempos das fotos, e mais ninguém. E tivemos de levar o seu caixão para a tumba em quatro pessoas. Fiquei então imaginando por onde andariam aquelas milhares de pessoas que saíram ao seu lado nos velhos tempos da São Silvestre. Como ele já não saía em tantas fotos, acho que as pessoas não se sentiram obrigadas em velar o seu corpo. Ninguém iria ficar sabendo mesmo quem esteve ou não presente ao enterro!

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Ah!

Futebol de verdade Aprendi a ser homem dentro dos campos de futebol, na várzea da cidade, em jogos no interior, na disputa de taças. Lá dentro, a verdade é igual para todos, brancos ou negros, ricos ou pobres, doutores ou analfabetos. A bola rola igual para todos. A bola premia o talento. Era pequeno ainda quando comecei a ver os primeiros jogos. Meu pai me levava ao Clube Atlético Butantã para ver grandes jogos, grandes jogadores, revelações e craques do passado. O Butantã tinha três times. Aos sábados à tarde jogava o Extra, aos domingos pela manhã, o Juvenil, e, à tarde, o Esporte. O Extra era um time formado por funcionários do Instituto; o Juvenil, por jovens até 19 anos; e o Esporte era o time adulto. Eram grandes times. Quem sempre estava por lá era Feitiço, que havia jogado em grandes times da várzea e da liga profissional, como Ítalo-Lusitano, Santos, Peñarol... Era um mulato alto. Quando o conheci já havia deixado o futebol, estava um pouco gordo e de cabelos grisalhos. Meu tio Saturnino, que era o técnico do Esporte, insistia sempre para Feitiço entrar em campo, jogar pelo menos uma vez com a camisa do Butantã. - 185 -


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Ele recusava sempre, com este argumento: — Quero que todos lembrem de mim pelo que fui, e não pelo que sou. Isso foi muitos anos depois que — através do meu amigo Armandinho, fundador, dono e faz-tudo do Museu do Bixiga — Feitiço se chamava Luís Matoso. Ele jogava usando meias pretas, da mãe dele, e como tinha muitos calos, não usava chuteiras. Jogava de sandálias. E só chutava de bico. Foi o maior artilheiro do mundo em gols de bico. Só o Romário aprendeu um pouco de sua técnica. Na Avenida Eusébio Matoso, onde hoje está o Shopping Eldorado, havia quatro campos. No primeiro jogava o Brasil, mais para trás o Paulista, o Flamengo e o América. O Cariris jogava aos sábados. Chamava-se assim por causa de uma rua do bairro de Pinheiros. Tinha muitos japoneses na equipe, entre eles o Tiba, meia-esquerda, o Içami Tiba, que se tornou um dos maiores psicoterapeutas do país. Mas quem atraía a maior torcida era o Brasil, o Brasilzinho. Tinha um meio de campo fabuloso formado por Marinho Ramalho e pelo meu primo Feição, camisa 10. Marinho Ramalho era verdureiro. Passava a semana inteira carregando caixotes de verduras e legumes e, no domingo pela manhã, arrumava tempo para vestir a camisa 5 do Brasil. Como podia correr tanto? Corria o campo inteiro, comandava o time, defendia com o vigor de um zagueiro, sem fazer faltas, armava o time como Zito, tinha a visão de jogo que só vi em Zizinho e chutava de direita, sempre no canto, sem muita força. Disseram-me que, um dia, Valdemar Carabina, que era amigo de Marinho, o levou para treinar no Palmeiras. Marinho se trocou e ficou esperando ser chamado. O treino começou e ele lá sentado. Foi para o vestiário, vestiu-se e nunca mais tentou ser profissional. Ele queria jogar. Era sempre visto lá no velho mercado de Pinheiros, no Largo da Batata, bem cedinho. Usava um cesto vazio de verduras para acomodar seu filhinho, o pequeno Muricy, Muricy Ramalho. Meu primo Feição também jogava muito. Tinha 17 anos quando foi treinar no São Paulo. Entrou no time reserva para enfrentar o titular. Desistiu da carreira ao ver Zizinho jogar. Achou que jamais seria titular enquanto Zizinho vivesse. E tinha razão. O melhor campo da várzea era o da rádio São Paulo, Paulo Machado de Carvalho. Ficava ali na City Butantã, onde estava instalada a maior antena da cidade, com mais de cem metros de altura, toda em madeira de lei, como - 186 -


Ah!

se fosse uma pirâmide. No time da rádio jogava Alfredo Machado de Carvalho, filho de Paulo Machado, de centroavante. Fazia gols, mas era um tipo Geraldão do Corinthians ou Aloísio do São Paulo. Blota Júnior era meia, mais talentoso. Uma ou outra vez, o grande Leônidas da Silva, já com seus cinquenta anos, brincava um pouco. Na Bela Vista tinha um grande time, o Can Can. Quando estavam de férias, muitos jogadores profissionais reforçavam o time, como João Altafini, o nosso Mazzola, que já estava no Milan. Jair Rosa Pinto, ex-profissional, era o meia-esquerda. Um sábado, o Alviceleste os enfrentou. Tínhamos um grande zagueiro, seu apelido era Da Guia. Em vinte minutos, eles já estavam goleando por 4 a 0, quatro gols do Mazzola. Ele se encheu, saiu e foi embora. O jogo estava muito fácil. Eu joguei em muitos times da várzea. No Juvenil do Butantã, no Alviceleste, mas o meu time de coração era o Canto do Rio, onde jogava de centroavante. Fazia gols todos os domingos. Nosso time jogava no WM, com dois pontas velozes, dois meias talentosos, e eu lá na frente, esperando alguém cruzar ou me colocar na cara do gol. Quando saí do Canto do Rio para ir jogar no Butantã parei de fazer gols. Foi só aí que percebi que quem jogava mesmo eram os dois pontas — Lando e Nelsinho — e os dois meias, Vane e Cri-cri. Foi uma triste descoberta. Só voltei a fazer gols quando voltei a jogar no Canto do Rio. Num domingo, enfrentávamos o Jardim Europa, um grande time. O zagueiro central era o marceneiro conhecido por Berruga, um canhoto, que nos seus bons tempos foi o maior zagueiro que a várzea conheceu. Mas ele já estava velho quando o enfrentei. Talvez perto dos cinquenta, já meio gordo, sem cintura. Consegui, naquele jogo, marcar três gols, sempre passando por ele, na velocidade. Pegava a bola na rede, voltava abraçando os companheiros e percebia o Berruga com as mãos nos quadris. Ele apenas olhava aquela minha alegria. Parecia resignado, parecia querer dizer alguma coisa. E eu parecia que estava humilhando aquele grande craque. Estaria mesmo? Hoje, finalmente, eu sei o que ele queria me dizer. Ele queria dizer que um dia eu também iria envelhecer e que outros jovens iriam passar por - 187 -


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mim. Hoje, ao escrever esta história, aos 65 anos, consigo compreender. Assim como Mário Covas chorou diante do mar, ao saber que estava com seus dias contados por um maldito câncer, eu também choro, porque não me sinto velho. Só sinto que envelheci quando tento entrar em campo. Lá eu vejo que o tempo passou e que eu nunca mais vou conseguir marcar os meus gols. Só me resta ser um artilheiro do passado!

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Ah!

Jean e João Se eu disser que o futebol brasileiro teve dois reis, um nobre e outro plebeu, durante mais de vinte anos, você não vai acreditar. Vai? Um nasceu em São Paulo, frequentava os clubes mais aristocráticos, como Pinheiros e Paulistano, era filho de um grande empresário belga que negociava com armas. O outro não se sabe de onde veio, era um operário, líder dos condutores de bonde (você sabe o que é bonde?). O primeiro vestia-se com ternos de tropical inglês. Sempre impecável em sua camisa branca engomada, colarinho fechando perfeito ao nó da gravata. O outro sempre com a barba por fazer, terno amarrotado. O bem nascido chamava-se Jean, Jean Marie Faustin Godefroid’Havelange. O outro era João; era para ser um João qualquer, sem estudo, mas tornou-se João Mendonça Falcão. Jean era o presidente da CBD — Confederação Brasileira de Desportos —, João era presidente da FPF — Federação Paulista de Futebol. Eram os poderes constituídos no esporte e no futebol brasileiro. Jean chegou ao poder depois de mudar-se para o Rio de Janeiro. Seu pai o proibiu de jogar futebol, na época um jogo de malandros e vagabundos, e por isso ele foi nos representar em polo aquático, na Olimpíada de 1936. Foi eleito pelos aristocratas do esporte. João Mendonça Falcão era para ser um simples joguete de dois políticos — Arnaldo Cerdeira e Alfredo Ignácio Trindade. - 189 -


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Trindade queria ser o presidente da Federação Paulista de Futebol, mas não podia naquele ano, porque era presidente do Corinthians. Então Cerdeira o mandou eleger um testa de ferro. A testa era de João Mendonça Falcão. Jean — todos sabem — tornou-se presidente da FIFA em 1974. Tinha o elevador privativo dos presidentes Juscelino, Jânio, Jango, Médici e Figueiredo à sua disposição. O presidente Médici foi quem arrumou o dinheiro para Jean ser eleito na FIFA. João, o outro, para manter-se no cargo, foi obrigado a ir à luta. Montou um esquema de arbitragem, uma verdadeira quadrilha. Ele fabricava os resultados de jogos no interior. Se precisasse de votos em Sorocaba, o São Bento vencia, se precisasse de votos em Rio Preto, o América vencia... E, assim, ninguém mais conseguia tirá-lo de lá. O rei João foi cassado. Não tanto pelas falcatruas no futebol, mas por pertencer — quando operário — ao Partido Comunista. O outro rei, Jean, também foi cassado no Brasil, pelo presidente Geysel. O João brasileiro voltou a ser um João ninguém. O Jean... Bem, o Jean está até hoje por aí. Circulando entre a aristocracia brasileira e internacional. Dura lex, sed lex, no cabelo só gumex!

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Ah!

Futebol nos EUA Quando chegamos aos Estados Unidos para a cobertura da Copa de 1994, confesso que senti o maior desânimo. Logo de cara, no estacionamento do aeroporto de Los Angeles onde fomos pegar o automóvel alugado, o atendente, um paquistanês, perguntou o que estávamos fazendo, qual era a nossa atividade. Expliquei que era jornalista e estava lá para fazer a cobertura da Copa Mundial de Futebol. — Vamos ter uma Copa aqui? Quando? E ele comunicou ao companheiro do lado a grande notícia. Claro que o outro também não sabia de nada. Seria mais ou menos como o Brasil sediar uma copa mundial de bridge. Além do pessoal do Harmonia, ninguém mais saberia do evento. Menos mal que perto de San José, onde a Seleção se estabeleceu para os primeiros treinos, os chicanos já demonstravam que sabiam que a bola ia rolar. O pessoal de sangue latino estava muito animado. Mas não era nem sombra do que já tínhamos visto em outras Copas, no México, na Espanha, Argentina, Alemanha ou Itália. As ruas não tinham nenhuma publicidade da Copa, os jornais davam mais cobertura até para a NBA e estava claro que os jornalistas americanos menos experientes estavam escalados para a cobertura do futebol. Inclusive andavam com o livrinho da FIFA sobre as regras do jogo para não se - 191 -


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confundirem. Certo dia, seguia de carro para Pasadena quando, ao longe, avistei vários campos de futebol, com muitos jogos em andamento. De longe, achei os jogadores meio estranhos, não tinham o biótipo dos norte-americanos. Imaginei que fossem jogos de latinos, mas, na medida em que fui me aproximando, as coisas foram ficando mais claras e, quando cheguei, vi que aqueles jogos eram disputados por mulheres. Os homens estavam ali como torcedores, dando mamadeira para seus bebês, trocado fraldas dos pequenos ou servindo de massagista para filhas ou esposas. Fui informado que estava em disputa um campeonato feminino com 46 equipes. Comecei a entender melhor o futebol nos Estados Unidos quando, uns dias antes da estreia do Brasil, foi marcado um jogo dos jornalistas brasileiros contra uma seleção de Santa Clara, uma seleção feminina. Lógico que saí fora. Foi um show. As meninas americanas, quase tão altas e fortes quanto os brasileiros, venceram por 4 a 2. E foi pouco. Por isso, não se iludam. O futebol norte-americano tem grande futuro e, como todo esporte nos Estados Unidos, terá uma força de marketing comparável à da Seleção Brasileira masculina. Quanto ao futuro da seleção americana masculina, creio que será o mesmo da Seleção Brasileira — feminina.

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Ah!

O espanhol de Zamora Ele era a imagem do Corinthians. Nasceu na pequena cidade de Zamora, na Espanha, veio pequeno para o Brasil. Eram em onze irmãos e trabalhavam juntos na pedreira do pai. Certa vez, depois de uma longa entrevista em que ele tentava voltar à presidência do Corinthians, começou a fazer confidências que nunca esqueci. Disse-me, com lágrimas nos olhos, que tinha 46 anos quando vestiu sua primeira camisa social e usou gravata. E tinha vergonha de não ter estudado, de falar errado e, assim, ser ridicularizado por outros dirigentes (e por jornalistas). Assim era Vicente Matheus, o espanhol de Zamora. Quando assumiu a presidência do Corinthians pela primeira vez, em 1958, seu vice era Wadih Helu. Brigaram logo nos primeiros meses de gestão e Wadih passou a ser um opositor, um opositor até o dia de sua morte. Naquele tempo, Vicente pensava que podia comprar tudo com dinheiro, e por isso tirou cinco milhões de cruzeiros do seu bolso para comprar o passe de Almir, o Almir Pernambuquinho que anos depois foi assassinado. Ao perceber que iria perder as eleições, mandou um empresário colocar o passe de Almir à venda, e o vendeu para o Boca Juniors. Ficou célebre esta - 193 -


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sua frase: — Matheus dá, e Matheus tira. Quer dizer, Matheus não ia dar o passe do craque para que Wadih Helu pudesse usufruir das vitórias corintianas. Assim, Mateus mostrou que amava o Corinthians, mas o Corinthians com Matheus. Durante anos, muitos anos, desde a sua fundação, a torcida Gaviões da Fiel, fundada por Flávio La Selva, foi subvencionada por Matheus. E faziam oposição a Wadih Helu. Até que, em num jogo em Sorocaba, Vicente Matheus foi acusado de oferecer um prêmio para os jogadores do São Bento derrotarem... derrotarem o Corinthians? Pode? Matheus nunca admitiu isso, mas a derrota do Corinthians poderia desgastar seu inimigo na presidência. Ele apenas comentou: — Sabe o que é? Às vezes é preciso perder para as coisas melhorarem! Realmente as coisas foram piorando, piorando, e pioraram tanto que, em 1977, Matheus estava de volta à presidência, para levar o Corinthians a quebrar um tabu de 22 anos sem o título de campeão paulista. Finalmente, Matheus voltou aos braços do povo e provou que, mais importante do que o Corinthians, só o Espanhol de Zamora.

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Ah!

