Fala quebradas! Edição #1

Page 1

FALA QUEBRADAS!

#1


3

11

EDITORIAL

Ando pela Cidade

4

TERESA GIL

Dom Casmurro

12

SANDRA LIMA

A Passarela

5

LUCIANA OLIVEIRA

Cestrum Nocturnum

13

FELIPE BOAVENTURA

Esquinas Improváveis

7

DENISE KOSTA

Rua Salema

14

ORLANDO RANGEL

Convocatória Rua

8

JANDIR JUNIOR

Rua de Estrelas

15

ROGÉRIA REIS

Todas as Ruas

9

do meu Cérebro

O Sol Frio

LUDI UM

MARCIO RUFINO

17

10

Rua General Clarindo,

Que roda é essa?

uma Rua de Feira

JESSICA CASTRO

CRISTINA HARE

Ladeira do Escorrega RAFAELA NOGUEIRA


Editorial

3

A Fala Quebradas! chega a sua primeira edição! Entre a Edição Zero e a Edição Um lançamos um site, estivemos na FLIP 2014, novos quebradeiros se juntaram como editores ou autores, nossa fanpage alcançou 200 curtidas, aplicamos oficinas, entre muitas outras coisas! Agora estamos aqui de novo trazendo produções literárias de pessoas das mais variadas matizes da cidade. O compromisso da publicação é pensar através da ficção em prosa ou poesia a cidade na qual vivemos. O mote para os textos dessa edição sugeriu a RUA como tema central. Se pararmos para pensar em como a rua é importante em nossas vidas, talvez nos identifiquemos com algum conto, poesia ou crônica da Fala Quebradas!#1. Porque aqui nessa edição tem uma rua de feira, uma casa misteriosa da rua; tem ladeira, e também esquinas improváveis. A rua é o palco da vida! E nesses últimos dias no Rio de Janeiro tem sido lugar de encontro político e covardia policial. Acreditamos na livre manifestação e nos indignamos com o estado policial que é o mesmo que sempre matou na favela. A Fala Quebradas! quer ser um projeto que opere a literatura das periferias ao trabalhá-las com a cultura digital. Acompanhe nosso site www.falaquebradas.wordpress.com nossa fanpage www.facebook.com.br/falaquebradas e twitter @falaquebradas para ficar por dentro das novidades do projeto. O mote dessa edição foi apresentado por Ariano Suassuna através de um vídeo onde fala de algumas ruas do Recife importantes para ele. Durante a produção da edição, infelizmente ele faceleu. Prestamos aqui nossa homenagem ao mestre. E quebradeiro, fique atento a abertura da próxima edição! Participe desse projeto que está inventando um novo lugar para a literatura e em especial, a literatura da periferia. Com alegria,

Felipe Boaventura


4

Dom Casmurro Sandra Lima

Sei que a história que irei narrar é meio inusitada, afinal uma criança de 8 pra 9 anos aprender a soletrar com uma obra complexa como a obra de Machado de Assis é realmente inacreditável. Quando criança, eu passava uns tempos com minha tia Madalena, uma linda portuguesa que colecionava livros, artesanatos e tapeçarias. Eu amava todas essas coisas, nas quais na casa dos meus pais não tinha acesso. Eu ficava com minha avó Rosa quando minha tia saía para o trabalho. Vó Rosa era muito brava e não gostava muito de papear. Restava-me a vitrola, os discos e os livros. Livros! Fui tomada de uma curiosidade por eles, e em especial pelo livro Dom Casmurro. Não me perguntem o porquê, não saberei responder. Talvez a capa tenha chamado minha a atenção, pois nela havia uma singela dama vestida à moda dos filmes antigos. Quando minha tia chegou em casa eu pedi: Tia, lê esse livro para mim? E ela respondeu com muito carinho: Já está na hora de você começar a ler sozinha. Já está na explicadora e já conhece as letras. Agora basta você juntá-las para formar as palavras. Nesse dia ela passou horas me ajudando a juntar as letras e formar

