Suplicio silencioso

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Dez horas da noite, a rua ainda movimentada, pessoas vão e vem, sem perceber que um olhar furtivo, atrás de uma cortina em uma insuspeita janela, perscruta a noite e escolhe sua vitima, não quer ser reconhecido, nem busca vingança, apenas fazer um favor a uma alma angustiada. Não escolheu sua vitima pela cor da pele, sexo, posição social, altura, idade, apenas por simpatia, procura alguém com o rosto angustiado, cansado de viver, com tristezas incuráveis, sente que sua vitima está pedindo para ser escolhida, para despedir-se da vida e abandonar as amarguras deixando para trás toda a dor que se acumulou em seus ombros. Não é a primeira vez que faz esse favor, já libertou das agruras da vida vários espíritos, faz esse favor pois essas pessoas não teriam coragem de tomar essa decisão, assume toda a responsabilidade, neste e no outro plano de existência, porque toda a sua historia já não existe ele sente toda a sua alma pesar, não sente nenhum remorso orem também nenhuma pena por si mesmo, só sente que é uma espada a disposição de quem necessite de seus serviços, apesar de nunca ser requisitado. O horror que vê nos olhos de suas vitimas é o azeite que unge e purifica suas almas e os redime do pecado e pelo silencioso pedido para que sejam abreviados seus sofrimentos. Uma mulher loura para e olha ao redor de forma triste, abandona uma sacola de papel, e caminha cabisbaixa, a sacola mexe, e de onde está percebe que uma criança recém nascida está se remexendo sobre o banco da praça. O desespero de seu olhar o atrai, deve atende la, a suplica é clara, antes, porem, um telefonema uma vida pede para ser encerrada, mas a outra ainda necessita florescer. Escolhe as palavras, ligará quando descer a rua, não pode correr o risco de que sua missão divina seja bruscamente encerrada por pessoas que não entendem seus desígnios, Deus lhe dotou de uma inteligência superior e capacidade de entender o sofrimento alheio, aquela escolhida teria seu pedido mais recôndito atendido, suas lamurias encerrariam, seus olhos umedeceriam pela ultima vez, não sofreria mais, seu ato violento garantiria a entrada triunfal nos portões dourados, de mais uma alma purificada pelo horror que lhe seria imposta, tinha que ser assim, esse era seu fardo. Desceu os dois lances de escada e foi a praça, La estava a sacola intocada, o frio da noite começava a se fazer presente, foi ao telefone publico postado mais longe, mas que lhe permitia visualizar o banco-berço. Três números discados uma voz metálica pedindo para aguardar, seguida por uma voz aborrecida, pedindo a natureza da ocorrência, em curtas palavras deu seu recado e desligou, ouviu apenas, a palavra “reiteração”, que lhe despertou algo, sem saber o que. Sua missão de anjo negro iria começar, viu bem a direção que a mulher tomara, era só seguir e ver o momento exato de agir, ou marcar o caminho para que no mais breve espaço de tempo aliviasse seu fardo, outra alma escolhida esperou três meses para ver seu pedido ser atendido, outra uma semana. Tinha que ter certeza de que a dádiva era justa, e que os infiéis não lhe deitassem a mão sabia que os mártires não eram entendidos, que, se fosse impedido o sofrimento do mundo aumentaria ainda mais, suas benesses estampavam os jornais e noticiários, como crimes fortuitos, sem ligação, mas se fosse preso, teria que relatar todos os desenlaces que propiciara, e poderia gerar uma crise de histeria, a humanidade não estava preparada para entender. Ela caminhava a vinte metros a sua frente, tão absorta pelo seu ato que acabara de fazer que não notara que era seguida, olhava nervosamente para trás e não via as pessoas que caminhavam no mesmo sentido, só tentava olhar para o banco da praça, que se ocultara em uma curva da rua, parou e colocou as mãos na fronte, fez menção de voltar, chorou e continuou, atravessou a rua quase sendo atropelada por uma motocicleta, seria o fim mais justo, mas a missão deveria continuar, atravessou a rua e continuou a observar o desespera daquela mulher, que já aparentava não ter um lugar para retornar, roupas normais, sapato surrado de quem