Tabu Fazia onze anos que o Corinthians não conseguia bater o Santos de Pelé. Onze anos de sofrimento da Fiel, de derrotas humilhantes, como aqueles 7 a 4 no Pacaembu. Na semana anterior, o Santos ganhou de 11 a 0 do Botafogo de Ribeirão Preto na Vila Belmiro, com 8 gols de Pelé. O técnico do Botafogo era Osvaldo Brandão. Na semana seguinte, Brandão já estava dirigindo o Corinthians, contra o Santos. Nova goleada: 7 a 4, gols de Pelé e Coutinho. Houve um jogo, acho que em 1966, o Corinthians pegou o Santos já com Garrincha na ponta direita, e vencia por 1 a 0 até o finzinho, quando o Santos empatou. Não tinha jeito. Até que chegamos ao ano da graça de 1968. Corinthians e Santos estavam de novo em campo naquela quarta-feira de chuva e frio. O ônibus do Santos chegou atrasado ao estádio do Pacaembu. Soube que Toninho Guerreiro foi o responsável pelo atraso. Houve discussão entre os jogadores, mas, na hora do jogo, tudo ficou em paz. O técnico santista era Antoninho Fernandes, o do Corinthians era Lula, o mais vitorioso nos onze anos em que dirigiu o Santos. A Fiel vibrou quando Paulo Borges acertou um chute de pé esquerdo do meio da rua e colocou a bola no ângulo, e ensandeceu quando Flávio, o Minuano, marcou o segundo, num chute de dentro da área. - 195 -


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No vestiário, depois do jogo, o ambiente dos santistas era de muita tristeza, mas o diretor de futebol, José Bernardes Ferreira, que também era diretor do Banco Nacional em Santos, mandou todo mundo levantar a cabeça e voltou junto com os jogadores até a Vila Belmiro. Quando chegaram, ao subir a escada da concentração, Bernardes chamou pelo roupeiro Rochinha e perguntou na lata: — Onde está o bode? Rochinha se fez de desentendido, mas, diante da pressão, levou o dirigente para trás do altar de Nossa Senhora Aparecida e mostrou o animal sacrificado, a macumba de sempre para vencer o Corinthians. Bernardes respirou aliviado. Mandou tirar o animal de lá e disse: — Ainda bem que perdemos, senão seria mais uma vitória do bode.

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Ah!

Descobridor de talentos Tem dia que não dá nada certo. O treino que estava marcado para a tarde foi realizado pela manhã. Eu estava lá na Vila Belmiro procurando me informar sobre o que tinha acontecido, já esperando pela maior bronca na volta à redação. A concentração dos jogadores começaria à noite. Por enquanto, só estavam concentrados dois meninos, os quais o treinador das equipes de base, Ernesto Marques, havia indicado para o técnico Lula. — Mas os meninos são bons mesmo? — perguntei. O professor Ernesto, como gostava de ser chamado, disse-me que ali estavam dois futuros craques de seleção. Fui até o quartinho e vi os dois meninos com os pés enrolados em jornal para não sentirem tanto frio, e um belo cobertor nas costas. Um deles jogava no meio de campo, o outro, ponta-esquerda. Nenhum dos dois tinha pinta de craque. O moreno era um menino de 18 anos, cabelo penteado de lado, tinha a missão de um dia substituir o grande Zito. Imaginem, Zito! O outro, o neguinho de 1,66m de altura, meio troncudo, andava balançando a cabeça de um lado e do outro. Tinha vindo de Jaú. Qual era a chance dele substituir Pepe, o Canhão da Vila, o maior artilheiro do Santos - 197 -


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em todos os tempos, depois de Pelé? Mas eu tinha perdido o treino. Não tinha nenhum cobra por ali para ser entrevistado, tinha de voltar ao jornal até uma sete, no máximo oito da noite. Cheguei à redação com o rosto muito alegre. Meu chefe, o Hamiltinho, perguntou o porquê de tanta alegria: — É que descobri, com exclusividade, os futuros substitutos de Zito e Pepe. Hamilton anunciou o furo de reportagem para o editor chefe, Mino Carta, e eu fui escrevendo a matéria. No dia seguinte, lá estavam os meninos Clodoaldo Tavares de Santana e Jonas Eduardo Américo, ou melhor, Clodoaldo e Edu, nas páginas do jornal. E eu, torcendo para que um dia eles realmente pudessem chegar à Seleção Brasileira.

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Ah!

O homem que morreu duas vezes João Ferreira morreu numa quinta-feira, dia 31 de julho de 2003, às 3 horas e 45 minutos, de insuficiência respiratória. Estava internado desde domingo no Pronto Socorro do Hospital João XXIII, em Belo Horizonte. Dizem que fumou — e ainda fumava — muito. Foi enterrado à tarde, no mesmo dia, no cemitério Bosque da Esperança. João Ferreira morreu pela segunda vez aos 81 anos. Sua primeira morte ocorreu há 53 anos, no dia 16 de julho de 1950, uma tarde de domingo no Maracanã, aos 34 minutos do segundo tempo.

A primeira morte

A atormentada vida de João Ferreira começou quando ainda era bastante jovem. Tinha pouco mais de 18 anos quando foi descoberto pelo Atlético Mineiro. Em 1941/1942 sagrou-se bicampeão, e sua carreira alçou voo. Foi de mala e cuia para o Rio em 1943 e passou seis anos felizes nas Laranjeiras, vestindo a camisa do tricolor Fluminense. Em 1946 foi campeão carioca, e sua fama o levou para o Flamengo em 1950, depois de ter ganho o campeonato sul-americano de 1949 com a camisa branca da - 199 -


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Seleção Brasileira. Mulato forte, simples, foi convocado para jogar a Copa do Mundo de 1950 e, surpreendentemente, barrou o grande Noronha, o Alfredo Eduardo Noronha, da célebre linha média do São Paulo: Bauer, Rui e Noronha. Noronha, que por ironia do destino morreu quatro dias antes de João, nunca se conformou com a reserva. Dizia sempre que foi castigado por ter trocado o Vasco pelo São Paulo. O técnico Flávio Costa era Vasco, e o Vasco era a base da Seleção. Melhor teria sido que assim fosse: Noronha o titular. Mas Noronha jogou apenas uma partida naquela Copa e, nas outras cinco, o dono da camisa 6 foi ele, João Ferreira. Foi aí que o seu mundo começou a cair. Naquela tarde de 16 de julho de 1950, o Brasil entrou em campo já com as faixas de campeão sob a camisa, e parecia que a sorte estava lançada quando Friaça marcou o primeiro gol aos 47 minutos, como marcou o cronômetro da FIFA. A Taça Jules Rimet era nossa, pois o Brasil precisava de um simples empate, já que havia batido a Espanha por 6 a 1 e a Suécia por 7 a 1, enquanto os uruguaios ganharam a duras penas da Suécia por 3 a 2 e haviam empatado com a Espanha por 2 gols. Pois aos 21 minutos do segundo tempo, o meia Schiaffino, o grande Juan Alberto Schiaffino, empatou o jogo com suas canelas finas, depois que o ponta-direita Ghiggia foi à linha de fundo e cruzou para o meio da área. Teria sido um simples descuido? Qual o quê. O cronômetro marcava 79 minutos de jogo — 34 minutos do segundo tempo para nós — quando Ghiggia fugiu novamente pela direita, passou na corrida pelo seu marcador, fingiu cruzar (como no primeiro gol) e, quando Barbosa abriu o ângulo, ele bateu rasteiro entre a trave e o goleiro. O Maracanã emudeceu 179.854 torcedores que haviam pago o ingresso e, assim que o árbitro inglês, mister George Reader, trilou seu apito final, iniciou-se uma intensa caça às bruxas. Quem foi o culpado? Para alguns, o técnico Flávio Costa. Pela simples razão de que, desde aquele tempo, o técnico é o culpado pela derrota. Para muitos, a culpa foi de Barbosa, que abriu o gol à disposição do ponta uruguaio. E Barbosa fez o grande marketing da derrota enquanto viveu, até recentemente. Trabalhava no Maracanã, levava turistas à visitação do estádio e gostava de contar sobre a tragédia de 16 de julho de 1950, quando ele — em carne e osso — tinha sido o grande protagonista. - 200 -


Ah!

Gostava de repetir: “Sou o único brasileiro condenado eternamente, pois nem o maior criminoso paga sua pena com prisão perpétua”. Mas houve quem acusasse João Ferreira pela derrota, não apenas pelas falhas técnicas, mas pela covardia. Durante o jogo, segundo as 179.854 testemunhas oculares, ele havia levado uma bofetada no rosto do capitão da Celeste Olímpica, Obdulio Varela, e não havia reagido. Havia falhado como jogador e como homem. João Ferreira sobreviveu àquele 16 de julho, mas o jogador Bigode morreu ali, aos 34 minutos do segundo tempo.

A segunda morte

João ainda jogou até 1952 no Flamengo, e depois voltou ao Fluminense para encerrar sua carreira em 1956. Sua biografia correu o país, correu o mundo: o covarde da Copa. No começo, até que João tentava defender o falecido Bigode, mas depois que deixou o futebol preferiu sumir, e, assim, nunca mais foi visto num estádio de futebol. Passou a viver humildemente como técnico em conserto de rádios. Tentei entrevistá-lo em 1966, quando um outro jogador foi acusado de se acovardar na Copa da Inglaterra. Tratava-se de Gérson, que, por causa de uma crise renal, não conseguiu mostrar seu futebol. Naquele tempo, João ainda morava no Rio, num prédio escuro, de corredores estreitos e mal iluminados. Ouvi barulho lá dentro, mas, ao tocar a campainha, fez-se silêncio e ninguém atendeu. Ele estava lá, mas apenas o João. E João não queria falar mais em Bigode. O professor Flávio Costa me disse que Bigode não tinha sido culpado pela derrota. Nem ele, nem Barbosa: “O verdadeiro culpado foi o Juvenal. Ninguém sabe, mas na véspera do jogo ele saiu pela noite, voltou às quatro da madrugada, mamado. Foi dormir, pensei em colocar o Mauro (Mauro Ramos de Oliveira); depois, como ele acordou bem, resolvi mantê-lo. O Juvenal tinha de fazer a cobertura do Bigode e não teve pernas”. Obdulio Varela também foi entrevistado mil vezes sobre a bofetada em Bigode, e mil vezes desmentiu, mas para os uruguaios, ele — o capitão — ganhou o jogo naquele lance de bravura, como diz o jornalista Franklin Morales: “No hablo de un líder técnico, hablo de un líder espiritual, no es el que - 201 -


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juegue mejor, hablo de un caudillo.” Morales acha que não houve surpresa alguma na vitória do Uruguai. O Peñarol era a base da Celeste Olímpica, um time acostumado a ser campeão. Não perdeu um único jogo em 1949; enquanto isso, o Vasco, base da Seleção Brasileira, estava acostumado com o vice. Quinta-feira, dia 31, quando se anunciou a morte de Bigode, aqui e no exterior o tom da imprensa era igual: “Murió Bigode, una de las víctimas del Maracanazo.” Poucos sabiam que Bigode, nascido no dia 4 de abril de 1922, já havia morrido em 16 de julho de 1950. Nessa quinta-feira de madrugada estava morrendo João Ferreira.

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Ah!

Eu não vi Leônidas jogar Nasci no ano em que Leônidas conseguiu estufar as gerais e as arquibancadas do Pacaembu e colocou lá dentro mais de 71 mil pessoas para vê-lo com a camisa do São Paulo. Foi aí que nasceu o amor paternal que Paulo Machado de Carvalho sentia por ele, e isso eu pude constatar quando trabalhei na rádio Panamericana, como repórter, enquanto Joseval Peixoto era o narrador e ele, o Diamante Negro, era o comentarista. Joseval Peixoto o convidava para comentar com este jargão: “Deixa cair, Diamante”. Estávamos no ano de 1968, a Seleção Brasileira fazia uma excursão pela Europa. Quando chegamos à velha Checoslováquia, notei que os jornalistas não se importavam em entrevistar nenhum jogador, nem o técnico. É verdade que Pelé não estava presente, mas o técnico Aymoré Moreira — bicampeão mundial no Chile frente à própria Checoslovaquia. Nada disso. Todos queriam tocar em Leônidas da Silva, ouvir sua voz, vê-lo, acreditar que era humano. A mesma coisa aconteceu quando a Seleção passou por Varsóvia. Foi só então que eu pude entender quem era aquele colega de trabalho, sempre tão calmo, que quase não falava fora do trabalho. Não falava de sua vida particular, não falava de seu passado. E eu, especialmente, não sabia a razão desse seu comportamento. - 203 -


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Em São Paulo, Leônidas quase não era reconhecido ou admirado por ninguém. Andava pela Brigadeiro Luís Antonio, onde trabalhava também na Secretaria do Trabalho, como se fosse um cidadão comum. Vez por outra alguém o apontava: “Lá vai o homem que inventou a bicicleta”. Há alguns meses, meu amigo Chehade João Massad, um médico, disseme que tinha ido visitá-lo. “Você precisa ir vê-lo. Ele está numa casa de repouso em Cotia. Não conhece mais ninguém.” Quis saber por que esse meu amigo o visitava. Ele respondeu: “Porque ele gosta, eu sinto isso quando ele aperta a minha mão.” Fiquei de ir acompanhá-lo na próxima vez, mas não fui. O Diamante Negro se foi antes. Talvez por isso sua mulher não quis falar com nenhum repórter no velório. Dizer o quê? Há poucos meses, também faleceu um amigo que ajudava a mantê-lo na casa de repouso, o argentino Marcos Lázaro. Seria bem diferente se ele tivesse nascido na Checoslováquia. Ou na Polônia, ou em qualquer outro País.

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Ah!

Felipe Zidane É cada vez mais difícil sair de casa para ir a um estádio, ver ao vivo um jogo de futebol. Porque toda vez que passamos uma tarde em um estádio, deixamos de ver o futebol que preenche várias telas de TV, pelo mundo inteiro, em especial aos domingos. Mas nada como ver o futebol de campo inteiro, sentindo o cheiro de suor que nasce lá dentro das quatro linhas e sobe pelas arquibancadas e gerais. É na tela viva dos olhos, em todo gramado, que vemos os craques que estão correndo, suando a camisa — com ou sem a bola —, e aqueles que já se acostumaram a mostrar jogo apenas para o telespectador. Escrevo isso porque não vi o jogo entre Flamengo e Vasco. Não estava no Maracanã, nem no pay-per-view. Por isso, só vi os melhores lances do jogo, os gols. No primeiro, Felipe dribla — como sempre — pela meia direita da grande área e abre espaço para o chute de pé esquerdo, rasteiro, no cantinho. Vi, também, Felipe deixar um companheiro na cara do gol, depois de driblar dois adversários. Por isso, já não estou tão surpreso ao ler e ouvir crônicas cariocas acrescentando o “Zidane” ao nome do Felipe. Será que desta vez teremos o Felipe que todos imaginávamos no início de sua carreira no Vasco, quando fazia pela lateral esquerda coisas semelhantes a grandes laterais como Nilton Santos, Júnior, Roberto Carlos? Felipe foi um ex-Nilton Santos. Tomara que seja, pelo menos, um futuro - 205 -


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Felipe Zidane, com a camisa 10 do Flamengo e da Seleção Brasileira. Ex-Rincón? O Flamengo tem Felipe, e o Corinthians tem Rincón. Ambos têm a responsabilidade de comandar suas equipes, equipes de massa, de povo inquieto nos estádios, nas ruas, nos ônibus. Enquanto Felipe comandava o Flamengo no Maracanã, o que se via — ao vivo — no Morumbi é que falta ao Corinthians um grande líder, não só no aspecto moral. Falta ao Corinthians um líder que comande o time tecnicamente, e, infelizmente, parece que o tempo já passou para que esse mestre colombiano tenha pernas e pulmões para ser o homem que a nação rubro-negra clama lá dentro de campo. Presença de Zidane. Lá dentro de campo, o Valência enfrentando o grande Real Madri de igual para igual. Afinal, onde estão os Galáticos? Figo não consegue passar por Carbone, um lateral de 38 anos; o cheiroso Beckham — como dizem — não vai além da intermediária adversária; Roberto Carlos não chega à linha de fundo. E onde está o Fenômeno? Nem parece que está jogando! É preciso ficar cinco, dez minutos diante da TV para vê-lo pegar uma bola, dividida. Não completa a tabela com Raúl. Tudo o que o Real consegue são algumas bolas levantadas na área por Figo, cabeceadas quase sempre por Raúl. E lá vai Ayala, o zagueiro argentino, para a área inimiga. Gol do Valência. A televisão espanhola mostrava um pouco do jogo, outro pouco a cara de Zidane, presente no estádio, mas ausente lá embaixo, onde era indispensável. O Real só empata aos 47, de pênalti, inexistente. Nunca vi um time depender tanto de um jogador como o Real. Ou será que estou enganado?