as palavras. Era muito gratificante para mim. Cada palavra, um abraço e um elogio. Desde então Machado de Assis entrou na minha vida. Comecei a ler outras de suas obras e me fascinei por sua trajetória. Adulta, me mudei para um bairro chamado Jardim Clarice em MG. Nele, todas as ruas tem nome de grandes obras da literatura brasileira, graças a um pedido de poeta Carlos Drumond de Andrade feito ao prefeito Marcos Tamoio com esse fim. E qual não foi minha surpresa ao constatar que eu moraria na Rua Dom Casmurro? Eu e Machado juntos outra vez numa importante etapa da minha vida. Fui muito feliz naquele endereço por muitos anos. E hoje penso que essa felicidade, na verdade, não começou ali, mas muito antes quando uma tia se esmerou em ajudar sua sobrinha a entrar no fascinante mundo da literatura através de um livro de Machado de Assis. # Sandra Lima é roteirista, Quebradeira da 2ª edição.


Cestrum Nocturnum

5

Felipe Boaventura O tempo escurecera a “Residência dos Alves”, mas não a envergara ou a demolira. Da sua construção ninguém lembrava ao certo. Mas de seus moradores, sabe-se que o senhor Alves e sua esposa eram imbuídos de grande vontade de terem um varão como herdeiro. Entretanto, toda vez que a senhora Maria Richet Alves engravidava a notícia era a mesma: uma menina. E uma após a outra, as crianças seguiam o mesmo destino temerário, pois passado pouco tempo do nascimento faleciam. Até a terceira, pensavam ser fraqueza da mãe ou dos bebês. Depois, diziam que o grande desejo de seus pais por um menino impedia que as meninas sobrevivessem. Do dia para a noite, os Alves se mudaram após a morte da quinta criança, e o casarão permanecia agora em nossa rua como uma foto amarelada de uma gaveta esquecida. Até certa manhã quando um forte perfume se abateu sobre toda rua. Como o aroma era pesado e de intenso doce, e as pessoas após muitas ligações e perguntas entre janelas não identificavam sua origem à medida que as horas passavam, foram à rua como se atendessem uma mes-

ma convocação. Encontravam-se em meio a indagações, até que alguém disse ser aquele cheiro característico de uma flor chamada “Dama da Noite”. O palpite foi rechaçado por outro, uma vez que essa flor só abria a noite e ainda não eram cinco da tarde. Além do fato de ninguém dali possuir um exemplar da mesma em casa. Outra pessoa então levantou dúvidas sobre a possibilidade de haver tal flor no casarão dos Alves. Após breve discussão sobre essa hipótese, alguns homens decidiram entrar no casarão a fim de verificá-la. Prepararam-se com materiais próprios para a empreitada e quebrando o cadeado do velho portão decrépito, entraram no terreno. Pararam em frente às árvores que de tão espessas, impediam avistar o casarão. Existiam muitas histórias envolvendo as cinco meninas dos Alves. Alguns diziam terem sido mortas pelos pais e enterradas no terreno. Outros, que a casa era amaldiçoada, e que em certas madrugadas, seus choros distantes podiam ser ouvidos. Convencidos sobre os delírios que eram essas histórias, avançavam. Sob a copa das árvores, notaram que a temperatura


diminuía e que o aroma se tornava ainda mais forte. Em silêncio, caminharam até quando inesperadamente o cinturão de árvores terminou e à frente, a coisa mais incrível surgiu. Diante deles, o velho casarão jazia em silêncio profundo em meio ao terreno, com toda sua alvenaria externa coberta completamente por um manto de grandes e belas “Damas da Noite” abertas. O ar estava tão impregnado pelo seu aroma que demoraram em notar a existência dos outros tipos de rosas, orquídeas, jasmins, e até Vitórias Régias que nasciam do cimento da casa, e que formavam dos seus quatro lados um mosaico multicolorido. Apenas seu telhado não apresentava qualquer tipo de flor. Nessa distância parecia ter o dobro do tamanho. Passado o espanto, decidiram examinar o terreno em busca de possíveis sinais de lápides ou coisas semelhantes. Acabariam assim com os boatos. Porém, de fato, nada de significativo encontraram ali. Decidiram então entrar na casa se dividindo em dois grupos, um para cada andar. A lua estampava o céu quando se encontravam novamente em frente à casa sem nada encontrar nela, senão muita poeira e pouco mobiliário esquecido debaixo de panos amarelados. Nada restara fazer senão cortar as flores e queimá-las a fim de

