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MÍDIA BRASILEIRA, MODA E VISIBILIDADE NORTISTA: ANÁLISE DO PRIMEIRO SEMESTRE DE 2022
Glícia Caroline Rocha Cáuper, Instituto Casa de Criadores, gliciacauper@hotmail.com
Resumo: O objetivo da pesquisa é verificar como a Região Norte do Brasil é retratada nos principais veículos de comunicação do país e de que forma isto reflete na moda. Utilizou-se da análise de conteúdo e os objetos verificados foram instagrans de revistas fashion. Como aporte teórico, teve estudos como “Vestuário e história pelas ruas de Belém”. Resultados mostram que há representatividade e visibilidade mínima da região.
Palavras chave: Norte brasileiro; mídia de moda; visibilidade.
Por muito tempo a região norte foi caracterizada por diversos estereótipos construídos socialmente e reforçados pelos meios de comunicação. Para verificar se essa “caracterização calçada em estereótipos” e a invisibilidade do Norte se mantém nos dias atuais, este ensaio traz uma análise das frequências e das características das narrativas apresentadas sobre o norte brasileiro nos principais veículos de comunicação de moda do país.
Utilizou-se da análise de conteúdo, quantitativa e qualitativa; e teve como objeto de análise três plataformas digitais das principais revistas de moda do Brasil, quantificando-se três postagens sobre ou com menções à região, nos meses de janeiro a junho de 2022. Como aporte teórico, o ensaio conta com estudos como o artigo “Desconstrução do estereótipo da beleza feminina amazônica: uma leitura em Dois Irmãos”, de Cláudia Maria De Serrão Pereira; e o artigo “Vestuário e história pelas ruas de Belém”, do professor e pesquisador Fernando Hage Soares.
Os principais resultados deste ensaio mostram que há representatividade e visibilidade mínima, bem como o reforço de alguns dos estereótipos da região. Algumas questões apresentaram-se como peças-chave neste ensaio: as relacionadas à moda e seu papel enquanto veículo de comunicação e enquanto linguagem; as que envolvem a comunicação e seu papel na sociedade; e as relacionadas a apropriação cultural, exotização, estereotipação e afins. O vestir, que já foi entendido como uma ação realizada para cobrir e proteger o corpo, hoje funciona como forma de comunicar. O corpo vestido é um enunciado e pode conter em si uma série de sentidos. Conforme Tânia Tatsch Nunes mencionou em sua pesquisa de mestrado (NUNES, 2012, p.8), a moda é ‘uma construção histórica, atravessada de poder, que tanto silencia, como evidencia memórias a partir do corpo’.
Ainda segundo essa pesquisadora (NUNES, 2012, p.19), a moda está em tudo que usamos e as questões relativas à produção de moda e aos processos comunicacionais decorrentes dessa produção, dependem não apenas de fatores subjetivos como a personalidade que cada pessoa possui, mas também da totalidade de fatores culturais que exercem influência sobre ela. Seguindo por uma linha de raciocínio similar, em aula do Instituto Casa de Criadores, o professor Silvio Luiz de Almeida, afirmou que ‘falar de moda é falar de como a objetividade na minha vida se expressa pela subjetividade e como a subjetividade opera na objetividade’. Na ocasião, o professor trouxe sua história pessoal à tona e explicou em detalhes como ser um homem negro, no mundo, tem uma relação direta com a sua maneira de se vestir.
O professor contou sobre a preocupação que seu pai sempre teve com sua própria forma de se vestir e também com a forma de vestir do filho. Contou ainda que, assim que entrou na faculdade de Direito, seu pai lhe presenteou com um belo terno e que ambos sabiam, ainda que inconscientemente, que este lhe imprimiria ares de autoridade, fazendo-o sentir confiança e, consequentemente, iria impor aos demais o dever de respeitá-lo. Revelando assim, toda uma construção social em torno de uma peça de roupa: um terno. E, como esta peça lhe serviu como “mecanismo revolucionário”, fazendo-o ascender socialmente e sair dos lugares tradicionalmente destinados aos homens negros brasileiros.