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Ah!

Pedro Rocha está vivo Da lista dos 125 maiores jogadores do mundo de Edson Arantes do Nascimento todos são obrigados a estarem vivos para serem contemplados. Diz o ditado: “Rei morto, rei posto”. Pois eu gostaria de avisar ao Edson que Pedro Rocha está vivo, vivinho. Eu o vejo caminhando quase todas as manhãs. Logo, deveria estar na lista. Por quê? Ora, foi Pelé, ainda nos seus tempos de jogador, quem o considerou um entre os cinco maiores jogadores que tinha visto na vida. Se a relação é de 125 jogadores, pelo menos 121 não deveriam estar na frente de Rocha. Para quem nunca ouviu falar de Pedro Rocha, El Verdugo, vale apenas lembrar que, aos 17 anos, já era titular do grande time do Peñarol, ao lado de Abadie, Spencer e tantos outros. Jogou quatro Copas do Mundo defendendo a Celeste Olímpica do Uruguai, ganhou três Copas Libertadores da América e dois títulos mundiais interclubes. Rocha nasceu em 3-12-1942. Vivinho da silva, fora da lista do Édson. Mas na lista do Pelé.

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Ah!

Jogo de macho, pero no mucho! Quando eu era pequeno, as meninas brincavam de amarelinha; os meninos jogavam bola de meia na rua. As meninas não tinham as canelas esfoladas, o dedão do pé sem unha. Quer saber a verdade? As meninas nem podiam andar muito de bicicleta, porque ficavam com a batata da perna musculosa. E isso era coisa de macho. Mas o mundo foi rodando, nas patas do meu cavalo... ops, os meninos, como eu ia dizendo, continuaram jogando futebol. As meninas iam assistir ao jogo, no máximo assistir. Lembro que no Pacaembu, quando aparecia uma mulher nas cadeiras numeradas — nas arquibancadas nem pensar —, o estádio inteiro ficava assobiando. Parecia até que os torcedores não gostavam de mulher, ou macho que é macho não expunha a sua mulher, a sua irmã (já pensou a mãe?) num estádio de gente ignorante. Lá pelos idos dos anos 1950, os pais e os filhos gostavam muito de futebol, mas a mulher e as filhas não podiam gostar. Nem de futebol, muito menos de jogador de futebol. Pô, como é possível entender os homens adorarem um jogador de

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futebol, e as moças nem poderem chegar perto deles? É que tinham fama de vagabundos, gente sem ter o que fazer, que não gostava de trabalhar e por isso ia jogar futebol, por dinheiro. Só sei dizer que, depois que o Brasil ganhou a Copa de 1958, a coisa mudou da água para o vinho. Bellini começou a fazer propaganda, vestindo ternos sob medida; Gilmar dos Santos Neves virou retrato de parede nos quartos das moças, e as famílias começaram a achar que futebol não era coisa de vagabundo. Estou falando disso por causa dessa trombada em que Ronaldinho Fenômeno se meteu com os travecos. Muito tempo antes, numa boate no exterior, Dorval — aquele ponta do Santos que tinha o apelido de Macalé — se meteu com uma loira exuberante. Lá pelas tantas, os companheiros resolveram dar um toque nele: — Cara, ela não é ela, é ele. Entende? Dorval respondeu: — Não tem importância, ela (ou ele) também tá pensando que eu sou o Pelé. A namorada de Ronaldinho ficou indignada, fez beicinho, ameaçou aquele... “tudo acabado entre nós”. Como o tempo passa e a bola rola, será que ela não vai rolar para todos daqui um tempinho? Quer dizer, será que não teremos... você sabe o que, né? Afinal de contas, houve um tempo em que um homem (Roberta Close) era considerado uma das mulheres mais bonitas do Brasil. É o futebol, revolucionando os costumes sociais. Haja preconceito!

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Ah!

Fim de carreira O campo de futebol continua com a mesma medida. Geralmente mede cerca de 105 x 68 metros, isto é, 7.140 metros quadrados. Existem campos maiores, beirando os oito mil metros quadrados. A regra diz que pode. Só não pode ter menos dos 105 x 68. Desde esse tempo, lá se vão mais de um século, o jogador não era o atleta de hoje. Quando um jogador estava com a bola, ele podia até caminhar às vezes, os outros ficavam quase parados. A maioria dos jogadores não corriam mais do que três, quatro mil metros num jogo e, até os anos 1960, o recorde de movimentação em campo era de Zito, que todos diziam que tinha um pulmão de aço. Hoje, qualquer jogador corre o dobro, pelo menos dez mil metros durante um jogo. Até o goleiro Rogério Ceni se movimenta mais do que o Zito. Isso significa mais choque, mais contusões, mais vitaminas. Um jogador costuma perder de três a quatro quilos durante um jogo. Sai de campo desidratado, precisando de muita vitamina, muito líquido para se recuperar. E, acima de tudo, muito repouso, porque, dali a três dias, estará novamente em campo. Essa sequência de jogo provoca lesões, dores musculares, estafa. Mas a bola continua rolando e cabe aos médicos fisiologistas os colocarem em campo. - 211 -


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E lá estão eles em campo novamente, à base de sabe Deus como... O doping não pega todo mundo, aliás, não pega quase ninguém. Estou escrevendo sobre isso depois de ver tanta notícia de ex-jogadores morrendo tão cedo, gente que era considerada o símbolo da força e da saúde, como o bicampeão Vavá, também conhecido por Peito de Aço. Quando meu primo Roberto Battaglia, ex-jogador do Corinthians, do Juventus, do Catania e do Atalanta da Itália, ficou doente aos sessenta anos, era muito duro vê-lo num leito de hospital sofrendo fortes dores. Procurei o médico, pedi-lhe que aplicasse algum analgésico. Ele respondeu-me: — Ele tomou tanta porcaria durante a sua carreira de jogador profissional que hoje não responde nem ao Voltaren. Sei da potência que é o Voltaren. É o único medicamento que alivia minhas crises renais, quando alguma pedra vem morro abaixo. Por isso que não sei dizer se o futebol continua sendo um esporte de homens ou de mulheres, mas de seres humanos manipulados, como seriam os gladiadores nos tempos romanos.

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Ah!

Arthur Friedenreich Sei pouco sobre a sua vida pessoal. Quem mais me falou sobre ele foi o italianinho Caetano de Domenico. Por isso, primeiro preciso dizer a vocês quem era Caetano de Domenico. Ele chegou ao Brasil ainda menino. Queria viver grandes aventuras e, por isso, foi trabalhar numa fábrica de chapéus, a convite de seu tio. A fábrica era a Chapéus Prada, que foi uma das mais famosas do Brasil desde os anos 1920 até quando foi moda usar chapéu. E quem não tinha um chapéu? Mas fazer chapéus era apenas uma forma de sobreviver. Trabalhava doze horas por dia, de segunda a sábado, e, quando chegava o domingo, Caetano podia se dedicar inteiramente à sua paixão. E sua paixão era o futebol, o futebol do Corinthians, time de italianos, espanhóis, brasileiros... Caetano teve a honra de carregar o saco de camisas no primeiro jogo do Corinthians. Ele tinha 14 anos. Quando o Palmeiras foi fundado, em 1914, Caetano também mudou de cor, junto com os italianos, e passou a ser palestrino. Foi jogador, um jogador apenas regular, e depois virou técnico. É nessa fase que ele começa a conviver mais de perto com Arthur Friedenreich, o grande craque do seu tempo. — Ele não gostava de jogar de chuteiras — contava. Eram muito pesadas para as suas canelas finas. Comprava sapatos de passeio e mandava o - 213 -


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sapateiro colocar travas. No ano do centenário de nascimento de Friedenreich pedi ao correspondente do jornal Rocha Neto que me escrevesse a história de Arthur, que estava perdida nos cérebros cansados da maioria dos seus companheiros. Rocha Neto, grande historiador, morava em Piracicaba, mas não tinha computador. Ou melhor, Rocha não tinha nem mesmo uma máquina de escrever em 1992. Mesmo assim, ele escreveu uma linda história de Friedenreich, a tinta, tinta de tinteiro com caneta de pena, como eu havia usado nos meus primeiros anos de grupo escolar. E me enviou a reportagem em um envelope, via Expresso Piracicabano. Foi uma experiência tão fantástica que publiquei a reportagem tirando um fac-símile das laudas, escritas a mão, e as publiquei. Era uma prova de que o talento não tinha se rendido ao tempo. O talento de Arthur Friedenreich. E também o de Rocha Neto.

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Ah!

Campo de concentração Uma coisa é ler, estudar, a outra é testemunhar a história. Quando fomos pela primeira vez à Alemanha, em 1968, tive a oportunidade de visitar um campo de concentração, em Dachau, a cerca de Munique. Quando lá estivemos, havia também um grupo de judeus poloneses cujos parentes foram os que mais sofreram as barbáries daquele campo. Na entrada, havia grandes painéis com fotos de militares alemães subjugando os prisioneiros, imagens dolorosas de gente esperando a morte, magros, tristes. Notei que havia um sentimento de revolta muito grande entre os visitantes. Vi nas grandes fotos que os soldados alemães tinham os olhos furados com pontas de canetas. Era uma forma de reagir, de vingar seus parentes que morreram naquele campo. Muitos, jovens e idosos, passavam mal. Sentiam dores de estômago e, confesso, quando também dei meus primeiros passos em direção àqueles fornos, me deu uma sensação de que também estava a caminho da morte. Não sei se você já esteve em algum desses campos. Dizem que o de Treblinka é ainda mais impressionante, com um amontoado de roupas, sapatos de crianças, brinquedos, uma lembrança daqueles que se despiram para a morte, imaginando que iam apenas para um reconfortante banho. Lembro-me que, numa noite, no hotel, alguns jornalistas brasileiros - 215 -


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(entre nós estava João Saldanha) se reuniram com colegas alemães, e um deles, já com seus cinquenta anos, que havia sofrido também com a guerra, fez uma narração emocionante do que os alemães também passaram, não apenas pelo medo de morrer, mas pela necessidade de matar. Matar para sobreviver. Um amigo francês, Jean Pierre, que participou da guerra na Argélia, contou-me, recentemente (em 2008), que, certa vez, estava regressando de Paris (hoje ele reside no Brasil) quando um senhor negro, muito bem vestido, e, como ele, viajando de primeira classe, começou a olhar para seus olhos fixamente. Isso de alguma forma o incomodava. — O senhor me conhece? — Sim, eu o conheço. Você foi o homem que quase me matou. Perdi uma parte de meu pulmão com o tiro que me atingiu. E falou do dia em que havia acontecido o combate, da região, da hora. Tudo, infelizmente, batia com fidelidade. O relato era impressionante. Aquele senhor, hoje um diplomata, disse que fixou para sempre aquele instante, e iria levar para a eternidade. O que era? Os olhos. Os olhos de quem atirou, de quem o estava matando. Seria a sua última imagem em vida.

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Ah!

A família do jornalista Outro dia um jovem jornalista me perguntou quantos países eu tinha conhecido em minha longa carreira, que durou de outubro de 1962 até maio de 2007. Disse-lhe que havia viajado muito, conhecido muitos lugares, quase o Brasil inteiro. Em minha primeira viagem internacional, em 1968, estive na Alemanha, na Polônia, na Checoslováquia, na Iugoslávia, em Portugal, Moçambique, Estados Unidos, México e Peru. Foram mais de quarenta dias de aeroporto para aeroporto, hotéis, estádios... Estive também na Espanha, na Itália, na França, na Inglaterra — países do futebol — e fui conhecer a União Soviética durante a Olimpíada de Moscou. O Japão também conheci, quando o São Paulo ganhou o título mundial do Barcelona. O jovem jornalista tinha um brilho nos olhos. Já se imaginava diante de Notre Dame, do Coliseu, em Oxford Street ou numa de Las Ramblas, em Barcelona... Foi muito bom viajar, conhecer lugares, pessoas, novas línguas, mas eu lhe disse: — Cuidado, não se iluda!

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Digo isso porque a viagem de ida é uma nova abertura profissional, um crescimento, mas a de volta é de reencontro com tudo que você construiu. Quando viajei para a Alemanha, para cobrir a Copa de 1974, já tinha meus dois filhos. O mais velho com pouco mais de dois anos; a menina, com sete meses. Fiquei praticamente desde o mês de abril em viagem e, quando voltei, depois da Copa, estava há quase três meses longe de minha família. Peguei um táxi em Congonhas e só contava os minutos para abraçálos. Naquele tempo, tínhamos pouco contato com nossos familiares, até por telefone. Quando o táxi parou diante de minha casa, meu filho estava brincando com a empregada. Ao me ver descer, em sua direção, saiu correndo para dentro. Ele não havia me reconhecido. Passei quase uma semana o maior tempo que pude a seu lado, tomando banho na banheira juntos para que sua pequena memória pudesse voltar. Em 1980, na festa de cinquenta anos da federação uruguaia, passamos o Ano Novo longe de casa para a cobertura do Mundialito. Estávamos em Montevidéu. Conseguimos falar com nossos familiares graças a Wanderley Nogueira e Fausto Silva, que abriram o canal de áudio que tinham com a sua rádio, a Jovem Pan, e as esposas e filhos dos jornalistas iam até a rádio para podermos conversar. Lógico que o contato era mais do que rápido e público. Todos ouviam tudo que se falava. E não se falava quase nada. Quando voltei para casa, soube que a minha mulher e as crianças tinham sido assaltadas em casa.

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TV Globo Quando Paulo Roberto Falcão assumiu como técnico da Seleção Brasileira, em julho de 1990, sabia que tinha apenas uma obrigação com os veículos de comunicação: dar uma rápida entrevista no intervalo e ao final dos jogos. Afinal, os jogos pertenciam à Rede Globo, eles pagavam e exigiam esse compromisso. Assim sendo, ao me convidar para ser o assessor de imprensa da comissão técnica, explicou que não queria privilegiar ninguém. Todos teriam a informação no mesmo instante. É evidente que isso não agradou. Os jornalistas que faziam cobertura da CBF queriam que Falcão desse as principais informações para eles, no Rio, e não em Porto Alegre ou São Paulo. Mas Falcão não se importava com isso. Falava quando queria, estivesse onde estivesse. E sorria com o nervosismo dos “furados”, daqueles que antes comandavam as informações e selecionavam a forma de divulgá-las. Oldemário Touguinhó, do Jornal do Brasil, que sempre teve todas as informações da Seleção quando Zagallo e Chirol mandavam, percebeu que só havia uma forma de voltar a ser o repórter que dava os furos. Para as coisas voltarem a ser como antes, só com a volta de Zagallo. Mas havia outras pessoas incomodadas. O supervisor Américo Faria sempre reservava o lugar de Falcão, no banco de reservas, e, evidentemente,

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o dele, bem ao lado. Era uma forma de aparecer conversando com o técnico durante o jogo, de mostrar sua pretensa influência nas substituições, na tática. Mas Falcão sempre dava um drible de corpo e ia sentar em outro lugar. Só chamava Américo na hora de dizer quem ia entrar e quem ia sair. E o diretor Jorge Salgado? Salgado, um boa-gente, queria entrar no gramado junto a Falcão, ficar ao seu lado na hora do Hino Nacional, quando muitos microfones — inclusive da Rede Globo — vinham ouvi-lo cantar. Salgado perseguia o técnico, mas ele fingia que iria andar e parava, e vinha para o meu lado, sorrindo, sabendo da sacanagem que estava fazendo. Eu lhe dizia baixinho, entre os dentes: — Sai daqui... quer que eu perca meu emprego? Ele ria. E aparecia sempre rindo na TV Globo. Como até hoje! Eu? Perdi meu emprego.