acabar com aquele intenso perfume e poderem voltar à normalidade do dia a dia. Logo, juntaram restos de madeiras com as flores cortadas, jogaram gasolina e acenderam a fogueira ao lado do casarão. Quando voltaram para a rua, foram recebidos pelas pessoa que haviam permanecido nela. Afinal, o que havia acontecido e que fumaça era aquela que saía do terreno e aos poucos enchia a rua? Feitas as explicações sobre o que foi encontrado na casa e como resolveram o problema, se deram finalmente por satisfeitas. Aquela noite transcorreu tranquila e o dia seguinte também teria sido assim, se pela manhã ao acordarem, não houvesse no ar frio que habitava toda a rua, um forte perfume de aroma pesado e de intenso doce. # Felipe Boaventura é escritor, Quebradeiro da 4ª edição.


Rua Salema

7 Orlando Rangel

Rua dos folguedos, brincadeiras, brinquedos, cirandas, crianças, segredos, degredos, mais cedo todos a dormir com medo de assombração. Rua da canção desesperada, da primeira à derradeira namorada, do sonho, da lua e estrela entre paixões, sermões, amendoeiras. Rua que ladeia a praça, que embala a massa entre o ir e o porvir, e o que está por vir entre as nanotecnologias sutis Rua do descontentamento com a hora da mordaça, rua do futebol e da pirraça, da cachaça ao arrebol, rua onde a gente mais matreira nas manhãs alvissareiras vão atrás do seu filó, do seu angu, do seu jiló. Na hora mais virtual, hoje passa o Funk no automóvel da geral, comboio de motoqueiros a dar sinal para periguetes a mostrar o seminu (entramos na era digital). Rua da manhã principiada pelo canto dos pardais, suburbana boemia que volta para seus quintais o eco e invenção de uma nova cidade à contra luz. # Orlando Rangel é poeta, Quebradeiro da 4ª edição


8

Rua de Estrelas

Rogéria Reis

Pediram-me poesia sobre “rua” Mas só sei escrever com o coração Se essa rua fosse minha, estaria é nua De morte, tristeza e desilusão. Uma rua sem roupas? Não pode! De poesia e canção devo togá-la. Luiz Barbosa nela ainda batuca, sacode samba de breque, no chapéu de palha! Fosse minha rua, seria sétimo céu: Com lua e estrelas salpicadas no chão. Na minha rua ainda ouço cantar Noel A sua mais linda e nova composição. Dessa rua só saio rumo a pátria derradeira Privilégio ver o sol nascer tão lindo na Vila! Martinho e meu povo devagarinho subindo a ladeira Meu morro contemplo do peitoril da janela! # Rogéria Reis é poeta, Quebradeira da 4ª edição


O sol frio I Como são belos esses dias Em que o sol nos queima Como que nos beijasse. Como são belos esses dias Em que o sol nasce do sorriso Dos adolescentes que saem das escolas. Como são belos esses dias Em que o sol mora no entoar dos cantos dos vendedores ambulantes. Belos também são os dias Em que o sol junto com o céu Tem o poder de gerar pipas Que rebolam suas rabiolas Na azulidade do firmamento. Assim como belos também são os dias Em que acreditamos que o sol Se alimenta das fogosas e animadas Quase sensuais saudações de velhos amigos. Dos inocentes palavrões que nascem Das bocas das crianças que aprendem a falar. Há tempos em que esse sol e esses dias Não aparecem como que querendo Castigar a malcriação dos homens Com suas ausências. Mas como o sol e os dias Também têm seus sentimentos Que pulsam na fé

