10 minute read
A MODA EVANGÉLICA BRASILEIRA COMO PARADIGMA PÓS-MODERNO DA SEGUNDA NAVEGAÇÃO DE PLATÃO
Ana Karolina Sanchez Ortega; Liberdade para Amélia; anakarolina.ortega@gmail.com
Resumo: Há uma relação existente entre a religiosidade e a moda, uma vez que o aspecto religioso, assim como o vestuário, está intimamente vinculado ao comportamento de determinados grupos sociais. Tendo como objeto de estudo as mulheres evangélicas pentecostais brasileiras, este ensaio procura demonstrar a maneira que o vestuário pode ser utilizado em diferentes contextos como instrumento de coerção social. Deixa-se claro o quanto questões sociais e religiosas, que envolvem nossas vidas diárias, estão embebidas da sapiência clássica grega e, com a moda evangélica, não poderia ser diferente.
Palavras-chave: Cultura, Moda, Filosofia, Platonismo, Coerção Social, Moda Evangélica.
INTRODUÇÃO
A moda é um fenômeno social e cultural, permeia simbologias e demarca identidades de grupos sociais. Com Simmel afirmamos que dentro da moda existe uma dinâmica de diferenciação e imitação dando origem a ela (GODART, 2010, p. 29). A moda evangélica segue a lógica do ambiente a qual está inserida; baseia-se nos dogmas e doutrinas, usos e costumes que permeiam as regras sociais das igrejas pentecostais. O que se subentende é que, vivendo dessa forma, acredita-se estar se separando “do mundo” e vivendo de forma mais santa e piedosa para Deus. Porém, como Nietzche pontuou, esse tipo de crença cristã é, muito mais, um platonismo disfarçado para o povo (NIETZCHE, 1885, p. 8). As vestimentas constituem um elemento central na realidade dos indivíduos, visto que eles assinalam suas diversas inclusões sociais por meio de sinais identitários que elas promovem (GODART, 2010, p. 29). Sendo assim, a moda evangélica é compreendida como um fato social e não somente um fenômeno superficial relativo ao vestuário.
A moda é, portanto, um elemento essencial na construção identitária dos indivíduos e dos grupos sociais. As roupas[...] são um elemento importante, mas não o único, visto que são usadas para revelar a posição estatutária dos indivíduos e dos grupos sociais. Entretanto, o status social não é o único componente das identidades individuais e coletivas. É preciso então
se perguntar quais são[...]. Para o sociólogo inglês Dick Hebdige[...] a identidade é uma questão de estilo. Ela é concebida de início como um fenômeno coletivo que se vincula às subculturas. Uma subcultura é um conjunto significativo de práticas e de representações que distinguem um grupo de indivíduos de outro. Ela se compõe de várias facetas, por exemplo, de roupas reconhecíveis e de gostos musicais específicos, mas também de ideias políticas mais ou menos estruturadas e de uma maneira particular de se expressar (GODART, 2010, p. 29).
Podemos considerar o pentecostalismo um movimento de subculturas. Dentro do cristianismo evangélico ele caracteriza-se pelo anticatolicismo, pela ênfase na crença no batismo do Espírito Santo e por um ascetismo que rejeita os valores do mundo e defende a plenitude da vida moral e espiritual. Existem nele várias ramificações de crenças e doutrinas variando de instituição para instituição. Em linhas gerais, o movimento ensina seus fiéis a delimitarem muito bem o sagrado em contraposição àquilo que é secular; promovendo um modo de vida onde há abstenção do objeto julgado profano com base na eisegese de textos bíblicos. A moda evangélica feminina é fruto desse meio, ela surgiu da necessidade de se produzir roupas consideradas modestas e comportadas para esse público, que estejam longe dos padrões do “mundo”, atendendo as doutrinas dessas igrejas e expressando santidade. Na internet temos acesso a vários blogs escritos por pessoas que fazem parte desse meio social e atentam para essa temática, procurando exemplificar e trazer informações a respeito do tema. A partir dessas palavras percebe-se uma maneira de pensar e compreender o mundo característica de quem adere a esse estilo:
Com as diferentes doutrinas em algumas igrejas evangélicas e com a moda andando muito longe dos padrões que a igreja nos traz, não é segredo que logo seria necessário um desenvolvimento de roupas mais comportadas. Claro, sem deixar a elegância e o estilo de lado, afinal, também gostamos disso! (SANTOS, 2022).