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Corrida Um dos primeiros jornalistas especializados em automobilismo no jornalismo brasileiro foi Luiz Carlos Secco. Engraçado, o Secco era um exciclista, um dos melhores que o Brasil já teve. O Secco não se preocupava apenas com a Fórmula 1, que engatinhava entre nós com os irmãos Fittipaldi, o Zé Carlos Pace, o Moco, mas com todo tipo de competição automobilística que envolvia desde os veteranos Chico Landi, que começou a história de carros de corrida por aqui, e Catarino Andreatta, e os novatos Bird Clemente, Luizinho Pereira Bueno, TerraSmith, entre outros. Em pouco tempo, onde havia cheiro de gasolina lá estava o jornalista Luiz Carlos Secco, e as reportagens foram pedindo espaço no jornal, cada vez mais, até que ele começou a entrar nas fábricas, nos novos modelos, na descoberta da nova engenharia — antes dos carros chegarem às ruas. E ele se tornou um pesadelo para os fabricantes. Ninguém mais poderia colocar um modelo na rua que lá estava o Secco na captura. E ele pedia ajuda a todo mundo para conseguir fotografar os novos modelos. Lembro-me que, certa vez, ele me procurou. Queria fotos exclusivas dos novos modelos Simca Chambord e o jornal não tinha nenhum carro tão rápido para segui-los.

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Quem tinha? Ele confiava no meu Aero-Willys, modelo 1964, com dois carburadores. — Eles estão fazendo testes na Manoel de Nóbrega (de São Vicente até Monganguá). É a nossa chance, mesmo que só possamos segui-los por algum tempo, alguns quilômetros. Ele me convenceu e, numa manhã de meio de semana, lá estávamos nós: eu, o fotógrafo Iwane Yamasaki no bando de trás, e o Secco de carona. Ficamos trafegando pelo acostamento, bem devagar, durante uns quarenta minutos, até que o Iwane, com sua potente lente fotográfica, conseguiu vislumbrar três Simcas que vinham a toda. Acelerei e comecei a andar o mais rápido que podia, 90, 100, 120 e o ponteiro subindo... O primeiro Simca passou-me e percebeu que estava sendo fotografado. Acelerou mais, acho que estava acima dos 160. O segundo, que ainda não havia percebido nada, aproximou-se rapidamente, e percebeu também que estava sendo fotografado. Começou a fazer gestos com as mãos, estava xingando. Ficamos entre os dois primeiros e um atrás. Eu já estava andando quase na mesma velocidade deles, e conseguimos nos manter assim até Peruíbe. E fotografar tudo. Sabe Deus com que medo. O pessoal da Simca ligou desesperado para o Mino Carta, tentaram impedir que o segredo fosse revelado, mas naquele tempo furo era furo e, no dia seguinte, o jornal saiu desvendando aquele grande segredo. Acho que foi o primeiro da série e, para mim, o último. Para o Secco aquilo foi apenas o começo. Lembro-me quando ele descobriu que um novo carro da Ford estaria logo nas ruas, o Galaxie. Eles tomaram todos os cuidados, mas o Secco conseguiu um helicóptero. E lá estava ele sobrevoando a fábrica, com os fotógrafos Reginaldo Manente e Rolando de Freitas — creio que o Nivaldo Nottoli também já fazia parte dessa equipe de malucos. Os mecânicos da Ford tinham acabado de descobrir o carro, tirando a capa, quando apareceram os paparazzi. Como não dava tempo para cobrir o carro, um dos mecânicos teve a ideia de ficar nu, deitado sobre o capô e mostrando... isso mesmo... para melar as fotografias. Também não adiantou. No dia seguinte lá estava o

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novo modelo nas páginas do jornal, com o mecânico nu (lógico que a arte cobriu o...) e o drama que a equipe tinha passado. Bons tempos. Depois o Secco deixou o jornal e foi contratado para assessor do Miguel Jorge (ex-ministro) na Autolatina. Lá, o pacato Secco continuou fazendo loucuras que havia aprendido no jornalismo. Diziam que ele conseguia os modelos novos que estavam concorrendo com suas marcas, e os estacionava em pontos de grande movimento na cidade, adicionando um pouco de fumaça nos capôs abertos dos adversários. Você dúvida que ele fazia isso? Do Luiz Carlos Secco eu não duvidava de nada. Nem quando ele me dizia, desde 1966, que o Brasil tinha os melhores pilotos do mundo.

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Suor e fumaça Fazia um calor naquela tarde que não dava para aguentar. Tinha marcado uma entrevista com o auditor Osvaldo Campiglia, a quem não conhecia pessoalmente, mas era um trabalho fundamental para complementar a série que o Fernando Portela e eu estávamos coordenando sobre a estatização da economia no Brasil. Eu sempre ia a esses compromissos de paletó e gravata. Era uma forma de não assustar o entrevistado, em especial quando se tratava de alguém que não conhecia, mas naquele início de tarde o calor estava demais. Assim, resolvi deixar o paletó e a gravata na redação e fui apenas com a camisa branca, social, com as mangas dobradas. Anunciei minha chegada à secretária e aguardei alguns minutos para ser recebido. Logo, aquele senhor já de cabelos brancos e um olhar muito simpático me recebeu. Antes de qualquer pergunta, ele fez uma brincadeira: — O homem levou cinco mil anos para aprender a se vestir... Antes que pudesse terminar, respondi: — Se o senhor quiser, eu volto para o jornal para vestir o paletó e a gravata... Ele sorriu. Era apenas uma brincadeira, mas com fundinho de verdade. Afinal, fazia calor, mas ele estava de terno, completo. Deu a entrevista durante umas duas horas. Acho que fumou uns dez

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cigarros. Em determinado momento, percebi que ele havia acendido um cigarro antes mesmo de apagar outro. O escritório estava todo esfumaçado quando terminamos. Agradeci. Antes de virar as costas, brinquei: — Doutor Campiglia, com certeza não faz cinco mil anos que o homem descobriu que o cigarro mata, causa câncer, mas ainda existem pessoas que não aprenderam isso! Estávamos lá pelos anos 1983, 1984, e fazia cerca de dois ou três anos que eu havia parado de fumar, depois de consumir dois maços de cigarros por dia dos 15 até aos 38 anos. Nunca mais fui para uma entrevista sem paletó e gravata. Nunca soube se o doutor Campiglia parou de fumar. Se o doutor Campiglia fosse repórter, nos tempos de Telê Santana, estaria perdido. Telê não suportava o cheiro do cigarro. Na véspera da estreia da Copa de 1986, mais de trinta repórteres se acotovelavam diante do técnico para conhecer o time que iria estrear. Telê já tinha tirado Oscar e Falcão do time titular alguns dias antes, e poderia surpreender novamente. Quando o técnico começou a falar, alguém lá atrás acendeu um cigarro. No mesmo instante Telê virou as costas e foi embora: — Assim não dá! Foi a primeira vez que vi alguém apanhar por ser fumante.

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Lei do Passe Gersio Passadore foi um dos primeiros amigos que fiz no futebol ao iniciar minha carreira de jornalista. Ele foi jogador do São Paulo e do Palmeiras e jamais deixou de estudar. Assim, ao encerrar sua carreira de jogador, já era advogado, um advogado disposto a mudar a realidade de seus ex-companheiros na relação trabalhista com os clubes. Pela sua cultura, e acima de tudo liderança, Gersio foi eleito presidente do Sindicato dos Jogadores de Futebol Profissional de São Paulo e, em 1963, elaborou o primeiro projeto de lei em defesa dos jogadores. Era um projeto simples. Entre outras coisas, protegia o jogador de ter o seu passe vendido para outro clube sem a sua anuência, isto é, sem que estivesse de acordo. Naquele tempo, era muito comum que dirigentes negociassem o passe de determinado jogador, por exemplo, que jogava aqui em São Paulo e no dia seguinte teria de se apresentar a um clube no Ceará ou no Rio Grande do Sul. Ou vice-versa, deixando de lado casa, família, amigos... Outra cláusula impedia que o clube acabasse com a carreira deste ou daquele jogador com um gesto autoritário, como: — Ele nunca mais vai vestir a camisa do Palmeiras! — como o presidente Delfino Facchina tentou fazer com Djalma Dias, o pai de Djalminha, porque ele pediu muito dinheiro para renovar contrato. Gersio queria que se estabelecesse um coeficiente na relação do ganho - 227 -


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do jogador com o valor do passe. Por exemplo: se o jogador ganhasse 10 salários mínimos, só poderia ser vendido no máximo por 100 salários mínimos, e assim por diante, de acordo com a idade do jogador e seu salário. Quanto mais velho o jogador, menor o valor do passe. Isso só não foi adiante porque uma exceção acabou prejudicando a regra: — Quanto vai custar o passe do Pelé? Por essa lei, qualquer clube poderia comprar o passe de Pelé, mesmo que se multiplicasse por mil o seu salário para obter o valor do passe. Então, foi por causa de Pelé que a Lei do Passe não avançou na década de 1960, nem no pouco tempo em que estivemos numa democracia, com Jânio e depois Jango no poder. Foi preciso passar pelos vinte anos de ditadura, termos a democracia de volta para que o ministro Edson Arantes do Nascimento viesse a acabar com a Lei do Passe. Em nome de Pelé. Ironia do destino.

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Segurança máxima Até a Copa de 1966, cobrir Seleção Brasileira não era uma missão das mais difíceis. Havia um relacionamento de respeito entre jogadores e jornalistas, em especial por ser Paulo Machado de Carvalho o chefe, um homem que entendia como funcionava a imprensa. Ele era dono de rádio e televisão. Já na Copa de 1970, tudo começou a ficar mais difícil. A Seleção se isolava em recintos fechados, de difícil acesso, sem meios de comunicação. No Retiro dos Padres, por exemplo, onde a Seleção se concentrou no Rio de Janeiro, havia um telefone que quase nunca funcionava. O que significava desespero mortal aos jornalistas, em especial para aqueles que não eram “chapas-brancas” da CBF. Para obter uma informação era preciso passar horas na frente da concentração, depois dos treinos, como aconteceu quando Tostão passou a ter problemas na vista (por causa de descolamento da retina) e vira e mexe surgiam boatos de que seria cortado. Durante a Copa, já no México, não era diferente. Isso era coisa de homens como Antonio do Passo, chefe da comissão técnica. Ele ficava nervoso com o descaso com que era tratado, raramente era convidado para falar na TV, em alguma rádio ou até em jornais. E, quando recebia críticas por qualquer erro, vingava-se fechando os portões da concentração para a imprensa.

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Os jogadores se divertiam em ver o desespero da gente. Havia, fora dos treinos, apenas uma hora de “janela” para trabalharmos. “Janela” significava entrada livre para a imprensa. Pelé ficava trancado em seu apartamento. Todo mundo aparecia, menos ele. Quando já estava quase na hora do massagista Mário Américo tocar um grande sino para anunciar a nossa “expulsão”, o Rei aparecia. Já viu o tumulto, né? Era fio de microfone para todos os lados. Um dia, o fotógrafo da Manchete, Gervásio Baptista, caiu na piscina das Suítes Caribe, em Guadalajara, no empurra-empurra de fotógrafos pelo melhor ângulo de Pelé tocando violão. A Copa de 1974 na Alemanha foi a pior. Os jornalistas passaram a ser tratados como bandidos pelo mesmo Antonio do Passo, ex-presidente da Federação Carioca de Futebol. A Seleção ficou concentrada na região da Floresta Negra, perto de Feldberg, num morro que tinha um hotel isolado, frequentado apenas por aqueles andarilhos fanáticos. Como se prolongou o inverno, éramos obrigados a esperar do lado de fora para entrar na concentração. Alguns dias chegou a nevar. Nosso companheiro Elói Gertel pegou uma pneumonia e passou boa parte da Copa em tratamento. A concentração era vigiada por policiais alemães e seus cães pastores, capa-preta, supertreinados. Os cachorros fechavam as pesadas cancelas com a boca. Quem ousaria avançar? Em outras concentrações na Alemanha a Seleção Brasileira era fechada por cerca de arame farpado, à semelhança dos campos de concentração. O cartola Antonio do Passo dizia que eram ordens dos próprios alemães e dava como desculpa o que havia ocorrido há dois anos, nas Olimpíadas, quando atletas israelenses foram assassinados por grupos terroristas. Logo percebemos que era uma grande mentira, pois a seleção da Holanda recebia os jornalistas do mundo inteiro em sua concentração e oferecia sucos e salgadinhos para a imprensa. Uma vergonha! Creio que não seria preciso dizer como foi a Copa de 1978. Para nós e para os jornalistas argentinos, em plena ditadura de Rafael Videla. Na Copa de 1982, na Espanha, Antonio do Passo levou um bico nos fundilhos. Foi a Copa mais liberal de todos os tempos para os jornalistas brasileiros. O presidente da CBF era um grande empresário, Giulitte Coutinho, e o tratamento entre a Seleção e a imprensa voltou a ser racional. - 230 -


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O que é bom, dura pouco. No México, em 1986, o presidente da CBF era Octávio Pinto Guimarães, mas quem comandava a Seleção eram dois inaptos, José Maria Marin, ex-governador de São Paulo, e Nabi Abi Chedid, ex-deputado. Ambos estavam no México de olho na política paulista. Chantageavam Antônio Ermírio de Moraes pelo apoio político, e fecharam as portas da Seleção para a imprensa a fim de se tornarem porta-vozes dos acontecimentos. Quer dizer, criavam dificuldades para vender facilidades. Numa das fases de concentração, a Seleção ficou reunida nas dependências da Nestlé, em local que era utilizado para convenções e eventos da empresa. Havia um aparato militar digno de um quartel, com soldados armados com fuzis. Ninguém entrava sem ordem expressa de Marin ou Nabi. Estávamos todos diante da concentração quando chegou um senhor. Perguntou-nos por que estávamos do lado de fora e lhe explicamos a razão. Ele era cônsul do Brasil. Fiquei sabendo pelo seu cartão de visitas. Já que não era possível entrar, ele nem se apresentou aos soldados. Foi embora. Alguns minutos depois, eu e o fotógrafo Domício Pinheiro fomos até os soldados. Apresentei o cartão do diplomata. Eles fizeram continência e abriram o portão para nós. Subimos uma longa rampa até o hall de entrada. O Domício, coitado, sofreu com a sua bronquite asmática. Quando chegamos lá, uma grande surpresa: A TV Globo já trabalhava à vontade, entrevistava Zico. Esse foi o acordo que Marin e Nabi fizeram com a rede de televisão, que também contratou Telê Santana para dar entrevistas exclusivas logo após os jogos, com cachê de cinco mil dólares. A partir daquela Copa virou palhaçada ser jornalista em coberturas de Copa do Mundo. Foi por isso que nenhum jornalista brasileiro soube da convulsão de Ronaldinho Fenômeno na Copa de 1998, na França, nem que ele estava com 98 quilos durante a Copa de 2006. Se não fosse o Ricardo Teixeira acusá-lo pela derrota depois da Copa, nós só teríamos a verdade através da imprensa suíça, que cansou de publicar — com texto e fotos — as baladas dele, do Adriano e do Roberto Carlos antes da Copa da Alemanha.