9 Marcio Rufino

Destes mesmos homens Eles acabam voltando Atendendo o chamado Das esperanças das mulheres, Dos sonhos das minorias, Dos desesperos dos indefesos, Das inocências dos ignorantes, Da pluralidade de tudo aquilo Que aos nossos olhos não deveria sofrer Mas mesmo assim sofre. II E não satisfeitos em voltar Eles ainda despem as vestes do nosso mundo particular Desnudando visões, Cintilando percepções, Excitando pensamentos e imaginações. Fazendo co m que uma rua qualquer Possa adquirir o mesmo brilho e energia De qualquer mulher bela, saudável e tesa Pronta para o amor. Agora deixem-me entoar Um tranquilo e alegre (Algo parecido com melancólico) canto Antes que o próximo crepúsculo Venha e cubra esse dia e esse sol Com seu denso e notívago manto. # Marcio Rufino é poeta, Quebradeiro da 4ª edição .


10

Que roda é essa? Jessica Castro Que roda é essa que gira e gera vidas? Pulsa sonhos! Que emana fala e tece demandas emaranhadas visceralmente, por nós. Nobres humanos. Vagantes, errantes, aprendizes! Somos ela! Essa roda! Na pele crua de nossa história, na ferida resiliente de nossa carne... Somos! Giramos! Cantamos e tocamos... Todos embriagados pelo êxtase de nossa própria fé. Lua, pontos brilhantes, chuva fina, alvorada, amanhecer, galo canta. Estamos! E no tempo cíclico ancestral. Somos todos poetas embriagados de gira, de identidades latentes, somos Jongo. Somos ela! Essa roda! Axé! # Jessica Castro é jongueira, Quebradeira da 4ª edição.

Ladeira do Escorrega Rafaela Nogueira Se chove tudo fica mais fácil Se chove tudo corre... Do telhado se arrastar A vida a cursar E é na esquina que se convence a subir Se a gente passa a dobrar Deve-se olhar, mas com cuidado, O morador subjetivo na janela Se a gente sobe para escorregar Por entre os tobogãs de ruas Por entre as romãs dos quintais E faz de tudo um abraço De existir um transpassar Paralelepípedo lunar Descascando o cais.

#Rafaela Nogueira é poeta,

Quebradeira da 4ª edição.


Ando pela cidade

11

Teresa Gil Ando

pela rua

Passo tropeço e reparo: Na vitrola sem braço O disco calado Tudo gasto puído mofado Largado no meio Mal passado Na calçada Ando

pela mesma rua

Sigo: Um filme mal revelado passa Um súbito na retina Embaça a rotina Não é um hábito e paro. Foco: A vista pesa Experimento lentes Diferentes modos de olhar pela mesma rua? Ando Passo acelerado e tudo passando: Sons, odores, sabores, Gentes, coisas, tempo, tudo. Desacelero e volto: Na vitrola o mesmo disco roda

A mesma música toca, A mesma faixa arranha, A agulha gasta engasga Não é um hábito Volto e acelero: E o chiado de uma agulha de vitrola velha me martela A agulha no disco da vitrola chia me agulhando a alma Não é um hábito Diminuo a marcha: Ando e não passo engasgada fico no meio Por um fio No meio-fio atropelada?