Neste viés, entende-se que para compreender a construção da identidade dos sujeitos nortistas, é necessária esta análise de como a “objetividade atua na subjetividade” ou vice-versa. Ou seja, deve-se avaliar como a cultura local afeta o contexto da globalização e como o contexto da globalização afeta a cultura local. Para tanto, é importante verificar como o uso das mídias digitais contribui para incisão de conceitos e signos sobre o local ou sobre o global (ou vice-versa), e como elas atuam para criar alterações ou ressignificações deste intercâmbio entre estas diferentes esferas mencionadas.
De acordo com a pesquisa de Lilian Crepaldi (CREPALDI, 2005, p.1), a expansão da Internet nos anos 90 provocou fortes mudanças nos processos comunicacionais do mundo. E no Brasil, não foi diferente. Houve um momento inicial de confusão para discernir o papel de cada mídia, mas logo as grandes empresas midiáticas brasileiras, principalmente as televisivas, optaram por trabalhar com especialização e segmentação: a ordem era inserir a regionalização no contexto da globalização, segmentando mercados e direcionando as programações para um maior alcance dos objetivos estratégicos.
O processo de regionalização foi consolidado a partir de sentidos e significados já postos na sociedade brasileira, através da oralidade, da literatura, de pinturas, fotografias e manifestações expressivas afins. Cabe salientar que, em virtude de sua localização geográfica, da sua fauna, de sua flora e uma série de outros fatores histórico-sociais, o Norte do país vivenciou acontecimentos que até hoje repercutem na forma que a região é representada para o restante do país e para o restante do mundo.
Ao longo de muitos anos, o detalhamento e a descrição das cidades, dos seus habitantes, dos seus costumes e vestimentas foram realizados por estrangeiros ou ainda, por homens abastados naturais do norte que, embora tenham nascido na região, a descrevem sob um ponto de vista peculiar, como se se colocassem em um patamar mais elevado que o restante da população nortista, como se não fossem mais “cidadãos locais” e sim meros espectadores do norte, como o restante do país. Na pesquisa intitulada “Desconstrução do estereótipo da beleza feminina amazônica: uma leitura em Dois Irmãos”, de Cláudia Maria De Serrão Pereira, a autora mostra que na obra de Milton Hatoum ‘há assimilação da beleza feminina amazônica com traçados indígenas, uma concepção de beleza desfragmentada da consciência dos episódios histórico-culturais amazônicos’ (PEREIRA, 2014, p.1), o que advoga a autora justificaria a existência da:
Propagação de tipos físicos que recaem, frequentemente, em uma perspectiva de características indígenas, principalmente nos veículos de comunicação, não reconhecendo, assim, em âmbito nacional e internacional, que as características amazônicas não se confinam somente nas indígenas, uma vez que a Amazônia foi berço amplo de colonização europeia, do Ciclo da Borracha (1879-1912; 1942/1945), Cabanagem (1835-1840), Juta e Malva (1942 a 1945) e Zona Franca (1967). (PEREIRA, 2014, p.2)
Para corroborar com o que já foi dito, é importante trazer à tona o artigo “Vestuário e história pelas ruas de Belém”, do professor e pesquisador Fernando Hage Soares, no qual ele afirma utilizar relatos de viajantes para compor sua pesquisa:
Aqui neste artigo, muitas imagens deixadas por viajantes nos ajudarão a reconstruir alguns percursos do vestuário pelas ruas de Belém, reconstituindo também um pouco dessa cidade que, desde seu nascimento, é um importante ponto de confluências entre diversas culturas. (SOARES, 2013, p.95)
Ao longo de seu artigo, Soares traz diversos apontamentos de homens que estiveram de passagem pela capital do Pará. A título exemplificativo, segue uma descrição da cidade feita pelo escritor Euclides da Cunha, em 1904:
(...) Passei ali hora inolvidáveis – nunca esquecerei a surpresa que me causou aquela cidade. Nunca São Paulo e Rio de Janeiro terão as suas avenidas monumentais, largas de 40 metros e sombreadas de filas sucessivas de árvores enormes. Não se imagina no resto do Brasil o que é a cidade de Belém, com os seus edifícios desmensurados, as suas praças incomparáveis e com a sua gente de hábitos europeus, cavalheira e generosa. Foi a maior surpresa de toda a viagem (CUNHA citado por RIBEIRO, 2006, p. 155 apud SOARES, 2013, p. 99)
Como se pode notar, desde 1904, cidades nortistas são tomadas pelo restante do Brasil como uma grande surpresa, como algo curioso ou exótico. As narrativas sobre elas, que geralmente foram feitas por homens, costumam ter um tom de superioridade ou um tom que beira ao jocoso, como este relato de Euclides da Cunha.