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Opção Meu pai foi um operário. Dava muito valor ao seu trabalho. Suas mãos pareciam duas ferramentas precisas trabalhando com madeira. Fez todos os móveis de casa, quando resolveu casar-se em 1928. E os móveis estão até hoje espalhados pelas casas dos netos que lutaram para guardar pelo menos alguma coisa de lembrança. Nós começávamos a trabalhar cedo. Os cinco filhos, inclusive minhas três irmãs, com 14 anos já estavam com sua carteira de trabalho assinadas. Comigo não foi diferente, apesar de ser o caçula. Aos 14 anos comecei a trabalhar como office-boy no The First National Bank of Boston. Estudava de noite, fazia o ginásio no Colégio Fernão Dias, em Pinheiros (São Paulo), à noite, e trabalhava das 7 às 13 horas no banco. Aos poucos fui sendo promovido e, aos 19 anos, já era um dos auditores, um cargo importante. Iria fazer a Faculdade de Direito e esta era a minha visão de futuro: ser um bancário para o resto da vida. Até que fui picado por uma mosca tsé-tsé, que me deu uma febre tremenda, a febre de ser jornalista. Fiz um teste na Última Hora por indicação de meu amigo Zicardi Navajas, que jogava nos juvenis do Corinthians, e fui aprovado pelo editor Celso Eduardo Brandão. Dividia minha vida entre o banco e o jornal. Havia terminado o curso

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clássico e estava a fim de dar um tempo nos estudos. Meu pai começou a preocupar-se: — Filho, você acha que tem algum futuro como jornalista? Eu o acalmava. Dizia que era apenas uma experiência, algo passageiro. Mas não era. Em pouco tempo, comecei a ganhar mais no jornal do que no banco. Era convidado para programas na televisão, enfim, comecei a pensar seriamente em dar uma guinada em minha vida. Quando resolvi pedir demissão, meu chefe na auditoria — Paulo Bernardi — não acreditou. E confessou-me: — Já enviei o meu relatório à diretoria. Estou indicando você para ser o procurador mais jovem do banco. Já pensou nisso? Procurador era um cargo bem melhor remunerado, anterior a subgerente. Mas eu já havia pensado. Eu queria ser jornalista. Estava empolgado. E, assim, deixei de ser bancário. Até hoje não sei se fiz a coisa certa. O rapaz que me substituiu no banco teve uma brilhante carreira, construiu sua família, conheceu os Estados Unidos... Não, não era o Henrique Meirelles. Mas, ao contrário do que minha tia pensava, em pouco tempo jornalista deixou de ser profissão de vagabundo. Também consegui formar minha família, meus filhos, tenho meus netos. Lógico que tudo isso graças também à ajuda de minha mulher, que foi professora de várias gerações durante mais de quarenta anos. O mais importante é que, como jornalista, eu fui muito feliz. Foi muito bom enquanto durou. Como bancário, tenho certeza, seria infeliz. Muito infeliz!

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Medos da ditadura Quem não tinha medo? No Jornal da Tarde, de tempos em tempos, iam buscar Marco Antonio Rocha ou Marcos Faerman. Era uma grande correria na redação, dávamos um jeito de escondê-los no prédio ou avisá-los em casa ou em algum local onde estivessem trabalhando. Às vezes não dava. No Congresso dos Estudantes em Ibiúna, aquele célebre Congresso de 1968, onde centenas foram presos e fichados, um dos participantes era o Sérgio Rondino, repórter de política. O Percival de Souza foi para lá fazer a cobertura policial (ou seria política?) e, quando viu o Sérgio na fila, deu-lhe um empurrão: — O que você está fazendo aí? E explicou para um sargento, ou coisa que o valha, que Sérgio era jornalista e também estava lá, infiltrado, fazendo a cobertura. O militar engoliu. Outra vez, numa batida na USP, prenderam vários estudantes. Era uma longa fila e todos estavam sendo fichados. A estudante Rosana, filha do meu primo Walter, foi uma das detidas. Quando entregou sua carteira de identidade, um dos militares observou o sobrenome e perguntou-lhe: — Você é parente do Vital? — Ele é meu primo. E a tirou da fila dos detidos, mandou que fosse embora e criasse juízo. - 235 -


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Essa eu fiquei devendo para o Alemão, o Dulcídio Wanderley Boschilia, árbitro de futebol, militar e meu amigo. Também tomei o maior susto ao chegar em casa num fim de tarde. Havia um caminhão do exército defronte à casa dos meus pais. O coração começou a pular descontrolado. Teriam ido buscar minha irmã, que era professora e grande ativista de esquerda? Será que o caso era comigo, pelas reuniões que frequentava do PSB? Ao me aproximar, notei que um grupo de soldados carregavam tábuas para dentro de casa. A oficina de marcenaria de meu pai ficava nos fundos, num barracão bem amplo. Naquele tempo, minha prima Maria Ely, carioca de mudança para São Paulo, tinha se casado com o Major Bidart e eles pediram para meu pai fazer uns móveis. O caminhão era apenas um meio de transporte. Só não deu tempo mesmo para pedir ajuda ao Major José Bonetti, que trabalhava como supervisor do Palmeiras e fazia parte da OBAN — Operação Bandeirantes —, para salvar o Luís Merlino. Quando ele tentou fazer alguma coisa, já era tarde demais.

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Profecia Pouca gente conheceu Itic. Muita gente conheceu Jean, Jean Mellé. Esse era o seu pseudônimo. Jean Mellé era romeno, um grande jornalista romeno que sobreviveu aos campos de concentração nazistas. E, depois de sofrer os horrores da guerra, veio para São Paulo. Trabalhava na Última Hora quando foi convidado para fundar e dirigir um jornal popular, capaz de fazer concorrência com a Última Hora de Samuel Wainer, seu chefe e amigo. Foi assim que surgiu o Notícias Populares, em outubro de 1963, uma Última Hora de direita. Mellé contratou grandes profissionais. Trouxe Narciso Kalili para redator-chefe, Romão Gomes Portão para chefiar a editoria de polícia, que por sua vez contratou Percival de Souza, e — por indicação de Álvaro Paes Leme — fui contratado para a editoria de esportes, primeiro como subeditor e depois como editor. Jean Mellé brigava quase todas as noites com Narciso, na hora do fechamento do jornal. Narciso não concordava em publicar fotos de crimes bárbaros, com as vítimas expostas, mas Mellé queria ver sangue, queria fazer o concorrente balançar ao ser comparado nas bancas. Quem sempre apartava as brigas entre eles era o Romão, o gordo Romão, com sua enorme barriga entre as partes. - 237 -


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Notícias Populares também exibia uma grande mulher em sua capa, todos os dias. As preferidas do nosso diretor eram as meninas que trabalhavam no Teatro Natal, salas azul e vermelha. Era uma forma de enfrentar as garotas de Sérgio Porto, o Lalau, o famoso jornalista carioca da UH. Quanto a mim, que era apenas um “foca”, Mellé costumava dar longas aulas, quase sempre na hora de seu almoço. Almoço? Não, entre meio-dia e uma hora, Mellé costumava tomar uma caneca de café com leite. Molhava o pão porque não conseguia mastigar direito. Efeito de seus dentes retorcidos pelo frio que sofreu no campo de concentração. Em uma dessas vezes, me chamou para falar sobre uma longa reportagem do Corinthians, em que vários jogadores estavam sendo despedidos, inclusive o goleiro Heitor, que era o meu informante. Pediu-me para ler a matéria. Comecei a ler, ele interrompeu. — Agora tire os óculos e continue. Eu não conseguia enxergar. A matéria estava em corpo 8. — Está vendo? Sem óculos você não consegue ler. Você precisa saber que o leitor do nosso jornal é pobre, ele compra o jornal com dificuldades, às vezes uma ou duas vezes por semana. Ele não enxerga e não tem dinheiro para comprar óculos. Escreva menos, com letras maiores, fica mais fácil para entender. Jean Mellé nos ensinou muita coisa sobre o povo, que só pode ser aprendida por quem sofreu como ele. Preferia fazer um jornal com menor número de páginas, mas com menor preço. Há 45 anos ele profetizava: — Um dia os jornais serão distribuídos gratuitamente, não viverão mais da venda avulsa, mas de publicidade. Pena que ele não viveu para ver!

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Rebú Eu nunca tinha ouvido falar dele. Só sei que ele entrou naquela manhã pela redação, parou diante da mesa do colunista Telmo Martino e passou a desacatá-lo. O Telmo era um sujeito de boa paz. Tinha um texto brilhante e uma ironia capaz de tirar do sério qualquer um. Gostava de espetar determinadas atrizes, entre elas Irene Ravache, casada com o editor de variedades do Jornal, Edson Paes. Edson, apesar de ser indiretamente chefe de Telmo, jamais fez qualquer comentário a respeito das ironias, pelo menos que eu saiba. Mas Irene morria a cada sarcasmo do autor. Ele era diferente quando gostava de alguém. Por exemplo, foi o primeiro grande colunista a dedicar grandes espaços a Fausto Silva. O Faustão, que trabalhava na redação do Estadão, vivia sempre por perto da mesa do Telmo, contando histórias engraçadas, e ele as reproduzia com maestria. Mário Chamie foi outra vítima da crueldade dos textos de Telmo, e o caso mais grave aconteceu quando ele fez uma tremenda gozação à exposição de seu colega de editoria, o Olney Cruse, que além de jornalista se considerava um artista. Pois o Olney ficou tão nervoso naquele dia que foi até a mesa do companheiro, e estava com tanta raiva que não se conteve. Mas, ao invés

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de agredi-lo fisicamente, pegou os óculos de seu algoz, que estavam sobre a escrivaninha, e os esmigalhou com as próprias mãos. Que revolta! Teve também o caso do Jards Macalé, que achei bem estranho. Estava trabalhando na escrivaninha bem diante de Telmo. A princípio pensei que se tratasse de alguma brincadeira, mas vi que a situação estava chegando a um ponto incontrolável. O Telmo não reagia. Eu me levantei, tirei os óculos e o relógio, peguei a pesada máquina de escrever Olivetti e fui para cima do Jards, sem saber quem ele era. Quando ele percebeu minha aproximação saiu correndo pela redação, àquela hora ainda meio vazia. E eu correndo atrás dele. Quem estava na redação não fez nada para defender o Telmo. Pelo contrário, achavam até que ele merecia levar uns tapas. Mas eu não fiz isso por ele. Fiz para defender o nosso local de trabalho. A redação é um local sagrado, nenhum jornalista merece ouvir tantas ofensas dentro de sua segunda casa. Talvez nem o Telmo nem outros colegas tenham percebido isso. Eu não defendi um companheiro de trabalho, defendi apenas o direito dele, e de qualquer outro jornalista, de escrever o que bem entendesse. Se bem que naquele tempo não estivéssemos vivendo uma democracia.

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Senna, assassinado! Finalmente teria um fim de semana de folga. Estava muito cansado. A vida de diretor de redação de A Gazeta Esportiva estava me obrigando a trabalhar pelo menos doze horas por dia. Era o primeiro a chegar, por volta das 8 horas, para fazer a pauta, conversar com os repórteres, com os editores, escrever o editorial e, de quebra, bolar uma manchete que raramente vinha das ruas. Aquela equipe tinha bons jornalistas, mas faltava autoestima, garra, vontade de vencer. Sabiam que, trabalhando ou não, ganhavam a mesma coisa, e a grande maioria dos contratados era de gente que não trabalhava, nem se dava ao luxo de aparecer na redação. Era difícil. Com o tempo, pude começar a mostrar a diferença entre os que faziam o jornal e aqueles que viviam do trabalho de quem fazia o jornal. Naquele fim de semana, embora tivéssemos corrida de Fórmula 1, com Ayrton Senna na pista, resolvi ir passar o fim de semana na praia, no litoral norte. Mas não consegui dormir de sábado para domingo. De olho em Monza, vi que a bruxa estava à solta, com acidentes que antecederam a prova. Acordei no domingo pela manhã, fui tomar café e fiquei prestando atenção na corrida que já havia se iniciado. Vi quando Senna bateu. - 241 -


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Vi quando ele abaixou a cabeça. Senti que o pior tinha acontecido. Voltei para o meu apartamento no hotel, arrumei minha mala e entrei na estrada ouvindo rádio. Meu amigo de infância, Celso Itiberê, estava lá. Dei graças a Deus. Sabia que tinha alguém para confiar, já que o jornal não havia mandado alguém para cobrir aquela prova. O Celso Itiberê era brilhante. Desde criança se preocupava com os estudos, formou-se em direito, tornou-se um grande jornalista e fluente em alguns idiomas. Já estava quase chegando à redação, na Barão de Limeira, quando o Celso falou na rádio que Ayrton estava morto. Morto por culpa da barra de direção que havia quebrado, pela ganância dos donos das equipes, pela necessidade que ele tinha de vencer aquela prova para mostrar que estava acima de tudo, inclusive da engenharia. Mas o homem que havia fabricado aquela máquina não era tão perfeito quanto Ayrton e o matou. Comecei a ver as fotos que chegavam das agências internacionais e escrevi a manchete do jornal, sob olhares assustados de alguns companheiros: — Senna assassinado! Eu sabia que podia confiar em Celso Itiberê. E não me arrependi. O tempo se encarregou de mostrar.