# Teresa Gil é professora, Quebradeira da 4ª edição.


12

A Passarela

Passei parte da minha infância, toda minha adolescência e vida adulta numa importante avenida do centro do Rio. Tenho ótimas recordações e sinto-me muito feliz por também fazer parte desta memorável passarela - como muitos conhecem a Avenida Marquês de Sapucaí. Ao longo de 30 anos, muitos desfiles se tornaram inesquecíveis. Tomo a liberdade de listar os mais marcantes ao meu ponto de vista. E como diria o samba enredo da Império Serrano de 1982: Bum, bum paticumbum prugurundum. Mangueira 1984: Yes, nós temos Braguinha. Da Mocidade Independente de Padre Miguel foram ótimos o Ziriguidum 2001, Carnaval nas Estrelas de 1985 que arrasou! O Vira Virou, a Mocidade Chegou e o Chuê, Chuá... as Águas Vão Rolar de 1990 e 1991 foram incríveis. Teve também o Kizomba, Festa da Raça da Vila Isabel em 1988 que foi surpreendente. O desfile da Estácio de Sá em 1992, com o enredo sobre o Modernismo foi belíssimo! Teve o homem que voo em plena passarela pela Grande Rio em 2001. As trocas de várias roupas durante o desfile pela comissão de frente da Unidos da Tijuca em 2010, e que continuou ousando durantes os outros anos com cabeças flutuando, homem virando mola fazendo a arquibancada delirar!

Luciana Oliveira

São 80 minutos para que as agremiações cantem e desfilem seus samba-enredos. Infelizmente esse show não é mais gratuito como deveria ser. Pena porque o Carnaval é do povo, da massa. Como todo brasileiro dá seu jeito, a galera dá o seu ao aproveitar a Marquês nos ensaios técnicos que são uma prévia do desfile oficial. Ou ainda da arquibancada zero, nas grades e de cima do Viaduto São Sebastião - terror das escola de Samba que se concentram do lado do Balança mais não Cai no dia do desfile oficial. Mesmo sem ter dinheiro para comprar ingresso, o que vale é estar por perto da nossa Marquês de Sapucaí e celebrar como todos ali, o maior espetáculo da terra. # Luciana Oliveira é professora, Quebradeira da 4ª edição.


Esquinas Improváveis

13

Denise Kosta Partindo a pé de Cascadura, desça a Rua Sidônio Paes, dobre na Saint Roman. Na dúvida, peça informações à garota de Ipanema, para circular a Praça General Osório. Dali, pegue a Primeiro de Março, corra até a Vinte e Quatro de Maio, descanse na Sete de Setembro. Um conselho? Vá devagar até a Dois de Dezembro, afinal, já é quase Natal. Sob as bênçãos suburbanas, vá em frente pela Dom Helder e, alguns metros adiante, aproveite para um banho no mar do sul da Atlântica que, dizem, inclusive os mais céticos como eu, cura espinhela caída e ainda corta o mau-olhado. Na Itararé, atravesse na faixa e ingresse no teleférico. Após dar Adeus do morro, desembarque na estação Sapucaí para cortar caminho pela Barata Ribeiro e chegar na Edgard Romero, paralela à Conde de Bonfim. Siga as placas em direção ao Méier

e na bifurcação entre a Dias da Cruz e a Gustavo Sampaio, sem soltar as mãos do Leme, opte por seguir em frente pela João Goulart até alcançar o contorno da Cesário de Melo, justo onde tem um Campo Grande: você estará a poucos Passos de se unir aos amigos para interagir os nós e falar de poesia. Maravilha. Dispense as origens e a cerimônia. Basta chegar e pronto. A troca de saberes é a festa dos encontros, seja bem-vindo. # Denise Kosta é design, Quebradeira da 4ª edição.


14

Convocatória Rua

Jandir Junior

RUA – Residência Urbano-Artística – é um programa de residências voltado a artistas e criadores em geral. Seu intuito é estimular a ocupação de espaços urbanos públicos na condição de moradores de rua, para assim efetivá-los enquanto lugar de criação por tempo expandido, tal qual ateliês para artistas, bloco de notas para escritores, laboratórios para cientistas, entre outros espaços e práticas. O período de ocupação da RUA está aberto! Todos os espaços urbanos públicos de trânsito estão amplamente preparados para recebê-los. Recomendamos que não portem dinheiro ou quaisquer outros utensílios nessa residência, mas que adquiram o que precisarem ou quiserem, tanto para subsistência quanto para seus projetos de criação, através da caridade ou dos meios utilizados pelos residentes permanentes, moradores de rua que não chegaram a estes lugares por meio desta convocatória.