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anda muito, jeans novo, cabelos descoloridos já mostrando às raízes escuras, sinais de abandono pessoal, a casca estava quase vazia. Estava suplicando por sua ajuda, precisava atravessar a ponte, mas não tinha coragem, não conseguia se decidir por nada, seus olhos castanhos não tinha mais o brilho da juventude, uma tatuagem em forma de borboleta em sua canela denunciava que havia sido muito vaidosa e rebelde em tempos antigos, apesar de sua pouca idade, esses dias pareciam muito distantes. Desceu uma escada em direção ao túnel. Aquele túnel já fora palco de intentos anteriores, não serviria para o momento, o sangue de um escolhido não poderia macular o de outro. Sem saber que ali estava segura, correu nervosa pela escuridão, os trinta metros do largo túnel sob a avenida pareceram uma enorme maratona, do outro lado a luz artificial da rua, ainda que precária, lhe serviram de alivio, ao menos por enquanto, quando lembrou da monstruosidade que fizera, diminuiu os passos e levou a mão direita ao olho esquerdo, uma lagrima, que outrora poderia ter borrado sua maquiagem, escorreu pesada, maquiagem que não usava a vários meses desde que decidira dar fim naquele episodio deprimente que vinha lhe corroendo as entranhas, ser mãe, era o que se dizia, padecer no paraíso, tinha que libertar aquela criança de laços tão ruins com ela, amar é libertar, tinha que fazer aquilo, não podia continuar com essa farsa, ficara três meses longe de casa, longe de quem amava, para ter aquele filho, indesejado, mas inocente, não podia levar para casa o fruto de uma desventura amorosa, seus pais não entenderiam, deixaria de ser a filhinha única e mimada, seria um monstro aos olhos de quem mais amava. Estava feito, ligara para a polícia e a criança sem nome, teria um novo lar, uma vida descente e cheia de amor, sua vida continuaria e ninguém faria a ligação com ela. Prestava atenção nas mudanças de humor, percebeu um sorriso após uma lagrima, percebeu as mudanças de direção, percebeu que agora ela caminhava mais resoluta, havia se redimido consigo mesma, a ligação, “reiteração”, ela também havia avisado as autoridades sobre o abandono, havia uma cabine da policia ali perto, o inocente já devia estar salvo. Aquela alma estava em estado de graça, pronta para receber a bênção e ir para a gloria de uma existência sem maculas. Aproximou-se mais para observar as mudanças que ocorreram, em seu cérebro apenas aumentara sua convicção de que aquela era uma eleita, agora iria acompanhá-la para que nesta noite nada de mau lhe ocorresse, porque seu caminho seria livre e desimpedido, a futura passagem seria dolorosa, mas a recompensa seria eterna. Observaria todos os hábitos da agraciada e prepararia o que há de melhor, a cada vez buscava se aprimorar, a ironia era terrível, não podia furtar-se ao horror, mas também não desejava dor para quem recebia seu presente, mas eram justamente a dor e o horror que transformavam o pedido em benesse e não em desgraça. Acompanhou a jovem mulher por quarenta minutos, chegaram a uma casa aparentemente prospera em uma ladeira acentuada, dois belos modelos de carros novos na garagem, havia uma luz no segundo andar, denunciando que haviam pessoas acordadas, não se ouviam conversas ou latidos, a rua era bem cuidada e iluminada, mas havia um beco quase em frente, mal iluminado, usado pelos moradores para acessar outra via, onde coletivos tinham sua parada, uma oportunidade. Não havia pressa, podia esperar, era bom conhecer bem tudo que podia sobre a pessoa que iria lhe fazer o favor de aliviar a culpa, que azedava-lhe a boca, em seus quarenta e cinco anos de idade, nada acalmava sua consciência, somente aquele trabalho humanitário calava temporariamente a voz acusadora de que nada fazia para concertar o mal, que compactuava com a dor humana, que devia fazer algo. Foi em um panfleto de rua que encontrou a inspiração, tão simples, “acalme sua dor, eliminando a dos outros”, um anuncio para a campanha do agasalho.