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Um craque ou um produto de marketing? O Milan pagou oito milhões de dólares ao São Paulo pelos seus direitos federativos. Há pouco tempo, o Roma havia pago nove milhões de dólares por Fábio Júnior. A maioria dos profissionais do futebol com os quais converso acreditam que o São Paulo fez um negócio da China ao negociar seus direitos federativos para o Milan por oito milhões de dólares. A opinião — quase unânime — é que ele não terá um futuro promissor e em breve estará de volta, como aconteceu com Caio, outro menino que se iniciou no futebol jogando nos times dos filhos dos associados. Dizem que o São Paulo fabrica jogadores de classe média alta, meninos com boa formação educacional, bem nutridos e que sabem se vestir. Mas são poucos os profissionais — entre eles jornalistas — que têm coragem de externar sua opinião diante dos microfones, das câmeras e das páginas esportivas. Até agora, que eu me lembre, o único que se manifestou a respeito foi o vice-presidente do Corinthians — Roque Citadini — ao declarar que o São Paulo produzia jogadores bonitos, mas que não eram melhores do que os do Corinthians. Na sua opinião, Gil é melhor do que Kaká. - 243 -


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Eu mesmo tenho muitas dúvidas em relação ao futuro de Kaká. Mas ele completou 21 anos outro dia — 22 de abril — e as estatísticas mostram que os jogadores de futebol evoluem técnica e taticamente até os 26 anos, estabilizam entre os 28 ou 29 e daí por diante iniciam uma queda de rendimento. Temos muitos exemplos que podem reforçar — ou contrariar — a opinião daqueles que não acreditam em Kaká. Entre 1959 e 1960, o Real Madri assediou o Santos para adquirir o passe de Pelé. Chegaram com a oferta de um milhão de dólares; na época, uma fortuna. Pelé ainda não tinha 20 anos, e o seu presidente — Athiê Jorge Cury — deixou claro que negociaria qualquer jogador, menos ele. Pouco antes da Copa de 1958, o Milan acenou com uma fortuna para o Palmeiras ceder o passe de José Altafini, seu centroavante, que já tinha o apelido de Mazzola. Ele tinha apenas 19 anos. Diziam que ele não aguentaria enfrentar os pesados líberos italianos. Mazzola provou o contrário, brilhou por vinte anos nos grandes times da Itália, incluindo o Juventus, e chegou até a jogar na Azurra. O Cruzeiro também não cometeu um equívoco ao negociar precocemente o passe de Ronaldinho para o PSV? E o Ronaldinho Gaúcho? Quantos apostavam em seu fracasso no futebol francês? Kaká, até pouco tempo, era um jogador frágil. Com 1,83m de altura, chegou a jogar com menos de setenta quilos, mas, depois do trabalho realizado pelo fisiologista Turíbio Leite de Barros, ganhou pelo menos oito quilos de massa muscular. Foi o suficiente para que nova onde surgisse. Muitos torcedores do tricolor diziam que ele havia perdido a velocidade, o rush, e nunca mais seria o mesmo. Nos últimos jogos que realizou dentro do Morumbi ele foi hostilizado pela sua própria torcida. E até para os dirigentes do clube, negociar os direitos sobre Kaká seria uma forma de fazer caixa para pagar pela permanência de Luís Fabiano, considerado um jogador mais decisivo. Para um jogador com pouco mais de dois anos como profissional, embora com o título de pentacampeão mundial, é muito pouco para uma análise mais séria. A verdade é que a Adidas não escolheria um jogador em que não acreditasse para fazer sua propaganda mundial, e nem a Traffic investiria - 244 -


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em seu futuro. Qual imagem prevalecerá: aquela de Kaká chorando, no chão, depois de atingido pelo volante Cocito, em partida na qual o São Paulo foi eliminado pelo Atlético Paranaense no Brasileiro de 2001; ou o lance magistral do gol contra o Juventus, quando levou a bola desde o seu campo até o fundo das redes, em 29 de janeiro de 2003?

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Eu bebo sim Você deve estar lembrado. Alguns dias antes da Copa, o presidente Lula falou com Parreira através de uma videoconferência. Além do técnico, estavam presentes outros jogadores e membros da comissão técnica. Lula queria saber se Ronaldinho Fenômeno estava mesmo gordo, de acordo com as notícias que estava recebendo. Ronaldinho Fenômeno não estava lá na hora da entrevista. Mas não gostou. No dia seguinte, Ronaldinho respondeu ao presidente-torcedor. Disse que não estava lá porque ficou em seu quarto, se recuperando de febre, mas que também gostaria de fazer uma pergunta ao presidente. E pegou pesado: — Também dizem que ele bebe pra caramba. Enfim, era uma forma de dizer que, assim como era boato que estava gordo, também era boato que Lula enchia a cara. O tempo veio a mostrar que Ronaldinho Fenômeno estava mesmo muito gordo durante a Copa, algo que ele mesmo admitiu após a competição. Mas Lula nunca confirmou o outro boato. O jogador de futebol tem que tomar consciência de que sua carreira passa muito rápido, e de que mais difícil do que chegar a ser o melhor jogador do mundo é manter-se lá. O tempo passou para Ronaldinho, vieram novamente as contusões, mas

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Lula continuou presidente. E, para agradar ao presidente Lula, como lhe é característico, Ricardo Teixeira veio a público um ano depois da derrota para a França na Copa de 2006 para dizer que Ronaldinho Fenômeno foi o culpado da derrota. Não levou a competição a sério. Ora, por que Parreira, o médico Runco ou o preparador físico Moraci Sant’anna não disseram que ele estava fora de condições de jogo? Por que Parreira o escalou? Lembra-se que o próprio técnico chegou a ironizar — para não repetir o palavrão que ele disse — quando Ronaldinho fez gol contra o Japão? Melhor fez Dunga, que esperou levantar a Taça nos Estados Unidos para mandar a imprensa para a PQP. Ronaldinho Fenômeno não voltou mais à Seleção depois da Copa de 2006. Certo que não fez por merecer, mas mesmo que consiga se recuperar totalmente, só voltará a vestir a camisa da Seleção na Copa de 2010 se Lula — ou algum amigo seu — já não estiver ocupando a presidência. Se tem coisa que Ricardo herdou de João Havelange é nunca estar contra o Poder, seja quem estiver no poder. Engraçado que Havelange fez a mesma coisa com Pelé, não o convidando para participar dos sorteios da Copa. E Pelé só voltou a ser persona grata na CBF depois que ficou de joelhos diante de Teixeira, para ganhar 350 mil reais por mês para ser o garoto propaganda da Copa de 2010. Romário foi outro que trocou umas moedas para voltar a ser ídolo, depois da Copa de 1990. Quando será que Ronaldinho Fenômeno também pedirá perdão? E Ronaldinho Gaúcho? E... Afinal, quem foi que disse que o craque é mais importante do que o cartola?

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Ah!

Romeu O caipira Romeu Ítalo Rípoli não tinha nada de caipira. Era engenheiro agrônomo e se fazia passar por caipira para levar vantagem. Ele foi presidente do XV de Novembro, de Piracicaba, e logo descobriu duas coisas: para se manter em evidência, precisava “comprar árbitros” e fazer amizade com a imprensa. Usava uma peruca de cabelos negros, que demarcava exatamente onde começavam os cabelos postiços e os verdadeiros. Vivia com o cigarro de palha no canto da boca. Sempre que algum time grande da capital ia jogar em Piracicaba, Rípoli já sabia que teria um fim de semana agitado. Convidava os árbitros para irem na véspera — lógico, só os que aceitavam (e eram muitos) — e os chamava em sua bela casa. Levava-os para o seu escritório e discutia preços. O preço da vitória. O XV raramente perdia em seu território. Se duvidar, pesquise entre os anos que esteve na presidência, até 1976, quando foi vice-campeão paulista. Perdeu na final para o Palmeiras. Às vezes, não dava para acertar com o árbitro porque este já vinha comprometido com outro resultado, resultado ruim para o XV. Com a imprensa ele era todo gentil, em especial com o pessoal da televisão, quando esta transmitia jogos diretos. Uma chance única dele

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Vital Battaglia

aparecer, com suas propriedades, sua capacidade de anfitrião. Gostava de explicar o nome indígena de Piracicaba, “lugar onde o peixe para”, porque os peixes não conseguiam vencer os saltos do rio para fazer a piracema. E a cidade tinha o nome do rio. Sabia de cor e salteado o nome de todos os jornalistas que chegariam à cidade para o grande jogo. Procurava-os pelos hotéis, pedia ajuda aos amigos, donos de restaurantes: — Se aparecer algum jornalista e fotógrafo, o almoço é lá em casa. Assim sendo, antes de cada jogo do XV, a mansão — sua casa era uma mansão — reunia os grandes e pequenos nomes da crônica esportiva, de grandes e pequenos veículos de comunicação. Lembro-me de um jogo que fui cobrir, ainda pela Última Hora, em 1963. Era um jogo contra o grande Santos de Pelé. Fui parar em sua casa, não me perguntem como. Quando lá cheguei, estavam todos os cobras do jornalismo, inclusive Raul Tabajara, Paulo Planet Buarque e Flávio Iazetti, que na época tinham tanto ou mais prestígio que a equipe da Globo nos dias de hoje. Antes do almoço ser servido, Rípoli anunciou uma apresentação ao piano de sua filha. Se não me falha a memória seu nome era Elizabeth. Veio a se tornar uma grande pianista. A esposa e a filha desceram as escadas da mansão, flutuando numa passarela de tapete vermelho. Os fotógrafos procuravam ângulos privilegiados do presidente, de modo a não destacar a peruca, de sua elegante esposa e, lógico, da concertista. Foi servido um almoço de reis, após um aperitivo único, uma cachaça de trinta anos, que ele garantia ser de sua produção. Devia ser. Sei que só conseguimos sair de sua casa a tempo de chegar ao estádio. Quando passava pela cabine da TV Record percebi que o mestre Raul Tabajara já estava entrando no ar, ao vivo, e pagando com juros e correção monetária aquele almoço: — Vejam telespectadores — com aquela voz macia —, esta é a bela Piracicaba, atravessada pelo seu belo rio. E as câmeras mostravam as mais belas imagens da cidade. Tabajara continuava: — Olha que imagem! Era uma espécie de vila, que Tabajara, não sabendo identificar, pediu ajuda ao companheiro Flávio Iazetti, que dormitava, recuperando-se do almoço: - 250 -


Ah!

— E lá, o que seriam aquelas belas casinhas, meu caro Flávio? Este respondeu: — Lá é a Ripolândia. Em poucos minutos, Rípoli estava na cabine, quase derrubando a porta aos socos e pontapés. E ofendendo toda a equipe. É que Ripolândia era a zona de baixo meretrício explorada por Rípoli. Apenas um de seus muitos negócios. Foi um grande lapso, difícil de consertar. Até o XV cair para a segunda divisão.

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Ah!

Nossa Senhora! Você já entrou em vestiário de time de futebol, grande ou pequeno, aqui no Brasil? Se já entrou, não vou contar nenhuma novidade. Jogando em casa, ou fora de casa, tem alguém encarregado de levar o(a) santo(a) com todo o cuidado. E, antes de mais nada, montar o altar. Sem isso, não tem jogo. A maioria dos jogadores pedem de tudo, só não vale pedir pela vitória. Pedem para não se machucar, pedem para não levar cartão, pedem para não machucarem adversários, etc. A vitória é outra coisa. De uns tempos para cá, a religião passou a ser um caso mais sério, e se pronunciou durante a Copa de 1994. Surgiram os Atletas de Cristo, e Jorginho, o lateral-direito, era o líder religioso. Um conseguiu formar um grupo dentro da Seleção, incluindo o goleiro Taffarel, e eram apoiados por Alex Dias Ribeiro, ex-corredor de F1 e um dos maiores embaixadores do grupo. Müller acabou se transformando, por um bom tempo, em pastor evangélico. Chegou a separar-se de sua mulher para casar-se com uma moça de sua igreja, mas depois voltou atrás. Tem aqueles jogadores que acendem velas para Santa Bárbara, para Oxum, São Jorge, e pedem a benção para todos os santos. Até os que não

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acreditam respeitam e também rezam com os companheiros. Antes de entrarem em campo, na boca do vestiário, todos — titulares e reservas — rezam o Pai Nosso, abraçados. Vejam o caso de Kaká com a Igreja Renascer em Cristo. Ele entregou o seu troféu de melhor jogador do mundo, em 2007, para o casal Hernandes, mesmo tendo eles prisão decretada nos Estados Unidos. Ai daquele que zombar da fé que move a bola e remove montanhas. Lembro-me da vez em que o Corinthians foi fazer promessa em Aparecida. Não sei se era para pedir que acabasse com o tabu contra o Santos, mas, na hora do fechamento da página de esportes, o chargista Otávio apareceu na mesa do editor — Celso Eduardo Brandão — com uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, com a feição de Pelé, um Pelé sorridente. Pouco depois do jornal chegar às bancas, a redação da Última Hora, na Avenida Prestes Maia, foi apedrejada. A ira popular só amainou quando Otávio foi pedir perdão ao Cardeal, ajoelhou-se e beijou o seu anel. E o Santos continuou vencendo o Corinthians por mais uns cinco anos. Quer dizer, nem a Nossa Senhora Aparecida conseguiu anular Pelé.

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Ah!

Tricolor de coração Nasci em berço corintiano. A família inteira era de corintianos. Meu tio Luiz mandou pintar um distintivo do Timão na parede de frente de sua casa no Jardim Bonfiglioli; meus primos, ainda pequenos, já sabiam a escalação do time, de um a onze, mais os reservas. Eu ia sempre ao estádio com meu pai, meu irmão, tios e primos. Todo mundo se encontrava no ponto de ônibus número 61, que saía de perto do Jockey, pegava a Eusébio Matoso, a Rebouças, Avenida Paulista, descia a Augusta e ia até o Anhangabaú. Do ponto final, todo mundo ia andando até a Praça João Mendes, carregando uma cesta de sanduíches e um garrafão de água com groselha. Pegávamos o bonde e só íamos descer na Rua São Jorge, fim dos trilhos, início do Estádio Alfredo Schürig, a Fazendinha. Todo mundo via o jogo sentado atrás do gol dos fundos, o local mais barato, pequenos degraus que só acomodavam bem as crianças. Via Gilmar fazer grandes defesas vestindo a sua camisa cinza e calção preto, e Baltazar marcar gols de cabeça empurrando os beques, nos cruzamentos de Cláudio. Via Carbone jogar areia nos olhos do goleiro adversário. O juiz deixava passar tudo, a torcida — assim como o juiz —

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não via nada. Só a bola na rede. Mas o grande momento de minha vida acontecia quando jogavam Corinthians e São Paulo. Era aí que meu coração pulava junto com a torcida uniformizada de Porfírio da Paz. Era nos lançamentos de Zizinho, nos dribles mágicos de Canhoteiro e na elegância de Mauro Ramos de Oliveira que eu vivia o grande momento do futebol. E foi na decisão pelo título paulista de 1957 que meu coração me traiu. São Paulo fez 2 a 0 e eu nem pude dar um suspiro de gol, diante daquela legião dos Battaglia corintianos. Daí eles, digo o Corinthians, diminuíram o placar, e foi então que um dos meus primos notou que eu não estava pulando, não estava festejando, não estava feliz! Fui obrigado a descer das gerais e assistir o resto do jogo lá embaixo, de cara colada ao alambrado, quando vi Maurinho, ali pertinho, fugir pela direita num passe brilhante de Sarará, e tocar rasteirinho na saída do grande Gilmar: 3 a 1. A vitória era nossa, a derrota era minha. Fui obrigado a voltar a pé para casa, sem dinheiro para a condução. Do Pacaembu até em casa deu umas duas horas de caminhada. Quando cheguei, me tranquei no banheiro. Só ouvi o barulho da porta se abrindo. Havia outra chave. Levei uns cascudos: — Onde você se meteu? Mas, pelo menos a partir daquele dia, todos souberam que havia um Battaglia são-paulino na família. Os outros continuam corintianos. Meu filho, meus netos...

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Ah!