Reconhecemos que a presença de residentes permanentes pode tornar indiscernível para o público geral quem são os artistas/criadores participantes da residência. Mas neste problema temos também uma dupla esperança: Primeiro que vocês possam aprender modos de (sobre) vivência distintos dentro do espaços urbanos públicos, através do encontro com estes que a tanto tempo estão ali. Segundo que as suas práticas nesta residência possam trazer atenção às práticas artísticas e criativas destes moradores permanentes das ruas, despercebidos boa parte do tempo pelos transeuntes urbanos. A RUA urge! Participem! # Jandir Junior é artista visual, Quebradeiro da 4ª edição.


todas as ruas do meu Nasci na Estrada da Cacuia, no hospital do célebre médico que introduziu o Sistema de Socorro Urgente das Ruas que, na época, os cariocas não receberam bem. Não eu, mas o tal Sistema de Socorro. Com 24 horas de nascido fui para a Rua Arthur Magioli, no Morro do Dendê. Do lado esquerdo da casa, uma equipe de som de onde sai o som do James Brown, Bebeto, Black Rio e Jimi Hendrix. Do direito, uma vila de quitinetes onde rolava brigas e Odair José, amores e Roberto Carlos, perdão e Nelson Gonçalves. Não nesta ordem, mas com intensa frequência. Nos fundos, tinha um terreiro de candomblé que apesar da minha criação católica apostólica romana ostensiva, me encantava e me deixava curioso. Na infância, jogava bola no campinho de barro da Rua Suabiá e também: bolinha de gude, pique esconde, carniça, soltava pipa e maria-fumaça. Ainda via balões gigantescos sendo preparados para perigosamente iluminar as noites de São João. Fui estudar na Rua Noêmia da Silveira, mas quando eu era moleque se chamava Rua maestro Arturo Toscanini e era uma bai-

cérebro

15

Ludi Um

ta ladeira. Eu descia um morro e subia outro para ir à escola, fazendo um côncavo diariamente. Depois, fui morar na Rua Doutor Manoel Marreiros, onde minha mãe era babá de um menino dez anos mais novo que eu e onde, pela primeira vez, pude conhecer a Enciclopédia Mirador e outros livros; um mundo novo ao alcance dos meus olhos. Eram dias divididos entre a vida pobre do Dendê e a classe média da Praia do Barão. Com eles, fui para a Rua Guapeni e o morro ficou distante. Andava de metrô, ia ao cinema, comia no Rico, mas nunca sozinho… eu e meu walkman, que ganhei de presente de uma ex-patroa de minha mãe, que trazia muambas do Paraguai. Voltei para Ilha e cursei parte do meu segundo grau na Rua Pio Dutra. Lugar do primeiro beijo, primeiro baseado, primeira vez de diversas primeiras vezes... Depois, realizei o sonho da minha família passando a estudar na Avenida Maracanã. Fazia música, enchia a cara e, de vez quando, estudava. Nessa época, eu morava na Rua Cícero Rosa, já sem a inocência da infância e com uma vontade de mudar dali, de ser cidadão do mundo.


Olhando os aviões cortando o céu, deitado na laje, imaginava os sonhos que ele levava naquele voo. Como toda família pobre, que vive de aluguel, fomos indo para outras ruas: Jaime Cabral, Curuená, Arthur Magioli e, de novo, Morávia... Sou encantado pelo centro desde sempre, quando olhava de cima da laje o Cristo iluminado com a cidade iluminada sob os seus pés. Queria conquistar aquela cidade! Peguei o 328 de manhãzinha e pela janela; Avenida Brasil, Francisco Bicalho, Presidente Vargas, Rio Branco. Passei o dia sorvendo cada passo daquelas ruas, aqueles cheiros, aquelas cores, aquelas faces, um mundo se abrindo em cada esquina. Voltava toda semana e andava me encharcando daquelas ruas: Uruguaiana, Gonçalves Dias, Almirante Barroso, México, São José, Debret, Alcindo Guanabara, Álvaro Alvim, Senador Dantas, Pedro Lessa, 13 de maio. E na 13 de Maio, entre um vinil de Tábua de Esmeralda, do Jorge Ben e o CD Bitches Brew, do Miles Davis e a camisa Goo, do Sonic Youth nas bancas da feira de discos, onde a fauna alternativa carioca se locupletava, resolvi que seria músico e que esta cidade seria minha. Mas que nunca esqueceria a Arthur Magioli, do barro, dos vizinhos românticos