As mulheres pentecostais valem-se de uma contracultura onde buscam se diferenciar por meio do vestuário da forma “secular” e “mundana” das demais mulheres que não compartilham a mesma fé; buscando unir doutrina com estética e, dessa forma, a possibilidade de também estarem na moda sem romper com o que creem. Para elas, o propósito das roupas evangélicas está em se diferenciar dos padrões do mundo, daquilo que está sendo usado fora da igreja e fere tanto os princípios, como as doutrinas. A partir dessa realidade, podemos então levantar diversos
questionamentos a respeito do que é considerado santo e passível de uso e o que não é: Quem define o que é santo e o que não é para ser usado? As Escrituras nos dão respaldo o suficiente para desenvolver um estilo e criar marcas de roupas que delimite quem é o povo de Deus e quem não é? O que diferencia uma pessoa cristã de uma não cristã são as roupas? O vestuário torna as pessoas mais santas ou separadas do mundo? É necessário existir um padrão de diferenciação entre cristão e não cristãos expresso por meio da moda? Com base nesses argumentos que afirmam “sinais externos de santidade”, as participantes dessas denominações têm modificado sua relação com o vestuário, um elemento que se constitui como principal veículo de comunicação para seus membros, tendo em vista a possibilidade de demonstrar que se é separado do mundo, diferente ou, simplesmente, um/uma membro de tal igreja (ROCHA e col. 2017).
O CORPO E A MATÉRIA EM PLATÃO
Nesse contexto percebemos que o corpo é considerado antagônico à alma diante da Palavra de Deus e suas vontades o levam a pecar e obstruir a doutrina. Na atualidade, a sensualidade do corpo tem se tornado exacerbada, porém, as mulheres pentecostais ainda prezam pelo vestuário e seu significado social de cobrir o corpo. Para elas, o corpo é visto como sagrado e, sendo assim, tendem a se vestir de forma considerada “comportada” (OLIVEIRA, 2014, p. 16). Esse modo “comportado”, segundo as doutrinas da igreja, refere-se à aparência, com as características que remetem à roupa da “crente” sem muito decote, com a largura da saia minimamente até os joelhos, romântica e, o que eles consideram, bem feminina. (ROCHA e col. 2017).
Analisando as definições do que é o “ser crente” para essas mulheres percebe-se um padrão de vestimenta que, na verdade, revela um padrão de comportamento. Quando Platão empreendeu aquela que ele chama de “segunda navegação” ele estava traçando uma nova rota contrária a tudo que vinha sendo feito antes pelos filósofos, uma rota que conduz à descoberta do suprassensível. Sabemos que ele rachou o mundo em dois andares e a partir dali o pensamento passou a seguir esse curso. Platão não só inaugurou um sistema filosófico duradouro como comprovou que a maneira de pensarmos impacta diretamente em como vivemos, agimos e nos movemos. Seu sistema de pensamento trouxe consequências que até hoje permeiam o Ocidente e está intrínseca na nossa maneira de viver, sem nos darmos conta disso.
É só depois da “segunda navegação” que se poderá falar de “material” e “imaterial’’, “sensível” e “suprassensível”, “físico” e “suprafísico” (ANTISERI e REALE, 2017, p. 132). Com base nisso, Platão ensinou a todo o Ocidente que o mundo sensível
é só uma cópia do mundo suprassensível, sendo necessário a busca pelas formas perfeitas e acarretando em um desprezo pelo mundo imanente. Em consequência desse sistema de pensamento e da maneira como ele entrou na nossa história, a forma ocidental de se viver hoje diz respeito a esse platonismo resiliente no interior do nosso pensamento; é importante afirmar que a igreja não escapou dessa realidade durante a história, e não escapa hoje. Muito daquilo que é visto no meio evangélico como dogmas, ou até mesmo doutrinas, são baseadas nessa visão de mundo platonizante.
No seu diálogo Fedro, Platão enfatiza que a alma exibe a maior semelhança com o divino imortal valorizando-a acima do corpo mortal, inconstante, dissoluto. Isso nos faz perceber que tudo aquilo relacionado a este corpo mortal é de menor valor se comparado com a alma imortal, divina. Repetidas vezes a ambiguidade dentro desse princípio colocava a forma em absoluta oposição a matéria (DOOYEWEERD, 2012, p. 49). Logo, quando se diz haver necessidade do uso de roupas que apontem para uma linha de separação do “mundo” e expressem a “proximidade de Deus”, modelando determinados tipos de vestuário que carregue um princípio de moralidade, o pressuposto utilizado aqui é o mesmo por Platão. Em última análise, a roupa é uma fuga dos padrões do mundo em direção a forma perfeita de Deus.