“71” “71” era o apelido de João Avelino, o compadre João. Era o seu número no exército. Compadre João não tinha mais do que metro e sessenta de altura. Era mineiro, mas andava pelo Brasil inteiro, e se notabilizou no futebol pelo interior de São Paulo. Antes de ser treinador de futebol, era um apaixonado pelo esporte. Mulato, só era contratado quando algum time estava ameaçado de cair de divisão, quando ninguém mais acreditava em nada. A mesma coisa com jogadores que eram considerados acabados para o futebol. Lembro-me quando foi dirigir o Bragantino. Numa tarde, com o time da família Abi Chedid quase falido, lá estava ele no meio de campo, sob um sol daqueles, treinando um goleiro gordo, enrolado em sacos de cal, amarrados com barbante, para emagrecer. Não tinha agasalho de nylon, esse era o remédio. E João conseguiu fazer aquele goleiro, chamado Picasso, chegar até a Seleção Brasileira, depois de ter abandonado o futebol. Compadre João só tinha amigos no futebol; inimigos, só durante os 90 minutos de jogo. Teve a oportunidade de trabalhar como auxiliar de Osvaldo Brandão na conquista do título de 1977. A dupla tinha um apelido, “Corda e Caçamba” (onde estava um, podia se encontrar o outro). Brandão

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era a Caçamba. Criava metáforas maravilhosas para explicar sua tática. — Médio volante tem que funcionar como limpador de para-brisas de carros, de um lado para o outro, cobrindo os laterais, os zagueiros, como se fosse o rabo de uma vaca, balançando para cá e para lá. Certa vez, João foi contratado para tirar um time do Nordeste do sufoco, que no domingo ia enfrentar o Flamengo de Zico. Se não me engano era o Remo. Chegou em Belém logo no começo da semana e os dirigentes foram lhe mostrar o campo, orgulhosos da perfeição do gramado. Para surpresa geral, João lhes perguntou se tinham um enxadão. E foram buscar a ferramenta. Em poucos minutos, abismados, viam João cavar enormes buracos diante da grande área. — Por quê? — Vocês estão loucos de oferecer um gramado desses para o Zico. Desse jeito vamos perder de goleada. Para nós, quanto pior estiver o campo, melhor. E até os dirigentes passaram a cavar. Da outra vez, como técnico do Fortaleza, mandou diminuir a altura do gol para enfrentar os grandes clubes no campeonato brasileiro. João morreu esquecido e doente aos 76 anos, foi enterrado diante de poucos amigos. Dava apenas para ver que ainda calçava os mocassins brancos.

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Ah!

É isso aí, bicho! Lá por volta de 1983, 1984, eu estava fazendo uma série de reportagens sobre a economia informal no Brasil, mostrando como o dinheiro corria por aqui fora das estatísticas oficiais do governo. Quer dizer, estava interessado em saber como pessoas que nem declaravam Imposto de Renda conseguiam morar em bons apartamentos, ter carro do ano e passar férias na Europa. Havia um grande preconceito contra todas essas pessoas, afinal de contas eram empresários que não emitiam nota fiscal. Compravam matéria prima e vendiam produtos por baixo do pano. Outros não compravam e nem vendiam nada e ganhavam verdadeiras fortunas. Os primeiros empresários eram problema do fisco, os segundos, problema de polícia. Estou me referindo ao jogo do bicho. E fui procurar o rei do bicho aqui em São Paulo. Seu escritório era na Avenida Angélica, no 17º andar de um edifício comercial. Eu já o conhecia há tempos, de uma reportagem que havia feito na Casa de Detenção. Fui lá para entrevistar esportistas que estavam presos, a maioria pugilistas, e vi que ele era o promotor e juiz das lutas. Era ele quem fazia o programa e premiava os vencedores. E, lógico, controlava as apostas. Cheguei ao seu escritório depois de quase uma semana de tratativas, explicando tim-tim por tim-tim o que pretendia. Era cerca de duas da tarde quando ele me recebeu. Estava almoçando, - 259 -


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uma quentinha de frango frito, do vizinho do outro lado da rua. Ele autorizou seu advogado a me fornecer alguns números do jogo no Brasil. Tinham cadastrado quatro milhões de empregados informais, gente que vivia recolhendo jogo, contando dinheiro, fazendo parte da máquina de Pernambuco, atravessando a Bahia, Rio, até chegar a São Paulo. Era o Castor de Andrade no Rio e ele em São Paulo. Como a polícia poderia tirar quatro milhões do mercado de trabalho, mesmo sendo um negócio ilegal? Pelos dados da contabilidade nacional, estava registrado também que o grande lucro não vinha das apostas em si. Garantiam que devolviam 94% do dinheiro recolhido no pagamento de prêmios. Ficavam com 6% do volume bruto para manter a administração do negócio e o lucro vinha da inflação, pois, num país onde a desvalorização do dinheiro chegava a 30% ao mês, ou mais, quem tinha volume de dinheiro em caixa (entre recolher as apostas e pagar os prêmios) empregado no overnight não precisava se preocupar se muita gente estava apostando na borboleta ou no jacaré. Enfim, os negócios — segundo ele — estavam apenas razoáveis. Os gastos eram muitos. Estávamos nessa conversa quando chegou ao seu escritório um homem esguio, com terno marrom sob medida, cabelos grisalhos. Ele chamou o advogado que me atendia e mandou ele buscar um milhão de dólares (eu disse um milhão de dólares) no cofre. O advogado voltou com uma mala de viagem relativamente grande. Entregou a mala para aquele senhor e este apenas a abriu, mas não chegou a conferir. Foi nesse dia que Ivo Noal comprou a casa na Ilha Bela do empresário Gabriel Gonçalves. Esse negócio serviu apenas para ilustrar o volume de dinheiro que o jogo do bicho fazia circular no País. Ivo jamais admitiu, nessa reportagem, explorar o jogo do bicho. Isso para ele era coisa do passado. Lógico, ele não queria fazer uma declaração que o levaria de volta à prisão. Antes que eu fosse embora, um de seus auxiliares disse-me sorrindo: — Ele tem mais empregado que os Ermírio de Moraes!

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Ah!

Time do povo Viajei para o México para cobrir a Copa de 1970 antes da Seleção e só fiquei sabendo que, na despedida do Maracanã, a Seleção havia jogado muito bem e batido a Áustria por 1 a 0. Os jornais brasileiros e estrangeiros praticamente deram a mesma manchete, de que o Brasil havia encontrado o seu melhor time, o time da Copa, o time que o povo havia escalado com Tostão ao lado de Pelé. A discussão sobre o ataque persistia desde que João Saldanha havia sido demitido. Com ele de técnico, Tostão foi titular nas eliminatórias, e também Edu era o seu preferido na ponta esquerda. Quando ele saiu, de cara todos podiam saber que o Brasil não iria atacar com Jairzinho, Tostão, Pelé e Edu, isto é, um time ousado, no 4-2-4. Era óbvio que na ponta esquerda entraria alguém que jogasse à semelhança do próprio Zagallo e o preferido dele era Paulo Cézar Caju. Até aí, nada demais. Depois do jogo contra a Áustria a Seleção viajou para o México e fui esperá-los no aeroporto; queria entrevistar Zagallo apenas para confirmar a manchete dos jornais: o Brasil escala o time do povo. Para minha surpresa — e também do colega da Folha, o editor Aroldo Chiorino —, Zagallo disse: — O time que derrotou a Áustria é o time do povo. Aqui vai jogar o meu time. - 261 -


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— E qual é o seu time? — O meu time tem Rogério na ponta direita, e Jairzinho de centroavante. — E o Pelé? — Ele vai disputar posição. Na verdade, Zagallo queria escalar o ataque inteiro do Botafogo, time que ele dirigia na época: Rogério, Jairzinho, Roberto e Paulo Cézar, com Gérson no meio de campo. Passei a informação para o jornal. No dia seguinte, perguntei ao Aroldo Chiorino se a Folha tinha dado a mesma manchete, isto é, que o time do povo não era o time de Zagallo. Ele me respondeu: — Era muito tarde, o jornal já tinha rodado. Para o meu azar, eu tinha dado um grande “furo”. Só o Jornal da Tarde havia publicado essa matéria. E eu tinha certeza, Zagallo iria voltar atrás. Mas, para minha surpresa, ele sustentou o que disse até o fim, quando o ponta-direita Rogério — treinando como titular — teve uma distensão muscular e foi cortado. Só assim Jairzinho foi deslocado para a ponta, e sobrou a vaga para Tostão. Pelo jeito, Pelé também ganhou a disputa pela camisa 10. O importante é, que no fim das contas, o Brasil foi tricampeão. E com o Time do Povo.

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Ah!

O amor, ah!, o amor... Naqueles primeiros anos de jornalismo, nos anos 1960, os rapazes que fundaram o Jornal da Tarde descobriram a Boca do Lixo, as boates que ficavam próximas à sede do jornal na Major Quedinho. E logo conquistaram amantes fiéis da noite, no La Licorne, no Charmant ou no inesquecível Sirocco, da Branca. Viver a noite era a forma de diminuir as tensões de reportagens difíceis, atender ao nível de exigência de Mino Carta, o chefão, e ter uma boa noite de sono. Os rapazes que chegaram de Minas, do Rio ou do interior de São Paulo, quase todos solteiros, moravam sozinhos. Era uma forma de dar guarida a meninas da noite que trabalhavam duro até a madrugada, e, enfim, encontravam um lugar para dormir e... amar. Muitos tiveram casos incríveis com essas meninas. Você já percebeu que não posso dar nomes, mas um de nossos companheiros tinha uma amante tão ciumenta que, ela sim podia dormir com outros homens, afinal, ela era uma profissional e fazia parte do seu trabalho, mas ele, jornalista, tinha que ter fidelidade absoluta. Lembro do dia em que ela, cansada de guerra no fim da madrugada, chegou no apartamento dele no Copan e o encontrou com outra. O

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bombeiro foi acionado para apagar o fogo no colchão. Os rapazes do esporte tinham outra diversão quando viajavam pelo interior para cobrir jogos. Em quase todas as cidades funcionava naquele tempo o que se chamava “zona”, zona e ponto, onde ficavam as meninas à espera dos clientes. A mais famosa, no interior de São Paulo, era a casa da Eni, em Bauru. Repórter e fotógrafo quando chegavam na cidade nem procuravam hotel, já chegavam de mala e máquina na casa dela. Em Campinas era a Casa da Paraguaia, em Minas, a da Zezé, e, em Porto Alegre, a melhor de todas era a Casa da Mônica. Com o passar dos anos, um dos fotógrafos mais assíduos nessas viagens passou a fazer fotos das meninas, queria publicar um livro sobre elas, e pediu-me para fazer o texto. As histórias eram sempre muito parecidas, meninas pobres, abandonadas pela família, que procuravam sobreviver. Em geral diziam que não gostavam do que faziam. A exceção foi uma menina da zona de Bragança Paulista, de classe média alta. Ela me contou que entrou nessa vida porque gostava, e para isso deixou um longo noivado com segurança econômica. Menina ainda, com pouco mais de vinte anos, disse ter duas filhas pequenas de dois e quatro anos. — E quando suas filhas crescerem e souberem que sua mãe é uma prostituta? — Eu me mato! — Você não tem coragem para isso. Ainda na penumbra, o fotógrafo pode fazer a foto dos seus pulsos, que ela exibia com enormes cicatrizes.

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Ah!

Armandinho Era impossível não conhecer o Armandinho. Ele era a fonte (inesgotável) de jornalistas para qualquer assunto no Bixiga. Quando fui escrever a história do bairro da Bela Vista, ou melhor, do Bixiga, foi ele quem me forneceu as melhores informações; além disso, ele e a sua família eram a própria história do bairro. Seu pai era alfaiate. Ganhou fama e fortuna costurando, em especial casacas para políticos, mas não para qualquer político. Fazia casacas até para Getúlio Vargas, não lhe importava se como ditador ou como presidente da República. Armandinho reelegeu Brasil Vita para vereador da cidade de São Paulo por quantas vezes ele quis. Garantia-lhe sempre entre 25 a 30 mil votos só ali na região, incluindo o pessoal das cantinas, da Igreja Nossa Senhora Acheropita, da Vai-Vai e os frequentadores da noite do bairro, dos teatros e dos restaurantes. Fundou o Museu do Bixiga, ou melhor, sua casa virou museu. Se Jacinto Figueira estava mal de Ibope na TV, era o Armandinho que ia tirar o “Homem do Sapato Branco” do sufoco. Como? Nem me pergunte, ele sempre arrumava um jeito. Uma das vezes que Jacinto foi choramingando pedir ajuda, Armandinho pensou bem e lhe disse:

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— Que tal se eu conseguisse um homem para comer uma galinha no programa? Jacinto não entendeu. Qual seria a novidade alguém comer uma galinha? — Uma galinha viva, acrescentou. E no domingo lá estava o Carabina, um de seus auxiliares, mordendo a coxa e a sobrecoxa da galinha diante das câmeras. Foi um escândalo. Em poucos minutos chegou a Sociedade Protetora dos Animais, prenderam o Jacinto, o Carabina... e não se falou em outra coisa durante semanas. Mas a melhor do Armandinho aconteceu quando seu pai faleceu e deixou bens para serem partilhados entre os filhos. Sobrou para Armandinho uma metalúrgica. Ora, ele sempre se gabou de nunca ter trabalhado na vida, mesmo depois de casado. Foi trabalhar no primeiro dia, ficou diante das caldeiras. Aquele calor insuportável foi lhe subindo ao peito. Tirou a camisa, as calças, ficou só de cueca... Não aguentou o repuxo e resolveu presentear os velhos e fiéis empregados com nada menos do que a metalúrgica. Todos ficaram muito felizes. Lembro-me de outra vez que precisei dele, quando o papa João Paulo II esteve pela primeira vez no Brasil. Cabia a mim cobrir a colônia italiana e sua fé. Armandinho começou a organizar uma grande caravana para ver o papa, uma lição de religiosidade da colônia, mas ninguém se inscrevia para ocupar os trinta ônibus que tinha conseguido para ir até o Campo de Marte assistir à missa. Foi quando ele teve mais uma ideia genial. Quem fosse ver o papa teria garantida uma bela macarronada na cantina do Walter Taverna. Nunca se viu uma fila tão grande de fiéis para ver o papa. O difícil foi, depois, arranjar lugar para todos na macarronada...

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Ah!

Seleção de brasileiros Uma das histórias que mais me encantou no futebol foi quando o técnico Vicente Feola convocou os jogadores para a Copa do Mundo de 1958. Às vésperas da convocação, não se falava em outra coisa. Entre os nomes certos da lista estava Julinho Botelho. No dia da lista, o nome do Julinho não apareceu entre os convocados. O técnico explicou: — Não convoquei o Julinho porque ele me disse que não achava justo vir ocupar o lugar de alguém que está jogando no Brasil. Nessa época, Julinho brilhava no futebol italiano defendendo a Fiorentina. Lembro-me que Amarildo foi muito hostilizado — até pelos próprios jogadores — quando foi convocado para a Copa de 1966, quando jogava no futebol italiano. E olhe que o Amarildo não era qualquer um, era um campeão mundial, o homem que substituiu Pelé no Chile e deu conta do recado, marcando gols decisivos. Você lembra do passe que ele deu para Zito marcar de cabeça, na final, contra os checos? Muito bem, enquanto o Amarildo não foi dispensado não deram sossego para o pobre Vicente Feola. Falcão foi o único estrangeiro da Seleção Brasileira que disputou a Copa de 1982. Ele jogava na Roma e foi titular absoluto no meio de campo, mesmo

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assim, raramente dava entrevistas para outros repórteres que não fossem gaúchos ou italianos. É que o pessoal do Rio, de São Paulo ou de Minas não o procurava, afinal, ele não tinha a menor afinidade com o resto do Brasil. Prova que também na Seleção Brasileira existia muito preconceito. Hoje em dia, a realidade é outra. Temos mais de dois mil jogadores atuando no exterior, em outras seleções. Fico indignado quando vejo Pepe e Deco vestindo a camisa lusitana. Mas eles estão certos, são profissionais, vivem na Europa, foram revelados pelo futebol português e nada mais justo que sejam gratos. O erro é de quem os convocou quando eles já estavam defendendo o futebol espanhol. Quer dizer, já não são obrigados a voltar a Portugal depois dos jogos, a dar satisfação pelas derrotas e festejar as vitórias. E futebol é paixão, quem torce para a seleção são os torcedores do clubes. Quer mais alegria do que o corintiano, em 1958, ao ver Gilmar dos Santos Neves no gol da Seleção? Não foi a mesma coisa em 1962, quando ele já vestia a camisa do Santos, claro. Enfim, o que têm a ver os Ronaldinhos com o futebol brasileiro? O que tem a ver Kaká? A vida deles é lá do outro lado do mundo. É legal ver o Marcos Senna, Negão, com a camisa da Fúria, a Espanha. Ele fez a vida na Espanha, anda pelas ruas com orgulho de assinar autógrafos, jamais foi lembrado por Parreira ou Zagallo ou qualquer outro técnico do Brasil. E por que nós não temos o direito de ter uma Seleção Brasileira de jogadores brasileiros que jogam no Brasil, que voltam para cá — como antigamente — depois de derrotas ou vitórias, para defender a camisa de Flamengo, Santos, Fluminense, Cruzeiro, Grêmio...? Vai dizer que não dá para escalar uma Seleção Brasileira com a turma que está jogando por aqui? Vamos lá, me ajude... Goleiro: Bem, o Dida está velho, o Júlio César está lá fora, o Marcão será que aguenta até 2010... Vamos passar para a lateral direita: Temos o Cafu de volta, mas está meio velho. Vamos lá amigo, me ajude! Vamos formar uma Seleção só de brasileiros.