Para dar sequência e sentido a tudo que foi apresentado anteriormente, bem como para proporcionar as devidas conclusões para este ensaio, passa-se à análise do conteúdo postado de janeiro a junho de 2022, nos instagrans de três revistas de moda de renome e grande alcance nacional: Elle Brasil, Glamour Brasil e Vogue Brasil.
As revistas mencionadas costumam publicar de um a três posts por dia em seus respectivos instagrans, o que nos dá uma média de 60 posts por mês, resultando em cerca de 360 posts ao longo do primeiro semestre de 2022.
Nesses seis primeiros meses de 2022, a região norte só chegou a “aparecer” no cenário nacional da moda durante três vezes. A região apareceu em duas matérias da revista Elle, que não necessariamente tratavam da região Norte ou especificamente falavam sobre a produção de moda no Norte: as postagens veiculadas pela revista Elle, eram relativas ao #movimentoelle, um projeto no qual a revista auxiliava pequenas marcas com determinadas consultorias. Como uma dessas marcas era nortista, a região acabou sendo representada em dois posts. Quanto ao post da revista Vogue, era um post comercial, referente a uma parceria entre a Le Lis Blanc e a Ecoarts Amazonia. A peça publicitária postada era um vídeo que fazia alusão direta à floresta. Os três posts resumem a região à floresta, sustentabilidade e ancestralidade, conforme se pode verificar nos links relacionados a tabela abaixo:
TABELA 1
Matérias coletadas no primeiro semestre de 2022
Meses Quantidade Revista
jan/22 fev/22
11 Elle Brasil
mar/22 abr/22
12
13 Vogue Brasil Elle Brasil
mai/22 - -
jun/22 - -
Fonte: elaboração da autora (2022)
Evidenciando ainda mais a falta de visibilidade nortista na mídia de moda nacional, no dia 22 de fevereiro de 2022, um caso teve destaque em Manaus: a Polícia Federal deflagrou na manhã daquele dia, a Operação Plastina, por meio da qual estavam sendo investigados fatos relacionados a possível prática do crime de tráfico internacional de órgãos humanos. A plastinação é uma técnica que consiste em extrair os líquidos e os lipídios corporais, substituindo-os por resinas plásticas como o silicone, resultando em tecidos secos, inodoros e duráveis. Segundo as investigações, há indícios de que foi postada uma encomenda, contendo uma mão e três placentas de origem humanas, de Manaus com destino à Singapura. Supostamente, a postagem teria sido realizada por um professor da Universidade Estadual do Amazonas e teria como destinatário o designer indonésio Arnold Putra, que vende acessórios e peças de roupas utilizando materiais de natureza humana.
Antes da polêmica do tráfico de órgãos em Manaus, o designer já havia recebido críticas pelo que postava em suas redes sociais e é fácil encontrar prints de imagens que ele mesmo postou em suas plataformas de mídia, nas quais ele costumava relatar que enganava tribos indígenas de todo mundo, inclusive tribos na Amazônia, trocando relógios de luxo falsos pelos artefatos produzidos por essas populações4 .
É importante destacar, que o caso teve grande repercussão na capital do Amazonas. Já na manhã do dia 22 de fevereiro de 2022, quando foi deflagrada a operação policial, o caso foi noticiado pela imprensa local de maneira massiva. No entanto, o mesmo não ocorreu em todo o território do país. O caso até chegou a ser noticiado em alguns grandes veículos de comunicação brasileiros, mas não chegou a alcançar notoriedade. Na Folha de São Paulo, por exemplo, o caso levou três dias para ser publicado em seu instagram5. E nas grandes revistas de moda do país, o caso sequer chegou a ser pauta.