A MODA COMO INSTRUMENTO DE COERÇÃO SOCIAL
A moda é considerada um “fato social total” (GODART, 2010, p.17) visto que ela tem poder natural de influência em diferentes contextos. Diante disso, o quanto as mulheres evangélicas de fato concordam com que lhes é imposto e entendem o que isso significa? Ou, até que ponto, está se determinando algo coercitivamente? O vestuário nesses ambientes também é um regulador de comportamentos, tanto masculino quanto feminino, mostrando se esperar um determinado tipo de postura e conduta diferente entre homens e mulheres. O que esse fato social nos aponta sobre a figura da mulher? Qual visão se tem do corpo feminino em face às vestimentas não regulamentadas?
Para muitas delas não existe possibilidade de questionamento acerca dos usos e costumes nas suas roupas pelo fato de ser ensinado que existe um certo tipo de cuidado com o corpo da mulher, em face ao olhar masculino. A roupa assume um lugar de preponderância na proteção contra o olhar erotizado dos homens. Isso leva-nos a pensar que as mulheres também são enxergadas de forma estereotipada. Há um padrão em como as mulheres devem se comportar e isso está intimamente ligado a sua fé; determinados tipos de comportamentos afrontam sua crença diretamente. Nota-se dessa forma, um arquétipo elevado imposto sobre o público feminino em ser e na maneira de se comportar; a roupa é somente o produto final desse sistema de pensamento. Questiona-se o lugar da mulher dentro dessas micro-sociedades, o seu lugar de fala, e o quanto elas estão cientes de que as suas roupas representam a condição delas mesmas. A maior prova do desejo de eman-
cipação desse público, se dá pelo crescimento da moda evangélica contemporânea no setor têxtil, que segue as tendências da moda e tem o seu desenvolvimento comercial muito próximo das marcas de mercado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Existe uma grande contradição nesse tipo de pensamento que gera aporias. A roupa sendo um objeto, por si só não tem poder, ao menos que se aplique sobre ela um juízo de valor. A ideia de estar longe dos padrões do “mundo” se torna contraditória visto que a moda está inserida na indústria têxtil, hoje um dos setores que mais geram receitas a nível mundial. A moda evangélica se tornou um mercado promissor no Brasil e em contínua expansão porque as marcas que produzem roupas para esse nicho passaram a comunicar tendências de moda, saindo das roupas “evangélicas tradicionais” e inserindo tendências dentro dos padrões pentecostais. Ora, se a finalidade para se fazer uso desse tipo de vestimenta tinha como causa primária a diferenciação dos padrões seculares, seguir tendências de moda é o absoluto oposto disso. Logo, os argumentos usados para comprovar sua diferenciação, caem em contradição. Quando se faz uma análise mais profunda observando a modelagem das roupas evangélicas produzidas hoje, o marketing e produção de moda nos catálogos das marcas, as poucas diferenças encontradas quando comparadas à moda “secular” estão no comprimento dos vestidos e na ausência de decotes. O vestuário, portanto, cumpre o seu papel de símbolo criando “objetos portadores de significado” (GODART, 2010, p.7). A partir dessa análise, é possível concluir que as roupas refletem a maneira de se enxergá-la imposta pela cosmovisão comum a esse meio social, e como vimos, bem mais próximo do platonismo.
REFERÊNCIAS
GODART, Frédéric. Sociologia da moda. Tradução de Lea P. Zylberlicht. São Paulo: Editora SENAC, 2010, 155 p.
NIETZCHE, Friedrich. Além de bem e de mal. Tradução de Saulo Krieguer. São Paulo: Editora Edipro, 2019, 240 p.
SANTOS, Thaís. Você conhece a história da moda evangélica? In: Thaís Santos. BySophi. Disponível em: Você conhece a história da moda evangélica? | BySophi. Acesso em 4 mar. 2022.
ALBUQUERQUE, ARRAZOLA e ROCHA, Hortência, Laura e Maria Alice.“Santas e estilosas”: o consumo de moda gospel por mulheres pentecostais. 2017. 16p. Artigo. Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2017.
ANTISERI e REALE, Dario e Giovanni. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. 1. Tradução José Bortolini. São Paulo: Editora Paulus, 2017, 418 p. DOOYEWEERD, Herman. Raízes da cultura ocidental - As alternativas pagã, secular e cristã. Tradução Afonso Teixeira. São Paulo: Cultura Cristã, 2015, 256 p.