briguentos musicais, das brincadeiras ao ar livre, dos piques, do marraio, do “a de fora é minha”, e principalmente dos desejos quando deitado em cima da laje com as estrelas pertinho e dos aviões grávidos de sonhos. # Ludi Um é músico, Quebradeiro da 4ª edição.


Rua General Clarindo, uma 17 rua de feira Cristina Hare A Rua General Clarindo era meu endereço no Engenho de Dentro. Era a rua da feira, a mais animada do bairro aos domingos. Eu gostava de ir à feira. Muitas barracas, muita gente comprando, num tempo em que não existiam hortifrútis. Achava legal as mulheres que puxavam carrinhos aramados. Minha mãe nunca teve um, sempre preferiu carregar sacolas e eu queria entender o porquê. A gente sempre ia perto do meio-dia, quando o expediente estava quase no fim e, por isso os feirantes baixavam os preços. Fim de feira é a famosa hora da xepa! E quando os barraqueiros por fim recolhiam suas barracas, sobravam as frutas pisadas no chão de paralelepípedos e o cheiro enjoado de peixe empesteando o ar. Em 82, a escola de samba Caprichosos de Pilares, bairro vizinho, subiu pela primeira vez ao grupo especial, trazendo um samba-enredo que estava na boca de todos. O samba de cunho social e com letra popular, retratava a feira, o feirante e seus bordões. Nesse ano, era comum os barraqueiros cantarem o refrão, chamando atenção dos fregueses pras suas mercadorias, orgulhosos por estarem representados numa obra tão significativa para eles. O samba chamava-se Moça Bonita Não Paga, e o refrão dizia:

“Pisa na casca de banana escorrega Aqui não paga, mas também não leva. Compra peixe Lili, compra peixe Lili Já é meio dia de bolsa vazia não pode sair Tem zoeira, tem zoeira, Hora de xepa é final de feira”. Em 2007, O Estádio Olímpico João Avelange, o Engenhão, invadiria a Rua José dos Reis, esquina dessas lembranças. Os tempos mudaram! Sem saudosismo. Afinal, eu gosto de ver as ruas do bairro entupidas de carros nos dias de jogo. Dá uma falsa impressão de que o progresso está chegando ao Engenho de Dentro e que a qualquer momento, aqueles lugares por onde tanto perambulei, podem se tornar pontos turísticos. A Caprichoso de Pilares ganhou e perdeu muitos carnavais. Os carrinhos aramados estão fora de moda. Mas o cheiro das frutas pisadas e dos peixes , agora num chão asfaltado, continuam se misturando e enchendo o ar nos dias de domingo. A feira, continua lá, apesar dos hortifrútis. E moça bonita? Não mas também não

paga, leva.

• Cristina Hare é videomaker, Quebradeiro da 2a edição.


FALA QUEBRADAS! Número Um (Cem exemplares impressos)

Rio de Janeiro, Setembro de 2014. Contatos falaquebradas@gmail.com Ficha técnica desta edição: Idealização e edição geral Felipe Boaventura Equipe de Edição Prosa Denise Dias Rafaela Nogueira Equipe de Edição Poesia Janaina Tavares Orlando Rangel Rogéria Reis Projeto Gráfico Egeu Laus Apoio Universidade das Quebradas Museu de Arte do Rio (MAR) Produção LetraTera


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.