O mesmo ocorreu com a Primeira Mostra Intercultural de Moda Indígena em Manaus, ocorrida no período de 2 até 23 de abril de 2022. O evento, que contou com a participação de diversas tribos indígenas e visava promover o trabalho dos integrantes delas, até chegou a ser noticiado, porém apenas na mídia local e em sites com baixo alcance de outras regiões do país.
Na contramão, o São Paulo Fashion Week, contou com a produção de postagem em massa nos instagrans das revistas analisadas. No período de 31.05.2022 a 06.06.2022 a Elle Brasil fez 38 posts, a Vogue Brasil fez 32 posts e a Glamour Brasil fez 9 posts sobre o evento. Todos tinham um caráter especial e apresentavam, em detalhes, coleções, desfiles e produções de backsatge.
Constantemente, podemos acompanhar, em jornais com alcance nacional, casos relacionados a política em Brasília ou até mesmo relacionados a obras e seus transtornos no transito em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Isto tudo ao vivo, e, se não ao vivo, pelo menos no mesmo dia em que os fatos ocorreram. No entanto, o mesmo não parece acontecer com casos ocorridos no Norte, ainda que estejamos em 2022, ano em que as distancias geográficas são facilmente suprimidas pela tecnologia.
Voltando ao caso envolvendo tráfico de órgãos e um designer de moda, destaca-se, novamente, que ele sequer foi mencionado nas principais revistas e plataformas de moda do Brasil. Revistas que levantam questões como transfobia, PAS (Pessoas Altamente Sensíveis), que problematizam o uso de balaclavas e até mesmo conseguem traçar paralelos sobre a forma de vestir com a queda dos números de caso de covid e com a guerra entre Rússia e Ucrânia, não conseguiram emitir uma “materiazinha” ou fazer um simples post sobre um caso de tráfico de órgãos ocorrido em território brasileiro. A moda e os meios de comunicação são dois dos principais caminhos que levam os brasileiros a se sentirem representados. A forma como esses dois elementos se estruturam pode proporcionar ao homem local, o “regional”, o poder de se transformar em um cidadão global, diminuindo as distancias territoriais e apresentando o quão heterogêneas as pessoas de determinada região podem ser.
Será preciso ter, cada vez mais, diversidade nos meios de comunicação e também dentro da indústria da moda, pois além de conferir visibilidade e representatividade, a diversidade permitirá que mais pessoas possam se empoderar, conferindo inclusão e pertencimento a grupos que foram historicamente marginalizados e invisibilizados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CREPALDI, Lilian. Grupos Midiáticos do Norte Brasileiro: Processos de Regionalização, Nacionalização e Internacionalização. Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/pdf s/83812410898519188679048941197373800058.pdf > SOARES, Fernando Hage. Vestuário e história pelas ruas de Belém. DOBRAS (BARUERI, SP), v. 6, p. 94, 2013. Manaus vai sediar a primeira Mostra de Moda Indígena do Brasil. G1 AM, Amazonas, mar; 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2022/03/10/manaus-vai-sedia-primeira-mostra-de-moda-de-indigena-do-brasil.ghtml >
MASSUCHIN, Michele Goulart; SILVA, Sarah Dantas do Rego. Construção do Nordeste no Telejornalismo: um estudo do Jornal Hoje. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/extraprensa/article/view/158986/159256>
NUNES, Tânia Cristina Rodrigues Tasch. Gaby Amarantos: Moda eXtrema, discurso e identidades. Disponível em: <http://www6.unama.br/ppgclc/attachments/article/56/Gaby%20 Amarantos;%20moda%20eXtrema,%20discurso%20e%20identidades.pdf >
PEREIRA, Cláudia Maria de Serrão. Desconstrução do estereótipo da beleza feminina amazônica: uma leitura em Dois Irmãos. Disponível em: <https://riu.ufam.edu.br/bitstream/prefix/4281/1/PIB_H__00802013_CLAUDIA_CASSIA.pdf >
Polícia Federal investiga envio de mão e placentas humanas de Manaus para Singapura, na Ásia. G1 AM, Amazonas, fev; 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2022/02/22/policia-federal-investiga-envio-de-mao-e-placentas-humanas-de-manaus-para-singapura-na-asia.ghtml>