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Entendeu que a mensagem estava fora de um contexto, mas “Deus escreve certo por linhas tortas”, também não sabia de onde vinha essa frase tão repetida, mas estava lá à revelação, devia procurar pessoas com dores maiores que a sua e aliviarem-se. No começo achou difícil, mas entendeu que não poderia ser diferente. Esta noite conheceu mais um miserável que necessitava sua ajuda, observou a casa, no portão pendia uma caixa de correspondências, com algumas cartas pendentes, uma delas um cartão de aniversário para sua eleita. Só podia ser ela, comprimento pelos seus vinte e dois anos e vindo de uma loja de roupas jovens, do mesmo tipo daquelas que usava, era ela, sem duvida, já tinha o nome idade e preferências, inclusive da loja que freqüentava. Mais uma peça para o mosaico que se formava. Um papel escapando de um rasgo oportuno, providenciado por um cão de rua no saco de lixo lhe chamou a atenção, uma fatura paga de um conhecido cursinho pré- vestibular, mais um dado importante, as providencias divina não surpreendiam mais. A noite estava muito fria e resolveu retornar para sua alcova, lá, sofreria mais uma noite pensando e repensando em seus pecados, olhando e revirando as provas que guardava de cada favor que prestava, o Senhor não lhe cobraria isso, mas servia de alivio ver que estava trabalhando, que já levara consolo a muitas pessoas, precisava estar sempre recordando, porque o inimigo estava sempre ao seu lado e não podia fraquejar, revisaria cada caridade feita e ai talvez conseguisse dormir um pouco, o dia seguinte seria cheio, havia muito o que fazer, precisava estar alerta, porque a noite caia e ele vinha novamente cobrar suas faltas, seus deslizes, tinha que ser forte e cumprir sua missão, levar conforto a quem necessitava miseravelmente, um igual, um infeliz, uma pessoa triste e desolada, que não tinha coragem de tomar a atitude correta e se escondia atrás de lagrimas, olhares nervosos, passadas inseguras, aqueles pedidos de misericórdia que tão bem conhecia. --=--

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Mais uma vez tomara a decisão errada, primeiro conhecer o rapaz boa pinta do cursinho fora a maior roubada, beijinho, abraço, malho, com camisinha e tal, mas ficou grávida e o carinha nem quis saber, disse que tava de camisinha e o pai era outro, saco, nem percebeu que ela era virgem, que merda, fugir de casa quando a barriga começou a crescer foi outra bosta que fez, a tia na praia ficou quatro meses lhe enchendo a paciência para falar com os pais, merda, estava trabalhando na barraca da praia, tava ajudando, e pagando a estadia, não comeu um grão de arroz de graça, pra que, pra ficar ouvindo merda o dia inteiro e boa parte da noite,fugir para fazer o parto no SUS, foi outra bosta que fez, aquele lugar horrível, cheio de gente podre e desdentada, tudo querendo os filhinhos loirinhos e de olhos azuis, o gente “ingnorante”, sorriu, pelo menos para isso serviu aquela passagem no inferno, o parto até que foi normal, a recuperação foi bem rápida, e agora, o que fazer com esse bostinha, do meu lado ele não tem futuro, pra casa eu não levo, vou abandonar, quem sabe assim ele tem um pouco de sorte na vida, por que a minha já enfiei no cú. O pai e a mãe vão me esfolar viva, mas se souberem do bebe, ai sim vão me matar, internar num hospício, sei lá o que podem fazer. Parou e pensou se iria tocar a campainha, procurou na bolsa um chaveiro, mas não encontrou, pensou, merda, esqueci na casa da tia, teria que chamar alguém, tocar o interfone, mais uma humilhação, sempre tivera a chave, poderia entrar e ir para o quarto, e se trancar ate ter coragem de encarar os pais. Um relâmpago iluminou ainda mais a noite, não era relâmpago, apesar do frio o tempo estava firme, era o farol de um carro que subia a rua. Um carro de policia, pelo menos estaria segura por alguns minutos enquanto tocava a campainha. Uma voz cansada atendeu o chamado, quem é? Com a voz embargada, a o reconhecer a voz da mãe respondeu, sou