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Ah!

Com todo respeito Quando você vê um parzinho de chuteiras na porta do quarto de uma maternidade, não significa que ali está um futuro craque de Seleção Brasileira, Flamengo, Corinthians... O parzinho de chuteiras significa que ali nasceu um filho macho, um varão, de saco roxo, e que dará continuidade ao nome do pai, da família. Isso acontece com gente nobre e gente pobre. Quando comecei a jogar futebol em time de camisa, calção e meia, ganhei um par de chuteiras Gaeta. Era o máximo de conforto, impossível de você errar um chute por causa dela. Os meninos ricos, com chuteiras novas, não sabiam o que era isso. Usavam as chuteiras seis meses, um ano, e depois que ela estava amaciada, boa para jogar com sol ou com chuva, botavam no lixo aquela relíquia ou davam para os meninos que não podiam comprar. Quem jogava de chuteira velha era craque. Chuteira nova era só o símbolo de riqueza. Bom, joguei anos com aquela Gaeta. Marquei muitos gols, menos de mil. E, quando me casei, aos 26 anos, ainda não estava pensando em aposentadoria. Um dos primeiros presentes que ganhei de minha esposa foi um par de chuteiras, novinhas, brilhando. Nem sei a marca.

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Timidamente perguntei pelas chuteiras velhas e ela me disse que as tinha dado para um mendigo. Percorri durante meses as vizinhanças em busca do mendigo, na vã esperança de trocar as chuteiras novinhas pela minha querida Gaeta. Nem preciso dizer que meu futebol nunca mais foi o mesmo. Durante a excursão da Seleção Brasileira em 1968, depois do jogo entre Brasil e Alemanha eu pude ver porque Beckenbauer jogava aquela bola tão redonda. Vi em seus pés um par de chuteiras de pelica. Ele disse que as mandava fazer, sob medida. E pensar que Flávio Costa tirou Nilton Santos da Copa de 1950 porque ele se recusava a jogar com as chuteiras de bico de alumínio para ferir canelas adversárias. Naquele tempo, além das chuteiras, andar com a camisa de seu clube predileto era um privilégio, ainda mais quando você a ganhava de presente. Numa viagem que fiz com o time dos Milionários, formado por excraques da Seleção, ganhei uma camisa de mangas compridas, branca e azul, com autógrafos de Garrincha, Bellini, Nilton Santos, Djalma Santos... Num dia de sol, vi a camisa estendida no varal, branquinha... Minha mulher viu aquela camisa tão rabiscada, ainda suja de barro, resolveu deixá-la novinha em folha. Lembro que fui ao banheiro e enxuguei as lágrimas com aquela camisa, já sem a preciosidade de Garrincha e companhia. E quando notei a falta da camisa número 5 da Roma, que Falcão havia me presenteado quando trabalhamos juntos na Seleção? Onde estava aquela raridade? Aquele manto que ele vestiu no dia do título de 1982? Bom, hoje em dia, quando a gente vê um par de chuteiras na porta da maternidade, pode acontecer de tudo, depois que a Marta se consagrou como a melhor jogadora do mundo e a Soninha virou referência de comentarista. Digo isso com o maior respeito, sem mágoas. Mas as mulheres, ah!, as mulheres. Como diria o jornalista Saul Galvão, “se elas não tivessem..., eu nem as cumprimentava”.

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O copidesque de Gay Talese Não sei se você já ouviu falar de Gay Talese, ex-repórter do New York Times, que escreveu reportagens fantásticas e livros não menos incríveis. No meu tempo de repórter, Talese fez uma reportagem sobre Frank Sinatra, ou melhor, queria fazer uma reportagem com Frank Sinatra a partir de uma entrevista. Frank Sinatra não era muito de dar entrevista e, acredito eu, para desanimar Gay — sem ofendê-lo —, mandou que seu assistente escolhesse uma data longínqua. Até lá, o apetite do entrevistador já estaria em frangalhos. Enganou-se. Só fez aumentar a tensão e a ânsia pelo trabalho, como acontece com os grandes repórteres. E, na data e hora marcadas, lá estava Gay, meia hora antes esperando pelo verdadeiro Rei da Voz, ou melhor, The Voice. Eis que, depois de tantos meses de ansiedade, quem aparece não é Frank. É apenas o assistente, o que já não era pouco. — Sinto muito Gay, mas Frank não poderá atendê-lo. Ele pegou um baita resfriado. Sua garganta está em situação lastimável e ele não pode

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falar. Bem que Gay já havia percebido um movimento muito estranho no escritório. Pessoas uniformizadas, outras vestidas de paletó e gravata, algumas de aventais brancos (médicos e enfermeiras) corriam feito baratas tontas, sem saber ao certo o que fazer. Dessa forma, para qualquer repórter do mundo não restaria outra saída senão esperar por quem sabe mais oito ou dez meses para uma nova chance de entrevistá-lo. Mas não para Gay. E foi nessas circunstâncias que ele escreveu talvez a sua grande reportagem: “O dia em que Frank Sinatra se resfriou”. Passei todos os dias de minha vida perseguindo textos, livros, entrevistas de Gay Talese, para, quem sabe, produzir alguma coisa parecida com uma de suas reportagens, e, quem sabe, um de seus livros. Afinal, milagres existem. Mas havia um tipo de gente que circulava pelas redações dos jornais — americanos, brasileiros e de qualquer parte do mundo — que não consideravam o repórter um profissional de valor. Não, eles tinham uma ideia muito diferente da minha, por exemplo, que considerava o repórter o profissional mais importante de um jornal, e que, sem ele, não existe vida. Só o caos. Esse tipo de profissional é, ou era (já que foi extinto por absoluta falta de necessidade), o copidesque. Essa figura desprezível fazia parte do elo da corrente da edição de uma reportagem. O repórter saía à rua, com frio ou com chuva, escrevia a matéria e a entregava para a edição. Na maioria das vezes, antes mesmo da reportagem chegar às mãos do editor, chegava às mãos do copy. Ele então passava a ter o direito sobre a vida e a morte do repórter. Podia reescrever a matéria, alterá-la, virá-la de ponta-cabeça se entendesse que o lide estava no pé da reportagem. Eu costumava dizer, usando a letra

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Ah!

de uma música, que o “copy costumava sapatear sobre o meu caixão”. Ao longo de minha vida nunca imaginei que alguém pudesse ter sido vítima de um copy como eu fui ao longo de mais de quarenta anos de reportagem. Depois que conheci os primeiros escritos de Talese, ficava imaginando: — Não existe copy que tenha tido o peito de mexer numa matéria dele! Que engano. Hoje, dia 28 de agosto de 2010, ao ler o livro “Vida de Escritor”, no momento em que Gay e eu já não fazemos mais parte do mundo dos vivos da reportagem, eis o que ele escreve no capitulo 16, página 217: — Reclamávamos constantemente dos nossos copidesques, que eram as primeiras pessoas na redação a ler o que escrevíamos e tinham autoridade para emendar nossos artigos, reorganizá-los ou reescrevê-los de cabo a rabo sem nos consultar e sem eliminar o crédito que nos dava como autores. Achávamos que esses ratos de escritório, críticos e gramatiqueiros, burocratas desprovidos de senso de humor e censores do nosso trabalho invejavam secretamente nossa liberdade como caçadores de notícias no mundo exterior. Isso me lavou a alma. Lembro-me de certa reportagem que escrevi sob luz de velas, já que a cidade estava às escuras. A cidade de Caraguatatuba, litoral de São Paulo, estava arrasada sob efeito de uma verdadeira inundação que se abateu sobre o município. As árvores que sustentavam morros vieram abaixo

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numa enxurrada, formando um lamaçal de mais de dez metros de altura (encobriu um caminhão e um jipe que estava sobre o caminhão). Nessas circunstâncias, metade da cidade estava sob as águas, incluindo hospitais. As águas do rio Santo Antônio se transformaram numa corrente enfurecida capaz de arrastar do seu leito a ponte de concreto de dezenas de toneladas. Famílias, com suas crianças e animais, ficaram isoladas no alto dos morros. Eu tinha apenas 24 anos nessa época. E queria mostrar serviço. Viajei de helicóptero até os morros, passei dias me alimentando de mamão verde e tomando água barrenta, fui aos alojamentos onde pessoas nasciam — e morriam —, para anunciar que havia vida. Ainda havia vida. E uma das manchetes que o jornal produziu graças ao meu trabalho foi esta: — Há meia hora, a morte passou por aqui. Narrava a passagem de políticos por um dos alojamentos, a visita a um recém-nascido e, meia hora depois, a morte dessa criança. Estava claro que eles não estavam dando a menor importância para a vida. O jornal estava com a tiragem cada vez maior. Lembro-me que, ao regressar, um velho colega veio comentar essa manchete comigo. — Todos gostaram, exceção de um copidesque... Perguntei a razão: — Ele disse que você cometeu um grave erro de concordância... Esse copidesque que pegou meu erro de concordância subiu muito na vida. Como eles ficavam sempre na redação, faziam amizade fácil com os donos do jornal, tinham horário para jantar, beber cerveja, bater papo e assumir postos de confiança, como editor, chefe de redação... Nós, os repórteres, tínhamos de conviver com isso. Meu único consolo é que esse copidesque que pegou meu erro de concordância depois galgou o cargo de diretor de redação, e pode ser um profissional acima de qualquer suspeita, mas se você procurar pela pasta de reportagens que ele escreveu no arquivo do jornal, ficará assombrado com um “nada consta”. Por esse motivo, continuo admirando — mais do que nunca — Gay Talese. Um grande repórter.

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Ah!

Prorrogação Televisão é um veículo maldito. Quando você pensa que está abafando é porque as coisas estão indo muito mal. Há pouco tempo, antes da Copa do Mundo na África começar, a produção do programa Roda Viva me convidou para participar como entrevistador de Paulo Roberto Falcão. Ah, eu tinha tanto para perguntar! O programa começou e eu bombardeando meu amigo: — Por que você foi cortado por indisciplina da Copa de 1978? — Por que foi demitido do cargo de técnico da Seleção em 1991? Isso porque eu sou seu amigo. Falcão sorria, respondia com elegância, sempre um sorriso, e procurava escapar como podia. Duas horas depois, terminado o programa, fiquei sabendo pelo twitter que as pessoas tinham odiado a minha participação. Para a maioria, eu era um grande “mala” que pensava ser o entrevistado e não o entrevistador. Naquela noite, fomos jantar o Falcão, o advogado Cristovão Colombo e eu. Brindávamos com um Angélica Zapata quando o Colombo disse: — Battaglia, você foi muito bem. O Falcão saiu por cima, e como o craque inigualável de sempre. Graças a você e suas perguntas. Lógico, pensei. Quem é que gosta de ver um craque, um ídolo, sendo

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fustigado por um jornalista idiota? Prometi, a mim mesmo, mudar. Recentemente, fui a outro programa, onde seria entrevistado o zagueiro Maurício Ramos, do Palmeiras. O jogador chegou ao estúdio com sua esposa e uma linda criança de três ou quatro anos, sua filha. O Palmeiras tinha perdido, era um prato cheio para arrasar o becão rebatedor, mas respirei fundo e lembrei do Roda Viva do Falcão. Então, comecei a justificar a atuação do jogador, afinal, dois dias antes ele havia participado de um jogo de vida ou morte. Não tiveram tempo nem de recuperar suas energias e lá estava ele de novo, operário do futebol, em campo de guerra. Eu o olhava e ele assentia com a cabeça. Sua esposa, com a filhinha no colo, atrás das câmeras, parecia me agradecer. Mil vezes obrigado a este velhinho de cabelos brancos, que tem a compreensão da vida. Cheguei em casa, minha mulher estava orgulhosa. Pela primeira vez, orgulhosa por eu não ter sido agressivo, ao contrário, ter me comportado como ser humano, antes de jornalista. “Quem bom”, pensei. Mas semana passada tive uma séria recaída. Desta vez, o entrevistado era o presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, um homem de 46 anos que, ainda adolescente, trabalhava na feira para ajudar a família. Na minha primeira intervenção, lembrei que Andrés Filho era descendente de espanhóis, assim como Vicente Matheus, e que não tiveram oportunidade de estudar, e, ainda assim, chegou à presidência do Corinthians, um cargo sonhado por trinta milhões de corintianos. Nota 10 para mim. Mas, logo em seguida, fico sabendo que Andrés fora um dos fundadores da torcida Pavilhão 9. Todo mundo sabe que essa torcida uniformizada, como tantas outras, é violenta, pouco se importa com o futebol. Perseguem e ameaçam os jogadores que frequentam baladas. Todo mundo sabe, mas eu queria que o público soubesse mais, para fustigar aquele líder que estava ali, à mercê — neste momento — de minha sanha assassina. — Por que o nome Pavilhão 9? — Ora, era Pavilhão 9 — disse ele. Eu completei: — Pavilhão 9 era o numero do pavilhão mais violento do presídio do Carandiru, onde eram confinados os piores facínoras, gente com latrocínio

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nas costas. — Mas nós só colocamos esse nome por causa da invasão que houve ao presídio, quando foram mortos muitos presidiários. Não vou dizer que em nossa torcida não tinha bandido, mas isso tem em todo lugar, entre advogados, jornalistas... Eu bem que poderia parar por aí, mas aquele instinto selvagem do jornalismo mandava eu ir em frente. “Vai que o povo quer saber” — me cutucava aquele diabinho que habita a mente de todo velho jornalista, em especial aqueles que trabalharam em jornal de esquerda e adoram ver um nocaute. Nada de vitória por pontos. Fui em frente: — Você era o chefe da delegação do Brasil na Copa da África. Você sabia que o Kaká tomava infiltração para jogar? — Qual foi a providência que você tomou? — Você sabe que infiltração é doping? Daí, Andrés jogou a toalha. Eu tinha vencido mais um combate no terceiro round, por desistência do adversário. Quando cheguei em casa, lá pelas duas da manhã, minha mulher — meu Grilo Falante — estava ainda acordada: — Você foi péssimo, muito agressivo! — Por quê? — Ele é um líder, uma pessoa inteligente, uma pessoa parecida com o Lula, que não teve o privilégio de estudar, mas é um vitorioso. Entendi. Eu tinha sido o nocauteado. O soco que eu tomei deveria ter sido tão forte, que eu ainda estava dormindo enquanto me imaginava vencedor. Só me resta pendurar as luvas!

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