eu mãe. Silencio, agora a voz estava irada, vá embora não me encha mais, não agüento mais essas brincadeiras, estou chamando a policia. Se tivesse sido antes a luz vermelha e o farol brilhante teriam sido assustadores. Mas não entendeu, ou melhor, não quis entender, durante os meses que se ausentara, inexplicaádamente, os choramingões da mãe e as vigílias noturnas, que ela poderia ter imaginado, pelas noites que sua mãe passara em branco a sua espera, em vigília e oração para que nada lhe acontecesse, nem que ninguém abusasse dela, devem ter dispertado os piores sentimentos de jovens inescrupulosos que encontraram na chacota uma forma de diversão, ligando e tocando o interfone imitando sua voz, apenas para ouvir impropérios, e saírem rindo, o seu pai com certeza deve ter pedido para desligar o interfone, mas também era certeza que cedera as suplicas de sua mãe. Queria poupá-los de uma vergonha e os havia condenado a um suplicio muito maior, o da pseudo perda da filha querida. Sua mãe ouvia a noite passos no andar inferior e remexerem a mobília, uma vez viu um vulto no espelho da sala, bem a noite na hora que fora tomar um copo dágua e ia dormir, outra vez viu uma mancha no mesmo espelho que lembrava a silhueta da filha, apesar da insistência em manter a vigília seu sub consciente começava a ceder a possibilidade de so encontrala em outra fase da existência, ela viria de alguma forma avisar se estava ou não viva. Mantinha o quarto arrumado, trocava as roupas de cama toda semana, a toalha do banheiro todo dia, limpava o pó de tudo, arrumava os sapatos e até o computador ligava porque lhe disseram que se não funcionasse iria engripar ou ficaria desatualizado, atualizava o antivírus chegando até a comprar uma nova versão, apesar de não navegar, gravar, ou inserir nenhum programa ou ligar pendrive, mas tinha certeza de que sua filhinha gostaria dos cuidados que tomava.

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Todo dia deixava uma muda de roupa nova sobre a cama, para que caso chega-se cansada não se preocupa-se em abrir gavetas e guarda roupa, no dia seguinte colocava a roupa no cesto de roupa suja e no final de semana lavava tudo. Mantinha a rotina, como se nada houvesse mudado naqueles meses, seu marido se consumia, com o martírio de ver sua esposa sofrendo, cultivando uma esperança que lhe parecia inútil, mas era também uma forma de manter a chama viva. Uma noite ao estacionar o carro na garagem, esbarrou no carro da filha, ficou quase uma hora dentro do carro, parado remoendo o remorso, procurando saber onde havia errado, seria a desaprovação de um namorado, seria um gosto não cumprido. Comprou aquele carro no mês seguinte ao desaparecimento, uma divida inútil, só rodava o suficiente para manter abastecido, bateria carregada e pneus calibrados, o homem do posto sugeriu encher os pneus com nitrogênio que iria poupar varias idas ao posto para calibragem, ficou de pensar, mas nunca aceitaria, perderia um vinculo com o carro, e diminuiria a chama da esperança de ver a filhinha dirigindo aquele carro, até a idéia de ver a filha encabulada explicando a primeira ralada no estacionamento do Shopping, de certa forma era prazerosa, pois lhe daria um abraço e beijaria sua testa e diria tudo bem, tudo bem, vamos arrumar. Cada um em seu inferno pessoal auto imposto, cada um se consumindo, silenciosamente no mundo caótico que se impuseram, não viviam, sobreviviam, não interagiam nem reclamavam, também não especulavam o que fariam quando a filha retorna-se, seguiam suas via crucis até um cadafalso onde inevitavelmente chegariam a derrocada de suas existências. Naquela noite iriam passar pela mais traumática de todas as situações de suas vidas, a ausência da filha criara uma rotina em suas vidas, rotina de sofrimento, mas que já haviam assimilado, não queriam sofrer novamente um trauma tão grande. Sob o túnel recordou o presente ali entregue e suas entranhas revoltaram-se porque deixar aquela alma sofrer?

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